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Dissertacao - A CONSTRUÇÃO DAS AFRO-IDENTIFICAÇÕES NA FICÇÃO
Dissertacao - A CONSTRUÇÃO DAS AFRO-IDENTIFICAÇÕES NA FICÇÃO
Belo Horizonte
Faculdade de Letras
Universidade Federal de Minas Gerais
Agosto de 2009
3
CDD: 305.8036
4
AGRADECIMENTOS
de orelha”.
Às pessoas da minha família (mãe, avó, tias, pai e irmãos) que oraram por mim,
desde sempre.
Anunciação Silva, com quem dividi as angústias da escrita e outras mais da vida
cotidiana.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo verificar, nos contos de Muniz Sodré, como se
constroem as representações de identificações afro-brasileiras, na forma de identidades
móveis, em processo de construção, seus limites, dificuldades e variações. Para tanto,
no capítulo 1, faço uma apresentação da relação entre os conceitos de identidade
nacional, nação brasileira e nação afro-brasileira, vigentes nos estudos acadêmicos, e
identidade e identificações afro-brasileiras, pontuando conceituações sobre a Literatura
Afro-Brasileira em sua formação. Mais adiante, nos capítulos 2 e 3, investigo as formas
de identificação (étnico-raciais, religiosas e culturais), em que são construídos os
personagens dos contos de Sodré, destacando as diversas identidades móveis, diferenças
e locais de cultura em que se realizam, permitindo a configuração dos contornos das
formações culturais afro-brasileiras e demonstrando a forma em que as narrativas de
Sodré propõem identidades questionadoras e desconstrutoras do discurso da identidade
nacional. Na conclusão, faço uma análise com as ponderações sobre o estudo dos contos
de Sodré como questionadores de uma identidade nacional, representações da semântica
afro-brasileira e parte integrante do arquivo da Literatura Afro-Brasileira.
RESUMEN
Este trabajo tiene como objetivo verificar, en los cuentos de Muniz Sodré, como
se constroen las representaciones de identificaciones afro-brasileñas, en la forma de
identidades móbiles, en proceso de construcción, sus límites, dificultades y variaciones.
Para eso, en el capítulo 1, hago una presentación de la relación entre los conceptos de
identidad nacional, nación brasileña y nación afro-brasileña, vigentes en los estudios
académicos, y identidad y identificaciones afro-brasileñas, puntuando conceptuaciones a
respeto de la Literatura Afro-Brasileña en su formación. Adelante, en los capítulos 2 e
3, investigo las formas de identificación (étnico-raciales, religiosas e culturales), en que
son construídos los personages de los cuentos de Sodré, destacando las diversas
identidades móbiles, distinciones y locales de cultura en que se realizan, permitindo la
configuración de los contornos de las formaciones culturales afro-brasileñas y
demonstrando la forma en que las narrativas de Sodré proponem identidades
cuestionadoras e desconstrutoras del discurso de la identidad nacional. En la conclusión,
hago una análisis con las ponderaciones a respeto del estudio de los cuentos de Sodré
como cuestionadores de una identidad nacional, representaciones de la semántica afro-
brasileña e parte integrante del arquivo de la Literatura Afro-Brasileña.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................. 7
INTRODUÇÃO
Naufragaram fragmentos
de mim
sob o poente,
mas
vou me recompondo
com o sol nascente
[...]
(RIBEIRO, Esmeralda.
Olhar Negro, 1998. p. 64)
9
E
sta dissertação abordará as representações de identidades e
tempo, em permanente diálogo com a Literatura Brasileira lato sensu, como atestam
Como trabalharei com um autor pouco estudado no campo das letras, antes de
explorar a ficção desse autor, torna-se necessário abordá-lo como teórico, professor
1
Títulos constantes no corpus.
2
“Iorubás. Povo da África ocidental. Os iorubás, que constituem um dos três maiores grupos étnicos da
República da Nigéria, vivem no Oeste do País, onde se espraiam para dentro do território da República do
10
(nagô) e crioulo de Cabo Verde, é Obá3 de Xangô do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá. Foi
propriedade o campo das produções culturais brasileiras, vistas a partir das relações,
muitas vezes, tensas, com as condições sociais vividas pela maioria da população, em
desta dissertação, se amplia. Para isso, o diálogo com a Literatura Brasileira, como um
tradições, como a afro-brasileira, no contexto dos contos desse autor, se faz presente.
Benin até Togo, e, no Sudoeste, até a cidade de Lagos. O etnônimo iorubá originalmente designava
apenas o povo de Oyó, mas hoje ele nomeia vários subgrupos populacionais [...]. A diáspora iorubana no
Brasil: as condições históricas da vinda maciça dos iorubanos para o Brasil, do fim do século XVIII,
fizeram com que a língua desse povo se transformasse numa espécie de língua geral dos africanos na
Bahia e seus costumes gozassem de franca hegemonia. Esse fato, aliado, posteriormente, ao trabalho de
reorganização das comunidades jeje-nagôs empreendido principalmente por Mãe Aninha, na Bahia e no
Rio de Janeiro, fez com que os iorubás se tornassem o vetor mais visível no processo civilizatório da
diáspora africana no Brasil.” In: LOPES. Enciclopédia brasileira da diáspora africana, 2004, p. 344.
3
“Obá. No Ilê Axé Opô Afonjá, [obá é] cada um dos doze ogãs honoríficos, considerados ministros de
Xangô. Também, nome que identifica um personagem dos antigos afoxés baianos. Na África e em Cuba,
o termo designa o sacerdote de um orixá, especialmente encarregado de perpetuar seu culto. Do iorubá
ògbà, ‘irmão’, ‘confrade’, ‘companheiro de confraria’”. LOPES. Enciclopédia brasileira da diáspora
africana, 2004, p. 485.
11
colonizador, desde o encontro deste com o povo indígena, sofreram fortes interferências
toda forma de arte, dialoga com a cultura que a produz. Esses produtos são
acompanhados dos valores vigentes do local de cultura4 em que são criados, assim
como a identidade étnica5 e os valores dos indivíduos que nesse sítio se encontram.
4
O local de cultura é um conceito de Homi Bhabha, constante na obra de mesmo nome. Segundo as
ideias desse autor, nesta dissertação será utilizado como posição do sujeito. Vejamos: “O afastamento das
singularidades de ‘classe’ ou ‘gênero’ como categorias conceituais e organizacionais básicas resultou em
uma consciência das posições do sujeito – de raça, gênero, geração, local institucional, localidade
geopolítica, orientação sexual – que habitam qualquer pretensão à identidade no mundo moderno. [...]
Esses ‘entre lugares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singulares ou
coletivas – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação,
no ato de definir a própria ideia de sociedade.” In: BHABHA. O local da cultura, 2003, p. 21.
5
Segundo a leitura de vários autores que tratam do assunto identidade, entendo que ela, no campo da
etnicidade, trata do reconhecimento de um indivíduo por si próprio e por um grupo, como integrante de
um conjunto que compõe determinado sistema de valores culturais relacionados à ideia de etnia e raça,
estas no âmbito da discursividade. Para Nei Lopes, identidade negra, “em termos psicossociais, é a
convicção que um indivíduo tem de pertencer a um determinado grupo social, convicção essa adquirida a
partir de afinidades culturais, históricas, linguísticas etc. Uma das mais árduas tarefas dos movimentos
negros na diáspora, em todos os tempos, tem sido a busca de uma coesão entre as populações negras para
o encaminhamento de suas questões. E a dificuldade maior parece se centrar na definição e no desenho
dessa identidade negra nos dias atuais. Ao tempo da escravidão, a produção da identidade negra nas
Américas deu-se por meio de processos paralelos; pela via da desafricanização e pela da racialização. Os
africanos aqui escravizados foram forçados a esquecer suas origens, para assumirem a sua condição
subalterna de “negros”. Num segundo momento, o movimento pan-africanista na diáspora pôs em curso
uma reafricanização. No início do século XXI, no Brasil, a mobilização coletiva dos negros, em direção
às suas reivindicações específicas ainda esbarrava na falta de uma definição inquestionável sobre quem é
efetivamente “negro” no país. In: LOPES. Enciclopédia brasileira da diáspora negra, 2004, p. 334.
12
como Juergen Habermas, Gilberto Freyre, Norbet Elias e Paulo Prado, além de filósofos
cultura em que são produzidas. E as produções literárias não escapam dessas escolhas.
Vale ressaltar um fato em que se baseia esta argumentação: a forte influência da estética
identitária, essa que desde há muito tempo é uma problemática discutida e recorrente
1999, p. 29), em contrapartida “os meios de comunicação de massa ignoram [...] [essa]
questão [...] ou ainda são atravessados por uma espécie de velha consciência
eurocêntrica” (idem).
6
A identificação é uma das categorias fundamentais da teoria e da metapsicologia freudianas.
13
“identidade/identificação”.
dos mitos, no contexto da sociedade nacional. Nas palavras de Sodré (2005, p. 10),
de indeterminar, insinuando novas regras para o jogo humano”. Esse conceito é bastante
vigente de poder.
de seus núcleos sociais locais e regionais, analisando a máquina dos discursos do poder,
estabelecidos pelo capitalismo e pela globalização, em que estes são delimitadores dos
7
Nesta dissertação, este termo será utilizado de forma mais ampla, considerado como terreiro de culto.
Nos contos de Sodré estudados, não há nítida distinção entre as religiões afro-brasileiras nas formas de
liturgia. Portanto, quando me referir à Umbanda, estou tomando o ponto de encontro entre as duas
representações religiosas: a Umbanda e o Candomblé, por serem semelhantes em vários aspectos, tais
como orixás, crenças e rituais.
14
literárias – a identidade: campo conflituoso e repleto de armadilhas. Por isso, ele prefere
cultura em que se realiza a respectiva existência. Para Sodré (1999, p. 38), “todo
comum-pertencer, com acento forte no ato de pertencer”. Portanto, para ele, a inclusão
plásticas etc.), por meio das relações de semelhança e diferença, ou seja, o movimento
conceituação do termo cultura no Brasil, o que, para este trabalho, se torna essencial,
pós-moderna sobre os estudos identitários, quando faz uma leitura sobre o sujeito da
movimento de construção. Nos textos literários de Muniz Sodré que são alvo de meu
e cultura.
Antes desse estudo, é relevante abordar outras obras desse autor. Uma que não é
objeto de estudo desta dissertação, mas que não escapa do projeto literário do autor
estudado, é o romance O bicho que chegou a feira, o qual tem como “protagonista” a
cidade de Feira de Santana com os respectivos mitos, histórias e personagens. Essa obra
é uma leitura crítica do regionalismo e dos hábitos populares, pelo viés do olhar da afro-
16
brasilidade, trazendo como destaque o negro e os elementos de sua cultura. Nessa obra,
Sodré destaca que “a cobra, a besta-fera eram no sertão entidades do Mal” (1991, p.
146), mas que, em nada, podiam prejudicar, pois Feira era cheia de armadilhas para se
avistou à margem da estrada o dorso negro do réptil, que se mantinha quieto, cabeça um
tanto levantada” (p. 11). E o narrador acrescenta: “Presságio de bicho talvez” (p. 11).
que havia passado por aquele lugar e infernizado a vida da sociedade escravocrata dali,
popular.
Durante toda a história, o leitor percebe algo misterioso pairando no ar, quando,
então, chega à cidade um certo Capelão, que assim como a cobra, muda de pele.
cristão, branco, dogmático, que queria, a todo custo, apagar as marcas de uma memória
oferenda, adquiriu a doença do bicho, e passou a ser cuidado pelas pessoas do local.
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Diagnosticada a enfermidade, foi retirado um verme da sua perna. Com isso, o autor, ao
inscrever a metáfora do bicho no corpo do Capelão, aponta para o Mal que convivia
sugere que a força mística do negro está no poder de revidar a atitude desrespeitosa do
encontra abordagem nos contos de Sodré. Porém, em cada um deles, isso se dá de forma
distinta. Em A lei do santo, cada história revela um segredo diferente, levando consigo
ancestralidade. Além disso, cada personagem negro tem um protetor, o chamado santo
de cabeça. E, em sua maioria, cada lugar por onde passam esses personagens se
brasileira. Nessa obra, a lei do santo dita o ritmo e o objetivo de cada história. Na
verdade, a semântica da lei se faz justificar pela presença dos signos afro-brasileiros e
movimentos da capoeira que, por sua vez, lembram as danças de santo afro-brasileiras.
Mas o componente da herança cultural é o mais relevante nos contos dessa obra de
Sodré. Além disso, a presença do orum9 é marcante nas histórias, e isso é o fio condutor
dos enredos.
8
A palavra Cosmogonia vem do grego , que é a junção de “universo” e –
“nascimento” – termo que abrange todas as teorias das origens do universo, sendo elas religiosas,
científicas e mitológicas.
9
“Orum. Na mitologia iorubana, compartimento do Universo onde moram as divindades, em oposição ao
aiê, o mundo físico, terreno material. Segundo Pierre Verger, ao contrário do que normalmente se
18
Nas duas obras, buscarei mapear como são construídas as relações de alteridade
dos contos de Sodré. Tenho o objetivo de verificar nos textos literários desse autor
processo e nunca um produto acabado, não sendo construída no vazio, pois seus
constituintes são escolhidos entre elementos comuns aos membros do grupo: língua,
história, território, cultura, religião, situação social etc. Já segundo o próprio Sodré, em
pretende, para os iorubás, o orum não estaria situado no céu, mas sim debaixo da terra. Essa ideia poderia
comprovar-se nas oferendas aos orixás, quando o sangue
19
dos séculos após o “descobrimento”. Passando por uma definição de cultura brasileira,
como integrante dessa tradição. No capítulo 2, por meio de uma definição do termo
santo, faço uma leitura de alguns contos de Sodré sob o prisma da religiosidade afro-
brasileira. Para isso, utilizo do pensamento do Sodré teórico, para configuração dessa
destacando, dentre outras questões, o dialogismo existente nos contos em dois níveis:
ficcionista).
Sodré, que é uma espécie de griot e transmissor das histórias e elementos de uma
tradição.
20
A
literatura é uma forma de subjetivação que se realiza na
individual, mas no percurso pelo coletivo, em que histórias e personagens mantêm uma
expressões das semelhanças e diferenças, e as relações entre essas duas, as quais quase
espaço.
10
Estrutura abstrata de um texto, que o anuncia como texto propriamente dito, mas que não possui ainda
as condições de coesão e coerência entre os elementos para poder ser um conjunto organizado de signos.
