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HUMOR NEGRO

- TEXTOS CÓMICOS -

VÁRIOS AUTORES

Título original: Dark Humor

Edição em Pt-Pt (Português Europeu)


ÍNDICE

As Crianças - Jonathan Swift

Passatempos De Verão - Alphonse Allais

A Ptomaina - Autor Anónimo

O Ingrato - Eugéne Chavette

Pechincha - Autor Anónimo

Vingança De Pobre - Angel Palomino

A Gota - Autor Anónimo

A Antropofagia Ainda Existe - Tristan Bernard

A Cabeça Da Bem Amada - Autor Anónimo

Os Cogumelos Venenosos - Sacha Guitry

Serviço De Liquidação - Robert Sheckley

A Aposta - Ronald Dahl

O Sargento Com Os Queixos De Pau-Santo - Eugène Mouton

Cozinha Antropofágica - Júlio Camba

O Rajá Que Sofria De Tédio - Alphonse Allais

O Pobre - André Frédérique


AS CRIANÇAS

POR JONATHAN SWIFT

É muito desagradável ver as ruas desta grande cidade de Dublin,

infestadas de mendigos que, seguidos de uma caterva de filhos,

importunam os transeuntes. Sendo obrigados a pedir esmola para alimentar

tanta criança, os pais não têm tempo de trabalhar e assim ganhar

honestamente a vida.

Há muito tempo que eu dedico os momentos livres ao estudo dum

método capaz de evitar ou atenuar este estado de coisas e creio ter chegado

a algumas sérias conclusões.

Como é fácil calcular, as crianças começam a dar despesa e

preocupações aos pobres mendigos ao atingirem a idade de um ano pois até

ali são alimentadas com leite materno (que, como se sabe, é gratuito).

Quando a mãe seca, isto é, quando as glândulas mamárias se recusam a

alimentar a criança, há que arranjar outro tipo de leite, quer seja de vaca ou

cabra, sendo que qualquer deles já custa dinheiro ao contrário do que

acontece com o leite da mulher. Aí começam então os problemas, que os

pobres, naturalmente falhos de imaginação, só resolvem recorrendo à

caridade pública.
Ora o meu plano é tão eficaz que, não só evita as despesas feitas pelas

crianças como as torna úteis à sociedade contribuindo para alimentar

milhares de adultos.

Uma outra grande vantagem do meu projeto é evitar os abortos

voluntários, essa horrível praga social, e também que as mães matem os

filhos à nascença o que, só de imaginá-lo, me traz as lágrimas aos olhos.

Como se sabe, raras são as crianças que podem trabalhar antes/ dos seis

anos de idade e muitos industriais e agricultores só as admitem nas suas

fábricas, minas ou herdades, depois dos) doze. Mesmo nesta idade valem

muito pouco e alguns pais vendem-nas: por duas ou três libras o que nem

de longe compensa as despesas feitas em comida e vestuário ao longo de

todos esses amos. Para os pobres é pois um mau negócio criar um filho.

Postas estas considerações, que aliás são do espero seja acolhida

favoravelmente.

Uma criança de um ano é, segundo os bons gastrónomos,

extraordinariamente saborosa, quer seja frita, assada, estufada, passada

pelas brasas, ou mesmo cozinhada em fricassé.

Além de saborosa é extremamente nutritiva.

Ora eu proponho que apenas um décimo das crianças pobres sejam

reservadas, se conservem e deixem crescer, para que a espécie (a espécie


dos pobres de certa maneira útil e necessária) não desapareça da face da

terra. Entre as crianças que se apurarem, a fim de serem usadas mais tarde

na tarefa da reprodução-, apenas: será selecionado um macho para 4

fêmeas, pois é -essa a percentagem dos criadores de gado suíno, bovino e

lanígero. As restantes: serão postas à venda como alimento das pessoas

ricas deste país, recomendando-se às mães para amamentarem

copiosamente os filhos no último mês antes da venda, de forma a torná-los

gordos e macios.

Uma só criança dará para um bom jantar de família, ainda que haja

muitos convidados. Se os comensais são pouco numerosos, bastará um

quarto dianteiro ou traseiro, deixando-se o resto, bem conservado em sal ou

pimenta, para os dias seguintes.

É evidente que este petisco será caro, e só poderá ser apreciado pelos

grandes proprietários que, tendo já devorado os pais, não hesitarão em

comer também os filhos.

Apresentei já esta minha ideia a um funcionário do governo, pessoa

muito ida minha consideração e estima, e digno de todos os louvores pela

maneira desinteressada como serve o país. Achou-a excelente e sugeriu

também o seguinte:

É um facto lamentável que as espécies venatórias estejam a desaparecer,

pois o desporto da caça é cada vez mais cultivado pelos nobres


proprietários. Ora o meu amigo sugeriu que se usassem como peças de caça

os jovens pobres dos doze aos catorze anos de ambos os sexos, visto

estarem ameaçados ide morrer de fome, dada a falta de trabalho que

presentemente existe.

Com toda a deferência devida a um tão bom amigo e bom patriota, eu

ouso manifestar-me contra a sua opinião; no que diz respeito aos jovens do

sexo masculino, fui informado que a sua carne é muito dura, toda nervo,

dado o estado de magreza em que se encontram, e não compensam as

despesas, que são avultadas na organização de uma boa caçada.

Quanto às raparigas, embora mais gordas, é de ter em conta que aos

catorze anos já estão aptas a procriar e abatê-las seria uma medida pouco

económica, pois as crias darão muito mais lucro do que as próprias mães.

Creio que as vantagens desta minha proposta são evidentes e entre elas

destaco as seguintes:

1. ° — Os pobres teriam possibilidades de realizar algum dinheiro com a

venda dos seus bebés. E o dinheiro bem falta faz para pagar as rendas aos

proprietários das terras que cultivam e dos casebres onde habitam.

2. ° — A economia do país só lucraria com a medida, pois evitava-se a

importação de carnes e, consequentemente, a saída de divisais.

3. ° —* Haveria um grande estímulo para o casamento entre os pobres.


4. ° — Aumentaria a ternura e o cuidado das mães para com OÍS filhos,

dada a utilidade económica do bebé. Assistir-se-ia a uma interessante

competição entre as mulheres casadas no sentido da produção de filhos

gordos e tenros.

5. ° — Os homens tornar-se-iam também mais cuidadosos para com as

suas esposas grávidas', evitando dar-lhes murros e pontapés na barriga por

temerem um aborto. Tratá-las-iam como tratam as suas vacas, burras e

éguas, que estão para parir, isto é, com todas as atenções, a fim de não

perderem o lucro substancial que a futura cria lhes viria trazer.


PASSATEMPOS DE VERÃO

POR ALPHONSE ALLAIS

Durante estais férias ide verão habitei uma vivenda vizinha da casa de

uma velha bruxa, a mulher mais odiosa que já me foi dado conhecer.

Viúva dum caixeiro viajante a quem, certamente, matou de desgostos,

esta megera aliava a impertinência mais desagradável à mais sórdida

avareza, tudo isto disfarçado sob uma capa de humildade e devoção levadas

aos extremos:.

Hoje está morta; paz à sua alma.

Está morta, e eu ri-me, deliciado, quando a vi agitar os magros braços e

tombar inanimada sobre a relva do seu ridículo jardinzinho.

Assisti a todo o drama, ou melhor, fui eu o seu autor e guardarei na

minha memória essa aventura como a coisa maia deliciosa que já fiz ao

longo de toda a existência.

Aquilo tinha que acontecer. Eu não podia mais! Nem dormia só com a

ideia de que era vizinho de tão horrorosa criatura.

Consegui matá-la usando um processo pouco comum. Planeei uma série

de partidas de mau gosto mas que revelam muita imaginação.


Eis algumas.

A minha vizinha dedicava-se à jardinagem. Contra as ervas ruins, contra

os insetos nocivos, tinha remédios eficazes que espalhava nos seus

canteiros. A caça que desencadeava aos caracóis era um empreendimento

épico digno de ser cantado numa epopeia.

Num dia em que cairá sobre a região uma forte chuvada, convoquei

dezenas de rapazes para irem caçar caracóis. Caracóis, lagartas, gafanhotos,

tudo enfim que fosse capaz de ajudar a destruir as culturas. Prometi bons

prémios aos que fizessem melhor caçada.

Jamais vi tanto molusco tanto inseto destruidor. Eram caixas deles!

Guardei-os sem os alimentar durante alguns dias, findos os quais soltei

todo o exército esfomeado no jardim da minha vizinha.

Foi uma razia! Em vinte e quatro horas, árvores, arbustos, flores, erva,

tudo ficou reduzido à expressão mais simples.

Nunca me ri tanto na vida! À janela do meu quarto observei aquela obra

de devastação e deliciei-me.

A minha vizinha saía então de casa para a missa das dez. É impossível

descrever o seu olhar alucinado. Deu, correndo, duas voltas ao jardim e

depois parou cambaleando com os olhos muito abertos. Cheio de

contentamento pensei que ela ia morrer. Mas, infelizmente, não. Baixou a


cabeça levou o lenço aos olhos e lá seguiu para a missa, contar as suas

desgraças a Deus Nosso Senhor.

Seria fastidioso narrar todas as partidas que eu preguei à horrorosa velha.

Não falarei em pormenor na ideia que tive em aspergir todas as rosas do

seu jardim com o conteúdo ide centenas de garrafinhas de mau cheiro, e do

pavor que ela experimentou ao cheirar, numa bela manhã, as suas flores.

À força de a observar, eu conhecia todos os costumes da velha odiosa.

Via-a todas as manhãs catar as ervas ruins e os insetos nocivos dos

canteiros e, depois da chegada do correio, sentar-se à sombra de um

caramanchão, deliciando-se com a leitura do jornal católico «A Cruz». Mas

um dia ela leu estranhas notícias no seu periódico. Coisas como esta:

«Avisam-se os nossos leitores para usarem da máxima precaução quando

deixam entrar eclesiásticos no seu domicílio. Na passada segunda-feira, por

exemplo o pároco de São Luciano, chamado por um dos seus paroquianos

para administrar a extrema-unção, roubou, de cima da mesinha de

cabeceira, o relógio do moribundo e ainda, da sala de jantar, uma dúzia de

talheres de prata. Este acontecimento está longe de constituir um caso

isolado...»

Contava ainda o interessante jornal que o enviado do Papa a Paris, tinha

sido preso no cabaret «Moulin Rouge» completamente embriagado, por ter

armado uma zaragata e insultado a polícia.


Escusado será dizer que esse exemplar do estranho jornal fora redigido

por mim e impresso com a conivência dum tipógrafo meu amigo.

O meu passatempo era pois organizar estas brincadeiras que atingiram o

auge com uma magistral partida que levou a velha para as mãos de Deus

Padre e muito me divertiu.

Eis como as coisas se passaram:

A velha megera tinha um gato. Negro, magro mas enorme. Às vezes o

animal vinha passear e deitar-se ao sol do meu jardim. Um dia, ao

amanhecer, acenei-lhe com um carapau e apanhei-o. Meti-o num banho de

sulfureto de bário. (O sulfureto é um desses produtos químicos que tem o

condão ide tornar os objetos luminosos na obscuridade) .

