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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

IHT- Instituto de História


Departamento de História
Curso de Graduação em História

Ana Carolina Abreu Trugilho


Lucas Pereira de Oliveira
Sarah da Silva Moraes

A Escravidão Negra e a Cristianização

Primeiro semestre de 2023


Niterói, 2023

Ana Carolina Abreu Trugilho


Lucas Pereira de Oliveira
Sarah da Silva Moraes

A Escravidão Negra e a Cristianização

Para o professor de Brasil I, Renato Franco

Universidade Federal Fluminense


A ESCRAVIDÃO NEGRA E A CRISTIANIZAÇÃO

Introdução

O Probabilismo Jesuíta e o problema moral da escravidão

Sabe-se que durante o período hoje conhecido como Brasil colonial, a escravidão negra
se tornou a base da estrutura socioeconômica do país. À medida que os portugueses
expandiram seu domínio no continente americano, ampliava-se a necessidade da exploração
de mão de obra para o desenvolvimento da economia, que se baseava principalmente na
produção agrícola, como a cana-de-açúcar, o tabaco e mais tarde o café. Para suprir essa
demanda, os colonizadores recorreram inicialmente à escravização dos povos indígenas
presentes na região, e mais tarde ao tráfico de africanos escravizados, uma prática que se
estendeu por mais de três séculos e deixou um legado profundo na história do Brasil.
Ademais, uma faceta importante desse contexto histórico é a relação entre a escravidão
negra e a cristianização dos africanos e seus descendentes. A Igreja Católica desempenhou um
papel central na vida religiosa e espiritual dos escravizados, bem como na justificação moral
da escravidão. Além disso, a Igreja Católica procurou converter os africanos ao cristianismo,
considerando-os como "almas a serem salvas". A catequese era vista como uma forma de
"civilizar" os escravos, supostamente tornando-os mais dóceis e sujeitos às normas sociais e
religiosas impostas pelos colonizadores (CARVALHO, 2010). Através dos sacramentos,
especialmente o batismo, os africanos eram incorporados à comunidade cristã, embora a
cristianização e a formulação de irmandades negras não os tirassem de um local visto como
população naturalmente subalterna.
O Probabilismo foi uma linha teológica muito utilizada nos séculos XVII e XVIII para
“aliviar” o peso moral da escravização das populações africanas, buscando oferecer diretrizes
éticas para a tomada de decisões em situações de incerteza moral, baseando-se no princípio de
que, se houvesse opiniões teológicas ou morais divergentes sobre um assunto, um indivíduo
poderia seguir qualquer uma delas, desde que fosse sustentada por algum teólogo respeitado.
Sendo assim, alguns teólogos jesuítas, entre eles Diego de Avendaño, argumentaram que, uma
vez que existiam opiniões divergentes sobre a escravidão na época, era possível sustentar a
legitimidade moral da escravização dos africanos com base nessas opiniões discordantes.
Desse modo, reconhecia-se a escravidão como um problema moral e colocava-se a
cristianização como uma maneira de “superar a barbárie” a qual esses povos foram
submetidos previamente por seus captores e compradores anteriores, eximindo-se assim a
culpa de seu atual possuidor enquanto delegava a este a obrigação de “zelar” pela
espiritualidade de seus escravizados (PICH, 2020). Logo, mediante ao que foi exposto acima
será exposta uma análise do documento do século XVIII denominado de “Economia Christaã
dos Senhores no Governo dos Escravos”, escrita pelo padre jesuíta, italiano, Jorge Benci.
Capa do documento Economia christaã dos Senhores no governo dos Escravos. Imagem disponível
em:https://purl.pt/24731

Tendo em vista que a escravização era reconhecidamente um problema moral, e que a


cristianização seria uma forma segura de abrandar esse problema ao mesmo tempo que
justificava sua prática, o padre jesuíta Jorge Benci de Arimino, em 1705, após passar um
período de 17 anos no Brasil, publicou uma compilação de sermões em formato de livro que
explorava os direitos e deveres dos senhores em relação aos seus escravos, assim como as
responsabilidades destes em relação aos seus senhores. A obra consiste em uma breve
introdução e quatro discursos, abordando diferentes aspectos da relação entre senhores e
escravos. Em particular, o discurso II intitulado "Em que se trata da segunda obrigação dos
senhores para com os servos" focava na Doutrina Cristã, a reiteração dos Sacramentos e ao
“bom exemplo de vida”, e suas implicações nessa relação.

