Memorial Descritivo Antonádia

Você também pode gostar

Fazer download em docx, pdf ou txt
Fazer download em docx, pdf ou txt
Você está na página 1de 60

Memorial de avaliação para a promoção ao cargo de Professora Titular

Antonádia Monteiro Borges

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro


Setembro de 2023
Para Eli de Fátima Napoleão de Lima (1954 -2022).
Sem sua generosidade, eu não estaria aqui hoje.

Para Mangaliso Khubeka (1950-2023).


Sem sua generosidade, não seria quem sou hoje.

2
Sumário

Coisas que não existem mais 4

Porcos 7

Vira-latas 12

Ovelhas 35

Galinhas 51

Cabras 58

3
Coisas que não existem mais
Eu me pergunto se a memória que não se ativa tem existência. Um memorial resulta de uma
reanimação de guardados/de esquecidos. Porém, como o memorial não espelha tudo o que
transcorreu, corre-se o risco de desconsiderar a existência de tudo o que não foi narrado, de
todos que não foram citados − o que seria um absurdo.

Embora o relato que faço aqui aluda, no geral, a “coisas que não existem mais”, seria bom
não perder de vista que muitas outras, mesmo que não narradas, também aconteceram −
tiveram uma extensão no tempo e no espaço e, assim, me “ocuparam” −, no sentido de
pousar na minha morada interior. Muitas dessas coisas ou quase todas também não existem
mais.

Rosa, ontem (25 de maio de 2023), disse que aprendeu com a professora Josi, na escola,
que nossa verdadeira casa fica dentro da gente. Creio que meu interesse perene pelo
embate entre processos de desterritorialização violentos e esforços criativos para não se
fazer apagar diante de investidas para a homogeneização ética e estética indica a
importância dessa morada interior na luta contra o sumiço. Devo minha existência nômade
ao abrigo que encontrei na morada interior de todos os que me acolheram em suas vidas:
anfitriões em campo, estudantes, colegas, parentes. Sem essas casas, eu teria sumido.

A passagem do tempo − como entendido pelos modernos − permite que os lugares sejam
colonizados diversas vezes. Parece-me o malfeito necessário da civilização. Não há nada que
não nos permita ou nos proíba de erguer algo sobre ruínas, de deixar intacto algum sítio que
por alguma razão alguém no passado declarou interdito e que, por respeito ou temor àquela
história e seus propagadores, simplesmente aceitamos. Na prática, é todo o contrário.
Somos quase sempre, muito rapidamente, convidados a encher o vazio. A ficar sem espaço
para meditar.

Neste memorial, não quero e não pretendo erguer nada sobre os escombros. De fato, tive
pouco ou quase nada de tempo para revisitar as ruínas, que seguem praticamente intactas.
Como os traços do passado não são mais tangíveis, recorri à memória, a alguns arquivos e à
imaginação para apenas recompor parcial e holograficamente aquilo que um dia teve forma
e volume. O holograma se desfaz rapidamente. Também, daqui a instantes, parecerá nunca
ter existido.

4
"Letras são animais que, depois de domesticados, apenas obedecem."
Micheliny Verunschk1

Não foi premeditado dar nomes de animais às seções deste memorial descritivo. Os animais
surgiram depois que comecei a escrever, após perceber que não conseguia obedecer nem a
uma cronologia, nem a uma divisão temática.

O texto não se trata de uma fábula, mas após o feito, é inevitável pensar em como, ao falar
de bichos, falamos deles, de nós, das distâncias entre uns e outros e dos pontos de contato
e contágio entre as espécies. Logo que Rosa nasceu, terminei um artigo de que gosto,
chamado “Cães e Preconceito”2. Nele, trato de colocar em diálogo minha experiência na
África do Sul como visita a acompanhar os movimentos de luta por terra e como leitora de
Cotzee3. Nele, os cachorros são mediadores inescapáveis para pensar, como alerta Njabulo
Ndebele, os limites que o racismo e a segregação impõem à imaginação e à arte naquele
contexto4.

Neste memorial, os cães voltam a surgir, mas numa versão menos domesticada ainda.
Recorro ao vira-latas. Por ora, diria que por pura identificação pessoal com esses bichos
andarilhos, sem paradeiro, sempre chafurdando no que surge de novo. O vira-latas foge do
domínio do doméstico, do domesticado. Logo, não obedece. Ou melhor, obedece às
contingências da vida, mas não a um dono ou a um tutor, como se diz atualmente. Sua
andança deriva dessa intolerância à figura do senhor. Aqui, o vira-latas não obedece sequer
à economia do texto, nele ocupando muito mais espaço do que o destinado aos outros
animais.

Para os demais bichos a que recorro, nem faz sentido falar em obediência. Porcos, galinhas,
cabras e ovelhas são animais de criação, mas não exatamente domesticados 5. Esses animais
1
Agradeço à minha comadre Vanessa Pontes pela indicação desta e de outras leituras.

2
Cães e preconceito na África do Sul: um diálogo entre literatura e etnografia. Horizontes
Antropológicos, v. 23, p. 225-252, 2017.

3
Refiro-me especialmente ao romance Disgrace, de J. M. Coetzee, de 1999.

4
Ndjabulo Ndebele (2006). Rediscovery of the ordinary: Essays on South African literature and culture.
Durban: University of KwaZulu-Natal Press.

5
Hoje sou professora no CPDA, onde há pouco dei uma disciplina em que reuni antropologia e animais –
para ser de interesse para mim e para estudantes de graduação. Alguns textos do programa certamente
inspiraram esse meu movimento em direção aos indóceis bichos de criação, nem selvagens, nem
domesticados. Cito dois. O artigo de minha colega Carmen Andriolli e Luzimar Paulo Pereira intitulado “Os
dilemas da criação” (2016) e o trabalho de Marilia Floôr Kosby sobre a criação de cabras para terreiros
urbanos. A última autora aprende com pastores quilombolas que é preciso seguir as cabras de longe, sem
cerceá-las. Como professora e pesquisadora, seja no campo, na sala de aula ou em orientaç1oes, acho que
sempre prezei por relações assim, que equilibram atenção e liberdade.

5
estão num entre, num aquém: nem ficam na zona do moderno, do urbano, do industrial, do
pet shop, nem na floresta. São bichos da roça. Obviamente, podem ser confinados em
plantation. Podem ser torturados e cerceados para crescer o mais depressa em direção à
morte. Mas essa existência não se deve, como diz Clarice Lispector, à falta de inteligência e
tampouco tem a ver com a sua natureza, e, sim, com a do senhor, a quem, reitero, não
obedecem6.

A roça que existe nesses bichos mora em mim. Algo que vem de família. De uma vida de
meus ancestrais que há pouco tempo transcorria na terra. Como disse, nem a cidade nem a
terra da floresta, muito menos na fazenda, mas na roça. Roça que também é uma dessas
coisas que parecem não mais existir.

Colocá-los aqui é me colocar aqui desta maneira, o que pode ser pouco usual. Ter um vira-
latas na sala de aula é um tanto perturbador para o ambiente acadêmico que se quer
moderno. Mas, quem já experimentou campi mais “rurais”, sabe que a presença de um
corpo canino no frescor de uma sala em dias de calor não é rara. Por vezes, muitos assaltam
o campus em matilhas. A situação insólita se radicaliza com porcos, galinhas e cabras. Por
isso, por conta do insólito, não posso garantir o efeito da leitura destas memórias em que as
ler.

6
Clarice Lispector. A vida íntima de Laura (1974).

6
A kid is a terrible thing to be, in charge of nothing. If you get past that and grown, it’s
easiest to forget about the misery and pretend you knew all along what you were doing.
Assuming you’ve ended up someplace you’re proud to be. And if not, easier to forget the
whole thing, period. So this is going to be option three, not proud, not forgetting. Not easy.
Barbara Kingsolver, Demon Copperhead, 2022

Porcos
O lugar onde fiz meu primeiro trabalho de campo só existe na memória de quem lá viveu
ou, como eu, por lá passou.

Em Porto Alegre chamavam-no de vila, mais especificamente Vila Dique. Um dique é uma
espécie de barragem de contenção de águas. Esta definição era tácita, mas não
problematizada, à época. Não me levava a pensar na noção de limite para aquele espaço,
em certas épocas do ano submerso em água, outras em névoa, dada a sua proximidade do
rio, no extremo norte da cidade. As casas, em uma linha que margeava uma rua asfaltada,
eram palafitas de madeira. Nos dias secos, o vão até o chão abrigava crianças, adultos,
cachorros e galinhas. A terra, craquelada sob os pés descalços. Sem contar a faixa de asfalto,
no alto do barranco, tudo era terra, poeira, lama. Os porcos também estavam por ali.

Os porcos povoavam o senso ético e estético das pessoas à minha volta na universidade, em
1992, quando ingressei na UFRGS. Há poucos anos (1989 – a areia corria mais lenta nas
ampulhetas de então) viera ao mundo o documentário “Ilha das Flores” 7. Na Vila Dique, as
pessoas adultas e as crianças trabalhavam como catadoras de lixo, papeleiras, fazendo
reciclagem sob suas casas e nos galpões ao redor. O asfalto que passava ali em frente não
era destinado às suas carroças e cavalos. Era para os caminhões que passavam: alguns em
busca de material reciclado, mas, a maioria, transportando carga no caminho que
circundava o aeroporto internacional 8. O trepidar das cargas sacudia as casas. A Vila Dique
também estremecia a cada rasante das aeronaves. Na pista de asfalto, de vez em quando,
acontecia um atropelamento, quando o tempo das travessias colidia nos seus propósitos:
uma criança brincando, um cachorro vagando, um motorista apressado.

Cheguei à Vila Dique com a chancela da UFRGS. Porto Alegre é uma cidade pequena, e as
credenciais acadêmicas, mesmo de uma estudante de graduação, tendem a abrir as portas,

7
“Ilha das Flores” é um curta-metragem dirigido por Jorge Furtado, de 1989.

8
Era um prenúncio dos grandes galpões e contêineres espalhados por um tentáculo do capitalismo
chamado de logística, que por ali se alastrariam, comendo as terras para “escoar” mercadorias na Vila
Dique.

7
especialmente de casas como aquelas, onde ninguém tinha contato com a universidade. Eu,
como se tornaria de costume, fui recebida por mulheres.

Havia casas e mulheres de todo jeito. Algumas mulheres pareciam despender toda a sua
energia na manutenção de um lar asseado, sem máculas, sem sinais do lixão. Outras
estendiam o barracão de reciclagem para o interior dos cômodos, acumulando pilhas e
pilhas de materiais valiosos num arranjo cujo princípio classificador parecia me escapar – já
que à época, eu acreditava, porque treinada para isso, que havia classificações minuciosas
por trás de todo arranjo.

Essas últimas eram casas onde as crianças pareciam brincar mais e ser menos advertidas por
fazerem arte. Naquele momento, além de Jorge Furtado, Pierre Bourdieu era figura
incontestável. Algumas casas eram aparentemente como o mundo ao redor, outras o
invertiam. Isso quer dizer que tudo, absolutamente tudo dizia respeito a classificações, não
restava dúvidas. As teorias cartesianas, um pouco amarguradas com o capitalismo, mas
incapazes de abrir mão do que se chamava moderno, eram, noutra palavra da época,
hegemônicas. Bastava um analista arguto (ou desencantado, como se dizia, tendo como
outra fonte de inspiração Max Weber, vejam só!) para que a “ordem” das coisas fosse
revelada e, em seguida, estampada num gráfico com eixos x e y. Os computadores
chegavam ao campus e os programas faziam de dados qualitativos algo mais confiável por
meio de sua transmutação em tabelas. Não era estatística, não tinha relevância estatística −
era o que nos dizia o professor desta disciplina. Mas nos iludíamos. Era uma forma
inebriante de “fazer ciência com rigor”, congregando grandes conjuntos de pesquisadores
com financiamentos nada negligenciáveis.

Anos depois, não muitos, durante o trabalho de campo para minha dissertação de
mestrado, eu encontraria os limites dessa dicotomia analítica (o mundo às avessas e o
mundo avesso à modernidade). Encontrar não implica dizer que conseguiria me livrar dela.
Nem o meu, nem outros tantos trabalhos acadêmicos e de organizações não
governamentais (este termo do pós-guerra) que eu passaria a conhecer a partir daquele
momento. Minha própria dissertação, se por um lado refutou dicotomias, por outro as
reiterou, a ponto de os técnicos da cooperativa que me receberam terem enviado uma carta
de repúdio aos IFCH da UFRGS, questionando minhas assunções sobre suas práticas
clientelistas e, no limite, alinhadas com os reassentados brancos (colonos) 9. O diretor dessa
ONG viria futuramente a fazer um mea culpa a respeito da carta, reconhecendo seu viés e,
quem sabe, seu racismo contra os chamados caboclos. E eu reconheceria meu purismo em
relação a práticas clientelistas como ingênuo e não menos autoritário, o que me ajudou
muito na construção dos problemas de minha tese de doutorado10.
9
Narro este episódio no capítulo Antropologia em Segredo (pseudônimo muito eloquente que adotei
para a localidade de Mangueirinha), publicado na coletânea Dinâmicas da Cidadania.

10
Tempo de Brasília: etnografando lugares-eventos da política. Universidade de Brasília (2003).

8
No reassentamento de atingidos por barragem, em Mangueirinha (PR), onde fiz meu
trabalho de campo para o mestrado, haveria um embate entre os modos de vida dos
caboclos (indígenas?) e dos colonos (colonos), antecipado nas conversas e nos escritos do
professor Ivaldo Gehlen, que me convidou para fazer pesquisa com ele neste lugar. Em
1997, a vida dos primeiros não era dedicada a ocultar a destruição causada pela barragem
que os tirou da beira do rio e os jogou naquele planalto gélido e árido. Já os segundos se
empenhavam com afinco a livrar o interior e os arredores de sua casa de elementos que
remetessem a uma vida de penúria, dedicados ao cultivo da soja que lhes era imposto,
como se fosse uma escolha, um anseio há muito nutrido.

“A comunidade de Arcano vivia espraiada pelas margens do rio Iguaçu,


cultivando suas parcas terras, até que, no ano de 1992, estas foram alagadas
para a formação do reservatório de uma usina hidrelétrica. Este evento marcou
o início do processo de reassentamento destas famílias, promovido pela
companhia elétrica estadual. Reagrupadas numa fazenda localizada numa
região de planalto (cento e vinte quilômetros distante da margem do rio), estas
famílias viram-se compelidas a reinventar seus modos de representação
política. Mesmo lhes impondo um modelo associativo de representação, a
companhia elétrica não pôde controlar o rumo da disputa faccionalista que daí
emergiria. Esta dissertação procura, através do método etnográfico, analisar a
imbricação entre este faccionalismo local e a prática civilizadora, tanto do
Estado quanto das organizações não governamentais que se ocupam em ‘levar
o desenvolvimento’ a esta população deslocada.”

Resumo da dissertação defendida em 1999

No reassentamento, fui à casa da família de “caboclos” inspiradora de uma anedota que


corria à boca pequena. No vaso sanitário haviam plantado uma flor (antúrios, salvo engano).
Faziam cocô em uma casinha/latrina. Na Vila Dique, havia banheiros em algumas casas. Em
outras, também casinhas. No Recanto das Emas, onde fiz o campo para meu doutoramento,
havia banheiros e casinhas. Banheiros nos lotes mais estabelecidos, casinhas nas chamadas
invasões. Quando decidi viver no Recanto, meus anfitriões alugavam uma casa nos fundos
de um lote onde havia outras duas residências (chamadas barracos, mas de alvenaria). Havia
um banheiro em cada uma delas, o que as tornava residências independentes, discretas, e
seus moradores, “decentes”11.

11
O paper Habitação precária, gente promíscua: a branquidade-heterossexualidade do Estado via política
habitacional foi apresentado no encontro da ANPOCS em 2021. Resulta de reflexões minhas e de meus ex-
orientandos e companheiros de com-fabulações, Stella Paterniani e Gustavo Belisário, a respeito da
categoria “moradia decente”. Este trabalho está sendo revisto e traduzido por nós para um dossiê para a
revista HAU.

9
Somente na África do Sul eu ouviria falar de uma toillete war, sobre a qual escrevi, mas
nunca cheguei a publicar12. Jacques Depelchin13, acho que após ler algo meu, comentou que
nos anos 70, na efervescente Dar Es Salaam, evitava ir ao banheiro na universidade.
Discutia-se o projeto socialista contracolonial de Julius Nyerere, mas não se tocava no fato
de que o pensamento revolucionário de alguns dependia de banheiros com água corrente 14.

Na UnB, ou agora em Seropédica, ando sempre com um rolo de papel higiênico em minha
bolsa. E lenços umedecidos, se possível. Mesmo antes da pandemia, também álcool em gel.
São gestos cotidianos, pequenos, essas tentativas de colonos higienistas de manter suas
noções de asseio, de decência. De se afastarem dos porcos. E, quando se trata da
universidade, de evitar o enfrentamento corpóreo, visceral, com a plantation cognitiva que
habitamos15.

Hoje não penso mais que se trata de dois mundos, um o avesso do outro. Creio que sejam
de fato dois mundos, ou melhor, vários mundos, com seus próprios termos. Penso, enfim,
que demorei muito − ao estudar Ciências Sociais e, em especial, Antropologia − a me dar
conta de que me interessei tempo demais pelo mundo menos interessante. Mesmo fazendo

12
Este trabalho sobre a Toilette War foi apresentado no Max Planck Institute for Social Anthropology, em
Halle/Saale, em 2015. Quem me convidou foi Aleksandar Bošković, que tinha sido meu mitwohner em
Brasília, quando fiz meu doutorado. A ideia do evento era revisitar African Political Systems, de Fortes e
Evans-Pritchard, publicado em 1940. Sasha, como é conhecido, convidou a mim e a vários colegas, sem
saber, creio eu, que qualquer contribuição iconoclasta seria ferozmente aniquilada. No ano passado, em
2022, finalmente saiu o livro resultante deste seminário, intitulado African Political Systems Revisited.
Changing Perspectives on Statehood and Power, organizado por Aleksandar Bošković e “Herr Professor”
Günther Schlee, prefaciado por Adam Kuper. Há apenas um autor africano negro no volume e uma mulher
branca. A presença majoritária de homens brancos e seniores diz muito sobre o universo “africanista”,
marcado por uma dinâmica no geral condescendente e hermética que, literalmente, torceu o nariz quando
lhes falei do racismo persistente e visível na violência dirigida a quem reivindica igualdade também no
tratamento de nossos excrementos.

13
Jacques Depelchin, nascido na República Democrática do Congo, é o autor de Silences of African
History, cuja tradução, comandada por Claudio Pinheiro, há anos queremos publicar no Brasil. Jacques tem
sido um interlocutor muito inspirador. Suas passagens e estadas mais longas pelo Brasil – com base em
Salvador, no geral – permitiram que o convidasse para ir a Brasília, onde generosamente compartilhou sua
sabedoria com estudantes e colegas da UnB. A companheira de Jacques, Pauline Wynter, nascida em
Barbuda, participou ativamente em algumas dessas ocasiões, sendo ela também uma acadêmica que
transita nas ciências sociais, a partir de preocupações com questões ambientais em territórios tradicionais.

14
Em 2022, examinei a tese de doutorado de Minga Kongo, orientada pelos meus colegas e grandes
colaboradores Francis Nyamnjoh e Horman Chitonge, o primeiro nascido nos Camarões e o segundo na
Zâmbia. A tese trata da vida sem água ou com pouquíssima água, em meio à merda líquida em Khayelitsha,
durante a pandemia de Covid-19. Recentemente, recomendei para a Etnográfica que o trabalho de Kongo
figurasse numa nova seção sobre diários de campo. Meu trabalho na Etnográfica há mais de uma década
tem me possibilitado conhecer em primeira mão exercícios etnográficos muito diversos, feitos em
contextos alheios ao da institucionalização acadêmica brasileira, ainda que muitos dos autores que enviem
manuscritos para a revista provenham do Brasil.

15
Em um artigo intitulado Very Rural Background, expando esse argumento, a partir de um
entrecruzamento de minha experiência de pesquisa e docência no Brasil e na África do Sul, à luz de uma
trilogia da escritora zimbabuana Tsitsi Dangarembega. Farei outras alusões a esse trabalho ao longo do
texto.

10
incursões ao lote (ao plot de que nos fala Sylvia Wynter), olhava tudo com os termos da
casa-grande16. Casa-grande que nunca tinha sido minha casa, mas que eu emulava para
adentrar os muros universitários e lá dentro ficar. Muitas pessoas que estiveram ao meu
lado ao longo desses anos foram expulsas da academia, com repulsa e desdém. Há muito
pouco do que se orgulhar. E muito a transformar.

16
Sylvia Wynter. Novel and History, Plot and Plantation (1971).

11
Vira-latas
O lixão e a iminente remoção da Vila Dique eram o assunto de que queriam falar as pessoas
de lá com as da universidade: comigo e com meus colegas que andávamos por ali com
nossos gravadores e pranchetas em punho. Porém, a pesquisa não era sobre isso. O projeto
que tinha recursos nunca antes vistos no IFCH era sobre HIV e Aids − a epidemia da época,
que pautava a imaginação.

Eu estava na base de uma pirâmide que reunia muitos pesquisadores sob o comando da
professora Ondina Leal. Como mulher e jovem, meu trabalho era adentrar os lares e
conversar com outras mulheres, no geral, tão jovens quanto eu, chefes de família. Não havia
muito tempo e, mesmo sem grande intimidade, era preciso falar de sexo. O alvo da pesquisa
era a vida sexual das pessoas. Por meio de um survey – acreditava-se – se chegaria a
algumas hipóteses de intervenção.