A noite estava escura. Uma noite sem estrelas e sem lua. Inquieta por

não ver entrar o seu tareco, a velha bruxa chamava-o:

— Polito! Polito! Vem cá meu Politozinho!

(Mas que raio de nome de gato!)

Subitamente solto por mim, cego de raiva e de medo, Polito galgou o

muro que separava os nossos jardins e correu como um louco para a sua

dona.
O leitor já viu alguma vez um gato luminoso surgir das trevas? É um

espetáculo que não se esquece mais.

A horrível velha soltou gritos pavorosos:

— Belzebu! Belzebu!

Vi-a largar a lanterna que segurava na mão e tombar inanimada sobre a

relva.

Quando os vizinhos, alertados pelos gritos, acudiram, era demasiado

tarde: eu já não tinha vizinha.


A PTOMAINA

AUTOR ANÓNIMO

Que bonita coisa é a ciência!

Eis que o professor Selmi, da Universidade de Bolonha, descobriu, na

putrefação dos cadáveres, um alcaloide, a ptomaína, que se apresenta sob

um aspeto dum óleo vulgaríssimo e exala um suave mas persistente odor a

pilriteiro, a almíscar, a flor de laranjeira ou a essência de rosas.

São estes os cheiros que, até agora, foi possível encontrar no seio da

carne putrefacta. Mas outros, certamente, a ciência vai descobrir e, mais dia

menos dia, os cemitérios vão fornecer matéria prima para fabricar

perfumes.

E os ricos, que é quem imediatamente beneficia das descobertas

científicas, poderão guardar extratos dos seus antepassados em frascos de

cristal.

Evidentemente que também é preciso pensar nas classes trabalhadoras e

portanto, junto desses laboratórios de produtos de luxo, instalar-se-ão

fábricas de perfumes por atacado. Será, realmente, possível destilar o

conteúdo da vala comum e a arte da perfumaria entrará numa nova fase,

fase próspera, sem dúvida, pois a matéria prima é inesgotável. Haverá para
todos os gostos. Para compradores requintados destilar-se-ão cadáveres de

mulheres mundanas e para mulheres ido povo hão de fabricar-se sabonetes

e cremes com forte odor a proletariado.

E depois, que extraordinário prazer em recordar, através do seu cheiro,

os ente queridos que nos deixaram! Hoje, quando morre um ser que muito

amamos, só podemos conservar as suas fotografias e alguma madeixa.

Graças à descoberta das ptomaínas, será simples conservar a mulher

adorada no nosso quarto, destilada, dentro de um frasco, trazê-la mesmo no

bolso em estado volátil e espiritual, impregnar com ela o lenço e cheirá-la

quando nos apetecer, para matar saudades.

O progresso da química não para e um dia virá em que as ptomaínas

serão transformadas em matéria comestível, talvez numa gordura, excelente

para fritos, ou numa espécie de azeite, ótimo para temperar bacalhau

cozido.

Então, no dia de finados, ao jantar com a família toda sentada à volta da

mesa, recordar-se-ão os mortos. A criada traz, sobre uma salva de prata,

herança dos antepassados, duas garrafas contendo duas qualidades de óleo,

preciosos líquidos extraídos das vísceras do avô e da avó. A mãe

solenemente, despejará algumas colheres desses temperos sobre o frango

assado e sobre o presunto. Os olhos das crianças brilham e a saliva cresce-


lhes na boca ao cheirarem o excelente pitéu. O pai pergunta: «Lembras-te

do avô e da avó, Zezinho?»

— Lembro, lembro, — dirá o menino, não deixando de fitar o presunto,

temperado com óleo do avô.

— E de quem é que gostavas mais?

A criança prova de um e do outro prato e depois declara que gosta mais

do avô. Enche a boca de frango e mastiga com evidentes sinais de prazer.

Temendo uma indigestão de amor pelos antepassados, a mãe manda

retirar as carnes. Servem a sobremesa, com molhos também extraídos das

ptomaínas, mas de avós já tão longínquos que ninguém se recorda dos

cheiros.
O INGRATO

EUGÉNE CHAVETTE

Numa pequena cidade do sul da França foi um dia condenado à

guilhotina um homem acusado de 14 crimes de morte, além de outras

pequenas infrações ao Código Penal, tais como assaltos à mão armada,

estupros, insultos à autoridade, ofensas ao pudor, etc., etc.

Um empregado da Câmara, escriturário de segunda, habitava nessa

altura, e por sorte .sua, uma casa fronteira à praça principal da cidade, onde

a guilhotina estava a ser erguida.

— «Ora aí está — pensou ele — uma boa oportunidade para pagar as

gentilezas que devo aos meus superiores. Vou convidá-los para assistir à

execução, com o que devem ficar muito contentes, e talvez me aumentem o

ordenado».

Tinha três janelas para o lado da praça; cabia uma boa quantidade de

pessoas. Por isso pediu a um colega, que trabalhava com uma velha

máquina tipográfica na cave do edifício da Câmara, para lhe imprimir

alguns convites assim redigidos: «Convido V. Exa. para assistir, da minha

janela, à execução de um feroz criminoso que terá lugar no dia tal às tantas

horas. Deve ser um belo espetáculo que divertirá toda a gente.»


Mas ao Presidente da Câmara, homem influente que o protegia, mandou

um convite escrito pelo seu próprio punho, num belo cursivo inglês.

Como há cinquenta anos não havia execuções públicas na cidade, faltava

o pessoal especializado. O carrasco era agora um velho de oitenta anos,

quase entrevado. Um dos ajudantes, tinha fugido da cidade, por ser acusado

de roubo; o outro estava de cama com uma úlcera e muito fraco, dado que

não podia digerir bem os alimentos.

Para agravar a situação, o condenado era um homem de extraordinário

vigor físico e respeitável tamanho. Em suma: se não houvesse um pouco de

boa vontade da parte do preso, era quase certo que a sentença não seria

muito fácil de cumprir.

Na hora da execução, quando todo o povo já estava reunido na praça e

asi janelas do funcionário da Câmara apinhadas de pessoas importantes,

correu a notícia de que o condenado não tinha acolhido bem a ideia de ficar

sem cabeça. Opunha-se mesmo, energicamente, a isso.

— «Aquilo é que é um patife! Estraga-me a tarde. Já não se pode ter

confiança em ninguém» — disse o escriturário.

O presidente da Câmara franziu o sobrolho, o que denunciava extremo

aborrecimento, e o subordinado viu ameaçado o aumentozinho já

prometido havia oito meses.


Não ! Aquilo não podia ficar assim. E o funcionário da Câmara,

sentindo-se lesado, resolveu agir por conta própria. Dirigindo-se à prisão,

onde o teimoso condenado se mantinha surdo aos rogos do carcereiro e do

diretor da cadeia, disse que conhecia o preso e que era capaz de o fazer

mudar de decisão.

Deixaram-no entrar na cela e o seguinte diálogo se estabeleceu:

ESCRITURÁRIO — (batendo nas costas do prisioneiro) Sabes o que

ouvi dizer?

CONDENADO — (mostrando pouco interesse) Não.

ESCRITURÁRIO — Que tu não querias subir à guilhotina.

CONDENADO — É verdade.

ESCRITURÁRIO — Mas porquê, homem de Deus?

CONDENADO — Porque não.

ESCRITURÁRIO — Não podes dar-me uma razão?

CONDENADO — Rem... só me preveniram no último momento.

ESCRITURÁRIO — No último momento ?! Essa é boa! Fazes-me rir.

Toda a noite ouviste os carpinteiros a pregar pregos ali na praça. Com

certeza nem te deixaram dormir. Não ficaste intrigado com o barulho? Que

é que pensavas que era? Não me digas que julgavas tratar-se da construção
de algum presépio. Não, meu caro. Tu sabias bem que estavam a construir

a guilhotina e que só podia ser para ti, meu criminosão! Essa não pega. Vá,

deixa-te de brincadeiras. Vens ou não vens?

CONDENADO — Não.

ESCRITURÁRIO — Oh! Desgraçado! Tu não vês a situação em que nos

colocas? Já chegou toda a gente. Só faltas tu! Estão presentes, as

autoridades civis, militares e religiosas. Está o povo todo. Está um

regimento de soldados, formados em duas filas, para tu passares pelo meio,

como se fosses) o Presidente da República. Só faltas tu. unicamente tu. Não

tens vergonha?

CONDENADO — Quero lá saber...

ESCRITURÁRIO — E do Senhor Conde, também não queres saber? Tu

conheces bem o Senhor Conde, não conheces? Sabes que ele já não saía do

seu solar há mais de dois anos. Desde a queda da monarquia. Tinha jurado

não voltar a pôr os pés na rua. (Com ar de triunfo) Pois está ali! Porquê?

Porque te quer ver na guilhotina. Veio por tua causa, meu ingrato. E tu a

fazê-lo esperar! Vá anda; ao menos por consideração para com o Senhor

Conde.

CONDENADO— (Cinicamente) Não o conheço. Nunca me foi

apresentado.
ESCRITURÁRIO — E eu que te julgava uma pessoa de educação!

Podes ser um assassino, mas isso não impede as boas maneiras. Ah! Já sei!

(Bate na testa) !É o medo de fazer despesas que te não deixa vir! Mas, oh!

ignorante! Não sabes que todas as despesas de execução correm por conta

do Estado!? É o Estado que paga tudo: carrasco, ajudantes, óleo para

lubrificar a guilhotina... tudo. És um homem cheio de sorte.

CONDENADO—Não preciso de esmolas.

ESCRÍTURÁRTO—!És muito suscetível! Se todas as pessoas que

recebem subsídio do Estado fossem tão suscetíveis como tu, o país estava

rico. Vá, arranja-te. Veste uma camisa lavada. Escusas de pôr o colarinho.

Depressa, que se está a fazer tarde e as pessoas aborrecem-se de esperar e

vão-se embora. Daqui a pouco são horas de almoço.

CONDENADO — Não me apetece ir, pronto.

ESCRITURÁRIO —Ah! Não te apetece! E tu julgas que as pessoas só

fazem o que lhes apetece? As pessoas fazem o que devem fazer. Não

acreditas?

CONDENADO — Acredito.

ESCRITURÁRIO — Olha: o que tu és, é um ingrato. Ainda devias estar

agradecido à justiça, ao delegado do ministério público e ao senhor Dr. Juiz

por te darem essa oportunidade. E tu, sem qualquer justificação, recusas


tomar parte numa festa que, afinal, é em tua honra. Não passas de um

ingrato. Por esse mundo fora, desde o Brasil ao Canadá, desde a África às

Ilhas do Pacífico, há pobres diabos doentes', desgraçados, miseráveis, cuja

única ambição, o seu único desejo, é vir morrer à Pátria querida e distante.

Todos os dias pedem a Deus: «Senhor, fazei com que eu vá morrer na

minha bela e doce Pátria». Pois bem: tu estás na tua cidade natal, no meio

dos teus compatriotas, e rejeitas esse favor que te fazem. Não achas que é

ser ingrato?

CONDENADO — É possível... mas não me apetece.

ESCRITURÁRIO — Não me apetece, não me apetece! Mas que mania!

Vá, não sejas criança. Pensa um bocadinho nas vantagens. Antes de ser

preso não vivias tranquilo. Sempre em sobressalto, sempre em sobressalto.