Detalhe da primeira página do Discurso II: Em que se trata da segunda obrigação dos
senhores para com os servos. Imagem disponível em: https://purl.pt/24731

É sabido que o Padre Jorge Benci de Arimino, nasceu em Ramini, Itália, em 1650, e
ingressou na Companhia de Jesus em Bolonha em 17 de outubro de 1665, aos 15 anos de
idade. Em 1681, embarcou para Lisboa, onde se dedicou às atividades missionárias. No dia 15
de agosto de 1683, realizou sua profissão solene no Rio de Janeiro. Mas em 2 de maio de
1700, encontrando-se na Bahia, Jorge Benci solicitou sua partida do Brasil por motivos
pessoais, solicitando retornar a Veneza ou ir para a Ilha de São Tomé, mas foi enviado a
Lisboa, onde trabalhou em assuntos relacionados à Província do Brasil. O jesuíta faleceu em
10 de julho de 1708. (LEITE, 2000)

Durante sua trajetória, Jorge Benci ocupou os cargos de pregador e procurador do


Colégio da Bahia, foi professor de teologia e humanidades, visitador local e secretário
provincial, entre os anos de 1688 e 1692. Ele também foi a São Paulo para tratar da questão
do "ajustamento com os paulistas", que fazia parte do contexto da batalha travada dentro da
Companhia de Jesus entre jesuítas italianos e portugueses. Embora a Coroa tivesse proibido
jesuítas estrangeiros de ocuparem altos cargos na Ordem, na prática isso não se efetivou, pois
Antonio Adreoni assumiu posições de destaque, sendo seguido por Jorge Benci (LEITE,
2000). Nota-se que o padre Jorge Benci também é mencionado nas Constituições Primeiras
do Arcebispado da Bahia de 1707, devido à sua obra "Economia Cristã dos Senhores no
Governo dos Escravos". Inicialmente, essa obra consistia em um sermão, mas foi enviada já
na forma de livro para Roma em 12 de maio de 1700 e publicada no ano de 1705.

Dessa forma, percebe-se que Jorge Benci está inserido no contexto religioso do Concílio
de Trento (1545-1563), evento que desempenhou um papel fundamental na resposta da Igreja
à Reforma Protestante e na formulação de estratégias para a evangelização do Novo Mundo
durante a era de conquista e colonização. E no que diz respeito à questão da escravidão, tanto
de indígenas quanto de africanos, a postura da Ordem Inaciana (Companhia de Jesus) seguia a
orientação geral da Igreja Católica. Essa orientação estabelecia que a escravidão era legítima,
desde que os princípios do direito divino fossem respeitados. Assim, a discussão não estava
centrada em aprovar ou reprovar a prática da escravidão, mas sim em legitimá-la por meio do
direito civil e divino, como uma condição para que os escravizados pudessem ter acesso à fé
cristã (DIAS, 2012).

Durante o final do século XVII e o início do século XVIII, a economia açucareira do


Nordeste passava por uma crise, que oriunda das guerras contra os holandeses, que causaram
devastação nos engenhos e nas plantações de cana-de-açúcar, a principal fonte de riqueza da
colônia portuguesa na América. Em conjunto, houve a implementação de um rígido sistema
de controle fiscal e estabelecimento de regimes de monopólio sobre o comércio, fortalecendo
a política de criação de companhias comerciais, como a Companhia de Comércio do
Maranhão, fundada em 1682. Essa política de controle econômico contrastava com as "novas
formas sociais e políticas" que surgiam nesse período de transição (PRADO JR, 1983). Essas
mudanças incluíam a diversificação econômica, o crescimento populacional das cidades
litorâneas e o aumento da imigração portuguesa. Essas transformações muitas vezes
resultavam em conflitos abertos, como a Revolta de Beckman, que ocorreu na Capitania do
Maranhão em 1684 e envolveu comerciantes locais e a Companhia de Comércio. Apesar de
enfrentar um declínio econômico evidente, a Bahia ainda mantinha sua relevância política
como sede administrativa da colônia portuguesa na América. Além disso, como principal
ponto de entrada dos africanos escravizados, despertava o interesse de religiosos dedicados à
evangelização e à formação moral dos colonos.

