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Organização

Christiane Ribeiro Gonçalves


Marcos Antonio Monte Rocha

Feminismos
Descoloniais e
Outros Escritos
Feministas

Fortaleza - 2019
Coleção
Gênero, Cultura e Mudança
Organização
Christiane Ribeiro Gonçalves
Marcos Antonio Monte Rocha
Realização
Fábrica de Imagens – ações educativas em cidadania e gênero / Curta o Gênero
Coordenação Geral da Fábrica de Imagens / Curta o Gênero
Christiane Ribeiro Gonçalves
Marcos Antonio Monte Rocha
Equipe da Fábrica de Imagens / Curta o Gênero
Mayara Queiroz
João Everton Cavalcante
Natasha Cruz
Revisão e Normatização
Mentoria das Letras
Coordenação Editorial
Marcos Antonio Monte Rocha
Fernanda Silvia Barroso
Capa
Iury Sales (a partir da ilustração de Vitória Sena)
Editoração
Expressão Gráfica

Ficha Catalográfica
Bibliotecária: Perpétua Socorro Tavares Guimarães
CRB 3/801-98

Feminismo descoloniais e outros escritos / Organização de Chris-


tiane Ribeiro Gonçalves e Marcos Antonio Monte Rocha .- Fortaleza:
Expressão Gráfica e Editora, 2019.

264 p.
ISBN: 978-85-420-1532-4

1. Feminismo. 2. Gênero. 3. Direito. 4. Pesquisa social.


5. Sexualidade I. Gonçalves, Christiane Ribeiro
II. Rocha, Marcos Antonio Monte III. Título
CDD: 342.1
Sumário

Apresentação .............................................................................................5

Feminismo jurídico popular: reflexões críticas


sobre um campo de atuação feminista
imprescindível e emancipatório .........................................................11
Salete Maria da Silva

Mercado GLS como espaço de consumo, lazer e sociabilidade


LGBT: visibilizando produções acadêmicas ....................................39
Luiz Braúna, Benedito Medrado

O programa mulheres mil no IFMA: uma proposta de


inclusão produtiva e educacional na voz das egressas ...............57
Patrícia Damasceno, Gema Galgani Silveira Leite Esmeraldo

A reprodução da misoginia e do patriarcado na cobertura


midiática do impeachment de Dilma Rousseff (PT):
um estudo de caso da revista IstoÉ ....................................................79
Ana Maria da Conceição Veloso, Fabíola Mendonça de Vasconcelos,
Laís Cristine Ferreira Cardoso

Produzindo insubordinações no pensamento instituído:


diálogos entre ciência, educação moderna e
epistemologias feministas ....................................................................99
Gema Galgani Silveira Leite Esmeraldo

Cuerpos indisciplinados y resistencias al poder ........................121


Lilian Celiberti

Para uma internet feminista, descolonizar


internet é urgente ...............................................................................135
Graciela Natansohn

Gênero e feminismos no movimento Latino-Americano de


cultura viva comunitária ..................................................................147
Christiane Ribeiro Gonçalves, Marcos Antonio Monte Rocha

Los avances y retos de los feminismos de América


Latina / Abya Yala del Siglo XXI.......................................................169
Por Breny Mendoza
Dos estudos culturais ao pensamento descolonial:
intervenções feministas nos debates sobre cultura,
poder e política na América Latina ................................................183
Sonia E. Alvarez, Claudia de Lima Costa

Apuestas políticas desde los


feminismos descoloniales ...................................................................207
Verónica Renata López Nájera

Feminismos emergentes: descolonización


y crisis civilizatoria............................................................................229
Márgara Millán

Entrevista - Mariana Mora Bayo......................................................247


Entrevista concedida a Luis Martínez Andrade en
“Feminismo a la contra: entre-vistas al sur global”
Apresentação

Não poderíamos iniciar a apresentação do nosso quarto livro da


Coleção Gênero, Cultura e Mudança, sem fazermos o registro dos re-
cém completados 21 anos da Fábrica de Imagens – ações educativas em
cidadania e gênero.
São 21 anos, quase a metade das nossas vidas, de uma trajetória
marcada por um apreço inegociável pela autonomia e pela liberdade em
todos os campos, sejam eles teórico-conceituais, metodológicos ou po-
líticos e pelo pagamento que inexoravelmente se tem de fazer por essa
autonomia e liberdade.
São 21 anos de muita aprendizagem, onde raras vezes aprendemos
de primeira e onde aquilo que aprendemos muito frequentemente teve
de ser desaprendido e reaprendido uma, duas, três, inúmeras vezes, in-
clusive aqui e agora na redação desse prólogo.
São 21 anos de travessias... E esse livro Feminismos descoloniais e
outros escritos feministas é mais uma! Todavia, nascido como os demais
da Coleção Gênero, Cultura e Mudança dos debates que têm lugar no
Seminário Internacional de mesmo nome é, para além de uma travessia,
uma teimosia da Fábrica de Imagens. Aliás, todo o Curta o Gênero de
2019, local de lançamento deste livro, é um ato de teimosia, de afirma-
ção desses 21 anos de história e do que nos move, de ativismo político e
militância nos campos do gênero/mulheres, sexualidades e feminismos,
numa perspectiva descolonial, anticapitalista, antirracista, antineoliberal
e despatriarcal.
É, ainda, um ato político de insurgência no cenário em que
nosso país se encontra: um livro produzido por uma Organização Não
Governamental nordestina sobre gênero, feminismos e sexualidades e
que tem um caráter notadamente anticapitalista e descolonial; mais, um
livro produzido sem um centavo nem de Governo Federal, nem de Go-
verno Estadual, tampouco Municipal e sem apoio sequer da esquerda
hegemônica local, alheia e, muitas vezes, avessa às ideias e ações que não
possam ser contabilizadas como votos nas eleições.
Não poderíamos deixar de citar, como normalmente o fazemos,
que esse é mais um esforço e um convite ao diálogo, à abertura de

5
pensamento, à deslacração e à construção de alternativas horizontais,
coletivistas e amorosas. Uma aposta de que o pensamento feminista não
é algo que se defina a partir de uma única perspectiva e sim é nessa
pluralidade de olhares e de lugares de partida e de trajetórias que reside
sua potência e por que não dizer sua poesia entrelaçada nas vivências
individuais e coletivas de cada pessoa, de cada comunidade.
Assim, nessa perspectiva plural, o presente livro nos traz contri-
buições de dezenove companheiras e companheiros dispostas em treze
artigos. A maioria das pessoas que assina os textos esteve conosco em
edições passadas do Seminário Internacional Gênero, Cultura e Mu-
dança, tendo aceitado generosamente nosso convite para participar des-
sa publicação.
Os primeiros cinco artigos trazem temas diversos que se debruçam
sobre assuntos como comunicação e mídia, feminismo jurídico popular,
políticas públicas para mulheres, ciência, educação e epistemologias fe-
ministas e sociabilidade LGBT. O sexto artigo explora questões relacio-
nadas aos feminismos latino-americanos e, desse modo, faz uma tran-
sição para os textos subsequentes. Entre o sétimo e o décimo terceiro
artigo, encontraremos discussões importantes e atualíssimas assentadas
em olhares feministas descoloniais. Avanços e desafios dos feminismos
latino-americanos, descolonização da internet, mobilizações feministas
recentes e feminismos descoloniais, feminismos e descolonização no
Movimento Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária, estudos
culturais e pensamento descolonial, descolonização e crise civilizatória,
estão entre os temas abordados.
O artigo que abre a publicação, “Feminismo Jurídico Popular: re-
flexões críticas sobre um campo e atuação feminista imprescindível e
emancipatório” de autoria de Salete Maria da Silva, propõe uma reflexão
sobre o campo do feminismo jurídico popular e sua atuação na promoção
ao acesso à justiça por parte de mulheres oriundas de camadas populares
e de grupos sociais invisibilizados historicamente por nossa sociedade.
Na sequência, Luiz Braúna e Benedito Medrado apresentam os re-
sultados de uma revisão de literatura sobre os espaços de consumo, lazer
e sociabilidade voltados à população LGBT da cidade de Recife – PE,
no artigo intitulado “Mercado GLS como espaço de consumo, lazer e
sociabilidade LGBT: visibilizando produções acadêmicas”.

6
O terceiro artigo, “O Programa Mulheres Mil no IFMA: uma pro-
posta de inclusão produtiva e educacional na voz das egressas”, escrito
por Patrícia Damasceno e Gema Galgani Silveira Leite Esmeraldo, faz
uma análise de uma política pública de formação profissional, eleva-
ção da escolaridade e inserção no mercado de trabalho, voltada para
mulheres egressas da zona urbana e rural da cidade de Timon-MA, ao
mesmo tempo que problematiza a garantia da inserção dessas mulheres
no mercado, o aumento da escolaridade das mesmas e se esses trabalhos
alcançados são formais ou não regulamentados.
Ana Maria da Conceição Veloso, Fabíola Mendonça de Vascon-
celos e Laís Cristine Ferreira Cardoso, no artigo “A reprodução da Mi-
soginia e do Patriarcado na Cobertura Midiática do Impeachment de
Dilma Rousseff (PT): um Estudo de Caso da Revista IstoÉ”, fazem um
levantamento bibliográfico sobre a imagem da mulher na mídia, mu-
lher, política e feminismo, com o objetivo de analisarem o machismo e
a misoginia da mídia no processo de impeachment da presidenta Dilma
Rousseff a partir de um texto publicado pela Revista IstoÉ.
No artigo seguinte, “Produzindo insubordinações no pensamento
instituído: diálogos entre ciência, educação moderna e epistemologias
feministas”, a autora Gema Galgani Silveira Leite Esmeraldo dialoga
com o pensamento de Foucault e passeia por alguns escritos feministas
com o intuito de levantar questionamentos sobre as bases da sociedade
e da ciência moderna, ao mesmo tempo em que faz considerações entre
a produção de conhecimento acadêmico e os saberes produzidos por
mulheres camponesas.
Lilian Celiberti em seu artigo “Cuerpos indisciplinados y resisten-
cias al poder” aborda as histórias feministas enquanto histórias de indis-
ciplinas desde os espaços privados, onde muitas vezes são marcadas por
silenciamentos diversos, ao espaço público, onde a experiência do corpo
emerge como resistência e afirmação de identidades políticas, num con-
texto que tem se mostrado tão desafiador, principalmente na luta contra
o capital e em favor da vida.
Em “Para uma internet feminista, descolonizar internet é urgente”,
Graciela Natansohn apresenta algumas reflexões acerca das tecnologias
digitais como espaços privilegiados para ações políticas de movimentos
sociais feministas, queer, LGBT e antirracista, mas que, no entanto, vêm

7
se constituindo, sobretudo, como um ambiente de muitas violências e
ataques. A autora ainda apresenta princípios para uma internet tecno-
feminista e descolonial que busque o fim da hegemonia do mercado e
possibilite uma livre circulação de ideias no ambiente virtual.
O oitavo artigo, “Gênero e Feminismos no Movimento
Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária”, de nossa autoria, de-
senvolve uma análise preliminar sobre pontos de aderência ou de tensão
entre conceitos e práticas predominantes no Movimento Latino-Ame-
ricano de Cultura Viva Comunitária e as perspectivas feministas-des-
patriarcais. O artigo aponta, dentre outras coisas, o lugar central de se
incluir nesse Movimento, que já tem presença em 17 países da região,
uma perspectiva efetivamente despatriarcal, entendendo ser impossível
descolonizar sem despatriarcalizar.
Breny Mendoza em “Los avances y retos de los feminismos de
América Latina / Abya Yala del siglo XXI”, passeia pela política local e
global, analisando suas repercussões para o movimento feminista latino-
-americano e relacionando os desafios a serem enfrentados na, para ela,
nova fase do movimento feminista.
O décimo artigo, “Dos Estudos Culturais ao pensamento descolo-
nial: intervenções feministas nos debates sobre cultura, poder e política
na América Latina”, de Sonia Alvarez e Claudia de Lima Costa, traz
uma reflexão sobre o fato dos estudos latino-americanos referentes à
cultura, poder e política não levarem em consideração as contribuições
feministas e, também, por um outro lado, muitos estudos de gênero não
considerarem a cultura como objeto de análise. Ao focarem no Brasil,
as autoras ainda analisam os desdobramentos políticos desse fenômeno
e concluem o referido artigo tecendo considerações sobre como e em
que momento a política de cultura se voltou às múltiplas expressões do
ativismo feminista, apontando o contraponto acadêmico às mesmas.
“Apuestas políticas desde los feminismos descoloniales”, de Verô-
nica Renata López Nájera, trata das contribuições dos feminismos des-
coloniais e de recentes mobilizações feministas para um projeto maior,
o qual propõe uma agenda pautada na luta antirracista, anticolonial, an-
ticapitalista e antipatriarcal.
Analisar o crescimento dos movimentos de mulheres na América
Latina que trazem à tona a crítica ao capitalismo a partir da visão dos

8
povos e nações originárias e, por outro lado, a partir das subjetividades
e dos movimentos urbanos, é o que propõe Márgara Millán em “Fe-
minismos emergentes: descolonización y crisis civilizatoria”. A autora
aborda também as agendas comuns referentes à pauta da violência con-
tra as mulheres, uma violência estrutural, feminicida, jurídica e ligada
às desapropriações, considerando marcadores etários, de classe, étnicos,
multiculturais e de diversidade sexual.
Nossa publicação se encerra com uma entrevista de Mariana Mora
Bayo concedida a Luis Martínez Andrade, originalmente lançada no
livro “Feminismos a la contra: entre-vistas al Sur Global” e gentilmente
cedida pela Editora La Vorágine. Nessa conversa, Bayo tece uma análise
acerca dos feminismos latino-americanos, suas contribuições e princi-
pais debates nos últimos anos, centrando-se nos feminismos não he-
gemônicos que apontam críticas ao feminismo da classe média urbana
e branca e ganham forças, por exemplo, no movimento zapatista e em
correntes influenciadas pelo feminismo marxista, provenientes princi-
palmente de organizações não governamentais e de grupos de mulhe-
res indígenas, afro-mexicanas, afro-indígenas e campesinas. Também
discorre sobre a ideia defendida por Breny Mendoza que não há um
feminismo latino-americano, sobre “as questões de gênero serem um ar-
tifício da colonialidade do poder”, apontada por Maria Lugones e sobre
o patriarcado. Finaliza, fazendo uma breve consideração sobre como as
questões de gênero estão sendo tratadas hoje nas comunidades zapatis-
tas e como este movimento se apresenta no atual contexto sociopolítico.
Deixemo-nos ser abraçados pelas contribuições aqui apresentadas.
Permitamo-nos ser suleados pelo que há emergido de nossa Abya Ayla,
nossa América Latina. Busquemos nessas temáticas tão desafiadoras,
inspiração para fazermos de nossos territórios, um canto de buen vivir
senão, como Paulo Freire diz, não há como crer “na amorosidade entre
homens e mulheres, entre os seres humanos, se não nos tornarmos capa-
zes de amar o mundo”, amar nossa Casa Comum.
Não descansemos de nossas lutas, continuemos persistentes nas
trincheiras contra todas as formas de opressão e, ainda assim, tentemos
fazer uma leitura leve, embaladas e embalados numa rede de nossos in-
teriores nordestinos, com uma xícara de café ao lado, sentindo a brisa
de uma manhã suave ou os raios de um sol que se vai. E, para quem

9
não puder vivenciar essa experiência ao se debruçar sobre essas páginas,
imagine e se desafie nessa viagem, pois se nossos dias exigem luta, nosso
espírito pede, apenas, um respiro, um canto, um tempo...
Com muito afeto, eis nosso livro!

Christiane Ribeiro Gonçalves


Marcos Antonio Monte Rocha
Fábrica de Imagens – ações educativas em cidadania e gênero

10
Feminismo jurídico popular: reflexões
críticas sobre um campo de atuação
feminista imprescindível e emancipatório

Salete Maria da Silva1

Resumo
Este texto visa apresentar, definir e analisar o feminismo jurídico
popular enquanto um campo de atuação feminista materializado em um
conjunto de percepções, ações e proposições que visam contribuir para
a democratização, apropriação e transformação do saber jurídico e para
a ampliação do acesso à justiça para mulheres oriundas das camadas
populares e/ou de grupos sociais historicamente excluídos e discrimina-
dos. Objetiva, outrossim, refletir sobre as possibilidades e limites deste
tipo específico de incidência jurídico-política dentro e fora dos sistemas
de justiça.

1 Contextualizando o debate
Diversos grupos sociais têm lutado, desde há muito, por direitos
humanos básicos e por políticas públicas capazes de concretizá-los na
realidade fática, a exemplo das demandas em torno do acesso à jus-
tiça nos mais variados países do mundo (LUGARO, 2003; TERTO
NETO, 2005; OLIVEIRA, 2017; SADEK, 2008; 2014). Dentre estes
grupos, merecem destaque as mulheres, notadamente as oriundas das
camadas populares, pois, em regra, são elas que se encontram em situa-
ção de maior exclusão, vulnerabilidade e violência, inclusive institucio-
nal (PASINATO, 2015; CHAI et al., 2018; SILVA, 2019a).
No contexto da América Latina, e em particular no Brasil, movi-
mentos feministas e de mulheres têm colocado na agenda pública uma
série de problemas relacionados às desigualdades de gênero (TELES,

1 Advogada feminista, professora do Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo


da Universidade Federal da Bahia. Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Ação em Gênero,
Direito e Políticas para a Igualdade-JUSFEMINA. E-mail: saletemaria@oi.com.br.

11
2007) e suas interseccionalidades (CUNILL-GRAU, 2014; AKOTI-
RENE, 2018). Nesta esteira, merecem relevo as demandas por acesso ao
sistema de justiça para a parcela feminina da sociedade, especialmente
aquela que se encontra em situação de violência doméstica e intrafa-
miliar (SILVA et al., 2016; HEIM, 2016). Apesar disto, o acesso aos
serviços que compõem os sistemas de segurança pública e de justiça em
nosso país não se dá de maneira democrática, plena, satisfatória e efe-
tiva para todas as mulheres, mesmo diante da existência de importan-
tes iniciativas estatais adotadas neste sentido (MOTTA; RUEDIGER;
RICCIO, 2006).
Pesquisas apontam que apesar dos avanços normativos e de algu-
mas políticas públicas, ainda são inúmeras as barreiras que dificultam o
acesso à justiça para a população de um modo geral e para as mulheres
em particular, pois além da escassez de serviços em diversas regiões e
localidades do país – em termos de delegacias especializadas de atendi-
mento à mulher, varas e juizados específicos, casas abrigo ou centros de
referências – ainda é diminuta a quantidade de profissionais, sobretudo
com formação adequada e em perspectiva de gênero, dedicados à orien-
tação e acompanhamento das mulheres que acorrem às instâncias esta-
tais visando obter respostas às suas demandas que, em geral, envolvem
violações ou negações de direitos e sua consequente procura por justiça
(IZUMINO, 2004; BARROS, 2014; SILVA et al., 2016).
Ademais, mesmo onde e quando já existem alguns dos serviços
acima mencionados, não significa dizer que as barreiras foram supe-
radas, haja vista a persistente realidade de desconhecimento, sobretu-
do por parte das mulheres, não somente das normas jurídicas, mas das
questões, situações e/ou procedimentos legais relativos aos seus direitos
(SILVA et al., 2016). Tudo isso leva ao enfraquecimento da cidadania
feminina, abrindo espaço para a manutenção das desigualdades de gê-
nero e de visões e intervenções de cunho assistencialista, salvacionista
e/ou elitista no âmbito do sistema de justiça; sobre o que já refleti em
artigos específicos (SILVA, 2018).
Diante desta problemática, e para além das históricas e contínuas
batalhas dos movimentos sociais em prol de políticas estatais2, algumas

2 Aqui me refiro a um conjunto de políticas públicas de acesso à justiça implementadas,


de modo específico, pelas delegacias especializadas, núcleos de atendimento à mulher

12
iniciativas tem sido adotadas por feministas de formação jurídica vincu-
ladas a entidades de classe e a organizações da sociedade civil (tais como:
comissões3 ou associações de mulheres de carreira jurídica4, serviços de
assessoria jurídica universitária5, coletivos feministas em faculdades
de Direito6, organizações não-governamentais7, grupos de pesquisa e
projetos de extensão de universidades públicas8 e privadas9), com vistas a
contribuir para a democratização do saber jurídico, o fortalecimento da
cidadania feminina e a ampliação das possibilidades de acesso à justiça
para mulheres das camadas sociais mais desprivilegiadas e/ou vulnera-
bilizadas. A estas iniciativas tenho dado o nome genérico de feminismo

das defensorias públicas e dos ministérios públicos, bem como às Varas e Juizados
Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e alguns centros de
referência instaladas em alguns municípios brasileiros.
3 Conforme as ações levadas a cabo por diversas comissões de proteção aos direitos da
mulher, da Ordem dos Advogados do Brasil, nas mais variadas seccionais e subseções pelo
Brasil afora. Eis o link que dá acesso à composição desta comissão na seccional da Bahia,
ano 2019. Disponível em http://www.oab-ba.org.br/single-noticias/noticia/portaria-no-
0332019-gp-nomeacao-presidente-e-vice-comissao-de-protecao-aos-direitos-da-mul
her/?cHash=bb9249caea89ba0f9c1287f211f6fca4.
4 A exemplo das ações fomentadas pela Associação de Mulheres de Carreira Jurídica-
ABMCJ, em suas diversas seccionais. Para maiores informações, conferir este link:
https://abmcj.ong.br/jornal/jornal-dezembro-abcmj/
5 Como exemplo, o Núcleo de Atendimento à Mulher – NAM – da Universidade
de Vila Velha, no Espirito Santo, cujas ações, de cunho jurídico e psicológico,
são destinadas às mulheres que vivenciaram ou vivenciam situações de violência.
Maiores informações podem ser obtidas neste link https://uvv.br/blog/2018/06/11/
uvv-oferece-assistencia-gratuita-a-mulheres-vitimas-de-violencia-domestica/
6 A exemplo do Coletivo feminista Madás, formado por estudantes de graduação e
pós-graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia.
7 Vide as ações da ong THEMIS - Gênero, Justiça e Direitos Humanos -, sediada
em Porto Alegre e criada em 1993 com o objetivo de enfrentar a discriminação contra
mulheres no Sistema de Justiça e ampliar a cidadania jurídica feminina.
8 Vide as ações do projeto de extensão “Promotoras Legais Populares” levado a cabo
pela Universidade de Brasília, disponível em http://www.dex.unb.br/noticias/529-
projeto-de-extensao-da-unb-recebe-mencao-honrosa-em-premiacao-nacional
9 Conferir o programa de atendimento à mulher vítima de violência doméstica
denominado “Advogado de Mulher” (sic), do Núcleo de Práticas Jurídicas da
Universidade Anhanguera, em Campo Grande, Mato Grosso do sul. Disponível em
http://www.primeiranoticia.ufms.br/cidades/programa-oferece-atendimento-juridico-
gratuito-para-mulheres-vitimas-d/477/

13
jurídico (SILVA, 2018), sendo que algumas delas, dado o seu caráter
bastante específico, estou categorizando como feminismo jurídico po-
pular. Mas, afinal, do que se trata e como manifesta, na realidade prática,
este tipo particular de feminismo ou, como também é possível dizer, este
novo campo de ação jurídico-política das mulheres em favor de seus
direitos mais elementares? É sobre isto que passo a tratar.