E tinhas remorsos, com certeza. Dizias para contigo: «Se me prendem, sou

julgado e, no tribunal, vão dizer-me mil coisas desagradáveis». Muito bem.

Foste preso. Foste julgado. Mas tudo passou. O mais difícil está feito.

Agora são mais cinco minutos e pronto... Ainda hesitas? Não compreendo.

A não ser que gostes de estar aqui fechado nesta cela húmida, boa para

apanhar reumatismo. Tu não tens reumatismo?

CONDENADO — Não,

ESCRITURÁRIO — Não tens mas, se continuas aqui, acabas por ter. E

já não falo no carrasco que, coitado, com oitenta anos de idade e cheio de
asma, não dormiu em toda a noite só para ter a guilhotina bem preparada e

bem lubrificada. Tem mais carinhos contigo!! Trata-te como a um filho!

Além disso deve ser este o último trabalho que ele faz. Ao menos podias

dar-lhe a alegria de ser pontual. Se continuas com a tua teimosia o pobre

velho morre de desgosto.

CONDENADO — Quero lá saber.

ESCRITURÁRIO — És um bom patife. Tens uma pedra no lugar do

coração. Nunca pensei que procedesses^ dessa maneira ignóbil. Já nem os

velhos te merecem piedade. Se calhar também não te preocupas comigo.

Tenho doze pessoas em casa, à janela, para assistirem à execução. Se não

acreditais podes perguntar ao carcereiro ou a quem quiseres. Ao menos sê

amável para comigo que fui teu companheiro de escola e tantas vezes

fizemos os problemas juntos.

CONDENADO — Eu é que tos fazia.

ESCRITURÁRIO — Pois... Éramos como irmãos, nesse tempo. Não

seguimos o mesmo caminho na vida. Tu subiste e eu, infelizmente, não

passei ide um pobre funcionário da Câmara. O ordenado é uma miséria e

tenho mulher e filhos para sustentar. Os meus superiores estão, neste

momento, em minha casa. Se lhes proporcionar este espetáculo, é possível

que me aumentem o ordenado. Faz ao menos isto por mim, que diabo!

Além de que será a primeira execução a que eu assisto. Mas vejo que não
queres proporcionar este pequeno prazer a um amigo de infância. Queres

ou não?

CONDENADO — (implacável) Não.

ESCRITURÁRIO — Está bem. Mas deixa-me dar-te um conselho para

que depois não digas que não te avisei. Hoje dizes que não te apetece, mas

amanhã ou depois não escapas. Vão contratar um carrasco mais forte do

que tu e levam-te à força. Agora diz-me: é bonito guilhotinar um

condenado no dia seguinte ao marcado para a execução? Evidentemente

que não. É uma ordem estabelecida. Ei não vais contra a ordem, creio eu...

Ou vais,?! Ainda te acusam de ser um provocador ida ordem. Passas por

agitador. É só o que te falta. Estás a comprometer-te sem necessidade. O

que é que vão dizer as pessoas?

CONDENADO — Estou-me c... para o que as pessoas possam dizer.

ESCRITURÁRIO— Vês? Ainda por cima és ordinário. Então, meu caro

amigo! Volta a ti. Eu quero ajudar-te. Pensa bem; é tão fácil seres camarada

! Tu fazes disto um bicho de sete cabeças e, afinal, é tudo tão simples! No

fundo não passa de uma formalidade. Examinemos a questão: para começar

já comeste um excelente almoço e fumaste um excelente cigarro. E, tu

sabes quantas pessoas estão em condições económicas de comer um

almoço como o que tens na barriga? Bem poucas, meu caro! Agora vão

cortar-te o cabelo. Gratuitamente, também. Se cortares o cabelo ficas com


um aspeto mais jovem. Não gostarias de ficar com um aspeto mais jovem,

hã?! Depois vais comodamente de carro, nota bem, de carro! até à

guilhotina. No caminho podes trocar algumas impressões com o padre e o

tempo passa sem dares por isso. Ao chegares ao cadafalso desces do carro e

sobes solenemente as escadas da guilhotina. Dois guaridas te ajudarão

ainda que os degraus não sejam altos. Até uma criança de dois anos os

subiria a correr. Lá em cima podes dizer algumas palavras, se quiseres, é

claro. Se não estiveres com disposição para discursos deitas-te

imediatamente na guilhotina e... pumba! acabou. E toda a gente vai ficar

contente.

CONDENADO — Não me importo com o contentamento deles.

ESCRITURÁRIO — Deixa-me falar. Acabas por me dar razão. Em

resumo: se não for hoje é amanhã, ou mesmo sexta-feira, o que te vai trazer

azar. Gostavas de ser executado na sexta-feira? Diz lá.

CONDENADO — Não.

ESCRITURÁRIO — Então... Hoje é que é o dia ideal, acredita. Está um

sol magnífico. Amanhã pode chover e já não tens nem metade da

assistência.

CONDENADO — Não me interessa a popularidade.


ESCRITURÁRIO — E os meus amigos, que já lá estão em casa, à

janela, prontos a assistir? Vá, põe-te no meu lugar...

CONDENADO — Está bem. Põe-te tu no meu.

ESCRITURÁRIO — Brincalhão! Sempre o mesmo espirituoso.

CONDENADO — Falo a sério.

ESCRITURÁRIO —Ah! Sim?! Então deixa-me dizer-te: Não sou

apenas eu que desejo esta execução. O Presidente da República também

está interessado nela. Se não estivesse, tinha mudado a pena para prisão

perpétua. Podia fazê-lo.

CONDENADO — Pois devias ter-me dito isso há mais tempo que nunca

teria votado nele.

ESCRITURÁRIO — Admiro-me que tenhas votado olhando apenas o

teu interesse pessoal. Porventura o Presidente pediu-te para votares nele?

Não. As eleições são livres). Tu não foste influenciado. Votaste no

candidato que te pareceu mais competente, mais justo, mais honesto.

Portanto ele é o homem da tua escolha, o Presidente da tua simpatia. É o

teu Presidente! E o que acontece? A primeira coisa que ele exige de ti, tu

recusas. Sabes o que ele dirá? Dirá que tu, afinal, não eras do seu partido. À

noite, ao deitar estará muito triste. A esposa pergunta-lhe porquê e ele

responde: «Nunca julguei que aquele rapaz me fizesse uma coisa dessas».
(Ao ouvir estas palavras, o condenado levantou-se. Queria falar, mas

uma violenta emoção lhe cortou a voz. No entanto os seus gestos e a sua

atitude diziam bem claramente, que estava disposto a tudo.)

ESCRITURÁRIO— (com satisfação) Finalmente compreendeste.

Vamos, não tenhas receio. Vês como eu estou tranquilo? Vou dizer ao

senhor carrasco que estás preparado. Agora deixo-te em paz. Tenho que ir

para casa tranquilizar os convidados, Boa sorte! (abraça-o e sai).

Dez minutos depois, o Presidente da Câmara dizia, satisfeito, para o seu

segundo escriturário.

— Realmente, foi muito bonita, esta festazinha. Encantadora!

Encantadora! E fiquei com apetite, você sabe?


PECHINCHA

AUTOR ANÓNIMO

— São mil e oitocentos escudos.

— É muito caro!

— Não posso fazer mais barato. Temos preços fixos.

— Se não me faz desconto, não fico com ele.

— Já me podia ter dito, que não o tinha mandado a sua casa.

— Por esse preço não. Pode levá-lo outra vez.

— Pois fique sabendo que levo.

— Que me importa?! Trato com outra Agência Funerária.

— Então trate. E faça o favor de me ajudar a tirar o morto do caixão. É a

primeira vez que me pedem abatimento no preço dum funeral... isto depois

do defunto já estar instalado.


VINGANÇA DE POBRE

POR ANGEL PALOMINO

Apoiado nas suas muletas, o pobre coxo entrou na loja.

— Vendem aqui pernas artificiais?

— Sim, — disse o empregado, que não achava bem dizer «sim, senhor»

a um mendigo.

— Queria uma de trinta pesetas.

— Trinta pesetas!? Impossível. As mais baratas custam trezentas.

— Trezentas!? Há dez anos o senhor disse-me que custavam trinta!

Desde então ando a pedir esmolas e, cêntimo a cêntimo, economizei trinta

pesetas. E agora pede-me uma fortuna! Tem a certeza de que não haverá

qualquer lapso ?

— Nunca me engano. Os preços aumentaram de há dez ano® para cá.

Mas, dado que você é pobre, aconselho-o a ir à sociedade filantrópica «Os

Coxos em Marcha». Lá oferecem-lhe uma perna artificial. Infelizmente,

para estar nas condições exigidas, era necessário que lhe faltassem as duas.

O pobre foi à estação ide caminho de ferro, aproximou-se timidamente

do «guichet» e comprou um bilhete de suicídio. Com a ajuda das muletas,


caminhou para o troço de via férrea reservado àqueles que já não têm

projetos para o futuro. Cuidadosamente, colocou a única perna sobre o raile

e esperou o comboio.

Terminada a operação, passou de novo pela bilheteira e pediu:

—. Faça o favor de me devolver a peseta que lhe dei pelo bilhete de

suicídio pois, como vê, continuo vivo.

— Mas o amigo era coxo de uma perna e agora é coxo das duas. Vejo

que utilizou os serviços da Companhia. Portanto, só lhe devolvo meia

peseta.

Satisfeito com a sua esperteza, o ferroviário acrescentou:

— Vocês julgam que eu me deixo levar, mas estão muito enganados.

— Outra vez aqui! ? — exclamou o empregado de balcão que se

recusava a chamar «senhor» ao pobre coxo.

—' Como vê, sou eu. Mas, agora já me faltam ambas as pernas e

portanto tenho direito às pernas artificiais que oferecem na sociedade

filantrópica de que me falou.

O empregado sorriu:
—Você não compreendeu bem as minhas palavras. É verdade que a

«Sociedade Filantrópica Coxos em Marcha» ajuda aqueles que perderam as

duas pernas. Mas oferece apenas uma. A outra terá você que a comprar.

O pobre voltou à estação de caminho de ferro e pediu no «guichet»:

— Dê-me um bilhete para amputar um braço.

— É meia peseta, — respondeu o empregado.

Balançando-se nas muletas dirigiu-se para o troço ide via férrea onde

terminam os desesperados. Em vez do braço, colocou a cabeça no raile.

— Economizei meia peseta, — pensou.

Momentos antes de o comboio surgir e lhe decepar a cabeça, soltou uma

grande risada: «Desta vez consegui enganar o tipo da bilheteira».


A GOTA

AUTOR ANÓNIMO

Batia a meia noite quando me deitei. Tivera um dia muito agitado e

pensei que seria fácil adormecer.

Porém não foi assim. Momentos depois de apagar a luz, ouvi o som,

quase impercetível, de uma gota caindo. Depois outra gota... E outra...

Comecei a ficar nervoso. Faltou-me a decisão necessária para me

levantar e impedir o gotejar que me tornava insone.

E a gota continuava a cair com o seu monótono ruído recortando-se no

fundo do silêncio da noite.

Dei voltas na cama. Durante horas, o pingo implacável afugentou o meu

sono. Era dia claro quando consegui dormir.

ÀS três da tarde acordei bem disposto. Sorri ao lembrar-me do meu

nervosismo noturno e da minha insónia provocados por uma simples gota

caindo...