Lembro-me das caminhadas para chegar às casas, pois os ônibus que passavam na tal rua
asfaltada eram escassos. Lembro também de um croqui de um corpo. Uma silhueta
eviscerada. Às mulheres que me recebiam, quase todas com “baixa escolaridade”, eu
surpreendia não só lhes perguntando sobre sexo anal, como lhes dando lápis coloridos e
lhes pedindo que desenhassem seus órgãos reprodutivos. Com Janie Kiszewski Pacheco
escrevi meu primeiro artigo, publicado em 1997, que também apresentamos na ANPOCS.
Primeira ANPOCS. Nele comparávamos os “dados” das entrevistas sobre práticas sexuais das
“camadas” populares com as “camadas” médias. A conclusão reiterava uma divisão de
mulheres pobres como violentadas e dominadas, e mulheres abastadas como autônomas e
sensuais. Nossas entrevistas eram somente com pessoas que se declaravam heterossexuais
e cisgênero − terminologia que na época nem sequer era acionada. A contrapartida para os
homens era de pobres violadores, em oposição a homens criativos e carinhosos.

Acho importante recuperar ipsis litteris o que aventava naquele momento para explicitar
uma mudança de rota que não foi óbvia. Naquele momento em que o Partido dos
Trabalhadores conseguia seu terceiro mandato consecutivo e os projetos civilizacionais para
a classe “trabalhadora” iam de vento em popa, o apelo político para uma antropologia
engajada era consensual para a esquerda branca porto-alegrense. O constrangimento
daquela época nunca mais me deixou. As perguntas que martelavam na minha cabeça então
continuam ressoando até agora. São perguntas que a Antropologia não responde, pois, se o
fizesse, deixaria de existir, como bem sustentou Archie Mafeje − este pesquisador sul-
africano que tanto me inspira e do qual tomei conhecimento fora da África do Sul, nas
conversas com o saudoso Sam Moyo, uma pessoa de erudição inesgotável, sem nenhuma
afetação.

12
Mafeje se pergunta: como ousamos escrever sobre alguém que conhecemos menos do que
a nós mesmos, a respeito de temas que tampouco dominamos? 17 Eu sabia muito pouco de
sexo e até hoje não saberia quais são meus órgãos reprodutivos e onde estariam no meu
ventre. Mas líamos Michel Foucault, Pierre Bourdieu. Livros como “A História da
Sexualidade”, “A Dominação Masculina”, “As Palavras e as Coisas” o que faziam era produzir
uma espécie de salvo-conduto colonial. Por duas vias: por um lado, jogávamos a gênese do
problema para um passado que era condição da modernidade; por outro lado, separávamos
nossas inquietações de ordem ética num domínio dito médico. Enquanto não estivéssemos
fazendo experimentos com os corpos das pessoas, tudo bem. Aquela abordagem
escrutinadora não era considerada de natureza semelhante. Estávamos a salvo usando o
jaleco invisível da ciência social.

Naquele exato momento, os computadores mudaram de cara. Apareceu algo revolucionário


em nossas vidas: o sistema operacional Windows. E o grande frenesi era transformar
aquelas entrevistas e aqueles desenhos em números. Tabular os dados, como se dizia. E
com aqueles algarismos construir gráficos em que o mundo se dividiria em quatro
quadrantes. A palavra de ordem era hierarquia. Havia o positivo e o negativo, no eixo x e no
eixo y, na horizontal e na vertical. Porém, como dito, ainda lembro aquelas críticas de quem
não se aventurava como turista pelo universo das provas numéricas: não era estatística,
não tinha relevância estatística. Mas não ligávamos para a crítica. Os debates do grupo de
pesquisa eram hipnóticos, pelas leituras e pelos mapas.

E eram também vexaminosos. Invariavelmente comentava-se com tom de comiseração ou


de escárnio algo que tínhamos presenciado em nossos trabalhos de campo. Como o mundo
das vilas não era exótico para mim, eu falava pouco desses “choques culturais”. Lembro-me
de minha mãe colocando inseticida no meu cabelo para matar os piolhos que eu tinha
adquirido na pesquisa. Não era a primeira vez que ela passava um pente fino nos meus
cabelos. Sua surpresa talvez viesse do fato de não esperar que isso voltasse a acontecer
quando sua filha se tornasse adulta, universitária.

Um dia eu viria a saber, com Mariza Peirano e, depois, com Archie Mafeje, que estamos
sempre fazendo etnografia. Mariza e Mafeje não têm o mesmo entendimento sobre tal
afirmativa. Trata-se de uma equivocação que procuro controlar aqui nestas páginas18. Ainda

17
Em um artigo que menciono mais adiante (ABorges, ACosta, GBelisario, MCirne, NLima, TViana e
SPaternini. Pós-Antropologia: as críticas de Archie Mafeje ao conceito de alteridade e sua proposta de uma
ontologia combativa. Sociedade e Estado, v. 30, p. 347-369, 2015), apresentamos a um público leitor no
Brasil uma síntese de algumas das ideias de Archie Mafeje, tais como ontologia combativa e interlocução
autêntica.

18
O diálogo e os escritos de Marisol de la Cadena e Eduardo Viveiros de Castro a propósito dessa
formulação – equivocação controlada – já têm algum tempo, mas seus efeitos positivos continuam
marcando minhas reflexões sobre a pesquisa de campo e também o espaço da sala de aula.

13
assim, ambos me ajudam a refletir sobre minha passagem pela Vila Dique ou pela Vila Dique
que em mim se atravessou. Não era a primeira vez que eu via, nem a última que eu veria
mulheres como aquelas – nem mesmo os piolhos. Os problemas daquelas mulheres me
intrigaram. A casa delas era muita coisa, no entanto, de volta ao campus, as “ferramentas”,
como se dizia, esquartejavam a experiência em duas ou, quando muito, em quatro 19. E, para
as mulheres, tudo ficava circunscrito a um lugar débil, em oposição ao seu par forte: o
privado em luta contra o público. Eu me daria conta de que ao caminhar junto com as
mulheres, ao sair de suas casas, eu escaparia da polarização público/privado, rua/casa.
Demoraria, no entanto, para isso acontecer.

“Um objeto aqui, outro ali, e as conversas encetadas a propósito dos mesmos,
conduziam a mim e a minhas anfitriãs para lugares e tempos que estavam
muito além das quatro paredes que nos cercavam. Percebi que as casas, assim
como as pessoas que nelas habitam, se estendiam, se replicavam, se
multiplicavam. Povoadas por entes tangíveis – fossem humanas ou não – e por
sujeitos aos meus olhos não visíveis, as casas se constituem não apenas como
palco de controvérsias, como o indica a literatura mais voltada aos problemas
de moradia. As casas são agentes dotados de qualidades que, junto às pessoas
que nelas vivem, e que por elas passam ocasionalmente, conformam uma
composição inaudita, perceptível apenas quando somos convidados a nelas
adentrar.” 20

A outra primeira pesquisa antropológica que fiz também teve mulheres como
interlocutoras. Outra primeira porque, por um lado, como dito, como qualquer um, sempre
fiz etnografia; por outro, não lembro ao certo qual antecedeu qual ou se se deram em
concomitância. Fiz iniciação científica com o professor Ruben Oliven. Primeira bolsa do
CNPq. O projeto dele era sobre identidade gaúcha. Meu trabalho consistia em ler
monografias do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Um trabalho de arquivo. Eu fazia
resumo de pesquisas amadoras, realizadas por mulheres que se dedicavam a falar de
assuntos muito diversos: de chás, ervas e suas aplicações a bordados e tecelagem. Era,
como o nome diz, um arquivo de pesquisas folclóricas, que existia em paralelo à vida e à
investigação universitária.

Não lembro que títulos aquelas pessoas recebiam ao fim de sua formação, mas o certo é
que suas pesquisas eram, no geral, ricas em detalhes e suas descrições muito inspiradoras.
Num desdobramento desse projeto, por generosidade do orientador, fui fazer campo corpo
a corpo. Em sua companhia, fomos a uma cidade chamada Santa Cruz do Sul, entrevistar
lideranças de um movimento separatista que, hoje, chamaríamos também de fascista. Senti
náuseas na estrada para chegar lá, como que prenunciando as revoltantes afirmações de
19
Este trabalho resultou no primeiro artigo acadêmico que publiquei, em autoria com a colega Janie
Pacheco, intitulado Entre saber o que se pensa e pensar sem pretensão: discursos e representações de
camadas médias e populares sobre sexualidade. (Porto Alegre: Corpus. Cadernos do Nupacs, 1997).

20
Mulheres e suas casas: reflexões etnográficas a partir do Brasil e da África do Sul. Cadernos Pagu, v. 40,
p. 197-227, 2013.

14
supremacia branca que escutaria. Nunca mais voltei. Talvez tenha entendido que só poderia
fazer pesquisa com pessoas de quem gostava. No entanto, no futuro, as pessoas de quem
eu gostava estariam sempre cercadas de inimigos, com os quais eu também teria de
conversar.

No reassentamento de Mangueirinha, fui assediada de forma violenta por um homem


repugnante, de tez avermelhada, que representava os interesses do governo estadual e da
companhia paranaense de energia. A organização não governamental que administrava o
projeto de reassentamento fizera um workshop num hotel que ficava nas instalações de
uma das várias usinas hidroelétricas na região. No meio da noite, acordo com minha porta
sendo esmurrada pelo homem que queria entrar à força no meu quarto.

Em Kwazulu-Natal, fazendeiros brancos conversariam comigo sobre a perturbação que os


moradores de fazenda traziam às suas propriedades, em busca de minha solidariedade
racial com suas frustrações no pós-apartheid.

“O senhor Impendle se recusava a aceitar o acordo [...] enquanto o fazendeiro


branco não ressarcisse com o gado que lhe fora roubado. Os técnicos do
Departamento de Land Affairs sabiam o que as cabras significavam [...]. O
fazendeiro branco era o único a reclamar: ‘Você sabe, essas reuniões de
africanos... eles não conversam durante meia hora e ponto, levam horas e
horas...’. O fazendeiro, que mal me conhecia, não demorou a afirmar, baseado
numa presumida semelhança entra a cor de nossa pele, que eles – os africanos
– não pensam como nós.”21

Numa ocasião, entraria ao cair da noite numa fazenda, acompanhada por Gcina Shabalala,
sob uma chuva torrencial. Ele, já falecido – como tantos outros, precocemente –, era uma
das lideranças do Landless Peoples Movement. Tinha nos levado naquele dia a visitar
casebres de barro pulverizados com veneno. Testemunhávamos uma tática de despejo
usada pelo proprietário que tinha sua fazenda reivindicada pelos moradores.

O dono das terras nos recebeu com o ladrar violento de cães e uma espingarda empunhada.
Encharcados, respondi ao inquérito do fazendeiro dizendo que éramos turistas a fazer um
passeio pelas cênicas Meadowlands. Insisti que Gcina tinha gentilmente nos auxiliado a
chegar ali, que nosso carro estava atolado e que precisaríamos da ajuda de um trator.
Depois do resgate, presenteamos o fazendeiro com uma garrafa de cachaça que trazíamos
no porta-malas.

Fui muitas vezes resgatada de atoleiros. A poeira, a lama e o asfalto seriam minha
companhia enquanto eu estivesse andando nos meus trabalhos de campo.

21
Trecho extraído e editado do capítulo Uma propriedade, diversas propriedades: etnografia,
comparação e a distribuição de benefícios públicos no Brasil e na África do Sul In: Brasil em Perspectiva
(2010).

15
A viscosidade fóssil do asfalto e sua capacidade de cobrir outras formas de calçamento das
vias por onde perambulam as pessoas e seus anseios voltariam a me sondar de forma
desafiadora quando fiz minha tese de doutorado. O asfalto seria o índice da hegemonia de
um tempo sobre os demais. É difícil não afirmar que onde o asfalto vence, nada mais viceja.
O petróleo esparramado como um filme plástico que veda a superfície da terra, impedindo-
a de respirar. O ideário da via sem solavancos, por onde se passa rapidamente, solapando
possibilidades de deambulação mais lentas e menos estáveis. O asfalto soterra e produz um
esquecimento do que houve antes e um esquecimento do que se avizinha. Desejado porque
previsível, é só na ruína do asfalto que o protagonismo da terra tem alguma chance de
emergir.

No mesmo reassentamento no sudoeste paranaense, graças à terra falar mais alto, aos
charcos e à necessidade de um trator, fui acolhida em casas onde pude me tornar
relativamente íntima das pessoas. Tão íntima quanto uma visita pode ser 22. O trabalho de
campo para mim nunca passou de uma visita breve. O que falo dessas experiências fugazes
tem a mesma imprecisão que marca outros relatos de viajantes. Reconhecer que não vivo a
vida dos que me recebem, dia após dia, mas que apareço eventualmente para visitá-los e
leio o que deles contam outros que por lá eventualmente estiveram é imperativo. Os limites
de certas pretensões antropológicas se tornam mais nítidos, bem como os contornos, a
silhueta, dessa figura incompleta, que pensamos conseguir compor ao longo de anos em
que nós, igualmente, nos transformamos em outra coisa.

No final dos anos 90, escrevi minha dissertação de mestrado. Morava no Rio de Janeiro, pois
Marcelo fazia seu mestrado aqui. Quando pesquisei sobre a história do sudoeste do Paraná,
deparei com relatos de viajantes. Após ler suas obras na Biblioteca Nacional, cheguei a
cogitar em fazer uma tese de doutorado sobre Saint-Hilaire, que tinha em 1822 classificado
a erva-mate como Ilex paraguariensis, em suas andanças por aquelas terras para onde a
colonização e a plantation avançavam. A imprecisão dos relatos de alguns viajantes não os
tinha impedido de se tornarem referências onipresentes, em alguns casos, consideradas
incontornáveis. No caso específico do sudoeste paranaense, a perenidade da chave analítica
caboclos versus colonos era o que mais me chamava atenção.

Assim como na Vila Dique, a iminência do desaparecimento das pessoas e dos lugares (as
vanishing cultures) era contraditada pela persistência das análises, das “classificações” do
mundo – por um lado e, por outro, pelas próprias pessoas e lugares, que ocupariam outros
espaços. Não se tratava da mesma coisa, mais uma vez. O desafio parece ser identificar a
diferença. No aeroporto Galeão, depois de ter lhe dado uma carona, minha colega de turma
Carmen Silva tentava explicar o extermínio do povo Xetá − tema de sua tese de doutorado −
22
Procurei explorar essa relação entre o entendimento de minha presença como de uma visita e a de
meus interlocutores como anfitriões no artigo Hospitalidade e Antropologia na África do Sul
Contemporânea. Outros Tempos, v. 12, p. 207-226, 2015.

16
para minha sobrinha ainda criança. Júlia retorquiu: − Mas gente não se extingue, se
extingue? Essa seria a base das conversas de orientação que eu teria com Eliane Umutina, a
última aluna que tive na Universidade de Brasília e a primeira mulher indígena a defender
um doutorado naquele programa de pós-graduação23.

Essa possibilidade de as coisas melhorarem após terem piorado muito, como diz novamente
Jacques Depelchin, ou de resistirem após terem sido aniquiladas, é muito misteriosa. Por
conta desses encontros, fui me interessando por pessoas que se dedicam a solucionar tais
enigmas. Dos enfrentamentos que experimentam, o de ser removido e promover o que se
chama hoje de retomada me levou a abrir minha percepção para esses “nós do mundo” em
uma qualidade que não se resume à de alteridade24.

Eu tinha lido sobre as ervas naquelas monografias escritas pelas de moças de fino trato que
se formavam no Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. Em Mangueirinha, com as famílias
de caboclos, presenciei o fluxo de pessoas que vinham de longe − alguns, endinheirados das
cidades grandes, em busca de alívio para seus males. Havia um curandeiro no
reassentamento; à época, não tive recursos cognitivos para reconhecer como um xamã. Ele
notou minha perturbação quando o visitei. Era sensível à morte e aos mortos.

Numa prova no mestrado, escrevi, à mão, o esboço de um artigo. A questão respondia ao


clássico “A prece”, de Marcel Mauss. Em meu texto eu tratava da carvoaria que “lindava” o
reassentamento. Lá vivia uma família ao menos. Lembro-me do pai e da mãe jovens. Ele
gordo, ela esquálida. Não eram colonos, logo, pendiam para ser tomados como caboclos.
“Muitos” filhos. Conhecia-os de outras ocasiões. Na proximidade da carvoaria, havia uma
venda onde se compravam mantimentos. Naquele dia fui com a cozinheira da associação,
também uma assentada, ao enterro de um de seus bebês, que tinha nascido há pouco
tempo. O caixãozinho resplandecia num cômodo daquela casa de madeira em que tudo era
coberto de fuligem: das árvores queimadas nos fornos ao redor. A professora Ondina ficou
meio sem palavras diante de tanta dureza. Não lembro se foi recomendação dela, mas
cheguei a um livro badalado na época, que me causou imenso asco. Ao mesmo tempo,
deparei com uma resenha crítica sobre este livro, publicada por Lygia Sigaud em 1995 25.

23
Eliane Boroponepa Monzilar. Aprender o Conhecimento a partir da Convivência: Uma Etnografia
Indígena da Educação e da Escola do Povo Balatiponé-Umutina. Tese de Doutorado. Programa de Pós-
Graduação em Antropologia, Universidade de Brasília, 2019.

24
Em 2014, organizei com Olivia Cunha uma GT na RBA de Natal intitulada Entre nós: perspectivas
etnográficas sobre materialidade e temporalidade. O bom número de trabalhos apresentados e a qualidade
no debate me deram a sensação de que havia colegas com quem eu poderia construir alianças criativas
para seguir em frente por essa vereda que se abria à minha frente.

25
Lygia Sigaud. (1995). “Fome” e comportamentos sociais: problemas de explicação em antropologia.
Mana, 1(1), p. 167-175.

17
Novamente, como ainda aconteceria vezes sem fim, eu me indignava com a presunção, com
a ousadia de se tecer afirmações sobre os sentimentos alheios. O que estava em jogo no
caso era a tristeza de mães que perdiam filhos “feito moscas”. A autora do livro afirmava
mais ou menos que esse sentimento já tinha secado, assim como as terras áridas que
cultivavam. Lygia exigia precaução. Por isso gostei. Eu mal sabia que resenhas
verdadeiramente críticas eram algo muito raro no meio editorial brasileiro.

Na década seguinte, conversaria com Lygia sobre nossa experiência na África do Sul. Vários
tentáculos nos deram gentis empurrõezinhos para chegarmos até lá. Um deles foi Camila
Moreno, que fez as pontes com a Via Campesina, o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra e o Landless Peoples Movement. Outro foi Lygia, que junto com outros colegas (o
mais eloquente, Carlos Vainer, do IPPUR), armou uma rede de cooperação com colegas sul-
africanos. O ambiente era propício: era Lula, BRICS, recursos financeiros. No entanto, nada
disso teria me atravessado e me fisgado se não fosse a generosidade pouco alardeada de
Lygia. Lygia refletia sobre a presença dos espíritos e dos ancestrais no cotidiano dos
trabalhadores sem terra na África do Sul. Nós divergíamos sobre sua qualidade. Assim como
Marcel Mauss, em “A prece”, ela afirmava que eles acreditavam nisso. Era sua crença –
deles, dos outros. Eu insistia que não era uma crença, mas uma presença – tão tangível e
real quanto qualquer outra coisa que nossa percepção era capaz de entender como real.
Divergíamos, mas conversávamos.

Se pudesse voltar no tempo, recuperaria uma conversa entre duas de minhas anfitriãs no
reassentamento em Mangueirinha. Ambas, embora mortificadas, tinham interpretações
distintas sobre o ocorrido. A primeira dizia que o bebê tinha morrido "porque eram
gêmeos". A segunda, que passava na carvoaria para amamentar o bebê (pois havia parido
há pouco também), afirmava que o problema era a desnutrição e a imundice do lugar. A
primeira não era “de origem”, a segunda era uma “colona”. Na época, não tive meios de me
dedicar ao que estava em jogo, para além do plano cartesiano, e esboçar uma oposição
culturalista.

Lygia tinha apreciado minha couraça – vou chamar assim – no momento em que fui
entrevistada por todos os professores do PPGAS do Museu Nacional para uma vaga como
bolsista Prodoc (Programa Nacional de Absorção Temporária de Doutores/Capes). Quando
terminei meu doutorado, em fevereiro de 2003, os concursos começaram lentamente a se
multiplicar. Enquanto não fui aprovada num, aproveitei uma brecha que permitiu, mesmo
que de modo momentâneo (de março de 2003 a outubro de 2005), a entrada de uma
outsider no prestigioso, elitista e monárquico programa da Quinta da Boa Vista, em
detrimento de uma prata da casa.

É curioso pensar hoje nas armaduras que vesti na academia – e neste personagem meio
belicoso, meio quixotesco que as acompanhou – e na total falta de “blindagem” com que

18
me entrego às situações de pesquisa. Essa era a observação do xamã Zé Maria a meu
respeito. O curandeiro do reassentamento evocava e acionava sua ancestralidade indígena.
Os textos de viajantes pelos quais me interessei e a historiografia do lugar – especialmente
tratando da Guerra do Contestado − eram pródigos em relatos sobre monges (João Maria,
José Maria). No sudoeste do Paraná esses conhecimentos xamânicos cruzavam e
embaralhavam as linhas divisórias entre caboclos e colonos. Esse senhor assistia o
sofrimento de seus vizinhos e conhecidos mais próximos, mas também o dos fazendeiros,
do povo vindo da cidade, de longe – como eu, talvez. E ele estava no enterro do anjinho.