2 Definindo e caracterizando o feminismo jurídico popular


Antes de falar sobre feminismo jurídico popular, convém destacar
a própria noção de feminismo jurídico que, conforme já explicitei em
artigo específico (SILVA, 2018, p. 90), corresponde a “um conjunto de
críticas, teorizações, proposições metodológicas e atividades práticas de-
senvolvidas por juristas feministas em face do fenômeno jurídico, dentro
ou fora do sistema de justiça”. Isto dito, é válido afirmar que o feminis-
mo jurídico popular constitui uma espécie, adjetivada, do feminismo
jurídico em sentido amplo, cujas caracterizações e especificidades ainda
há muito para se explorar10.
Pelo exposto, depreende-se que tanto a produção da chamada teoria
feminista do direito quanto as atividades de educação jurídica feminista –
de caráter formal ou informal – sem olvidar das ações judiciais propostas
e/ou acompanhadas por advogadas feministas, bem como algumas in-
tervenções de grupos de pressão por estas orientados, compõem o con-
junto de saberes e fazeres que caracterizam o feminismo jurídico de um
modo geral e o feminismo jurídico popular em particular, haja vista que
o seu objetivo central é provocar transformações radicais não somente
no âmbito das normas, mas nos discursos e práticas do/no mundo jurídi-
co, promovendo, com isto, a igualdade de gênero tão almejada por todos
os tipos de feminismos. Vale pontuar, ainda, que o ponto de partida do
feminismo jurídico “é a percepção do caráter androcêntrico, porém cada
vez mais ambíguo e enviesado, do Direito”, ainda identificado como pro-
duto e produtor das sociedades patriarcais (SILVA, 2018).
10 Segundo pesquisas coordenadas por mim no âmbito do grupo de pesquisa
JUSFEMINA/UFBA, no qual a ideia de feminismo jurídico vem sendo evidenciada e
teorizada no Brasil, este tipo particular de feminismo “se concretiza através da produção
teórica, do ensino jurídico (não necessariamente acadêmico), da militância política e
da atuação profissional no âmbito (ou mesmo fora) do sistema de justiça” (SILVA,
WRIGHT, NICÁCIO, 2016).

14
É importante lembrar que o feminismo jurídico, assim como to-
dos os demais tipos de feminismos catalogados e estudados academi-
camente, não constitui um movimento monolítico e homogêneo, pois
isto jamais seria possível numa sociedade como a nossa, marcada pelas
diferenças, hierarquias e desigualdades de gênero, classe, raça/etnia,
geração, territorialidade, dentre outras. E é exatamente no âmbito des-
ta complexidade, pluralidade e diversidade que se insere o feminismo
jurídico popular, cujas reflexões e práticas também podem ser carac-
terizadas como teorizações críticas, proposições políticas e atividades
práticas desenvolvidas em face do fenômeno jurídico, dentro ou fora
do sistema de justiça, tendo como particularidade central o fato de
ser organizado, liderado e/ou profundamente influenciado por mulhe-
res, juristas ou não11, oriundas das camadas populares e diversas, para
quem não somente o gênero é central nos debates em torno do aces-
so à justiça, mas outras categorias e marcadores sociais da diferença,
tais com classe, raça/etnia, geração, orientação sexual, território, dentre
outras.
Em face do exposto, o feminismo jurídico popular pode ser de-
finido não apenas como um campo de atuação feminista, mas como
um conjunto de percepções, ações e proposições que visam contribuir
para a democratização (apropriação e transformação) do saber jurídico
– sempre com enfoque de gênero – e do acesso à justiça para as mu-
lheres das camadas populares e/ou membros de grupos sociais histo-
ricamente excluídos e discriminados. Eis um aspecto que diferencia o
feminismo jurídico popular e, em alguns casos, até mesmo o distancia

11 Em que pese o feminismo jurídico, notadamente o popular, se constituir como um


movimento/pensamento organizado e mobilizado por mulheres (e alguns homens)
de formação e/ou carreira jurídica, o fato é que tem crescido, cada vez mais no Brasil,
um contingente de mulheres que (não obstante façam incidência política e jurídica em
face do Judiciário e de outros órgãos do sistema de justiça, ou se utilizem da gramática
jurídica feminista, notadamente dos direitos humanos das mulheres), não tem formação
de nível superior e muito menos diploma na área jurídica, mas constroem habilidades,
capacidades e interesse para lutar e se apropriar das informações e ações produzidas
nesta área, tais como as Promotoras Legais Populares, por exemplo, cujas atuações e
capacitações se destinam exatamente a isto: contribuir para o empoderamento das
mulheres das esferas populares e para a reivindicação e/ou monitoramento das políticas
públicas estatais, incluindo-se aí as políticas de acesso à justiça.

15
do feminismo jurídico convencional, aqui denominado de profissiona-
lizado12, afinal, enquanto o feminismo jurídico tem seu foco no uso
estratégico das normas legais em face de casos concretos, através da “re-
presentação” profissional das mulheres em Juízo, ou focando na produ-
ção e utilização de teorias especializadas sobre a interface entre gênero
e Direito, o feminismo jurídico popular se pauta por intervenções de
cunho político-jurídico mais amplas, mediante atividades de educação
legal popular e também se dedicando a construções de novas legisla-
ções e políticas que contemplem as demandas das mulheres em sua
diversidade, sem esquecer de pensar em novos métodos de apropriação,
compartilhamento e (re)interpretação das normas, menos ortodoxos ou
tradicionais, sempre buscando conceber o fenômeno jurídico de modo
amplo, intervindo junto aos diversos órgãos estatais, incluindo os siste-
mas de justiça.
Em outras palavras, o feminismo jurídico popular pode ser conce-
bido como uma vertente do feminismo jurídico que tem como interesse
não apenas fissurar as barreiras sexistas, racistas e classistas do Direito
(enquanto saber/fazer elitizado e hierarquizado), e do sistema de justiça

12 Estou denominando de “profissionalizado” aquele feminismo jurídico que


opera, a partir de determinados cargos ou funções laborais, no âmbito estatal ou por
meio do exercício de profissões liberais. No entanto, vale destacar que, ao adotar esta
nomenclatura, não estou fazendo juízo de valor ou afirmando que dentro das ONGs ou
em grupos e núcleos de pesquisa e extensão, localizados em universidades, não existam
feministas jurídicas atuando como profissionais, enquanto exercem seus ativismos. O
interesse aqui é destacar que no feminismo jurídico profissionalizado o protagonismo,
inclusive processual, tende a ser das mulheres (ou homens) que já têm acesso a direitos
e já são reconhecidas como suas titulares, ao passo que no feminismo jurídico popular o
objetivo é que as próprias mulheres das camadas populares e subalternizadas construam,
desenvolvam e exerçam poder, isto é, se empoderem, mediante a colaboração e o apoio
das feministas jurídicas que ali atuam, sem que jamais sejam apriorística e “naturalmente”
substituídas ou “representadas” por elas. Pode-se dizer, então, que no feminismo jurídico
popular ocorre (ou deveria ocorrer) uma experiência que Evorah Cardoso (2019), com
base em pesquisas que exploram a cultura da advocacia popular, vai destacar como sendo
“advocacia AM”, isto é, por trás dos movimentos, em contraposição a uma “advocacia
FM”, isto é, que se coloca à frente dos movimentos. Embora o feminismo jurídico
popular não se restrinja a uma prática advocatícia, o fato é que o seu espírito coincide com
a ideia de protagonismo e/ou empoderamento coletivo e não de postura individualista,
salvacionista ou baseada em culto a uma única personalidade ou autoridade. Aqui o que se
persegue é a prática da dialogicidade, da horizontalidade, da sororidade enquanto aliança
politicamente construída.

16
(enquanto espaço decisório majoritariamente hermético); mas subverter
o seu habitus13 e o seu ethos14 hegemônica e historicamente consensua-
dos e compartilhados por membros das classes privilegiadas, sejam eles
homens ou mulheres. E tudo isto se faz com vistas a desmontar o mo-
nopólio do jus dicere15, seja através da incorporação de outros saberes/
fazeres (inter, trans e multidisciplinares) no contexto judicial, ou através
da inserção de outros sujeitos, outras linguagens e outras ferramentas
no seio do mundo jurídico e das estruturas de justiça, mas sempre com
absoluta compreensão dos limites e armadilhas deste sistema que fora
pensado historicamente para garantir a manutenção do status quo social
em termos de classe, gênero, raça, etc.
Trata-se, portanto, de um tipo de feminismo jurídico que se apro-
xima mais – sobretudo em termos éticos e ideológicos –, das noções
de pluralismo jurídico, de direito alternativo e de direito insurgente do
que propriamente da percepção/cosmovisão jurídica compartilhada
por muitos juristas, inclusive feministas, tal como o feminismo liberal;
sem olvidar, obviamente, da crítica à histórica insensibilidade de gêne-
ro presente nas tradições do chamado direito crítico. De toda sorte, o
feminismo jurídico popular tem muito a se beneficiar dos postulados
teóricos e metodológicos do pensamento jurídico crítico que pugna pelo
reconhecimento da construção social do direito e do seu caráter cultu-
ral e histórico, em que a ideia de “sociedade aberta” – não somente de
intérpretes da Constituição16 – pode auxiliar nos processos de tomada de

13 Na perspectiva de Pierre Bourdieu (1983), seria um conjunto de disposições socialmente


construídas e compartilhadas que levam a reprodução de um modo de perceber, apreciar,
representar e agir de determinados grupos, em determinado contexto histórico.
14 Outra contribuição teórica de Bourdieu (1983), concebida como um conjunto de
princípios ou sistema de valores interiorizados e compartilhados por determinados
indivíduos ou grupos, servindo de guia para suas condutas sociais.
15 A expressão latina jus dicere significa literalmente “dizer o direito”, ou seja, ter
jurisdição, ter poder, competência e responsabilidade, além de exclusividade, para
declarar que está com a razão, em termos legais e jurídicos, ante determinado fato
levado a julgamento pelo sistema de justiça. Nas sociedades ocidentais, desde o advento
dos estados constitucionais, e com base no que preconizam seus códigos de leis, tal
atribuição é definida como monopólio do Poder Judiciário.
16 Sobre esta temática, vale apreciar as contribuições de Peter Haberle constantes de
sua obra intitulada “Hermenêutica Constitucional - A Sociedade Aberta dos Intérpretes
da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da

17
decisão, inclusive no meio judicial, e nas demais esferas estatais, sem-
pre visando o alargamento da cidadania feminina e dos direitos huma-
nos das mulheres e de outros grupos historicamente discriminados e
excluídos.
É importante pontuar, no entanto, que sempre haverá possibi-
lidades – e, às vezes, até necessidades – de se estabelecer pontos de
contato, dos quais resultam as alianças, entre o feminismo jurídico de
cariz profissional (público ou liberal) e o feminismo jurídico popular,
mas sem negar as tensões, uma vez que no seio destas relações também
estão presentes – apesar de nem sempre evidentes e/ou explicitamente
admitidas – as desigualdades e hierarquias sociais, notadamente as de
raça e classe. E é precisamente neste contexto que o feminismo jurídico
popular emerge e se desenvolve colocando no centro de suas reflexões e
ações as inúmeras exclusões e interdições pelas quais passam as mulhe-
res das camadas empobrecidas e subalternizadas da sociedade que, no
caso do Brasil, são compostas, majoritariamente, por mulheres pretas
e pardas, em face das quais os movimentos sociais de um modo geral,
e os feminismos populares e comunitários em particular, configuram
suas agendas e têm sua razão de existir, entendendo que cabe a elas o
direito de dizer, em primeira e última palavra, quais são seus anseios e
demandas com base em suas experiências, necessidades e especificida-
des sociais.
Apesar do exposto, convém registrar que o feminismo jurídico po-
pular nem sempre tem sido nomeado (ou se autodeclarado) desta forma;
mas isto pode ser explicado, dentre outros fatores, a partir da observação
da complexidade das organizações sociais, já que muitas vezes as ações
das mulheres não se dão somente em grupos autônomos, mas inseridas
em estruturas (tais como coletivos, entidades e/ou organizações) que
mobilizam pautas jurídicas e políticas de sujeitos diversos ou não ne-
cessariamente autodeclaradas feministas ou destinadas unicamente ao
âmbito do sistema de justiça. No entanto, conforme já foi dito, não é so-
mente no mundo jurídico que o feminismo jurídico popular pode atuar,
mas onde e quando a temática dos direitos das mulheres – e as políticas

Constituição”, traduzida para o português pelo ministro Gilmar Ferreira Mendes, e


publicada pela Editora Sérgio Antônio Fabris. Porto Alegre em 1997.

18
públicas correspondentes – se façam presentes ou haja necessidade de
sua exigência, sobretudo a partir da gramática jurídica na qual se anco-
ram diversos grupos sociais.
Assim, o caráter popular deste tipo de feminismo não decorre pro-
priamente do local onde este surge ou realiza a maioria de suas ativida-
des, mas em face das trajetórias, compromissos, perspectivas e interes-
ses, notadamente de classe, raça/etnia, gênero, geração, dentre outras,
do conjunto de suas integrantes. Destarte, não é uma carreira profis-
sional específica ou uma determinada associação formal que orienta a
atuação das feministas jurídicas populares, mas o compromisso com os
direitos humanos das mulheres de um modo geral, e das mulheres das
camadas subalternizadas em particular, além de uma manifesta e auto-
declarada perspectiva de gênero, raça e classe que serve de bússola para
a ação jurídico-político nos contextos sociais e/ou profissionais em que
se encontram.
Por isso, o feminismo jurídico popular não vai ser encontrado em
escritórios tradicionais de advocacia ou em bancas de juristas que atuam
como profissionais liberais pois, em geral, a linguagem e as ações do
feminismo jurídico popular se aproximam mais da dinâmica dos cole-
tivos ou das entidades civis sem fins lucrativos que, de fato, têm com-
promisso ou aproximação com as lutas das mulheres, podendo também
surgir e/ou se abrigar dentro de instituições de ensino, mormente as
públicas, através de grupos de pesquisa e extensão compostos por do-
centes, discentes e ativistas oriundas das camadas populares e diversas.
Vale registrar que também é comum sua articulação ou aparição no seio
de associações de moradoras/es, de sindicatos de trabalhadoras/es das
categorias mais pauperizadas ou no bojo de grupos identitários que lu-
tam por direitos, bens e serviços, mesmo que estes espaços não tenham
sido criados precisamente para a defesa dos direitos das mulheres, mas,
em dado momento, e em virtude da construção de uma consciência de
gênero por parte de suas/seus filiadas/os, se dão conta das necessidades
especificamente femininas no seu meio e passam a considerar e pautar
suas questões.
Para facilitar a percepção da diferenciação entre o feminismo
jurídico convencional – fortemente profissionalizado – e o feminismo

19
jurídico popular, assim como as caracterizações e âmbitos de atuação de
um e outro, apresento, no quadro abaixo, uma pequena amostra do que
tenho encontrado e categorizado em minhas investigações:

Quadro 1 – Feminismo jurídico e feminismo jurídico popular

Exemplos e Feminismo jurídico Exemplos e


Feminismo jurídico
âmbito de popular âmbito de
(caracterização)
atuação (caracterização) atuação

TamoJuntas/
BA19
Red Alas17 ONGs que focam União de Mu-
Grupos/redes de lheres de São
Rede no acesso à justiça
estudos e pesquisa Paulo20
e/ou no empodera-
compostos por aca- Femijuris18 mento jurídico das Centro Dandara
dêmicas feministas Âmbito: mulheres das cama- de PLP21
no/do Direito acadêmico das populares Âmbito: jurídico,
educacional,
social e cultural

17 Red Latino Americana de Académicas del Derecho, compostas por feministas de


vários países da referida região, dentre elas, a autora deste texto. Informações podem ser
obtidas no seguinte sítio eletrônico: https://www.redalas.net/.
18 Rede de advogadas articulada em formato de plataforma virtual, destinada ao fortalecimento
da atuação de mulheres no âmbito da justiça. Cf. https://www.eventosfemijuris.com.br/
19 Organização não-governamental fundada por advogadas baianas. Cf. facebook.
com/tamojuntas/
20 Organização não-governamental sediada na capital paulista, conhecida como uma das
entidades que mais investem na educação jurídica de mulheres populares, por meio do
projeto Promotoras legais populares, PLPs. Cf. http://www.uniaodemulheres.org.br/
21 Organização não-governamental fundada em 2001 com o objetivo de “promover os
direitos humanos focando as desigualdades decorrentes das relações de gênero, raça/etnia e
socioeconômicas, em âmbito nacional”. Promove a defesa dos direitos econômicos, sociais
e culturais, meio ambiente, dentre outros, através de ações políticas e de educação jurídica
popular para as mulheres. Cf. https://www.facebook.com/centrodandara/

20
Coletivos que Plenária de
ABMCJ22 visam o acesso à mulheres do
Associações/redes CAJU24
DeFEMde23 justiça e/ou o em-
de juristas feminis-
Âmbito jurídico poderamento jurídi- Âmbito: jurídico,
tas do/no Direito
e societário co das mulheres das educacional,
camadas populares social e cultural

Grupos de exten-
GEDEM25 são/ pesquisa aca- Jusfemina/
NUDEM26 dêmica de matriz UFBA, Madás/
Comissões ou
feminista, jurídica e UFBA e
núcleos de gênero Comissões da
popular que visam
vinculados a órgãos/ OAB27 Marias /UFPB28
o acesso à justiça e/
serviços do sistema Âmbito: Âmbito: jurídico,
ou empoderamento
de justiça Sistema de educacional,
jurídico das mu-
justiça lheres das camadas social e cultural
populares

22 Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica, fundada em 1985, com


o objetivo “contribuir para o estudo crítico do Direito e ações direcionadas sob a
perspectiva da defesa do empoderamento das mulheres de carreira jurídica, da luta pela
igualdade de gênero e demais temáticas relevantes ao desenvolvimento da mulher como
ser humano”, Cf. https://abmcj.ong.br/definicao/
23 Rede Feminista de Juristas, criada em 2016, com a missão de: “garantir e acelerar a
promoção de igualdade de gênero, em especial por meio da expansão e aprofundamento de
uma agenda que busca potencializar o papel que a linguagem de direitos pode desempenhar
nessa missão.” Cf.: https://www.facebook.com/pg/deFEMde/about/?ref=page_internal
24 Coletivo criado em 2013 por estudantes vinculadas ao Centro de Assessoria Jurídica
Universitária da Universidade Federal do Ceará-UFC.
25 Grupo de Atuação Especial em Defesa da Mulher, do Ministério Público da Bahia.
Cf. https://www.facebook.com/gedem.mp/
26 Núcleo de defesa da mulher da defensoria pública do estado da Bahia. Cf. http://
www.defensoria.ba.def.br/area-de-atuacao/defesa-da-mulher
27 Comissões de defesa dos direitos da mulher criadas no âmbito de seccionais e
subseções da Ordem dos Advogados do Brasil pelo país afora.
28 Grupos de pesquisa e extensão criados por feministas com formação jurídica no
âmbito de universidades federais, no caso em tela, as Universidades Federal da Bahia e
Federal da Paraíba.

