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A sustentabilidade deve apaziguar os antepassados: investimentos chineses,

património e preservação cultural em Moçambique

Mais de sessenta anos depois de terem adquirido a sua independência das potências
coloniais europeias, os países africanos continuam a comercializar matérias-primas.
Além disso, a ascensão da China como potência industrial global renovou a corrida
pelos recursos naturais africanos, levantando preocupações de sustentabilidade.
Contudo¸ esta sustentabilidade muitas vezes é medida em termos economicos e
ambientais.

Assim sendo, pretendemos mudar a discussão sobre as consequências desta nova corrida
pelos recursos naturais africanos, das narrativas de esgotamento e degradação ambiental
e olharmos para os recursos naturais e a sua sustentabilidade sustentabilidade do ponto
de vista cultural visto que, em África há uma ligação muito forte entre o ambiental e a
espiritual.

Esta relação entre sustentabilidade ambiental e espiritualidade tem sido explorada em


diversas culturas ao redor do mundo, e o continente africano não é exceção. Ao longo das
últimas décadas, acadêmicos têm investigado o papel das crenças espirituais e práticas
tradicionais africanas na promoção da conservação ambiental e na manutenção da harmonia
entre os seres humanos e a natureza. Autores como Wangari Maathai, ganhadora do Prêmio
Nobel da Paz em 2004, no seu livro "Unbowed" (2006), destacaram a conexão profunda entre a
espiritualidade africana e a proteção do meio ambiente, evidenciando que as práticas culturais e
rituais locais promovem a preservação dos recursos naturais. No seu livro intitulado African
Religions and Philosophy (1990) John Mbiti destaca a visão singular das religiões africanas
em relação à natureza. Ele descreve como essas religiões muitas vezes vêem a natureza como
uma entidade viva e sagrada, e não simplesmente como um recurso a ser explorado . Mbiti
argumenta que essa perspectiva holística influencia profundamente as práticas ambientais das
comunidades africanas, promovendo a conservação e o respeito pela terra e pelos recursos
naturais.

Na mesma senda, Elias Bongmba examinando as interações entre as crenças religiosas africanas
e as práticas ambientais destaca que as tradições espirituais africanas frequentemente incluem
rituais de adoração e reverência à natureza, promovendo uma relação de respeito e harmonia
com o ambiente natural.

No actual cenário internacional, tem se verificado que a China passou para a posição de
principal receptor das exportações africanas bem como, em termos de cooperação, um
dos principais parceiros do continente. A presença económica chinesa em Moçambique
intensificou diversos acordos bilaterais de cooperação técnica, empréstimos,
investimentos, projectos de contratação, concessão de subcídios directos para as obras
públicas e cancelamento de dívidas a serem rubricados.

Ao mesmo tempo, a actuação chinesa em Moçambique também tem levantado


preocupações. Actividades como a mineração, corte de madeira em algumas florestas
consideradas sagradas por algumas comunidades, entre outras actividades, tem
provocado o descontentamento das comunidades, devido à destruição dos meios de
subsistência, da degradação ambiental e, principalmente devido aos impactos
culturais/espirituais destas actividades.

Um olhar aos impactos da exploração dos recursos naturais numa dimensão


cultural

Este é o ponto central da nossa pesquisa no qual argumentamos que é urgente, no


contexto moçambicano, olhar para os recursos naturais e os espaços para além da sua
dimensão material ou monetária e pensar neles de uma forma holística que traz também
os impactos culturais e espirituais da exploração desses recursos.

Verifica-se que, para a exploração dos recursos naturais no país, tem se recorrido ao
processo de reassentamento das populações das zonas de exploração para outros locais.

DINGSHENG

Um exemplo claro é apresentado na dissertação de David Muaga (2021), sobre o


processo de reassentamento das populações de diversos bairros do distrito de Chibuto
com objectivo de dar espaço à implantação de uma empresa chinesa extração de areias
pesadas denominada DINGSHENG.