Por alguns anos, a armadura parece ter sido o lugar onde mais morei. Só assim posso
explicar meu interesse em escrever sobre faccionalismo político na minha dissertação,
deixando guardado, para um depois que nunca existiria, o manuscrito da minha prova sobre
a morte do anjinho no Reassentamento. O mesmo se deu com as reflexões sobre a relação
tensa e complicada que as assentadas tinham com as formigas − uma problematização
sobre relações multiespécies que eu não chamaria de avant la lettre, a despeito do
sequestro epistêmico em que vivíamos, dada a limitação de referências bibliográficas à
nossa disposição naqueles tempos sem internet.

“Seu José perguntava ao técnico Carlos se não era possível aplicar o veneno
diretamente no formigueiro. ‘De jeito nenhum. A gente tem que vencer a
saúva pela disciplina’. Dona Lúcia, a esposa, que benzia crianças, parecia bem
mais descrente. Segredou-me: ‘Formiga é um bicho narquista (sic)’.” 26

Essa coexistência de interesses tão incomensuráveis em mim apenas espelhava o que se


passava na vida das pessoas que me recebiam. Havia a barragem, a enxurrada, a remoção
forçada, a burocracia e a desfaçatez do Estado, mas isso não era tudo. Eu iria por muitos
anos escrever sobre política, sobre governos e Estado e, ao mesmo tempo, contra tudo isso.
Aqui e ali, tive ocasião de escrever também sobre outros entes importantes com quem as
mesmas pessoas se relacionavam: os sonhos, os animais de estimação, de criação, os
ancestrais, as roças, as casas.

Eu entenderia, ou melhor, colocaria em palavras, na minha tese de doutorado, essa peculiar


combinação de tornar-me menos antropóloga à medida que mais me enfronhava na
disciplina. Havia o campo, esse terceiro que não deixava a relação de captura se estabilizar.
Lembro-me de ter colocado à porta de minha sala no departamento de antropologia na UnB
um quadrinho da Laerte em que um guichê demandava de alguém que ficasse do lado de
fora, parado, esperando. Tudo o que eu nunca admiti foi ficar esperando pela panaceia
estatal. Ou aceitar que “no, no se puede” − como escutei muito no México, onde me

26
Excerto retirado e adaptado do capítulo A nação contra a formiga: o uso possível da literatura nas
interpretações sócio-históricas de conflitos rurais no Brasil In: De Sertões, Desertos e Espaços Incivilizados.
Rio de Janeiro: FAPERJ/MAUAD, 2001, p. 51-64.

19
tornaria professora no Centro de Estudos Sociológicos e no Programa Interdisciplinar de
Estudos da Mulher do El Colégio de Mexico – Colmex, entre 2010 e 2012 27.

Voltando a falar de crença, não consigo ficar no mesmo lugar, a repetir um dogma. Vira-
latas. Porque não sou só eu e este altar de ícones à minha frente. O mundo ao redor me
cutuca. Isso ajuda no desembruxamento. Esse modelo, essa forma de pensar, eu aprendi
fazendo pesquisa ou vivendo com pessoas que se conduzem assim – levando adiante a
hipótese de que todo mundo faz etnografia e que as pessoas não só assim entendem mais
sobre o mundo, mas mais sobre si mesmas. Como alerta Mafeje, é bom lembrar que nem
todos os antropólogos fazem etnografia neste sentido.

Eu havia lido e ouvido sobre cobras e espíritos ancestrais. Em 2010, fui levada por Mangaliso
Khubeka até uma fazenda onde ficava um orfanato que fora incendiado na noite anterior.
Ao chegarmos, a dezena de crianças incineradas já tinha sido removida do edifício coberto
de fuligem. Como as demais pessoas presentes, estávamos atônitos. Ninguém derramava
uma lágrima. Ouvíamos do calor das paredes, dos escombros retorcidos, o eco dos gritos
daqueles que tinham virado cinza há poucas horas. A casa e as terras eram de brancos (logo,
terra usurpada), que abrigavam crianças negras numa edificação à parte. O alojamento
pareceria uma casa de conjunto habitacional, de township, não fosse pelas pesadas grades e
portas sanfonadas de metal que a deixavam com o aspecto de uma grande cela e pelos
vastos campos que a circundavam. Depois da troca de condolências e dos lamentos a esmo,
especulando sobre as possíveis causas e, quem sabe, motivações para o incêndio, saímos.
No caminho para o automóvel, uma cobra cruzou nosso caminho. Ficamos congelados. Ela
se deteve. Enroscou-se. Voltou-se para nós. Enroscou-se novamente. Sumiu. Mangaliso
relacionou essa aparição àquelas mortes trágicas. Precisaria consultar um especialista para
entender ao certo o que aquele encontro implicava. Talvez um sonho pudesse explicar o
ocorrido. O fato é que precisava passar por uma purificação, e só chegaria a isso com a
intercedência de ancestrais, como aqueles que enviaram a cobra.

Mangaliso não “acreditava” em ancestrais. Não no sentido de crença que a benevolência


analítica iluminista concede aos “outros”, mantendo intacto o abrigo universalista que a
protege. Mangaliso conseguia fazer o caminho de volta a lugares que tinham deixado de
existir. Ele me ensinou isso, e é por isso que ensaio um retorno à Vila Dique. Esses espaços
estavam lá, porque Mangaliso fazia o esforço de não os deixar desaparecer conforme o
planejado pelo projeto colonial e racista da conquista europeia, pelo nacionalismo do

27
Do meu tempo no Colmex, que foi breve, mas frutífero, quero destacar um painel no 110th Annual
Meeting da AAA, onde apresentei um paper intitulado Pluralitiy and Conviviality in South Africa: political
challenges to anthropologists and others. Salvador Schavelzon organizou a mesa. Meu colega do Colmex,
Nitzan Shoshan participou. Nossos trabalhos foram comentados por Michael Fischer. Esta mesa articulou
vários tempos e vínculos: Salvador tinha sido aluno no Museu, Nitzan era meu colega, e Mariza Peirano,
que intermediou a participação de Mike Fischer, era minha âncora em Brasília. Foi a primeira ocasião em
que testei os argumentos nascidos da pesquisa na África do Sul sobre funerais e luta pela terra, para uma
audiência de antropólogos fora do Brasil e não formada por africanistas.

20
apartheid ou mesmo pela “democratic dispensation”. Nesses espaços, nessas ruínas, ele
encontrava uma pletora de seres que sabiam muito e tinham muito a dizer. O que continua
a existir, o que não é soterrado com o moderno, pode ser retomado. Como a terra, que ele
tanto desejava ter de volta, para ele e seus companheiros do Landless Peoples Movement.
Como os ancestrais, dos quais não se deixava desgarrar. Uma tragédia daquela proporção –
o inferno das chamas consumindo várias pessoas, entre elas, uma dezena de crianças –
convocava as testemunhas a fazerem perguntas e a irem em busca de respostas.

Alguns diriam que Mangaliso se tornaria councillour/vereador em Newcastle (província de


Kwazulu-Natal) por conta de seu capital político como liderança do Landless Peoples
Movement ou do Congresso Nacional Africano28. O difícil é definir o que isso significa.
Políticos profissionais – não necessariamente representantes, mas, especialmente,
trabalhadores da política – foram em muitas ocasiões meus mais generosos anfitriões. Não
porque eram profissionais, mas porque eram generosos.

Quando fui estudar na Alemanha, no meio da minha graduação em Ciências Sociais, queria,
entre outras coisas, ler em alemão. Mais tarde eu descobriria que faz alguma diferença
saber alemão para ler Herta Müller, mas não para ler Max Weber, como eu desejava
naquele momento. Ou talvez o faça e o que tenha mudado radicalmente seja meu interesse
por Max Weber. Penso especialmente na ideia de vocação. Não sei se conseguirei me
aprofundar nisso aqui. Começo mencionando que em meu doutorado fiz um curso com
Mariza Peirano que, em suas diferentes versões, deixou marcas em muitos de nós 29.
Curiosamente, a mesma Mariza escrevera sobre Weber e o mencionava com frequência,
citando uma máxima sua sobre o eterno frescor ou juventude das ciências sociais. O fato é
que ter sido apresentada por Mariza a Charles Peirce fez toda a diferença na minha vida. O
modo como eu tinha sido socializada em Weber me levava a entender o Chamado (Beruf)
como algo que se dava entre dois polos: o divino e o indivíduo. Na época de meu doutorado,

28
Marcelo Rosa refuta essas interpretações sintéticas e simplistas sobre a trajetória de lideranças de
movimentos sociais em seu artigo Mas eu fui uma estrela do futebol! As incoerências sociológicas e as
controvérsias sociais de um militante sem-terra sul-africano (Mana, 2011), dedicado à complexidade da
vida do gigante Mangaliso Khubeka:

“ Mangaliso é legítimo quando é um farm-dweller e quando se dedica ininterruptamente ao


movimento, quando não critica publicamente as ONGs. Porém, se mistura o movimento com
a família, por exemplo, ele é rapidamente condenado.”

29
Não sei se no artigo que escrevi com a Soraya Fleischer falamos disso. O importante aqui é lembrar que
nós duas organizamos um evento de homenagem a Mariza Peirano (e à colega Lia Zanotta), que reuniu
outras pessoas. Lembro-me do John Comerford – falando sobre o curso de rituais que ela lecionou no
PPGAs do Museu Nacional – e de Maia Sprandel falando das indicações de livros que Mariza nos dava. Eu
escrevi A Nação contra a Formiga antes dessas dicas. Porém, minha aproximação à Coetzee, que deu no
artigo Cães e Preconceito, tem relação direta com esse acervo vivo que são as sugestões de Mariza de bons
livros – seja Begoña Aretxaga ou Kazuo Ishiguro.

21
não por coincidência, eu me incomodava fortemente com colegas brasilienses
autoproclamados weberianos, que escreviam sobre a alienação das massas populares.

Meu trabalho de campo daquele momento e os anteriores contestavam essa hipótese, mas
as amarras analíticas eram muitas. Foi nessa época que o Núcleo de Antropologia da Política
(NuAP) emergiu. Um incômodo semelhante mobilizava alguns desses outros colegas. O
anseio de todos na época se traduzia na máxima “fazer antropologia da política e não
antropologia política”. Ainda assim, a literatura de que dispúnhamos – por mais etnográfica
que fosse – acionava, eu diria, o mesmo princípio dual: facções, clientelismo etc. Minha
dissertação de mestrado espremera tudo o que eu tinha febrilmente escrito em meus
diários e transcrito de fitas K-7 dentro da caixa de papelão com a etiqueta faccionalismo.

Para meu alívio, em meu doutorado, entrou Peirce (entre outros filósofos da linguagem que
me foram apresentados por Mariza – como Stanley Cavell, de um modo indireto, via Veena
Das). De uma maneira muito cândida (usando de novo um termo caro a Mariza), eu
consegui entender que nas reflexões de Peirce havia espaço para dúvida e transformação.
Especialmente seus escritos sobre o equilíbrio entre crenças e dúvidas me arrebataram. Isso
que eu chamo de espaço para emergência de dúvidas se tornou tangível para mim. Numa
forma triádica (e não mais dual), entre uma mensagem ser enviada (Beruf, novamente) e ser
recebida, poderia haver mudança de sentido. A isso Peirce chamava de símbolo.

A antropologia rotulada como simbólica já tinha deixado de existir havia muito tempo fora
do Brasil (embora possa nunca ter vicejado por aqui), mas recordo como naqueles tempos
(se é que ainda hoje não se passa o mesmo), colegas – especialmente em congressos –
acionavam o adjetivo simbólico com frequência. No geral, para sugerir que as coisas eram
mais complicadas do que pareciam e, também, que raramente conseguíamos entender o
que se passava e, ainda assim, deixar a antropologia e sua tarefa escrutinadora incólume.
Infelizmente, a conversa costumava se encerrar aí, e o valor simbólico de qualquer coisa se
tornava uma espécie de coringa para levar a jogada adiante, sem comprometimento com
aquilo que, embora existindo, tinha uma natureza tão pouco tangível (transcendente), que
se perderia muito tempo com a discussão. A antropologia viraria filosofia, e tínhamos de
interferir nas políticas públicas. O tempo urge no otimismo desenvolvimentista febril dos
anos 2000.

Em meu trabalho de campo, meus anfitriões se mobilizavam muito com a política no seu dia
a dia. No departamento ao lado, colegas da UnB estavam comprometidos em vilipendiar a
imagem, diríamos hoje, daquelas pessoas. Para eles (eram só homens), os políticos
profissionais exerciam um poder quase divino sobre seu rebanho. O que faltava neste
esquema? Faltava, como diria Peirce, um terceiro. E esse terceiro era Deus. Outro
argumento de Peirce me ajudou nisso. Em The doctrine of chances, Peirce provoca um
movimento no modelo triádico. Os rumos da história se alteram a depender do que está em

22
cada vértice deste triângulo – que, por sua vez, está em interseção com n outros triângulos.
Não há, ou melhor, há pouca estabilidade nessas posições. Rizomas, fractais − fico a pensar
em outras explorações plásticas que tocam em problemas conceituais semelhantes.

Em conversas prosaicas, muito frequentemente, as pessoas chegavam a um beco sem saída:


minha vida foi de errância e desterro, desde sempre. Desde antes de mim mesmo. Em certo
momento, essa sina se altera. Meu nome é publicado na lista de contemplados com um
lote. Finalmente, Deus me olha com outros olhos. O tempo de Brasília era uma medida
usada pela burocracia governamental para mensurar o quanto uma demanda era mais
legítima ou urgente que outra. Tratava-se de um coeficiente para hierarquizar os pleitos. O
tempo de Brasília era também um índice (usando Peirce de novo) dessa espera – não na
waiting list apenas, mas da alteração dos humores divinos. Só que não adiantaria haver uma
mudança nos desígnios de Deus para as pessoas, se não houvesse a distribuição de lotes.

Nas duas décadas seguintes, os mesmos colegas da UnB que mencionei passariam a vender
best-sellers em aeroportos e bancas de revista sobre o caráter espúrio da religião imiscuída
na política. Eu tinha aprendido que não havia política sem religião, ou melhor, sem Deus.
Não havia vida sem Deus (ou sem transcendência).

Pensei agora naquela caixa de lentes de madeira que os oftalmologistas de antigamente


colocavam como monóculos em seus pacientes para aferir a acuidade de suas visões. Minha
caixa ganhou muitas lentes novas no período de doutorado na UnB. Houve as
fenomenológicas (de um curso com Roberto Cardoso de Oliveira no antigo Centro de
Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas) que me ajudaram a me despedir do passado,
a dobrar uma esquina e só voltar a trilhar o caminho reverso para me recordar de que para
lá não quero regressar. Rita Segato e José Jorge foram generosos anfitriões, nessa época
muito mobilizados pelo que se tornou notório como o “caso Ari” 30. Os dois professores
faziam reuniões periódicas para provarmos coisas das quais eu mal havia ouvido falar: de
Homi Bhaba a Quijano, passando por Derrida, até Lacan. Era eclética, mas era branca e
masculina a literatura. Ainda assim, ficava um aroma no ar, que me abria o apetite por mais.

A UnB me proporcionou uma mistura que, tenho certeza, seria muito difícil de encontrar em
outro PPG no Brasil. Nem todas as especiarias agradavam meus sentidos, mas a
comensalidade (o ingerir junto aquele masala literário e político) me ensinou a seguir
adiante meu próprio caminho de estudos sobre as implicações do colonialismo e do racismo
para a pesquisa antropológica. Desisti da disciplina sobre Antropologia “em” África. O

30
Refiro-me aqui à reprovação sumária e às sucessivas revisões por que passou a menção atribuída ao
estudante negro Ari Lima na disciplina obrigatória, Organização Social e Parentesco, ministrada pelo
professor Klass Woortmann no Departamento de Antropologia da UnB. A experiência traumática de Ari e
sua luta por reparação abriu uma discussão crucial sobre o racismo institucional e o corporativismo
acadêmico não só na Universidade de Brasília. A tal respeito, entre outros trabalhos, LIMA, Ari. 2001. “A
Legitimação do Intelectual Negro no Meio Acadêmico Brasileiro: Negação de Inferioridade, Confronto ou
Assimilação Intelectual?”. Afro-Ásia, n. 25-26, p. 281-312.

23
professor era um assediador contumaz, um sádico. Imagino que as desistências vinham não
por se tratar de uma “bibliografia pesada” – em termos de quantidade e complexidade −,
como ele fazia crer. O peso para mim vinha de uma exegese colonial e de um mundo sem o
que anos depois eu aprenderia com Archie Mafeje tratar-se de uma interlocução autêntica.
Não se tratava de uma crítica à história institucional da antropologia e seus sapatos
coloniais, reconhecida por quase todos os professores daquela casa como a única legítima,
porque científica, institucional, generalizável, comparável. Tinha mais a ver com o
colonialismo em nós, com a dificuldade de mudar de lentes e de se mobilizar de verdade em
direção a outra forma de fazer pesquisa, de ler, de escrever, de ensinar, de aprender, de
orientar. Uma liberdade de espírito que eu via em Mariza, que tive a sorte de ter como
orientadora.

Dando já aula no Museu Nacional, eu faria uma pesquisa extremamente estimuladora em


lugares que também não existem mais, mas aos quais volto neste texto. No hotel popular
que ficava na Central do Brasil, trabalhadores, pelo valor de um real à época, passavam uma
noite de descanso e sono. Hoje, vinte anos depois, talvez essa hospedagem noturna
custasse uns cinco reais. Muitas vezes, quando saio do CPDA mais para o fim do dia e vejo as
pessoas chegando com suas mochilas, seus papelões, seus cobertores e montando
meticulosamente o espaço de uma cama, de um quarto, onde passarão a noite, me lembro
do hotel popular. Nesse mesmo horário, uma fila se formava na Central. Uma fila que se
seguia à fila no restaurante popular, onde muitas das mesmas pessoas haviam jantado. Elas
entravam no hotel com poucos pertences – evitava-se o ingresso de objetos que pudessem
causar transtorno para os trabalhadores do hotel. Algumas carregavam poucas coisas
mesmo. Eram aquelas que só estavam economizando o dinheiro para uma volta a casa.
Outras tinham de pagar para deixar seus pertences em outro lugar. Isso as incomodava.
Demandavam que houvesse uma espécie de depósito no hotel. Outras não queriam se
afastar de seus bens. Quem tinha cachorro, por exemplo, não podia dormir no hotel. Quem
tinha filhos, tampouco. Na portaria, recebiam uma toalha de banho e um conjunto de
higiene, com escova de dente. Os banheiros não tinham muita privacidade. Algumas
pessoas entravam nas cabines para dormir sem se banhar. Apesar de serem abertas no teto,
as cabines eram consideradas mais decentes do que os pavilhões com dezenas de camas,
como acontecia nos abrigos. Era um hotel para indivíduos. Ainda assim, com todos com
quem conversava, a constatação era a mesma. Novamente Deus aparecia. Como vejo na
Presidente Vargas no cair da tarde – só mesmo Deus, como eu ouvira, para que alguém
(Anthony Garotinho e Rosinha Matheus) tenha cogitado a ideia de um hotel popular.

E Deus não surgia somente na avaliação daqueles que ali passavam a noite para descansar.
Também os trabalhadores do hotel tinham a mesma apreciação. Eles fizeram campanha
política em muitas ocasiões. Em geral, não recebiam nada depois de passado o furor
eleitoral. A ideia do hotel popular – assim como do restaurante – lhes trazia a oportunidade
de trabalhar na política de modo contínuo. Entendiam que aquele tipo de função não

24
poderia ser exercido apenas por servidores públicos concursados. Era preciso ter empatia. E
só quem viveu a insegurança do desamparo tinha essa capacidade. Não se tratava só de ter
vivido na própria pele, mas, de certa forma, de ter etnografado, observado, analisado e
tecido hipóteses. De ter construído uma linguagem com a qual se poderia ter uma
interlocução autêntica com o público beneficiário daqueles programas ditos
assistencialistas31.

Tudo o que eu encontrava contrariava as afirmações sobre a alienação popular. A


transcendência pedia passagem para entrar na etnografia – a despeito de seu caráter
inerentemente inefável. Outra imaginação precisava nascer em mim. Em um dos memoriais
que escrevi antes desse, se lê:

“Por ora, acredito que tal investimento dos governos sirva para reproduzir o
trabalhador político. Por essa razão se justificaria a profusão de projetos de
assistência social. Ao dividir a população em segmentos dotados de direitos
especiais (e.g.: o hotel para o cidadão fluminense que trabalha e mora longe do
centro do Rio de Janeiro; a farmácia popular para idosos aposentados etc.), o
governo promove mobilizações coesas, porém desconexas, em torno de
bandeiras específicas. Os indivíduos ‘empregados na política’, ao se
dedicarem a essas questões, que lhes são próprias e próximas, distinguem-se
daqueles que se envolveriam com a política como uma forma de disputa pelo
poder em termos e com objetivos mais universalizantes. Os direitos universais,
impessoais, que orientariam idealmente uma atuação burocrática do Estado,
dispersam-se diante dessa moralidade (no caso do governo do Rio de Janeiro,
ao que parece, de cunho religioso).”

Nesta passagem é possível notar minha atenção a dois temas. O emprego na política, ao
qual eu me dedicaria a investigar detidamente. E um tema que eu só entenderia como
crucial na composição de meu mural analítico após conhecer a região de Kwazulu-Natal e
me deparar visceralmente com a presença constante de agências transcendentais na vida
cotidiana.