Adicionalmente, na capa da obra de Benci, publicada inicialmente em Roma em 1705,


pode-se encontrar informações pertinentes sobre o seu conteúdo. É mencionado que o livro é
uma derivação do capítulo 33 do livro de Eclesiástico, que inspirou o jesuíta durante a
elaboração da obra. Um aspecto relevante é a citação bíblica: "Pão, disciplina e a labuta do
servo" (Eclesiastes, Capítulo 33, Versículos 25 e 33), que serve como base para a abordagem
moral presente no livro. A edição de Roma foi dedicada ao Grão-Duque da Toscana pelo
padre Antônio Maria Bonucci, que em um documento enviado ao soberano, afirmou ser o
responsável pela escolha da dedicatória e o considerava a pessoa apropriada para recebê-la.
Tanto Bonucci quanto Benci destacam no documento e no esclarecimento prévio ao leitor que
o tema principal abordado no livro é a responsabilidade dos senhores em seguir os princípios
cristãos ao exercer sua autoridade sobre os escravos.

A respeito da obra "Economia Cristã", de Benci, ela é composta por uma introdução e
quatro discursos. Na introdução, o autor aborda a escravidão como consequência do pecado
original de Adão e Eva, ele argumenta que se Adão tivesse permanecido em estado de
inocência, não haveria escravidão no mundo. O pecado é visto como a origem do cativeiro,
resultando das revoltas humanas contra o Criador e levando às guerras entre os povos. Dessa
forma, a escravidão surge como uma forma de preservar a vida dos derrotados nas batalhas,
evitando derramamento de sangue, os vencedores assumem o domínio e a autoridade perpétua
sobre os vencidos, enquanto estes se tornam permanentemente sujeitos e obrigados a servir
aos senhores.

Pode-se afirmar que a obra de Benci, assim como muitas outras obras contemporâneas à
sua, não visava pregar contra a escravidão, uma vez que a tinha como produto natural das
relações humanas; embora o tratamento dado aos escravos “como se estes fossem jumentos”
(BENCI, 1705) parecia incomodar o autor, em momento algum advoga-se por um tratamento
igualitário, como típico do século XVII, uma vez que o castigo era entendido como parte da
educação dos escravizados: “Porque sustentar ao servo sem lhe dar ocupação e castigo,
quando o merece, é querê-lo contumaz e rebelde; e mandá-lo trabalhar e castigar, faltando-lhe
com o sustento; é coisa violenta e tirana.” (BENCI, 1705)

Tratava-se, portanto, de uma mera tentativa de advogar a favor de que os senhores


agissem conforme a “piedade cristã” e não os matassem de fome, doença ou castigos
demasiadamente severos e sem motivo, mesmo que o que determinaria se um castigo seria
justo fosse relativo. Embora não sejam explicitamente mencionados no discurso de forma
clara e direta, o ideal missionário tipicamente jesuíta entra em evidência na escrita de Benci,
especialmente ao propor o fornecimento de alimento espiritual aos escravos e na forma como,
ao longo do Discurso II, é reiterado que o ensino das práticas religiosas aos escravizados deve
ser feita de maneira contínua, reforçada no cotidiano através dos sacramentos.

Também é evidenciada a paciência necessária para esse processo de ensino, e é


fortemente sugerido pelo jesuíta que seria desejável que o senhor tivesse algum eclesiástico
disposto a levar adiante o processo de cristianização, evidenciando o interesse missionário de
comandar a organização da cristandade na colônia através da normatização do tratamento dos
cativos, embasando-se em referências bíblicas e na Antiguidade ao longo de seu discurso.