21
Projetos sociais AMAMU-RJ30
GS-RS29 implementados A Mu-
B&R-SP por entidades que lherada-BA31
Advocacia feminista defendem os direi-
privada MAM-SP tos das mulheres Cunhã-PB32
Âmbito: sistema em perspectiva Âmbito: jurídico,
de justiça feminista, jurídica e educacional,
popular. social e cultural

ONGs nacionais CLADEM33 Rede de Juristas


Redes populares de
e/ou organizações Populares-PE35
THEMIS34 defesa dos direitos
internacionais espe-
Âmbito: sistema das mulheres em Âmbito: jurídico,
cializadas na defesa
de justiça perspectiva jurídica, educacional,
dos direitos das
internacional feminista e popular social e cultural
mulheres

Fonte: elaboração da autora deste artigo

Pelo exposto, é possível perceber não somente como se materia-


lizam, na prática, o feminismo jurídico profissionalizado e o feminis-
mo jurídico popular, assim como os próprios âmbitos de atuação de
um e de outro. Vê-se, ademais, que o âmbito de atuação do feminismo
jurídico profissionalizado, sobretudo o estatal, é bem restrito, já que

29 Cf. propaganda dos seguintes escritório autodenominados feministas: Gabriela


Souza, no Rio Grande do Sul, disponíveis em https://www.advocaciaparamulheres.adv.
br/, e Braga & Ruzzi Advogadas e “Advocacia da mulher”, ambos situados na capital
paulista. Cf. http://www.advocaciadamulher.com.br/
30 Associação de Mulheres e Amigos do Morro do Urubu, RJ, contemplada com apoio
financeiro do Fundo Elas para desenvolver educação para a cidadania.
31 Desenvolve projetos de educação popular para a defesa dos direitos humanos das mulheres.
Cf. https://www.facebook.com/pg/Institutoamulherada/about/?ref=page_internal
32 Tem tradição na luta em prol dos direitos das mulheres no âmbito do nordeste,
desenvolve diversos projetos, dentre eles, a defesa de direitos sociais para trabalhadoras
domésticas, rurais, etc. Cf. https://www.facebook.com/cunhanfeminista/
33 Enquanto rede feminista que opera com ferramentas jurídicas visando mudanças
sociais, o CLADEM tem adotado várias inciativas, dentre elas algumas ações estratégicas,
com vistas a garantir os direitos humanos das mulheres. Cf. https://cladem.org/
34 http://themis.org.br/fazemos/promotoras-legais-populares/
35 Vide atividades da referida Rede em http://www.fundacaomargaridaalves.org.
br/2010/06/04/rede-de-juristas-populares-promove-iv-via-sacra-do-meio-ambiente-
em-santa-rita/

22
tem como foco as atribuições legais, de cunho profissional, das femi-
nistas jurídicas que integram este tipo de estrutura estatal; ao passo
que o âmbito de atuação do feminismo jurídico popular é bem mais
amplo, pois não se restringe apenas à esfera dos sistemas de justiça
ou ao Estado. E isto, a meu ver, aponta para algumas questões que
merecem reflexão.
A primeira delas é que, para o feminismo jurídico popular, a no-
ção do que vem a ser o Direito, assim como a própria ideia de Justiça,
extrapola o âmbito formal e institucional das normas e organizações
jurídicas ou judiciárias em si. Por isso, quando este movimento pugna
por acesso à justiça não está apenas lutando por acesso às estrutu-
ras do Judiciário – embora esta seja uma das grandes demandas das
mulheres desprivilegiadas frente ao sistema, notadamente das que se
encontram em situação de violência ou de cárcere – mas à justiça so-
cial, cuja concretização requer, no dizer de Nancy Fraser (2008), po-
líticas públicas não apenas de representação, mas de reconhecimento
e redistribuição, inclusive do poder e do saber, dentre eles, o jurídico.
Para uma melhor compreensão deste alargamento das concepções
de Direito e de Justiça, vale recorrer aos ensinamentos da jurista femi-
nista Alda Facio (1999), para quem o fenômeno jurídico comporta, ao
menos, três dimensões: a formal, a estrutura e a cultural ou simbólica,
constituídas, respectivamente, pelas normas legais, pelas instituições
e pelos discursos, princípios e valores que orientem as interpretações
das normas e o funcionamento do sistema de justiça. Eis porque, para
as mulheres populares e diversas que compõem o feminismo jurídico
popular, não basta ter uma lei que as proteja ou algumas estruturas que
possibilitem seu atendimento, pois se faz necessário, ainda, que elas se
sintam inseridas, incluídas, acolhidas e, sobretudo, escutadas, respeita-
das e consideradas, além de poder agir, perquirir e propor alternativas
para a solução dos conflitos, dado que, como cidadãs, consideram que
também têm o direito de ser, estar e se manifestar, de modo pleno,
em todos os lugares onde são tomadas as decisões que envolvem suas
vidas, seus destinos (SILVA et al., 2016).
A segunda questão é que o locus de atuação do feminismo ju-
rídico popular é, necessariamente, mais ampliado, pois os diversos
direitos das mulheres tendem a ser simultaneamente violados ou

23
simultaneamente demandados, não apenas para guardar consonân-
cia com o princípio da indivisibilidade dos mesmos, tão presente na
teoria dos direitos fundamentais (PIOVESAN, 2000), mas pelo fato
de que a realidade concreta das referidas mulheres é caraterizada por
um sem número de violências simultâneas e sobrepostas, como tem
destacado a pesquisadora Vanessa Cavalcanti (2018).
Tudo isto faz com que os debates e as ações do feminismo jurídi-
co popular exijam incidências políticas e jurídicas em diversas frentes
e esferas ao mesmo tempo, uma vez que uma cidadã cujos direitos
foram historicamente negados ou insuficientemente reconhecidos,
quando busca o sistema de Justiça, notadamente diante de uma situa-
ção de violência doméstica, por exemplo, também se encontra desem-
pregada ou subempregada, também apresenta necessidades de acesso
ao sistema público de saúde, também está carente de políticas de cre-
che ou de pré-escola para seus filhos e netos, também deseja acessar
linha de crédito ou política de aquisição de casa própria, também re-
clama por saneamento básico, por transporte coletivo, por segurança
pública, por acesso à educação para si e para os seus, etc. Sem olvidar
que, em geral, também se insere no perfil das mulheres a quem a so-
ciedade e a mídia (re)tratam da forma mais abjeta e indigna possível,
o que também exige intervenções estatais de cunho cultural, com vis-
tas à transformação das mentalidades e comportamentos de todos os
membros da sociedade e, com maior urgência, das e dos profissionais
das mais variadas áreas e serviços que as atendem.
Pelo visto, o feminismo jurídico popular não pode e nem deve
restringir sua atuação apenas ao âmbito do sistema de justiça, e nem
se satisfazer unicamente com a possibilidade de ver as mulheres aces-
sando um/a defensor/a ou um/a advogado/a nos autos de um proces-
so, o que de fato é muito importante e necessário; mas isto, por si só,
não possibilita o empoderamento jurídico, social e político das mu-
lheres, cujos direitos foram e seguem sendo historicamente violados
ou negados. Por estas e outras razões, o feminismo jurídico popular
corresponde a um movimento/pensamento que objetiva favorecer o
empoderamento, inclusive jurídico, das próprias mulheres, sejam elas
vítimas ou autoras de crimes, tudo com vistas a lhes possibilitar uma
maior compreensão da situação em que se encontram e da dimensão

24
da luta que se faz necessária para a transformação não apenas do seu
contexto individual, mas da realidade social mais ampla, na qual ela
está inserida e da qual também é produto e produtora.
Assim, enquanto o feminismo jurídico profissionalizado (ou
convencional) desenvolve suas atividades, prioritária ou exclusiva-
mente, em ambientes como o mundo acadêmico, os órgãos gover-
namentais, as instâncias jurisdicionais, os espaços associativos ou os
escritórios privados de advocacia, em atendimentos prevalentemente
individuais; o feminismo jurídico popular atua necessária e/ou prio-
ritariamente no seio de coletivos, de associações, de organizações
não-governamentais e/ou em grupos de extensão e pesquisa cujas
ações transcendem os espaços tradicionais de educação ou de litígio
jurídico, tais como a academia e o sistema de justiça, conforme já foi
destacado. Por isso, nem todo feminismo jurídico atuante no mundo
acadêmico se encaixaria na consigna de feminismo jurídico popular,
dado que há muitas experiências que se distanciam das caracteriza-
ções que estou propondo no presente artigo.
De todo modo, e dado ao fato de que muitas mulheres oriundas
das camadas populares e diversas têm adentrado e ocupado espaços
institucionais historicamente interditados às mesmas, a exemplo do
ingresso de negras, indígenas, quilombolas, periféricas, idosas, defi-
cientes e outras em universidades públicas e privadas, e em alguns
cargos do sistema de justiça, nem sempre se torna fácil definir ou
categorizar, com precisão absoluta, o tipo de atuação feminista ju-
rídica desenvolvida por elas nestes ambientes, uma vez que muitas
não se reconhecem unicamente como mera profissional do direito
ou como pesquisadora jurídica lotada em determinado curso, área
ou departamento, mas como ativista feminista em tempo integral,
isto é, como intelectual orgânica36 que, por força do ofício, atua em
determinado espaço social ou institucional, porém mantendo e sem-
pre fortalecendo seus laços éticos e ideológicos com o seu habitat
original.

36 Intelectual orgânico é um conceito criado pelo filósofo marxista Antônio Gramsci


(1979) com vistas a refletir sobre o papel do intelectual que se mantém vinculado a, ou
comprometido com, sua classe social de origem e em favor de quem desenvolve suas
reflexões e ações.

25
Pelo exposto, é possível encontrar nichos de feminismo jurídi-
co popular também no âmbito de grupos de pesquisa e extensão ou
dentro dos mais diversos órgãos do Estado. Porém, isto não é a re-
gra, pois, em que pese haver inúmeras feministas no contexto estatal,
algumas inclusive ocupando cargos de comando, direção e chefia, o
fato é que nem sempre a sua origem social, compreensão filosófica
ou ação política está em perfeita sintonia com as visões, experiências
ou expectativas das mulheres das camadas populares e periféricas, até
porque, por mais empatia e compromisso que possa existir da parte de
uma mulher, feminista ou não, para com a causa de outras mulheres
de camadas subalternizadas, sobretudo no contexto da instituciona-
lidade do Estado, a realidade fática tem demonstrado as inúmeras
diferenças e até mesmo desigualdades entre aquelas que laboram e as
que recorrem a estes espaços.
Ademais, não se pode olvidar do inequívoco distanciamento
entre a lógica estatal – muitas vezes assimilada e/ou justificada por
mulheres, inclusive feministas, que atuam nesta esfera – e a lógica
dos movimentos sociais, notadamente os movimentos de mulheres
e os feminismos populares, cujas demandas, denúncias e dinâmicas
de intervenção exigem, em regra, outros compromissos, outras lentes
epistêmicas e outras formas de operacionalização dos atos, discursos
e relações dentro e fora da res publica. Apesar disto, há que se registrar
que muitas das conquistas e dos avanços obtidos em termos de le-
gislações e de políticas públicas de proteção e promoção dos direitos
humanos das mulheres somente foram possíveis graças à tenacidade,
à bravura e ao compromisso de centenas de feministas, oriundas dos
mais variados espectros sociais, que atuaram e atuam no âmbito es-
tatal, com ou sem cargos comissionados para tanto (FARAH, 2004;
OLIVEIRA, 2013; SILVA, 2016).
Em face do acima mencionado, as ações desenvolvidas por di-
versos grupos de feministas, com ou sem formação jurídica, notada-
mente aquelas que atuam em prol de políticas públicas de acesso à
justiça para as mulheres, ou na construção e compartilhamento de sa-
beres emancipacionistas sobre o direito, dentro de universidades pú-
blicas (ou privadas) ou mesmo dentro do sistema de justiça, também
podem, excepcionalmente, ser denominadas de feminismo jurídico

26
popular, não tanto em virtude do local onde aprioristicamente são
realizadas a maioria de suas atividades, mas em virtude do compro-
misso ético, político e ideológico com as classes e grupos dos quais
são oriundas/os e com os quais têm profundos laços de afetividade
e/ou de atividades de intervenção, a exemplo do que fazem grupos
como o Marias, da UFPB, e o próprio Jusfemina, da UFBA, cujas
integrantes nem sempre são vistas (e tampouco fazem questão de
sê-lo) como “autoridades” em determinado assunto ou como repre-
sentantes do Estado, e muito menos como operadoras jurídicas, não
obstante algumas – como é o meu caso, por exemplo – tenham sólida
formação jurídica e atuem, de fato, como profissionais do direito, mas
cujas vestes, linguagens e ações destoam do paradigma hegemônico,
fazendo com que até mesmo outras colegas da área jurídica e afins as
percebam “apenas” como feministas militantes, ou como estudiosas
“somente”. E isto, por si só, diz muito sobre como são representadas
socialmente as feministas que atuam no chamado feminismo jurídico
profissionalizado e as que atuam no feminismo jurídico popular, afi-
nal, não há nenhum membro de movimento social que esteja isento
de reproduzir preconceito ou imune ao caráter de classe, raça, etnia,
status institucional e/ou territorialidade que atravessa todo e qualquer
grupo, por mais transformadora ou radical que seja a sua “causa” ou
“bandeira”.

3 Visibilizando práticas de feminismo jurídico popular no


nordeste brasileiro
Seguindo a mesma esteira de outras reflexões sobre o tema publi-
cadas por mim anteriormente (SILVA, 2008; 2012; 2016; 2018; 2019),
este texto emerge de preocup(ações) que venho cultivando e mobi-
lizando ao longo de quase três décadas de ativismo feminista, quais
sejam: a defesa dos direitos das mulheres, a luta por políticas públicas
destinadas ao seu cumprimento e a ação crítica, criativa e transforma-
dora das próprias mulheres ante a inércia, omissão, violação ou insufi-
ciência estatal.
Destarte, do ponto de vista metodológico, e mais particular-
mente para fins de elaboração deste artigo, limitei-me a me debru-
çar, por meio da observação (nem sempre participante) e da análise

27
documental, sobre algumas ações levadas a cabo por dois grupos de
extensão e pesquisa vinculados a duas universidades públicas federais
sediadas no nordeste brasileiro, e por uma organização não-governa-
mental sediada na cidade de Salvador, Bahia; todas coordenadas e ar-
ticuladas por feministas de formação jurídica comprometidas com as
lutas em prol do acesso à justiça para as mulheres, conforme destaco
no quadro a seguir37:

37 A observação não participante se deu de variadas formas. Com relação às atividades da


ONG TamoJuntas, ocorreu através da presença física da autora deste texto (ou de outras
integrantes do Jusfemina), em algumas atividades públicas promovidas pela referida
entidade, isoladamente ou em parceira com outros coletivos ou instituições, bem como
por meio de análise crítica de vídeos disponíveis na internet contendo informações e/ou
manifestações de sua presidenta. Durante a pesquisa, buscou-se também manifestações
públicas de outras advogadas integrantes desta ONG, mas sem sucesso, posto que
somente estão disponíveis vídeos nos quais constam as falas da advogada presidenta. Com
relação à observação participante, ainda sobre as atividades desta ONG, merece destaque
a participação da autora deste texto, como palestrante e debatedora, no evento promovido
pelo projeto “Pegada Jurídica” em parceira com a TamoJuntas, denominado “I Workshop
Baiano de Direito das Mulheres na Política Brasileira: desafios, representatividade
e novas perspectivas”, ocorrido em 24 de setembro de 2018, num restaurante sediado
na capital baiana. No que tange às ações do Jusfemina, vale pontuar que a observação
sempre se deu em caráter participante, haja vista que a autora do presente texto é uma
das fundadoras/coordenadoras deste grupo de pesquisa e extensão e tem colaborado na
promoção de debates e atividades diversas com a presença de mulheres das camadas
populares, a exemplo das atividades do projeto de extensão “Diálogos Abertos: papo
e poesia sobre direitos humanos das mulheres”, implementado entre os anos de 2017
e 2019, com a colaboração de diversas pessoas, dentre elas a bolsista Ana Lúcia dos
Santos, estudante do Bacharelado em Gênero e Diversidade. Não houve possibilidades
de realização de observação participante ou não, das atividades do grupo Marias, dado
o fato de que este atua no estado do Pernambuco. Com relação à análise documental,
esta foi feita com base em diversos manifestos, textos, cartazes e outras publicações
disponibilizadas virtualmente pelos três grupos, isto é, pelo Grupo MARIAS (ligado
ao Centro de Referência em Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba,
e coordenado pela professora Tatyana Guimarães), pelo próprio Jusfemina (criado pela
autora deste texto e pela professora Sonia Jay Wright, ambas docentes do Departamento
de Estudos de Gênero e Feminismos da UFBA) e os documentos divulgados pela ONG
TamoJuntas (fundada pela advogada baiana Laina Crisóstomo) em suas respectivas
páginas no facebook e em notícias relacionadas a suas respectivas ações. O levantamento
documental, assim como as respectivas análises, foi realizado entre os meses de dezembro
de 2018 a julho de 2019, mas a pesquisa ainda está em fase de fechamento de relatório.

28
Quadro 2 – Expressões do Feminismo Jurídico Popular no Nordeste Brasileiro

Natureza do Ano de criação/


Nome Principais atividades
grupo localidade
TamoJuntas38 ONG 2016/Salvador/BA Orientação e acompanha-
mento jurídico de mulhe-
res, intervenção sociocultu-
ral com enfoque de gênero,
atividades de educação jurí-
dica não-formal.
MARIAS39 Grupo de 2014/UFBB Educação jurídica popu-
extensão e lar com enfoque de gêne-
pesquisa ro (formal e não-formal),
intervenção sociocultural,
produção de pesquisas femi-
nistas, orientação jurídica.
JUSFEMI- Grupo de 2015/UFBA Educação jurídica (formal e
NA40 extensão e não-formal) com enfoque de
pesquisa gênero, intervenção sociocul-
tural jusfeminista, produção
de pesquisas, colaboração téc-
nica para o aprimoramento de
políticas públicas, colabora-
ção em litígios estratégicos.
Fonte: elaboração da autora deste artigo

Os grupos acima mencionados, dado o seu caráter e proposições


interventivas, têm possibilitado, ainda que minimamente, um certo em-
poderamento jurídico feminino (SILVA, 2019), uma vez que discutem,
com lentes de gênero, os problemas relacionados ao acesso à justiça e ao
fenômeno jurídico como um todo; sem deixar de construir e socializar
saberes/fazeres sobre o tema ou de auxiliar no encaminhamento e/ou
acompanhamento de alguns casos, além de compartilhar informações
úteis ao fortalecimento da presença e da incidência político-jurídica fe-
minista no âmbito do Estado, especialmente no sistema de justiça.

38 Conferir página do TamoJuntas no facebook, disponível em https://www.facebook.


com/tamojuntas/Ou site oficial, disponível em http://www.tamojuntas.org.br/
39 Conferir página do grupo MARIAS no facebook, disponível em https://www.
facebook.com/pg/GrupoMariasGeneroEdPopularJustica/posts/?ref=page_internal
40 Conferir página do JUSFEMINA no facebook, disponível em: https://www.
facebook.com/advocacyfeminista/

29
Com base no exposto, e objetivando contribuir para o fortaleci-
mento da luta em prol dos direitos humanos das mulheres, no seio da
qual o direito de acesso à justiça cumpre um papel fundamental, apre-
sentarei, nas linhas que se seguem, algumas reflexões sobre as menciona-
das experiências de feminismo jurídico popular, pontuando não apenas
as inúmeras e importantes possibilidades de transformação da realida-
de mediante suas atividades de educação jurídica feminista e popular,
mas, de igual modo, suas inúmeras limitações, detectadas não somente
a partir das observações e análises documentais, mas de uma vivência e
experiência crítica que já soma mais de 20 anos de ativismo, docência e
prática político-profissional nesta seara.
Destacarei, portanto, a importância da existência, do reconheci-
mento e do fortalecimento das ações promovidas pelo feminismo jurí-
dico de um modo geral e pelo feminismo jurídico popular em particular,
sem olvidar, contudo, de advertir sobre a necessidade do exercício per-
manente de autocrítica e da vigilância para que alguns dos seus propósi-
tos não acabem servindo, ainda que de modo oblíquo e não intencional,
aos interesses e discursos neoliberais, notadamente aqueles que visam
justificar a redução ou substituição do Estado onde e quando a popula-
ção mais dele precisa.