...Uma simples gota que tombava do cadáver do meu tio Gustavo que eu

assassinara na noite anterior.


A ANTROPOFAGIA AINDA EXISTE

POR TRISTAN BERNARD

A notícia publicada nos jornais sobre a existência de tribos de

antropófagos no interior de África, excitou vivamente a minha imaginação.

Eu era, neste tempo, muito jovem e os feitos dos grandes exploradores!,

como Livingstone e Stanley, faziam-me sonhar com viagens a terras

virgens e desconhecidas, longe das áreas civilizadas.

Por feliz coincidência, conheci então o Dr. Pionnier, sábio eminente,

membro da Academia de Ciências e ilustre explorador. Estava ele

empenhado em recrutar um punhado ide jovens saudáveis e destemidos, de

pernas fortes, capazes de aguentar as ásperas marchas, da selva e donos de

alguns milhares de francos para subsidiar uma expedição ao interior do

Continente Negro. Propunha-se, como nos explicou, fazer um estudo sobre

a antropofagia em África e, simultaneamente, dissuadir os nativos de

praticar esse bárbaro ritual.

O Dr. Pionnier conseguiu reunir sete jovens, filhos de boas e ricas

famílias, entre os quais eu me contava, que contribuíram com três mil

francos cada um para as; primeiras despesas. Estas consistiam no

pagamento das passagens de barco, em primeira classe, para Zanzibar.


"Todavia, logo que o sábio explorador recebeu os 21.000 francos, liquidou

as suas dívidas de jogo e, depois, de uma conversa com o capitão do navio,

veio dizer-nos que uma viagem demasiado confortável preparar-nos-ia mal

para as fadigas e sacrifícios da expedição. Assim, em seu abalizado

parecer, devíamos viajar misturados com os homens da tripulação,

trabalhando a bordo como fogueiros, ou ajudantes de cozinha.

A 16 de Abril pusemos pela primeira vez o pé na sonhada terra africana

e logo o doutor nos pediu o resto do nosso dinheiro, importância que

serviu, quase à justa, para pagar as dívidas de jogo contraídas pelo nosso

chefe, durante a viagem.

O Sultão de Zanzibar, muito lisonjeado com a visita, convidou-nos para

um banquete e ofereceu um barco desmontável que havia de ser, explicou

ele, de muita utilidade na travessia dos rios caudalosos que certamente

iríamos encontrar. Além disso providenciou para que fôssemos abastecidos

de tabaco de mascar, carregadores negros e alpercatas.

Carregámos os carregadores' com as bagagens e pusemo-nos a caminho.

A travessia do primeiro rio foi lamentável, pois só então verificámos que o

Sultão tinha oferecido as peças para montar apenas metade do barco. Esse

senhor tinha, aliás, a fama de ser um incorrigível brincalhão, muito dado a

pregar partidas aos viajantes.


Depois de imensas dificuldades e aventuras inauditas, chegámos ao reino

de Irantouni, cujo soberano foi educado em Paris. Não era um povo de

antropófagos e por isso quisemos avançar ainda mais para o coração

africano a fim de exercer a obra civilizadora de que íamos animados.

Chegámos, nos primeiros dias de Junho, a Kahoma mas, para nossa

deceção, os habitantes desta terra tinham-se tornado vegetarianos um ano

antes. O rei Kahouélé, quando lhe perguntamos se o seu povo era

antropófago, respondeu-nos: «Ai não me falem nisso! Só de ouvidos já

santo náuseas no estômago.»

Continuámos a expedição. Ao atingirmos Victória-Nianza, começámos a

percorrer terras desertas. As provisões em breve se acabaram.

Encontrávamos água com abundância, mas nem um animal nem uma planta

comestível. No dia 18 de Julho, fazia 36 horas que não comíamos, o doutor

reuniu os homens brancos da expedição e colocou solenemente dentro dum

chapéu alguns papelinhos onde, previamente, escrevera os nomes dos

negros carregadores.

O primeiro nome que saiu foi o dum preto muito velho e ossudo.

Rejeitámo-lo, dada a sua idade proveta que nos devia merecer respeito e,

também, por causa da provável dureza da sua carne. Finalmente a sorte

designou um jovem negro, vigoroso e de bela compleição física, nem muito


gordo nem muito magro, pelo que todos ficamos contentes. O Dr. Pionnier,

hábil cozinheiro, ofereceu-se para o temperar.

O jantar foi muito alegre. Comemos com grande apetite e servimo-nos

repetidas vezes. O excelente negro, Deus tenha a sua alma no céu, deu para

três refeições.

Entretanto chegámos a uma região já povoada de caça. Mas, abater

animais tão velozes; era trabalhoso e árduo. Além disso, seria perigoso e

imprudente comer carne de espécies que não conhecíamos. Por isso

encetámos o segundo negro no dia 21 de Julho à noite. Não desmereceu do

primeiro.

Sempre caminhando em busca de prováveis tribos de antropófagas,

acabámos por comer todos os carregadores, à exceção do velho guia muito

ossudo.

Felizmente penetrámos em regiões habitadas por selvagens gordos e

luzidios e o nosso problema de alimentação ficou definitivamente

resolvido.

Devo dizer que provocámos, com essa prática, o espanto e o horror das

populações com quem contactámos. Em Kibanga, um velho feiticeiro

permitiu-se mesmo fazermos um longo discurso em que verberou o nosso

procedimento e disse ser uma vergonha que em pleno século XX


subsistissem ainda semelhantes usos. Claro que não ligámos nenhuma

importância aos seus argumentos e cozinhámo-lo logo a seguir.

Finalmente chegámos ao porto de embarque. Deixámos a África com

saudades. Nunca uma expedição ao interior do hostil continente fora

realizada em circunstâncias tão favoráveis. Todos os componentes do

grupo explorador se encontravam gordos e com ótimo aspeto: é que

tínhamos, sem dúvida, encontrado o tipo de alimentação ideal para suportar

o duro clima africano.

De regresso à Europa, cumularam-nos de distinções e to Dir. Pionnier

fez, à Academia, uma comunicação de muito interesse científico onde

provou, com argumentos irrefutáveis, que em África, ainda se pratica a

antropofagia.
A CABEÇA DA BEM AMADA

AUTOR ANÓNIMO

Eu tive um amigo suíço que viveu no Perú, a 4.000 metros de altitude.

(Era um explorador e dedicar-se a estudar regiões estranhas) Ali conheceu

uma índia muito bela por quem se apaixonou. Como a moça lhe recusasse o

seu amor, o meu amigo Jacques Dingue (assim se chamava) foi atacado de

loucura.

Um médico peruano, que o acompanhara até aquelas alturas, receitou-lhe

alguns remédios, se bem que soubesse de antemão que aquele tipo de

loucura era incurável.

Nessa altura uma epidemia assolou a região e os habitantes ida aldeia

morreram todos, exceto o médico (que fugiu para outra região) e o meu

amigo que estava de cama, isolado de todos, morrendo ide fraqueza.

Os índios possuíam vários cães que, cheios de fome, começaram a

alimentar-se com os cadáveres dos seus donos falecidos e insepultos. na

cabana onde definhava o meu amigo Dingue, segurando nos dentes a

cabeça da índia que ele amava.

Ao reconhecê-la sofreu um choque cerebral tão grande que

imediatamente recobrou a razão. As forças voltaram e, levantando-se do


leito, pegou na cabeça da bem amada e entreteve-se a brincar com ela,

atirando-a para longe e ordenando ao cão que a fosse buscar. Fez isto umas

três ou quatro vezes e o animal, muito obediente, trazia-a segurando-a pelo

nariz.

A certa altura porém, Jaques atirou a cabeça com demasiada força e esta

foi bater numa pedra quebrando-se de meio a meio.

Ao examinar os bocados, constatou o meu amigo que a massa encefálica

da índia era formada apenas por duas circunvalações, apresentando à vista

a estranha forma de nádegas!


OS COGUMELOS VENENOSOS

POR SACHA GUITRY

Nasci a 28 de Abril de 1882 na pitoresca aldeia de Tortisembert. Os

meus pais tinham ali uma mercearia. A família era numerosa. A mamã

ficara com dois filhos do primeiro casamento e, de meu pai, tinha quatro

raparigas e um rapaz. Em nossa casa vivia também a mãe de meu pai e o

pai da minha mãe (estavam quites). Havia ainda um tio surdo-mudo. Em

resumo: éramos 12 à mesa.

De um dia para o outro fiquei só no mundo. Apenas por causa de um

prato de cogumelos venenosos.

Escapei à morte porque tinha tirado, nessa manhã, oito tostões da gaveta

ida cómoda para comprar rebuçados. O meu pai pusera-se aos gritos:

— Roubaste oito tostões, grande patife! ? Pois ao almoço não comes,

cogumelos.

Tinha sido o meu tio surdo-mudo quem apanhara esses venenosos

vegetas. À noite havia onze cadáveres em casa. Quem nunca viu onze

cadáveres juntos, não pode imaginar a quantidade de cadáveres que isso é.


Não sei se sofri muito com o acontecimento, mas parece-me que não. Eu

tinha então 12 anos e — deve compreender-se — era urna tragédia

demasiado grande para uma pessoa de tão pouca idade. Fui, digamos,

ultrapassado pela catástrofe e, sem grande experiência em coisas

horrorosas, apenas senti que não era merecedor de uma hecatombe daquela

grandeza.

Podemos chorar a mãe, o pai ou um irmão morto... Mas, como chorar,

simultaneamente, onze pessoas?! Não sabemos sequer por onde começar e

acabamos por não chorar ninguém!

O Dr. Lavignac, chamado à pressa, desdobrou-se em atividade, mas foi

tudo em vão. A minha família extinguia-se inexoravelmente.

O senhor prior, que almoçara em casa da Condessa de Beauvoir, chegou,

de bicicleta, às quatro horas. A sua presença era bem necessária.

Todos os habitantes da aldeia vieram a nossa casa. Andava uma multidão

pelos corredores e pelos quartos a saber notícias. Eu, aflito, escondi-me

atrás do balcão da mercearia © dali assisti ao drama. Os primeiros

falecimentos foram anunciados no meio de lágrimas e gritos, como é

tradicional. Mas, a partir do quarto ou quinto, as notícias tornaram-se

lacónicas:

— Mais um.
Eu ouvia pedaços de diálogo:

— E a avó?

— Ainda não, mas não dura um quarto de hora.

O tio surdo-mudo faleceu no meio de dores atrozes, aos gritos, o que

causou espanto a toda a gente.

Às sete tudo estava consumado. Saí então do meu esconderijo e, quando

o médico me viu, não foi capaz de esconder o espanto:

— Então e tu?

Nesta pergunta havia, simultaneamente, raiva e admiração. O que ele

queria dizer, era «Mas porque diabo ainda estás vivo?»

De facto, que direito eu tinha de não me encontrar estendido para

sempre, como os outros? O que era eu mais do que eles?

O médico continuava a mirar-me de olhos muito abertos.

— Tu não isentes nada?

Confessei-lhe que não sentia.

— É espantoso!

Encarou-me como se eu fosse um fenómeno ou um espírito maligno.

Uma criança de 12 anos que come impunemente cogumelos venenosos,


deve ser um caso interessante para a medicina. Que campo de experiências!