Não dei continuidade às pesquisas na Central do Brasil porque fui ser professora em Brasília.
Ao tempo do meu ingresso na Universidade de Brasília, em novembro de 2005, passei no
processo seletivo para uma formação em Dakar, no Senegal. Nunca tinha ido ao continente
africano. Não sabia que minha primeira malária teria de ser manejada em francês. A dívida
com acadêmicos que ali estavam, por causa do Codesria (Council for the Development of
Social Science Research in Africa), seria eterna. Essas e outras pessoas desconhecidas me
estenderam a mão para que eu não sucumbisse. A experiência de encontrar generosidade
dessa forma se repetiria em breve. No mesmo ano, faria minha primeira viagem à África do
Sul, para um congresso. Lá eu seria hospitalizada não por uma doença tropical, mas por

31
Desenvolvi esses argumentos no artigo O emprego na política e suas implicações teóricas para uma
antropologia da política. Anuário Antropológico, v. 2005, p. 91-125, 2006.

25
causa de uma amigdalite que se complicou, estimulada pelo frio intenso. Novamente,
colegas que mal me conheciam – como Sophie Oldfield, que se tornaria uma parceira de
vida – me ajudaram a seguir adiante, a me sentir em casa.

Em Dakar, a formação consistia em aulas com grandes nomes, como Samir Amin, por
exemplo. Meus colegas provinham de diversos países do que começava a se chamar de Sul
Global. Nas aulas, engajavam-se vivamente com os conteúdos, a despeito de suas
formações diversas e de suas condições de trabalho acadêmico também muito distintas. As
colegas cubanas não usavam a bolsa que recebemos para comprar na livraria do Codesria,
mas pen drives, baterias e outras coisas do gênero a que não tinham acesso. Um colega do
Quênia presenteava a todos com pagnes sofisticados dos mercados locais. Além de
professor, ele era dono de uma rede de postos de gasolina. Os professores (todos eles
homens) traziam o que eu já conhecia e que me aborrecia. Eram as e os colegas, com suas
pesquisas, com suas vidas, que me faziam vibrar. Pela primeira vez eu despertava para um
incômodo muito grande com uma transmissão de teoria (por meio das aulas), que
prescindia desses contextos – e das contestações que uma turma tão diversa poderia
ensejar32. Pela primeira vez me deparava com o problema da universalização da ciência, a
despeito das condições tão díspares de sua concretização nas instituições acadêmicas fora
da Europa e dos Estados Unidos33.

“A chamada internacionalização, tão em voga nos momentos em que se


discutia a implantação da política de cotas na UnB, ocultava processos de
subalternização, com cientistas brasileiros fornecendo matéria-prima ou mão
de obra como em uma plantation. E o que a luta antirracista vislumbrava eram
justamente futuros nas fissuras desta plantation, como diz McKittrick. A
política de citações, não raro, respondia por um círculo de brasileiros,
especificamente nas Ciências Exatas e da Vida, escrevendo em inglês para
consumo de brasileiros. Nas Humanidades, nem sequer isso, cientistas sociais
que eventualmente publicavam em inglês não garantiam por mera alquimia
linguística que seus trabalhos fossem mais citados [...] o baixo impacto das
publicações costumava ser entendido como algo a se correr atrás (to catch up)

32
Numa das aulas, tive um desentendimento com Jean Copans, que, naturalmente, desprezou meu
comentário crítico, pois eu não só era mulher, como meu francês era péssimo. Eis a primeira vez que eu me
indisporia com um homem branco africanista.

33
Em 2021, ano em que me mudei para o Rio e comecei a dar aulas na Rural, escrevi para Maria Elvira
Benitez, após ela ter me convidado para fazer parte do conselho editorial da Mana, perguntando se cairia
bem um artigo meu e do colega Joaze Bernardino-Costa sobre nossa experiência acerca da implementação
das políticas de ações afirmativas nos programas de pós-graduação da UnB. Queria refletir sobre minha
experiência na Pró-Reitoria de Pós-Graduação (chamada de Decanato em Brasília), onde trabalhei com
Adalene Moreira, da Geologia, nos meus últimos dois anos na UnB. Maria Elvira não só achou a proposta
excelente, como sugeriu que organizássemos um dossiê sobre os dez anos da Lei de Cotas (12.711).
Tivemos um ano de intenso trabalho pela frente, mas o resultado foi um marco, acredito, para nós e para a
revista. Destaco do dossiê a entrevista que realizei com Francis Nyamnjoh, um antropólogo que trabalha na
Universidade de Cape Town e que desenvolve um argumento bastante desconcertante sobre as lutas
decoloniais encetadas pelo corpo de estudantes envolvidos nos levantes conhecidos como #rhodesmustfall.

26
e não como uma barreira intransponível, dada a elaboração constante da
insignificância do conhecimento produzido por nossos pares.”34

Essa experiência no Senegal, somada à coincidência de termos tido a felicidade de conhecer


tanto o LPM (Landless People’s Movement) quanto acadêmicos generosos na África do Sul –
como Lungisile Ntsebeza, diretor do Centre for African Studies da Universidade de Cape
Town –, sustentou um projeto bastante longo e que rendeu muitos frutos em sua primeira
década (de 2006 a 2016)35. Chegamos à região de Kwazulu-Natal para pesquisar questões
relacionadas a uma política de reparação específica: a devolução de terras no pós-apartheid
ou land reform. Marcelo escreveu sobre essa grande diferença, muito mais do que
semântica, entre uma reforma que se almeja agrária e outra que pretende se dirigir à terra.

Eu aprenderia essa diferença a partir da atenção que pude desta feita dedicar aos funerais 36.
Na primeira vez em que cursei uma disciplina de antropologia (ministrada por Noemi Brito,
na UFRGS), recebemos a visita de Colette Pétonnet, que fazia pesquisa em banlieux
parisienses, mas nutria um interesse por cemitérios. Claudia Fonseca me designou para
acompanhar a colega francesa em sua visita aos cemitérios de Porto Alegre.
Posteriormente, em um dia de finados, fui sozinha a um bairro que abriga vários cemitérios
para fazer uma jornada de campo. Procurei fazer fotografias. O constrangimento de meu
olhar estava nas imagens, como um colega da pós-graduação – do núcleo de antropologia
visual – fez questão de notar. Minha incursão pela antropologia visual foi breve e um tanto
traumática37. Porém, a inquietação com aquela vida dos que já morreram parecia me
buscar.

Quando dei aula de teoria antropológica pela primeira vez, no primeiro semestre de 2004,
fiz o mesmo que a professora Noemi. Convidei a turma para fazer um campo expresso e
sugeri que o fizessem no Dia de Finados, no Rio de Janeiro. Até mesmo um estudante que
não deveria entrar em cemitérios por interdição religiosa fez um belíssimo trabalho sobre o
mercado de flores. Eu ainda iria ao México, onde poderia ver na distribuição de pan de
muerto a nós, servidores do Colmex, uma prova saborosa da forma como alguns escolhem
34
Excerto retirado de ABorges e JBernardino-Costa. Dessenhorizar a academia: ações afirmativas na pós-
graduação. Mana, v. 28, p. 1-30, 2022.

35
Década, como sabemos, marcada por financiamentos públicos sem precedentes para a pesquisa e para
o intercâmbio científico que, em se tratando de política de governo e não propriamente de Estado, não
demorou em se desfazer.

36
Entre outros escritos, destaco o capítulo Funerais, Política e Medo na África do Sul contemporânea. In:
A Cidade e o Medo. Brasília: Francis Verbena, 2014, p. 151-166. Este texto foi publicado num volume que
resultou de um seminário organizado por Lia Zanotta, Cristina Patriota e por mim. Tivemos recursos para
convidar colegas como Richard Ballard (da África do Sul) e Mabel Grimberg (da Argentina), entre outros,
que tiveram seus trabalhos publicados neste volume.

37
Não vou repisar o assunto, mas acredito que essa memória traumática revele um tanto do sentimento
de inadequação que antropólogos iniciados podem causar em neófitos, afugentando-os e, assim,
preservando o butim das suas incursões etnográficas a salvo de qualquer redistribuição.

27
viver próximo aos seus mortos, de maneira intensa e, por vezes, festiva, visitando-os sempre
e não permitindo que deixem de existir.

Na África do Sul, os primeiros funerais que acompanhei não foram de pessoas amigas, mas
de companheiros do LPM. Somente depois de alguns anos eu viajaria de Cape Town para
Estcourt, em Kwazulu-Natal, para acompanhar o enterro de Andile, a jovem filha de nossa
grande amiga e generosa anfitriã Thobekile Radebe, outra importante liderança do LPM.
Saberia me portar, o que vestir, o que dizer, como mover meu corpo, o que comer, com
quem falar. Antes disso, estivemos em muitos enterros feitos à força, em terras disputadas,
propriedades de fazendeiros brancos, onde os moradores tinham sua liberdade cerceada e
seu despejo construído de forma violenta diariamente. Nessas ocasiões, o Landless Peoples
Movement conclamava que apoiadores comparecessem aos funerais. Somente familiares e
amigos da pessoa falecida não garantiriam que a polícia impedisse o enterro – fazendo a
vontade do fazendeiro. Os cemitérios eram provas arqueológicas da permanência e do
vinculo atávico das pessoas com as terras. O enterro contemporâneo era um elo a mais
nessa longa corrente que conectava os viventes de hoje aos ancestrais. A luta pelo direito ao
enterro era a luta por um arquivo.

“Desamparados diante de leis formuladas em uma língua e em uma linguagem


que não contemplavam suas demandas por direitos, os homens e as mulheres
lastimavam que o governo os deixasse sem sombra para descansar. A fórmula
poética trazia em si o cerne de todo o dilema vivido: o termo para sombra
também significa esperança, em Zulu. Para Sibongile Mbatha, por serem os
funerais ocasiões sagradas, não é possível negar o direito ao enterro. Na espera
por uma decisão judicial, as lágrimas dos vivos secam. Amedrontadas e sem
poder, as pessoas vivas podem deixar de se comunicar com os ancestrais, que
não tomariam mais conhecimento do que sucede com os vivos. O maior medo
da Senhora Mbatha é que aqueles que nasçam na África do Sul de hoje não
saibam que o apartheid os forçou a abandonar os mortos, em cada terra de
onde os negros foram expulsos. Que não saibam ou que desconheçam o sem-
número de trabalhos rituais feitos para que seus ancestrais ficassem a par das
atrocidades e do paradeiro da família a cada nova investida do projeto
segregacionista.” 38

A despeito disso tudo, nessas ocasiões minha atenção não deixava de se voltar para a morte
em si, pela pessoa que se foi, pelo vazio que deixou. Muitos dos companheiros da
Association For Rural Advancement (AFRA), que também participavam desses funerais,
morreriam no decurso dos anos de nossa pesquisa. Aos enterros deles não pudemos ir. A
morte de Andile nos despedaçou. Ela era muito jovem. Nós a conhecêramos ainda criança.
Tinha acabado de dar à luz uma bebê. Eu acompanhara Thobekile ao hospital, num périplo
para demonstrar que ela se importava com a filha. Ela já tentara tratamentos de branco
muitas vezes e sem sucesso. A escola deve ter feito a denúncia do recurso a curas ditas

38
Excerto retirado e adaptado de Sem sombra para descansar: etnografia de funerais na África do Sul
contemporânea. Anuário Antropológico. v. 2010, p. 215-252, 2011.

28
tradicionais, e Thobekile foi convocada pela Justiça, acusada de negligência. Anos antes de
conhecer Thobekile, comentei sobre um filme de Ken Loach intitulado “Ladybird, Ladybird”
(1994)39. Lou Reed também canta essa agonia em “The Kids” (de 1973):

They’re taking her children away


Because they said she was not a good mother

Lembro-me das cabras pastando ao redor do hospital e sendo enxotadas para fora dos
corredores. Andile definhava. Após sua morte, Thobekile ainda teve muita dor de cabeça
com a Justiça. Em meio a tudo isso, conseguiu ver Mimisa crescer, apesar de ter nascido
com o vírus HIV (Mimisa entraria em 2023 na High School).

No dia do enterro de Andile, eu me dizia: o que acontecerá depois daqui? Faço-me essa
pergunta recorrentemente quando estou em trabalho de campo. Não só. É uma pergunta
que me faço sempre. O destino dos jovens me aflige. Foi assim que voltei ao Recanto das
Emas para falar de minha tese numa escola de ensino médio, e de lá saí com um projeto que
seria conduzido junto com uma colega − hoje do departamento de história da UnB − que à
época era professora da rede pública de ensino (Cristiane Portela)40.

O projeto Um Toque de Mídias proporcionava para jovens em iniciação científica


equipamentos de audiovisual para levarem adiante eles mesmos uma pesquisa com
adolescentes e crianças na cidade. O projeto era gigantesco, com um bom financiamento da
Capes. Notei que aqueles jovens viviam algo desconhecido para mim: não era nem o mundo
de seus pais, nem o mundo da universidade – duas coisas de que eu entendia
razoavelmente bem.

Quando os recebemos no campus – na Asa Norte e na Ceilândia –, eles só falavam de


histórias de terror. Por um lado, isso tinha a ver com a cultura pop de que se nutriam e que
produziam. Por outro, era como se pressentissem os tormentos por que passariam se
entrassem no mundo do trabalho ou na graduação – uma trilha supostamente mais
recompensadora, com que lhes acenávamos.

“Na oficina que tivemos na escola, falou-se dos estudantes surdos em Santa
Maria. Dizia-se que pais haviam despejado água ou óleo fervente em seus
ouvidos para obter mais facilmente o lote. Algumas pessoas ficaram chocadas.
Outras, incrédulas. Para outras só podia ser uma piada. Como pensávamos em
um roteiro para o documentário, o tema levou à ideia de contar a história da
cidade como uma história de terror. Eu não sabia como lidar com uma
39
O cinema de Ken Loach: estética e ética na representação social da vida dos trabalhadores (palestra
feita no CCBB do Rio de Janeiro em 2004).

40
Volto a mencionar os financiamentos que existiam naquele momento e que permitiram que em duas
chamadas consecutivas da Capes o projeto Um Toque de Mídias fosse contemplado com recursos que
permitiam um trabalho de pesquisa e extensão de grande vulto.

29
narrativa na qual os pais seriam culpados por terem ensurdecido seus filhos.
Os jovens investigadores começaram seu trabalho em busca de jovens com
deficiência. aproximaram-se de Salomé. Ela lhes contou que era guitarrista de
uma banda de rock, que gostava de quadrinhos e de escrever canções. Em
Santa Maria não podia se mexer na sua cadeira de rodas. Sua condição de
criança paraplégica tinha ajudado sua família a somar mais pontos e a
conseguir o tão sonhado lote. Depois de quatro meses do início da pesquisa,
começamos a discutir finalmente os roteiros. Os estudantes de Santa Maria
decidiram contar a história de Salomé como a história de sua cidade. As rodas
da cadeira, assim como as rodas de outros brinquedos próprios para o asfalto e
para os espaços modernizados, não se moviam em Santa Maria quando essas
crianças lá foram morar. Tiveram de esperar por anos a chegada do asfalto
para brincar dessas coisas. Salomé, por um milagre que ninguém tentava
explicar no roteiro, gradualmente voltou a mover suas pernas e braços.
Aprendeu a tocar guitarra, a cantar, a andar. O filme terminaria com um show
da banda de Salomé.”41

Perdi a conta das vezes em que garotas e garotos bolsistas do projeto foram interpelados de
forma violenta pela vigilância do campus. Não demorou muito para que uma consciência
racial emergisse: até aquele momento de suas vidas, quando começavam a andar sozinhos e
fora das suas cidades, nunca tinham se sentido negros.

Dirigi essa pesquisa em muitos momentos a distância, quando dava aula no Colmex. Tive
muitos colegas que me acompanharam na empreitada. Dácia Ibiapina, cineasta,
apresentara-me seu colega Adirley Queirós, que por sua vez me apresentou o professor
Breitner Tavares. Com os dois últimos, levamos o projeto adiante, contando com a
participação interessada de uma dezena de bolsistas da graduação42.

Quando voltei do México em 2012, o projeto chegava ao fim e fervilhavam as discussões


sobre ações afirmativas antirracistas na pós-graduação. Olhando retrospectivamente,
beiram o absurdo algumas situações que vivemos no departamento de antropologia. A
oposição às chamadas “cotas” vinha de colegas docentes. Eu tinha o propósito de ver no
futuro os estudantes com quem convivia nas escolas públicas em nossas salas de aula na
UnB – e sem dor. Uma estudante conseguiu entrar na UnB, foi fazer Ciências Sociais. Só
soube que ela havia participado do Toque de Mídias em seu enterro. Lá, bati o olho numa
jovem aos prantos, que reconheci de antes – ela era responsável pela captação de áudio dos
projetos que realizavam. Era já 2018, eu não vira Letícia da Silva Lisboa, carinhosamente
chamada de Ély, se jogando da caixa d’água simplesmente porque olhava concentrada
41
Sobre a experiência do projeto Um Toque de Mídias, elaborei ao menos dois artigos. A citação extraí de
República das Mangas ou sobre o Amargo Gosto de Tudo o que Amadurece à Força. Revista Pós Ciências
Sociais. v. 13, p. 21-42, 2016. Ao outro artigo, intitulei O Terror como Subversão: etnografia das narrativas
produzidas por jovens do Distrito Federal brasileiro. Política & Trabalho, v. 43, p. 149-165, 2015.

42
Nos nomes de Alice da Cruz Silva e Julyana da Costa Duarte, quero agradecer a todes es bolsistes de
iniciação científica júnior que participaram das duas edições do Um Toque de Mídias.

30
minha tela do computador. Após um grito uníssono, fui ao corredor. No vão do prédio novo
do ICS, que mirava o lago, quem acompanhava o movimento na torre estava atônito. A
aluna de cabelos azuis tinha se lançado lá do alto. Plantamos uma hortênsia em sua
homenagem no jardim do ICS, sem a presença de seus familiares. Fizemos rodas de
conversa muito acalentadoras e sem bússola. Dei minhas condolências à sua mãe, no
cemitério. Especulou-se muito na época o que a haveria levado a se matar. Para mim a
pergunta era: o que leva tantos outros a não se matarem num ambiente que exclui de
forma violenta quem não é membro do clube?

Na África do Sul eu visitaria meus velhos anfitriões em Ingogo, Kwazulu-Natal. Bongiwe,


neta de Mangaliso, que eu conhecera criança, tinha crescido e ingressado na Universidade
de Johanesburgo.

“Late in that winter night, Bongiwe offers us some ‘poverty’. We, adult
women, decline it. Children enjoy and call this snack ‘poverty’ because it is
cheaper than brand-name ones. The chewing of ‘poverty’ is noisy. Bongiwe
chews it playfully, making fun of all the ambiguities that pervade the occasion
[…]. One day she was ritually behaving like a makoti (bride), the other day
traveling to study information technology at the University of Johannesburg
[…] Caught in a transitioning world, Bongiwe chews poverty while dreaming
about being a professional, driving an Audi, partying in Ibiza – ‘I wish my
family be proud of me’.”43

Em 2019, eu a encontraria de volta nas terras de seus familiares, com um lenço atado aos
cabelos, exibindo a modéstia que se espera de uma mãe. Ela trazia nos braços um menino
cujo pai tinha lhe virado as costas. Não lamentava ter tido a criança, que enchia a casa de
alegria. Ressentia-se do tratamento que recebera na cidade, na universidade – que não
dispusera de um espaço para acolhê-la, como sua família fazia comigo todas as vezes que eu
os visitava. Bongiwe era a filha mais velha da filha mais velha da esposa de Mangaliso.
Ambas, falecidas. À jovem eram atribuídos papéis rituais incontornáveis, como fazer as
vezes de sua avó numa de uma série de cerimônias matrimoniais inconclusas, que seu avô
precisava selar, apesar de viúvo. No enterro de Mangaliso, em agosto de 2023, lá estava ela.
Tinha vindo de avião de East London (agora, Ku Gompo). Atualmente cursa a academia de
polícia em Bhisho, capital do Eastern Cape. Seu filho ficava na fazenda recebida no processo
de reparação, a grande casa que abriga as crianças e o futuro.

Após o nascimento de Rosa, em 2016, eu assumiria funções administrativas pela primeira


vez em minha carreira. Até então, ao menos no lugar em que eu trabalhava, tinha a nítida
impressão de que nenhum colega gostaria de me ver à frente de qualquer cargo. O rumor a
meu respeito era o de uma pessoa que “não compõe”. E, de fato, em certo sentido, nunca

43
Excerto retirado do capítulo Ethnographic Alliance: Hope and Knowledge Building through a South
African Story. In: Relational Poverty Politics: Forms, Struggles, and Possibilities. Athens: University of
Georgia Press, 2018, p. 183-200.

31
consegui “compor” com o que me parecia uma ética patrimonialista. Terminada minha
licença maternidade, assumi a coordenação do PPGAS. O trâmite burocrático era leve,
especialmente pela expertise e celeridade de todo o pessoal da secretaria, sob a batuta da
maestrina Rosa Venina44.

O grande fardo para mim não era a administração no papel, mas lidar – sem saber como –
com o adoecimento psíquico das pessoas ao meu redor, especialmente dos estudantes. A
terminologia era nova, mas o problema era velho. Surgia um nome político para uma
questão que atormentara gerações a fio. No final de 2018, passei a trabalhar no decanato
de pós-graduação, como diretora de todos os programas de pós-graduação da UnB. Lá, o
desafio apenas ganhou outra escala. Colegas docentes e discentes interessados em políticas
comprometidas de ações afirmativas – antirracistas, por igualdade de gênero,
anticapacitistas – passariam pela mesma provação que eu observara anos antes no
departamento de antropologia. Aos poucos, a configuração da universidade, a partir do
dispositivo da plantation, começava a se formar em mim como um problema de pesquisa
relevante e urgente.

