DRE Das Empresas Nem Sempre Conta A Verdade

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Demonstrações de resultados nem sempre contam


a verdade
Da forma como está estruturada hoje, a DRE reflete de forma oblíqua o fluxo de caixa e
apresenta uma carga tributária que não existe

julho 14, 2023

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Companhias abertas, Colunistas . tributação, demonstrações financeiras, fluxo de caixa

Eliseu Martins é professor emérito da FEA-USP e da FEA/RP-USP, consultor e parecerista na área contábil |
Ilustração: Julia Padula
Depois de conseguir desopilar o fígado, que restava intoxicado pelas minhas
duas últimas colunas sobre a tristíssima e abaladora fraude da Americanas,
vamos desta vez ser, talvez, excessivamente técnicos. A proposta é discutir
formas de apresentação contábil dos tributos calcados sobre o valor
adicionado (nada a ver com a reforma tributária em discussão…).

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administradores. Saiba mais!

Algo talvez bastante conhecido pelos usuários das demonstrações contábeis


— mas, pela minha experiência pessoal, não tanto quanto deveria ser.
Comecemos com um exemplo extremamente simples: admita-se que uma
empresa comercial adquira mercadorias por R$ 1.000.000 e as revendas por
R$ 1.500.000 (e sem quaisquer outras despesas). E que, tanto na entrada
quanto na saída, haja incidência (hoje) de ICMS, PIS e Cofins não cumulativos
de 20% (os números efetivos confundem minha cabeça). Valores todos “por
dentro”, ou seja, incluídos os dados de compras e vendas nesses valores.

A norma contábil utilizada hoje nos diz que, se na compra temos R$ 200.000
(20% do R$ 1.000.000) de tributos a serem abatidos dos que incidirão na
venda, estes devem ser excluídos do custo das mercadorias e tratados como
“tributos a recuperar” (conta de ativo) ou algo que o valha. Assim, os
“estoques” recebem R$ 800.000 e “tributos a recuperar” recebem R$
200.000, e a soma — R$ 1.000.000 — é lançada contra “fornecedores” no
passivo. O balanço, só considerando essas variáveis, ficaria:

Balanço após
compra

Estoques R$ Fornecedores R$
800.000 1.000.000

Tributos a R$
Recuperar 200.000

Ativo R$ Passivo R$
1.000.000 1.000.000
Na hora da venda, os R$ 800.000 dos estoques se transformam na conta de
“custo das mercadorias vendidas” na demonstração do resultado (DRE). E a
norma determina que a empresa reconheça, nesse momento, primeiramente
uma receita bruta de R$ 1.500.000 contra “clientes” e, a seguir, contabilize
uma redução dessa receita bruta de R$ 300.000 (20% x R$ 1.500.000) sob o
nome “tributos sobre a receita bruta”, contra aquela conta que recebera os
tributos na entrada — “tributos a recuperar”. Como esta tinha R$ 200.000 de
saldo, zera-se esse saldo e o excedente — R$ 100.000 — transforma-se na
conta do passivo de “tributos a recolher”. E surge o lucro de R$ 400.000 (veja
abaixo). Após receber R$ 1.500.000 de clientes, pagar fornecedores com R$
1.000.000 e recolher o tributo líquido de R$ 100.000, teremos:

Balanço após
venda

Caixa R$ Fornecedores R$ –
400.000

Clientes R$ – Tributos a R$ –
Recolher

Estoques R$ – Lucro R$
400.000

Tributos a R$ –
Recuperar

Ativo R$ Passivo + Pat. R$


400.000 Líquido 400.000

E o resultado, como fica?

Demonstração do resultado

Receita Bruta R$ 1.500.000

(-) Tributos sobre a Rec. Bruta -R$ 300.000

(=) Receita Líquida R$ 1.200.000

(-) Custo das Merc. Vendidas -R$ 800.000


(=) Lucro R$ 400.000

Mas o fluxo de caixa aparece assim:

Fluxo de caixa

Recebimento de Clientes R$ 1.500.000

Pagamento a Fornecedores -R$ 1.000.000

Recolhimento Tributos -R$ 100.000

Saldo Final R$ 400.000

Veja-se que o lucro corresponde exatamente ao acréscimo de caixa, mas o


fluxo de caixa mostra bem rápida e cartesianamente o que ocorreu com o
numerário. Já a demonstração do resultado, apesar de chegar no mesmo
valor ao apresentar a conta “tributos sobre a receita bruta” no valor de R$
300.000, dá a impressão de que esse é o valor do tributo que a empresa
recolhe (em outras palavras, de que essa é a forma que a legislação tributária
a afeta). Mas, na verdade, o que ocorreu foi que a empresa gerou um valor
adicionado (sua parcela no PIB) de R$ 500.000 (porque recebeu R$ 1.500.000
e desembolsou para terceiros R$ 1.000.000) e foi tributada sobre esse valor
adicionado em 20% (20% x R$ 500.000 = R$ 100.000).

Ou seja, a demonstração do resultado conforme hoje praticada pode induzir


leitores a entenderem de forma errada o efeito da tributação sobre sua
atividade. Podem achar que ela tem de recolher R$ 300.000 de tributos. Mas
não é verdade: só recolhe R$ 100.000. Tanto que, na demonstração do valor
adicionado (DVA, obrigatória para todas as companhias abertas no Brasil), a
demonstração do resultado precisa sofrer modificações. Assim,
obrigatoriamente, na DVA teremos:

Demonstração do Valor Adicionado

GERAÇÃO DO VALOR ADICIONADO

Receita Contra Terceiros R$ 1.500.000

Compra de Terceiros -R$ 1.000.000


VALOR ADICIONADO GERADO R$ 500.000

DESTINAÇÃO DO VALOR ADICIONADO

Para o Governo R$ 100.000

Para os Sócios R$ 400.000

VALOR ADICIONADO DISTRIBUÍDO R$ 500.000

Ou seja, a DVA mostra corretamente a parte do PIB do país produzida nessa


empresa, além de apresentar a genuína carga tributária dessa empresa (20%)
sobre seu valor adicionado. A média brasileira nesse quesito fica perto dos
34%.

Será que não deveríamos pensar na velha demonstração do resultado que


fazíamos antigamente? Jogávamos os R$ 100.000 como despesas de venda,
assim:

Demonstração do resultado

Receita Bruta R$ 1.500.000

(-) Tributos Devidos -R$ 100.000

Receita Líquida R$ 1.400.000

(-) Custo das Merc. Vendidas -R$ 1.000.000

Lucro R$ 400.000,0

Resumindo, a demonstração do resultado de hoje reflete de forma um tanto


oblíqua o fluxo de caixa da empresa. Mostra uma tributação que não
corresponde à efetiva realidade financeira se vista de forma simples — e
tampouco evidencia o verdadeiro valor adicionado gerado pela empresa.
Duas distorções que são consertadas nas demonstrações do fluxo de caixa e
do valor adicionado.

P.S.: Esqueceram da Americanas? Eu, apesar disto tudo, não. Voltaremos a


ela!
*Eliseu Martins é professor emérito e professor sênior das FEAs-USP de São Paulo
e Ribeirão Preto. Ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e do Banco
Central.

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