Era isso que devia pensar o Dr. Lavignac quando me olhava como se olha

uma cobaia. Imaginei-o debruçado sobre as minhas vísceras à procura da

verdade. Apressei-me a explicar-lhe:

— Eu não comi...

— Porquê?

Essa pergunta não me soou bem. Talvez fosse apenas deformação

profissional, mas juro que o tom com que pronunciou aquelas palavras era

reprovativo. Repetiu ainda duas ou três vezes: « Porquê ?! Mas porquê ?!»

Assustado, achei preferível contar-lhe a verdade. O médico ouviu

boquiaberto. No dia seguinte toda a aldeia sabia.

No funeral, enquanto os 11 caixões seguiam à minha frente em fila

indiana, tive a desagradável sensação de ser o assassino de toda a família.

A multidão acompanhava o enterro e, aqui e além, segredava-se, não tão

baixo que eu não pudesse ouvir:

— Sabem porque é que o pequeno não morreu? Porque roubou!

Era verdade: eu estava vivo porque roubara. Logicamente, concluía que

os outros estavam mortos porque eram honestos...


Nessa noite, deitei-me só, na casa deserta. Antes de dormir, fiz, sobre o

roubo, uma opinião talvez paradoxal mas que quarenta anos de experiência

não modificaram.
SERVIÇO DE LIQUIDAÇÃO

POR ROBERT SHECKLEY

O visitante jamais devia ter passado da sala de espera, porque o senhor

Ferguson não atendia ninguém sem um pedido antecipado de entrevista;

com exceção, evidentemente, para pessoas de categoria social ou

financeira. O seu tempo era precioso. Não podia perdê-lo com ninharias.

Mas a menina Dale, sua secretária, quando viu um senhor de certa idade,

vestido de bom tweed inglês, bengala de castão de prata e cartão de visita

impresso em relevo, pensou tratar-se de alguém muito importante e abriu-

lhe sem demora a porta do gabinete do senhor Ferguson. — Boa tarde, meu

caro senhor, — disse o recém chegado ao mesmo tempo que a menina Dale

fechava a porta e os deixava sós. — Chamo-me Esmond e pertenço ao

serviço de liquidação...

Ferguson fez uma careta de desagrado* por ver que a secretária tinha

desobedecido a ordens tão firmemente estabelecidas e cortou secamente:

— Lamento, cavalheiro, mas não tenho nada a liquidar.

— Tem a certeza? — insistiu o senhor Esmond sentando-se calmamente.

— Absoluta, Obrigado pela sua visita, e agora, se não se importa...


— Tem a certeza de não existir pessoa alguma de quem o senhor se

queira ver livre neste momento?

— Perdão, mas não compreendo!

— É precisamente para o que serve o nosso serviço de liquidação: para

os clientes se verem livres de quem odeiam ou aborrecem.

—O cavalheiro está a brincar comigo ?

— Evidentemente que não.

— Então quer dizer que vocês liquidam pessoas?

— Exatamente. É claro que não posso apresentar-lhe quaisquer

referências porque a nossa casa evita, como é compreensível, toda a

publicidade. Mas posso garantir que se trata de uma organização séria e

respeitável.

Ferguson examinou o visitante com curiosidade. Que quereria ele? Sem

dúvida tratava-se de uma brincadeira. Saltava aos olhos.

— E que fazem vocês das pessoas que... liquidam?—perguntou,

alegremente, como se acabasse de ouvir uma boa piada.

— Isso é confidencial. Aos nossos clientes só interessa saber que as

pessoas desaparecem para sempre.

Ferguson levantou-se.
— Bom, cavalheiro. Basta de brincadeira. Pode dizer-me agora o que o

levou a procurar-me?

— Mas acabo de o dizer!...

— Vamos, não faça de mim parvo. Se acreditasse nas suas palavras já

tinha chamado a polícia.

O senhor Esmond levantou-se e suspirou.

— Devo concluir então que o senhor não tem necessidade dos nossos

serviços. Que não tem ninguém que o incomode: nem um dos seus amigos,

nem qualquer parente, nem a sua esposa.

—'A minha esposa!? Mas o que é que o senhor sabe da minha esposa?!

— Não sei nada, senhor Ferguson.

— Aposto que falou com os vizinhos. Pois fique sabendo que essas

disputas entre nós não têm qualquer importância. Absolutamente nenhuma

importância.

— Senhor Ferguson: creia que eu nada sei a respeito da sua vida

conjugal — disse o senhor Esmond tornando a sentar-se.

— Então para que falou ida minha mulher?

— Os técnicos: da nossa firma constataram que o casamento constitui,

para estes serviços, a maior fonte de receita.


— Pois pode ficar seguro de que o meu casamento é quase perfeito.

Dou-me muito bem com a minha esposa.

— Então não tem necessidade dos nossos serviços de liquidação,

concluiu o visitante levantando-se ide novo.

— Espere um pouco, — pediu Ferguson começando a passear

nervosamente pelo escritório. — Garanto-lhe que mão acredito em nada do

que me diz. Nem numa só palavra! Mas suponhamos por instantes que o

senhor falava a sério... Suponhamos, quero sublinhar bem. Em que termos,

digamos, vocês fariam o contrato?... Isto é, se, enfim, eu desejasse...

— Precisamos apenas do seu consentimento verbal. Nada fica escrito.

— E o pagamento ?

— Só depois de tudo concluído. Nada terá que pagar adiantadamente.

— Bem, estou a fazer-lhe estas perguntas apenas por curiosidade. E,

diga-me... é doloroso?

— O menos possível.

Ferguson continuava o seu passeio através da sala.

— A minha mulher e eu damo-nos muito bem, — repetiu ele. —

Estamos casados há dezassete anos e nunca houve uma discussão. Ê claro


que, às vezes, surgem pequenos desentendimentos, mas é o que há de mais

natural. O contrário é que seria de admirar.

O rosto do senhor Eismond estava parado, sem qualquer expressão.

— Às vezes — continuou Ferguson — ela é um bocado difícil de aturar,

nisso concordo. É um pouco agressiva,.. Mas creio que não sou obrigado a

falar-lhe nestes assuntos...

— Pois não, senhor Ferguson.

— Com certeza que você sabe alguma coisa. Senão, não me vinha

procurar...

O senhor Esmond abanou a cabeça numa negativa.

— Seja como for, ou já passei a idade em que urna pessoa pode refazer a

sua vida. Mas suponhamos que eu não era casado e queria estabelecer

uma... digamos... uma ligação com... por exemplo, com a minha secretária.

Ela é uma moça esplêndida,..

— Divina! — corrigiu o senhor Esmond.

— Precisamente. Mas essa ligação não podia durar muito. Faltava-lhe

aquela sólida base moral que deve existir em todas as realizações

destinadas ao sucesso.

— Sim, mas nem por isso deixaria de ser agradável.


— Ora aí está. A menina Dale é muito sedutora. Ninguém pode negá-lo.

Além disso tem muito carácter. Reconheço que...

O senhor Esmond sorriu polidamente como em face de um assunto

interessante mas que não lhe dizia respeito. Levantando-se, caminhou

lentamente para a porta, como se a conversa já não fosse com ele.

Foi então que Ferguson, subitamente, exclamou:

— Como é que eu posso entrar em contacto consigo?

—Deixo-lhe aqui o meu cartão. Telefone-me até às cinco. Decida-se

antes dessa hora. O meu tempo é precioso. Temos imenso que fazer.

— Está bem. (Ferguson teve um riso cavernoso) Mas fique sabendo que

eu não acredito uma palavra dessa sua história. O senhor nem sequer me

disse quais eram as condições.

— Os preços são muito em conta. Sobretudo para um homem, da sua

posição.

— E poderei afirmar que não o conheço, que nunca falei consigo?

— Evidentemente.

— E você está neste telefone até...

— Até às cinco em ponto. Muito boa tarde, senhor Ferguson.


Depois de Esmond sair, Ferguson notou que as suas mãos tremiam. A

conversa tinha-o perturbado imenso. Não lhe era fácil concentrar-se no

trabalho e as palavras do estranho visitante soavam-lhe constantemente aos

ouvidos.

A menina Dale entrou com o correio para assinar e ele olhou os seios

firmes da moça, as suas ancas largas, a (desenvoltura e mocidade com que

se movimentava.

Quando ela saiu, ficou a olhar, pensativamente, a porta. Reconhecendo

que era impossível trabalhar sob aquela tensão nervosa, decidiu regressar

imediatamente a casa.

— Menina Date, — disse ele, vestindo o sobretudo — há muito serviço

atrasado. Seria possível que a menina viesse fazer serão dois ou três dias

esta semana?

— Com certeza, senhor Ferguson.

— Espero não prejudicar a sua vida privada.

— Ora essa, senhor Ferguson. Não tem importância nenhuma. Até me dá

prazer trabalhar com o senhor.

— Então podemos principiar amanhã.

Quando chegou a casa, a esposa admirou-se:


— Já de volta?

— Incomodo-te?

— Claro que mão me incomodas.

— Ou quereis que me mate a trabalhar ?

—'Mas eu não disse nada...

— Faz o favor de não discutir. Não tolero discussões.

Subiu ao quarto e achou-se em presença do telefone. Tirou do bolso o

cartão de visita de Esmond e examinou-o com curiosidade.

Simultaneamente, a imagem doce e provocante da menina Dole, atravessou

o seu espírito. Ligou o aparelho.

— Está lá?

— Serviço de liquidação. Fala Esmond.

— Daqui Ferguson.

— Então, senhor Ferguson? O que decidiu?

— Bem...

A mão crispou-se, apertando o auscultador. Há dezassete anos que estava

casado. Dezassete anos! Tinham vivido bons momento®, ambos. Era justo

que agora procedesse assim?


— O que é que decidiu? — voltou a perguntar a voz die Esmond.

Bem... Decidi que já não preciso dos seus serviços.

— Tem a certeza, senhor Ferguson?

— Absolutamente. E digo-lhe mais: pessoas como vocês deviam estar

todas metidas na cadeia.

Desligou o telefone e suspirou com alívio. Foi como se tivesse alijado

um grande peso.

Desceu as escadas e foi encontrar a esposa preparando costeletas de

carneiro... um prato que sempre detestara. Mas não tinha importância. Era

preciso suportar essas pequenas contrariedades.

A campainha tocou.

— Não te importas de ir abrir? — perguntou a esposa.— Deve ser da

lavandaria.

— Vou. Vou imediatamente.

Sentiu-se leve, quase feliz, resplandecente de boas intenções.

Dois homens, em uniforme, estavam à porta. Traziam um grande saco.

— É o senhor Ferguson? — perguntaram.

— Sim, sou eu. É da lavandaria?


— Não. É do serviço de liquidação.

— Mas eu tinha dito que...

Os dois homens não o deixaram terminar. Com a habilidade que dá uma

longa experiência, meteram-no no saco.

— Vocês não têm o direito de... Vocês...

O saco fechou-se. Ataram-no com corda. A voz da esposa chegou aos

seus ouvidos, longínqua, através da espessura da tela.

— Correu tudo bem?

Sim, minha senhora. Está tudo OK.

—‘ Obrigada. Não sejam muito cruéis.

Ferguson sentiu-se transportado e atirado para dentro de um automóvel

que arrancou velozmente.