Em textologia, ao conjunto de lexias ou série de fragmentos de texto chama-se também metatexto, por
ainda não denunciar um conjunto em toda a sua integridade linguística e lexical. Se pensamos no processo
de formação de um hipertexto, diz-se que este inclui o desenho de duas camadas: as lexias individuais e o
conjunto formado por essas, que constitui o metatexto e pode ser lido em qualquer momento de
realização. Por essa razão, um metatexto nunca é um produto acabado. Obriga a uma interatividade com o
conhecimento adquirido pelo leitor, que pode investir nele, quer em termos criativos (novas lexias) quer
em interpretativos (novos significados). Na sociedade global, é possível imaginar um único metatexto,
pensando ser viável a ligação entre todos os textos disponíveis de variadas formas e sentidos. Esse
metatexto global é, obviamente, ilegível na sua totalidade e de estrutura indescritível, mas, em abstrato, é
possível conceitualizá-lo.
11
Segundo verbete do dicionário Houaiss, dessemelhança é a condição do que é dessemelhante, diferente
distinto. In: HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, 2009, p. 669.
22
acordo com as ideias desse autor e estudos anteriores sobre o assunto, o conceito de
identidade diz respeito a questões que envolvem a vida do Homem em suas relações
móveis e fixas, resultado da interseção da história particular com as dos grupos dos
12
Entendo mesmidade como a propriedade do que é o mesmo. É a propriedade que tem um ente de ser ele
próprio e não outro. Por outro lado, difere-se de identidade que pressupõe a existência de dois entes, que
se afirmam serem idênticos. Na identidade, há alteridade, são os uns iguais aos outros.
23
uma lenta hesitação entre o eu e o outro. De acordo com Laplanche & Pontalis (1982, p.
o modelo deste.
imaginário para a ponta da caneta do escritor até a folha de papel. Muitas vezes, o texto
literário pode simular o indivíduo na vida diária, na relação com o mundo, com o
constituição do Homem.
realça o exótico da terra brasilis, e o faz por meio de um código marcado pela
XIX, a Literatura Brasileira sofreu os reflexos dessa busca por uma identidade nacional
original, quando sua originalidade não se encontraria na cópia do modelo original, mas
14). Segundo Homi Bhabha, em O local da cultura (1998, p. 202), o “nacionalismo não
[…]”. Haja vista as produções literárias do século XIX, como O guarani (1857), de José
Ainda, sobre o século XIX, Doris Sommer (2004), ao referir-se a algumas obras
autônomas” (SOMMER, 2003, p. 24) e relata: “[...] Tudo isso faz crer que a literatura
leitores latino-americanos assim o supunham” (p. 25). O objetivo desses escritores era
de fazer aqui o mesmo que se fazia na Europa culta, quer exprimindo a realidade local.
nacional é o resultado dessa operação de projetar a nação como totalidade coesa. Eric J.
moderno foi um grande articulador das produções artísticas, em seu conjunto de cultura
sentimento de nação.15
europeus. Por outro lado, a pirâmide social não era integrada por um todo homogêneo.
Nesse sentido, entre os que ocupavam a ponta da formação social brasileira, havia uma
14
O Estado-nação é formado no imaginário coletivo, originado pelo conjunto de elementos que o
constituem: como por exemplo, língua, forma de governo, crença religiosa, regime político, em suma, a
forma de organização que o configura como comunidade imaginada.
15
A nação brasileira se forma no momento em que as ideias iluministas de liberdade, igualdade e
fraternidade atingem seu apogeu no imaginário ocidental, ou seja, no âmbito da formação da
Enciclopédia, como meio globalizante do empirismo científico e da arte.
26
às margens da sociedade, não eram considerados, seres humanos, inclusive por vários
pertencimento a uma comunidade, tanto para o Estado, quanto para o indivíduo: “[...]
não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou
raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-
los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional.” Esse senso de
16
Considerar as diferenças (os índios, por exemplo) como seres “fora da humanidade”, “proscritos pela
própria natureza”, era inclusive uma atitude perfeitamente coerente para um humanista como Francis
Bacon.
17
Conceito de Antonio Candido que define sistema literário como formado pela existência de um
“conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores,
formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de
modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros. O conjunto dos três elementos
dá lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que aparece sob este ângulo como sistema
simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de
27
essencialmente ariana, na busca pelo purismo racial. Na leitura desse quadro, é evidente
formada nesse contexto. Qual sujeito se configura como eu-enunciador dos discursos
Antônio Cornejo Polar, em O condor voa (2000), nos apresenta outra visão em
relação a nossa versão historiográfica oficial e nos faz perceber que a Literatura
tempo ainda mais aquém ao tempo deste. Polar, ao dissertar sobre a categoria de sistema
literário, nos alerta para a urgência de corrigir os erros da historiografia oficial, que faz
busca por uma ordem tão perfeita e harmoniosa, quanto postiça. Ainda, para Cornejo
Polar, torna-se equivocado situar duas ou mais literaturas em uma só linha temporal,
audíveis, quanto mais artísticas. Confirmando tal argumento, Cornejo Polar (2000, p.
52) ressalta:
contacto entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade”. In: CANDIDO.
Formação da literatura brasileira, 2000, p. 26-28.
28
não prevê espaço para a voz do sujeito subalternizado. Problematizando essa questão,
em nossa formação literária. Para isso, sobre a construção do Brasil como comunidade
uma coletividade harmônica, baseada em aspectos étnico-culturais criados por uma elite
pela utilização de critérios biológicos (compostos pelo estudo sobre raças), históricos
da língua do dominador). Cria-se então uma identidade de caráter nacional que passa a
comuns. Tudo isso catalisado pela dinâmica da relação entre a influência europeia e a
sociedade nacional como unidade em sua estrutura, no século XX, essa espécie de
contexto das artes brasileiras, tendo como base a antropofagia oswaldiana, em busca da
presença dos conflitos republicanos nos seus embates políticos e sociais, o Estado-
iniciado ao final do século anterior, frente à antiga matriz europeia. Em meio a esse
Brasileira.
cultural e financeiro, o brasileiro passou a ser configurado por ele mesmo e pelo
estrangeiro como um sujeito híbrido18 e mestiço. Isso, por um lado, é positivo, já que
questiona os modelos ocidentais de unidade e pureza, mas, por outro, leva a diferença,
18
Nessa trajetória do pensamento da identidade nacional, jamais deixou de estar presente a ideia de
mestiçagem. Depois de 1930 – quando a Nova República, afim à valorização do território anunciada pelo
modernismo, tenta determinar a imagem concreta de um povo nacional, para acrescentá-lo à Nação e ao
Estado elaborados pelo Império –, o elemento mestiço ganha cores decididamente positivas. Por isto, é
seminal a obra de Gilberto Freyre, em especial Casa Grande & Senzala (1933). In: SODRÉ, Muniz.
Claros e escuros, p. 97, 2003.
19
Alberto Moreiras, em “Hibridismo e consciência dupla”, (p. 316), afirma que a força política do
hibridismo continua concentrada, em sua grande parte, nas mãos da política hegemônica. Na leitura de
Moreiras e outros autores dos Estudos Culturais, cheguei a interpretação de que o hibridismo consagra a
30
O renascimento colonialista engendra por sua vez uma nova sociedade, a dos
mestiços, cuja principal característica é o fato de que a noção de unidade
sofre reviravolta, é contaminada em favor de uma mistura sutil e complexa
entre o elemento europeu e o elemento autóctone – uma espécie de infiltração
progressiva efetuada pelo pensamento selvagem, ou seja, abertura do único
caminho possível que poderia levar à descolonização.
Em diálogo com Santiago, ainda sobre o abalo da noção de unidade e sobre a redução
pela singularização das respectivas vertentes artísticas. Nesse contexto, cabe destacar
que a emergência de outras vozes e/ou identificações, no âmbito das práticas artísticas,
período.
por um processo marcado por rupturas, com a crise dos paradigmas e do sujeito
sujeito é fragmentada, e que a identidade não é um elemento acabado, mas sim por se
coletividade como uma democracia étnica, econômica e ideológica – falácia cristalizada constante no
imaginário coletivo social brasileiro.
31
ocupação de posições distintas pelo sujeito em sua formação, em sua estrutura como
20
[...] Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas do final do
século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça, e
nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas
transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos nós
próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de
deslocamento – descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de
seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o
indivíduo. Como observa o crítico cultural Kobena Mercer, “a identidade somente se torna uma questão
quanto está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela
experiência da dúvida e da incerteza” (MERCER, 1990, p. 43). HALL. A identidade em questão, 2003, p.
9.
21
Conceito proposto pelo filósofo francês Jacques Derrida, nos anos de 1960, para um método de análise
crítico-filosófica que tem como objetivo a crítica da metafísica ocidental e da tendência para o
logocentrismo, incluindo a crítica de certos conceitos (o significado e o significante; o sensível e o
inteligível; a origem do ser; a presença do centro; o logos etc.) que tal tradição havia imposto como
estáveis. A desconstrução começa por ser uma crítica ao estruturalismo, tornada pública numa célebre
conferência de Derrida na Universidade de Johns Hopkins, nos Estados Unidos, em 1967, com o título
“La structure, le signe et le jeu dans le discours des sciences humaines”. Se o estruturalismo pretendia
construir um sistema lógico de relações que governaria todos os elementos de um texto, a desconstrução
pretendia ser uma crítica do estruturalismo, que não passava apenas de um dos episódios da tradição
metafísica ocidental que merecia ser revisto. Partindo do método especulativo de Nietzsche, da
fenomenologia de Husserl e da ontologia de Heidegger, Derrida apresenta a tese inicialmente nas obras
L´Écriture et la différence (1967) e De la gramatologie (1967), e tem rejeitado desde então qualquer
definição estável ou dicionarizável para aquilo que se entende por desconstrução.
22
32
das forças diferenciais que distribui os diversos valores e privilegia um tipo de acento.
relação ao mundo, proporcionam muitas vezes relações ambíguas com esse mundo e
com os outros lugares internos em sua formação, e muitas vezes relações de resolução,
fortemente se fazem presentes nesse contexto. Porém, o sujeito não é só constituído pelo
psicológico, mas também por estruturas culturais, sociais, religiosas, sexuais, dentre
outras – todas elas implicadas e amarradas em uma rede complexa de relações. Portanto,
estudar e mapear a identidade são tarefas para toda uma vida. Assim, percebo que a
da heterogeneidade simbólica.
34
influência sobre essa tendência. Porém, no contexto brasileiro, longe das questões do
busca por conquistas de territórios culturais. Assim, a formação das favelas, além de ser
exército, habitados por classes perigosas, espaços que demandavam limpeza e cerco
23
Segundo Nei Lopes, favela significa é um “núcleo habitacional erigido desordenadamente, em terrenos
públicos, de domínio não definido ou mesmo alheio, localizado em área sem urbanização ou
melhoramentos. O termo foi cunhado no século XIX, na cidade do Rio de Janeiro, para denominar parte
do morro da Providência, por semelhança com um ‘morro da Favela’, existente no interior da Bahia, de
onde vieram, após a Guerra de Canudos, em 1897, alguns dos primeiros povoadores. Esse núcleo pioneiro
tornou-se um forte pólo irradiador da cultura negra, da mesma forma que outras “favelas” formadas no
Rio de Janeiro, no maciço da Tijuca, em direção aos subúrbios, à Baixada Fluminense e à zona Oeste da
cidade, com famílias emigradas, principalmente do norte do Estado e do Vale do Paraíba. À época da
conclusão desta obra, a predominância de famílias negras parecia verificar-se apenas nos núcleos mais
antigos como os morros da Mangueira, Salgueiro, Formiga, Turano, Borel, serrinha etc. Variações
regionais do fenômeno favela são os mocambos de Recife, os alagados de Salvador e as vilas de malocas
em Porto Alegre.” In: LOPES. Enciclopédia brasileira da diáspora negra, 2004, p. 272-273.
24
Neste trabalho, utilizamos os termos favela, morro e margem como sinônimos.
35
por Antônio Conselheiro, o espaço de tempo foi muito curto. Portanto, podemos
considerar que a origem da favela está no encontro desses dois eventos na história do
cidade – os casebres dos morros. Assim sendo, o indivíduo negro ex-escravo que, a
Naquele momento, com toda pressão internacional para o fim do tráfico negreiro e com
espacial. Em suma, de alguma forma, a senzala apenas mudou de lugar, saindo dos
porões da Casa-Grande para as margens das cidades. Aquele espaço físico fechado,
úmido, escuro e com grades foi retirado do engenho, mas continuou existindo mais do
que nunca no imaginário coletivo dos brancos, e também de muitos dos negros e
mestiços “alforriados”. A extensão física chamada favela convive com a condição dupla
de ora senzala, ora quilombo. E surge como lugar de cultura para os indivíduos que nela
residem.
25
Partirei de alguns significados, dentro do contexto brasileiro, a fim de esboçar algumas relações de
poder nos discursos sobre cultura na literatura nacional, considerando suas influências com os modelos
estrangeiros, em contraposição à literatura afro-brasileira. Num segundo momento, me focarei nos
discursos reproduzidos pelos contos de Sodré.
36
cultura faz alternar seus significados principalmente entre “sistema de vida” (com
românticos).
cultura tornou-se “código orientador dos conceitos sublimes das classes dirigentes”, no
deslocamento de seu local de cultura para outro sítio e suas relações com o outro no
encontro das várias orientações culturais, uma noção importante para nossas reflexões é
negada, mas também para uma constante negação das posições de identidade:
identidades que são sempre o produto da relação hegemônica, isto é, sempre
o resultado de uma interpelação, portanto, não um local autônomo para a
política. O mesmo acontece com a identidade, com a diferença ou
hibridismo: o problema está em outro lugar, e não pode ser circunscrito ao
terreno subjetivo. Uma política subalternista exigiria, para Mignolo, a
teorização necessária desse outro lugar, sob “a experiência dupla de
simultaneidade existir dentro da epistemologia da modernidade ocidental e na
diferença criada pela subjugação, pela modernidade, de epistemologias
alternativas” (“Espacios”, 8). As “epistemologias fronteiriças” de Mignolo
baseiam-se na força da consciência dupla que “incorpora a civilização à
barbárie ao mesmo tempo em que nega o conceito hegemônico de
civilização” (“Espacios”, 15). Para ele, o “capitalismo sem fronteiras”
paradoxalmente cria as condições para “rearticular a epistemologia moderna
no encontro com saberes locais” (“Espacios”, 15).26
apagamento das origens da cultura autóctone e a obliteração das vozes dos sujeitos que
respectivos descendentes para imposição de poder no que deveria ser construído via
“diálogo”, ou seja, pela negociação dos espaços físicos e ideológicos. Porém, os sujeitos
subalternizados nunca se contiveram nos lugares para onde foram relegados e fizeram
hoje, há uma luta, um movimento de busca, por parte desses sujeitos, pela conquista de
nas artes e, em especial, na literatura, implica destacar a questão identitária, essa que
sempre foi uma problemática discutida e recorrente nos “círculos intelectuais restritos
“os meios de comunicação de massa ignoram [...], atravessados por uma espécie de
crenças inquestionáveis, a arte tem seu lugar inabalável e onipotente, fruto da metafísica
26
MOREIRAS. Hibridismo e consciência dupla, 2001, p. 317.
