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Análise de Documento de Época - Brasil
Análise de Documento de Época - Brasil
Introdução
Sabe-se que durante o período hoje conhecido como Brasil colonial, a escravidão negra
se tornou a base da estrutura socioeconômica do país. À medida que os portugueses
expandiram seu domínio no continente americano, ampliava-se a necessidade da exploração
de mão de obra para o desenvolvimento da economia, que se baseava principalmente na
produção agrícola, como a cana-de-açúcar, o tabaco e mais tarde o café. Para suprir essa
demanda, os colonizadores recorreram inicialmente à escravização dos povos indígenas
presentes na região, e mais tarde ao tráfico de africanos escravizados, uma prática que se
estendeu por mais de três séculos e deixou um legado profundo na história do Brasil.
Ademais, uma faceta importante desse contexto histórico é a relação entre a escravidão
negra e a cristianização dos africanos e seus descendentes. A Igreja Católica desempenhou um
papel central na vida religiosa e espiritual dos escravizados, bem como na justificação moral
da escravidão. Além disso, a Igreja Católica procurou converter os africanos ao cristianismo,
considerando-os como "almas a serem salvas". A catequese era vista como uma forma de
"civilizar" os escravos, supostamente tornando-os mais dóceis e sujeitos às normas sociais e
religiosas impostas pelos colonizadores (CARVALHO, 2010). Através dos sacramentos,
especialmente o batismo, os africanos eram incorporados à comunidade cristã, embora a
cristianização e a formulação de irmandades negras não os tirassem de um local visto como
população naturalmente subalterna.
O Probabilismo foi uma linha teológica muito utilizada nos séculos XVII e XVIII para
“aliviar” o peso moral da escravização das populações africanas, buscando oferecer diretrizes
éticas para a tomada de decisões em situações de incerteza moral, baseando-se no princípio de
que, se houvesse opiniões teológicas ou morais divergentes sobre um assunto, um indivíduo
poderia seguir qualquer uma delas, desde que fosse sustentada por algum teólogo respeitado.
Sendo assim, alguns teólogos jesuítas, entre eles Diego de Avendaño, argumentaram que, uma
vez que existiam opiniões divergentes sobre a escravidão na época, era possível sustentar a
legitimidade moral da escravização dos africanos com base nessas opiniões discordantes.
Desse modo, reconhecia-se a escravidão como um problema moral e colocava-se a
cristianização como uma maneira de “superar a barbárie” a qual esses povos foram
submetidos previamente por seus captores e compradores anteriores, eximindo-se assim a
culpa de seu atual possuidor enquanto delegava a este a obrigação de “zelar” pela
espiritualidade de seus escravizados (PICH, 2020). Logo, mediante ao que foi exposto acima
será exposta uma análise do documento do século XVIII denominado de “Economia Christaã
dos Senhores no Governo dos Escravos”, escrita pelo padre jesuíta, italiano, Jorge Benci.
Capa do documento Economia christaã dos Senhores no governo dos Escravos. Imagem disponível
em:https://purl.pt/24731
Detalhe da primeira página do Discurso II: Em que se trata da segunda obrigação dos
senhores para com os servos. Imagem disponível em: https://purl.pt/24731
É sabido que o Padre Jorge Benci de Arimino, nasceu em Ramini, Itália, em 1650, e
ingressou na Companhia de Jesus em Bolonha em 17 de outubro de 1665, aos 15 anos de
idade. Em 1681, embarcou para Lisboa, onde se dedicou às atividades missionárias. No dia 15
de agosto de 1683, realizou sua profissão solene no Rio de Janeiro. Mas em 2 de maio de
1700, encontrando-se na Bahia, Jorge Benci solicitou sua partida do Brasil por motivos
pessoais, solicitando retornar a Veneza ou ir para a Ilha de São Tomé, mas foi enviado a
Lisboa, onde trabalhou em assuntos relacionados à Província do Brasil. O jesuíta faleceu em
10 de julho de 1708. (LEITE, 2000)
Dessa forma, percebe-se que Jorge Benci está inserido no contexto religioso do Concílio
de Trento (1545-1563), evento que desempenhou um papel fundamental na resposta da Igreja
à Reforma Protestante e na formulação de estratégias para a evangelização do Novo Mundo
durante a era de conquista e colonização. E no que diz respeito à questão da escravidão, tanto
de indígenas quanto de africanos, a postura da Ordem Inaciana (Companhia de Jesus) seguia a
orientação geral da Igreja Católica. Essa orientação estabelecia que a escravidão era legítima,
desde que os princípios do direito divino fossem respeitados. Assim, a discussão não estava
centrada em aprovar ou reprovar a prática da escravidão, mas sim em legitimá-la por meio do
direito civil e divino, como uma condição para que os escravizados pudessem ter acesso à fé
cristã (DIAS, 2012).