Esta actividade criou diversas consequências a nível cultural para as populações locais
das quais se destacam:

Desaparecimento de plantas medicinais no contexto da medicina tradicional

Segundo depoimentos do lider tradicional do bairro de Mudumeia, Sr.Massango, com o


reassentamento para o bairro de Nwahamuza seriam destruidas muitas árvores e plantas
que serviam de sinal de alerta para eventos extremos por acontecer. Segundo o lider
tradicional, havia muitas plantas e raízes na sua casa que já não são fáceis de encontrar
no ambiente urbano em que residem actualmente. 1 Nesta senda, a activista politica
Wangari Maathai (2006) sustenta que o desflorestamento não apenas resulta na perda
física das árvores, mas também na quebra dos vínculos espirituais e culturais entre as
comunidades e seu ambiente natural. Maathai enfatiza como as árvores são vistas como
símbolos de vida, fertilidade e renovação em muitas tradições africanas, e como o
desflorestamento ameaça não apenas os recursos naturais, mas também a identidade
cultural e espiritual das comunidades.

Destruição de santuários

Em algumas zonas de origem dessas populações, ora reassentadas, relata-se que existia
um santuário que era frequentado durante a realização de cerimónias e rituais. Com o
processo de reassentamento, este local deveria ser destruido. Para Achile Mbembe
(2017), a perda desses locais sagrados é uma forma de violência simbólica que mina a
identidade cultural e espiritual das comunidades africanas. A destruição de santuários
não apenas causa danos ambientais, mas também perpetua a marginalização das
comunidades locais.

Redução/inexequibilidade das cerimónias tradicionais

Para os reassentados no bairro de Nwahamuza (Bairro que recebeu maior nr de novos


moradores) as cerimónias de invocação dos espíritos e os rituais tradicionais fazem
parte do passado. Por conta disso, alguns residentes começaram a associar alguns
eventos, como a falta de chuva, a não realização de rituais. Assim, a não realização de
cerimônias rituais importantes pode ser vista como uma violação das normas culturais e
espirituais, e como isso pode levar a consequências negativas para os indivíduos e a
comunidade como um todo.

Nesse contexto, Chris Wet (2006) sustenta que "um processo de reassentamento feito
para responder a interesses económicos não é suficiente para responder de forma justa à
dimensão cultural, que é complexa e multidimensional, ou seja, os reassentamentos não

1
MUAGA, David Fortunato. Expectativas de desenvolvimento resultantes do reassentamento mineiro no bairro de Nwahamuza,
distrito de Chibuto, Moçambique. Maputo: Departamento de Arqueologia e Antropologia- Universidade Eduardo Mondlane, 2021.
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devem só restaurar os rendimentos da população, mas olhar para o que constitui o
reassentamento e o que o envolve, utilizando termos sociológicos."

Recomendações

No contexto africano, as crenças e práticas espirituais desempenham um papel


fundamental na vida das comunidades, influenciando não apenas as relações sociais e
culturais, mas também as perspectivas sobre o uso e preservação dos recursos naturais.

O desenvolvimento económico muitas vezes é perseguido de forma desenfreada,


priorizando o lucro e o crescimento material em detrimento do equilíbrio ecológico e do
bem-estar espiritual. No entanto, essa abordagem ignora os aspectos fundamentais da
sustentabilidade, que vão além das considerações puramente materiais.

As comunidades africanas frequentemente acreditam que a harmonia com os espíritos


da natureza é essencial para garantir a prosperidade e o equilíbrio do mundo. Quando os
espíritos não estão em paz, acreditam que isso pode resultar em infortúnios, desastres
naturais e até mesmo no fracasso de empreendimentos económicos. Portanto, ignorar ou
desrespeitar essa dimensão espiritual pode levar a consequências adversas para o
desenvolvimento econômico e a estabilidade das comunidades.

Além disso, a falta de consideração pela dimensão espiritual pode minar a coesão social
e a resiliência das comunidades, prejudicando sua capacidade de enfrentar desafios
econômicos e ambientais. Ao reconhecer e honrar as crenças e práticas espirituais das
comunidades, o desenvolvimento económico pode promover o equilíbrio entre as
necessidades materiais e espirituais das pessoas e do meio ambiente visto que os
mundos material e espiritual tornam-se entrelaçados pela maneira como as pessoas se
relacionam com seus ambientes.

Portanto, para alcançar um verdadeiro desenvolvimento sustentável, é essencial que se


leve em consideração a dimensão espiritual, garantindo que os espíritos da natureza
estejam em paz e que as comunidades possam prosperar em equilíbrio com o mundo ao
seu redor.

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