38
sempre foi vista pela tradição formalista ocidental ou por seus simulacros como uma
conteúdo intelectual para se ter acesso a ela, que transcende a manifestação meramente
sempre foi instituído como um campo que abarcasse as artes produzidas por europeus
povo brasileiro esteve alicerçada por uma cultura de cunho nacional. Em processo, a
(Deus e o Diabo na Terra do Sol, Vidas Secas e Os Fuzis), no início da década de 1960,
ícones foram Caetano Veloso e Gilberto Gil, influenciou outras artes, tais como as artes
influenciar com a arte literária dos concretistas, representados pelos irmãos Haroldo e
Augusto de Campos.
décadas de 1960 e 1970, a literatura e as outras artes nacionais, sob a estética dos
modelos ocidentais, passaram a integrar aquilo que viria ser denominado cultura
como algo pertencente aos estratos superiores da pirâmide social. Dessa forma, cultura e
valor caminham juntos. Porém, a partir dos significados que se atribui aos dois termos,
torna-se fácil reconhecer que são elementos inegociáveis e além de tudo, relativos, se
alteridade nas artes e nas ciências humanas e sociais, para alguns estudiosos do
cultural pode atualmente quase ser, em seu aspecto performático, uma espécie de
procuram legitimar o território do sujeito negro dentro dos respectivos contextos, nas
movimento cada vez mais acentuado em velocidade e alcance de redução das fronteiras
afro-brasileira.
experimenta, é certo, um acesso imediato ou direto ao real”, mas sim por meio do ato
(1988, p. 9) afirma:
27
Conceito de Deleuze e Gattari, aqui, uso o termo para explicar a reconquista de territórios pelo
capitalismo e pela cultura ocidental.
41
conceitos de cultura nacional, o mais difundido pelo imaginário coletivo dos que vivem
brasileiro, possui raízes europeias. Tal conceito é cultivado por um sistema excludente,
literário brasileiro é preenchido com tal força. Várias das produções literárias brasileiras
foi esta mesma sociedade influenciada pela europeidade. Nestas representações, são e
Parte do conjunto das obras literárias brasileiras sempre buscou delegar lugares
identitas e dessemelhanças.
Portanto, por meio desse argumento, muitas produções literárias estão ligadas aos
um conceito do que são os estudos culturais, fica mais clara essa relação entre memória
aspectos da sociedade contemporânea. Por esse conceito e por meio de uma abordagem
Literatura são disciplinas ligadas intimamente. Por isso, para pensarmos os estudos
modernidade. Moreiras (2001) colabora com o debate sobre a relação entre culturalismo
distanciamento entre as duas áreas. Em uma dessas hipóteses, classifica que a polêmica
28
Quando me refiro à literatura brasileira, excluo dela sua vertente afro-brasileira, já que esta não é
reconhecida quando vista pelos olhos do cânone.
43
o que está em jogo não é a literatura, nem seu estudo ou sequer a estética; não
está em jogo tampouco o texto ou qualquer forma de leitura posta em prática
ao longo de muitos anos de hegemonia do campo literário. Trata-se, sim, de
lidar com um deslocamento geocultural, motivado ou fomentado por uma
mudança substancial na estrutura do capital na esfera global. (MOREIRAS,
p. 22)
Vê-la na tela do cinema é uma atividade de cultura. Por outro lado, é interessante
brasileira.
representação que lhe cabem, o afro-brasileiro negocia as formas de arte que produz.
Assim, antes de pensarmos a favela como bolsão de pobreza e violência, devemos nos
44
O culto aos orixás, em suas manifestações nos terreiros, surge como meio de
brasileira no contexto social opressor que havia sido alocado. Nos textos literários afro-
brasileiros, o culto, o axé29 assume uma força de representação tão potente quanto as
valores e crenças. Agora, o que permite ou não a consagração do ser negro é a presença
processo de sincretismo, mas aparecem apresentando uma relação que celebra uma
espiritualidade vinculada aos santos negros, aqueles que carregam e instauram uma
29
“Axé. Termo de origem iorubana que, em sua acepção filosófica, significa a força que permite a
realuzação da vida; que assegura a existência dinâmica; que possibilita os acontecimentos e as
transformações. Entre os iorubanos, (àse), significa lei, comando, ordem – o poder como capacidade de
realizar algo ou de agir sobre uma coisa ou pessoa – e é usado em contraposição a agbara, poder físico,
subordinação de um indivíduo a outro, por meios legítimos ou ilegítimos.” In: LOPES. Enciclopédia
brasileira da diáspora africana, p. 83.
45
cronológica, estão repletas de formas católicas, nas obras em que o sujeito afro-
cultos nos enredos dos textos literários afro-brasileiros, entramos no mérito das
subjetividades. Feito isso, torna-se possível mapear a maneira pela qual o jogo
múltiplas ocupa, não assumindo uma representação fixa como acontece com muitos dos
discussão sobre autoria, com qual interlocutor determinado personagem dialoga, quem o
terreiro ou de cidade.
O valor do local de cultura é definido por Homi Bhabha (1998), que o enfatiza,
em seus ensaios, e nos possibilita situar as produções literárias das minorias como a
moderna: “o trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com ‘o novo’ que não
seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato
Em outra parte do texto, Bhabha expõe uma leitura sobre a valorização histórica
culturas, da valorização da produção artística dos sujeitos da margem, por parte dos
respectivos produtores, que se reconhecem como sujeitos produtores de arte, e, por parte
Pensar a alteridade no âmbito das artes requer uma análise do contexto em que,
Bhabha, o estudo da literatura mundial poderia ser a análise do modo pelo qual as
como verdade metafísica, mas todo e qualquer discurso que se impõe via poder do signo
influência a qual não tem como ser ignorada: o reflexo e/ou a inserção de aspectos
mesma. Por exemplo, a capoeira, tipo de arte que possui origem afro, foi, no século XX,
sendo assimilada pela elite. Portanto, hoje, é praticada por várias pessoas que são
integrantes da ponta da pirâmide social, muitas vezes vista como prática desportiva
interessante ressaltar que essa, envolvida por movimentos cadenciados do corpo, foi
30
Desde Aristóteles e sua metafísica, sabemos que forma (eidos, morfé) é a natureza íntima das coisas,
aquilo que lhe constitui a essência. O que faz do homem, por exemplo, um ser racional é a sua forma ou
essência, denominada “alma”. A definição de algo é uma referência à sua forma, entendida como
princípio essencial.
Forma é de fato a “substância primeira”. Assim, ao caracterizar a substância como (1) o que não é
inerente ao outro e não se predica ao outro; (2) o que pode subsistir por si ou separadamente do resto; (3)
o que é um “algo de determinado”; (4) o que tem uma unidade intrínseca; (5) o que é ato ou está em ato,
Aristóteles deixa claro que a substância por excelência (isto é, não do ponto de vista empírico, mas
metafísico) é o eidos, forma, causa e fundamento do ser. In: SODRÉ. Claros e escuros, 2000, p. 58.
47
ensinada aos negros cativos, pelos próprios irmãos de cor. Para não levantar suspeitas,
os movimentos da luta foram sendo adaptados às cantorias e ritmos africanos para que
vista como forma de arte brasileira, sem a semântica que está vinculada às respectivas
origens.
modernização – noções que foram sendo superadas, aos poucos, no decorrer do século
31
O escravo configurava-se como um empecilho ideológico à higiene e à modernização.
[...]
A cortesia e o refinamento são regidos por normas que vetam os toques mútuos, assim como o livre
contato corporal em público. A intensificação de um império normativo dessa ordem, correspondente ao
aumento do poder das aparências europeias no espaço urbano brasileiro, fazia com que a noção de
promiscuidade abrangesse toda a esfera de atos não garantidos ou autorizados pelos códigos
metropolitanos.
48
ressignificar o cenário cultural do qual faz parte e que, frente à cena nacional, sempre
“canibaliza” o nacional.
constatamos que ele influenciou várias obras canônicas da Literatura Brasileira, em sua
estética. O texto oswaldiano foi uma resposta às questões colocadas pela Semana de
Arte Moderna de 1922. Para ele, a renovação da arte nasceria a partir da retomada dos
Luiz Silva (Cuti), em 2002, apropria-se do Tupi or not Tupi da Literatura Brasileira, o
32
Esse conceito de tempo pleno foi desenvolvido por Bakhtin e trabalhado por BHABHA. Disseminação
– o tempo, a narrativa e as margens da nação moderna. In: BHABHA. O local da cultura, p. 204.
33
49
derridiano do termo, com o Zumbi or not Zumbi34. Portanto, as produções literárias afro-
por meio dos valores arraigados no sentido do ícone Zumbi dos Palmares. Ou seja, as
XX.
“é um imaginário que se articula aqui e ali, conforme o diálogo de autores, obras, temas
transforma. Aos poucos, por dentro e por fora da Literatura Brasileira […]” (IANNI,
1988, p. 208). Essa literatura é identificada, no conjunto das produções nacionais, como
elemento de autoria afro-descendente, que aborda o tema do negro, cujo ponto de vista
expressa uma linguagem que se caracteriza pela utilização de signos que a identifiquem
constituído por sujeitos que reconheçam e aceitem esse movimento do olhar sob o
objeto literário.
34
“A palavra Zumbi, ou Zambi, vem do quimbundo nzumbi, ‘espírito’. Nome pelo qual foi conhecido o
maior líder da confederação de quilombos de Palmares, nascido provavelmente na capitania de
Pernambuco, onde viveu sua epopeia e faleceu. Segundo algumas versões, nasceu em Palmares, foi
levado para o meio urbano, onde recebeu educação formal, e retornou para tornar-se o promártir da
libertação dos negros brasileiros.” In: LOPES. Enciclopédia brasileira da diáspora africana, 2004, p.
698.
50
modernas, inaugura outra tradição – a tradição afro-brasileira. Essa, até então, havia
sido escrita fora do círculo literário da elite intelectual e econômica nacional. Escrita à
negro.
Segundo Luíza Lobo (2007, p. 313), em Crítica sem juízo, a Literatura Afro-
anos, a data oficial de 1888 – data de promulgação da Lei Áurea. No ano de 1859, foi
primeiro no Brasil a destacar a causa abolicionista. A autora da obra, Maria Firmina dos
Reis, era uma mulata bastarda e professora primária. O referido romance salvou-se
graças ao fato de que o único exemplar da primeira edição foi comprado num lote de
usados pelo bibliófilo Horácio de Almeida, que o identificou por meio de um dicionário
vinculadas aos valores europeus e a uma estética permeada por aspectos clássicos,
elite. Portanto, para o sujeito desse tempo não existem mais posições fixas, previamente
suplementos de sentido.
também são inseridos autores canônicos da tradição literária nacional, como Machado
Portanto, várias das histórias literárias brasileiras poderiam ser contadas sobre outro
ponto de vista, cujo foco é um olhar que vem da senzala, da margem, do quarto de
busca pela globalização. Nesse contexto, torna-se obrigado a conviver com o embate
República, surgiram as favelas. Com o fim dos quilombos, como locais de cultura35 e
pele do texto e as fibras da urdidura literária. Nesse contexto, líderes como Ganga
Zumba, Lucas da feira e Zumbi são recuperados, a partir da transfiguração da luta, dos
quilombolas deixaram como legado a lição de rebeldia e bravura que a Literatura Afro-
brasileiro, tais como David Brookshaw, Zilá Bernd e Domício Proença Filho, destacam
35
Conceito desenvolvido por BHABHA, Homi, em O local da cultura, 2003.
53
Desde a metade do século XIX, até hoje, no século XXI, o indivíduo afro-
brasileiro vai se tornando produtor de literatura, ou seja, passa de sobre quem se fala a
afirmar. A relevância da expressão das várias formas de cultura, como, por exemplo, as
leitor, em que esse vem se delineando, ou seja, se construindo como recepção para a
Sodré, os livros de contos A lei do Santo e Santugri. Esse estudo levou-me a perceber
mutável, visitado por elementos que estão diretamente relacionados ao local de cultura
54
em que estes são aplicados. Nos capítulos seguintes, serão destacados, nos contos de
Faça sol
ou faça tempestade,
meu corpo é fechado
por esta pele negra.
(FONSECA, Maria Nazareth
Soares. Faça sol ou faça
tempestade, 2002, p. 205.)
56
N
a lógica das liturgias católicas, os santos são entidades do campo
espiritual com as quais cada indivíduo que nelas creem têm uma
Divina Espiritualidade, composta pela Santíssima Trindade e pela mãe de Jesus Cristo.