4 Refletindo sobre possibilidades e limites da incidência do


feminismo jurídico popular
As ações desenvolvidas pelo feminismo jurídico popular, através
de coletivos, grupos de extensão ou organizações sociais dedicadas ao
alargamento da cidadania e à democratização do acesso à justiça para as
mulheres desprivilegiadas, contribuem, sobremaneira, para o fortaleci-
mento das lutas contra todas as formas de violência, opressão, exclusão
e discriminação baseada no gênero e em suas interseccionalidades, haja
vista que favorecem as diversas dimensões do empoderamento feminino
(COSTA, 2008), dentre elas, o empoderamento jurídico das inúmeras mu-
lheres que se vinculam ou se aproximam dos mais variados projetos, mas
não como usuárias, assistidas ou beneficiárias das ações desenvolvidas, e
sim como partícipes e, portanto, sujeitos de direito inseridas nas diver-
sas formas de participação e engajamento que estas iniciativas podem
proporcionar. Isto tudo ficou evidenciado através da observação e da

30
análise documental das experiências empíricas dos três grupos objeto
desta reflexão, cujas atividades merecem ser visibilizadas e divulgadas
de maneira ampla a fim de que possam servir de inspiração para outras
iniciativas que se desenham no mesmo sentido.
Após a apreciação crítica e detalhada das inúmeras ações realizadas
no âmbito do grupo Marias, do grupo Jusfemina e da ONG TamoJun-
tas, pude perceber o imenso compromisso e a constante preocupação
das três iniciativas para com a construção/aquisição de um certo capital
jurídico41 por parte das mulheres vinculadas a seus projetos, o que, indis-
cutivelmente, contribui, de maneira potente e extremamente útil, para
a compreensão e o enfrentamento das múltiplas formas de violência a
que estão expostas e que, na prática, vão desde as diversas manifestações
de violência interpessoal, perpetradas nas esferas públicas e privada –
consideradas reflexo da violência estrutural baseada no racismo, capita-
lismo e patriarcado – até a violência institucional, manifesta por meio
de práticas de revitimização tão comuns no cotidiano das mulheres que
buscam os serviços públicos de um modo geral e as estruturas que com-
põem o sistema de segurança pública e de justiça, em particular.
Neste sentido, vê-se que a maioria dos projetos e intervenções jurídi-
co-políticas das três experiências de feminismo jurídico popular apreciadas
neste texto são bastante pertinentes e potentes no sentido de evidenciar,
problematizar e buscar formas de enfrentamento e superação de tais pro-
blemáticas, haja vista que desvelam e desnaturalizam desigualdades e apon-
tam para formas individuais, mas sobretudo coletivas, de reação e ação.

41 Tenho utilizado o termo “capital jurídico”, sob inspiração de outras categorias


semelhantes adotadas por Pierre Bourdieu, tais como capital cultural, capital político,
capital simbólico, etc, para teorizar sobre o empoderamento jurídico das mulheres,
sobretudo quando pretendo me referir ao conjunto de saberes e fazeres compartilhados
e, sobretudo, monopolizados, por profissionais do campo jurídico, que, por si só,
mas não exclusivamente, contribuem para a manutenção do poder simbólico que, na
prática, legitima e naturaliza a dominação e a violência simbólica presente nas relações
sociais estabelecidas no mundo jurídico e nos sistemas de justiça. Ao propor ações de
democratização destes saberes, através da apropriação e transformação de seus conteúdos,
significados e práticas, o feminismo jurídico popular contribui, sobremaneira, para o
empoderamento das mulheres, sobretudo o empoderamento jurídico, capaz de permitir
uma maior e mais efetiva participação na luta em prol do acesso à justiça e da própria
construção da igualdade de gênero, a partir da gramática do direito e das possibilidades
que esta engendra na luta pela transformação social.

31
No entanto, faz-se necessário destacar e, sobretudo, admitir, que
também existem inúmeros limites no âmbito das intervenções do femi-
nismo jurídico popular de um modo geral e nas ações objeto desta aná-
lise, em particular, pois, conforme pude perceber, o foco das incidências
jurídico-políticas nem sempre tem se voltado para a exigência – direta,
explícita e radical – de políticas públicas de democratização do Direito
e, sobretudo, de acesso à justiça para as mulheres, em especial as mais
necessitadas, em cuja direção as ações estatais devem ser aprimoradas,
monitoradas e avaliadas permanentemente, inclusive através de órgãos e
sujeitos sociais externos ao sistema de justiça.
É importante fazer esta observação porque restou evidenciado, a
partir do escrutínio minucioso daquilo que foi amplamente divulgado pe-
los três grupos em apreço, que suas práticas têm se centrado, prioritaria-
mente, em intervenções públicas de natureza crítica acerca das desigual-
dades e violência de gênero, bem como em atividades de educação jurídica
feminista (formal ou informal) e, com menos frequência, em acompanha-
mento, pro bono42, de alguns processos judiciais de mulheres que se en-
contram em situação de violência, notadamente familiar43, sem nenhuma
menção a ações estratégicas, de natureza coletiva ou de cunho estrutural,
que tenham por objeto responsabilizar gestores e outros atores estatais
em virtude da omissão, da mora ou da própria inexistência de políticas
públicas de proteção ou promoção dos direitos humanos das mulheres.
Portanto, considero que, apesar da importância e inegável va-
lor político e cultural de todas as iniciativas observadas, é imperioso

42 O termo pro bono, da expressão latina “para o bem”, tem sido utilizado para se
referir a um tipo de advocacia cujo exercício tem suas origens em experiências
norte-americanas, depois adaptada para a América Latina, correspondendo a uma
prática de responsabilidade social, inclusive adotada por algumas empresas e corporações
advocatícias. No Brasil, tem sido majoritariamente exercida por advogados e advogadas
que não necessariamente são oriundos das camadas populares, vez que estes últimos
geralmente estão associados a projetos universitários de assessoria jurídica popular e
gratuita ou a redes de advogados populares, geralmente comprometidos com causas
que visam mudanças estruturais no seio da sociedade (CARDOSO, 2019). De todo
modo, até mesmo entre feministas, o termo às vezes é utilizado para se referir ao
acompanhamento gratuito de mulheres populares frente ao Judiciário.
43 O acompanhamento de mulheres no âmbito da justiça foi divulgado, principalmente,
pela organização TamoJuntas, dado ser este o seu objetivo principal, segundo noticiam
os documentos disponíveis na web.

32
reconhecer que as mesmas, por si só, não têm capacidade de atacar,
frontal e profundamente, o cerne da problemática principal, qual seja, a
escassez, inexistência ou insuficiência de políticas de democratização da
justiça, do direito e do acesso à justiça para as mulheres, cuja responsa-
bilidade maior é do Estado, pois a este compete, constitucionalmente, a
garantia dos direitos elementares das mulheres, dentre eles o de acesso
à justiça; cabendo à sociedade civil organizada, assim como aos grupos
de produção de conhecimento, exigir e controlar o cumprimento das
normas atinentes a tais direitos e, eventualmente, atuar como parceira,
mas nunca como substituta estatal neste aspecto.
Eis, portanto, o grande desafio dos feminismos em geral e do fe-
minismo jurídico em particular, sobretudo o popular, frente ao Estado,
pois todos sabem e compartilham do entendimento de que sem políticas
públicas de amplo alcance, inclusive territorial, voltadas ao atendimento
das demandas de todas as mulheres, porém com prioridade para as mais
vulnerabilizadas, não há como garantir seus direitos mais elementares,
especialmente o direito a uma vida livre de violência, cuja proteção, co-
bertura e atendimento, não há coletivo, grupo de extensão ou organi-
zação governamental que dê conta, dada a sua natureza jurídica e seus
limites de ordem financeira, estrutural e humana.
Vale pontuar, entretanto, que a observação acima não constitui
uma crítica desvalorativa ou desmerecedora da inestimável contribuição
que as ações dos três grupos estudados, assim como de tantos outros, ou
mesmo as iniciativas de advogadas (particulares ou vinculadas a ONGs)
têm garantido às mulheres que se encontram em situação de violência
de gênero em vários lugares deste imenso Brasil, inclusive evitando que
maiores e mais graves crimes sejam cometidos contra elas. Muito pelo
contrário, pois esta foi – e em certa medida ainda continua sendo – a
minha prática jurídico-política durante mais de 20 anos como advogada
feminista e popular que já atuou, inclusive como defensora dativa, na
defesa dos direitos das mulheres e pessoas lgbt, nos lugares mais recôn-
ditos e perigosos, a exemplo de algumas comarcas sediadas no interior
do Ceará e em tempos que sequer haviam leis como a Maria da Penha e
Lei do Feminicídio, por exemplo.
Trata-se, portanto, de uma constatação, analítico crítica, que
objetiva pontuar os inegáveis limites de toda e qualquer atuação

33
jurídico-política que se encaminhe exclusiva ou majoritariamente no
sentido de suprir a ausência ou a insuficiência estatal, notadamente em
termos de assistência, assessoria ou acompanhamento jurídico/judicial,
afinal, esta prática, se não for articulada com uma permanente atitude
crítica e com reiteradas cobranças, junto ao ministério público e a outras
esferas institucionais, nacionais e internacionais, visando a adoção de
medidas de responsabilização do Estado, pode acarretar muitas perdas
e frustrações, além de alimentar armadilhas que interessam ao projeto
neoliberal, dentre elas a exclusiva e irrefletida aposta no exercício da
advocacia pro bono, que, ao fim e ao cabo, não tem contribuído, de ma-
neira radical, para constranger o Estado a cumprir seus compromissos
constitucionais para com os direitos das mulheres, notadamente as mais
vulneráveis, nem tem possibilitado transformações profundas na espi-
nha dorsal do sistema, uma vez que o acesso à justiça precisa ser visto
e demandado, cada vez mais, como um direito fundamental inalienável
e inafastável (LUGARO, 2003), em face do qual o ente estatal tem o
dever de ser proativo na promoção de políticas públicas destinadas à sua
concretização.
No contexto mencionado, e em caso de identificação reiterada da
omissão ou insuficiência estatal, o ideal é que tais condutas sejam jurídi-
ca e politicamente responsabilizadas em âmbito doméstico ou interna-
cional, tudo à luz das normas internas ou supranacionais que garantem
às mulheres seus direitos mais elementares, a exemplo da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres-CEDAW e da Convenção de Belém do Pará, dentre outras44.
Eis também uma excelente oportunidade para se discutir as (in)tensas
e ambíguas relações entre sociedade civil e Estado, tomando por base as
inúmeras contribuições teóricas e experiências práticas dos feminismos
brasileiros e latino-americanos, cujas ações de advocacy, sobretudo atra-
vés de grupos de pressão, e em contextos históricos não tão distantes,
muito tem a nos ensinar (SILVA, WRIGHT, 2015). Neste particular,
é preciso lutar contra, ou até mesmo evitar, aquilo que o professor Boa-
ventura de Souza Santos (2009) chama de “desperdício da experiência”.

44 A exemplo das 100 regras de Brasília sobre o acesso à justiça das pessoas em
condição de vulnerabilidade. Cf. https://www.forumjustica.com.br/wp-content/
uploads/2011/10/100-Regras-de-Brasilia-versao-reduzida.pdf

34
Tecendo considerações finais
Este texto buscou refletir sobre o feminismo jurídico popular en-
quanto um conjunto de ações, percepções e proposições que visam con-
tribuir para a democratização do direito e a ampliação do acesso à justiça
para as mulheres, notadamente as oriundas das camadas populares e/ou
membros de grupos sociais historicamente excluídos e discriminados.
Buscou-se refletir sobre as inúmeras possibilidades de ação e sobre os li-
mites deste tipo específico de incidência político-jurídica no âmbito dos
sistemas de justiça, inferindo conclusões a partir da observação – nem
sempre participante – de três experiências concretas no contexto brasileiro.
A título de considerações finais, convém destacar e, sobretudo, rei-
terar que meu objetivo não foi negar a importância ou mesmo a neces-
sidade e possibilidade de se construir ações transformadoras no âmbito
do Direito ou do sistema de justiça a partir de iniciativas oriundas da
sociedade civil, notadamente do feminismo jurídico popular. Muito ao
contrário, pois minha intenção foi afirmar que tais iniciativas são suma-
mente importantes, diria até imprescindíveis, sobretudo para a construção
da consciência de gênero e para o exercício da cidadania das pessoas en-
volvidas, razão porque considero que se faz necessário avançar na luta em
favor de políticas públicas de acesso à justiça para as mulheres, uma vez
que, no meu entender, não há mais espaço, em pleno século XXI, para um
excessivo ou exclusivo foco em ações que, em períodos de Estado mínimo,
podem, mesmo que de modo não intencional, acabar contribuindo para a
defesa de substituição do papel do Estado naquilo que é dever do mesmo
ofertar, garantir e zelar, tal como o direito de acessar a Justiça e obter desta
os serviços e retornos necessários, sem barreiras ou limites de qualquer
natureza, independentemente da situação e da localização geográfica.
Em face do exposto, é possível afirmar que os feminismos de um
modo geral, e o feminismo jurídico em particular, têm muito a oferecer à
luta pela emancipação das mulheres, até porque este já é um fato abundan-
temente comprovado. No entanto, vale destacar que o feminismo jurídico
popular também tem contribuído, de maneira crítica e criativa, para o em-
poderamento jurídico feminino, em especial para as mulheres das camadas
populares e diversas, mas este ainda não é conhecido e reconhecido am-
pla e socialmente e tampouco tem sido objeto de reflexões teóricas com
vistas a contribuir com o seu aprimoramento. Eis porque é importante

35
desenvolver análises que coloquem em evidência as ações e percepções do
feminismo jurídico popular, conforme procurei fazer neste breve artigo.
Diante do que foi dito, e ainda que eu seja, assumidamente, uma
ativista apaixonada, além de entusiasta defensora do feminismo jurídico
popular, tenho, como pesquisadora, o dever de contribuir com reflexões
críticas que possam evitar a sua romantização. Eis porque fiz questão de
destacar não apenas suas imensas possibilidades, mas, sobretudo, os seus
diversos limites, pois entendo que quanto mais clareza se tenha acerca
daquilo que se está construindo, mais facilmente serão identificados os
enganos e equívocos, e mais rapidamente poderão ser aprimorados os
acertos, mediante releituras e/ou reconfigurações, tudo com vistas ao
aprofundamento da luta em prol dos direitos das mulheres e do alar-
gamento de sua cidadania, notadamente das que pelejam no interior e
na fronteira dos sistemas público de educação, de saúde, de segurança
pública, de justiça, dentre outros, aprimorando andanças, aprofundando
mudanças, articulando alianças “desde afuera, desde adentro y desde abajo”
(como dizem as feministas comunitárias bolivianas), mas sempre exi-
gindo do Estado aquilo que lhe compete, sem deixar de fazer, onde e
quando couber, aquilo que somente nossas mãos têm condições de plan-
tar: lutas, afetos, projetos, conquistas, ações, canções, mas sem perder a
ternura e muito menos o traquejo dum jeito de tensionar.

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38
Mercado GLS como espaço de consumo,
lazer e sociabilidade LGBT: visibilizando
produções acadêmicas

Luiz Braúna1
Benedito Medrado2

Resumo
Este trabalho visa apresentar resultados e leituras produzidas a
partir de uma revisão da literatura, realizada no contexto de uma dis-
sertação de mestrado, com vistas a localizar as produções, acadêmicas e
científicas, que abordem os espaços de consumo, lazer e sociabilidade,
destinados à população LGBT na cidade do Recife.

Introdução
Produzimos esta revisão de literatura, por meio da busca em al-
gumas bases de dados de indexação de dissertações e teses, conforme
apresentaremos sistematicamente nas páginas a seguir, descrevendo as
estratégias utilizadas e os resultados encontrados.
Para isso, adotamos algumas orientações relevantes. Para lo-
calizar as dissertações e teses, realizamos a pesquisa nas fontes de
armazenamento on-line disponibilizadas pelas duas universidades
federais do Estado de Pernambuco, conforme observamos no quadro
a seguir:

1 Assistente social; mestre em Psicologia e doutorando em Serviço Social pela UFPE;


pesquisador associado ao Gema/UFPE.
2 Psicólogo; doutor em Psicologia Social; docente dos cursos de graduação e
pós-graduação em Psicologia da UFPE e coordenador do Núcleo Feminista de
Pesquisas em Gênero e Masculinidades (Gema/UFPE).

39
Tipo de
Fonte Informações
Produção

O Repositório Institucional (RI) da Universidade


Federal de Pernambuco (UFPE) tem como missão
reunir, armazenar, preservar, divulgar e garantir o
Repositório acesso confiável e permanente à produção acadê-
Institucional mica e científica da Universidade, em um único
da UFPE local virtual.
Teses e Dis- Site: http://www.repositorio.ufpe.br/
sertações
BDTD UFRPE – Biblioteca Digital de Teses e
Biblioteca Di- Dissertações: reúne as publicações produzidas
gital de Teses pelos programas de Pós-Graduação da UFRPE
e Dissertações (Mestrado e Doutorado).
da UFRPE
Site: http://www.tede.ufrpe.br/

Sobre os termos definidos, utilizamos uma variedade de descrito-


res que nos auxiliaram na localização das produções esperadas com esse
exercício. Esses descritores correspondem a algumas das possíveis, no
âmbito da produção acadêmica, identidades sexuais não heterossexuais,
assim como termos (siglas) que circulam entre as nomeações relacio-
nadas ao movimento social e ao mercado voltado para essa população,
como apresentado neste quadro:

Identidades Sexuais Movimento Mercado

Gay LGBT GLS

Lésbica GLBT

Outras informações importantes: a) não definimos um período


específico com a intenção de ter um amplo acesso as publicações pro-
duzidas sobre essa temática nas universidades federais de Pernambuco;
b) definimos como estratégia, realizar a busca inicial pela leitura atenta
dos títulos, em seguida, a leitura dos resumos das publicações seleciona-
das, até que pudéssemos obter as dissertações e teses que se desenvolve-
ram na arena dos estudos sobre os espaços de sociabilidade destinados
à população LGBT.

40
No repositório da Universidade Federal de Pernambuco, os resul-
tados localizados foram: Gay3 – 567 (quinhentos e sessenta e sete) teses
e dissertações encontradas; Lésbica – 190 (cento e noventa); LGBT –
73 (setenta e três); GLBT – 20 (vinte); GLS4 – 81 (oitenta e uma) teses
e dissertações localizadas. Do total encontrado, realizamos uma leitura
atenta de cada título e selecionamos aqueles que possivelmente aborda-
riam a temática de nosso interesse.
Durante esse processo, percebemos alguns títulos duplicados em
cada descritor analisado, como também títulos repetidos entre os des-
critores, pela possibilidade de, em um único trabalho, encontrarmos
diferentes formas de nomear essa população. Desse modo, os títulos
selecionados por meio dos descritores das identidades sexuais contem-
plaram aqueles que apareceram (novamente) no quantitativo total dos
descritores relacionados ao movimento e mercado, se configurando as-
sim: das 567 publicações localizadas com o descritor “gay”, selecionamos
18 (dezoito) para a leitura dos resumos, e dos 190 do descritor “lésbica”
selecionamos 09 (nove).
Com a leitura dos resumos, selecionamos 06 (seis) publicações
localizadas com o descritor “gay” e 01 (uma) com o descritor “lésbi-
ca”. Conclusão, localizamos 07 (sete) teses e dissertações produzidas na
Universidade Federal de Pernambuco que compõem os estudos sobre os
espaços de sociabilidade voltados à população LGBT.
Já na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Universidade Fe-
deral Rural de Pernambuco, utilizei todos os descritores para localizar as
teses e dissertações sobre a temática. Apenas o descritor “gay” apresentou
01 (um) resultado que, após a leitura do título e do resumo, foi selecionado
para compor o material esperado com o exercício da revisão de literatura.

3 Na realização da revisão, notamos que o quantitativo de teses e dissertações


encontradas nos sites pesquisados, não diferiram se eram escritos no singular ou plural,
maiúsculo ou minúsculo.
4 Segundo França (2006), o surgimento do termo na década de 1990 é correlato ao
aparecimento de um mercado direcionado a um público específico. A autora relaciona a
categoria a “uma espécie de tradução da ideia norte-americana de friendly, o S da sigla
indica ‘simpatizantes’, numa intenção de expandir as fronteiras do ‘gueto’, abarcando
também consumidores que não se identificam como homossexuais, mas que, de alguma
forma, participam desse universo” (p. 2).