Experimentou gritar, mas tinha a garganta seca. Seca e muda de raiva.

— Como é que eu não suspeitei?! Como é que eu nunca suspeitei!?


A APOSTA

POR RONALD DAHL

Pelas seis horas da tarde fui beber um copo ide cerveja ao bar do hotel e

depois sentei-me calmamente numa cadeira de lona junto da piscina, sob

um imenso guarda-sol de cores vistosas. Uma dúzia de jovens divertia-se

dentro de água perseguindo uma enorme bola de borracha.

Dali a pouco um homenzinho, já de certa idade, todo vestido de branco,

contornou os canteiros de relva que emolduravam a piscina e veio sentar-se

perto de mim.

— Que tarde esplêndida! — disse ele — Aliás todas as tardes são

espetaculares aqui na Jamaica.

Falava com, um sotaque que tanto podia ser espanhol como italiano.

Respondi que ide facto o tempo estava magnífico e que era muito agradável

o local onde nos encontrávamos:

— E quem é esta gente? — perguntou ele, referindo-se aos banhistas. O

senhor sabe?

— Creio que são americanos.


—‘Sim; devem ser americanos... para fazerem tanto barulho! O senhor

não é americano, espero...

— Não. Não sou.

Nesse momento um rapaz e uma moça saíram da água junto do lugar

onde nos encontrávamos.

— Estas cadeiras; estão ocupadas? — perguntou o jovem.

— Não. Não estão.

—Importam-se que nos sentemos aqui?

— Com certeza que não.

— Obrigado.

Sentaram-se e o rapaz abriu um pequeno saco de plástico donde tirou um

maço de cigarros; e um isqueiro. Ofereceu-nos, polidamente, e o

homenzinho de branco aceitou um cigarro.

— Obrigado, — disse ele; e quando o jovem se preparava para lhe dar

lume com o isqueiro, acrescentou:

— Aposto que isso não vai funcionar.

—'Funciona! Funciona sempre.

O homem de branco olhou o rapaz com um riso escarninho e desafiou:


— Sempre? Ah! Então esse isqueiro nunca falha?...

— Exatamente. Posso garantir que não falhará.

— Quer apostar como falha?

— Apostar?

— Sim. O senhor não gosta ide apostas?

— Com certeza. Não seria esta a primeira vez que apostava. O homem

calou-se, olhando o cigarro que tinha na mão. A sua expressão

desagradava-me, sem que pudesse explicar porquê. Pensei que desejasse

embaraçar O jovem ou talvez humilhá-lo. Devia ter maquinado um

estratagema qualquer nesse sentido. Fixou os olhas pequeninos no rapaz e

disse lentamente.

— Eu gosto imenso de apostas. Quer fazer uma boa aposta comigo?

O jovem sorriu divertido:

— É impossível. Tenho pouco dinheiro. Não podia apostar mais do que

um dólar. Se isso pode interessá-lo ?...

— Bom, vamos entrar no hotel. Nos meus aposentos não corre vento e

assim o seu isqueiro tem mais possibilidade de o não deixar ficar mal.

Se o conseguir acender dez vezes sem falhar, ganha. Caso contrário...


—'Está bem aceito. E pode estar certo de que já ganhei.

— Tanto melhor para si. Agora escute. Eu sou um homem bastante rico.

Rico e com um espírito desportivo. Tenho ali, à porta do hotel, o meu

automóvel último modelo. É um Cadillac...

— Espere um momento—disse, rindo, o rapaz. — Eu disse que não

podia jogar forte. Mesmo que pudesse, era uma loucura.

— Não vejo que seja. É uma boa oportunidade de possuir um automóvel

de luxo. Acende o isqueiro dez vezes seguidas e o carro é seu. Com certeza

gostaria de possuir um Cadillac — Gostava ou não?

— Evidentemente que gostava, mas...

— Então não hesite.

— Impossível. Eu não tenho meios para fazer apostas dessa natureza.

Não tenho nada a oferecer que valha o seu automóvel.

— Acredito. Mas eu jogo o carro contra qualquer coisa insignificante.

Qualquer coisa que, se você perder, não ficará mais pobre por isso.

— Por exemplo?...

— Por exemplo o dedo mindinho da sua mão esquerda.

— O quê?— (O rapaz deixou de sorrir.)


— Porque não?! Se você ganhar fica com o Cadillac. Se perder, eu fico

com o dedo mindinho da sua mão esquerda, que, certamente, mão vai

fazer-lhe muita falta.

— Não compreendo. O senhor fica com o meu dedo mindinho? O que

quer dizer com isso?

— Quer dizer que lho corto.

— Mas isso é uma ideia absurda! Não. Aposto um dólar contra um dólar,

se o senhor estiver interessado.

O homem de branco recostou-se na cadeira fingindo desinteresse.

— O senhor é que me disse que o seu isqueiro nunca falhava. Se agora já

não deposita nele a mesma confiança, paciência. Não falemos mais no

assunto.

O rapaz ficou silencioso e pensativo, olhando fixamente a água da

piscina. Lembrou-se então que mantinha entre os dedos o cigarro apagado.

Pôs as mãos em concha, acionou a mola do isqueiro e uma pequena chama

surgiu. Depois de acender o cigarro a chamazinha continuou a arder entre

as suas: mãos.

— Importa-se de me dar lume?—perguntou o homenzinho de branco.

— Oh, desculpe! Esqueci-me completamente...


— Obrigado.

Fez-se de novo um silêncio incomodativo. O rapaz estava perturbado

com a proposta absurda que lhe tinha sido feita. Mexia-se nervosamente na

cadeira, e, de quando em quando, olhava disfarçadamente os dedos da mão

esquerda. Ao cabo ide alguns minutos disse:

— Então o senhor aposta o seu Cadillac contra o meu dedo mindinho...!?

— Exatamente, —pronunciou o outro, desinteressado.

— Se eu não acender o isqueiro dez vezes seguidas perco a aposta. Se

acender...

—Se acender ganha-me o carro. Mas é melhor não pensar mais nisso.

Vejo que o senhor tem medo.

— E que é que eu fazia se perdesse? Estendia-lhe a mão para que o

senhor me cortasse o dedo?

— Com certeza que não. Se você perdesse talvez não tivesse coragem de

deixar cortar o dedo voluntariamente. O que eu faria era amarrar a sua mão

a uma mesa antes de começarmos. Punha-me ao seu lado com uma faca.

No momento em que o isqueiro falhasse uma só vez, cortava-o

imediatamente.

— De que ano é o seu Cadillac? — perguntou o rapaz. ,


— Como?

— De que ano é o carro, quer dizer, em que ano foi fabricado?

— Ah! É o último modelo. E está completamente novo. Mas não vale a

pena falar no carro, visto que você tem medo de apostar. Os americanos

nunca foram muito corajosos.

O rapaz olhou, por momentos, em silêncio, a sua companheira. Depois

levantou a cabeça com decisão.

— Está bem, — disse ele. — Aposto.

— ótimo! —exclamou o homenzinho de branco, batendo as mãos de

contentamento— ótimo! Vamos então subir aos meus aposentos. E o

senhor, — disse voltando-se para mim — talvez tivesse o incómodo de...

enfim, ide ser o árbitro...

— Bem... eu acho essa aposta muito insensata. ..

— Também eu, —acrescentou a moça, que até então não havia dito

nada. — Na minha opinião é uma aposta estúpida e ridícula.

— O senhor tem realmente a intenção de amputar o dedo a este jovem no

caso de ele perder a aposta? — perguntei.


— Evidentemente. E também tenho a intenção de lhe dar o Cadillac se

ele ganhar. Vamos então? Levantou-se, olhando o rapaz, e acrescentou. —

Se você tem medo, ainda está a tempo de recusar.

—. Não tenho medo. Vamos. — Dirigiu-se a mim e pediu — Agradecia-

lhe que se prestasse ao papel de árbitro.

— Bom... Vamos lá... Mas repito que esse jogo não me agrada nada.

— Vem tu também, — disse o rapaz para a moça; — podes ser

espetadora.

O homenzinho de branco seguiu à nossa frente em direção ao «hall» do

hotel. Ali nos indicou, estacionado em frente da entrada principal, um

majestoso Cadillac vermelho.

— É aquele. Gosta?

— Realmente... é um belo carro.

— Ainda bem que lhe agrada. Vamos então subir para poder ganhá-lo.

Eram no primeiro andar os aposentos do estranho homenzinho-.

Aposentos de luxo, compreendendo uma sala e um quarto de duas camas.

Ofereceu-nos bebidas-, ao mesmo tempo que tocava a campainha para

chamar o criado.

Daí a pouco um empregado negro apareceu à porta.


— O senhor chamou?

—Chamei. -Queria que me prestasse um favor. Nós vamos fazer aqui

uma experiência... um pequeno jogo... e precisávamos que nos trouxesse

alguns objetos. Tirou a carteira do bolso e entregou ao criado uma nota de

libra.

— Faça o favor de dizer.

— Bem, precisávamos de um martelo, pregos fio bem forte e um cutelo.

— Um cutelo?

— Sim, desses que se usam para cortar carne. Deve haver na cozinha.

— Muito bem, senhor.

O criado saiu e o homenzinho de branco serviu-nos bebidas. O rapaz

estava de pé, ainda em fato de banho, com o ar grave. A moça olhava para

ele com os grandes olhos azuis. Eu perguntava a mim próprio o que iria

acontecer. E se o rapaz perdesse? O homenzinho não tinha ar de quem

perdoa. Com certeza que lhe cortava o dedo. Teríamos que levar o moço ao

hospital, talvez no Cadillac que ele não havia ganho. Que coisa absurda!

— Você não acha que é uma aposta idiota? — perguntei ao jovem.

— Não, acho que é uma boa aposta.


— Pois eu continuo a dizer que é ridículo e estúpido tudo isto — disse a

moça.

— Não. É uma aposta como qualquer outra. Vendo bem, eu nunca me

servi do dedo mindinho da mão esquerda. Não é mau negócio apostá-lo

contra um Cadillac último modelo.

O homenzinho de branco sorriu.

— Antes de começar, — disse ele — quero depositar nas mãos do

árbitro as chaves do carro. Os documentos estão lá dentro, no porta-luvas.

Entregou-me duas pequenas chaves e, entretanto, chegou o criado com

um cutelo de cozinha numa das mãos e martelo, pregos e um fio, na outra.

—Obrigado, — disse o homenzinho — pode sair — e, quando o criado

fechou a porta, voltou-se para nós:

— Vamos começar.

Desocupou uma mesa que estava no meio do aposento e cravou nela dois

enormes pregos à distância de um palmo um do outro.

O rapaz, a moça e eu estávamos de pé, com o copo na mão, admirando a

atividade do homem.

— Agora sente-se nesta cadeira e estenda a mão esquerda entre os dois

pregos. Assim... ótimo.


Sem um segundo de hesitação e usando o fio, prendeu a mão do rapaz

aos dois fortes pregos.

— Agora feche os dedos e deixe só o mindinho estendido. Exatamente.

A sua mão direita fica livre para poder manejar o isqueiro.

Pegou no cutelo e ergueu-o um palmo sobre a mão amarrada do rapaz.

— Estamos prontos. O árbitro pode dar o sinal de começar.