A palavra santo vem do latim sanctu e significa o que se estabeleceu pela lei e/ou que
se tornou sagrado. No Novo Testamento, significa sagrado, puro, sem culpa e afastado
do pecado. Em uma das definições bíblicas, é pessoa consagrada por Deus, vivendo na
terra, e, muitas vezes, aparece como sinônimo de cristão. A Bíblia cita Jerusalém, Lida,
Acaia, Éfeso, Filipos, a casa de César, Colossos e Itália (Romanos 15:26; Atos 9:32;
Coríntios 1:2; Efésios 1:1; Filipenses 1:1; 4:22; Colossenses 1:2; Hebreus 13:24) como
alguns dos lugares onde os santos viveram. Referências ao Livro Sagrado cristão estão
presentes em muitas obras da Literatura Brasileira que fazem parte do cânone. Junto
com a história de formação do Brasil, assim como os demais produtos de uma cultura, o
texto literário leva, dentre outras, a função de educador, disciplinador e regulador social,
representação desta. Cada ser humano que foi transplantado à força das tribos africanas
com a diáspora negra, os elos com o universo africano não se dissolveram. Cada cabeça
trouxe seu guia, seu orixá. Cada um trouxe uma parte da África. Assim como nas
religiões cristãs, os santos africanos precisavam ser “inventados”. Nas liturgias afro-
brasileiras, segundo Nei Lopes (2004), santo, “no Brasil e na América hispânica, [é
uma] denominação genérica para cada um dos orixás, inquices ou encantados das
invisível, mas, ao mesmo tempo, presente no cotidiano do sujeito negro, bastando ser
invocado por rituais. Nesse contexto, o orixá está muito mais próximo do homem que
africanos. Nos contos de Sodré, os orixás são invocados em todos os momentos em que
dia em que, em terras africanas dos iorubás, um mensageiro chamado Exu36 andava de
aldeia em aldeia, à procura de solução para terríveis problemas que, na ocasião, afligiam
a todos, tanto aos homens quanto aos orixás. Segundo o mito, Exu foi orientado a ouvir
do povo todas as histórias que falassem dos dramas vividos pelos seres humanos, pelas
próprias divindades, assim como por animais e outros seres que dividem a terra com o
pela montagem desse acervo de histórias que falam da ventura e do sofrimento, das
lutas vencidas e perdidas, das glórias alcançadas e dos insucessos sofridos, das
36
Segundo Nei Lopes (2004), o Exu é um “orixá da tradição iorubana. Exu ou Elegbara
(etimologicamente, o “dono da força”) é a síntese do princípio dinâmico que rege o Universo e possibilita
a Existência, sendo, também, a mais polêmica dentre as forças invisíveis que regem as concepções
filosóficas jeje-iorubanas na África e na diáspora. Porta-voz dos orixás, é quem leva as oferendas dos fiéis
e, na condição de mandatário, protege os cumpridores de seus deveres e pune os que ofendem os orixás
ou falham no cumprimento das obrigações. Nas palavras do antropólogo Ordep Serra, é o grande
mensageiro e intérprete, um viajante de todos os caminhos, que ‘anda por quanto mundo existe’ e ‘troca
língua’ como quer. Quando os orixás querem dar algo de bom a uma pessoa, tanto material quanto
espiritualmente, é a exu que encarregam de levar essa dádiva. Mas o papel do agente punitivo, de
causador de transtornos, e a característica eminentemente amoral desse fiel mandatário dos orixás têm
levado muitas pessoas, notadamente antigos missionários católicos europeus, a confundi-lo com o Diabo
dos cristãos ou com o Shaitan dos mulçumanos. Na África e na diáspora, independentemente do orixá a
que pertença, todo fiel sempre invoca Exu para que El não cause problemas. Em cada oferenda feita a um
orixá, uma parte é separada para ele. [...] Seu santuário é fora da casa principal do terreiro [de umbanda],
e seu assentamento é, em geral, uma cara de barro bruto ou um simples montinho de barro vermelho,
como os existentes em todos os quintais da cidade da cidade sagrada de Ilê Ifé. In: LOPES. Enciclopédia
brasileira da diáspora africana, 2004, p. 266-267.
58
narrativas que tratam dos fatos cotidianos, por menos relevantes que pudessem parecer,
tinham de ser devidamente analisadas, pois a vida está nos fatos diários, e o legado de
um povo encontra-se em sua relação consigo próprio e com o mundo. Exu deveria estar
atento também aos relatos sobre as providências tomadas e oferendas feitas aos deuses,
para se chegar a um final feliz em cada desafio enfrentado. Reunindo várias histórias,
Exu juntou um número incontável delas, de acordo com o sistema de enumeração dos
antigos iorubás. Após realizada essa pacientíssima missão, o orixá mensageiro tinha
diante de si todo o conhecimento necessário para a revelação dos mistérios que tratam
cotidiana contra os infortúnios que a todo momento ameaçam cada um de nós, ou seja, a
nesse contexto, torna-se um registro para a formação do legado das várias culturas. Em
Ilha de Vera Cruz, com A Carta, de Pero Vaz de Caminha, encontramos referências aos
nas falas dos personagens, seja no espaço de conveniência dentro da história, ou, até
forma que podem ser lidas pelo olhar da tradição da elite, de formação europeizada,
podem ser vistas pelo olhar do afro-brasileiro, de quem veio das tribos, selvas e
senzala – entendendo essa última, de forma mais ampla, como um signo muito mais
ligado à opressão moral e cultural do que ao espaço físico encerrado nas grades do
cativeiro.
As obras ficcionais de Muniz Sodré Santugri (1988) e A lei do santo (2000) são
duas das importantes obras da Literatura Afro-Brasileira, nas quais será analisado o
etc.), signos que representam metáforas, com o propósito de ampliar a fortuna crítica
várias vozes que constituem a formação do sujeito que narra as histórias e constrói os
psicológico e físico, o espaço da favela pode ser interpretado como um terreiro, lugar de
histórias dos contos de Sodré. Ele é quem carrega a força com a qual o filho de santo
É tão sagrado tomar uma cachaça no intuito de alimentar o santo quanto tocar um
A maioria dos personagens de Sodré são filhos de santo. Eles não são envolvidos
por meros preceitos religiosos, mas sim por uma cosmogonia desenhada nas histórias
histórias, representando sob várias formas, é o espaço real por excelência, pois o mito é
mitologia do sujeito negro. Dessa forma, o lugar de enunciação deixa de ser a sala da
âmbito do texto escrito. Tais espaços, nos contos de Muniz Sodré, são metáforas que se
desdobram em outras. Muitas vezes, tornam-se terreiros de culto aos santos afro-
brasileiros.
oculto, que se desdobra nos vínculos entre espaços e personagens, cujas vozes falam o
atravessa o tempo das narrativas, nas quais os personagens são constituídos como ícones
e detentora do poder – fruto da importação dos valores estéticos europeus. Nos contos
apropriados para a realização do culto, seja pela herança das práticas de realização das
oferendas, seja pelo conteúdo dos rituais, envolvem, muitas vezes, a natureza, meio
possibilidade de repensar o local em que vive o negro em nossa sociedade, numa forma
geração produz seu legado, sob várias formas de representação, seja na dança, seja na
religiosidade, seja nas práticas sociais. Sodré, em Santugri, apresenta sujeitos que
Exemplo disso é “Água de Rio” que narra uma história de uma luta entre Oxum37 e
Agbaraiê38. Este era rei de uma região chamada Oxogbô39. Ele entrou em conflito com a
deusa Oxum, pois os poderes dela estavam crescendo nos domínios dele. Esse lugar
possuía grande força no mundo visível, por isso tinha o poder de comunicar-se
37
Oxum é um “Orixá iorubano das águas doces, da riqueza, da beleza e o do amor. Segundo alguns
relatos tradicionais, é divindade superior, tendo participado da Criação como provedora das fontes de
águas doces. É o nome tutelar do rio Óshun, que nasce Ekití, no Leste da Nigéria, e passa pela cidade de
Oshogbó, onde se localiza seu primeiro santuário [...] É a Vênus dos iorubás, famosa por sua beleza e por
seu grande cuidado com a aparência. Alta, de seios belíssimos, é descrita como divindade que gosta muito
de se banhar, que está sempre se mirando num espelho e que usa braceletes de latão, do pulso até o
cotovelo. Por causa da sua beleza, Oxum foi desejada por todos os orixás, e de muitos fez seus maridos
ou amantes”. In: LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana, p. 505.
38
O Agbara é o poder físico. Segundo Nei Lopes (2005), “o conjunto dos meios materiais que permitem
executar uma ordem representa o poder físico: por exemplo, as armas, os soldados ou mesmo as proezas
físicas no campo de batalha ou em um combate civil”. In: LOPES, Nei. Kitábu: o livro do saber e do
espírito negro-africanos, 2005.
39
Oxogbô é uma cidade do Sudoeste da Nigéria, centro irradiador do culto ao orixá Oxum. In: LOPES,
Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana, p. 502.
63
ministros, Ifá, sugeriu que o conflito fosse resolvido com uma guerra. Portanto,
Olodumare retirou os poderes sobrenaturais de Oxum, que deveria contar apenas com os
recursos deste mundo, com os fiéis seguidores da deusa e com as armas. Na verdade, o
objetivo de Ifá era que ambos, Agbaraiê e Oxum, aprendessem um com o outro,
coração limpo, cantou e dançou para a deusa e para as outras divindades, cumprindo os
ritos de Exu. “Agbaraiê lançava olhares de desdém para a outra margem.” Sobre as
Olodumare viria intervir com um sinal. Isso era o que todos esperavam. No
entanto surge Exu Elegbara40, “negro absoluto: na cabeça, a crista prolongava-se numa
40
“Um dia Orunmilá foi procurar Oxalá e pediu que lhe desse um filho, pois ele e sua mulher desejavam
muito ter um. Chegando ao palácio de Oxalá, Orunmilá encontrou Exu Iangui. Exu estava sentado à
esquerda da porta de entrada. ‘É este o meu filho?’, perguntou Orunmilá. ‘Ainda não é tempo da chegada
de um filho’, respondeu Oxalá. Orunmilá insistiu junto a Oxalá sobre quem era o menino à porta e se
poderia levá-lo como filho. Oxalá garantiu-lhe que não era o filho ideal, mas Orunmilá tanto insistiu que
obteve a graça do velho.
Tempos depois, nasceu Elegbara, filho de Orunmilá. Para espanto de todos, nasceu falando e comendo
tudo que estava diante de si. Comeu tudo quanto era bicho de quatro pés, comeu todas as aves, comeu os
inhames e as farofas. Engolia tudo com garrafas e garrafas de aguardente e vinho. Comeu as frutas, os
64
trança que despencava pelas costas [...] Na mão direita, a lança; na esquerda, a cabaça
que guarda e transmite força sem fim”. Exu aparece perto de Agbaraiê, que, com grande
júbilo, solicita ao orixá uma solução. Nesse momento, Exu, “dono corpo, senhor da fala,
mestre da adivinhação” atendendo ao pedido do rei, deixou seu pênis colossal crescer
ainda mais, fazendo uma ponte entre os dois lados do rio. Sobre o pênis de Exu,
esclarecimento sobre a relação entre falo e poder. Na Grécia e Roma Antigas, o pênis
era cultuado como objeto de adoração, usado também como metáfora do poder. Na
enunciador, ou seja, a voz que ocupa na história o centro do plano narrativo. Na maioria
dos textos da literatura universal, quem tem o poder da enunciação é o homem. E, ainda
mais, o homem branco, ocupante das altas classes na pirâmide social. Portanto, durante
potes de mel e os de azeite-de-palma, quantidades impensadas de pimenta e noz-de-cola. Sua fome era
insaciável, tudo o que pedia, a mãe lhe dava, tudo o que dava a mãe, ele comia. Já não tendo como saciar
a medonha fome, Elegbara acabou por devorar a própria mãe. Ainda com fome, Exu tentou comer o pai.
Mas Orunmilá pegou da espada e avançou sobre o filho para matá-lo. Exu fugiu, sendo sempre
perseguido pelo pai. A perseguição ia de Orum em Orum. A cada espaço do Céu, Orunmilá alcançava o
filho, cortando-o em duzentos e um pedaços. Cada pedaço transformou-se num Iangui, um pedaço de
laterita. A cada encontro o ducentésimo primeiro pedaço transformava-se novamente em Exu. Correndo
de um espaço sagrado a outro, terminaram por alcançar o último Orum. Como não tinham saída,
resolveram entrar em acordo. Elegbara devolveu tudo o que havia devorado, inclusive a mãe. Cada Iangui
poderia ser usado por Orunmilá como sendo o verdadeiro Exu. E Iangui trabalharia para Orunmilá,
levando oferendas e mensagens enviadas pelos homens. Em troca, em qualquer ritual, Elegbara seria
saudado sempre antes dos demais. E sempre que um orixá recebesse um sacrifício, Elegabara teria o
direito de comer primeiro.” In: PRANDI. Mitologia dos orixás, 2001, p. 73-75.
65
guerreiros, o rei Agbaraiê lançou-se pelo percurso, impetuoso, com “lança e espadas nas
todo o exército real”. Nanã recebeu os afogados no fundo lamacento. Oxum e seus fiéis
invisível. Mas a celebração, regida por Omilaré, continuou por muito tempo, por meio
de cantigas e contação de histórias “lembrando a velha relação entre Oxum e Exu, seus
Agbaraiê, e o povo de Oxum trouxe oferendas (galos, bodes e pombas de cores claras)
para Exu. A água doce permanecera no espírito de todos, e o rio passara a ser chamado
de rio Oxum.
travessia do Mar Vermelho por Moisés e os Hebreus, em que é construída uma relação
inspirado por Deus e sente-se eleito para conduzir para a Terra Prometida os milhares de
escravos hebreus, que eram sacrificados com árduos e intermináveis trabalhos, os quais,
quase todos, eram destinados a nutrir e a ostentar a vaidade pessoal dos faraós. A figura
66
Assim como Oxum buscava expandir a doçura no coração dos homens, tarefa
bíblica, tenta convencer o faraó de o deixar cumprir o desígnio que recebeu de Deus.
Mas, assim como o personagem literário, o rei egípcio não queria ceder. No entanto, o
Egito é abalado por dez terríveis pragas, e o faraó acaba consentindo na retirada dos
hebreus, os quais se reúnem e começam a longa marcha que ficou conhecida por Êxodo.
Pelas passagens bíblicas, um vento forte, enviado por Deus, pôs a descoberto o fundo do
mar, abrindo-o como um sulco, formando dois grandes paredões, permitindo que os
soldados em perseguição aos judeus, Moisés, inspirado por Deus, permite que o Mar
Vermelho se feche no momento em que os soldados passavam, fazendo com que todos
mundo espiritual e o mundo terreno como lógica e dinâmica da vida do sujeito afro-
brasileiro é a essência das histórias nos contos de Sodré. Em “A lei do santo”, podemos
atestar isso. Nesse conto, a personagem Dona Marta é uma faxineira que, terceirizada
pela empresa Luxibrás, foi demitida sem causa justa. Por esse motivo, ela procurou um
67
advogado, ela contou que foi demitida pelo fato de querer limpar a sala de um dos
escondido, nos momentos em que este não estava. Porém, ele descobriu, e, de alguma
muitas coisas vieram à tona. A primeira delas é a questão do racismo que foi detectado
ela poderia ser considerada, tanto pelo personagem magistrado, quanto pelo leitor, uma
mulher iletrada, pelos estereótipos que são atribuídos a uma pessoa pobre, negra e sem
instrução formal. Mas, em todo o conto, o leitor e o personagem advogado passam por
um processo constante de revelação. A primeira delas é a leitura que dona Marta faz do
racismo sofrido por ela, quando o compara a um camaleão, animal comum na cidade do
interior onde ela foi criada, uma roça chamada Rio Bonito. Segundo a personagem,
camaleão “é um bicho que a gente tem, mas não vê” (p. 26). Difícil de ser visto, vivia
nas árvores, camuflado pela cor do local por onde passava e, na cidade de dona Marta,
procriava-se aos montes como animal de estimação. A associação que a ex-faxineira fez
entre o camaleão e o racismo surgiu porque o advogado tentou explicar a ela que as
escondem o velado racismo que acompanha o mesmo imaginário. Nas palavras dele, no
Brasil, “oficialmente, preto é igual a branco” (p. 26). É o que dizem muitos dos “nossos
homens de letras, intelectuais, autoridades, políticos e juízes...” (p. 26). Portanto, para
68
Mas camaleão, por mais santo, é só um bichinho... bicho não tem esse tipo de
maldade... o problema é que Coisa Ruim é capaz de roubar a qualidade do
animal, para ficar ainda pior. O racismo, vai ver, tomou do camaleão o poder
de mudar de cor e de se esconder. Pode ser bicho que exista e até mesmo
ataque sem ser visto... 41
Para dona Marta, o racismo roubou a qualidade do camaleão: “[...] vai ver,
tomou do camaleão o poder de mudar de cor e de se esconder. Pode ser bicho que exista
e até mesmo ataque sem ser visto...” (p. 28). Assim como o camaleão é um bicho do
bem, o racismo é um bicho do mal. Ambos mudam de cor para se camuflar. No âmbito
o que refletiu como consagração do sentido do termo. Porém, essa é aparente, pois o
caso foi narrado por uma contadora de história nata, que procurou superar o acontecido
situado em um texto de expressão afro-brasileira. Portanto, esse conto faz uma espécie
de antropofagia do racismo.
