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O plano de vida espiritual:I – O que é

O que é um “plano de vida espiritual”?

O “plano de vida espiritual” consiste, simplesmente, em programar as práticas da vida


espiritual (oração, comunhão, leituras, terço, etc.) de modo a garantir que sejam realizadas
com ordem e constância. Esse “plano” tem dois aspectos:

1º) A definição do “tipo” de práticas espirituais que nos propomos a exercitar. Quer o tipo,
quer o número e a frequência dessas práticas não tem que ser o mesmo para todos: para uns,
o plano consistirá em rezar algumas orações breves ao acordar e ao deitar e em ler
diariamente o Evangelho durante cinco ou dez minutos; para outros, além disso, o plano
incluirá a Comunhão frequente e, diariamente, a meditação, o Terço, uma leitura formativa, o
exame de consciência, etc. Dependerá das circunstâncias espirituais de cada pessoa.

Uma boa direção espiritual pessoal poderá aconselhá-lo sobre o tipo e o número de práticas
que lhe convém em cada momento da vida, sobre a frequência delas, e sobre a conveniência,
lógica e natural, de ir aumentando-as um pouco, por um plano inclinado, à medida que a alma
amadurece. Nisso do “aumento” também não há regras fixas: cada alma é “uma” alma.

2) O segundo aspecto consiste em definir, de modo claro e concreto, o momento do dia em


que cada prática será cumprida, ou seja, definir um horário, que garanta que o “plano” não
fique inutilmente só nos desejos gerais, mas seja um meio eficaz de formação e de
crescimento espiritual.

Monotonia e amor

É interessante, a esse respeito, ler as seguintes palavras de “Caminho“: «Sujeitar-se a um plano


de vida, a um horário, é tão monótono!, disseste-me. – E eu te respondi: há monotonia porque
falta Amor» (n. 77).

1) A “monotonia”! Fazer todos os dias as mesmas coisas é tão monótono – podemos pensar -,
acaba tornando-se rotina, prática mecânica. Não seria melhor rezar, ler, comungar, etc. só de
vez em quando, nos momentos em que nos sentirmos mais dispostos, com mais condições de
aproveitar esses meios, ou mais necessitados de Deus?

Com Camões, vou-lhe responder: «ledo engano!», ou seja, não. O problema da “monotonia”
ou da “rotina” não procede da repetição, mas do vazio de amor do coração. Talvez entenda
isso, tomando como referência um fato real:

Uma boa senhora de família minha conhecida veio conversar comigo, para desabafar e pedir
conselho. Nem tinha começado a falar, e já chorava. Quando lhe perguntei por que,
respondeu: “Durante vinte anos, meu marido, todos os dias, ao sair de casa para o trabalho, se
despedia de mim com um beijo. Desde faz dois meses, ele sai sem nem avisar”. Andava mal
aquele amor. Tão mal, que o drama da separação veio pouco depois. Deu para entender?
Havendo amor, a repetição da mesma prática diária não é rotineira. Isso é o que devemos
procurar, e pedir a Deus: amor. “Mas… e se não sinto esse amor?”
2) Aí vem um segundo ponto. Será que amar é sentir? Quando uma mãe, fatigada e morta de
sono, levanta três, quatro, cinco vezes à noite para amamentar ou acalmar o seu bebê, duvido
que “sinta” uma grande emoção ou alegria. Mas ela ama seu filho, e esse seu amor – quer
sinta, quer não sinta – justifica todos os seus sacrifícios. “Sentir amor”, muitas vezes significa
“sentir-me bem a mim mesmo…, ter prazer (como quando “sinto” vontade de beber cerveja, e
então bebo; e quando não sinto, não bebo)

O amor daquela mãe é mil vezes mais autêntico que o amor de uma mulher superficial, que
logo pensa em separação quando nota que a convivência com o marido já não lhe dá prazer,
não lhe traz satisfações. A esse falso amor, chama-se “egoísmo”.

«Passou-me o entusiasmo”, escreveste-me. – Tu não deves trabalhar por entusiasmo, mas por
Amor; com consciência do dever, que é abnegação» – lemos também em “Caminho” (n. 994).
É isso o que faz a mãe do bebê chorão. E Deus será menos? Não estaremos dispostos a dar-lhe
o que daríamos a uma pessoa querida, sendo que, ao rezar, comungar, etc, na realidade é Ele
quem nos ama e nos dá, é Ele quem se entrega a nós.