De acordo com Benci, embora os escravos fossem vistos como "brutos e ignorantes",
eles eram seres racionais, compostos de corpo e alma. Portanto, cabia aos seus senhores, que
foram investidos por Deus com esse poder, ensinar-lhes o evangelho e contribuir para a
salvação de suas almas. Benci incentivava os religiosos a não vacilarem em sua
responsabilidade de doutrinar os escravos, destacando que eles dependiam da pregação cristã
para superar sua rudeza e ignorância natural. Isso é evidenciado no trecho da obra a seguir:

“A doutrina e a instrução dos seus escravos no que toca à sua salvação e bem
de suas almas, deva correr por conta de seus Curas e Párocos, só o poderia
duvidar quem ignorasse a obrigação precisa, que têm os Pastores de Almas
de dar o pão espiritual a suas Ovelhas [...] pela maior necessidade que há
neles de doutrina, por causa de sua natural rudeza e ignorância.” (BENCI,

1705)

No entanto, Benci constatava com insatisfação que tanto os senhores quanto os párocos e
outros religiosos não estavam cumprindo corretamente sua responsabilidade de ensinar a
doutrina cristã e administrar os sacramentos no Brasil colonial. Ele expressava profundo pesar
pela falta de conhecimento sobre assuntos religiosos entre os escravos no país, atribuindo a
falta de dedicação por parte dos religiosos e senhores a essa obrigação e destacando os perigos
que essa negligência poderia acarretar para a nação. Veja a seguir no trecho da obra de Benci:
“E desta ignorância tão geral e comum, que se há de seguir, senão que torne a experimentar o
Brasil os mesmos castigos, que já experimentou e que continuem os que ainda
experimentam?”. (BENCI, 1705)

Considerações finais

A mentalidade cristã na lógica escravista

A obra de Jorge Benci revela a mentalidade predominante da Igreja Católica da


modernidade em relação à escravidão, ao buscar legitimá-la como uma prática social e
econômica. Tanto Benci quanto outros eclesiásticos se empenharam em estabelecer regras
morais e cristãs que regulassem as relações entre os senhores brancos e os escravos negros.
Essa abordagem reflete a preocupação da Igreja em conciliar a escravidão com os princípios
religiosos e morais da época. O jesuíta busca fundamentar seu tratado utilizando textos
bíblicos, especialmente o livro de Eclesiastes, de onde extraiu a sentença "pão, disciplina e
trabalho", e estabelecendo conexões com o pensamento greco-romano, as leis do Direito
Romano e Canônico, além de fazer comparações entre a escravidão no Brasil de sua época e
as práticas da escravidão na Roma Antiga. A obra também pode ser vista como uma denúncia
das práticas dos senhores de escravos no Brasil colonial, revelando os excessos nos castigos
aplicados e na distribuição desproporcional de alimentos para os escravos em relação ao
trabalho que realizavam. Em suma, "Economia Cristã dos Senhores no Governo dos
Escravos" traz o que pode ser lido como uma perspectiva conservadora (LEITE, 2000) da
história da escravidão no Brasil colonial.
BIBLIOGRAFIA

CARVALHO, Andreia Dias de. AÇÃO JESUÍTICA NO BRASIL: PERMANÊNCIAS NA


EDUCAÇÃO BRASILEIRA — UERJ, 2010

CASIMIRO, Ana Palmira Bittencourt Santos – Quatro visões do escravismo colonial: Jorge
Benci, Antônio Vieira, Manuel Bernardes e João Antônio Andreoni. Politéia: Hist. E Soc.
Vitória da Conquista, v.1., no. 1, 2001.

DIAS, Mariza de Araújo. Os Jesuítas e a Escravidão Africana no Brasil Colonial: um estudo


sobre os escritos de Antonio Vieira, André João Antonil e Jorge Benci (sécs. XVII e séc.
XVIII). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012.

FRANCO, Renato; PATUZZI, Silvia. Governar a miséria: escravidão, pobreza e caridade na


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2019, n.178. Epub June 19, 2020. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/150493

LARA, Silvia. Palmares & Cucaú – o aprendizado da dominação. São Paulo: Edusp, 2021,
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LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000.

PICH, Roberto Hofmeister. Probabilismo e escravidão negra. Humanidades (Montevideo. En


línea), 2020. Disponível em:
http://revistas.um.edu.uy/index.php/revistahumanidades/article/view/702/822

PRADO JR., Caio. Evolução Política do Brasil: Colônia e Império. 13ed., Brasiliense, 1983.

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