41
Ao fim, o levantamento gerou o encontro com 08 (oito) produções
científicas – uma tese e sete dissertações – desenvolvidas em diferentes
programas de pós-graduação das universidades federais do Estado de
Pernambuco. Acerca das áreas de conhecimento desses trabalhos: a tese
encontrada no repositório da UFPE é da área de Geografia e as disser-
tações são três da Psicologia, duas da Antropologia e uma da Sociologia;
já na UFRPE, a dissertação encontrada corresponde à área de História.
Produzidas no período de 2006 a 2015, essas produções científicas,
de distintos campos do saber, compõem a área mais ampla das Ciências
Humanas e Sociais e contribuem para o desenvolvimento de diferentes
abordagens e, certamente, dão sentidos diferenciados, que dialogam en-
tre si nos estudos sobre os espaços de sociabilidade GLS. Apresentamos
abaixo, uma síntese dos resultados de nosso levantamento:

TIPO DE ÁREA DE ANO DE


PRODUÇÃO CONHECIMENTO PUBLICAÇÃO

Tese Geografia 2015

Psicologia 2014

Antropologia 2013

UFPE Psicologia 2010


Dissertação
Psicologia 2009

Antropologia 2008

Sociologia 2006

UFRPE Dissertação História 2011

Visibilizando as publicações localizadas por meio dessa revisão de


literatura, apresentaremos algumas informações relevantes para contex-
tualizá-las e permitir uma melhor compreensão de suas abordagens na
arena da temática aqui estudada.
Essas produções consideram os espaços de sociabilidade como ce-
nário para a interlocução com os sujeitos de pesquisa e/ou como parte
produtora das subjetividades daqueles que circulam por eles. É nesse
contexto que essas produções dialogam com o estudo desenvolvido na

42
dissertação de mestrado referenciada, assim como nesse trabalho, por
permitir compreender a dinamicidade presente nesses lugares, como
também as relações estabelecidas entre os sujeitos frequentadores e suas
percepções sobre a vida cotidiana. Encontrarmo-nos com essas produ-
ções foi como (re)conhecer diferentes ritmos musicais que ecoam nas
noites em festa pela cidade do Recife.
A partir da leitura aprofundada de todos esses trabalhos acadêmi-
co-científicos, produziremos a nossa contribuição, apresentando alguns
apontamentos e reflexões sobre os estudos acerca dos espaços de consu-
mo, lazer e sociabilidade voltados à população LGBT.
A primeira dissertação encontrada nessa revisão, produzida na
UFPE, não versava sobre o contexto recifense. “Olhares que se cruzam,
fronteiras que se erguem: A sociabilidade em Tambaú-João Pessoa/PB” é o
título da dissertação de Anne Gabriele Lima Sousa, publicada em 2006
e vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE.
Essa dissertação lança olhar para o comportamento social urbano con-
temporâneo, por meio da percepção dos tipos de fronteiras simbólicas
construídos pelas complexas interações sociais presentes no cotidiano
de lazer em Tambaú, bairro nobre e de grande visibilidade da cidade
de João Pessoa/Paraíba. As relações estabelecidas pelos diferentes gru-
pos no campo da sociabilidade, do qual Tambaú é palco, foram perce-
bidas a partir dos processos de diferenciação social responsáveis pela
inclusão ou exclusão de indivíduos nos círculos sociais que permeiam
os espaços do bairro. Considera a cidade contemporânea como um lócus
de fronteiras, onde proximidade espacial e distância social se cruzam,
norteando classificações e hierarquizações. A partir de observações so-
bre sua dinâmica social e das narrativas de seus frequentadores, Tambaú
é apresentado a partir dos diferentes estilos de vida que se revelam no
seu interior, manifestando valores, reafirmando identidades e reforçando
hábitos inerentes a trajetórias culturais peculiares.
Dois anos depois, em 2008, a dissertação publicada no Programa
de Antropologia, intitulada “Viver a dois é uma arte? Um estudo antro-
pológico da homoconjugalidade masculina na Região Metropolitana”, de
Anderson Vicente da Silva, teve por objetivo compreender os aspectos
da vida cotidiana a dois, que os homossexuais da Região Metropolita-
na de Recife constroem em suas relações. Buscou analisar como esses

43
homossexuais veem o reconhecimento social dessa relação, a partir das
interações que estabelecem com os vizinhos, amigos e familiares; e, pre-
tendeu compreender os arranjos cotidianos e de sociabilidade empre-
endidos pelos homossexuais na constituição de relações conjugais entre
pessoas do mesmo sexo.
Em 2009 foi publicada a dissertação, vinculada ao Programa de
Psicologia da UFPE, produzida por Epitácio Nunes de Souza Neto, in-
titulada: “Entre boys e frangos: análise das performances de gênero dos homens
que se prostituem em Recife”. Buscou analisar as vivências da prostituição
masculina, tendo como base uma pesquisa etnográfica realizada no prin-
cipal território de prostituição masculina do centro do Recife, tanto nos
espaços públicos (ruas, avenidas e praças) como nos privados (boates,
saunas e clubes privados). Por meio da observação participante, conver-
sas informais e entrevistas com “boys de programa” e outros atores, pro-
curou compreender o fenômeno da prostituição; reconstruir os processos
históricos e psicossociais que levaram os homens investigados ao enga-
jamento no trabalho sexual; analisar o processo de construção dos papéis
de gênero na perspectiva dos boys de programa e verificar quais fatores
(idades, performance de gênero, raça/cor, fontes privilegiadas de prazer
corporal etc.) encontram-se envolvidos no negócio do sexo.
Em 2010, a dissertação intitulada “É tudo psicológico/dinheiro/pruuu
e fica logo duro!: desejo, excitação e prazer entre boys de programa com práti-
cas homossexuais em Recife” foi publicada no Programa de Psicologia da
UFPE, sob autoria de Normando José Queiroz Viana. Nesse trabalho
ele se propôs a analisar os sentidos e práticas relacionadas às categorias
desejo, excitação e prazer nas vivências da prostituição masculina no
centro urbano do Recife a partir de uma pesquisa etnográfica – observa-
ção participante, conversas informais e entrevistas semiestruturadas de
caráter biográfico – com os “boys de programa” (denominação local uti-
lizada para referir aos homens que prestam serviços sexuais comerciais a
outros homens). Para isso, o autor descreve e analisa os cenários públicos
(ruas, avenidas e praças) e privados (estabelecimentos comerciais) onde
essas transações sexuais comerciais se iniciam.
Em 2011, foi publicada a dissertação de mestrado vinculada ao
Programa de Pós-Graduação em História da UFRPE produzida por
Sandro José da Silva, intitulada: “Quando ser gay era uma novidade:

44
aspectos da homossexualidade masculina na cidade do Recife na década de
1970”. Trata-se de uma investigação e reflexão histórica sobre a homos-
sexualidade masculina na cidade do Recife na década de 1970. Buscou
compreender historicamente a construção da subjetividade do sujeito
“gay” na época, averiguando as produções jornalísticas, a associação en-
tre a emergência do gay e o ideal de modernidade e consumo, assim
como compreender os processos em que os discursos e práticas teciam a
nova identidade homossexual, como também o trabalho dos movimen-
tos sociais, do mercado de consumo e da imprensa.
Publicada em 2013 no Programa de Pós-Graduação em Antropo-
logia da UFPE, a dissertação intitulada: “Travestilidades: incursões sobre
envelhecimento a partir das trajetórias de vida de travestis da cidade do Re-
cife”, de Cícera Glaudiane Holanda Costa, teve como perspectiva con-
tribuir para a discussão dos processos de construção das travestilidades,
assim como refletir sobre questões que problematizam a representação
do corpo, do gênero e da sexualidade no cotidiano. Procurando conhecer
os significados atribuídos pelos travestis ao processo de envelhecimento,
a partir de suas experiências, a pesquisadora enveredou pelo bairro da
Boa Vista, na cidade do Recife, percebendo esse espaço como um lugar
representativo da sociabilidade da população LGBT, como também, por
esse bairro incorporar boates, bares, esquinas e a casa em que ocorrem as
reuniões da AMOTRANS – Articulação e Movimento para Travestis e
Transexuais de Pernambuco –, com a finalidade de localizar, nesses luga-
res, as travestis que estavam vivenciando o processo de envelhecimento.
Já em 2014, é publicada a dissertação de autoria de Roberta Vales-
ca Mota Santana, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Psico-
logia da UFPE, intitulada: “Entre a regulação e a subversão: o assumir-se
enquanto um paradoxo da identidade homossexual”, analisa fragmentos de
histórias de vida de homens jovens com práticas homossexuais, na pers-
pectiva de compreender o modo como constroem suas subjetividades na
interface com o estigma às homossexualidades, ainda bastante eloquente
na sociedade brasileira. Buscou apreender os sentidos atribuídos às ex-
periências de desejar e/ou ter práticas sexuais com pessoas do mesmo
sexo; conhecer os percursos nos circuitos de sociabilidade homossexual
da cidade do Recife e, compreender como a estigmatização às homosse-
xualidades tem afetado homens com práticas homossexuais.

45
Por fim, em 2015 é publicada a tese intitulada “A juventude nos en-
redos da cidade, da cultura e do lazer: panis et circenses no ‘país de Mossoró’?”,
vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFPE, de
autoria de Jamilson Azevedo Soares. Teve como objeto de estudo, as
transformações espaciais contemporâneas na cidade de Mossoró e seus
desdobramentos no contexto da juventude local. A tese se propôs com-
preender a dinâmica territorial e as relações que as integram, com maior
ou menor intensidade, ao movimento do capital e do consumo, revelan-
do-se como espaços múltiplos, plurais e multidimensionais, como pro-
duto das experiências e vivências de seus atores em conformidade com a
lógica que norteia sua organização espacial.

Algumas considerações
A partir da leitura das dissertações e teses, especialmente, dos(as)
autores(as) e argumentos que esses trabalhos desenvolvem, construímos
algumas importantes considerações sobre esse tema.
O mercado GLS ascendeu no cenário brasileiro, a partir dos anos
1990, em conjunto com as estratégias de “visibilidade positiva”5, com
efeitos sociais e políticos, engendradas pelo Movimento GLBT (na
época) que favoreceram à população de lésbicas, gays, bissexuais, tra-
vestis e transexuais o compartilhamento de modos de vida e a cons-
trução de subjetividade coletiva nos grandes centros das cidades bra-
sileiras6. Principalmente no que diz respeito aos investimentos em um
mercado de consumo que destina suas atividades à promoção de lazer

5 Segundo Regina Facchini (2011, p. 194), “entre as diversas contribuições do movimento


LGBT para a cidadania dessa “população”, talvez, a que mais se destaque no período mais
recente, é a “visibilidade positiva”, não só pelo que significa em termos de rompimento de
estigmas e de redução das vulnerabilidades individuais e sociais de sujeitos LGBT, mas pelo
papel que isso tem em dar cara e corpo a um sujeito político complexo”.
6 Isadora Lins França, em sua dissertação de mestrado, publicada em 2006, afirma
que “os estudos que se dedicavam a analisar espaços de sociabilidade vinculados à
homossexualidade encontravam como locais privilegiados de pesquisa as grandes
cidades, nas quais parecia fervilhar uma ‘vivência homossexual’ intensa. A escolha
não fora por acaso: o espaço urbano parecia ser o cenário ideal para que muitos
homossexuais se beneficiassem da proteção que zonas marcadas de sociabilidade
ofereciam e encontrassem seus pares em meio à variedade de opções de lazer. Nesse
contexto, a noção de ‘gueto’ parecia cair como uma luva para o cenário dos espaços de
sociabilidade” (p. 32).

46
e sociabilidade a essa população, modificando o cenário de exclusão,
possibilitando o acesso a esses serviços, mediante relações econômicas.
A visibilidade da homossexualidade é incrementada também pelo
processo de segmentação de mercado, que se torna presente para
todos os grupos sociais: do mesmo jeito que temos a criação de pro-
dutos de beleza para peles negras, programas de lazer, turismo e cur-
sos para a “terceira idade”, acompanhamos também o crescimento
de um segmento de casas noturnas, bares, revistas, companhias de
turismo e de mídia voltados para o público então designado pelos
atores do mercado como “GLS”. Isso tem um impacto grande, por-
que apesar de, nas análises, distinguirmos o que é sociedade civil,
mobilizada e organizada e o que é o mercado, esses limites se tor-
nam menos identificáveis no cotidiano: tanto o movimento clamava
por “visibilidade positiva” da homossexualidade, quanto os donos de
empreendimentos comerciais faziam concretamente certa forma de
visibilidade ao identificarem casas, revistas e sites com símbolos co-
nhecidos da diversidade sexual (FACCHINI, 2011, p. 193).
As restrições impostas pela sociedade que relegaram os sujeitos
homossexuais à exclusão e marginalidade contribuíram para que esses
sujeitos criassem laços de identidade, redes de sociabilidade, geralmente
ligadas aos espaços urbanos, pelo consequente crescimento das cidades,
e produzissem traços marcantes de uma cultura gay. Júlio Simões e Re-
gina Facchini (2009) salientam a notória expansão e diversificação do
chamado “gueto7” homossexual:
Não foram apenas saunas, bares, discotecas e casas noturnas que se
multiplicaram em número e em variedade de formatos, estilos e ser-
viços. A internet é hoje um importantíssimo espaço para busca de
parceiros, trocas, sociabilidade, discussões políticas e comunicação,
com suas salas de bate-papo, suas listas de discussão e seus inúmeros
e variados portais e páginas dirigidos às múltiplas manifestações das
homossexualidades. Apareceram também revistas, jornais, editoras,

7 A noção de “gueto” aqui apreendida é utilizada no sentido defendido por França (2006,
p. 33), como uma proposta de enfatizar um ”espaço de sociabilidade e a constituição de
um sentimento de “comunidade”, ao invés de representar um território que delimita de
forma tão clara a circulação dos que com ele se identificam”.

47
agências de turismo e de namoro voltados ao público homossexual,
assim como eventos culturais variados de celebração da diversidade.
Nas paradas, essa exibição exuberante e sedutora do universo LGBT
assume a forma de uma visibilidade em massa, potencializando-se,
desse modo, como meio de angariar solidariedade social (p. 18-19).
Os espaços de consumo, lazer e sociabilidade, frequentados por
sujeitos homossexuais, foram essenciais para a constituição das identi-
dades sexuais não hegemônicas (BUTLER, 2012) e a organização social
desses indivíduos. Por volta da década de 1970, quando o movimento
homossexual brasileiro começa a dar seus primeiros passos, alguns rela-
tos literários (SIMÕES; FACCHINI, 2009; FRANÇA, 2006) eviden-
ciam, na cidade de São Paulo, o caminhar desses sujeitos nos espaços
reservados de sociabilidade homossexual – bares, festas, assembleias e
reuniões –, mobilizando-se pela construção da identidade homossexual,
problematizando e buscando uma organização mais ampla e descentra-
lizada pelo país.
O “gueto” começava a se ampliar por meio da crescente abertura
de espaços de consumo, lazer e sociabilidade. De acordo com Edward
MacRae (1990), a inauguração desses estabelecimentos representava
uma vitória política em prol da causa dos homossexuais, ao mesmo tem-
po em que, havia alguns impasses por parte do movimento que estabe-
lecia duras críticas a essa inserção social, pautada na lógica do consumo.
No Recife, a experiência foi bem aproximada da conjuntura paulistana,
como afirma Souza Neto (2009):
O movimento homossexual abriu caminhos às novas possibilida-
des de práticas, vivências e construções de diferentes identidades
no campo da sexualidade pernambucana. O modelo heterossexista,
pautado na bipolaridade masculino/feminino, tornou-se insuficiente
e defasado para explicar e/ou abranger uma gama de “novas” catego-
rias e identidades emergentes. Os espaços de sociabilidade homos-
sexual foram se firmando no centro da cidade e o espaço geográfico
recifense começou a ser redesenhado para acomodar e atender a uma
demanda de desejos, experiências e práticas sexuais (p. 28).
A abertura de um mercado que ampliou as possibilidades de con-
sumo é aqui referido, não apenas como cenário, mas também como

48
produtor de subjetividades e categorias de identidade. O Mercado GLS,
conforme Isadora Lins França (2012b), contribui para a produção de
sujeitos, de diferentes categorias, em torno da homossexualidade e faz
circular referências e imagens identitárias acerca dos possíveis estilos de
vida, favorecendo a construção e reforço de identidades coletivas8 que
servem de referência para a atuação do movimento social.
A afirmação de uma identidade positiva é personificada na ideia
do “orgulho”. “O compartilhamento de identidades sexuais e o traba-
lho com um público que é alvo de preconceitos aproximam militância
e mercado”, favorecem este a ganhar teor político no combate à dis-
criminação e o preconceito (FRANÇA, 2012b, p. 230). Essa fortifica-
da relação entre o movimento e a emergência de espaços privados que
permitissem a sociabilidade desses sujeitos contribuiu para a produção
de novas expressões estéticas, materiais e simbólicas, que passaram a
corresponder aos estilos de vida dos sujeitos homossexuais em sua plu-
ralidade9. Segundo França,
os espaços de consumo e sociabilidade passam a incorporar, em certa
medida, elementos dos discursos ativista do orgulho e da visibilida-
de, explicitando o seu direcionamento a um público de orientação
sexual determinada e compartilhando alguns símbolos com o Mo-
vimento LGBT, como é o caso da bandeira do arco-íris, que passa a
ser comum em lugares “GLS” e em muitas atividades do movimento
(2012b, p.230).

8 As identidades coletivas aqui serão tomadas a partir de duas posições, como defendem
Frederico Machado e Marco Prado (2005, p. 38): 1) formas de significação de uma dada
realidade social, a qual impede a uniformidade e a homogeneidade das interpretações
sobre a sociedade; e 2) estratégia da organização da ação coletiva, tal como a construção
de alianças, laços de solidariedade e pertença entre os indivíduos engajados na mesma
ação. O que significa considerarmos a identidade coletiva um processo social de
constituição de um conjunto de valores e ações capazes de criar formas de pertença
grupal e de criação e sustentação de sentidos da realidade social.
9 Em conformidade com Mónica Franch (2012, p. 71-72), “a metáfora das cores do
arco-íris faz parte da estratégia de luta política, que buscou retirar a homossexualidade do
campo das patologias, substituindo as representações negativas desse fenômeno por uma
celebração da diversidade sexual. Ao escolher o arco-íris como símbolo emblemático do
movimento, o mundo straight passaria a ser representado em preto e branco, dicotômico,
entediante e cinzento, contrastando com as cores vívidas dos alegres gays, das travestis
e dragqueens, entre outras várias maneiras de conjugar desejos, atitudes e identidades”.

49
Essas circunstâncias passaram a envolver um jogo de interesse que
favoreceu ambas as partes, em certa medida: de um lado encontramos
um grupo de sujeitos políticos interessados em serem reconhecidos
como cidadãos e terem seus direitos garantidos, de outro, aquelas que,
além de contribuírem para uma visibilidade positiva dessa população,
visualizavam a promissora lucratividade proveniente da ocupação desses
sujeitos (consumidores) em seus espaços:
As relações entre os grupos ou associações homossexuais e o merca-
do passaram a envolver interesses que tendem a ser convergentes, de
modo que, aqueles que apresentam determinados atributos identifi-
cáveis por tal ou qual denominação passem a utilizá-la preferencial-
mente para se identificar como cidadãos e consumidores. Neste caso,
é possível falar de uma influência mútua, que pode atingir graus va-
riados em diferentes situações. É bastante frequente que jornalistas,
escritores, artistas e promotores de eventos que atuam no mercado
segmentado voltado ao público homossexual identifiquem-se com
as modernas categorias de identidade homossexual e reconheçam
suas atividades atuais como formas de colaborar para a emancipação
dos homossexuais, elevar sua autoestima e fortalecer sua “subcultura”
(SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 149).
Importante pontuar que falamos de um serviço privado, com fins
lucrativos, que privilegia um grupo específico dentro de um grupo maior
excluído socialmente, que tem a possibilidade de frequentar esses espaços.
Portanto, os conhecimentos produzidos nesse trabalho não têm a preten-
são de representar o todo, de fazer jus à experiência de toda a população
LGBT. Nesses termos, afirmamos que, por conta das limitações acadêmi-
cas, visibilizaremos a vivência desse grupo, também marcado por inter-
secções de orientação sexual, identidade de gênero, classe, geração e raça.
Importa-nos pensar o que pode favorecer (ou não) a esses sujeitos
ter uma certa condição econômica. Percebemos como aspecto positi-
vo esses espaços oportunizarem a convivência entre os gays, lésbicas e
simpatizantes: “a convivência com outros contribui bastante para que se
sintam mais assegurados, que suas sexualidades são expressões normais
[...], que está inserido em um meio que lhe apoia a viver sua sexualidade
de forma livre” (SANTANA, 2014, p. 78).