Brasil é um país cordial, portanto sem racismo. Sabe-se que a cordialidade é um mito
nacional que faz parte de um projeto muito mais audacioso que contempla a invenção de
uma essência brasileira, como se existisse uma harmonia entre as classes e uma suposta
41
No sentido de ilustrar a figura estereotipada que encobre as formas de racismo no Brasil, vejamos as
ideias de Muniz Sodré: “[...] seja triste, romântico, alegre, cordial, pacífico, forte – os traços de caráter do
brasileiro variam ao sabor das disposições subjetivas ou mesmo das posições de classe dos autores, sem
maiores ônus de prova empírica. Tenta-se assim inventar uma essência nacional, caracterizada por um
substrato gerador de conciliação das contradições de classe social e de transigência nas relações raciais,
mesmo quando conotada como perniciosa ou depravada. Tal essência seria o ‘igual’ (das Gleiche) na
transtemporalidade nacional.” In: SODRÉ. Claros e escuros, 2000, p. XX.
69
existam outras dinâmicas inter-raciais, fazendo com que não fiquem claras as relações
que o racismo camufla-se por baixo do discurso institucional que se sustenta por uma
seu sentido, pelas vias da instância linguística, em que a Constituição do Brasil é seu
maior recurso.
contexto da história. Mais do que isso, a falácia do homem cordial, da nação igualitária
metáforas. Nesse contexto, dona Marta surge como um griot africano, dialogando com o
advogado, que se surpreende com o saber presente na figura daquela mulher, fruto de
uma leitura de mundo que contradiz a condição dela edificada fora da tradição letrada.
A mulher faz uma comparação do camaleão com o racismo. Nisso, ela afirma que o
racismo, como “Coisa Ruim” (p. 28), rouba a qualidade do animal para ficar ainda pior.
Portanto, ela fala que o racismo faz um movimento antropofágico com a qualidade do
camaleão. Ela afirma que: “O racismo, vai ver, tomou do camaleão o poder de mudar de
cor e de se esconder. Pode ser bicho que exista e até mesmo ataque sem ser visto...” (p.
qual, ela respondeu um “eu escuto” (p. 29). Isso nos leva a constatar a importância que
tem a oralidade para a transmissão do legado do sujeito sem letra, o que, de forma
psíquica realiza, para a cultura oral, o papel que os livros realizam para a erudita.
brasileiro, mas ela se mostra alheia à burocracia. Os dois personagens dialogam com um
70
Brasil, deverá reconhecer a dinâmica daquela relação como familiar. A história procura
desvendar, por intermédio do diálogo entre sujeitos sociais que ocupam posições
compartilhar com a mulher um discurso sobre igualdade: “[...] eu gostaria que a senhora
entendesse a importância da ideia de igualdade [...]” (p. 29). Depois se entrega na fala
quando se refere ao negro como outrem: “[...] Vocês são sempre complicados assim?
[...] – Vocês... a sua gente... quero dizer, os negros...” (p. 30). A questão da identidade é
com a Bíblia. Vejamos o trecho em que dona Marta conta a história do Gênese sob o
Bem, doutor, posso lhe contar o que ouvi muito tempo atrás... É que, antes da
criação, este nosso mundo era só um lamaçal... lama que não acabava mais!
Aí, sem quê nem porquê, Deus, que reinava sobre outros seres muito
poderosos, outras divindades, resolveu criar a Terra. Encarregou da tarefa um
desses seres, a quem entregou uma concha cheia de terra, uma galinha com
cinco dedos em cada pé e um pombo. As duas aves espalharam a terra,
cobrindo a lama...
[...]
lembrava o ofício dela – a faxina. Assim, a história narrada por ela torna-se fruto de
Bíblia, texto que narra a gênese segundo o prisma da cristandade, para relatar a forma
no qual o mundo dela se originou, segundo o ponto de vista da mitologia que levava na
da tradição ocidental.
texto – a Bíblia –, narra uma história dentro de outra, além de estabelecer um diálogo
entre os dois textos. Pude constatar também que a personagem dona Marta narra a sua
questão para o advogado como um griot africano, e o faz com grande conhecimento,
mostrando ser uma legítima contadora de histórias. Ainda, no âmbito dessa narração, ela
se recusa a dizer o nome do indivíduo que a demitiu, por efeito da lei do santo, pela qual
Marta tem grande respeito. Quando conclui: “só depois da solução do caso, é que vou
poder pronunciar o nome dele [do agressor]” (p. 31). O terreiro “mora” em dona Marta,
conter-se em apenas uma casa, às vezes numa parte específica dessa ou em sala anexa a
um barraco residencial. Porém, por mais comum que fosse, o espaço sacralizava-se por
contos de Sodré, o terreiro é representado de várias formas, tais como salão de capoeira,
72
o boteco, a rua, a mata e o espaço mais comum de todos: a consciência e o corpo dos
personagens.
Deste modo, embora o terreiro possa ser em conjunto apreendido por critérios
geotopográficos (lugar físico delimitado para o culto), não deve entretanto ser
atendido como um espaço técnico, suscetível de demarcações euclidianas.
Isto porque ele não se confina no espaço visível, funcionando na prática
como “entre-lugar” – uma zona de interseção entre o invisível (orum) e o
visível (ayê) – habitado por princípios cósmicos (orixás) e representações de
ancestralidade à espera de seus “cavalos”, isto é, de corpos que lhes sirvam
de suportes concretos. (SODRÉ, 1988, p. 75)
ouvir. Ele abre, assim, o sentido fixo que a ordem industrialista pretende atribuir aos
movimentação do terreiro.
Voltando ao conto, dona Marta leva no corpo a representação do que é ser afro-
brasileira e que mesmo “amparada” pelo código judiciário dos brancos, a forma da lei
da vida carnal. É uma lei da ordem do orum. O santo de cabeça é quem protege dona
Marta, de forma que ela não necessita, como sujeito, de uma lógica a qual não a inclui –
as leis da justiça dos homens. Pelo contexto do conto, é possível perceber que a lei do
qual descreve uma história em que o protagonista passa por um pesadelo que reflete
seus medos, oriundos da opressão e descaso sociais que envolvem os moradores pobres
73
brancos se reuniram à Guarda que ajudaria a eliminar toda a parcela de pobres e negros
o verdadeiro cenário onde aquele vivia, a mesma favela do “sonho”, mas sem os ataques
Grito – doído, cantado ou ofensivo, João sabia, sempre foi recurso de negro.
Sufocado, de olhos fechados para evitar a visão terrorífica, ele conseguiu
mesmo assim soltar um grito lancinante. De repente, a mão de uma pessoa
estranha à cena lhe pegou pela cabeça, obrigando-o a levantar-se, e ele viu
Joana, sua mulher ainda sacudindo e abanando a cabeça com ar de
reprovação. (SODRÉ, 2000, p. 14)
do número de seitas, o que nos leva a inferir que esta religião passa a ocupar aos poucos
religião, o que, como no real da vida, sempre o foi. Assim, como tem acontecido na
realidade fora do texto literário, cinemas e outros espaços de cultura são adquiridos para
ocupar a população com atividades ligadas ao culto espiritual. E assim é feito, por meio
Nacional, o que nos leva a crer, a partir desse momento, que a religião assumiria o
das leis e de sua execução, o que implica no controle sobre o comportamento cultural de
toda a sociedade, promovendo a redução drástica de todo o espaço do outro que não se
encaixava nesses critérios, ou seja, os afro-brasileiros que tinham como culto e crença
mesmo tempo, “dádiva” destinada somente a quem pudesse recebê-la na graça de Deus,
estabelece uma ligação com o real histórico, ao representar uma sociedade caracterizada
narrador atesta, por meio de alegorias, o preconceito racial, pelos “novos” ideais de
pacto deste com o mercado, em conluio com as pequenas unidades médicas, as quais
como instrumento de comando, ao bel-prazer dos que desejam assumir o poder. Essa é,
além disso, difundida pela mídia, que, segundo o narrador, “fala muito por não ter nada
a dizer” (p. 12). Na história, os meios de comunicação são representados como difusores
ordem ditada pela elite econômica. Assim como no real histórico, jornais, rádios e
forma astuciosa, une quatro palavras importantes para o contexto de sua crítica:
margem, pacto, Deus e mercado. Portanto, torna-se muito fácil excluir descendentes de
negro do suposto pacto entre Deus e o mercado exposto pelo narrador. Presente há
religiosos cabiam como uma luva no tipo novo de mão que passara a segurar as rédeas
do mando” (p. 8). Quando o narrador fala de rédeas, torna-se inevitável a lembrança do
humano, mas, nem por isso, perde a sua força no imaginário do leitor.
acordado do pesadelo pela esposa que o pega babando e encharcado de suor, numa
horror que ele passou no ambiente do sonho. Mas, segundo o narrador, o pesadelo se
justificava pelo fato de esse personagem ter se embriagado antes de cumprir a lei do
santo, a obrigação de Exu. No entanto, uma cena surpreende o leitor ao final do texto,
quando policiais militares e cães pit bull sobem as ladeiras da favela, no momento em
que o gari sai de casa para realizar suas obrigações de oferenda ao orixá. Então, essa
cena surge como uma revelação ao gari de que o pesadelo estava mais próximo dele do
entram em conflito, assim como em outros textos das duas obras literárias de Sodré
acontecem.
77
de um pescador humilde que, desde criança, teve contato direto com o misticismo e o
segredo da lei do santo, embora nunca tenha sabido de verdade o que significava o dom
hábitos e atitudes simples que ganhava a vida como pescador. Nas horas vagas, para
festas particulares. Era um homem negro que tinha sido criado por sua Tia Carmita, pois
perdera a mãe muito cedo, quando ainda tinha oito anos. A Tia, mesmo com cinco
filhos, cuidou dele como se fosse o mais querido de todos, até ela falecer de ataque do
coração. Mas era como se tivesse dezenas, por ser zeladora de orixá. Nos lugares
humildes da cidade, nos arredores e até em lugares mais distantes, muito mais pessoas
cabeça, Ossanim42, orixá do candomblé que comanda os vegetais, as folhas – santo afro-
brasileiro dos feitiços que se curam com ervas. Ela ganhava a vida como curandeira.
Atribuiu a João, que ainda era um menino, o mesmo orixá e o ensinou que ele poderia
ganhar a vida usando seus poderes de “mágico”. Já na vida adulta, pescador e com
família constituída, num dia de pouco sucesso na pescaria, foi convidado por Torres,
dono da padaria, para fazer a festa de aniversário de um dos filhos desse homem. Para
presenciar o trabalho de João Changue, mágico amador, Torres trouxe Mister Mistério,
com apenas uma cartola, vestido de forma simples, sem instrumentos e ajudantes,
conseguiria produzir algo surpreendente. Mas, ninguém conhecia a lei dos orixás que
acompanhava João desde a infância. O pescador e mágico também não sabia, mas tinha
ciência de sua capacidade como ilusionista, que de mágica não tinha coisa alguma. O
artista começou na presença de todos, inclusive sob os olhos atentos de Mister Mistério,
a fazer “truques” que em nada pareciam com algo arranjado, mas sim fruto da destreza
mágico profissional, pois este não sabia como e nem com quais recursos aquele
realizava truques, como fazer cair do teto caramelos e tirar da cartola um galo e um
cágado, além de fazer surgir no ar, de alguma forma, um perfume de jasmim. João sabia
que era uma força sobrenatural que o permitia fazer qualquer um daqueles “truques”,
mas não tinha noção de onde surgiam. João não tinha pai e nem mãe, assim como
Ossanim – o seu orixá de cabeça. A lei do santo permitia a ele que usasse do dom do
contato com o oculto para ganhar a vida. O mistério não podia ser revelado. Ele sabia
disso. Quando fazia a mágica, elas aconteciam na hora certa e pronto, seguindo o
(p. 85), diz o narrador. O contato com o orum, no sentido de fazer a proteção do filho-
esse que sabe não existir mágicas, mas aceita a presença das ilusões, importantes para o
momento da prática da mágica, torna-se filho-de-santo, e qualquer lugar, seja uma festa
79
entre os personagens de origens distintas que a compõem. Um deles era Sugata, Japonês
que imigrou com a família, do Japão para Marília, interior de São Paulo. Mas, o conto
não começa por essa informação. Inicia-se com a frase: “Um velho de cócoras vê
melhor do que um menino de pé” (SODRÉ, 2000, p. 113). Portanto, uma primeira
segue a informação de que o personagem Sugata quase não teve contato com negros,
por causa do pai que o afastava do convívio com pessoas dessa raça. O narrador ainda
informa ao leitor que japonês é averso a negros e a todo ser humano que não seja
japonês, mas que, com relação aos primeiros, não há como disfarçar a antipatia. Porém,
relata ainda que Sugata não teve contato com tais indivíduos de pele escura nem na
infância e nem na adolescência. Até que, um dia, comprou o sítio de Anacleto, “o único
negro proprietário de algum bem na região”. Esse que era um indivíduo bastante idoso,
com linhas talhadas nos dois lados do rosto, como as linhas de uma terra arada, assim
brasileira uma novidade custosa. Nesse sentido, percebo a expressão língua brasileira
como elemento ressemantizado no contexto do conto, de forma que não é mais a língua
que veio do colonizador, a que leva a semântica de estruturas formadas numa lógica
ocidental de comunicação, mas sim a que nasceu no seio da oralidade, nas vísceras de
uma cultura que se dissemina pelo verbo na relação com a natureza, e do corpo com a
vida, por meio de provérbios que trazem a sabedoria das gerações passadas e levam o
80
reterritorialização43.
culturas de arkhé saem aos poucos da margem e começam a ganhar território no miolo
do espaço social.
enunciação no qual se encontra seu narrador, que desencadeia outra forma de ver o
Anacleto são personagens de uma história que quebra vários paradigmas sociais
estudiosos também não conheçam, a existência de outros registros desse encontro tão
convívio com outras identidades. Portanto, é certo que a tradição negra que se formou
43
Deleuze e Gattari nomeiam de reapropriação de territórios culturais perdidos, vinculando-se à noção de
território o conjunto dos projetos e representações de um grupo. Nesse sentido, as formas de subjetivação
do personagem Anacleto passam a ser equivalentes a um processo de reterritorialização, numa tentativa
de recomposição de um sistema próprio de representações.