Amar é “querer”

Não caiamos, portanto, na cilada da falsa autenticidade. Amar é “querer” bem (o bem, o que é
bom), custe o que custar. Por isso, pergunto-lhe ainda com “Caminho“: «Dizes que sim, que
queres. – Está bem. -Mas queres como um avaro quer o seu ouro, como a mãe quer ao seu
filho, como um ambicioso quer as honras, ou como um pobre sensual quer o seu prazer? –
Não? Então não queres».

Pense um pouco nos sacrifícios que é capaz de fazer, nos compromissos a que não falta de
jeito nenhum, nas despesas que não mede aquele que “quer” mesmo ficar rico, ou ganhar
uma posição política elevada, ou satisfazer um prazer que o traz alucinado… Então? Deus não
merece mais?

Se medita nisso, compreenderá a grande importância de ter e seguir um plano de vida


espiritual, definindo-o bem claramente por escrito na sua agenda, e ficará precavido contra os
“grandes inimigos” do plano de vida espiritual:

a) os sentimentalismo egoísta e a autenticidade falsa, já mencionados;

b) o engano perigosíssimo de quem diz a si mesmo: “agora, na hora prevista no plano para a
oração, não vou fazer; faço depois”. Quase sempre, o “depois” não existe. É muito melhor,
quando se prevê dificuldade, fazê-lo “antes”, ou seja, adiantar uma prática, que você prevê
que não poderá cumprir no horário previsto. São Josemaria dizia, meio brincando e muito a
sério, que os grandes inimigos da alma são: “amanhã, depois, achei que, pensei que”… Quer
dizer, as desculpas, que continuam sendo desculpas por mais que queiramos justificá-las.
Quase sempre, o momento em que Deus nos concede mais graça é precisamente o “mau
momento”, aquela hora em que nos custa cumprir o nosso compromisso de fé e amor a Deus,
e, mesmo assim, nos vencemos e o cumprimos;

c) também é um inimigo o desânimo de achar que não serve de nada cumprir fielmente o
plano, ao vermos que, por mais que o cumpramos não melhoramos. Creio que basta outro
ponto de Caminho para responder a isso: «Quantos anos comungando diariamente! Qualquer
outro seria santo – disseste-me -, e eu, sempre na mesma! -Meu filho – respondi-te -, continua
com a Comunhão diária e pensa: Que seria de mim se não tivesse comungado?».

Se tiver oportunidade de ler alguma vida de Santa Teresa de Ávila, a mulher admirável, forte,
dinâmica e empreendedora, que era ao mesmo tempo uma alma mística, de elevadíssima
oração, verá como a santa conta que as horas de oração que lhe trouxeram mais proveito
espiritual foram aquelas (muitas!), em que se sentia incapaz de pensar e de sentir na capela,
mas perseverava nos seus horários de oração, entregando-se assim humildemente nas mãos
de Deus.

O plano de vida espiritual: II – Finalidade

Um fim ou um meio?

Na reflexão anterior, começamos a falar do Plano de vida espiritual. Vimos o que é e


lembramos a importância de vencer algumas tentações, dificuldades e desculpas que
atrapalham o seu cumprimento.

Depois de termos refletido sobre o que é, vamos perguntar-nos agora a respeito do para que,
quer dizer, sobre a finalidade do Plano de vida espiritual.

Como fizemos em outras reflexões, acho bom começarmos com um «esclarecimento prévio».
É o seguinte: o Plano de vida espiritual não é um fim em si mesmo, mas um meio (veremos
para quê).

a) Muitos erram transformando, sem reparar, o Plano de vida em um fim. Acham que o mais
importante é cumpri-lo, não deixar de praticar as «normas espirituais» que o integram (oração,
leitura, Terço, etc.). Por isso, ficam aflitos se alguma vez chega a noite e percebem que
deixaram penduradas algumas das «normas» do Plano. Então, afobados e ansiosos por
completá-lo, fazem-nas atabalhoadamente, distraídos ou sonolentos, só para cumprir.

Não vou lhe dizer que não seja importante o empenho por cumprir o Plano de vida completo.
É importante. Os cristãos responsáveis deveríam colocar todo o empenho em não deixar de
fazer essas «normas espirituais», ainda que muitas vezes custem e exijam sacrifícios.
Mas cumprir não é a finalidade. Também o fariseu da parábola do capítulo dezoito do
Evangelho de São Lucas «cumpria» – Jejuo duas vezes na semana e pago o dízimo de todos os
meus lucrosI, etc. (Luc 18,12) -, mas fazia-o só para ficar «quites» com Deus. Por isso, Jesus diz
que saiu do Templo reprovado.

b) Com o que acabamos de lembrar, você compreenderá melhor algo que, no íntimo, já sabia:
que o Plano de vida é um meio.