50
Ao mesmo tempo, negativamente, a restrição econômica do acesso
e, consequentemente, a exclusão de determinados sujeitos das experiên-
cias de sociabilidade nesses espaços são marcas da sociedade capitalista,
que impossibilitam a frequência de alguns, por não gozarem de con-
dições financeiras favoráveis, enfatizando a concepção de que, através
do acesso ao mercado e consumo, os sujeitos, as identidades e os estilos
de vida ligados às homossexualidades são produzidos e reconhecidos
socialmente.
Então, convencionamos nomeá-los como espaços de consumo, la-
zer e sociabilidade, por compreendermos que esses oferecem variadas
formas de lazer noturno (por meio dos ambientes, serviços e músicas
oferecidas para atrair o público), permitindo que relacionem entre si e
com o espaço, por afinidades demarcadas em relação à orientação sexual,
performance de gênero, desejos e práticas afetivas e sexuais determi-
nadas, a depender do espaço. Constitui-se, pois, um mercado mediado
pelas práticas de consumo, reafirmando os distanciamentos sociais (de
geração, cor/raça, classe e outro marcadores) entre aqueles que podem
consumir e os que não. Então, a promoção desses espaços está aprisio-
nada aos artifícios do capital, de modo que, faz-se necessário problema-
tizar os acordos e tensões em negociação nessas relações.
Nas principais cidades brasileiras, esses espaços estão localizados
nos centros urbanos, fenômeno que, segundo Jamilson Azevedo Soares
(2015), ocorreu por conta da era moderna contemporânea, responsá-
vel pela reconfiguração dos sentidos socialmente atribuídos aos espaços
públicos, que passaram a dar vazão a uma sociabilidade mediada pelas
práticas de consumo. Esses centros, geralmente concentram, durante o
dia, boa parte das atividades administrativas e comerciais, e, à noite,
“risadas, brincadeiras, gritos e curras, (invadem as ruas) e as transversais
(SOUZA NETO, 2009, p. 26)”; são tomados pela circulação dos grupos
segmentados socialmente que se libertam por entre os mais diversos
espaços de sociabilidade.
Assim, diferentes sentidos são atribuídos a esses centros, como ve-
remos a partir das reflexões de Normando Viana (2010):
Ao atribuir aos centros das cidades, sobretudo os grandes centros ur-
banos, diferentes sentidos, entre os quais aqueles que os identificam
como lugar de encontro, descoberta do novo, da aventura, meio do

51
caminho, ausência e perda de referência, me pego a pensar que pos-
sivelmente essa perda, ou melhor, essa falta, parece possibilitar aos
sujeitos que ali transitam alternativas distintas para o experienciar de
suas existências. Nesse sentido, não seria obra do acaso considerar
que, no âmbito da sexualidade, os centros urbanos sejam reconheci-
dos como espaço predileto para a “caça” de parceiros sexuais, talvez
pelo fato dessas pessoas não estarem ligadas a esses territórios por
laços familiares e/ou, exclusivamente, financeiros. Sendo assim, (a cir-
culação dos mais diversos sujeitos) corroboram para a identificação
dos centros urbanos como lócus propício para a “imoralidade” (p. 37).
A ocupação desses espaços imprime, nos sujeitos frequentadores,
aspectos que contribuem na construção das performances e subjetivida-
des à medida que as limitações geográficas e os sentidos coletivamente
atribuídos transferem àqueles que o circulam, significados e sentidos
apropriados e transformados em um modo próprio de viver e existir
(VIANA, 2010). As trocas interacionais estabelecidas imprimem uma
dinâmica particular, compartilhada pelos valores culturais diversos que
ali circulam, determinando a inclusão e exclusão de determinados in-
divíduos, a depender de sua identificação com o estilo coletivo. Como
podemos verificar nas reflexões de Anne Gabriele Sousa (2006):
Estes universos permitiram uma aproximação entre iguais, ou se-
melhantes, possibilitando-lhes um tipo de interação baseada em
práticas sociais, laços pessoais e marcas de uso e significado que per-
meiam formações societárias peculiares. As diversas formas de socia-
bilidade que agregam indivíduos em segmentos sociais específicos,
colocando em evidência diferenças culturais, estilos e valores sociais
específicos, encontram maior visibilidade nas práticas de lazer nos
espaços urbanos. As modalidades de lazer na cidade se situam, nesta
perspectiva, como oportunidade dos indivíduos urbanos exercitarem
suas regras de reconhecimento e identificação para com seus seme-
lhantes, processo que garante a manutenção da rede de sociabilidade
(p. 47).
A respeito desses espaços, na dissertação de mestrado referendada,
nos dedicamos exclusivamente aos bares e boates que, compartilhando
as afirmações de Sandro da Silva (2011), são ambientes que, além de

52
favorecem a visibilidade desses sujeitos, são aceitos e legitimados social-
mente, pela dinâmica estabelecida e pela possibilidade de pessoas das
mais diversas identidades sexuais os frequentarem:
Em grande medida, foi uma das estratégias empregadas pelos gru-
pos militantes, de integração em todos os ambientes passíveis de
visibilidade e moralmente aceitos. Além disso, ao contrário de deter-
minados lugares como parques, ruas, becos e cinemas onde a “pega-
ção” acontecia, mas possuíam os estigmas da clandestinidade e pro-
miscuidade. Em alguns bares (e boates), pelo contrário a convivência
com demonstrações de afetos entre homens pareciam sofrer menos
hostilidade. Tanto os bares, como as discotecas [...] eram espaços
onde o “coming out of the closed” se concretizava por representar, mes-
mo que no âmbito privado, a possibilidade de expressar a sexuali-
dade de maneira menos estigmatizada e clandestina, na frente de
outros indivíduos que não eram homossexuais (p. 182).
No que concerne ao mercado, continuaremos fazendo referência
ao termo GLS – gays, lésbicas e simpatizantes –, conforme as indicações
de Isadora Lins França (2006), por entendermos que esses espaços des-
tinam suas atividades, tanto para a vivência expressiva de gays e lésbicas,
como para aqueles que não se identificam com essas identidades sexuais,
mas se sentem à vontade em frequentar esses espaços, constituindo-se a
letra “S” (simpatizante) da sigla. Em nossa concepção, isso se configura
como uma estratégia do mercado de consumo de não limitar o público
consumidor e permitir a todos que desejarem usufruir das festas e dos
modos de vida homossexual que o façam.
É também perceptível, ao longo dos últimos anos, não apenas um
crescente investimento nesse mercado, mas uma diversificação dos am-
bientes e das atrações oferecidas, que implicam na diversidade do pú-
blico frequentador. Assim como, o intensivo investimento em diferentes
bens, produtos e serviços exclusivos à população LGBT, como bem ob-
serva França (2012a):
No que concerne ao mercado relacionado à homossexualidade, não
se verificam apenas um aumento do número de estabelecimentos
que compunham o antigo “gueto” e uma nova profusão de cate-
gorias de identidade, mas também a transformação mais incisiva

53
em direção à diversificação de iniciativas comerciais conectadas aos
seus respectivos públicos, maior visibilidade e ocupação mais varia-
da no espaço urbano (p. 18).
Desses investimentos empreendidos pelo mercado GLS, nosso
estudo se dedica aos tradicionais espaços de sociabilidade privados, os
bares e boates, que, ao longo da constituição do Movimento LGBT
Brasileiro, foi cenário e agenciador de subjetividades dos sujeitos que os
frequentavam, desde a década de 1970, como temos registro nas produ-
ções acadêmicas aqui apresentadas sobre a temática.
Com relação ao público frequentador, de forma geral, os referen-
ciamos enquanto sujeitos LGBT – lésbicas, gays, bissexuais, travestis
e transexuais –, com a finalidade de respeitar as identidades sexuais
e de gênero e ultrapassar as limitações determinadas pela sigla GLS.
Reconhecendo que as diversas letras frequentam esses ambientes, mes-
mo não tendo tanta visibilidade e atenção nesse mercado, ou não os
perceberem enquanto passíveis de sua sociabilização. Isto nos permite
refletir que o público também está em constante agenciamento com
esses espaços, seja frequentando, ignorando ou não se limitando exclu-
sivamente a conviverem neles, possibilitando circular pelos mais diver-
sos lugares.
Nesse contexto, é preciso refletir a lógica imposta pelo mercado, de
que os gays e lésbicas são consumidores em potencial e “possuem uma
vida noturna mais assídua” (SILVA, 2008, p. 124), e a concepção desses
espaços como um direcionamento para o reconhecimento e visibilidade
social. Portanto, o mercado GLS, além de contribuir para a construção
das identidades e empatia entre os LGBT contemporâneos, agencia e
ratifica outros marcadores de diferença construídos socialmente, que,
por vezes, incluem, excluem e/ou marginalizam esses sujeitos.
Assim, este texto considera como fundamental, compreender e
produzir versões de histórias pouco visíveis de conformação dos espaços
de consumo, lazer e sociabilidade que, atualmente, compõem o circuito
GLS do centro da cidade do Recife, com a pretensão de entender as
motivações e trajetórias que os consolidaram, assim como problematizar
a relação, os acordos e tensões entre mercado e sociabilidade destinados
à população LGBT.

54
Bibliografia
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 4. ed.
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de Federal de Pernambuco, Recife, 2010.

56
O programa mulheres mil no IFMA:
uma proposta de inclusão produtiva e
educacional na voz das egressas

Patrícia Damasceno1
Gema Galgani Silveira Leite Esmeraldo2

Resumo
O presente artigo investiga a política pública de formação pro-
fissional – o Programa Mulheres Mil (PMM) – oferecido no Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Estado do Maranhão,
campus Timon, no período de 2012 a 2014. O objetivo do PMM é pro-
mover a qualificação profissional de mulheres da zona urbana e rural
para a inserção no mundo do trabalho e incentivá-las à elevação da es-
colaridade. Ao se refletir sobre esta pretensão, presente em seu texto ofi-
cial, é necessário problematizar: até que ponto a formação profissional
oferecida pelo PMM garante ou não a inserção das mulheres egressas
no mercado de trabalho sob o comando do capital? Ao garantir, qual o
tipo de inserção nesse mercado? Houve aumento da escolaridade após
a conclusão dos cursos oferecidos pelo Programa? A análise dos dados
apontou que a formação profissional não é suficiente para a inclusão no
mercado de trabalho e quando esta inclusão se efetiva contempla apenas
uma ocupação em trabalhos simplórios, desregulamentados e precariza-
dos, reforçando os interesses da lógica do capital e os ditames do Banco
Mundial para as políticas focalizadas. Quanto ao incentivo à elevação da
escolaridade, destaca-se o (re) ingresso à educação formal de uma parce-
la significativa das egressas do PMM. Os achados revelam ainda que a
educação pode ser um caminho e a escola um lócus de problematização
e desconstrução das desigualdades entre homens e mulheres.
1 Mestra em Avaliação de Políticas Públicas junto ao Programa de Pós-graduação em
Avaliação de Políticas Públicas (MAPP) da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza. Brasil.
2 Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. Fortaleza. Brasil. Professora
nos Programas de Pós-Graduação em Avaliação de Políticas Públicas (MAPP) e Programa
de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA) da UFC.

57
Introdução
O Programa Mulheres Mil (PMM), desenvolvido na Rede Fede-
ral de Educação Tecnológica do Brasil, é uma política pública de for-
mação profissional, implantada no ano de 2011, no primeiro mandato
presidencial de Dilma Rousseff (2011-2014). O mesmo vislumbra uma
qualificação profissional para a inserção no mercado de trabalho e o
estímulo à educação formal de mulheres em situação de vulnerabilidade
social. Sendo o PMM de amplitude nacional, o Estado do Maranhão
se configura como campo exequível para seu desenvolvimento, uma vez
que ofereceu turmas desde o ano de 2009, ainda como projeto piloto.
Esse artigo traz reflexões sobre a experiência desenvolvida no Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA) –
Campus Timon3 – nos anos 2012 a 2014.
O Programa Mulheres Mil faz parte das ações do Plano Brasil
Sem Miséria (PBSM), articulado com a meta de erradicação da pobreza
extrema. Foi instituído pela Portaria do MEC nº 1.015, do dia 21 julho
de 2011 e integra um conjunto de ações que consolidam as políticas
públicas e diretrizes governamentais de inclusão educacional, social e
produtiva de mulheres em situação de vulnerabilidade e está alinhado
a um conjunto de prioridades das políticas públicas e das diretrizes da
política externa do Governo Brasileiro, entre elas o alcance do projeto
Metas Educativas 2021, promovido pela Organização dos Estados Ibe-
ro-Americanos (OEI) e aprovado pelos chefes de Estados e Governos
dos países membros, em dezembro de 2010.
O referido programa é uma iniciativa do Ministério da Educação,
desenvolvido através da Secretaria Nacional de Educação Tecnológica
(SETEC), como instituição coordenadora do PMM, com amplitude
nacional. Nas esferas locais, são os Institutos Federais de Educação,
Ciência e Tecnologia os responsáveis por sua execução. Na esfera na-
cional, pretende oferecer as bases de uma política social de inclusão a
mulheres em situação de vulnerabilidade social, por meio do acesso à
educação profissional, ao emprego e à renda. Também propõe estimu-
lar a inclusão educacional, produtiva e social de mulheres em situação

3 A partir deste ponto, em todo o trabalho, sempre que nos referirmos ao IFMA, será
ao campus de Timon.

58
de vulnerabilidade, mediante distintas vias: acesso à Educação Pro-
fissional e Tecnológica; oferta de cursos de programas de Educação
Profissional e Tecnológica, com incentivo à elevação da escolaridade e
formação cidadã; articulação de mecanismos e conexões para a inser-
ção das egressas no mundo do trabalho, estimulando o empreendedo-
rismo, as formas associativas solidárias e a empregabilidade (BRASIL,
2011a).
No IFMA, já foram ofertados, através do Programa Mulheres Mil,
os cursos nas modalidades: costureira, cuidadora de idoso e aplicadora
de revestimento cerâmico, totalizando 05 turmas, com 165 mulheres
concludentes. A finalidade é oferecer formação profissional, com possi-
bilidade de acesso a emprego e renda, às mulheres em situação de vulne-
rabilidade social da cidade de Timon/MA, nela compreendidas as zonas
urbana e rural.
Este artigo traz reflexões sobre como as ações do Programa vêm
se efetivando na vida das egressas, no que diz respeito à sua inserção,
permanência e êxito no mercado de trabalho, considerando a conjun-
tura sociopolítica e econômica em que o PMM foi criado e executado
no país, bem como os avanços do nível de escolaridade das egressas
do programa. O PMM foi analisado a partir do rigor do pensamento
marxista para compreender o sujeito como um ser histórico e social,
visto que permite o estudo da realidade em seu movimento, analisando
as partes em constante relação com a totalidade, considerando o seu
movimento dialético, a partir da premissa de que tudo está em constante
transformação. Nesse sentido, consideramos as percepções dos sujeitos
sobre o PMM, mas sem perder de vista o contexto político, econômico e
social. Além disso, observamos seu nascedouro inserido no capitalismo
contemporâneo marcado pela política neoliberal, pelos ciclos de ajustes
econômicos e pelas dinâmicas de um programa educacional para a for-
mação de uma classe menos favorecida no contexto da divisão social e
sexual do trabalho.
Por entendermos que o PMM está inserido no contexto de um
conjunto de políticas sociais que visam à qualificação para o trabalho,
abordaremos, inicialmente, a conjuntura macroeconômica e política do
Brasil em que foi implantado o PMM.

59
Políticas públicas no contexto do capitalismo contemporâneo: a
questão das políticas de educação profissional para mulheres
A problematização macroeconômica e política do Brasil visa com-
preender o papel do Estado na promoção das políticas sociais no âm-
bito da Educação Profissional, as transformações e reestruturação do
modelo capitalista de produção que, ao longo do tempo, se reorganizou
com o neoliberalismo, incutindo na Educação um propósito ideológico
e pragmático direcionado a uma qualificação que atenda aos interesses
do capital. Além da influência de organismos internacionais nessas po-
líticas de qualificação profissional com ênfase em segmentos específicos
da sociedade, dentre eles, as mulheres.
Com a crise estrutural do capital, em meados da década de 1970,
ocorre, no centro dinâmico do sistema mundial do capital, um processo
de reestruturação capitalista que atinge diversas instâncias do ser social.
No Brasil, os passos iniciais para a reestruturação produtiva foram da-
dos nos anos 1980. Segundo Antunes (2006), ocorreram os primeiros
impulsos da reestruturação produtiva, que levaram as empresas a adotar
novos padrões organizacionais e tecnológicos. Iniciou-se o emprego da
informatização produtiva e do just-in-time – a produção baseada nos
programas de qualidade total e a ampliação do processo de difusão da
microeletrônica. No bojo desse processo sócio-histórico, surge o com-
plexo de reestruturação produtiva que atinge o mundo do trabalho orga-
nizado (ALVES, 2009), este denominado de toyotismo e caracterizado
como novo complexo de reestruturação produtiva.
A reestruturação produtiva se intensificou na década de 1990 nos
governos Collor (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (1995-
1998; 1999-2002), em que “a intensificação da concorrência e a prolife-
ração dos valores de mercado contribuíram para a adoção de uma nova
forma de exploração da força de trabalho e de organização da produ-
ção capitalista no Brasil” (ALVES, 2009, p. 189). A opção pelo projeto
neoliberal nos governos supracitados assume uma posição para a libe-
ralização indiscriminada da economia nacional, na busca de inserção no
movimento de mundialização do capital, com a hegemonia do capital fi-
nanceiro e abertura econômica, articulando as relações de intensificação
e precarização do trabalho com a expansão do setor de serviços privados
e privatizações de empresas estatais.

60
Segundo Silva e Yazbek (2012, p. 17), essa nova realidade, conso-
lidada nas duas gestões do governo FHC, passa a demandar a adoção
de estratégias de racionalização, com consequente impacto sobre o tra-
balho, aprofundamento da precarização e maior heterogeneidade nas
formas de inserção e remuneração da mão de obra e consequente eleva-
ção do desemprego, sendo adotada uma política de controle de inflação
substanciada no Plano Real.
Como resultado desse processo, há o desmonte de políticas sociais
básicas, tais como saúde e educação e a perda do seu caráter universal, pois
o que impera nesse contexto é a ordem mercadológica. Cresce o desem-
prego e a desregulamentação da legislação trabalhista, o que acarreta o
aumento da população em situação de pobreza. Era necessário se debru-
çar para o enfrentamento das expressões do que se denominou questão
social, que se origina das contradições inerentes ao processo de exploração
estabelecido na relação capital x trabalho, considerando que “a sociedade
corre o risco de explodir devido às novas tensões sociais que são a conse-
quência de uma industrialização selvagem” (CASTEL, 2013, p.41).
Todas essas mudanças na economia, na produção, nas relações po-
líticas e sociais implicaram diretamente no perfil de trabalhador que
seria exigido a partir de então. A adaptação às inovações tecnológicas
nas indústrias e no comércio e a criação de mais postos de trabalho de-
mandaram uma qualificação da força de trabalho. Desse modo, o toyo-
tismo, que surgiu com o advento da reestruturação produtiva, requer um
profissional capaz de se adaptar às relações de trabalho flexíveis e propõe
formas de intensificação do trabalho a partir de expressões como “qua-
lificação e empregabilidade legitimando a transformação educacional
que ocorre no mundo capitalista de forma a atender às exigências do
mercado e responsabilizando cada indivíduo pelo fracasso ou êxito na
vida profissional” (MARQUES, 2016, p.69).
Nesse cenário, vale destacar o trabalho feminino diante da flexi-
bilização do mercado de trabalho, pois as mulheres estão inseridas em
empregos de tempo parcial que podem ser compatibilizados com os tra-
balhos domésticos e, como mão de obra secundária, aceitam salários
inferiores e relações de trabalho precárias.
Essas mudanças no âmbito da economia, política e relações sociais
revelam a lógica contraditória do toyotismo e suas implicações objetivas

61
e subjetivas no tocante à qualificação da força de trabalho que dá con-
teúdo à formação profissional. Dessa forma, é importante desmistificar
a ideia de qualificação profissional que está articulada à proposta do
PMM, desvelando como parte de um projeto neoliberal que segue os di-
tames dos organismos internacionais, como o Banco Mundial. Na seara
da qualificação para o mundo do trabalho, transfere-se para o indivíduo
sua capacidade de se qualificar e manter-se atraente ao mercado de tra-
balho. Na tentativa de ilustrar essa constatação, apresentamos o conceito
de empregabilidade, que se configura como a nova tradução do capital
humano sob o capitalismo global, em que a educação tem um papel
econômico vinculado ao desenvolvimento social das forças produtivas
do Brasil.
O discurso da empregabilidade se alia ao discurso da qualificação
profissional, atribuindo o desemprego à desqualificação profissional,
configurando, assim, sua função ideológica, atribuindo ao trabalhador
sua condição de desempregado devido à falta de empregabilidade, e não
porque há um percentual de desempregados inerente e funcional ao de-
senvolvimento capitalista que prima por uma produção de mercadorias
centrada na lógica da financeirização e que gera desemprego estrutural
e formas de trabalho cada vez mais precarizadas e informais.
Nesse contexto de desestruturação das relações de trabalho, apro-
fundadas pelo desemprego estrutural, evidencia-se o viés ideológico do
auto emprego denominado de empreendedorismo, como forma de in-
cluir os trabalhadores que estão fora do mercado de trabalho, dissemi-
nando a ideia de que os trabalhadores podem encontrar novas formas de
aquisição de renda sendo donos do próprio negócio e atuando de forma
autônoma.
Nessa perspectiva, a noção de empreendedorismo ganha expressão
nas propostas governamentais de geração de emprego e renda, como
observado no PMM quando traz em seus objetivos “capacitar as edu-
candas para o exercício do empreendedorismo como oportunidade de
melhor desempenho no mundo produtivo” (BRASIL, 2014, p. 26). As-
sim, o campo da educação profissional é direcionado à reestruturação
produtiva, contribuindo para o aparato ideológico do empreendedoris-
mo e qualificação profissional, reduzindo-se aos interesses do capital na
retomada do crescimento da taxa de acumulação de lucros.