81
e atuação do griot.
retorno às origens. O rosto desse homem é uma terra arada, cujas escaras marcam uma
tradição. Segundo o narrador, “o ancião, cônscio do olhar do outro [Sugata], como que
lhe adivinhando o pensamento, disse que negro era terra, que os sulcos na cara eram os
mesmos do arado” (p. XX). O homem tem a cabeça e o coração de um griot africano,
vivendo marcado e orientado pela força da ancestralidade. Com isso, o velho conta para
Sugata várias histórias, como fazia a mãe deste – histórias alheias ao mundo de Sugata.
Uma delas tinha a ver com a chuva e, portanto, lhe chamou a atenção em especial.
Vejamos:
santo. Na explicação de Anacleto, de forma poética, toda a lei é revelada. Assim como
Oxetuá carregava feixes de chuva, tais como feixes de lenha, explicava o ancião, os
outros deuses comiam fatias de nuvens, bebiam dos oceanos, transportavam feixes de
sofreu com a seca, durante um tempo, além de ter ouvido os maus conselhos do vizinho.
conselhos do vizinho Shinzenato e passou a fazer o que tinha de ser feito na sua
representados no elemento chuva, fertiliza a terra, que pode ser vinculada à figura da
mãe de Sugata. Este, por sua vez, surge como o fruto das influências ancestrais da mãe e
do velho, diante da propriedade agrícola cultivada pela chuva que, pela lei do santo,
O personagem Sugata aprendeu a lei dos orixás como um filho de santo aprende.
processo de identificação. A lei do santo fez justiça ao japonês, quando este a sagrou.
O conto “A chuva” é uma história que proporciona uma grande rede de relações
complexas que fogem à lógica dos textos escritos sob as bases da metafísica ocidental
homem velho, cria uma afinidade de filho e pai com Sugata. A relação entre eles estava
família. Sugata apresenta-se ao final do conto como aquele que recebe a herança
sujeitos que ali se localizam. Por outro lado, essa literatura leva para o espaço ficcional
84
os embates que ocorrem no real, na busca por espaço, mais profundamente, na busca
hibridação. Como exemplo Iemanjá, que é Nossa Senhora da Conceição, uma das
é deusa dos grandes rios, mares e oceanos, cultuada como mãe de muitos orixás. No
Candomblé, ela é representada como uma negra e usa roupas africanas. Oxalá, na
equivale ao Deus católico. Além de ter modelado os primeiros seres humanos, Oxalá
abrir caminhos na vida. Por isso, na liturgia católica, é identificado como Santo
Antônio, o "santo casamenteiro", ou como São Jorge, santo guerreiro que é representado
que vem se formando ao longo das décadas e sempre buscou o apagamento das marcas
negras das heranças advindas da África. Já, do outro lado da moeda, encontramos as
surgem como local de representação dos territórios conquistados por esse sujeito –
85
religiosos.
Sob a égide da lei do santo, temos vários contos de Sodré. E um dos que mais
instigou a minha atenção como leitor foi o “Uma filha de Obá”. Na leitura deste conto,
pragmáticos que dão à disposição das cenas, ideias e fatos ocorridos na história um tom
da cena, ele se afasta, a câmera muda de lado de forma cadenciada, como se ela
estivesse instalada nos olhos do mesmo, o que atribui ao efeito da narração uma maior
arkhé.
por um homem cuja idade aproximava-se à dela, professor de jiu-jítsu, que tinha uma
unidade de ensino de artes marciais nas redondezas de São Bernardo, em São Paulo. Ela
atrevido. O personagem de nome Guga, homem que possuía porte físico avantajado,
chega à escola da copeirista abordando-a com um golpe ousado por trás, o que a
versada, por seu passado e por sua história familiar, nas coisas dos santos. A avó de
aleatoriamente um santo a qualquer pessoa, mesmo às que ela não conhecesse. Isso era
86
o que, antes da entrada do agressor, Edna tinha feito: atribuiu Oxum a uma das mães de
seus alunos:
Jogos impróprios, diria sua avó, mas Edna sabia que ali em São Bernardo,
zona industrial de São Paulo, esses pequenos jogos com a liturgia dos negros
lhe traziam de volta a família, lhe davam força. E isto que sempre busca uma
filha de Obá, em especial se vive sozinha, de uma arte masculina, num
espaço ainda conquistado.
Força, sim, para os desafios. Obá, contava sua avó, desafiara Ogum para uma
luta. À deusa pouco importava o título atribuído ao deus que empunha a
espada – Abixogum, “aquele que nasceu guerreiro”. Pouco importava: no
combate é que se decide a guerra. Ogum aceitou o repto, mas precavido,
esfregou quiabo no chão, fazendo Obá escorregar no momento da luta.
Aproveitando-se da desvantagem, dominou a deusa e a possuiu. (SODRÉ,
2000, p. 102)
divindades, assim como as relações entres os deuses gregos e romanos, para a tradição
ocidental. Em uma delas, narra o evento em que Obá é possuída por Ogum. Vejamos:
Obá escolheu a guerra com prazer nesta vida. Enfrentava qualquer situação e
assim procedeu com quase todos os Orixás. Um dia, Obá desafiou para a luta
Ogum, o valente guerreiro. O ardiloso Ogum, sabendo dos feitos de Obá,
consultou os babalaôs. Eles aconselharam Ogum a fazer oferendas de espigas
de milho e quiabos, tudo pilado, formando uma massa viscosa e escorregadia.
Ogum preparou tudo como foi recomendado e depositou o ebó num canto do
lugar onde lutariam. Chegada a hora, Obá, em tom desafiador, começou a
dominar a luta. Ogum levou-a ao local onde estava a oferenda. Obá pisou no
ebó, escorregou e caiu. Ogum aproveitou-se da queda de Obá, num lance
rápido tirou-lhe os panos e a possuiu ali mesmo tornando-se, assim, seu
primeiro homem. Mais tarde Xangô roubou Obá de Ogum. (PRANDI, 2001,
p. 314)
No mito narrado por Prandi, Obá perde a luta com Ogum e é possuída por ele.
Mas, na história de Sodré, Obá transmite a força para a personagem Edna, que supera o
capoeirista, que, naturalmente, não precisava usar da força para se defender, utiliza-se
qual, supostamente, seria de Oxum, mãe de um dos alunos e que assistia a cena,
manifesta-se em apoio e ajuda quando interpela com energia, mesmo que em vão, o
agressor. No conto, o narrador informa ao leitor que, pela primeira vez, Oxum ajudou
Obá. Nesse conto, a força além do físico vence. Ouçamos Sodré (1988, p. 80):
kýdos, ou seja, uma força provinda das divindades que a levou à glória, como uma
momento, Edna deixa de ser ela mesma para ser Obá. Portanto, Obá vence.
consome. O homem africano perde a energia, quando utilizado como força animal no
ideologias, de seu comportamento social ou de suas crenças, sem antes passar por um
transposto para o texto literário de forma que o sujeito exponha e pratique plenamente
Candomblé e/ou Umbanda. Portanto, a capoeira é um ritual sagrado que cumpre a lei do
sujeito vencer a batalha. Nesse conto, é consagrado o culto aos antepassados e o respeito
história, em que o trágico é expresso por meio de cenas de pura agressividade e magia.
Um homem branco, alto e forte segue o personagem Mirinho e tenta roubar o violão,
traço de identidade deste, que é retratado na narrativa como sujeito possuidor de talento
e representante da arte afro-brasileira. Mirinho trava com o homem branco uma luta
do seu padrinho morto (egum), que, quando vivo, era filho de Ogum, protegia o
afilhado e, mesmo morto, não o abandonava. Essa voz sugere a Mirinho, que não tinha
um porte físico avantajado, mas tinha força nos dentes, que mordesse o agressor como
89
forma de defesa. Foi o que fez, e Mirinho venceu a luta “al dente”. Porém, Mirinho é
cobrado, pelo padrinho morto, para que mate em sacrifício o próprio cão de estimação,
coma dele um pedaço e lhe faça da cabeça uma oferenda. Ele não cumpre com o acordo
contrário dos preceitos da religiosidade cristã, a qual coloca o sujeito morto na posição
de passividade plena, em que ele nada pode fazer. Na Literatura Brasileira canônica,
temos registros de textos literários que dão voz ao sujeito morto, como, por exemplo,
conta a sua vida após a sua morte. Não é o caso, necessariamente, de “Al Dente”, em
que o morto aparece no presente dos demais personagens. Mas é claro que as duas
produções são ímpares na Literatura Brasileira, cada uma a seu modo. Enquanto,
Sodré, por suas especificidades relacionadas às vozes dos sujeitos e aos lugares de
“morto”, colaborando diretamente com os rituais de proteção e oferenda para a vida dos
vez feita a demanda, o iniciado deverá levar a oferenda ao protetor, com pena de perder
a proteção.
Segundo Muniz Sodré, a relação entre liturgia e sagrado não deve induzir a se
como os cristãos costumam lidar com tais categorias. É preciso fazer intervir aí o
90
observados e cumpridos. Pude atestar isso na leitura dos contos desse autor lidos até
aqui. Ainda, na tradição negro africana, é muito evidente que o homem de axé (muntu,
no dicionário banto) tem de se manter nos limites de seus direitos e deveres, conforme
afeta, ao mesmo tempo, o indivíduo e o grupo do qual faz parte. Por mais que a força
física garanta o exercício histórico do poder, este não pode prescindir de um contrapeso
iniciação, como acontece com vários personagens dos contos de Sodré. Se o indivíduo
não tem pacto com espiritual, a força física e a influência do sagrado na vida dele
interação.
africana está na personificação das divindades desta. No Catolicismo, o fiel não tem
acesso direto aos santos e à Santíssima Trindade. Nesse sentido, na leitura de muitas
obras que são permeadas pela fé católica, até os personagens mais fiéis e crentes não
pelos símbolos que compõem os cenários e habitam o imaginário dos personagens, não
influenciando diretamente nas histórias de vidas destes. Já nos textos literários afro-
brasileiros, tanto as religiões africanas, quanto as que foram originadas a partir delas,
ao contato que os gregos antigos tinham com seus deuses. A mitologia afro-brasileira
respectivos deuses. Os santos negros também são personagens das histórias, não
residindo apenas na memória dos demais, mas na vida cotidiana, incluídos nos hábitos e
nas práticas diárias. A ligação do orum com o mundo carnal está na oferenda, que na
material, como animais, cachaça e comidas, são oferecidos ao santo como forma de
nos contos de Sodré, os orixás são responsáveis diretamente pelo destino dos
do real. Vários cenários das histórias de Muniz Sodré não são terreiros, local de
enredos. Nesse sentido, vários locais que não são usualmente espaços de manifestação
“Diferença”.
anos, negro retinto, provindo de uma família que praticava a Umbanda. O garoto, muito
terapia ou simplesmente que alguém, sua mãe, a professora, alguém, lhe tivesse
instruído a deitar-se porque era assim que se devia fazer a circunstância” (SODRÉ,
2000, p. 88). Num dia especial, em que o homem, narrador-personagem do conto, após
92
ter atendido uma cliente, administradora de empresa da zona Sul do Rio de Janeiro,
entrou abruptamente no ambiente sem ser anunciado pela atendente de recepção. Nisso,
como todas as vezes, o psicanalista esperou que ele deitasse e falasse algo. O homem
frase: “não sou como as outras pessoas” (p. 88). A imagem que o psicanalista tinha do
menino era a de um
dessa forma, o analista vê esse jovem como alguém permeado pela falta de afeto e pela
carência de amor, ou talvez alguém que tenha problema com o fato de ser negro num
visão daquele que não possui conhecimentos além dos que constam nos livros,
dominados por eles, o homem passou a pensar se aquilo acontecia talvez porque ele
entanto, percebeu que o menino estava levitando aos poucos se alçando horizontalmente
do divã, confirmando o quão o garoto é diferente aos olhos daquele homem, burlando a
lei da gravidade, a razão explicada pela psicanálise freudiana ou qualquer lei física
44
Lévi-Strauss, em “O feiticeiro e sua magia” interpreta a magia como “engodo”, a partir de um olhar
antropológico racional que vê a espiritualidade como ilusionismo.
93
que ali se passava. Na verdade, quando, no conto, Freud é citado como “Mestre”, que
embasa o saber daquele profissional, o autor, na realidade, faz uma ironia, mostrando
saber, que é envolvido pela cosmogonia afro-brasileira, pela lógica do negro. O saber
sobre a mente humana é superado, abrindo espaço para outra esfera de raciocino, ilógico
sob o ponto de vista do discurso científico. Nesse sentido, lembro-me dos estudos de
Michel Foucault e Gilles Deleuze, os quais relacionam o saber como forma de poder.
Segundo Deleuze, as ciências do homem não podem ser separadas das relações
de poder que as “tornam possíveis e que suscitam saberes mais ou menos capazes de
poder não vê e não fala, mas, por outro lado, faz praticar essas ações. A determinação de
um corpus de frases e de textos para se extrair enunciados só pode ser feita designando
os focos de poder dos quais esse corpus depende. De forma que “se as relações de poder
1988, p. 89-90).
Desse modo, o poder produz verdades. Estas, muitas vezes, são apresentadas a
partir da situação encenada no conto ganha status de verdade. Por isso, a principal
estratégia deste discurso é desqualificar os saberes não científicos, sujeitá-los, por meio
essa ideia, aquilo que foge à capacidade interpretativa humana não existe. No entanto, o
explicar o universo era o fato científico, o caso ocorrido ali naquele local de cultura nos
universo não continha a lei do santo, presente em outro arquivo, em outra tradição – a
afro-brasileira.
ameaçador, soltou a frase: “o senhor ainda não viu nada” (p. 91). Esta frase proporciona
que envolve a figura do analista. Portanto, este “perde” o poder, já que o discurso que
envolve a sua atuação profissional fica subjugado a algo inusitado, o qual ele
desconhece e que invalida o seu saber. Parecia que ali se resolvia o mistério da mudez
do menino. A lei do santo o fazia diferente das demais pessoas. Como um sábio mago, o
uma espécie de lugar místico. Parecia que o terreiro enquanto território nascia dentro do
a sua força.