“Bongiwe reflete sobre uma vida que passa ao largo do aprisionamento da


plantation, da restrição à linha: uma vida marcada por movimentos a esmo,
pelo inusitado, pela criatividade e pela transformação. Movimentos esses
normalmente por nós (acadêmicos) também ignorados, senão rechaçados,
porque erráticos, ‘sem propósito’ imediato, ou seja, sem acolhida em nossas
expectativas e categorias de entendimento. Quando herdeiros da atenção à
política de/da classe para a classe, ignoramos o trabalho das mulheres e
jovens, como Bongiwe, cujo tempo, por uma questão lógica, empregado em
outras coisas (por vezes em um emprego remunerado, mas normalmente em
rituais não rentáveis) [...] Mulheres como Bongiwe, ‘excluídas’ do mercado,
da universidade, da vida pública, são quem detêm conhecimento de como as
coisas funcionam. Quem entre nós ousaria dizer como as coisas funcionam na
universidade, por exemplo? [...] Resumindo, nós que investigamos pouco,
sedados que estamos, embruxados, é que somos O Problema. Essa constatação
pode ser o primeiro passo para o desembruxamento. E é Bongiwe quem com
ela nos brinda, quando nos oferece seu tempo.” 45

Recorrer à meritocracia como panaceia era análogo a reduzir todos os corpos à medida
única de produção do monocultivo: a plantation cognitiva. Quem não via problemas nisso
tampouco via problemas na monocultura e na economia extrativista de conhecimento.
Jactavam-se de posições em rankings duvidosos, celebrando o fato de pisotearem algumas
instituições mais abaixo, sem nunca se darem conta da ruína em seus próprios alicerces.

44
Quero lembrar ainda de Adriana Sacramento de Oliveira, Cris Romão e Paulo Gomes de Sousa, gente
boa e competente que dava ares de leveza a um ambiente que era extremamente claustrofóbico para mim.

45
Excerto retirado do artigo Very Rural Background: os Desafios da Constituição Terra da África do Sul e
do Zimbábue à Chamada Educação Superior. Revista de Antropologia, v. 63, p. 1-30, 2020.

32
Desde que assumi a coordenação do PPGAS – e nos anos futuros –, coloquei uma caixa de
kleenex sobre minha mesa e recebi pessoas em busca de saídas, assim como outras
firmemente decididas ao propósito de encurralar quem quer que não cedesse à
imobilização exigida pela vida universitária comme il faut. Apenas poucos modos de
existência, modelos de vida, eram viáveis dentro da academia. Uma infinidade de diferentes
vidas precisaria ficar do lado de fora. E era assim que de alguma maneira se dava a morte de
pessoas ao ingressarem na universidade. É certo que algumas renasciam, sem lamentar o
que ficou para trás. No entanto, o que vi – especialmente na pós-graduação – foram muitos
lamentos de quem não poderia ser quem era, sem se constranger ou se sentir inadequado.

Fui beneficiada pelo incessante esforço pedagógico de estudantes que comigo


compartilhavam suas jornadas. Uma aluna branca morta num atropelamento, por querer se
mover na cidade de bicicleta. Uma aluna negra com deficiência que não cansava de insistir
que não deveria haver uma única expectativa para os corpos/para os pensamentos. Uma
aluna branca lançada para um tempo ou um passado obscurantista por ser, também, mãe.
Uma aluna indígena que era corrigida por seu mau uso de conceitos antropológicos. Uma
aluna negra tripudiada por ser cristã. Outro aluno negro que vagava pelo campus – com
seus problemas mentais – até um dia ser apedrejado até a morte num matagal em frente
aos blocos residenciais da Colina, onde residíamos. No enterro de Jiwago, um colega seu
lembrou quando, meses antes, ele passara por nossa aula no gramado em frente ao prédio
do ICS e me entregara um ramo de buganvília, enquanto entoava um reggae. Mantínhamos
uma rotina de aulas em espaços públicos. Cheguei a dar uma aula em frente ao MEC
naqueles tempos sombrios. No ano de 2018, sentíamos o enxofre que se espalhava pelo ar
desde o início do semestre. Numa das primeiras sessões da disciplina, em 15 de março de
2018, fomos para a sala de aula em busca de companhia naquele fosso que se tinha aberto
com o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. Em nosso luto e na luta de muitos,
alguns de nós puderam, na escrita de uma ficção, de um poema, pôr para fora o grande
grito de terror, de medo e de indignação preso em cada peito.

Dali em diante, as coisas só iriam piorar. Não sabíamos que estávamos dando os primeiros
passos em direção a um precipício que afundaria a universidade numa crise de legitimidade
que era aparentemente de outra ordem, aparentemente distinta daquela promovida pelas
periferias. No ano seguinte, a partir de um convite de Iracema Dulley, numa palestra que fiz
na UFSCar sobre o very rural background, ume estudante de graduação nos alerta para a
ingenuidade ou o elitismo desse diagnóstico catastrofista tardio: a universidade não está
sob ameaça, a universidade já é uma ruína, e – nas suas palavras – que bom que é assim! Na
sua avaliação, sobre escombros o seu corpo sabia caminhar. No espaço que alguns viam
como decrépito, sua presença não era destacada como inadequada. Essa coisa que não

33
existe mais não era chorada pele estudante. Voltei de lá entendendo que era necessário ver
também com esses olhos o fim de tudo o que estava ali46.

De novo, usava-se o mesmo termo, mas não se falava da mesma coisa. No final de 2020,
quando trabalhei ao lado de um grupo empenhado em promover políticas de ações
afirmativas nos PPGs da UnB, ouvíamos reticências liberais que se esqueciam disso. Joaze
Bernardino e eu, mais especialmente, escutamos, de diversos interlocutores de esquerda,
que a universidade estava sob ataque e que seria precipitado abrirmos um flanco que nos
deixaria vulneráveis47. A meritocracia era sempre acionada como a boia capaz de nos
resgatar do caudaloso chorume de injúrias que jorrava dos esgotos do MEC naqueles anos.

Precisávamos daquelas pessoas, ou melhor, precisávamos de seus votos nos diversos


conselhos. Tínhamos de reverter os seus discursos – ainda que sem pretensão de alterar
suas ideologias. Por mais de um ano desfiamos tramas bem apertadas e antigas. Com esses
fios velhos e outros novos, fizemos o que a linguagem da administração superior
universitária chama de resoluções. Dez dias após o assassinato de George Floyd, veríamos a
mais importante dessas resoluções ser aprovada. Nela, tornava-se mandatória a reserva de
vagas para pretos, pardos e indígenas em todos os PPGs da UnB. Em meio à celebração de
uma vitória, uma dúvida inevitável nos assaltava: estávamos atrasados e de pouco
adiantaria desalojar o privilégio “do passado” daquela casa que desmoronava e que
“ninguém” mais habitava?

46
O presidente de então prometia “acabar com tudo o que está aí”, e este alune indicava uma ruína
presente que se antecipava à destruição que nós acreditávamos estar por vir.

47
Em Dessenhorizar a universidade: dez anos da lei 12.711, ação afirmativa e outras experiências. MANA,
v. 28, p. 1-20, 2022, Joaze Bernardino-Costa e eu fazemos um balanço analítico desses desafios, tomando a
nossa experiência e a dos demais colegas que publicaram no mesmo dossiê, como material de reflexão.

34
Ovelhas
Ninguém. Terra de ninguém. A ideia de pessoas que não contam porque não são
consideradas pessoas, gente, seres humanos, ia e vinha ao meu encontro, pelas mais
diversas vias. A mãe de Jiwago teria declarado a um jornal que nem um cachorro se mata a
pedradas. Os fazendeiros brancos na África do Sul carregavam seus cães na cabine de suas
4x4 e os trabalhadores negros na caçamba. A ojeriza que alguns demonstravam, na
universidade, a uma reflexão sobre a branquidade, sobre o racismo, sustentava-se num
ideal de humanidade para poucos. Era o que eu havia aprendido na graduação em ciências
sociais. Um professor de sociologia para quem eu era promissora sugeriu que eu me
encaminhasse para as ciências da computação. Ele não tinha doutorado, talvez tivesse
mestrado. O importante é que era, aos nossos olhos, um intelectual instigado e um
professor dedicado (à sua maneira). Talvez tivesse sido de esquerda, mas já não o era, no
início dos anos 90. Hoje, penso que ele me advertia sobre o futuro do mundo (eu estaria
mais up to date fazendo informática), mas, sobretudo, me alertava sobre a ladeira
escorregadia, lamacenta e, por vezes, fétida que eu teria de escalar para chegar a um topo
ilusório qualquer, em que sempre haveria alguém fazendo meu rosto de degrau, pisoteando
minha cabeça para estar mais acima.

O professor Carlos Bins não se referia a mim, mas a um modo de produção. E, nesse modo
de produção, sempre houve racismo. Eu seria assediada e menosprezada por ser mulher,
mas seria beneficiada por ser branca. Sempre explico para quem se interessa por que me
chamo Antonádia. Não, não é algo estrangeiro – leia-se, europeu. É somente uma mistura
(popular, diriam os antropólogos que me formaram em Porto Alegre, dedicados aos estudos
das camadas populares) do nome de meu pai (Antônio) com o de minha mãe (Nadir). Para
aliviar o constrangimento de quem não poderia pensar em coisa tão esdrúxula, para alguém
de olhos tão azuis, brinco dizendo que ao menos eu não me chamo Antonadir ou que acho
bom, afinal, meu endereço eletrônico é antonadia@gmail.com. E, assim, com o desfecho
bem-humorado de quem aprendeu a arte burguesa da ironia, vou passando 48. Minha pele
permite que meu nome cafona não se torne um impedimento para que eu siga adiante −
ou, ao menos, que eu siga até certo limite.

Ao ir passando adiante, galgando um degrau aqui e outro ali na ladeira lamacenta, fui
deixando pessoas para trás, pisoteando cabeças. Porém, quero crer, apesar de desconfiar
muito dessa boa consciência, ao longo do caminho, fui me associando a outros párias. Em
nenhum outro lugar ser essa aberração que sou me deixou mais feliz – e também mais
decepcionada e triste – do que na sala de aula, ensinando e aprendendo. Na sala de aula
pude, talvez, ser eu mesma. E houve quem se sentisse à vontade comigo.
48
Refiro-me especificamente a “La Place”, de Annie Ernaux (1965).

35
Há vinte anos, vinha subindo uma das ladeiras não tão íngremes, mas bem lamacentas, da
Quinta da Boa Vista, para trabalhar no Museu Nacional. Um jovem me detém, me
cumprimenta e me agradece pelas aulas que eu dera e que haviam “mudado a sua vida”.
Não resta dúvida que há um exagero nesse agradecimento efusivo, mas, ao mesmo tempo,
nada o impelia a me abordar e a dizer o que disse. Ele não era aluno do Museu Nacional,
mas da Estácio de Sá, onde eu dera aula para turmas de administração de empresas quando
terminava de escrever minha tese de doutorado. No ano passado, 2022, recebo um e-mail
de um aluno dizendo que havia reconhecido um tanto tardiamente que minhas aulas
tinham “mudado sua vida”, sua perspectiva sobre o mundo. Ele fazia parte de uma turma
que havia me atacado nas ditas redes sociais com insultos misóginos. Embora tivesse
tentado uma reconciliação com a turma, mesmo depois do achincalhe, acabei ficando sem
condições emocionais e éticas de continuar lhes dando aulas, depois que algumas
estudantes e alguns estudantes reiteraram suas ofensas. Além daquele aluno em particular,
outros, poucos, me escreveram com palavras de agradecimento e pedidos de desculpa.
Embora eu já tenha dado aula para centenas de estudantes, a sensação constante é de
frustração e de impotência quando não consigo dar aula para todes numa sala de aula. Acho
que porque me considero, antes de qualquer coisa, professora.

Sempre que respondo a um questionário, preencho um formulário, escrevo professora.


Apenas, nada mais. Nem mesmo professora universitária. Jamais disse que era antropóloga
– algo que consideraria embaraçoso. As razões podem ser muitas, mas acho que tem algo a
ver com uma ideia de trabalho, de emprego, do salário que recebo no fim do mês (como
horista na Estácio, como bolsista Prodoc no Museu, como servidora pública no Colmex,
durante o período em que me licenciei da UnB e, agora, ainda como servidora pública na
Rural, no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura
e Sociedade - CPDA). Pode ter a ver com um senso de profissão. De novo, a ideia de Beruf.
Em zulu, o termo para professor é umfundisi. Sfiso Kunene (in memoriam) foi meu
umfundisi dos fragmentos de zulu que eu domino. O pastor de uma igreja também é
umfundisi. A etimologia da palavra assenta-se no verbo fundisa, que significa ensinar, mas
também influenciar – como o pastor e seu rebanho de fiéis. Vivo muito profunda e
seriamente essa ambivalência. Atualmente, me desorienta perder uma estudante para o
celular em sala de aula. Reviro-me do avesso e me pergunto se há meios de ensinar e
influenciar na era dos ensinamentos e da influência digital. Talvez sim, e o que me parece
mais importante: pouca coisa.

Eu dava aula na Estácio de Sá de matérias que não dominava (Formação Econômica


Brasileira, História Econômica Geral, Sociologia das Organizações, além de Métodos e
Técnicas de Pesquisa)49. Uma picaretagem, uns diriam. No entanto, empenhava-me em
49
Augusto César Freitas de Oliveira (in memoriam) era colega de Marcelo no IUPERJ e indicou meu nome
para o coordenador do curso de Administração, que funcionava no bairro da Freguesia. Quero agradecer-
lhe. Em 2002, além do incremento na renda, as aulas no Campus Jacarepaguá me ajudaram a evitar uma

36
ensinar aqueles jovens – muitos tão jovens quanto eu, à época − a navegarem no mundo da
educação superior. Eu me dedicava ao seu letramento e isso, de certa forma, não me
abandonaria jamais. A primeira disciplina que ofereci no Museu Nacional foi Etnografia de
Trabalhadores – por conta de meu interesse de pesquisa com os empregados na política.
Tive dois alunos. Um deles é meu colega hoje no CPDA, Andrey Cordeiro. Um artigo meu,
que curiosamente é muito “acessado”, intitula-se “Depois de Bourdieu: as classes populares
em algumas abordagens contemporâneas” (2004). Ele resulta dessa disciplina que ministrei
para dois estudantes no PPGAS do Museu Nacional. Nele eu contraponho alguns herdeiros
de Bourdieu − como Lahire, Wacquant, Beaud, Pialoux − ao cineasta britânico Ken Loach.
Ainda que divergentes entre si, afirmo que esses autores levantam dúvidas sobre as
possibilidades de seguir lançando mão do modelo bourdiano sem ressalvas. No entanto,
aponto para certa timidez estética em seus experimentos, em contraposição à radical
mudança que acompanha a obra de Ken Loach. A despeito de sua perene atenção ao
“mundo do trabalho”, o cineasta acompanha a transformação das subjetividades, sem
sucumbir à nostalgia dos “bons e velhos tempos” do pleno emprego ou da luta de classes
europeia e branca rumo à industrialização comunista.

Após essa primeira disciplina na pós-graduação, fui surpreendida no primeiro semestre de


2004 com a tarefa de oferecer Teoria Antropológica I para a turma de ingressantes no
mestrado. Novamente, havia pouca diferença de idade entre quem fazia a aula e eu mesma.
Estávamos aprendendo juntos. Alguns se sentiam estimulados com esse processo. Outros
tripudiavam com insolência e desrespeito. Lembro-me especialmente de um estudante cuja
falta de empatia por mim e pelos colegas prenunciava seu futuro como bardo
contemporâneo da extrema direita. Com o espírito de ensinar e influenciar (e, como
descobri, aprender), convidei colegas para minhas aulas. Os colegas que vieram para aulas
específicas não dominavam o palco por completo. Todos foram muito gentis em me deixar à
vontade em “minha aula”, mas suas contribuições foram memoráveis. A aula sobre Mauss
contou com Lygia Sigaud; sobre Lévy-Bruhl, com Marcio Goldman; sobre Lévi-Strauss, com
Eduardo Viveiros de Castro; e a sobre Boas, com Claudia Fonseca – que viera ao Rio ou
mesmo ao Museu (já não lembro mais) para participar de uma banca ou coisa assim. Foi
nessa turma que propus a etnografia no Dia de Finados. Foi também nessa turma que sugeri
para uma estudante, que se debatia com a falta de objeto, que ela poderia pesquisar o lixão
de Gramacho. Afinal, minha primeira experiência de campo havia sido numa vila de
catadores. Soube tardiamente que minha proposta tinha sido traumática para uma jovem
estudante da privilegiada Zona Sul do Rio. Nunca tive ocasião para me desculpar.

imersão esterilizante na produção da tese de doutorado. Trabalhei na escrita seguindo estritamente as


orientações de Mariza Peirano (por e-mail). Ela dizia que era possível escrever uma tese de 200 páginas em
oito meses. Seus números mágicos eram lendários: usar fonte Courier New 12 e espaço duplo para que
levasse dois minutos para ler cada página em voz alta, por exemplo. Além disso, me incentivava a
apresentar meus capítulos em congressos e a publicá-los em versões preliminares para testar minhas teses
com outros interlocutores. Ademais, morávamos no apartamento dela, no Cosme Velho. Essas condições
ideais de existência não podem ser confundidas com um pragmatismo individual. Terminei o doutorado em
exatos quatro anos porque tive muito apoio, de muitas mãos e as do Augusto e da Mariza foram das mais
generosas.

37
Situações semelhantes se repetiriam muitas vezes ainda. Minha tolerância para dramas de
pessoas “bem-nascidas” sempre foi menor do que a que eu dispunha para lidar com quem
julgava que enfrentava problemas de sobrevivência. Era, ou talvez ainda seja, assim. Não
conseguiria simpatizar com o dilema de um aluno de graduação que se debatia com o
sentido de fazer antropologia atualmente – diante da herança colonial da disciplina, das
perspectivas estreitas de “empregabilidade”. Eu lhe disse – e, como no caso anterior, diante
dos demais, produzindo uma situação vexatória e assimétrica de embate, da qual nada me
orgulho – que não poderia ajudá-lo, pois, eu, eu mesma, só fazia antropologia por dinheiro.
A afirmação retumbou na sala de aula. Obviamente eu não era uma mercenária que se
locupletava sendo antropóloga. O meu ponto se relacionava novamente com a ideia de um
trabalho. Quando dei aulas no Colmex, o colega Minor Mora – que era costa-ricense, irmão
de outros sete ou oito crianças e com pai pedreiro – nos lembrava, sempre que
reclamávamos das agruras da vida acadêmica: − Aun peor es trabajar.

No Colmex, passei num concurso altamente disputado para uma vaga num centro de
estudos de gênero extremamente influente naquele país. No Programa Interdisciplinario de
Estudios de la Mujer, sugeriria a uma aluna que era de Mazatlán e que se interessava pelo
trabalho de mulheres na indústria de atum que embarcasse num trabalho de campo com
mais suor – à semelhança de suas interlocutoras em campo. Caro Peláez foi uma das tantas
alunas que lá tive e que mergulharam com paixão no trabalho etnográfico entendido nesses
termos, como trabalho – como labor que fadiga o corpo e que nos aproxima daquelas
pessoas que nos recebem. Quando retornei a Brasília, algumas alunas do Colmex viriam
estudar na UnB – como Paulina Gutiérrez Martínez ou Natália Cabanillas. A recepção tão
acolhedora por parte delas de meus ensinamentos e influência pode ter a ver com essa
empatia que havia em situações de maior simetria pessoal (de classe? e o espectro de Marx
segue me rondando), em que eu me via aprendendo muito com tudo o que elas
compartilhavam. De certo ângulo, eu estava a lhes dizer “a mesma coisa”, mas, aos ouvidos
da aluna do Museu, minha sugestão de pesquisa soou como zombaria, enquanto para a do
Colmex, a dica abriria portas a um modo de investigação visceral e criativo.

Não fiquei muito tempo no Colmex a ponto de poder experimentar mais em sala de aula –
acabei ministrando disciplinas obrigatórias, apenas. No Museu Nacional, dei aulas sobre
temas que me instigavam. Além de trabalho − um curso de escrita etnográfica −, fundei um
laboratório de escrita: um espaço para as orientandas que se estendia a outros estudantes.
Suely Kofes já era uma inspiração para mim, embora eu mal soubesse o quanto
conversaríamos sobre narrativa e fonte literária para a análise etnográfica. Naquelas
ocasiões, pude também passar adiante algo que havia aprendido com Mariza Peirano,
acrescentando alguma coisinha minha a um curso sobre rituais (e fundamentos de
linguística e filosofia da linguagem).