Mas… um meio para que? Para a única coisa que importa, aquela que Jesus, falando com
Marta na casa de Betânia, chamou a única coisa necessária (cf. Lc 10,42): amar a Deus!
Entende-se, por isso, que São Paulo, falando de oração, de fé e de alguns sacrifícios heróicos,
diga: Se não tiver amor, nada disso me aproveita (1 Cor 13, 1-3).

Um meio para amar e viver com Deus

Eu diria que o Plano de vida é um grande meio para viver algo que Jesus nos pedia na Última
Ceia: Como o Pai me ama, assim também eu vos amo. Permanecei no meu amor (Jo 15, 9). Este
é o fim: permanecer no seu amor. O Plano de vida é, portanto, um meio – eficaz, praticado
desde o começo do Cristianismo – para amar a Deus, para amar a Cristo e para perseverar
sempre nesse amor.

Lembre-se de que o amor que Jesus nos pede é muito grande, e requer muita intimidade com
Ele, com Deus. Baste agora recordar algumas palavras de Nosso Senhor. Por exemplo: Se
alguém me ama, guardará a minha palavra e meu Pai o amará, e nós viremos a ele e nele
faremos a nossa morada (Jo 14,23). E ainda essas outras: Se me amais, guardareis os meus
preceitos. E eu rogarei ao Pai e ele vos dará outro Paráclito [o Espírito Santo], para que fique
eternamente convosco […], Ele permanecerá convosco e estará em vós (Jo 14, 16-17).

Como é maravilhoso o que Cristo nos promete, se lhe formos fiéis, se o amarmos e
cumprirmos os seus mandamentos: chegar a ter uma intimidade de amor intensíssima,
incrível, com o Pai, o Filho e o Espírito Santo; viver de modo a termos Deus – a Trindade
Santíssima – dentro de nós, sendo o seus «templos» vivos (ver 1 Cor 3,16 e 6,19).

Pois bem, é justamente para alcançar essa maravilhosa realidade que procuramos ter e viver
um Plano de vida espiritual.

Tudo é «coisa» de amor

Não custa muito perceber como é que as «normas» do Plano de vida nos levam a fazer o que
acabamos de comentar.

Dizíamos que tudo é questão de amor, «coisa» de amor. Vamos pensar, então, no ideal do
amor humano como um guia para entender isso.

O amor, todo grande amor humano, requer:

1) Aprofundar no conhecimento da pessoa amada. Que os que se amam se conheçam cada


vez mais e melhor. É claro que essa é, em grande parte, a finalidade de várias «normas» do
Plano como a leitura meditada da Bíblia (especialmente do Evangelho); a leitura de livros de
formação e de espiritualidade cristã; a meditação…? Meios para conhecer a Deus, conhecer a
Cristo, conhecer a Palavra de Deus, não só teoricamente, mas também com o coração, com um
carinho vivo e prático.

2) Para amar, é preciso ganhar sensibilidade a fim de ir evitando tudo o que possa magoar ou
ofender a pessoa querida. Aí está a razão dos exames de consciência, da confissão frequente,
das mortificações que fazemos para vencer – com a ajuda da graça – defeitos e indelicadezas
que ofendem a Deus.
3) O amor exige dialogar, conversar com o coração aberto e sincero, ouvir com carinho e falar
com carinho, oferecer e pedir com confiança. Isso é o que nos propomos com a meditação,
a oração mental, a visita ao Santíssimo Sacramento…; e, em geral, com todo tipo de orações,
dentre as quais merece um especial destaque o Santo Rosário.

4) Não existe amor sem que os que se querem bem tenham, um para com o outro, muitos
detalhes delicados, como palavras afetuosas, pequenos presentes e atenções. As «normas»
que cumprem essa finalidade são, entre outras, o oferecimento do dia a Deus, a recitação
do Anjo do Senhor pelo menos ao meio-dia, as jaculatórias e outras orações breves espalhadas
ao longo do dia, as pequenas mortificações “de aperfeiçoamento”, que ajudem a fazer melhor
o que já fazemos por Deus, etc.

5) O máximo anseio dos que se amam é chegarem a ser um só coração, uma só vida, a terem
uma união perfeita e feliz. Para nós, não há maior união com Deus – com Jesus – do que
a Eucaristia: a Santa Missa e a Comunhão.

Você percebeu? Falando de «coisas de amor», como diz «A banda» do Chico Buarque, foram
aparecendo, como práticas naturais e muito convenientes (em maior ou menor medida,
conforme as pessoas), as «normas» que constituem um bom Plano de vida espiritual. Meios,
em suma, para um único fim: amar a Deus e, com a força de seu amor, amar ao próximo. Isto é
a santidade.

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