Portanto, pelo tipo de texto que a formação literária nacional conhece e atesta por meio
45
Segundo Sodré, “os ocidentais já admitem hoje a territorialidade do corpo – e, para demonstrá-lo, a
antropologia concebe a Proxêmica, com toda uma taxinomia espacial. Ao olhar africano, isto sempre foi
evidente, especialmente entre os bantos do Sudoeste africano, para os quais ‘a conquista do espaço, do
território, é antes de tudo uma tomada de posse da pessoa’. Por ocasião do primeiro ritual iniciático,
ensina-se o jovem a tratar o corpo como um mundo em escala reduzida. Com o desenvolvimento do
processo, é casa que se constitui como macromosmo do corpo. E assim vai-se ampliando-se o espaço
físico-espiritual do indivíduo. Diz Eberhardt: ‘à medida em que a pessoa toma conhecimento, por uma
participação ritual e iniciática, das três zonas territoriais – a aldeia familiar, a aldeia regional, a Capital -,
amplia seus conhecimentos ontológicos, míticos e sociais, que lhe permitem assumir seu papel na
sociedade e nela se integrar’.” In: SODRÉ. O terreiro e a cidade, 1988, p. 62.
95
expectativas do leitor.
espaço próprio para tratar de questões psicanalíticas – com uma realização do incrível
psicanalista que este ainda não vira nada, parecia trazer à tona o mesmo tom ameaçador
46
Segundo Muniz Sodré, em O terreiro e a cidade (1988, p. 75): “[...] embora o terreiro possa ser um
conjunto apreendido por critérios geotopográficos (lugar físico delimitado para o culto), não deve,
entretanto, ser entendido com um espaço técnico, suscetível de demarcações euclidianas. Isto porque ele
na se confina no espaço visível, funcionando na prática como um “entre-lugar” – uma zona de interseção
entre o invisível (orum) e o visível (aiê) – habitado por princípios cósmicos (orixás) e representações de
ancestralidade à espera de seus “cavalos”, isto é de corpos que lhes sirvam de suportes concretos.
O espaço sagrado negro-brasileiro é algo que refaz constantemente os esquemas ocidentais de percepção
do espaço, os esquemas habituais de ver e ouvir. Ele fende, assim, o sentido fixo que a ordem
industrialista pretende atribuir aos lugares e, aproveitando-se das fissuras, dos interstícios, infiltra-se. Há
um jogo sutil de espaços-lugares de movimentação do terreiro”.
96
dos pontos que cantam os filhos de santo na gira praticada como rito de recebimento de
Q
uando li os contos de Sodré, após ter tomado conhecimento de boa
parte do conteúdo da obra teórica dele, uma questão veio à tona: qual
literária propriamente dita. Analisando essa questão, percebi que, nos textos literários
que não estão presentes na esfera da comprovação empírica, mas sim na experimentação
momento o discurso científico cede lugar ao ficcional nos contos desse autor e, ainda,
qual a região limítrofe entre os dois discursos. Isso faz com que essas produções
literárias cumpram duas das várias finalidades que habitam o horizonte de expectativas
vezes, esse tipo de texto se propõe, já que o texto literário trabalha com representação; e
brasileira, incluindo a força e a atuação dos orixás quando interferem na ação dos
representação e o ficcional.
99
texto que “dialoga” com a imaginação do leitor, o que é comprovado pelo conto
Ancestral, quando o narrador expõe sobre o personagem Bino, ao sair da mata, tendo
passado pelo ritual de iniciação espiritual, mas que não revela como se dá esse processo.
Qual a estratégia dos narradores para fazer essa passagem entre os dois planos?
Para responder a essa questão, é preciso considerar que não há uma simples
transposição, mas sim uma transformação que se processa no decorrer das histórias. Os
para explicar as várias situações que ultrapassam os limites do mundo material e que o
discurso científico não consegue resolver. Portanto, o mito torna-se o recurso que
garante a “verdade” nas histórias narradas nos contos de Sodré. Os discursos religiosos
religiosidade negra. A partir daí, os contos se alimentam dos mitos iorubanos e bantos,
Portanto, como fio condutor dos textos literários de Muniz Sodré, essa lei proporciona
sentido às tramas, conduzindo-as para o desfecho, muitas vezes inesperado pelo próprio
leitor. Além disso, a lei do santo é o elemento que proporciona, nos vários contextos, as
nisto incluindo a aceitação da condição como sujeito que dissemina uma tradição e que
do discurso ocidental.
superficiais, para compor o cenário ficcional, mas sim ícones que carregam na sua
terreiros, favelas e comunidades. As personas dos contos de Sodré, em sua maioria, são
caminhos que se bifurcam, pensando na metáfora de Umberto Eco. Exemplos disto são
qual é situada a praia de Amoreiras. Esta, naquele tempo, ainda não havia sofrido com a
invasão de veranistas e com a ganância dos donos de terras. A ilha foi ocupada,
cabindas etc.). Aquele lugar acolhia seres oriundos de um continente remoto. Na ilha,
mundo. Uma de suas personagens, Donata, era uma mulher bem-dotada, de visão larga
e fama justificada no culto aos orixás. Era a mãe de Bino, de aproximadamente 10 anos
de idade, que tinha duas paixões as quais ela reprovava: misturar-se à vadiação dos
homens que passavam as tardes praticando a arte da capoeira e conversar à noitinha com
o Tio47 Marco, por quem o menino nutria um interesse especial, pelo fato de Marco ser
zelador de um segredo a que a própria mãe de Bino não tinha acesso. Um dia, à noite,
Marco promoveu a iniciação espiritual do garoto, por vontade própria deste, no barracão
novo, passava a fazer parte desse jogo, que, anteriormente, ele não conhecia. Assim,
revigorava-se a tradição.
revigoramento das tradições afro-brasileiras de um grupo que vivia em uma ilha a qual
transplantado. A partir dessa constatação, percebemos que fica cada vez mais claro, a
cada linha e a cada parágrafo do texto, o mistério e o poder de resistência que envolvem
Era ainda aquele tempo, que hoje pouco comove as pessoas da ilha, quando
não suscita ditos de desgosto, pois era um tempo em que não reinava a
palavra “futuro” e se pronunciava com respeito: antiguidade! Em meio à
47
A palavra Tio em caixa alta e baixa no texto permite-nos interpretar que essa palavra faça parte do
nome do sujeito que leva tal alcunha: Tio Marco. Isso transmite uma feição de familiaridade do menino
com o homem, os aproxima. Porém, em momento algum, o narrador diz realmente sobre um laço
biológico entre os dois. Segundo Nei Lopes (2004, p. 650), Tio é o “tratamento reverente que, na
América, na América hispânica e no Brasil, se dava aos negros velhos. Sua origem está no fato de que,
nas sociedades patrilineares africanas, o jovem deve respeito e obediência filiais ao irmão do seu pai: se
ele tornar-se órfão, seu tio paterno substituirá o pai e exercerá sobre ele a autoridade de sua linhagem. No
Rio de Janeiro, o uso desse tratamento para pessoas mais velhas, corrente entre a população negra, foi, a
partir dos anos de 1980, reabilitado na linguagem popular geral.”
102
Esse arsenal memorialístico era preservado inclusive no corpo do sujeito, por meio da
estranho48. Por exemplo, a capoeira surge na história como se fosse uma forma de
48
Esse termo me lembra o “das unheimliche” que significa inquietante estranheza. Esse é resultado de
um artigo de Freud com o mesmo nome (“Das Unheimliche”, 1919), em que o autor aborda numa
perspectiva psicanalítica esse conceito da estética, presente, por excelência, na obra de E. T. A.
Hoffmann. Incluindo-se no que suscita o medo, das unheimliche é aquele terror que remonta ao que é,
desde há muito, conhecido, e ao qual se está há muito acostumado. Sendo o contrário de heimlich,
conhecido, familiar, caseiro, habitual, íntimo, ligado ao heim — lar, lugar aconchegante — e a heimat —
terra natal —, das unheimliche é o não conhecido, que provoca uma sensação difusa de medo e de horror.
Contendo heimlich igualmente o significado de em segredo, escondido, subreptício, o efeito do
unheimlich surge, quando o que deveria ficar oculto sobressai (Schelling referido por Freud). Verifica-se
um deslizamento do significado da palavra heimlich para unheimiich num sentido ambivalente, ao ponto
de as duas palavras opostas coincidirem. Unheimlich é algo de heimlich, íntimo-estranho: “mir ist zu
zeiten wie dem menschen der in der nacht wandelt und an gespenster glaubt, jeder winkel ist ihm
heimlich und schauderhaft.” [”sinto-me, por vezes, como uma pessoa que deambula de noite e que
acredita em fantasmas, cada canto é-lhe conhecido e medonho”], Klinger, Theater, 3, 298, citado por
Freud. O efeito do unheimiich é conseguido por E. T. A. Hoffmann, por meio da utilização do duplo nos
seus diversos graus e tipo de formações, como, dentre outros, a identificação, a duplicação do eu, a
divisão do eu, a troca do eu e o constante retorno do igual nos personagens (caracteres, nomes, destinos)
em sucessivas gerações. Para Freud, esse retorno do mesmo, que se trate, por exemplo, de um número ao
qual se atribui um significado, por aparecer de forma repetida, tem origem numa compulsão. A repetição
que no nosso inconsciente se sobrepõe para além do princípio do prazer às outras pulsões. Sentimos
como íntimo-estranho o que nos evoca a compulsão à repetição. O pensamento todo poderoso que advém
de uma sobrevalorização narcísica e que é próprio de uma fase infantil do desenvolvimento individual,
encontrando o seu correlato no animismo e pensamento mágico dos povos primitivos, deixou em todos
nós resíduos que se evidenciam sempre que temos a sensação do íntimo-estranho.
Partindo da validade da afirmação na teoria psicanalítica de que cada afeto se transforma em medo pelo
recalcamento, então, por entre os casos de medo, haveria um grupo, no qual fosse possível demonstrar
que se trata do retorno do recalcado. Essa espécie de medo é a inquietante estranheza. Assim, a
inquietante estranheza acontece, quando convicções primitivas e já ultrapassadas parecem reconfirmadas
ou quando complexos infantis são reativados. O prefixo un da palavra heimlich é a marca do
recalcamento.
O efeito do unheimlich é atingido na ficção quando o autor se situa aparentemente no campo da realidade,
ou, não esclarecendo o seu ponto de partida, extravasa para o mundo do fictício, induzindo em dúvida e
enganando o leitor. É condição que o leitor se tenha posto por dentro da personagem que vivência a
inquietante estranheza, sendo essa mais resistente quando proveniente de complexos infantis recalcados.
A concepção teórica de Freud coloca o objeto da transferência entre o fantasma (fantasia) e a realidade.
103
de formas de luta estrangeira correntes na cidade” (SODRÉ, 1988, p. 13), mas em tais
inovações não se via contato nenhum com a ancestralidade. O que se via na chegada dos
novos movimentos era um estranhamento, de forma que esses traziam a força do novo,
capoeiragem “cantar o que mexia com a antiguidade” (p. 13). Ou seja, o balanço dos
Vejamos na história: “[...] Pressentia, sem que pudesse precisar o ponto certo, que as
mudanças falavam de algo mais que o próprio jogo da capoeira, falavam de sua
existência possível como negro, seu destino na ilha” (p. 13). Mas, a história mostra a
força das tradições afro-brasileiras, que se inscreve na alma, na vida, no corpo e nas
práticas diárias dos personagens do conto na relação com o mundo. O menino, quando
(idem). Foi assim que se encontrou com quem o iniciou no culto aos ancestrais, Tio
Marco – por quem tinha grande afinidade e respeito, pois esse homem tinha os segredos
guardados:
tanta tranquilidade e mandinga, que o espírito do jogo renascia, o novo vinha reforçar a
tradição” (p. 14). No transcorrer dessa história, o ato antropofágico se realizava, pois o
104
Bino, devemos levar em consideração a questão identitária como algo que transita por
terrenos obscuros do subconsciente e que precisa ser assimilado, por parte do indivíduo,
arkhé o indivíduo tem força porque é escolhido (por um destino). A tradição, forma de
geração a outra – é uma das vertentes das culturas de arkhé. A herança cultural
solidariedade.
Bino foi iniciado nas artes do corpo e da alma, pela via dos ensinamentos da
a estrutura não se abala. Pelo contrário, se reforça. O axé e o agbara conduzem, muitas
49
Segundo o Sodré cientista, em Claros e escuros (1999, p. 15), “existe um abismo entre o abstrato
reconhecimento filosófico do Outro e a prática ético-política (real-concreta) de aceitação de outras
possibilidades humanas, da alteridade, num espaço de convivência.