38
O lugar onde por mais tempo dei aula, no entanto, foi a Universidade de Brasília. Vivi de
tudo por lá. Os doutorandos do PPGAs, conhecido como DAN, ainda hoje dão uma disciplina
de Introdução à Antropologia para a graduação. Não foi diferente comigo, no primeiro
semestre de 2000: bem antes de eu terminar meu doutorado, no mezanino do Minhocão,
entrei em sala de aula sem que os estudantes que estavam à porta, à espera, me
acompanhassem50. Eram calouros e acharam que aquela garota só poderia ser uma
veterana zoando com eles. Ao menos alguns dos que fizeram essa disciplina comigo se
tornariam professores universitários, meus colegas, hoje. Em 2 de janeiro de 2006, após
uma greve, comecei a dar aula como servidora pública de Teoria Antropológica para uma
turma que era de Mariza Peirano. A responsabilidade era imensa. Faltava-me jeito para dar
aulas a estudantes em processo formativo. Eu tinha passado os últimos anos dando aula na
pós-graduação, para turmas pequenas, de estudantes já graduados – mesmo que nem
sempre em ciências sociais. Nos embates que tivemos, foram os estudantes dessa primeira
turma que me ensinaram a dar aula. Muitos deles se tornariam meus orientandos, como
Fabíola Gomes, Gustavo Augusto e Gabriel Mesquita. Jiwago Henrique de Jesus Miranda
estudava nessa turma.

Nos anos subsequentes, até minha passagem pelo Colmex, dei aulas na graduação e na pós-
graduação. Como acontece com algumas de nós e, curiosamente, quase nunca com outros
colegas, muito frequentemente dei aulas de teoria antropológica. Eventualmente ofereci
disciplinas que me permitiam experimentar com uma literatura alternativa ou com uma
bibliografia diretamente ligada aos meus projetos de pesquisa. Recordo-me, por exemplo,
de duas disciplinas que ofereci na graduação 51. Uma delas era sobre antropologia e cinema.
Tinha entrado de cabeça numa antropologia que me parecia atraente, ainda na graduação,
por conta da influência de Leandro Saraiva, um grande amigo que acabou por enveredar
pelo mundo do cinema, como roteirista, e hoje é professor na UFSCar. Como resultado
daquela disciplina, publiquei um artigo acerca dos filmes “Tsotsi” (que foi laureado com um
Oscar) e “Yesterday”. Nele eu confrontava as narrativas e as imagens das duas obras ao
cenário da minha pesquisa na África do Sul. O problema de que tratei se tornaria uma
questão perene para mim: como não sucumbir (na etnografia) ao encantamento da
narrativa mestra − como alerta Njabulo Ndebele − que faz desaparecer o lirismo da vida
vivida, entronizando o apartheid ou o capitalismo como chaves-mestras que abrem tudo à
exploração? Naqueles filmes, em fragmentos pouco relevantes, era possível ir além das
amarras da violência urbana (que tinham levado Tsotsi a sequestrar um bebê) ou da
tragédia humanitária (que tinham trazido um vírus devastador para o corpo de Yesterday).

50
Minhocão é o nome mais adequado dado ao Instituto Central de Ciências, também conhecido como
ICC, que tem 700 metros de comprimento. Eu não daria mais muitas aulas de graduação no ICC, pois
estavam sendo construídos os pavilhões de aula, que seriam o meu local de trabalho mais frequente. No
Minhocão funcionava também o Departamento de Antropologia, onde ficavam nossos gabinetes de
trabalho. Mudamos para o novo prédio do Instituto de Ciências Sociais em 2014.

51
Muito em virtude das pesquisas ao longo da vigência do projeto Um Toque de Mídias, ofereci outra
disciplina bastante proveitosa sobre antropologia em contextos escolares.

39
Em outra ocasião, as mesmas inquietações sobre narrativa e formas de arte me levaram a
oferecer uma disciplina sobre antropologia e literatura. É possível dizer que se inspiraram
fortemente nesse investimento o artigo intitulado Cães e Preconceito, o mais recente Very
Rural Background e o trabalho que desenvolvo agora sobre o romance “The Promise”, de
Damon Galgut. Neles, assim como naquele sobre cinema de ficção, a obra literária me
acompanha na leitura de meu próprio trabalho de campo na África do Sul, como acontecera
quando trouxe Lima Barreto e a luta contra a saúva para o reassentamento de atingidos por
barragem no sudoeste paranaense. Consigo dessa forma produzir uma série de
triangulações que vão se imiscuindo, tendo suas fronteiras borradas. O eu lírico dos autores
desses romances nem sempre coincide com seus autores (Coetzee, Dangarembga, Galgut)
ou com as grandes amarras imaginativas sobre as quais nos adverte Ndebele. Mais
enfaticamente do que em outros trabalhos que escrevi, nesses com obras literárias que se
passam no sul do continente africano, a terra se impõe como um objeto e um cenário de
disputas éticas e estéticas em que a forma da narrativa dá os contornos das formas de vida
que se consegue alcançar analiticamente na literatura e na etnografia. Nem sempre
comungando com os ideais do estado-nação-moderno-democrático-pós-colonial, esses
autores e seus personagens permitem reposicionar as etnografias que se pretendem
“realistas” no tratamento de questões ligadas à terra, justamente por indicarem o caráter
efêmero dessa constante movimentação das infinitas triangulações possíveis.

Na UnB, assim como no Museu Nacional – à diferença do Colmex e do CPDA –, as


orientações não eram definidas a priori. Em geral, era na sala de aula que se construíam as
afinidades para a definição das relações de orientação. Minhas primeiras orientandas foram
Camila Medeiros, Clara Flaksman e Virna Plastino 52. Ao chegar à UnB, como aconteceu
quando de meu ingresso no CPDA, fui indicada para orientar uma aluna que era
supervisionada por um professor que havia se licenciado e não mais retornaria. Maria
Janete Albuquerque de Carvalho era servidora pública e indigenista. Com aquela quarta
orientação, eu já tinha elementos para prever que não era escolhida para “dirigir” (como se
fala em espanhol) uma tese por afinidade temática, mas por ser uma boa leitora (e editora),
por trazer referências fora do campo específico das pesquisas (menos temáticas e mais
epistemológicas, talvez…), por exigir revisões sistemáticas da literatura (aqui sim, temática),
por me reunir e dar retornos concretos a quem eu supervisionava. Quase todas as pessoas
que orientei subscreveriam essa minha autodescrição feita sem nenhuma modéstia. Alguns,
52
No PPGAS do Museu Nacional orientei as seguintes dissertações:

Camila Pinheiro Medeiros. Mulheres de Kêto: etnografia de uma sociedade lésbica na periferia de São Paulo
(2006).

Virna Virgínia Plastino. Dança com Hora Marcada: uma etnografia da atração social em bailes de salão no
Rio de Janeiro (2006).

Clara Mariani Flaksman. Santos dos Últimos Dias: etnografia e pesquisa mórmon (2007).

40
porém, não pensam assim. Tive certas experiências bastante frustrantes de orientação.
Pessoas com quem pouco aprendi, que não consegui ensinar ou influenciar e que – pelo que
me lembro – me causaram uma boa dose de decepção e sofrimento.

A sala de aula tampouco era sempre um espaço de liberdade e criatividade. Às vezes a coisa
dava certo, como quando ao estudar o artigo Baloma, estudantes divididos em grupos
encenaram expedições não marítimas de um prédio a outro no campus, transportando não
soulavas e não mwalis e mais presentes em visitas e homenagens aos outros não ilhéus. Em
outras, porém, tudo dava muito errado, a ponto de em certo dezembro eu terminar um
semestre em frangalhos, chorando o caminho inteiro do Minhocão até minha casa, na
Colina, pensando seriamente em nunca, jamais, voltar a pisar numa sala de aula.

As orientações de iniciação científica, de monografias de graduação, de dissertação de


mestrado e de tese de doutorado eram atravessadas pelo mesmo pathos. Ora eu me
sensibilizava e entrava em sintonia com os trabalhos daqueles que orientava, ora me
distanciava e, por vezes, de maneira definitiva. Nem sempre pude, mas apreciava muito
quando conseguia conhecer o campo de pesquisa de minhas orientandas. Eu tivera uma
experiência dessas, muito feliz, com Claudia Fonseca. Ela tomara o ônibus comigo em Porto
Alegre, e juntas viajamos as 13 horas que nos separavam do reassentamento no sudoeste
do Paraná. Quando suas ex-orientandas lhe fizeram uma homenagem, eu narrei esse
mesmo evento53. O ônibus cruzou a ponte sobre o rio Chopim. Chopim ou chupim é o
mesmo que melro, um pássaro ordinário, conhecido por colocar seus ovos para serem
chocados em ninhos alheios (escrevendo agora, foi inevitável lembrar os escritos de Claudia
sobre adoção e circulação de crianças). Pois bem, Claudia, com aquele sorriso largo, e certa
exasperação constante diante das belezas do mundo, celebra que tínhamos cruzado –
naqueles confins – o rio Chopin. Ela adorava Frédéric Chopin. Tocara piano (ou violino?)
quando mais jovem. Ficou muito emocionada.

Não lembro se a tirei daquele transe imediatamente ou se a deixei apreciar o prazer daquela
interpretação fugaz, daquela atribuição de sentido efêmera. Aquele episódio – junto com a
sua companhia naquela viagem longa e difícil – me ensinou mais do que todas as aulas e
livros que eu lera até ali. Não sei se Claudia desceu comigo no posto de gasolina à beira da
estrada, ainda no meio da noite escura, e tampouco se foi recepcionada pelo mesmo cão
assustador que ladrava e espumava em minha direção quando eu, simples vira-latas, viajava
sozinha e esperava o dia raiar, momento em que um dos extensionistas rurais da ONG local
passava e me dava carona rumo à sede do reassentamento.

53
O livro se chama Etnografia, o espírito da antropologia: tecendo linhagens: homenagem a Claudia
Fonseca. Foi organizado pelas colegas Jurema Brites e Flavia Motta, e publicado em 2017.

41
Com esse espírito, em certo momento, passei a convocar os estudantes sob minha
orientação em bando. Assim nasceu o gesta – grupo de estudos em teoria antropológica 54.
No Museu Nacional já orientava assim. As alunas que eu supervisionava foram apelidadas
de antonetes. Em reação à ironia da alcunha, elas passaram a assim se proclamar. Era um
bom jeito de reagir à estupefação alheia por terem escolhido ser orientadas por uma total
desconhecida, quando havia tantos professores realmente famosos à sua volta. Ao longo
dos anos, no gesta, discutíamos coletivamente o que alguém escrevia (eu mesma me
beneficiei dessas leituras críticas e, quase sempre, generosas) e, também, literatura de
inspiração geral. Novamente, era reconfortante ver a generosidade de quem se fazia
presente em todos os encontros, contribuindo; e absolutamente desagradável e
decepcionante aqueles estudantes que só apareciam para apresentar os seus trabalhos ou
discutir um autor útil à sua tese. Nunca soube muito como lidar com esses sujeitos
mesquinhos, pois na maioria das vezes nem sequer se davam conta da artimanha e de sua
falta de decência. Eu só não me tornava amiga dessas pessoas – o que não quer dizer que
não me envolvesse emocionalmente com elas, pois a raiva me mobiliza muito, ainda.

No gesta passaram não só orientandas, mas também visitantes – alguns, inclusive, longevos
membros honorários de nossa causa comum. Em plena pandemia e depois de minha
mudança para o Rio, conseguimos nos reunir nas plataformas digitais de encontro e
escrever a várias mãos um artigo que nos deu muito prazer, sobre os cem anos de
“Argonautas do Pacífico Ocidental”55.

A experiência de escrever junto – ainda mais com mais de um coautor – é-me bastante
excruciante, pois não consigo ponderar bem o quanto devo guiar e o quanto devo me deixar
levar. Há dez anos, depois de dar um semestre todo de aulas basicamente sobre o
antropólogo Archie Mafeje, escrevemos (a turma toda) um artigo ao final da disciplina.
Aquele foi um momento glorioso. Era o ápice de uma era, posso dizer. Não fora façanha
minha ter a chance de dar aula sobre aquele autor e sobre a literatura que nos fazia
entendê-lo. Eu havia sido recepcionada na África do Sul por colegas como Lungisile
Ntsebeza, mas também por Divine Fuh, Francis Nyamnjoh e Elaine Salo, que muito tinham
me ensinado. Todos eles viriam ao Brasil, os últimos dois para um encontro da Anpocs,
participar de uma série de conversas sobre os BRICS – capitaneada pelo meu então colega
de departamento Gustavo Lins Ribeiro, e que eu também ajudara a organizar.

54
Certa feita, recebi um e-mail de uma colega da UFMG que coordena um grupo chamado GESTA,
reivindicando o copyright da sigla. Aquilo me surpreendeu muito negativamente, pois eu não havia roubado
nada de ninguém e, tampouco, meu grupo tinha qualquer existência “oficial”. A brincadeira com a palavra
pouco usual – gesta –, da qual nos tornamos íntimos, assim como do herói Asdiwal, era o que nos tinha
estimulado. Imagino que o mesmo acontecera com a colega de Minas.

55
Refiro-me a Argonautas, Monumental e Incompleto. Revista Pós-Ciências Sociais, v. 19, p. 375-397,
2022, escrito por Stella Paterniani, Gustavo Belisário, Roberto Sobral, Caio Mader e por mim, em um
número organizado por Martina Ahlert.

42
Eu havia falado em Pretória – na embaixada do Brasil – sobre essa colaboração, a partir de
um convite de Alan Mabin, que tínhamos conhecido por intermédio de Lygia Sigaud e Carlos
Vainer. Alan e sua companheira historiadora Cynthia Kros iriam também a Brasília, onde
falariam num evento organizado por nós da antropologia e por colegas do urbanismo da
faculdade de arquitetura. Por meio deles eu conheceria Maria Fernanda Derntl e Elane
Peixoto, da FAU-UnB, que, ao lado de Cristina Patriota, coordenariam um projeto sobre
escolas. Nele elas levariam adiante uma discussão sobre a mobilidade e a segregação de
crianças e jovens na capital modernista, que eu havia esboçado não somente em minha tese
e no projeto Toque de Mídias, mas na pesquisa com alunos da licenciatura em ciências
sociais que participavam de um grupo organizado por mim e pela professora Sayonara Leal.
Com Sayô, dividíamos a sala de aula para orientar dezenas de alunos que iriam se tornar
professores de ciências sociais no ensino médio 56. Nós duas nos beneficiávamos da
contribuição que nos davam colegas dedicados mais detidamente a esses problemas, como
Diana Milstein, argentina, que havia feito doutorado no DAN, cuja tese eu examinara e que
se tornaria uma grande amiga e companheira de pesquisa. Juntas, ao lado de Regina Coeli
Machado – que fez um pós-doutorado no DAN, graças ao qual me tornei sua amiga e
admiradora –, organizamos eventos e escrevemos, no âmbito da RIENN57.

A pesquisa em escola, com crianças e jovens (e também professores e outros trabalhadores


escolares), nasce dos desdobramentos de investigações anteriores (como a que tive no
Recanto das Emas, para minha tese de doutorado). No entanto, o que me parece mais
importante é a constatação de uma linha comum de interesse. Nunca me dediquei a uma
antropologia da infância ou da educação propriamente (embora tenha dado algumas
disciplinas para discutir a literatura etnográfica a respeito). Nascida desse enredo construído
por sujeitos com quem tenho pesquisado desde sempre, minha premissa – ou melhor,
hipótese – é a de que crianças também são etnógrafas. Desenvolvi essa ideia em diálogos
com ao menos três estudantes que enveredaram pela antropologia com crianças: Raissa
Menezes, Gustavo Belisário e Veronica Kaezer. Esta última, em sua monografia de
graduação e com seu olhar arguto, acompanhou-me nas reflexões sobre o conhecimento
que as crianças do Recanto das Emas tinham da infraestrutura, dos equipamentos urbanos e
da desigualdade em meio a suas brincadeiras. Nosso trabalho foi acolhido pelas colegas
Victoria Lawson e Sarah Elwood, no âmbito de Relational Poverty Network, onde
56
Desta experiência de tutoria para as primeiras turmas de licenciados em ciências sociais que entrariam
em sala de aula para dar aula de sociologia (com pinceladas de antropologia) no ensino médio resultaram
algumas publicações. Uma delas foi também um texto escrito por várias mãos: ABorges; AFerreria; BSilva e
GSantos. Faça o que eu digo, mas não faça o comum: uma reflexão acerca da prática etnográfica voltada
para a compreensão do itinerário do ensino de Sociologia dos bancos acadêmicos ao interior das escolas
brasileiras. In: Conhecimento Escolar e Ensino de Sociologia: instituições, práticas e percepções. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2015, p. 295-307.

57
RIENN é sigla para Red Internacional de Etnografìa con Niños, Niñas y Adolescentes. Entre várias
atividades (encontros presenciais e virtuais, bancas etc.), temos nos dedicado a algumas publicações
coletivas também. Um capítulo está no prelo, em parceria com minha ex-orientanda, Raissa Menezes, além
do artigo coletivo: RMachado; MDantas-Whitney; ABorges e ROliveira. Do inesperado em etnografia com
participação de crianças e jovens. Revista del Cisen Tramas/Maepova, v. 7, p. 175-200, 2019.

43
desenvolvemos o projeto A Contínua Luta: Research on politics against the State as a killing
system.

Raissa Menezes levou outro projeto adiante, observando a importância da brincadeira com
certas texturas inerentes ao mundo das ocupações urbanas (como os sacos de cimento, por
exemplo). Já Gustavo Belisário, em sua dissertação de mestrado, levou ao limite a ideia de
brincadeira, lançando-a sobre os adultos do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra,
que a acionavam para se posicionar diante de um Estado que, ao tempo que parece “estar
de brincadeira”, “não sabe brincar”. Chamei essa forma de conhecer de etnografia popular:
“quando o antropólogo é apenas uma a mais entre as pessoas que dedicam boa parte de
seus cotidianos a fazer perguntas, formular hipóteses, testar alternativas e a inventar
teorias a respeito de suas vidas e das vidas dos Outros”. Roberto Sobral, outro aluno e
parceiro de com-fabulações, ao se referir a esse conhecimento antropológico sem a
chancela institucional, fala por sua vez de antropologia amadora (no duplo sentido de
apaixonada e não disciplinária).

No final da década de 2010, passei algumas vezes por Buenos Aires, para trabalhar com
colegas da Facultad de Filosofia y Letras, da Universidad de Buenos Aires e do Instituto de
Altos Estudios Sociales da Universidad Nacional San Martin. Lá ministrei aula – lembro
especialmente da disciplina Brujería en la Teoria Antropológica, no IDAES, que renderia
futuramente algumas edições da disciplina de Epistemologia da Antropologia, ministrada na
UnB, e o livro Razão e Poder na Teoria Antropológica, publicado em 2014 . Daquele período,
o que me lembro com mais força é das distinções entre o termo popular aqui e lá. Eu
poderia me perder aqui e elucubrar sobre as significações distintas do termo populismo e
tudo o mais. No entanto, em parte porque me falta a competência no tema, como a detém
meu colega Jorge Romano, irei me ater apenas ao tipo de trabalho etnográfico – de campo –
a que meus colegas se dedicavam.

Acompanhando Pablo Seman e uma de suas orientandas e hoje colega, Cecilia Ferraudi,
pude apreciar como eles prestavam a devida atenção (leria isso em Isabelle Stengers) ao
que lhes diziam as pessoas das villas. A história da militância política de esquerda e da
universidade argentina dava margem para que amigas como Mabel Grimberg e sua então
orientanda Virginia Manzano também tomassem abertamente seus interlocutores em
campo como intelectuais. As “teorias” antropológicas em voga (mais hegemônicas) na
época eram as mesmas, aqui e lá. O que mudava era uma postura existencial desse grupo
de colegas que se tornaram meus amigos ao longo dos anos. Eles se recusavam a adotar um
voyeurismo de classe, a investir em traduções supostas como eruditas das proposições de
seus interlocutores58. Não havia nada de simplório no que diziam, nem simples.
Generosamente, esses colegas me conduziram por seus lugares diletos de trabalho de
58
A trajetória de Virginia Manzano e outros acadêmicos da nossa geração que nasceram na periferia
(conurbano) de Buenos Aires é apresentada em Barro Seco. Trayectorias desde el conurbano profundo
hacia el mundo intelectual, de Alicia Méndez, publicado em 2022.

44
campo, onde tinham, em alguns casos, ao longo de décadas, construído relações de
solidariedade e respeito mútuo com seus interlocutores.

O mesmo se passou em 2008, com Sophie Oldfield, colega da University of Cape Town, cuja
pesquisa se dava numa ocupação urbana chamada Valhalla Park. A partir de um artigo meu
sobre as waiting lists59, descobrimos elos para aproximar as experiências de segregação
espacial racista e modernista em Brasília e em Cape Town. Numa disciplina para estudantes
de pós-graduação, dei um módulo sobre “Political Engagement and Housing Policies in
Brasilia”, em que pude compartilhar o conceito de etnografia popular, a partir da pesquisa
no Recanto das Emas, tendo também como estudantes moradores de Valhalla, que
assistiam à aula. A natureza da conversa que se seguiu foi a mais criativa e inaudita em toda
a minha vida acadêmica até aquele momento. Procurei tratar do impacto dessa experiência
no artigo “Explorando a noção de etnografia popular” (2009). Nele, lembro que:

“quando se apresentavam, as pessoas que eu acabava de conhecer diziam seu nome e


seu papel naquela conversa: ‘we are researchers’ [...]. Ao longo de nossa conversa, era
como se invertessem a expectativa usual de uma pesquisa [...]. Os outrora nativos nos
devolviam algo que antes lhes era unilateralmente dirigido, afirmando para os
acadêmicos da universidade: os seus problemas nos interessam [...]. Os pesquisadores
da universidade e os pesquisadores dos informal settlements tinham questões
particulares que interessavam a uns e a outros.”