A moça, no seu fato de banho azul pálido, estava de pé, atrás da cadeira

do rapaz. Este, olhava fixamente o cutelo.

— Está pronto? — perguntei-lhe.

— Estou.

Parecia muito calmo. A sua mão direita segurava o isqueiro e não tremia.

— Pode começar.

—'O senhor não se importa de contar em voz alta?

O seu dedo polegar comprimiu a mola do isqueiro e a chama amarela

saltou.

— Um! — disse eu.

Ele não soprou a chama. Fechou o isqueiro e esperou cinco segundos

antes de repetir a operação.


— Dois!

Ninguém falava. Quase nem se respirava. Todas as atenções estavam

fixas no isqueiro.

— Três.

— Quatro.

— Cinco.

— Seis

— Sete

Era incontestável ser aquele isqueiro um dos que funcionavam. O

polegar acionava a mola, punha a tampa sobre a chama e voltava a acionar.

Só esse dedo trabalhava.

— Oito.

Neste momento a porta do apartamento abriu-se e todos nos voltámos

para ver entrar uma mulher de certa idade que parou olhando a cena.

Depois, soltando um pequeno grito correu para o homem de branco.

— Carlos! Carlos!

Tirou-lhe o cutelo da mão e atirou-o para cima da mesa. Em seguida

segurou o homenzinho pela gola do casaco © sacudiu-o violentamente ao


mesmo tempo que gritava em espanhol. À força de ser sacudido, o homem

tornou-se cada vez mais insignificante.

Finalmente arrastou-o para o canto da sala e isentou-o num «maple».

Voltou-se para nós: e soltou um suspiro de alívio quando viu a mão intacta

do rapaz.

— Lamento o que acaba de acontecer. É terrível ! Ainda por cima a

culpa foi minha. Deixei-o só durante meia hora para ir ao cabeleireiro e

logo ele recomeçou com a sua mania.

Entretanto o rapaz desatava tranquilamente o fio que o prendia à mesa.

— É um perigo público, continuou a mulher — Na nossa terra já ele

cortou quarenta e sete dedos e perdeu sete automóveis. Tenho que o

internar.

— Mas era só uma aposta, — gemeu o homenzinho do seu canto.

— Com certeza que ele lhe prometeu um automóvel.

— É verdade — disse o rapaz — um Cadillac.

— Mas ele não tem carro nenhum! O Cadillac que está lá fora é meu, o

que torna a sua ação ainda mais condenável.

— Bom: aqui estão as chaves do carro — disse eu, colocando-as sobre a

mesa.
— Mas. era só uma apostazinha...—tornou a gemer o homem de branco.

— Ele inventa mil processos para fazer uma aposta. E não tem dinheiro

para pagar. Tudo o que tinha me pertence agora. Ganhei-lhe todo o

dinheiro e todos os bens que possuía.

Teve um sorriso triste. Depois aproximou-se da mesa e estendeu o braço

para apanhar as chaves do carro.

Então todos pudemos ver que, na sua mão, só restavam dois dedos: o

indicador e o polegar.
O SARGENTO COM OS QUEIXOS DE PAU-SANTO

POR EUGÈNE MOUTON

Uma bala de canhão, razoavelmente pesada e toda feita de ferro, tinha

esmigalhado a cabeça do sargento. O projétil, animado de extraordinária

velocidade, destruiu tudo o que encontrou na sua paisagem: não só a carne

do heroico militar (que era fraca) como o cérebro (que também não era

muito forte) e o bolbo raquidiano. Estilhaçou também vários ossos, alguns

dos quais desapareceram completamente, por mais que os camaradas do

regimento se esforçassem em os: procurar no campo de batalha.

Quando o sargento se viu quase sem cabeça, (isto é um modo de falar:

primeiro porque ninguém pode ver a própria cabeça sem auxílio de um

espelho; segundo porque a bala do canhão inimigo lhe tinha arrancado

também os olhos) ficou preocupado e pediu ao oficial, seu superior, licença

para ir à enfermaria. O oficial, que tinha muito bom coração, consentiu.

Não era sem tempo pois, quando ali chegou, ia quase morto e não

conseguia pronunciar uma palavra.

O médico de serviço aproximou-se dele e perguntou:

— O que é que te dói?


O sargento não disse nem uma nem duas e o médico, farto de ver

soldados que simulavam doenças para não irem combater para a frente,

explicou ao cabo-enfermeiro:

— Deve ser manha. Dá-lhe um comprimido de aspirina e um clister que

amanhã já está bom.

Infelizmente, no dia seguinte, o sargento estava na mesma, isto é, apenas

com um terço da cabeça.

Então o médico resolveu operar.

— Vamos fazer uma amputação. Arranjem aí um serrote, um martelo e

um cinzel.

— Mas amputar o quê? — perguntou o cabo, que tinha a mania de saber

mais do que o médico— aliás) defeito inerente a todos as enfermeiros.

— Amputação da cabeça, evidentemente! — respondeu o capitão-

médico muito senhor de si e da sua ciência. — Com certeza que não vamos

amputar uma perna a um doente que se queixa da cabeça!

— Não seria melhor pô-lo alguns dias a dieta? — alvitrou o cabo

enfermeiro.

— Você é doido! Então não vê o estado em que o doente sie encontra?

Arranje imediatamente um serrote.


A operação correu muito bem. Jamais se viu uma coisa assim nem um

cirurgião dotado de tanta habilidade. Primeiro trabalhou com o serrote.

Depois pegou no cinzel e no martelo e escavacou todos os ossos que

restavam ida cabeça do sargento. Alguns fragmentos entraram-lhe para o

goto o que provocou um pequeno ataque de tosse.

—'Esquecemo-nos da anestesia — disse o enfermeiro.

— Não tem importância. Dá-me essa garrafa.

Pelo buraco da garganta despejou dois cálices de aguardente e o enfermo

mexeu-se, demonstrando grande satisfação.

O próprio coronel veio assistir e abanou a cabeça em sinal de aprovação.

—* Excelente trabalho, capitão! Excelente trabalho! Mas permita-me

uma pergunta: assim, sem cabeça, como é que o homem vai lembrar-se das

ordens que receber? E corno é que raciocina?

— Ora, ora, meu coronel. Não tem nada que raciocinar. Basta seguir os

camaradas até à frente da batalha e ali despejar alguns tiros sobre o

inimigo. Para isso ainda lhe resta um bocadinho de massa cerebral. Vou

cobri-la cuidadosamente com umas cascas de melancia, para evitar a

evaporação das ideias, e proíbo-o de fazer grandes esforços mentais, como

o estudo das ciências abstratas, sobretudo o da trigonometria curvilínea. É


verdade: parece que nada faz pior aos doentes que têm apenas um terço da

cabeça, do que o estudo da trigonometria curvilínea.

Como o enfermo mostrasse vontade de comer, o médico decidiu fazer-

lhe os maxilares de pau. Para isso pediu que lhe procurassem um cepo de

madeira dura e resistente ao uso, pois o sargento comia muito e bebia na

proporção. Trouxeram-lhe um pedaço de pau-santo que, como sabem os

entendidos em mobiliário, é uma madeira duríssima, de primeira qualidade.

Um soldado, que fora escultor no civil, encarregou-se de talhar na

madeira um rosto quanto possível parecido com o que tinha o sargento

antes do acidente. Depois de esculpido, o médico acrescentou-lhe alguns

pormenores técnicos, como por exemplo dois buracos onde estavam as

orelhas (para ouvir os toques do clarim) e dois buracos no nariz (para

cheirar a comida do rancho).

No que diz respeito à língua, aproveitou-se a primitiva.

— Estás a ouvir-me? — gritou o médico.

O sargento fez um sinal afirmativo e não pronunciou palavra.

— Ouve, mas não fala, — foi a conclusão a que chegou o médico. —

Deve ter a língua um pouco seca. Tragam-me uma garrafa de aguardente.

Depois de muito bem lubrificada com este líquido, ótimo para

desenferrujar línguas (muita gente o usa e logo se põe a falar com grande
desembaraço) o sargento emitiu algumas palavras em latim. Depois

expressou o desejo de se confessar e entrar no seio da igreja donde há tanto

tempo andava afastado.

Admiram-se os companheiros pois, embora brioso militar, nunca fora

muito dado a tais manifestações e, para dizer a verdade, era até bastante

ateu e tinha uma linguagem um bocado sacrílega.

O médico meditou sobre o fenómeno e chegou à conclusão de que a

onda de palavras cheias de fé que agora saíam da boca do sargento eram

devidas ao facto de ele possuir uma boca de pau-santo donde,

evidentemente, não podiam sair obscenidades nem quejandas expressões.

Assim, mercê daquela bala que lhe escaqueirou a cabeça, o nosso herói

ficou impossibilitado de desempenhar as funções de sargento que (como

não ignoram os que foram à tropa) necessitam de gritar aos soldados alguns

palavrões para manter o respeito e a disciplina nas paradas.

Tiveram que o promover a oficial. Realmente há males que vêm por

bem.
COZINHA ANTROPOFÁGICA

POR JÚLIO CAMBA

Nenhuma cozinha é tão combatida como a cozinha antropofágica. Os

seus opositores dividem-se em dois grandes grupos, a saber:

Primeiro: o 'daqueles a quem, objetivamente, repugna a ideia de comer

um amigo ou um simples conhecido.

Segundo: o daqueles outros a quem também não é desagradável essa

ideia, embora por causas complementares, isto é, mão gostariam eles

próprios de ser comidos.

Tantos os primeiros como os segundos agem por razões morais ou

políticas mas, neste estudo, a única coisa que nos interessa é o aspeto

gastronómico e dietético da antropofagia.

São saborosas, efetivamente, as costeletas, de missionário? E a mi oleira

de sábio, confecionada com uma excelente massa cerebral aperfeiçoada por

trinta anos de numismática ou arqueologia? A que saberá! Saberá bem?

Saberá mal? That is the question, querido leitor.

Existe ainda no mundo, a despeito do esforço de Karl Marx e outros,

uma classe de pessoas que desempenham na sociedade o mesmo papel das


vacas sagradas indianas em relação aos bois de trabalho, isto é, servem só

para adornar. São pessoas que alimentamos e engordamos, com grande

sacrifício e que, se não têm aplicação culinária, mão sei na verdade, que

espécie de aplicação possam ter. Se os canibais cá viessem e lhes ferrassem

o dente, estaria de certo modo justificada a sua existência.

Embora me falte experiência direta sobre este assunto, estou inclinado a

crer que o hábito de comer carne humana, visto à luz da gastronomia, não é

nenhum disparate. E não só sobre o ponto de vista gastronómico, mas

diético também. Se o homem civilizado ingere alimentos com o fim de os

transformar em substância humana, o antropófago pensa, e com toda a

lógica, que o melhor é ingeri-lo® já devidamente transformados.

Levado por este raciocínio tão simplista como inteligente, o selvagem

come o primeiro viajante que encontra no caminho, convencido de poupar

ao seu organismo o trabalho da assimilação.

Um sábio francês, o senhor Varigny, justifica assim os antropófagos:

«Comer um semelhante é absorver uma alimentação específica ideal».