105
práticas de convivência com sua família, seu grupo, sua comunidade, a capoeira realiza
sujeito. O menino Bino levava consigo na alma e no corpo os elementos que o põem em
contato com a ancestralidade. O corpo se torna a casa, pensando essa como uma
metáfora do que lhe é familiar. A história mostra que foi possível tirar o sujeito da
África, de sua casa, entendendo essa como território físico. Mas não é possível tirar a
consciência do sujeito, tendo essa última como ponto de partida para ampliar o espaço
iniciado na lei do santo, num processo de formação identitária relacionado aos espaços
culturais físicos e ideológicos aos quais era estimulado. O menino Bino, ao ser iniciado
comunitária de seus antepassados vindos da matriz africana. Mais uma vez, o papel de
Heraclo, filho de Homero, se transforma, aos poucos, em Santugri. Observa-se que essa
mudança, assim como toda forma de identificação, não se constrói de modo aleatório e
afinidade que possuía com os elementos da sua cultura atuava no sentido de construí-lo
com o jogo permitiram a Heraclo sentir-se componente daquela dinâmica. Ele tinha
afinidade com os golpes e com os sentidos que aqueles movimentos levavam em cada
desenho que seus membros faziam no ar. Heraclo sabia ser alguém que herdava uma
107
A corruptela dos nomes Santo e Cristo pronunciadas pelo gringo traz outra
identidade a Heraclo. O nome do rapaz veio da tradição grega e foi transmitida via
legado cultural, pois o pai chamava-se Homero. Assim como os nomes da tradição
a destreza dos gestos que o rapaz executava soltou uma expressão de susto, dizendo
com sotaque Santo Cristo. Naquele momento, filtrado pelos ouvidos do mestre no jogo,
uma palavra língua africana. Por sua vez, o protagonista fica cada vez mais forte, e tal
para uma cultura de arkhé. O mais interessante é que as duas nomeações vieram de
dentro para fora, a partir da auto-identificação e da relação com o mundo exterior, com
o nome grego perde a força para ceder lugar a um que se origina da oralidade, ícone da
Outro conto que fala de um personagem cujo nome determina uma forte ligação
que diz respeito à forma de lidar com o mundo e com vida. Caiodê era um homem
alegre, como atesta o próprio nome, que significa “a alegria chegou”. Ele herdou a
identidade do tataravô, que também se chamava Caiodê. Junto do nome veio como
herança cultural a arte da habilidade com o corpo. Diz a história que o avô era um
guerreiro que caçava leões, sorrindo. Ele era alegre e acostumado a guerras: “capaz de
dançar na frente da morte” (SODRÉ, 1988, p. 24). O ato de dançar na frente da morte
108
entravam nas casas semeando devastação” (p. 24). Os perigos da vida, conheceu pela
força da experiência e pelas histórias contadas pelos adultos, quando Caiodê ainda era
criança. A herança cultural era composta não só do gingado, mas também das
“lembranças tristes”:
Caiodê herdou lembranças tristes, que não predominam – a alegria lhe define
atitudes, movimentos, até mesmo na briga, quando as armas, movimentos, até
mesmo na briga, quando as armas limitam-se ao corpo. Jamais sai perdendo:
é muito hábil com as pernas. Igualzinho ao tataravô dos mitos, que lutou
desarmado com cinco guerreiros, arrebatando-lhes as lanças a pernadas –
“patá-patá”, como narrava a bisavó na língua de origem. (SODRÉ, 1988, p.
24)
O narrador nos informa que “Caiodê adora as coisas de origem” (p. 24). Esse
trecho ilustra a forte ligação que o rapaz tinha com a ancestralidade. Os laços com o
passado faziam com que ele levasse a memória coletiva para os hábitos da vida diária. A
ligação com o passado o alimentava, pois era o que lhe trazia uma identidade que se
Com o tataravô, o avô e o pai, era hábito consultar os búzios, e Caiodê não saía
de casa sem colocar no pescoço o colar de contas com “as cores da matéria cósmica
responsável por sua cabeça” (SODRÉ, 1988, p. 24), o que lhe trazia segurança. Caiodê
capoeira, a dança, o ritual religioso e a culinária, enfim, toda a vida dos ancestrais de
levada com ele para onde ia, para as atividades cotidianas no território do dominador,
109
que, por sua vez, para o rapaz era o lugar do estranho. Com esse legado inscrito no
Uma vez cultivada a herança, que, anteriormente, residia apenas no imaginário coletivo,
Caiodê levava também na memória a lembrança da morte dos irmãos por fome
ou arma de fogo. Ele queria ludibriar a grande inimiga, a fome, caçar com as armas do
corpo: as pernas e os braços. Um mito narrado pela bisavó dizia que, “certa vez, o sol
escondeu-se durante muito tempo, provocando ruína e fome na aldeia ancestral. Desde
então os búzios associam a sorte da linhagem ao calor e à luz forte” (p. 25). Dessa
subalternizado para com os respectivos mitos. O mito acompanha aquele que nele
local de cultura proporciona como lugar de enunciação e, por isso, acaba explicando a
a presença de personagens cada vez mais densas confirma a problemática das questões
signo que o constrói carrega consigo vários livros de história, inúmeros caminhos de
livro inteiro:
que causa um confronto entre duas ou mais culturas, o que, infelizmente, só é possível
se realizado via tolerância. Esse conto de Sodré não deixa de ser uma crítica à
“macumba para turistas” e, ao mesmo tempo, uma denúncia da posição em que o sujeito
50
A definição de território, para Muniz Sodré, num sentido estrito e cotidiano, se familiariza com as
ideias de jogo de cartas, jogo de futebol etc., e aí tem-se em vista uma “[...] noção de totalidade fechada
de saída completa e imutável, concebida para funcionar sem nenhuma intervenção exterior da energia que
o movimenta”. In: SODRÉ. O terreiro e a cidade, 1988, p. XX.
111
menino de 8 anos. Na verdade, quem conta a história é um senhor de 80 anos, que viveu
memória como fio condutor da narrativa e colecionadora de histórias. Mais uma vez,
encontramos um enredo que mostra como acontece a construção do arquivo das culturas
uma ou de várias. O legado transita pela memória e pela oralidade. Assim, é construído
noção de tempo que o envolvia: “minha folhinha é outra, diferente a minha conta. Basta
zanzar um pouco, ficar um tiquinho lerdo, dar dois dedos de prosa que o tempo volta
onde quero, como quero, agora mesmo”. A relação com o tempo, esse tempo
pedagógico controlado por artifícios científicos, não condiz com a dinâmica temporal
Naquela época, ninguém tinha visto o velho do outro lado da rua, só ele, que
cabelo e paletó de brim, não era muito alto, tinha os olhos apertados e parecia usar
alpercatas, apesar de parecer não necessitar, já que tinha os pés que lembravam couro,
rachados pelas beiradas, “curtidos na poeira dos caminhos, nas pedras das ruas, com
defesa para bicho, espinho e topada”. O que o intrigava era que ninguém viu o velho
chegar, somente ele – o menino. Parecia mesmo que este tinha algo de especial com
aquele homem. Não era aleatória a relação entre os dois. E até os 80 anos, uma questão
o intrigava: “por que ninguém viu o velho preto chegar?” Como leitor, vou além e
112
questiono: por que quase todos ignoraram a chegada do ancião? Este estava encostado
no muro, com uma bengala na mão e, na outra, uma caneca de lata segura na mão
estendida pela metade. Olha absorto e imóvel para o chão. Duas possibilidades
aproximam-se: uma diz respeito ao misticismo daquela cena, o velho era uma entidade
relaciona ao fato de que esse homem era negro, e as pessoas daquele lugar davam pouca
menino o ver estava bastante ou totalmente relacionado com uma possível identificação.
roupas simples, apresentam-se descalços e são chamados de “pai”, “vovô”, “tio” etc.
Pensando no significado dessa figura para o cenário que ali se construía, podemos
concentrado, passou pela rua um homem fardado que, pelo ofício, levava as alcunhas de
Cabe aqui falar desse trecho. A expressão “cemitério na consciência” remete à morte.
Até esse trecho do conto, percebo, como leitor, que o quadro que ali se formava era um
tanto belicoso. O clima já estava instaurado, com a apresentação dos três personagens:
menos o preto velho, que estava encostado no muro. O ancião estendeu o braço reto,
caneca de lata na direção do rosto do oficial, que a derrubou com um tapa. O menino
não viu sequer o braço do velho se mexer, mas a bengala deste foi em cheio na cabeça
do homem, que, dali em diante, caiu e ficou imóvel. Quando o socorro chegou, foi
constatada a morte do oficial. Como um local envolvido pela lei do santo, exigia-se
respeito. O fato de o velho estender a caneca para o oficial foi uma atitude de demanda.
A demanda deveria ser cumprida por quem fosse que passasse pelo território. O homem
fardado não só a descumpriu, mas a desrespeitou. O menino até tentou gritar, apontar o
velho, mas a voz não saiu. Segundo o narrador-personagem, parecia que só ele via o
menino. O preto velho continuava ali, bengala e caneca nas mãos, absorto na vida, com
ninguém abordou o ancião, nem no momento em que o cadáver do oficial foi recolhido.
Depois de voltar para a casa, o menino não disse a ninguém nada do que tinha visto,
indo dormir cedo, mudo e quieto. Mas, no dia seguinte, o velho abordou o pai do garoto
na porta da casa da família e disse: “Seu filho é muito educado, vai viver muito, vai
longe.” O pai o agradeceu. Mesmo assim, o garoto nada mais podia dizer, já que não
tinha visto o velho chegar ou partir. O fato de o menino não saber de onde veio o velho
e nem tê-lo visto chegar ou ir embora reforça o argumento do segredo da lei que naquele
lugar se cumpriu.
do negro, torna-se importante destacarmos que essas diversas vozes que transitam pelos
o jogo como estratégia de expressão de um único sujeito que representa sua coletividade
Como em qualquer tipo de texto, em que a literatura exige mais de cooperação do leitor,
alguns momentos, que os textos de Sodré tem em relação ao Livro Sagrado cristão, no
do real humano e histórico negro ganha sentido, com os respectivos valores e signos,
mesmo nome. Na história, o narrador conta que, passado um século e meio, o ancestral,
o qual foi nomeado de Avô, sobre o qual ele tinha certeza quanto à origem, mas não a
tinha em relação a nome, realizou uma proeza que inaugurou o carnaval como
brincadeira para os negros daquele lugar. O ancestral era um negro altíssimo, de pernas
e braços longos, um grande mestre nas brincadeiras do corpo, das pernadas ao batuque.
dono, esperando uma embarcação que chegaria levando uma escrava grávida, a qual
estava sendo devolvida por esse motivo, quando a embarcação começou a afundar. A
mulher estava “empacotada” no porão escuro com janelinhas, o que dificultava a saída
narrado de forma poética, apresenta a memória do descendente, mas não deixa de contar
a barbárie pela qual eram submetidos os escravos negros africanos nos séculos
os negros escravos saíam pela janelinha do porão, mas a escrava grávida não conseguiu,
pois o tamanho da barriga a impossibilitou. Nisso, o avô pulou no mar para ajudá-la,
demorando um pouco submerso, aos olhos atônitos dos que estavam esperando em
conseguiu puxar a mulher até a margem, onde caiu extenuado e deixou ver a
mão direita bastante ferida, sem a falange do dedo indicador. A faca e a mão
tinham servido como um só instrumento desesperado para alargar às pressas
uma janelinha do barco. A façanha de Avô correria as ruas da cidade.
(SODRÉ, 1988, p. 27)
ruas de Salvador, o povo parou para ver um grupo de negros enfeitados passarem, com
Avô e a mulher com o filho enganchado ao pescoço à frente. Segundo o narrador, eles
116
saíram pelas ruas, cantando e dançando como os ijexás, e “há quem diga que foi a
sentido, o referido ancestral atinge o status de herói, ao contrário do que lhe aconteceria
literatura é criado pelos poetas. Desde Homero, as figuras que ocuparam esse lugar no
que reuniam o que existia de melhor nos seres humanos de uma determinada
realizadores de grandes feitos não reuniam essas características. Pelo contrário, eram
Georg Lukács: “Em todo o rigor, o herói da epopeia não é nunca um indivíduo. Desde
objecto não ser um destino pessoal, mas o de uma comunidade.” Como herói, ele é uma
homens, sendo agraciado pelo público, ao desfilar pelas ruas da cidade em manifestação
117
carnavalesca. É necessário ressaltar que o carnaval é uma festa que se originou na idade
negro apropria-se da festa pagã, de origem ocidental, para comemorar sua vitória e
Segundo Claude Lévy-Strauss, um mito nasce de outro mito. Nesse sentido, para
festa não mais como um signo ocidental, mas como uma forma de manifestação mítico-
herói afro-brasileiro.
descendentes. Neste capítulo, busquei reunir os que tratavam da relação entre a herança
CONCLUSÃO
119
O
estudo da literatura mundial poderia ser o estudo do modo pelo
resistência.
para cá, de modo que eles possam alcançar outras margens… A ponte reúne enquanto
Se pensarmos que a obra de Muniz Sodré representa outro tipo de discurso, que
brasileira e apresenta a lógica de outra nação, por meio de um projeto literário que
físico, mas que, nos contos de Sodré, em particular, se une em prol da formação de uma
texto literário deve reunir para que possa se configurar como produção afro-brasileira e
porque os textos de Sodré se encaixam nesse contexto. São eles: temática, autoria, ponto
de vista e linguagem. Cabe aqui, portanto, abordar cada um desses itens em separado. O
primeiro critério diz respeito à temática, que contempla o resgate da história do povo
âmbito das letras, as tradições culturais ou religiosas trazidas para o Brasil, destacando
poeticidade e portador de outra tradição, inventada por outros autores e atores sociais. Já
que ora se afirma, ora se nega, dependendo do autor e de suas marcas memorialísticas.
importante enquanto tradução textual de uma história coletiva e/ou individual”. No caso
de Sodré, que além de literato e cientista social é Obá de terreiro de umbanda, essa
sobre o texto, como critério básico, configurado por uma visão de mundo e pelos signos
assimilação cultural como única via de expressão. E, por último, a linguagem, verificada
Eles representam a assimilação do discurso dos negros por parte da cultura letrada,
transita, por meio da transculturação, entre o local da caneta do escritor e da folha papel
na sociedade branca, ocidental, e o lugar de cultura das narrativas orais dos africanos e
afro-brasileiros. O discurso literário do negro tem a raiz de sua formação inserida num
51
O valor do lugar cultural é definido por Homi Bhabha, que o enfatiza, em seus ensaios, e nos possibilita
situar os contos de Sodré como a representação do novo, do insurgente, que reside na configuração da
literatura pós-moderna: o trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja
parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução
cultural. In: BHABHA, O local da cultura, 2003, p. 212.
122
Sodré devem ser destacados para que esses possam ser identificados como ficções pós-
modernas. No intento de fazê-lo, ressalto o projeto estético desse autor que ratifica um
Uma análise deve ser feita, pensando as palavras de Homi Bhabha: “[…] se o
integridade nacional, como berço acolhedor de um povo brasileiro, ou seja, nas palavras
produções da afro-brasilidade.
que os contos desse autor transitam entre o real-histórico humano e a ficção. Além
disso, existir, experimentar e narrar são formas de expressão de um único ato. Os contos
contos. Com isso, os traços da cosmogonia afro-brasileira emergem nas superfícies dos
textos.
contos e da teoria socioantropológica de nosso autor. Dentre elas, está o fato de que,
matas e descampados são espaços que onde o afro-brasileiro realiza o caminho contrário
Sodré são filhos-de-santo. Eles não são envolvidos por meros preceitos religiosos, mas
sim por uma cosmogonia rica de segredos e mistérios revelados aos personagens, mas
nem sempre ao leitor. A África se reterritorializa nos contos de Muniz Sodré, em que
se presentifique. Com isso, enxergo em Muniz Sodré um grande griot, no sentido de que
ele contribui com a transmissão da cultura afro-brasileira. Além do mais, percebo esse
autor metaforicamente, muitas vezes, como um “pai-de-santo”, pois conduz nos enredos
BIBLIOGRAFIA DO AUTOR
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