62
As políticas de geração de emprego e renda, a exemplo do PMM,
surgiram como novas possibilidades de sobrevivência para enorme par-
cela da população brasileira que compõe a superpopulação relativa. São
políticas que conformam a reatualização de formas precárias de tra-
balho e constituem o auto emprego, colocando a responsabilidade no
indivíduo por sua situação de desempregado, mas com a aparência de
liberdade aos trabalhadores, que podem conquistar autonomia ou não,
supostamente, submetendo-se à subsunção real ao capital.
O governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2006;
2007-2010) é marcado por grande expectativa em torno de mudanças
no âmbito das políticas sociais no Brasil e pensava-se numa redefinição
ou ruptura com as políticas neoliberais. Porém é oportuno frisar que,
mesmo com uma aura popular, o governo Lula fez amplas concessões
para os setores patronais, especificamente para os segmentos vinculados
ao capital rentista. Para Guerra e Carvalho (2016), nos últimos vinte e
cinco anos, o Brasil revela-se como um Estado ajustador, com efetiva in-
tervenção nos processos de acumulação e valorização do capital, a gerar
formas restritas de inserção das massas pauperizadas via mecanismos e
estratégias de enfrentamento da pobreza. Dessa forma, os dois man-
datos do governo Lula não romperam com o neoliberalismo, mas pro-
moveram reformas no âmbito das políticas sociais que não superaram a
exploração enraizada na sociabilidade do capital.
No que tange à educação profissional, as diretrizes do Banco Mun-
dial indicam o estreitamento de laços do ensino com o setor produtivo,
fomentando os vínculos entre setor público e setor privado como estra-
tégia de base para a meta de qualidade e eficiência no treinamento pro-
fissional (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2002). Ainda no
início do Governo Lula, a reconstrução da política pública para a edu-
cação profissional é indicada no documento publicado pela SETEC,
intitulado ‘Políticas Públicas para a Educação Profissional e Tecnoló-
gica’. No ínterim desta reforma, houve a expansão da Rede Federal de
Educação Tecnológica, que se institucionalizou por meio da criação, em
2008, dos Institutos Federais de Educação Profissional e Tecnológica,
criados pela Lei Federal nº 11.892, de 29/12/2008 (BRASIL, 2008).
Em 2009, a SETEC expandiu o Programa Mulheres Mil como uma
experiência-piloto, visando transformá-lo em uma política pública a ser

63
implementada em todos os Institutos Federais de Educação, Ciência e
Tecnologia do país. Em meio a este cenário, o PMM, no governo Dilma
Rousseff (2011-2014), foi instituído como política pública, expandin-
do-o para todos os Estados brasileiros. A abordagem do PMM requer
considerar o contexto do desemprego estrutural e recessão econômica
vivenciada na sociabilidade do capital, contexto este que influencia o
modelo de educação proposto e o perfil do trabalhador que deve ser
formado para o mercado de trabalho.
Assim como no governo anterior, no governo Dilma também se
observa a influência das orientações internacionais em relação à educa-
ção e ao trabalho nos planos governamentais, como por exemplo, na pu-
blicação do Plano Brasil Sem Miséria, instituído pelo Decreto nº 7.492
de 02/06/2011. Este plano tinha por objetivo elevar a renda per capita da
população em situação de extrema pobreza, ampliar o acesso aos serviços
públicos e propiciar o acesso da população pobre às oportunidades de
ocupação e renda, por meio de ações de inclusão produtiva (BRASIL,
2011). No campo educacional, a inclusão produtiva descrita no PBSM
dá-se por meio de programas específicos, como o PMM.
De acordo com Shiroma, Moraes e Evangelista (2002), o Banco
Mundial adotou as discussões da Conferência Internacional de Educa-
ção para Todos, e a partir delas, elaborou suas diretrizes para as décadas
subsequentes, justificando o financiamento com fundos públicos para
o nível básico com maior atenção à equidade, ao atendimento às mu-
lheres, aos pobres, dentre outras minorias. Nota-se que os programas e
ações educacionais voltados para as mulheres são formas compensató-
rias para aliviar as possíveis tensões no setor social e inseri-las no mer-
cado consumidor. É nessa dimensão que se observa as imposições do
Banco Mundial para as políticas públicas voltadas para o gênero.
O ano de 2016 marca o processo de impeachment da presidente
Dilma Rousseff e o país passa a ser governado por Michel Temer, que,
através do seu plano de governo Ponte para o Futuro, aponta para o
desenvolvimento de frentes, organicamente vinculadas, que bem encar-
nam elementos do seu projeto conservador: privatização e cortes dos
chamados gastos sociais, com a destituição de direitos e desmonte de
políticas sociais. Nessa conjuntura, a continuidade de políticas públicas
de combate à pobreza é ameaçada com as novas determinações adotadas

64
na macroeconomia. Sendo assim, é inegável que as reestruturações em
curso seguem na direção de restrição de programas sociais.
Considera-se importante neste trabalho questionar como a crise
atual está impactando a execução do PMM, uma política pública volta-
da para as mulheres. Os dados analisados se referem até o ano de 2016.
De acordo com a SETEC4 (2017), o PMM já ofereceu, em todo o País,
mais de 100 mil vagas para mulheres em situação de vulnerabilidade
socioeconômica. O projeto piloto, aplicado entre 2009 e 2010, teve 348
matrículas. De 2011 a 2013, o programa nacional, como proposto na
portaria, teve cerca de 38,4 mil matrículas.
Avaliar um programa por sua dimensão quantitativa não é nos-
so objetivo central. Nesse sentido, este artigo se debruça a seguir num
diálogo com a categoria de gênero e divisão sexual do trabalho para dar
fundamento analítico a essa política.

O programa mulheres mil e suas bases argumentativas


Discutir gênero, neste trabalho, é de fundamental importância
para a compreensão de como se constitui as assimetrias de gênero, bem
como para fornecer subsídios para o entendimento, tanto na produção
de mudanças nos papéis desempenhados pelas mulheres no mundo do
trabalho como as desigualdades de gênero no contexto da formação
profissional. A definição de gênero aqui adotada é a de Scott (1990),
que a considera como elemento constitutivo de relações sociais baseada
nas diferenças percebidas entre os sexos e como uma forma primária de
dar significado às relações de poder. Por se tomar como objeto de estudo
um programa voltado para mulheres que, do ponto de vista oficial, visa
a atender também aos anseios da luta feminina por inserção social, acre-
ditamos na importância de se compreender como o PMM incorpora as
questões de gênero numa visão de superação das assimetrias entre sexo/
gênero na qualificação para o mercado de trabalho, ou se ele reforça os
papéis construídos historicamente para as mulheres.
As relações de gênero são também relações de poder, nas quais as
“hierarquias de gênero são construídas e legitimadas” (SCOTT, 1994,

4 Reportagem extraída do endereço http://www.brasil.gov.br/educacao/2017/02/


mulheres-mil-oferece-100-mil-oportunidades-de-capacitacao. Acesso em 02 de maio
de 2017.

65
p. 16). A autora enfatiza ainda, os significados dos discursos, destacan-
do a sua variedade e natureza política, particularmente “a respeito de
como os significados subjetivos e coletivos de homens e mulheres como
categorias de identidade foram construídos” (SCOTT, 1994. p. 16); ou
seja, como esses significados variáveis e contraditórios são construídos
e atribuídos à diferença sexual. Falar de gênero é, pois, referir-se “ao
discurso da diferença sexual” que implica instituições, estruturas, prá-
ticas e discursos que constituem as relações sociais e relações de poder
no contexto do gênero. Partir do pressuposto que relações assimétricas
entre as mulheres e os homens geram relações de dominação e opressão
nas sociedades permite visualizar a forma como a desigualdade entre os
gêneros tem sido construída ao longo dos tempos.
As desigualdades de gênero também são ratificadas pelo patriar-
calismo, sistema no qual a subordinação e a opressão das mulheres são
entendidas como algo natural. Segundo Saffioti (2004), o patriarcado
torna-se um regime que dá direitos sexuais aos homens sobre as mulhe-
res praticamente sem restrição, configurando-se num tipo hierárquico
de relação que invade todos os espaços da sociedade e representa uma
estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência. A
autora complementa que, para a produção e reprodução diária da vida,
haja uma economia domesticamente organizada que sustenta a ordem
patriarcal, pois às imagens construídas pelo feminino e o masculino cor-
responde certa divisão social do trabalho conhecido como divisão sexual
do trabalho, na medida em que ela se faz obedecendo ao critério sexo.
O conceito de divisão sexual do trabalho surgiu na França, no iní-
cio dos anos 1970, sob o impulso do movimento feminista. Para Hirata;
Kergoat (2007, p. 599), a divisão sexual do trabalho é a forma de divisão
do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo. Ela tem por
características a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva,
e das mulheres, à esfera reprodutiva, e, simultaneamente, a apreensão
pelos homens das funções de forte valor social agregado.
Para as autoras, era preciso ir além desse entendimento comum so-
bre divisão social do trabalho, por isso propuseram dois princípios para
a divisão sexual do trabalho. Um deles estuda a distribuição diferencial
de homens e mulheres no mercado de trabalho, nos ofícios e nas profis-
sões; o outro analisa como essa distribuição se associa à divisão desigual

66
do trabalho. O princípio de separação e o princípio de hierarquia: o
primeiro separa o que é trabalho de homens e de mulheres; o segundo
considera que o trabalho dos homens vale mais do que o das mulheres
(HIRATA; KERGOAT, 2007). Dessa maneira, a divisão sexual do tra-
balho, como aspecto da divisão social do trabalho, contém fortemente a
dimensão dominação/exploração.
Safffioti (1987, 2004) enfatiza que, na dimensão dominação/ex-
ploração, está contida a fusão patriarcado-racismo-capitalismo que uni-
fica três ordens: gênero-raça/etnia/classe social, num movimento que
sintetiza esse processo de dominação/exploração. Sob essas prerrogati-
vas, percebemos que a sociedade capitalista utiliza e reforça o conteúdo
presente no patriarcado e nas desigualdades construídas social e histo-
ricamente entre homens e mulheres, incorporando em sua dinâmica de
produção e reprodução da vida social.
Os movimentos de mulheres e os movimentos feministas, enquan-
to sujeitos políticos, tiveram um papel fundamental nos anos de 1980 e
1990, quando, no debate sobre os direitos das mulheres imersas na ques-
tão de gênero, propuseram e articularam políticas públicas nas diversas
áreas (saúde, educação, assistência social, trabalho, etc.) que consolida-
ram mecanismos de visibilidade, garantia de direitos, autonomia e for-
talecimento das mulheres nos espaços públicos e privados da sociedade
brasileira.
No âmbito das políticas públicas para mulheres, vale destacar as
mudanças e conquistas da mulher nos governos Lula (2003-2006 e
2007-2010) e Dilma Rousseff (2011-2014 e 2015-2016), no país. No
ano de 2003, o então presidente Lula criou a Secretaria de Políticas para
as Mulheres (SPM), por meio da Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003
(BRASIL, 2003), fundada com a missão de erradicar todas as formas
de desigualdade que atingem as mulheres. Por outro lado, no governo
Temer (2016-2018), sob o argumento de enxugar ministérios, editou-se
a Medida Provisória nº 726 de 12 de maio de 2016, que dispõe sobre
a reforma ministerial do novo governo, reduzindo de 32 para 23 o nú-
mero de ministérios. A medida extinguiu dentre outros ministérios o
das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. As ques-
tões relativas às mulheres, igualdade racial e direitos humanos passaram
para o Ministério da Justiça e Cidadania. A extinção de um Ministério

67
considerado fundamental para a visibilidade e garantia dos direitos de
minorias é considerada pelos movimentos sociais como um retrocesso.
Carvalho (2016) aponta que o governo Temer desenvolveu frentes, or-
ganicamente vinculadas, que bem encarnam elementos do seu projeto
conservador: privatização e cortes dos chamados gastos sociais com a
destituição de direitos e desmonte de políticas sociais.
No âmbito de diretrizes norteadoras para políticas públicas para as
mulheres, destacamos o último plano em vigor instituído nos governos
Lula e Dilma, o Plano Nacional de Políticas para Mulheres (PNPM) –
adotadas pelos governos federal, estaduais e municipais, bem como pelos
movimentos sociais, como um instrumento de trabalho (BRASIL, 2004).
A última edição do PNPM (2013-2015) destacava o Programa
Nacional Mulheres Mil como fundamental no enfrentamento da desi-
gualdade de gênero no país, para combater a desigual divisão sexual do
trabalho e auxiliar na diminuição da pobreza, promovendo maior par-
ticipação feminina no desenvolvimento nacional, enfatizando nos dois
primeiros capítulos a garantia à autonomia econômica das mulheres
por meio da oferta de cursos de capacitação e a ampliação da oferta de
cursos de profissionalização articulados com elevação de escolaridade,
especialmente para mulheres em situação de vulnerabilidade social.
Nesse sentido, pode-se inferir que a luta por políticas públicas, sua
implementação e o controle social dessas políticas podem ser, também,
locus de crítica, reação e resistência ao capitalismo, ao patriarcado e ao
racismo, principalmente no atual governo, que visa excluir as políticas de
gênero conquistadas nos últimos treze anos dos governos Lula e Dilma
Rousseff.

Caracterização do Programa Mulheres Mil no


IFMA – Campus Timon
Importa-nos, para este trabalho, fazer uma reflexão sobre o con-
texto em que o PMM foi desenvolvido, aquele em que os agentes, cuja
ação, às vezes negligenciada no âmbito da elaboração das políticas pú-
blicas, tem o desafio de reinventar e reinterpretar uma política que foi
formatada para todo o país.
Timon é um dos 217 municípios do Estado do Maranhão, locali-
zado a 450 km da capital São Luís, na microrregião do leste maranhense,

68
com limites da cidade de Caxias, Matões e Teresina, capital do Piauí.
Possui uma área de 1.764,610 km² e uma população de 155.460 habi-
tantes, dos quais 79.899 são mulheres (IBGE, 2010).
De acordo com o Sistema de Informação de Gênero (SNIG), a
partir do Censo Demográfico (2010), a contribuição das mulheres no
rendimento familiar em Timon apresenta o valor médio de R$ 510,00,
e do homem branco, a média se concentra em torno de R$ 722,00. Estes
dados revelam uma assimetria historicamente marcada pelo sexo/gêne-
ro. A taxa de mulheres com 16 anos ou mais e rendimentos de até um
salário mínimo corresponde a 49,6%, e das mulheres com a mesma faixa
de idade, sem rendimento, 30,6%. No que diz respeito à ocupação por
ramo de atividade, tem-se os seguintes percentuais: 2,9% na agricultura,
5,4% na indústria e 91,7% nos serviços. Assim, verifica-se que a concen-
tração de mulheres no setor de serviços se destaca em Timon, revelando
que as mulheres se concentram em setores marcados pela divisão social
do trabalho, com tempos de trabalhos parciais, de forma a contemplar
tanto o desempenho profissional quanto o doméstico.
A formação profissional das mulheres no PMM é conduzida pelo
Catálogo Nacional de Cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC),
elaborado pelo MEC e suas características são, principalmente, a baixa
carga horária, sendo a maioria de 160 horas. Esse fato indica a neces-
sidade de formação de mão de obra para o trabalho simples, com o
intuito de propiciar saberes utilitaristas, e não saberes complexos, tendo
em vista as modificações tecnológicas do mundo do trabalho. Diante
deste dado, ressalta-se a importância do debate sobre o tipo de inserção
profissional e a elevação da escolaridade como objetivos do Programa.
Como na proposta nacional do PMM não há uma definição de
quais cursos devem ser ofertados, percebe-se que a coordenação do Pro-
grama no IFMA em parceria com a Prefeitura de Timon, levou em
consideração questões de ordem administrativa (recursos humanos e
materiais, infraestrutura) e que os cursos de costureira ofertados partem
de uma concepção patriarcal sobre as atribuições historicamente impos-
tas às mulheres através de cursos que estão enquadrados na hierarquia
produtiva como trabalho simples, de baixa visibilidade, conciliados com
as obrigações domésticas, ou seja, qualificadas para adquirir uma renda
sem sair de casa. Contudo, o relatório de gestão (2014) enfatizou “várias

69
alunas foram convidadas a participar de um teste em uma grande fábri-
ca de roupas em Timon e, conforme o desempenho, foram contratadas
cinco egressas.”.
É válido acentuar o curso de Revestimento Cerâmico que, embora
se apresentando fora do rol de cursos tipicamente femininos, pode, mui-
tas vezes, por suas características ditas “femininas”, fazer com que deter-
minada área do mercado passe a utilizar mão de obra feminina. No caso
específico, características como delicadeza, olhar detalhista, zelo e ou-
tras, tipicamente enxergadas como femininas (ABRAMO e ABREU,
1998), podem ser a causa e a justificativa para essa inserção feminina
em um mercado tradicionalmente masculino. Apenas 02 (duas) egressas
do curso de Revestimento Cerâmico trabalham na área, evidenciando a
divisão sexual do trabalho.
Hirata (2007, p. 599), ao abordar a organização social do trabalho,
considera que:
a divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social
decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um
fator prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos.
Essa forma é modulada histórica e socialmente. Tem como carac-
terísticas a designação prioritária dos homens à esfera produtiva, e
das mulheres, à esfera reprodutiva, e, simultaneamente, a apropriação
pelos homens das funções com maior valor social adicionado (polí-
ticos, religiosos, militares etc.).
Apesar da inclusão parcial, na esfera pública, a maioria das mulheres
desenvolve atividades análogas às que realizam na esfera doméstica. É
o caso do ingresso da mulher no mercado de trabalho desempenhando
atividades que refletem o trabalho que, tradicionalmente, realiza no lar, ou
seja, tarefas que, em geral, representam uma projeção social do trabalho
doméstico e privado. Assim, a construção da mulher no contexto do mo-
delo hegemônico – do mundo produtivo e reprodutivo – se dá mediante
uma construção social sexuada, na qual homens e mulheres que traba-
lham são, desde o núcleo familiar ao espaço escolar, diferentemente carac-
terizados e preparados para assumir seus postos no mercado de trabalho.
O Plano de Trabalho do ano de 2013 do Programa Mulheres Mil
do IFMA traçou como meta qualificar 100 mulheres nos cursos de

70
Costureira e Aplicadora de Revestimento Cerâmico e que as mulheres
capacitadas fossem capazes de criar as pontes necessárias para incremen-
tar o seu potencial produtivo, promover a melhoria das condições de suas
vidas, das suas famílias, das suas comunidades e do seu crescimento eco-
nômico sustentável, contribuindo assim para a inclusão social e o pleno
exercício da cidadania. Contudo, compreendemos nas narrativas que o
interesse de cada mulher formada foi determinante para essas mudanças
e que as ações organizadas pela instituição para encaminhamento ao
mercado de trabalho foram insuficientes, sendo registrada apenas uma
parceria com empresa do ramo têxtil na turma de costureira, ano 2014.
Articular mecanismos e conexões para a inclusão das egressas no mer-
cado de trabalho ainda é um objetivo a ser alcançado em sua totalidade.
De acordo com o relatório de gestão, houve uma grande procura
pelos cursos do Programa Mulheres Mil no ano de 2013. Para o curso
de Revestimento Cerâmico, a oferta foi de 30 (trinta) vagas e 72 (setenta
e duas) candidatas inscritas e para as 02 (duas) turmas de Costureira,
no total de 70 (setenta) vagas, se inscreveram 383 (trezentos e oitenta
e três) candidatas, totalizando 455 (quatrocentos e cinquenta e cinco)
inscrições para as três turmas. Esse dado evidencia uma demanda sig-
nificativa em relação às vagas que está associada ao anseio do ingresso
ao mercado de trabalho, conforme relato de uma das egressas entrevis-
tadas: “Estava desempregada, me identifiquei com o curso, queria vol-
tar a trabalhar, me aprimorar e ter mais aprendizado como profissional.
Hoje trabalho como costureira em uma fábrica da cidade” (M16). No
que diz respeito à turma do curso de Costureira 2014, os depoimentos
das egressas trazem efeitos positivos de cunhos profissional e pessoal
do PMM: “Foi uma aprendizagem muito boa para a minha vida, me
ajudou a aprimorar as coisas. Aprendi a lidar com o computador, falar
em público” (M5) e “Eu me identifiquei com o curso porque já gostava
da área da saúde. Consegui entender melhor as coisas no meu trabalho
ver de forma diferente as coisas ligadas a saber ouvir, não tomar atitudes
sem pensar” (M7).