Nos anos seguintes, Sophie Oldfield visitaria o Brasil. Compartilharíamos o espaço da sala de
aula na UnB, e eu a levaria para conversar com alguns velhos conhecidos do Recanto das
Emas. Posteriormente, pude recebê-la em Kwazulu-Natal, onde dividiria com ela nosso
contexto de pesquisa e expandiria os diálogos com colegas envolvidas em problemas
semelhantes, como Elaine Salo e Richa Nagar. Ambas, potentes acadêmicas que, em
momentos distintos e com objetivos também diferentes, fariam o percurso até o Brasil e se
tornariam companheiras de jornada cruciais para mim. Elaine faleceu precocemente. Richa
visitou Brasília quando eu era diretora de pós-graduação e fez, além da aula inaugural para
todos os programas de pós-graduação da UnB, uma oficina de escrita a partir do conceito de
radical vulnerability. Estive em Minnesota dividindo a sala de aula com ela. A partir de nossa
colaboração e dos diálogos dela com nossos estudantes, passei a fazer parte do coletivo
Agitate!, onde tenho desfrutado de debates dos quais jamais participaria (como comentar
uma seção do The Routledge Handbook of Critical Kashmir Studies ou traduzir um poema de
Abhay Flavian Xaxa).

Não Sou Seu Dado


Abhay Flavian Xaxa

59
Refiro-me ao artigo On people and variables: the ethnography of a political belief. Mana, v. 2, p. 1-21,
2006.

45
Não sou seu dado, nem seu eleitorado,
não sou seu projeto, nem projeto de exótico museu sou eu,
não sou uma alma à espera de ser ceifada,
nem o laboratório onde sua teoria é testada.

Não sou carne para canhão, nem trabalhador transparente,


nem sirvo para em um centro de convenções lhe fazer contente.
Não sou seu campo, sua multidão, sua história,
sua ajuda, sua culpa, as medalhas da sua vitória.

Eu recuso, rejeito, resisto


aos seus rótulos, seus julgamentos, documentos, definições,
seus modelos, líderes e patrões,
por negarem a mim minha existência,
minha visão, meu espaço.

Suas palavras, mapas, cifras, indicadores,


criam ilusões
e
colocam você em um pedestal,
de onde me olha de cima para baixo.

Prefiro desenhar meu próprio retrato e inventar minha própria gramática.


Faço minhas próprias ferramentas para lutar minha própria batalha,
por mim, meu povo, meu mundo, meu ser Adivasi!

Em suma, quando via esses colegas em campo ou em sala de aula – quando dava aula ao
seu lado – e observava a reação de seus estudantes, aprendia ser possível promover
aproximações que aqui no Brasil eram – na época – consideradas excessivas. Não estou
falando de militância, ou talvez esteja. O fato é que em lugares como o Museu Nacional ou a
Universidade de Brasília, nos programas de antropologia, embora houvesse quem se
envolvesse com movimentos sociais, havia uma opinião majoritária (não um consenso
propriamente) de que aqueles sem letramento acadêmico precisavam ser traduzidos,
legendados – para se sentarem à mesa com os acadêmicos.

Falar em legenda me faz recordar do último filme que vi de Adirley Queiros (“Mato Seco em
Chamas”, de 2022). O filme é falado no idioma das quebradas do DF e não há legendas para
quem não fala aquela língua. Quando Lygia Sigaud revolucionou a paisagem do Museu
Nacional com a exposição Lonas e Bandeiras, legendaram-se os vídeos. A legenda
minimizava um desentendimento que, por outro lado, seria muito profícuo. Era nos áudios à
disposição em certos espaços da exposição – com as falas diretas dos sem-terra
pernambucanos – que se abria um espaço para o que Richa Nagar chama de radical
vulnerability: quem ouvia e via aquele teto de foices e enxadas e facões, aquelas lonas
pretas como abrigo, aquela Kombi como transporte, não deveria fazer analogias ligeiras.
Não deveria haver entendimento cristalino para tudo aquilo. Quem deveria ficar pequena
era a antropologia diante disso que chamo de etnografia popular. Este conceito me colocou

46
na condição de alguém que poderia reposicionar aquela mulher da Vila Dique diante do
croqui de um corpo “humano”. E isso aconteceu porque eu mesma pude ser alçada à
condição de alguém que tinha algo a dizer – a despeito de não estar inscrita, imiscuída,
impregnada pela história ocidental, pela tradição iluminista, pelas benesses da civilização,
da boa educação da elite.

Alguém poderá ponderar que essa possibilidade há muito fora anunciada e, em


consequência, chancelada por autores tão em voga como Roy Wagner, Marilyn Strathern –
para mencionar os grandes. O caso é que naquele momento esses autores eram
consumidos em círculos muito específicos (se é que ainda não o são). Não faziam parte das
referências da antropologia mainstream brasileira, que era (e eu arriscaria a dizer que ainda
o é) a que chegava aos quatro cantos do país. Mesmo agora, quando deixam de sê-lo, não é
certo que quem os acione o faça em virtude de alguma vulnerabilidade radical. Pelo
contrário, o embruxamento que a prepotente torre de marfim acadêmica propaga parece
mais forte do que qualquer autocrítica cultivada nas prestigiosas universidades europeias ou
norte-americanas.

“A bruxaria envenena, mata. E o menosprezo à bruxaria explica o eterno


retorno ao encontro colonial − ao momento fundacional em que europeus
razoáveis encontram nativos irracionais e, em sua benevolência, dedicam-se
ao seu aniquilamento − ou pelo extermínio ou por sua conversão em
igual/mesmo. A condição de sobrevivência é o desembruxamento, que passa
por um entendimento ritual de que a existência não se reduz aos
esquadrinhamentos do capital. Como bem sintetizam Pignarre e Stengers
(2005), ao tempo que tal embruxamento não tem autoria precisa, há dedos de
todas as mãos envolvidos nessa operação de destruição planetária. Voltando o
olhar para a vida acadêmica, reconheçamos nossa ação (mormente por inação)
na produção da dispensabilidade do diferente, a ponto de tirar-lhe a vida, de
produzirmos sua morte.”60

Atribuo essa minha desconfiança a debates dos quais participei, especialmente na Índia, a
partir de 2009. Não é preciso dizer que a vida acadêmica indiana é complexa e que, ao
tempo que olham de longe, muito longe, os grandes centros de pesquisa em ciências sociais
do Atlântico Norte, também os atravessam de maneira contundente, por meio do trânsito
de intelectuais indianos de grande renome61. Intelectuais que se tornam, a partir dessas
estadas (por vezes de uma vida) na América ou na Europa, referências globais ou, ao menos,
do Sul Global, como pude experimentar quando comentei Ashis Nandy numa palestra que
fez no El Colegio de México, em evento organizado por dois colegas que muito me
incentivaram por lá: Ishita Banerjee e Saurabh Dube.

60
Excerto extraído de Very Rural Background: os Desafios da Constituição Terra da África do Sul e do
Zimbábue à Chamada Educação Superior. Revista de Antropologia, v. 63, p. 1-30, 2020.

61
Mariza Peirano. For a Sociology of India (1991).

47
Minha mudança de rota intelectual em direção à Índia foi possibilitada justamente por
conta desse entramado norte/sul, por meio do colega Claudio Pinheiro (hoje no
Departamento de História do IFCS/UFRJ), que me permitiu receber em Brasília a
historiadora Janaki Nair. Nossa parceria me levou a ser convidada como visiting scholar pelo
mesmo South-South Programme for Research on the History of Development (Sephis) para
minha primeira estância no Centre for Studies in Social Sciences em Calcutá, onde fui
recepcionada pelo saudoso Anjan Ghosh. Essa primeira experiência possibilitou ainda que
estreitasse laços com o Centre for Development Studies em Thiruvananthapuram, em
especial com J. Devika, que recebeu a mim e a minha então orientanda Fabíola Gomes 62.

Fabíola e eu ainda seriamos acolhidas, em diferentes oportunidades, por Janaki Nair, que se
deslocaria para o Centre for Historical Studies da Jawaharlal Nehru University, e também
pelos colegas antropólogos do Department of Sociology da Delhi School of Economics da
Delhi University: Satish Deshpande (e sua companheira, scholar independente, Mary John),
Rajni Palriwala e Janaki Abraham, entre outros. No Departamento de Sociologia, apresentei
um paper que depois foi publicado em uma série da Delhi School 63. Nele, apresento minhas
anfitriãs como investigadoras envolvidas em verdadeiros processos de pesquisa
laboratoriais, dedicadas a produzir evidências que as levem a ter de volta a terra de onde
foram expulsas pelas remoções racistas perpetradas durante o apartheid:

“my hosts − scientist in their own right, I argue − in their attempts to challenge
categories and slots they do not believe to be adequate or framing their livers
[...]. Like Thobekile, Sigongile acts like a state official, cataloging information
and setting aside news publications, old photographs, 'pass' copies etc. [...].
Sibongile has created her own method of investigation by producing evidence
that proves the veracity of a tiny part of her long life [...] with material
evidence. Memories, whether bad or good, do not suffice […] she does not
consider the records emblematic of herself, but simply as something the
government wants.”

Em Delhi, em outras ocasiões, compartilhei com colegas minha experiência de pesquisa no


Brasil e na África do Sul e, a partir disso, especialmente com Janaki Abraham, temos
mantido uma frutífera troca. Com Virginia Manzano, Sophie Oldfield e Janaki Abraham
montamos painéis para a discussão de nossas pesquisas no congresso da IUAES
(International Union of Anthropological and Ethnological Sciences), que ocorreu em 2018,
em Florianópolis, e naquele que está previsto para outubro de 2023, em Delhi. Janaki está

62
Fabíola Gomes foi para a Índia em 2009 como assistente de pesquisa do projeto que eu coordenava,
intitulado Acesso à Terra e Proteção de Direitos Humanos e Sociais de Mulheres: Perspectivas Comparadas
sobre África do Sul, Brasil e Índia, que recebera financiamento da Fundação Ford, por meio do Programa de
Apoio à Pesquisa sobre Países Intermediários e ao Intercâmbio com o Brasil. Fabíola Silva Gomes defendeu
sua tese em 2015, intitulada O compromisso de casar e o desejo de amar: experimentos existenciais entre
jovens abastados na cidade de Nova Délhi.

63
Anthropology and Social Experts; Agency, Creativity and the refusal do Inhabit categories. New Delhi:
Delhi School of Economics, 2009.

48
organizando um número de Urban Ethnographies que conta com um artigo meu sobre o
lote, em que releio minhas investigações de luta por terra e moradia a partir da noção de
plot, desenvolvida por Sylvia Wynter (plot como extensão de terra de cultivo na
plantation/roçado e plot como forma narrativa do romance moderno).

Esses meus mais recentes interesses de pesquisa, embora distintos, guardam forte relação
com o que fiz até há pouco. Tenho me dedicado, nos últimos tempos, a entender a
plantation não como um modo de produção de mercadorias agrícolas, mas como um
dispositivo cognitivo. O caminho para chegar a tal tema ancora-se profundamente na
persistente presença do modernismo como um entrave monstruoso e incontestável contra
o qual se ergueram meus interlocutores de pesquisa em todos os contextos em que fiz
trabalho de campo. Em parceria com Zezé Carneiro, compartilhei em 2022 uma disciplina no
CPDA, em que tratamos do potencial analítico do conceito de plantation para repensar a
posicionalidade do rural no universo das ciências sociais.

Em minhas pesquisas e nas disciplinas que ministrei, pude ver nos trabalhos de tese de
estudantes que orientei, mas também em trabalhos de conclusão que examinei, a força
analítica e política dessa formulação. A pretensão aqui é acionar um conceito ou um corpus
conceitual que atravesse zonas em geral fechadas, a partir de um enquadramento temático
restrito ao agrário. Sinto um enorme alívio com essa possibilidade. Se retomo meu percurso
como investigadora, reconheço que nunca me identifiquei como alguém que fazia pesquisa
sobre gênero e sexualidade, ou sobre etnicidade e o mundo rural, ou sobre urbanismo e
políticas públicas de habitação, ou sobre políticas sociais; ou, ainda, sobre segregação e
reforma da terra, ou sobre racismo e letramento. Era impossível. Não havia permanência
aparente em uma área de expertise. Porém, como olho o passado de hoje, parece-me que
algo se manteve, se desdobrou e vicejou. Eu não admirava o confinamento temático, nos
escaninhos determinados, da boa academia. Gostava, e ainda gosto, de cruzar fronteiras.
Considero que uma voz singular depende desses trânsitos, desses empréstimos, desses
contrabandos. Uma voz vira-latas, sem pedigree; uma voz da rua, do campo, das entranhas.

Porém, por mais vira-latas que eu me queira, passo grande parte dos meus dias pastando de
cabeça baixa no campus, qual uma ovelha no campo. No geral, estou à espera da primavera
chegar, de ter minha lã tosada, de passar um verão com menos peso sobre meus ombros. O
temor constante é de que alguém avente a possibilidade de me abater. O campus foi quase
sempre para mim também um campo. O campus do Vale, na UFRGS. O campus Darcy
Ribeiro, na UnB. O campus Seropédica, na Rural. Desconheço no Brasil o reconhecimento,
mesmo que meramente discursivo, da usurpação das terras indígenas onde se erguem os
campi universitários. Esses dóceis verdes campos, onde passamos nossos dias, nossos anos,
nossas vidas, são terras roubadas. O erguimento de cercas ao redor do que antes era terra
de todos sustenta-se na ideia de uma terra de ninguém. Enclousure of common lands... o
termo me lança novamente para os primeiros semestres na graduação: aulas de história, de

49
economia política. Nada de Marx em antropologia. A alegoria das ovelhas e o cercamento
dos campos permite pensar na expropriação do espaço para que, nos limites do arame
farpado, a monotonia se instale. Pilhagem epistêmica. A perturbação dessa ordem, não por
acaso, recebe a alcunha de ovelha negra.

50
Galinhas
Nas relações de orientação, eu buscava essa voz singular das estudantes. Não era fácil para
mim, e muito menos para elas. Não abria mão da revisão da literatura, mas recusava a
matriz teórica que servisse de panaceia, que obnubilasse, que fizesse calar, que reduzisse o
que tinham experimentado à demonstração de um modelo. Poderia se tratar de um
exercício inócuo: você pode não taxonomizar, mas é só taxonomizar e pronto! Eu mesma
estou fazendo isso agora: situando o que você deixou sem amarras − dizia. No entanto,
penso que era bem mais uma resistência estética e política o que propúnhamos. Nem
sempre dava certo. Eu repetia para elas que para o bom entendedor meia palavra basta,
porém, no mais das vezes, nossos leitores não são ou não querem ser bons entendedores.
Leem-nos em busca do que ali não está, e não do que conseguimos recolher.

A escrita que eu mais apreciava no trabalho de meus orientandos era aquela que impedia o
leitor de pular parágrafos (ouvimos isso em algumas defesas de tese). Hoje, poderíamos
dizer, o que me entusiasmava nos trabalhos que orientei (e mesmo nos que avaliei como
banca ou parecerista) eram as passagens que o chat gpt ou outras inteligências artificiais
equivalentes seriam eventualmente incapazes de produzir 64. Novamente, a despeito da

64
Menciono com especial carinho os trabalhos seminais de estudantes de graduação que orientei, em
suas monografias. Em seu nome, faço uma menção também agradecida àquelas e aqueles que orientei em
bolsas de iniciação científica:

Leonardo Araújo Quintanilha. “É Correria”: Percepções sobre s Prática do Trabalho Informal na Rodoviária
do Plano Piloto. 2019. Antropologia - UnB.

Ícaro Costa Peixoto. Particip(Ação) Social: uma etnografia das ocupações na Universidade de Brasília de
2016 a 2018. 2018. Antropologia - UnB.

natália nuñez. A escuta da violência: etnografia no Disque 180 da Secretaria de Políticas para as Mulheres.
2015. Antropologia - UnB.

Isabele Villwock Bachtold. A Montanha vai a Maomé: considerações etnográficas sobre a política de "busca
ativa" do governo federal no estado do Pará. 2015. Antropologia - UnB.

Bárbara de Souza Aquino. Fora da Caixa: uma Etnografia da Fabricação de Corpos Sonoros na Região do
Comércio, em Belém do Pará. 2015. Antropologia - UnB.

Stéfane Cryslaine Alves Guimarães. Say Yes: Etnografia do Coaching, metodologia de desenvolvimento
humano e promotor de felicidade. 2015. Antropologia - UnB.

Vanessa Jansen dos Santos Moura. Crianças no Acampamento: etnografia da educação pela paz proposta
pelo programa Convivência Internacional de Jovens. 2014. Antropologia - UnB.

Nathan Lima Virgilio. "Esses bichos sugam a vida da gente". Relações de criação e cultivo da vida no Góes-
CE. 2014. Antropologia - UnB.

Guilherme Augusto Ferreira Borges. Estudantes do mundo inteiro, uni-vos! Um Gedanken experiment em
antropologia escolar. 2014. Antropologia - UnB.

51
grande variedade temática, é possível dizer que houve um traço comum em quase todos os
trabalhos que orientei: procuravam não ser monótonos nem violentos − como a plantation.

O trabalho de orientação para mim sempre foi o de uma leitora atenta, que por vezes
propunha que editássemos os textos para criar um efeito desconcertante em quem o lesse.
Essa era a intenção e, obviamente, nem sempre tivemos, eu ou meus orientandos, a energia
necessária para nos empenharmos totalmente nesse projeto de produção coletiva de um
texto analítico inovador.

Gustavo Belisário d'Araújo Couto. A Rua é Pública! A Boca é nossa! Uma etnografia com crianças na
Estrutural-DF. 2013. Curso (Ciências Políticas) - Universidade de Brasília

Maria Vitória de Moraes Dutra. No pé da parede, o canto da feira. Um varal etnográfico sobre o repente e a
feira da Guariroba. 2013. Antropologia - UnB.

Verônica Kaezer da Silva. Criar um Recanto também é brincar de ser cidadão. 2012. Antropologia -UnB.

Gabriel Ozorio de Almeida Soares. Fora Arruda e Toda Máfia durante a ocupação da câmara legislativa do
Distrito Federal. 2012. Antropologia - UnB.

Ana Cândida Pena Vieira Pinto. A palavra de Deus: performance e pentecostalismo no Recanto das Emas.
2011. Antropologia - UnB.

Raissa Menezes de Oliveira. Entre brincadeiras e histórias: uma etnografia com crianças de Brasília.2011.
Antropologia -UnB.

Danilo Oliveira. Daniel Krepe´s Boys: contos etnográficos e vinhetas literárias contra trajetória e reprodução
social. 2010. Antropologia - UnB.

Felipe Rocha Lima Huhtala. Me diga o que tu bebes e te direi quem és: um estudo sobre a companhia do
álcool. 2010. Antropologia - UnB.

Heliza Cristina Cavalcanti Fernandes. “O negócio é correr atrás”: Associações comunitárias e engajamentos
políticos no Recanto das Emas. 2009. Antropologia - UnB.

Maíra Cavalcanti Vale. transbordando antropologias. 2009. Antropologia -UnB.

Cesar Machado Vieira. Um Outro Elefante Branco: ensaio etnográfico sobre uma política de inclusão de
estudantes surdos em uma instituição escolar. 2009. Antropologia - UnB.

Ana Maria de Oliveira Almeida. Violência na Mídia: juventude e mulheres em foco. 2009. Antropologia -
UnB.

Gabriel Ferreira Mesquita. Mesa pra quantos? Etnografia das desventuras de um garçom freelancer. 2008.
Antropologia - UnB.

Leonardo Patrício Resende. "Oásis no Deserto" ou "Antropologia da interdependência Estado-ONG em


Valparaíso de Goiás". 2008. Antropologia - UnB.

Rudolfo Boing Magalhães. Arte Militante: mística, música e criatividade na formação do MST. 2007.
Antropologia - UnB.

Rafaella Romero Peixoto de Azevedo Tamm. E quando o sonho te pressiona? Movimento d@s
Trabalhador@s Desempregad@s em Brasília. 2007. Antropologia - UnB.

52
Se eu espalhasse os trabalhos de minhas orientandas num arco que se guiasse por alguma
afinidade subjetiva, acho que em um dos extremos ficariam os de maior distância entre
pesquisador e anfitrião e, portanto, de inconveniência. Esses casos mais extremados,
somados à minha própria experiência como etnógrafa-visita – que só está de passagem –,
foram sempre um farol, uma espécie de aviso para que não percamos de vista uma salutar
dúvida em relação ao que ousamos aventar em nossas etnografias. No extremo oposto
estariam os trabalhos de orientandos que escreveram sobre si, sobre os seus. Nessa região
do arco se concentra a maioria deles.

Aqui, é inevitável para mim pensar que aciono o que Mariza Peirano escreveu sobre
alteridade. Ainda assim, é possível que haja uma diferença. Creio ser preciso lembrar que
para os e as estudantes que orientei esses “seus” nunca eram eles mesmos – da mesma
forma que não eram mais eles e elas mesmas quem escrevia. Ninguém não se transformava
no percurso. Esse foi o caso para quem escreveu sobre movimentos sociais de luta por terra
e moradia, a despeito de sua própria militância política e engajamento 65. O mesmo
aconteceu com estudantes que eram servidores públicos e escreveram sobre as instituições
em que trabalhavam ou sobre as políticas públicas que implementavam 66. Como esses

Fabíola Silva Gomes. Festa do Divino e Cavalhadas em Pirinópolis: religião e turismo em cena. 2007.
Antropologia - UnB.

Gustavo Augusto Gomes de Moura. O luto, o culto e a dança dos objetos: a despossessão como evento
etnográfico em um pré-assentamento de reforma agrária. 2007. Antropologia - UnB.