Para justificar esta afirmação, o senhor Varigny fala ide umas rãs que

alimentou durante algum tempo com carne de outras rãs. A carne de rã tem

um valor em calorias muito mais baixo do que a de borrego ou vitela e, no

entanto, as rãs alimentadas com belos bifes desenvolviam-se muito menos


do que as suas congéneres a que o sábio servia a carne das suas irmãs,

(irmãs das rãs e não irmãs do sábio).

Em suma: os cientistas raciocinam como selvagens e por isso não admira

que os selvagens procedam segundo a lógica dos cientistas.

Vem tudo isto a propósito duma ideia que eu tive: com a falta cada vez

mais dramática de bacalhau e de outras espécies tradicionalmente

comestíveis, já vai sendo tempo de encararmos a antropofagia como

solução para um dos grandes males que enferma a humanidade: a fome.

A gente engorda para aí tanto tipo inútil! Creio que nem eles próprios

podem levar a mal se pretendermos aproveitar-lhes a única qualidade que

possuem. Transformados em carne poderão, sem dúvida, ser muito úteis à

sociedade, uma sociedade cada vez mais necessitada de calorias e

proteínas.
O RAJÁ QUE SOFRIA DE TÉDIO

POR ALPHONSE ALLAIS

O Rajá sofre de tédio.

Sofre terrivelmente de tédio e nada pode mitigar a sua dor, porque ele

tem tudo, é dono ide tudo, e por isso já nada o interessa.

(Não riam estupidamente, porque ninguém sabe como é horrível o

sofrimento dum Rajá. Só quem já algum dia foi Rajá, emprego que, creio

eu, não é muito comum entre os meus leitores.)

Nos jardins do palácio, a escolta espera O' Rajá.

Os elefantes também esperam.

Porque hoje é o dia marcado para o Rajá sair à caça do tigre.

Mas um gesto ide tédio do Rajá indica ao intendente que o senhor não

está interessado em caça.

Que a escolta volte para as suas casernas.

Que os elefantes se recolham também.

Venham as bailadeiras para distrair o Rajá.

Mas as bailadeiras também não conseguem afastar o tédio do Rajá.


Que recolham as bailadeiras. Todos os dias, bailadeiras, é muito

aborrecido.

O Rajá está cansado de bailes.

Mas esperem: está ali uma bailadeira, muito bela, que, pela primeira vez,

dança em frente do Rajá.

Dança tu sozinha, jovem e bela bailadeira, para distraíres o Rajá.

E a bailadeira dança.

Oh! Como dança bem! Que encanto, que graça, que leveza nos seus

movimentos!

E eis que, ao ritmo da música e não parando de dançar, a bailadeira vai

tirando as peças de roupa que traz vestidas.

O semblante do Rajá ilumina-se. A cada peça de roupa que ela tira, o

Rajá solta um grito, depois uma exclamação:

— Tira mais!!!

E a bailadeira não para de despir peças de roupa.

Mais ainda, — exclama o Rajá.

Já está completamente nua, a bailadeira!

O seu corpo é uma obra prima de escultura.


Tem uma pele macia, tépida, não se sabe se dum tom muito claro de

bronze ou de rosado marfim.

O Rajá, entusiasmado, continua a gritar:

— Mais ainda!

A pobre bailadeira percorre o corpo com as mãos, como se procurasse

algum pedaço de tecido que porventura esquecesse. Mas não: está nua e

bem nua, a bailadeira!

O Rajá não para de gritar:

— Mais ainda!

O intendente faz então um gesto aos escravos e eles avançam para a

bailadeira armados de punhais muito afiados.

Habilmente começam a tirar a pele à bela bailadeira.

A moça suporta a operação por amor do Rajá. Para que o Rajá não se

aborreça!

E eis que agora a bela bailadeira não é mais do que uma peça anatómica,

sangrando e fumegando.

Toda a gente se retira por discrição.

Finalmente! um divertimento novo!


Agora, o Rajá já não sofre de tédio.
O POBRE

POR ANDRÉ FRÉDÉRIQUE

1.° ACTO

MORDOMO — Senhor marquês, o jantar está servido.

MARQUÊS—Só vejo um talher na mesa...

MORDOMO — É que a senhora marquesa está indisposta. Não desce.

MARQUÊS — Bem sabes que não me preocupo com a saúde da minha

mulher. Mas devias lembrar-te que hoje é o dia da caridade e costumo ter,

todos os anos, um pobre sentado à mesa para jantar comigo. Onde é que

está o meu pobre?

MORDOMO — Que o senhor marquês me perdoe mas não consegui

caçar nenhum. O último que existia morreu de frio sentado à porta do

palácio. Vossa excelência deve recordar-se.

MARQUÊS —Que ingrato! Enfim... (sus piro) Mas tu não vai® querer-

me fazer acreditar que não haja um pobre nesta região... E a Maria Coxa?

MORDOMO—Recebeu a herança dum tio e já não anda a esmolar.


MARQUÊS — E o António Maluco?

MORDOMO — Reformou-se.

MARQUÊS — E o Pilha-Galinhas?

MORDOMO — Está a cumprir dois anos de cadeia.

MARQUÊS — Não o deixarão sair por uma hora apenas, para vir jantar

comigo?

MORDOMO—'Não é costume lá na prisão.

MARQUÊS — Porcaria de prisões. Oh! Santo Deus! Que tempos estes!

Já não se arranja um pobre para podermos praticar uma boa ação, ao

menos uma vez por ano? Ai que desgraçada vida... Ih! Ih! (chora).

MORDOMO — O senhor marquês permita-me interrompê-lo no seu

choro mas tem a sopa a arrefecer.

MARQUÊS — Hoje não janto sem ter um pobre à mesa. Já disse.

Pronto.

Vai procurá-lo imediatamente.

(Música)
2.° ACTO

MORDOMO — Alegre-se, senhor marquês, já temos um.

MARQUÊS— Um quê?

MORDOMO—Um pobre.

MARQUÊS — Já era tempo. Estou com uma fome de lobo. Como é que

ele é?

MORDOMO — Tem boa pinta.

MARQUÊS — É divertido? Espero ao menos que saiba algumas

anedotas. O que tivemos o ano passado era sinistro. Passou todo o jantar de

boca fechada, exceto para comer, evidentemente.

MORDOMO — Esse era um surdo-mudo, senhor marquês. Este é cego.

Mas trata-se de um falso cego. Usa esse truque porque, segundo diz, é o

que proporciona mais esmolas. As pessoas gostam de dar esmolas a cegos

porque estes não veem a quantia que lhes deitam no chapéu.

MARQUÊS — Bem, vou receber condignamente esse infeliz. Manda

tocar o quarteto de cordas. Diz a esse desgraçado que entre. (O mordomo

sai.)
MARQUÊS—(monologando) É um costume bem simpático, este de

jantar todos os anos com um pobre. Durante trezentos e sessenta e cinco

dias fico com a consciência tranquila, apenas porque aguentei a bucha de

aturar um imbecil durante duas horas.

(Música do quarteto de cordas)

MORDOMO — (entrando com o pobre, a quem dá alguns pontapés)

Tira o chapéu, desgraçado! (Ao marquês) Aqui tem vossa excelência o

pobre que pediu.

MARQUÊS — Entra, não tenhas medo, camarada. Vem cá. Está

descansado que não te como. (Para o mordomo) Deste-lhe um banho?

MORDOMO — Não, senhor marquês. Ele recusou terminantemente.

MARQUÊS — Ao menos deita-lhe um bocado de água de colónia em

cima. Ele cheira mal... (Ao pobre:) Aqui em casa há o costume de aspergir

as pessoas com água de Colónia. Não achas bem?

POBRE — Hããã...

MJORDOMO — Não sabes responder «sim senhor marquês»? Custa-te

alguma coisa ser educado?

POBRE — (grunhido gutural) Hããã... (arroto).


MARQUÊS — (para o mordomo) Põe um pano a cobrir a cadeira dele.

Esta besta deve ter piolhos. (Para o pobre:) Senta-te, bom homem. Não

faças cerimónias. Gostas de música? Providenciei para que o quarteto

tocasse alguns trechos de Vivaldi. Que tal achas a música de Vivaldi ?

POBRE — Hãããã...

MARQUÊS — Pois eu adoro Vivaldi.

(Entretanto o mordomo, com um pulverizador, encharca o pobre com

água de Colónia.)

POBRE — Eh lá! Eh lá! O que é isso?

MARQUÊS — É água de Colónia, ingrato.

POBRE — (tentando bater no mordomo) Pára lá com essa porcaria.

MARQUÊS — É lavanda inglesa. Importada diretamente ide Bristol.

POBRE — Quero lá saber...

MORDOMO — É que ele não está habituado a estes luxos.

MARQUÊS — Serve-o de um pouco de caviar.

POBRE — Não.

MARQUÊS — Talvez prefiras salmão fumado. ..

POBRE — Não.
MARQUÊS — Come então o que mais te apetecer.

POBRE — Não quero nada.

MARQUÊS — Mas porquê ?

POBRE — Porque não tenho fome.

MARQUÊS — Não me faças rir. Um pobre que não tem fome! Mas que

raio de pobre és tu?

POBRE — Sou um pobre com a barriga cheia.

MARQUÊS — Bem, deixa-te lá de fazer humor e começa a comer. Vá:

um, dois, três, podes atacar.

POBRE — Não tenho fome porque já jantei.

MARQUÊS — Que tempos estes! Um pobre que não tem vergonha de

dizer que já jantou. Tu não tens nem sombra de brio profissional,

percebeste? E onde é que tu jantaste? Talvez no hotel, não?

POBRE — Jantei em casa do senhor Conde. Como hoje é o dia da

caridade, ele convidou-me...

MARQUÊS — (agastado) Em casa do Conde? Oh! Não tem

importância. Ele é um unhas de fome e aposto que não te encheu a barriga.


POBRE — Pois não, mas depois fui jantar a casa do presidente da

Câmara. Depois jantei em casa do notário. Depois em casa do senhor

Cura...

MARQUÊS — É extraordinário!

POBRE —-Hoje é o dia da caridade e tenho que comer em casa de toda

a gente para fazer o jeito. Mas agora não posso mais. Se engolisse mais

alguma coisa rebentava...

MARQUÊS — Faz um sacrifício por mim. Só um pequeno sacrifício.

Come este faisãozinho recheado. Olha como é agradável! (mastiga com ar

deliciado).

POBRE — Bebia era qualquer coisa... para esmoer.

MARQUÊS—(para o mordomo) Baptista, serve um copo de água ao

nosso querido convidado.

POBRE — Preferia vinho.

MARQUÊS—Ah! Não te dou vinho se não comeres. Pode fazer-te mal.

POBRE — Não como, não como e não como, raios. Já disse que não

como.

MARQUÊS — (perdendo a paciência) Baptista, ata-o a uma cadeira.

(O mordomo executa a ordem)


MARQUÊS — Agora abres a boquinha, sim, meu pedaço de patife?

(Mete-lhe uma colher de puré na boca.) Vês como não custa nada?

(Irónico) Vá, mais uma colher pelo senhor marquês... outra pela senhora

marquesa... outra pelo Baptista... outra pelo notário... outra pelo senhor

cura... Então?! Abre a boca, teimoso.

MORDOMO—-Senhor marquês, parece que o homem está morto.

MARQUÊS — (sádico) Vamos, vamos, outra pelo senhor S. Pedro...

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