A respeito da obra "Economia Cristã", de Benci, ela é composta por uma introdução e
quatro discursos. Na introdução, o autor aborda a escravidão como consequência do pecado
original de Adão e Eva, ele argumenta que se Adão tivesse permanecido em estado de
inocência, não haveria escravidão no mundo. O pecado é visto como a origem do cativeiro,
resultando das revoltas humanas contra o Criador e levando às guerras entre os povos. Dessa
forma, a escravidão surge como uma forma de preservar a vida dos derrotados nas batalhas,
evitando derramamento de sangue, os vencedores assumem o domínio e a autoridade perpétua
sobre os vencidos, enquanto estes se tornam permanentemente sujeitos e obrigados a servir
aos senhores.
Pode-se afirmar que a obra de Benci, assim como muitas outras obras contemporâneas à
sua, não visava pregar contra a escravidão, uma vez que a tinha como produto natural das
relações humanas; embora o tratamento dado aos escravos “como se estes fossem jumentos”
(BENCI, 1705) parecia incomodar o autor, em momento algum advoga-se por um tratamento
igualitário, como típico do século XVII, uma vez que o castigo era entendido como parte da
educação dos escravizados: “Porque sustentar ao servo sem lhe dar ocupação e castigo,
quando o merece, é querê-lo contumaz e rebelde; e mandá-lo trabalhar e castigar, faltando-lhe
com o sustento; é coisa violenta e tirana.” (BENCI, 1705)
De acordo com Benci, embora os escravos fossem vistos como "brutos e ignorantes",
eles eram seres racionais, compostos de corpo e alma. Portanto, cabia aos seus senhores, que
foram investidos por Deus com esse poder, ensinar-lhes o evangelho e contribuir para a
salvação de suas almas. Benci incentivava os religiosos a não vacilarem em sua
responsabilidade de doutrinar os escravos, destacando que eles dependiam da pregação cristã
para superar sua rudeza e ignorância natural. Isso é evidenciado no trecho da obra a seguir:
“A doutrina e a instrução dos seus escravos no que toca à sua salvação e bem
de suas almas, deva correr por conta de seus Curas e Párocos, só o poderia
duvidar quem ignorasse a obrigação precisa, que têm os Pastores de Almas
de dar o pão espiritual a suas Ovelhas [...] pela maior necessidade que há
neles de doutrina, por causa de sua natural rudeza e ignorância.” (BENCI,
1705)
No entanto, Benci constatava com insatisfação que tanto os senhores quanto os párocos e
outros religiosos não estavam cumprindo corretamente sua responsabilidade de ensinar a
doutrina cristã e administrar os sacramentos no Brasil colonial. Ele expressava profundo pesar
pela falta de conhecimento sobre assuntos religiosos entre os escravos no país, atribuindo a
falta de dedicação por parte dos religiosos e senhores a essa obrigação e destacando os perigos
que essa negligência poderia acarretar para a nação. Veja a seguir no trecho da obra de Benci:
“E desta ignorância tão geral e comum, que se há de seguir, senão que torne a experimentar o
Brasil os mesmos castigos, que já experimentou e que continuem os que ainda
experimentam?”. (BENCI, 1705)
Considerações finais
CASIMIRO, Ana Palmira Bittencourt Santos – Quatro visões do escravismo colonial: Jorge
Benci, Antônio Vieira, Manuel Bernardes e João Antônio Andreoni. Politéia: Hist. E Soc.
Vitória da Conquista, v.1., no. 1, 2001.
LARA, Silvia. Palmares & Cucaú – o aprendizado da dominação. São Paulo: Edusp, 2021,
09-28.
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000.
PRADO JR., Caio. Evolução Política do Brasil: Colônia e Império. 13ed., Brasiliense, 1983.