65
Dentre esses trabalhos, menciono:

Maria Fernanda Maidana. Salta e sua política de sucessão: queda, emergência e ascensão de líderes e
seguidores do Partido Justicialista entre 2007 e 2011. Tese de Antropologia, defendida em 2013, na
Universidade de Brasília.

Stella Zagatto Paterniani. São Paulo cidade negra: branquidade e afrofuturismo a partir de lutas por
moradia. Tese de Antropologia, defendida em 2019, na Universidade de Brasília.

Eliane Boroponepa Monzilar. Aprender o Conhecimento a partir da Convivência: uma Etnografia Indígena
da Educação e da Escola do Povo Balatiponé-Umutina. Tese de Antropologia, defendida em 2019, na
Universidade de Brasília.

Gustavo Belisário D’Araújo Couto. Brincando na Terra: Tempo, Política e Faz De Conta no Acampamento
Canaã (MST − DF). Dissertação em Antropologia, defendida em 2012, na Universidade de Brasília.

66
Dentre esses trabalhos, menciono:

Maria Janete Albuquerque de Carvalho. Os Guarani e as políticas fundiárias do Estado brasileiro. Dinâmica
social e reconfiguração territorial em Santa Catarina. Dissertação em Antropologia, defendida em 2008, na
Universidade de Brasília.

Maria Soledad Maroca de Castro. A integralidade como aposta: etnografia de uma política pública no
Ministério da Saúde. Dissertação em Antropologia, defendida em 2013, na Universidade de Brasília.

Isabele Villwock Bachtold. “Precisamos encontrá-los!” Etnografia dos números do Cadastro Único e dos
cruzamentos de base de dados do governo federal brasileiro. Dissertação em Antropologia, defendida em

53
últimos, todos que falariam de suas próprias biografias (ou de pessoas muito próximas)
viveram o impacto analítico da etnografia na própria pele 67. E nisso não difeririam dos que
foram muito longe para realizar suas pesquisas68.

Talvez isso se deva ao fato de sermos todos etnógrafos sem modo de pensamento ou
cultura ou sistema ou sociedade para nos orientar ou cercear. Todos, que digo, são alguns.
Para quem essa hipótese faz sentido, é preciso estar o tempo todo alerta para os sinais da
floresta – seja qual for a mata ou o deserto ao nosso redor, na cidade ou na roça.

Essa falta de garantias, essa vulnerabilidade radical, parece me posicionar – na vida, no


trabalho – de um modo bastante combativo e, diria, pouco hegemônico. Na verdade,
2017, na Universidade de Brasília.

José Roberto Sobral. Comissiologia num castelo da educação escolar indígena. Dissertação em
Antropologia, defendida em 2018, na Universidade de Brasília.

67
De entre esses trabalhos, menciono:

Stéfane Cryslaine Alves Guimarães. Uma Etnografia do Plantio Antagonista ao Anti-Intelectualismo, a partir
de uma Escola da Ceilândia. Dissertação de Antropologia, defendida em 2019, na Universidade de Brasília.

Denise Ferreira da Costa Cruz. Que leveza busca Vanda? Ensaio sobre cabelos no Brasil e em Moçambique.
Tese de Antropologia, defendida em 2017, na Universidade de Brasília.

Andressa Lewandowski. O Direito em última instância: uma etnografia na Suprema Corte Brasileira. Tese de
Antropologia, defendida em 2014, na Universidade de Brasília.

Martina Ahlert. A cidade relicário: tempo, feitiços e festejos em Codó/MA. Tese de Antropologia, defendida
em 2013, na Universidade de Brasília.

Gustavo Augusto Gomes de Moura. L Sai à Procura de Justiça: Etnografando as Experiências de uma Mulher
em eeu Encontro com o Estado. Dissertação de Antropologia, defendida em 2011, na Universidade de
Brasília.

Rogério Schmidt Campos. Fotografia e alteridade: os limites das linguagens na experiência etnográfica.
Dissertação de Antropologia, defendida em 2009, na Universidade de Brasília.

68
Dentre esses trabalhos, menciono:

Fabiola Silva Gomes. O compromisso de casar e o desejo de amar: experimentos existenciais entre jovens
abastados na cidade de Nova Délhi. Tese de Antropologia, defendida em 2015, na Universidade de Brasília.

Denise Ferreira da Costa Cruz. Que leveza busca Vanda? Ensaio sobre cabelos no Brasil e em Moçambique.
Tese de Antropologia, defendida em 2017, na Universidade de Brasília.

Aina Guimarães Azevedo. Mulheres de Zuluness. Tese de Antropologia, defendida em 2013, na


Universidade de Brasília.

Tiago de Aragão Silva. Nas profundezas da superfície do Mate com Angu: projeções antropológicas sobre
um cinema da Baixada Fluminense. Dissertação de Antropologia, defendida em 2011, na Universidade de
Brasília.

Rafael Simões Lasevitz. “La mano costura, pero es la boca quien habla”: narrativas de fugas e repetições
bolivianas na cidade de São Paulo. Dissertação de Antropologia, defendida em 2011, na Universidade de
Brasília.

54
totalmente antagônico aos jogos daqueles que podem (daí, o poder) determinar o que é
relevante e o que não é, qual o cânone incontornável e qual a literatura dispensável. Richa
Nagar também trata dessa falta de garantia – para ela e para as mulheres com quem faz
pesquisa na Índia. Não há grande narrativa que as abarque, não há instituições que as
protejam. Os dias são feitos de um desvendar constante: tudo o que se tem foi feito com as
próprias mãos e com os próprios sonhos. Quase não é possível deixar legados, muito menos
reclamar heranças69.

Nessa jornada sem bússola, não me virei sozinha. Tive parceiras. Eu não teria dobrado a
esquina que me levou a Brasília, e a tudo o que veio depois, se não houvesse sido acolhida
por Dácia Ibiapina, que eu conhecera fazendo seu doutorado no CPDA. Éramos colegas do
antológico curso do Berthold Zilly. Marcelo – leitor atento de murais naqueles anos 90 e,
hoje, posts e cards – soube que abrira uma seleção extemporânea na UnB. Se eu passasse,
isso me pouparia de ficar ao menos um ano à espera de ingressar num doutorado, já que
defendera minha dissertação em abril. Tempos depois, soube que a seleção reabrira porque
nenhum candidato externo fora aprovado no primeiro processo seletivo – algo espantoso,
especialmente porque no ano anterior tinha sido aberta uma verdadeira caixa de Pandora
com o mencionado caso Ari (do qual eu não fazia a mínima ideia, pois as redes sociais
naquela época eram mais fechadas e lentas).

Em suma, entrei num programa de pós-graduação que fizera duas seleções para ver se
conseguia estudantes à sua altura, em meio a uma disputa política sem precedentes. Nesta
segunda fase, acho que fomos aprovadas três estudantes de fora da UnB: Carmen Silva e
Andréa Borghi, que morreu no ano passado e deixou no ar aquele seu sorriso sem par, e eu.
Os demais integrantes da turma eram estudantes do próprio PPGAS, que haviam concluído
o mestrado naquele ano. Dácia (e Poli e Marquinhos) me recebeu na sua casa não só para a
entrevista, mas para por lá morar durante muitos meses, até que eu conseguisse uma casa –
o que só ocorreu quando Marcelo foi para Brasília, escrever sua dissertação. A pesquisa no
Recanto das Emas começou graças à acolhida de Hélder Ferreira de Sousa. Ele era do Piauí e
me apresentou a pessoas do Recanto que vinham daquele estado e do Maranhão. Dácia
nasceu no Piauí. Com ela eu trocava muitas impressões sobre minha pesquisa de campo.
Enquanto eu fazia a tese, escrevi com ela o roteiro de um filme sobre crianças do Recanto
das Emas, que, junto com suas mães, vendiam rosas e chicletes no Plano Piloto, nas noites
dos fins de semana.

69
Richa compartilhou com estudantes em Brasília os argumentos que desenvolve em livros como Playing
with Fire e Hungry Translations. Após a experiência deste laboratório na UnB, a revista Agitate! publicou
alguns textos desse grupo de estudantes e também uma tradução dos escritos de Antônio Bispo dos Santos,
chamado We belong to the Land (2020).

55
Esse grupo de mães, do qual nos aproximamos, era da Bahia, e suas vidas com muito menos
garantias – e, portanto, com padrões antropologicamente sedutores. O roteiro que
escrevemos era uma ficção que documentava uma parte do cotidiano daquelas pessoas que
eu conhecia de relance – como todos que estão em um bar à noite e são interrompidos por
uma pessoa que passa oferecendo alguma mercadoria. Pessoas das quais eu me julgava
relativamente próxima – por ter morado no Recanto das Emas para fazer pesquisa – e sobre
as quais sabia muito pouco. A jornada noite adentro, até o amanhecer de volta para casa,
que a narrativa propõe me despertou para o pavor das crianças de serem arrancadas de
seus lares pela assistência social ou de não verem os políticos responsáveis pelos projetos
que lhes traziam algum bem-estar ser reeleitos (mesmo sendo "de direita"). Elas entendiam
muito de governo e de política partidária, e tudo o que sabiam não as fazia se sentirem
seguras e, de novo, com muitas garantias.

No ano de 2020, quando estávamos confinados os que tinham casa e emprego estável,
meus vizinhos do primeiro andar foram embora da Colina. Já não eram tão jovens. O medo
do vírus acelerou o plano de se mudarem para uma casa. Não contrataram uma grande
empresa, mas uma família de pai e filhos para transportar as coisas – lentamente e em
várias viagens. Trabalhando na movimentação dos móveis encontrei os meninos que
vendiam rosas no plano piloto e que eram personagens principais do filme. Conversamos
brevemente. Eles, adultos, não se lembravam de mim, mas o filme tinha sido um marco
para ambos. Tudo insondável. Nada previsível. Ali estavam eles, vivos, em plena pandemia.
Contei para Dácia. Ela, como eu, se encheu de alegria.

Ter a consciência de que a vida é uma conquista duríssima e não um presente dado de mãos
beijadas talvez seja a lição que quero compartilhar como professora, quando dou aula de
algo a que chamamos antropologia. Ter ciência de como se faz vida e, como contraponto de
como se faz a não-vida (seguindo a formulação de Elizabeth Povinelli), sustenta uma
inquietação que seria o meu tipo de militância nesses lugares que vão deixando de existir.

Em 12 de abril de 2023, no Rio de Janeiro, conversei com uma mulher jovem. Ela me contou
que morava em Brasília e, com o avançar da conversa, no Recanto das Emas – na quadra
104, ou seja, “bem no início” da cidade. Perguntou-me se eu havia visto as emas por lá. Eu
disse que sim, tendo em mente as emas de concreto na rótula na entrada da cidade. Ela não

56
se referia ao monumento, mas às emas-bichos-vivos que ela via “lá perto da Embrapa”.
Nada disso mais existe. Nada de emas.

O mesmo com a Vila Dique – nada de porcos, de galinhas, de catadores de lixo e suas
crianças. No lugar, um imenso pátio para um aeroporto sem tráfego aéreo compatível com
seu tamanho (para alguns porto-alegrenses, uma sorte; para outros, um desespero).

A destruição dos lugares e das vidas que ali se compunham é como esquinas que dobramos
de modo irreversível: nunca poderemos retornar àquela rua ou caminho por onde viemos
andando. Esse desmoronamento às nossas costas me deixa com uma dupla sensação. Uma
é de que é preciso relembrar e contar o que existia: as emas, no cerrado. Como diz o meme,
fico com a necessidade de dizer: aqui era tudo mato. Outra é a vontade de voltar a esses
lugares e ousar pensar o que haveria hoje se tivéssemos seguido com aquela presença: os
porcos, as galinhas, as emas. Esse exercício de imaginação (inevitável associar essa fantasia
ao multiverso oscarizável e tão mencionado em 2023), no meu caso, encontra em outros
espaços a persistência do que foi destruído, apagado, em lugares que conheci.

As emas, vimo-las mortas de inanição no fim do governo Bolsonaro. Os porcos, vejo-os


chafurdando ao longo da Almirante Alexandrino, no bairro de Santa Teresa. As galinhas, no
cair da tarde, empoleirando-se nas árvores ao redor da casa de Mangaliso, em Ingogo. Sem
galinheiros esquadrinhados, com alguns pintinhos que sobram dos ataques dos predadores
– um pouco como a Laura, do livro de Clarice Lispector, de que Rosa gosta tanto. Seus ovos
não viram comida de gente humana. Há galinhas de granja para isso. Galinhas de plantation,
enquanto houver plantation.

Minha questão agora, diária, é pensar em uma universidade que se construa como terreiro,
e não como granja. As aulas que darei, as pesquisas que faremos, minhas estudantes e eu, o
que pensaremos e escreveremos, tudo fará mais sentido se pudermos nos empoleirar em
árvores ao cair da noite.

57
Cabras
Não lembro ao certo como tomei conhecimento de um livro chamado “There was this goat”.
Lançado em 2009 e escrito a seis mãos (Antjie Krog, Kopano Ratele e Nosisi Lynette
Mpolweni-Zantsi), a obra narra a saga dos três pesquisadores nos arquivos da Truth and
Reconciliation Comission para decifrar o enigma do depoimento da mãe de um dos jovens
assassinados na emboscada conhecida como The Gugulethu Seven. O nome da mãe era
Notrose Nobomvu Konile.

Essa obra não vinha da antropologia. Seus autores eram do mundo das letras, da psicologia,
da tradução. No entanto, ativavam coisas que constituem uma pesquisa admirável. Eu
estava vendo em meu trabalho de campo na África do Sul o desprezo pela narrativa e pelos
eventos relatados em testemunhos dados em tribunais de justiça, em casos de litígio por
terras70.

Um sistema legal, para mundos diferentes, implicava a incomensurabilidade entre o que


importa para uns e para outros e, obviamente, a obliteração daquilo que não interessa, ou
não faz sentido, no mundo dos brancos, no mundo das evidências. A senhora Notrose soube
do assassinato de seu filho antes de a notícia lhe chegar pelas vias modernas. Num sonho,
havia uma cabra que ficava equilibrada sobre as patas traseiras, diante da porta de sua casa.
Seu testemunho entrou para os autos, traduzido para o inglês, e a referência contínua à
cabra, “there was this goat”, apenas a sepultava mais profundamente no túmulo da
irracionalidade.

Creio que tudo o que escrevi depois de ter deparado com esses embates “pós-coloniais”
cotidianos na África do Sul consistiu em tematizar essa falta de interesse dos brancos em
prestar atenção. Escrevi artigos meus, mas também resenhas de livros e pareceres para
teses e artigos71. No geral, na produção alheia, encontrei uma replicação do escrutínio
70
À Corte: notas etnográficas sobre conflitos fundiários na África do Sul. In: Reflexões sobre Segurança
Pública e Justiça Criminal numa perspectiva comparada (2008).

71
Fiz muitas resenhas ao longo de minha carreira. Nos últimos anos deixei de me dedicar a essa tarefa,
restringindo-me a pareceres sobre teses, progressões funcionais, artigos, livros em processo de publicação
etc. No entanto, noto que meu olhar ao mesmo tempo crítico e aberto à variedade de temas que se
esparramam pelo leque da antropologia tem a ver com o treinamento como resenhista. Quero mencionar
três pessoas que me convidaram para esse mundo. Raimundo Santos me chamou a publicar distintas
resenhas sobre o mundo rural, logo após o término de meu mestrado. Liza Debevec, antropóloga eslovena,
me incentivou a resenhar etnografias contemporâneas para a revista Social Anthropology. Miguel Vale de
Almeida, entre outros colegas portugueses, há anos me acolhe na Etnográfica, como membro do comitê de
edição. O trabalho por lá é intenso e contínuo. Graças a ele me deparo com antropologia in progress, coisas
que vão para a revista, outras que não. Esse treinamento de meu olhar para a diversidade dentro da
disciplina, aprendendo a construir respeito e parcimônia diante de áreas que conheço pouco e, muito mais,
perante aquelas em que me equivoco em pensar que sou “especialista”, tem me ajudado muito no trabalho

58
moderno de leigos, envernizado com os óleos sintéticos da antropologia. A posição marginal
da alteridade e o palco principal ocupado pelos argumentos que se queriam problemas da
disciplina, mas que no geral não deixavam de ser problemas da empresa extrativista branca,
deixaram-me cada vez mais incomodada com a antropologia.

Felizmente, não estou sozinha nesse mal-estar. Há alguns anos, formei uma parceria muito
forte com Susana Durão, da Unicamp. Nossos percursos biográficos e acadêmicos são
distintos. Dentro do esquadrinhamento moderno da plantation universitária, certamente
jamais faria sentido nos encontrarmos para trabalhar juntas. Tenderia a ser
contraproducente. No entanto, acabamos abrindo uma fenda no nosso cotidiano ao propor
anualmente um grupo de trabalho para a Anpocs, o Etnografias do Capitalismo. Talvez
minha inspiração para a proposta tenha vindo da variedade temática que marca minhas
pesquisas, as que oriento e as muitas que examino. Por um lado, é possível dizer que o fato
de ser “pau pra toda obra”, vira-latas, me joga no lamaçal de generalidades, distante das
colinas de uma scholarship devotada por décadas a um tema específico. Creio mesmo que
Susana possa ter mais este perfil, a partir dos desdobramentos etnográficos de seu interesse
na violência. Por outro, quem sabe por achar que a melhor técnica de pesquisa seja seguir a
mercadoria, diria o espectro de Marx e outros autores chamados composicionalistas, de
quem gosto muito, como Latour e, especialmente, John Law, com a ideia de messiness.

Ao longo desses anos de GT, reunimos pessoas que por outras vias dificilmente sentariam à
mesma mesa, devido à especificidade de suas áreas – como etnologia indígena ou ciência
política. O que nos une, assim como o que uniu os autores de “There was this goat”, é
explorar etnograficamente, no miudinho, a vida das pessoas no, e mais especialmente, para
além ou aquém do capital. Não me parece suficiente apontar para a destruição que
prospera a passos largos, como o uso do termo desenvolvimento em nossas instituições e
editais de pesquisa bem atesta.

No romance “Goat Days”, do autor indiano Benyamin, o personagem principal é escravizado


num país do Oriente Médio após ter emigrado de Kerala em busca do Eldorado. Ele é
sequestrado e levado para uma fazenda de criação de cabras. Lá é abandonado à própria
sorte, sob a vigilância violenta do capataz. Sem chance de escapar, sem falar árabe, em
pleno deserto e com suprimento de água que nunca lhe permitiria banhar-se, o homem
aprende a ser com a forma de existir das cabras. As cabras não são dóceis, não são
exatamente domesticáveis, não ficam saudáveis em cativeiro.

Quando a família extensa de Mangaliso Khubeka recebeu algumas propriedades na rural


Ingogo, entre elas a fazenda onde vivem e cujo nome homenageia o pai dele, junto com a
que realizo nos últimos anos como integrante do comitê de assessoramento do CNPq, onde, com outras
colegas, “julgamos” nossos pares – não somente os que concorrem, mas também aqueles que dão
pareceres ad hoc às propostas enviadas às chamadas da agência de fomento. Ao longo desses anos, por
estar num coletivo, diverso, com os colegas Theophilos Rifiotis, Fabiola Rohden, Laura Moutinho e Maria do
Rosário Gonçalves de Carvalho aprendi muito.

59
propriedade rural foi lhes oferecido um pacote de desenvolvimento agrícola. Uma
quantidade de ovelhas foi colocada sob os seus cuidados. Não demorou muito para que as
ovelhas morressem. O comentário de uma das filhas dele, Danisile, foi taxativo: bicho inútil,
adoece, tem de viver sendo medicado, alimentado com ração, não se contenta com os
arbustos ao redor e, pra piorar, nem sequer serve para um sacrifício ritual. Nosso colega da
Universidade de Cape Town, Lungisile Ntsebeza, agora aposentado, explicou-me, dada a
minha vontade de aprender mais sobre as cabras, que, como acontece com o gado, os
desenhos e a coloração dos animais promovem conexões cosmológicas particulares. Ele
pensava, na época, que quando se aposentasse, talvez virasse criador de cabras. Acabou
indo realmente para sua terra natal, para a roça, onde tem seu rebanho, que conhecemos
de longe, pois em nossa última conversa, no verão de 2023, nos mostrou imagens das
câmeras instaladas no curral.

Em 5 de agosto de 2023, Marcelo e eu voltamos à fazenda da família Khubeka. A primeira


visita depois da pandemia. Infelizmente, chegávamos para o funeral de Mangaliso. Após o
enterro, as lágrimas haviam sido engolidas pela terra. Como me alertou sua irmã, bastante
alquebrada e se equilibrando sobre a bengala: as pessoas estão com fome e algumas têm
diabetes. A tristeza não vencia sua gentileza. Era hora de todos comermos. A Burial Society
da qual nosso amigo também era membro ativo havia preparado as comidas para os
presentes. Foi a própria Danisile que nos trouxe dois pratos com salada, carne ensopada e
puthu (uma espécie de polenta de milho branco). Enquanto comíamos, Thandeka, filha de
Thobekile, nos surpreendeu com um terceiro prato. Nele havia carne de cabra. Carne vinda
das imediações da casa redonda. Carne feita para as pessoas próximas. Carne que comunica
os vivos com os vivos que já morreram, com os ancestrais. O fosso que se abrira sob meus
pés com a notícia da morte de Mangaliso fechou-se naquele exato instante. Algo que não
consigo explicar se passou com meu corpo, com meu coração. Hoje penso que foi a força da
terra naquela carne, terra que pisamos juntos, Mangaliso, Marcelo, eu, a cabra e todos os
que vieram e virão depois de nós gente e de nós bichos.

60

Você também pode gostar