O PMM pela via do trabalho e educação


Na análise do eixo temático inserção profissional proposta pelo
Programa, questionou-se nas entrevistas se, após a qualificação realizada

71
no PMM/Campus Timon, as mulheres conseguiram se inserir no mer-
cado de trabalho e de que forma. Os dados forneceram os níveis de ocu-
pação das mulheres entrevistadas e identificou-se que as áreas de maior
incidência de trabalho feminino se concentram em atividade do setor
de serviços e que estes postos de trabalho são considerados tradicional-
mente femininos, restringindo seu campo de atuação profissional. Ou-
tro fator revelado é o desemprego feminino que pode está relacionado
à flexibilização do mundo do trabalho a partir de contratos por tempo
determinado e jornadas de trabalho parciais que se justificam também
como um modelo de conciliação de divisão sexual do trabalho em que as
mulheres conciliam a vida profissional com a vida familiar.
O Relatório Anual da Organização das Nações Unidas (ONU)
– ONU Mulheres (2015) indica que a taxa de desemprego das mulhe-
res, no Brasil, é bastante acentuada. Corresponde a cerca de duas vezes
maior que a dos homens, uma diferença que aumenta quando se compa-
ram homens brancos (5,3%) com mulheres negras (12,5%). Apenas um
quarto das mulheres empregadas está no setor formal. Em se tratando
do tipo de ocupação remunerada, exercida pelas mulheres, as ocupações
domésticas se sobressaem, seguidas das ocupações na educação, saúde e
serviços sociais (diretamente relacionadas ao cuidar).
Apesar de o Cuidado continuar, em sua maioria, a cargo das mu-
lheres, o aumento da demanda por Cuidados por fatores como envelhe-
cimento da população no momento que a oferta não remunerada deles
está se reduzindo tem dado destaque para a crise de Cuidados que a
sociedade começa a enfrentar. Nesse cenário, surge, em anos recentes, o
care como inclusão de mais uma ocupação no rol dos cuidados – cuida-
dor/a de idosos que tem a função de cuidar – formal ou informalmente,
com ou sem remuneração – das pessoas idosas dependentes.
De acordo com Hirata; Guimarães (2012, p. 34), o care se inse-
re no setor de serviços, majoritariamente desenvolvido por mulheres
(seja no interior das famílias ou em instituições públicas ou privadas),
já que as qualidades requeridas para o cuidado são tidas como “naturais”
ou “inatas” a esse grupo, que as desenvolve no âmbito doméstico em
oposição às qualificações aprendidas pelos homens no espaço público.
Assim, desvalorizadas socialmente por estarem no âmbito da reprodu-
ção – onde há várias atividades “que se procura não fazer, mas delegar

72
a alguém em posição socioprofissional hierarquicamente inferior”, tais
funções são delegadas não apenas às mulheres, mas às mulheres pobres
e não brancas.
Quando se constata que a tendência do trabalho em tempo parcial
está mais reservada para a mulher trabalhadora, levanta-se a hipótese de
que essa situação ocorre porque o capital necessita também do tempo
de trabalho das mulheres na esfera reprodutiva, sendo isso imprescindí-
vel para o processo de valorização, uma vez que seria impossível para o
capital realizar seu ciclo produtivo sem o trabalho feminino realizado na
esfera doméstica (ANTUNES, 2006, p. 10). Dessa maneira, o trabalho
feminino se torna funcional aos interesses do capital, maximiza a ativi-
dade econômica das mulheres na esfera pública e privada como fins para
o lucro, desonerando os custos de produção e aumentando a extração da
mais-valia.
O discurso oficial do Banco Mundial é que “a igualdade de gênero
está no coração do desenvolvimento. É o objetivo de desenvolvimen-
to correto e é política econômica inteligente” (BANCO MUNDIAL,
2011, p. 10). Nessa concepção, a igualdade de gênero tem importância
instrumental, porque uma maior igualdade de gênero contribui para a
eficiência e eficácia administrativa e econômica e a obtenção de outros
resultados essenciais de desenvolvimento. De fato, não rompe com as
desigualdades às quais as mulheres estão submetidas, visto que corrobo-
ram com o sistema econômico vigente.
Nessa direção, observou-se que a maioria entrevistada não possui
vínculo de trabalho formal e como consequência é excluída do sistema
de proteção social, assumindo funções precarizadas, situação corroborada
pelo atual momento histórico-político de desmonte das Políticas Sociais
e de reformas trabalhistas e previdenciárias que visa retirar das trabalha-
doras e dos trabalhadores direitos conquistados no início do século XX.
Diante destes dados, ressalta-se a importância do seguinte questio-
namento: se os cursos oferecidos pelo PMM oportunizam apenas uma
formação para o trabalho simples não contemplando assim uma forma-
ção complexa, como se efetiva esse aumento da escolaridade?
Quando comparamos os resultados do programa em relação ao
aumento da escolaridade das beneficiárias, identificamos que 45% das
egressas do PMM avançaram na escolaridade após a participação do

73
Programa e que, mesmo a maioria possuindo sete ou mais anos de es-
tudos, enfrentam dificuldades quanto à sua inserção no mercado de tra-
balho, o que corrobora com a afirmação de Alves (2007, p. 253) de que
a mera posse de novas qualificações não garante ao indivíduo um em-
prego no mundo do trabalho. A noção de que se não estão empregadas
é porque não dispõem de empregabilidade em virtude de uma incapa-
cidade pessoal é absorvida pelas mulheres que compõem o Programa,
desconsiderando-se o contexto que as cerca.
O papel pedagógico de incutir a ideia de que com a qualificação
consegue-se emprego é fundamental para esse momento de ataque ao
trabalho, além da reafirmação da dualidade da educação profissional
quanto ao preparo para o trabalho manual e para o trabalho intelectual
com cursos de formação aligeirados. A esse respeito, Kuenzer (2006,
p. 906) destaca que os programas oferecidos por meio da educação
profissional estão longe de contribuir com a superação dos padrões de
desigualdade social existentes na sociedade capitalista. Do contrário,
oferecem uma qualificação precarizada para uma inserção consentida,
que apenas atende às demandas da acumulação flexível do capital e que
dificilmente possibilitará o desenvolvimento de uma consciência de
classe. Por outro lado, constata-se que, embora os cursos ofertados não
se direcionem a níveis de ensino e que sua grade curricular vislumbra
(re) inserir essas mulheres no mercado de trabalho numa perspectiva
de inclusão capitalista, houve o incentivo à elevação da escolaridade em
45% das egressas.

Considerações finais
Este artigo se concentrou em compreender a proposta de inclusão
produtiva e educacional do PMM em uma conjuntura marcada pelo
neoliberalismo, que tende a consolidar uma sociedade polarizada entre
setores sociais acumulados de renda e amplos setores marginalizados e
excluídos de uma participação política e econômica na sociedade, em
que o simples acesso à escola é condição necessária, mas não garante
a participação efetiva de milhares de pessoas cuja existência somente é
reconhecida nos quadros estatísticos.
Nessa perspectiva, esse texto revela políticas, tais como o PMM,
de caráter emergencial e compensatório, havendo um deslocamento da

74
noção de universalidade de direitos das políticas sociais para o enfo-
que na pobreza. Assim, a abrangência internacional do Banco Mundial
conduz não à universalização, mas ao reducionismo da concepção de
universalidade.
Apontamos ainda, em nossos achados, que as políticas sociais no
atual tempo histórico brasileiro sofrem a interrupção de um processo,
em meio a inflexões e desmontes dos direitos constitucionais e trabalhis-
tas promovidos pelo avanço das forças do capital, em uma forte ofensiva
que aprofunda uma política de espoliação de direitos, das riquezas na-
cionais, do fundo público, das políticas públicas, intensificando a super
exploração da força de trabalho no Brasil.
Há revelações de que a formação profissional, particularmente
aquelas voltadas para as mulheres, funcionam como mecanismos de
conformação de trabalhadoras à lógica do capital. Embora tais políticas
busquem justificar-se pelo aumento da empregabilidade das trabalha-
doras e pelo fomento de práticas empreendedoras, tornam-se, também,
funcionais ao capital por terem um papel ativo de formação de trabalha-
doras para a ocupação de postos precarizados. Busca-se a mínima for-
mação necessária para essas trabalhadoras inserirem-se no mercado de
trabalho, de forma a suprir as necessidades do capital para a realização
de tarefas de pouca complexidade, mas fundamentais ao processo geral
de produção capitalista e de acumulação do capital.
A formação profissional oferecida no PMM se afirma como uma
política confluente com os ditames do Banco Mundial porque é uma
política focalizada nos setores empobrecidos e específicos para mulheres
em situação de vulnerabilidade social. Não se configurando como uma
política universal é precária e assistencialista, com uma formação profis-
sional direcionada para o mercado de trabalho precário, com o objetivo
de naturalizar os direitos trabalhistas e consensualizar uma falsa autono-
mia a partir do empreendedorismo, é funcional aos interesses do capital,
no entendimento de desonerar seus custos de produção e aumentar a
extração da mais valia.
O público feminino, o qual o Programa pretende alcançar, é marca-
do historicamente por inúmeras funções e papéis que a mulher tem de-
sempenhado nos últimos tempos. A revolução feminista proporcionou
diversas aberturas e possibilidades à mulher, contudo, não conseguiu,

75
ainda, extirpar o ranço do patriarcado, de forma que a mulher acumula
obrigações, mas não se desvencilha daquelas que a tem acompanhado
há séculos.
O PMM é atravessado pelas questões do trabalho e, no discurso
corrente nos textos da política de formação profissional, há um automa-
tismo entre o acesso à qualificação profissional e a inserção produtiva.
Porém, são fatores que não possuem uma correlação direta. O fato de
as mulheres possuírem uma nova certificação é importante, mas não
é determinante para lhes assegurar a inserção no mundo do trabalho.
Ademais, há que se fazer a crítica de que os cursos ofertados são perten-
centes aos nichos ocupacionais considerados femininos, reforçando os
aspectos de divisão sexual do trabalho.
A relação trabalho-educação é a categoria marcante para compre-
endermos a educação permeada pelo propósito ideológico e pragmático
do neoliberalismo direcionada à oferta de uma qualificação que aten-
da aos interesses do capital, em confluência com os ditames do Banco
Mundial, com ênfase em segmentos específicos da sociedade, dentre
eles, as mulheres.
Sob essa perspectiva, foi possível compreender, que os cursos ofer-
tados no PMM objetivam ensinar especialmente o conhecimento apli-
cado e prático, focando em um ensino pragmático e de cunho utilita-
rista. Nessa direção, a mediação trabalho-educação acaba por promover
uma inserção precária, instável, em trabalhos desqualificados.

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78
A reprodução da misoginia e do patriarcado
na cobertura midiática do IMPEACHMENT de
Dilma Rousseff (PT): um estudo de caso da
revista ISTOÉ

Ana Maria da Conceição Veloso1


Fabíola Mendonça de Vasconcelos2
Laís Cristine Ferreira Cardoso3

Resumo
O presente artigo visa analisar a presença do machismo e da miso-
ginia na legitimação que a mídia conferiu ao impeachment da presidente
Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT), ocorrido em agos-
to de 2017. Utiliza como objeto de estudo um texto publicado pela Re-
vista IstoÉ, na edição de 6 de abril de 2016, que tem como manchete
1 Graduada em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco (1994), com
mestrado em Comunicação (2005) pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação/
PPGCOM, da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE, e doutorado em
comunicação (2013) pelo PPGCOM da UFPE. É professora dos cursos de Jornalismo,
Publicidade e Rádio, TV e Internet da Universidade Federal de Pernambuco
(Departamento de Comunicação), coordenadora do Observatório de Mídia da UFPE,
sócia do Coletivo Intervozes e colaboradora da ONG Centro das Mulheres do Cabo.
2 Jornalista, com especialização em História de Pernambuco pela UFPE, mestre em
Comunicação (PPGCOM/UFPE) e doutoranda em Serviço Social (PPGSS/UFPE).
É membro do Observatório de Mídia da UFPE e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em
Políticas Sociais e Direitos Sociais da Universidade Federal de Pernambuco. Tem como
linha de pesquisa Economia Política da Comunicação, Indústrias Culturais, Coronelismo
Eletrônico, Direito à Comunicação, História da Comunicação. Atuou como repórter
da editoria de Política do Jornal do Commercio e do Diario de Pernambuco e como
professora do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).
Atualmente, é assessora de imprensa do Sindicato dos Servidores Públicos Federais no
Estado de Pernambuco (Sindsep-PE).
3 Jornalista, mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação
da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Possui especialização em Direitos
Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e desenvolve pesquisas
nas áreas de comunicação e gênero, movimentos sociais e processos sociopolíticos.
Atualmente, servidora na UFPE.

79
“As explosões nervosas da presidente”. Para tal, recorre ao levantamento
bibliográfico acerca da imagem da mulher na mídia, mulher e políti-
ca e feminismo, em diálogo com produções de Betânia Ávila (2000;
2001; 2002), Joan Scott (1995), Richard Johnson (1999), Rachel Mo-
reno (2009), Mercedes Lima (2009), Michèle Mattelart (1982), entre
outros. Já na tentativa de desvelar o objeto, o artigo utiliza os aportes
metodológicos do estudo de caso e da análise de conteúdo. Após análise
do corpus, o trabalho mostra o caráter patriarcal, misógino e precon-
ceituoso da publicação que reproduziu valores consoantes a formações
ideológicas sexistas.

Introdução
Em 1o de janeiro de 2010, Dilma Vana Rousseff, economista e pri-
meira mulher a ser ministra-chefe da Casa Civil, recebeu a faixa pre-
sidencial, tornando-se a primeira presidenta da República eleita pelo
Partido dos Trabalhadores (PT). Em cinco anos e meio de governo,
com o segundo mandato interrompido pelo processo de impeachment,
nomeou 15 mulheres para o seu ministério – um número ainda peque-
no, haja vista que eram 39 ministérios em seu primeiro governo e 32
no segundo, mas que significou um pequeno avanço na representação
feminina na política no alto escalão do governo brasileiro.
Em 12 de maio de 2016, Michel Miguel Elias Temer Lulia, advo-
gado e então vice-presidente, torna-se presidente interino da República,
após afastamento de Dilma. No mesmo dia, empossou sua equipe sem
nenhum representante negro, sem homossexuais e sem ministras mu-
lheres. O ministério de Temer é o primeiro sem mulheres desde o gover-
no de Geisel (1974-1979), o que rendeu ao peemedebista várias críticas,
incluindo um posicionamento da representante da ONU Mulheres no
Brasil, Nadine Gasman. Para ela, a presença de mulheres no ministério
não é uma questão de simbolismo, “mas de justiça, inclusão, equidade
e mudança na forma de fazer política. Mecanismos específicos para os
direitos de mulheres, população negra, juventude e direitos humanos
são decisivos para enfrentar desigualdades estruturais que excluem ou
inviabilizaram os direitos da população” (O GLOBO, 13/05/16, s.p.).
A baixa representatividade feminina permeia todo o sistema polí-
tico brasileiro. De acordo com dados do TSE, as mulheres representam

80
52,13% dos eleitores, entretanto, a participação feminina chega a 9,9%
na Câmara dos Deputados (51 deputadas de um total de 513) e 14% no
Senado Federal (12 senadores de um total de 81 cadeiras). O número de
mulheres chefes do poder municipal e estadual também é baixo. As ta-
xas brasileiras estão abaixo da média mundial, que é de 22,1% de mulhe-
res no parlamento, e nosso índice é menor do que a média do Oriente
Médio, que tem taxa de participação feminina de 16%. Na América do
Sul, perdemos para Uruguai, Paraguai, Chile, Venezuela, Panamá, Peru,
México e Colômbia.
A sub-representação feminina também está presente nos altos car-
gos do poder judiciário. No Supremo Tribunal Federal, há atualmente
duas mulheres ocupando as onze cadeiras. No Supremo Tribunal Mili-
tar, esse número é ainda menor: há apenas uma ministra, enquanto ou-
tros 14 ministros são homens. No Tribunal Superior Eleitoral, das sete
vagas para ministros efetivos, apenas uma é ocupada por uma mulher.
O mesmo não acontece para os suplentes: seis vagas são ocupadas por
homens4.
Além da baixa presença feminina nos altos cargos dos poderes Le-
gislativo, Executivo e Judiciário e nas instâncias de poder, a desigualda-
de de gênero na política também se faz presente na maneira como tal
representação é exercida por aquelas que conseguem chegar aos espaços
de poder. Um dos casos mais marcantes é o impeachment de Dilma. O
afastamento da petista foi o ápice de uma crise política que se agravou
com as eleições presidenciais de 2014, marcada por uma acentuada di-
visão de ideias, calcadas na bipolaridade entre os partidos políticos PT
x PSDB, Esquerda x Direita, que culminou em uma cisão, ao menos
simbólica, do país. Somado a isso, uma crise econômica, que agravou o
quadro financeiro e político do Brasil, a deflagração da primeira fase da
Operação Lava Jato5 e a publicização dos casos de corrupção envolvendo

4 Informação checada nos sites dos respectivos tribunais em 04 de outubro de 2019.


5 Operação realizada pela Polícia Federal investigando esquema bilionário de corrupção
e desvio e lavagem de dinheiro envolvendo a Petrobras, políticos de vários partidos e as
maiores empreiteiras do país. A operação teve início em março de 2014 e até novembro
de 2016 contou com 37 fases, que culminaram em mais de 80 condenações, vários
indiciamentos, e centenas de mandados de busca e apreensão, prisão temporária e
preventiva, condução coercitiva, além de vários acordos de delação premiada. A Polícia
Federal a considera a maior investigação de corrupção da história do país e também

81
a Petrobrás inflamaram ainda mais o contexto político do país e impul-
sionaram diversas manifestações populares favoráveis ao impeachment
de Dilma.
Os protestos a favor do impeachment ganharam fôlego e ainda mais
expressão em 2016, após o início da tramitação do processo na Câmara
dos Deputados, que culminou na saída de Dilma da Presidência da Re-
pública, após julgamento no Senado, em 31 de agosto do mesmo ano.
Milhares de pessoas foram às ruas do país em atos a favor e contra o
afastamento de Dilma.
Além das manifestações de rua, que aglutinaram milhares de pes-
soas em praças, carreatas e passeatas, as disputas entre as pessoas favo-
ráveis e contrárias ao impeachment tomaram o campo da representa-
ção simbólica, permeando a cobertura midiática e com a elaboração de
recursos visuais que deslegitimavam a presidente, tanto por parte dos
veículos de comunicação, como produzidos por populares. Essas ques-
tões demonstram como a misoginia esteve presente em todo o processo
– desde a criação de um ambiente de disputa política, passando pelos
ataques à credibilidade e imagem de Dilma, caracterizando-a como uma
mulher descontrolada e sem condições de governar o país. Trata-se de
um explícito processo de misoginia que põe em relevo a tentativa de
imposição da subalternidade às mulheres, uma das marcas instituídas
pelo patriarcado.
Todo esse percurso foi corroborado por grande parte da mídia bra-
sileira, que foi alvo de críticas por parte dos diversos pesquisadores da
comunicação e do movimento feminista. Esse último teve papel im-
portante na denúncia do machismo e da misoginia que permearam o
impeachment.

Feminismo e Esfera Pública


O feminismo, como projeto político e pensamento crítico, teve sua
explosão no final dos anos 606, no bojo dos segmentos da sociedade civil
ditos marginalizados, a exemplo dos grupos de negros e étnicos e dos

averigua crimes de gestão fraudulenta, organização criminosa, obstrução de justiça,


operação fraudulenta de câmbio e recebimento de vantagem indevida.
6 Há referências ao movimento desde os séculos XVII e XIX, porém muito poucas o
considerando projeto político de transformação cultural e social.

82
“portadores de sexualidades policiadas” (BHABHA, 1998). A democra-
tização da vida cotidiana, a luta pela igualdade entre os sexos, a amplia-
ção dos lugares de interlocução na esfera pública e o reconhecimento de
seu lugar na história figuraram entre as primeiras reivindicações.
Vivendo “na fronteira”, no “entre – lugar” da cultura, os movimen-
tos contestaram a existência de um sujeito “universal” homem, branco,
europeu e heterossexual e direcionaram farpas ao sistema social hierár-
quico que aprofundava as diferenças, como elabora Maria Betânia Ávila:
O debate sobre a pluralidade de sujeitos políticos constituídos pela
ação do feminismo e vários outros movimentos contemporâneos re-
vela que a construção da igualdade passa, justamente pela descons-
trução da ordem social que hierarquiza as diferenças transforman-
do-as em desigualdades. Daí que considero que a relação igualdade/
diferença deve ser entendida não em termos antagônicos, mas como
um dilema a ser enfrentado como parte do processo dialético da
transformação das relações sociais. (ÁVILA, 2000, s.p.).
A efervescência revolucionária da época possibilitou que o femi-
nismo colocasse em prática sua proposta de transformação da sociedade,
tentando “inscrever as mulheres na história7” (SCOTT, 1995) e creden-
ciando-as como sujeitos políticos. O que estava em jogo, entretanto, não
era somente conferir legitimidade ao discurso feminista, mas a derroca-
da de conceitos culturalmente difundidos pelo patriarcado, que destina-
vam uma posição subalterna para o gênero feminino.
Quase no mesmo período, mais precisamente pelos idos anos 50,
emergem novas teorias acerca da crítica da cultura na Inglaterra e, logo
depois, nos Estados Unidos. Os estudos culturais surgiram como uma
“moderna convergência” de pesquisas a partir de diversas áreas, princi-
palmente das “comunicações e das artes”, campos considerados perifé-
ricos pela sociologia. A nova disciplina foi inicialmente articulada por
intelectuais de origem marxista, que militavam na “Nova Esquerda8”.
7 Extraído do texto: “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, Joan Scott, 1995.
8 “A New Left foi um movimento (...) que constituiu a base histórica dos estudos
culturais (...) que a partir do final dos anos 50 reuniu diversos intelectuais britânicos
em torno de novas formas de pensar e fazer política (...) ele congregava “comunistas
dissidentes”, com fortes ligações com a política e a cultura das classes trabalhadoras”
(Cevasco, 2003: 80-85).

83
Depois da fase de organização dos estudos culturais como área
acadêmica, suas conceituações foram direcionadas para espaços pinça-
dos das “culturas excluídas”, conferindo-lhes status de objeto de inves-
tigação. A disciplina se propôs a entender todas as formas de produção
cultural, os fenômenos de massa e as manifestações sociais dos chama-
dos grupos periféricos, como descreve Cevasco:
Em meio a resoluções imaginárias de conflitos reais os estudos cul-
turais passaram de prática radical a mais uma entre as diferentes
disciplinas acadêmicas, com suas peculiaridades e inclinações, onde
ainda ressoam os ecos dos primeiros impulsos dos fundadores. Os
anos 70 e 80 foram marcados pela interseção do privado no público,
representada pelo poderoso slogan feminista “o pessoal é político”, e
por questões de raça, quando o movimento negro cruzou o Atlântico
e atingiu fortemente a Grã-Bretanha. Nesses momentos, os Estudos
Culturais são definitivamente “formados”. (CEVASCO, 2003, p. 78)
Entendendo a cultura como “campo de batalha no qual as causas
se expõem à luz do dia e lutam entre si” (SAID, 2011, p.5), autores
como Stuart Hall, Richard Johnson, Gyvatry Spivak, Homi Bhabha,
Franz Fanon e Edward Said buscaram identificar os “lugares dos sujei-
tos marginalizados” na cultura. Conceitos como o de hegemonia, iden-
tidade, alteridade, subalternidade e diferença foram centrais nas suas
produções. Tais debates teóricos estabelecem diálogos intensos com a
produção do feminismo, entendido como um fenômeno cultural, como
Richard Johnson observa:
Há muito mais coisas envolvidas do que a questão original “e as mulhe-
res?”. O feminismo tem influenciado formas cotidianas de se trabalhar
e tem contribuído para um maior reconhecimento da compreensão de
que resultados produtivos dependem de relações baseadas em apoio
mútuo. Ele tem tornado visível algumas das premissas do trabalho inte-
lectual de esquerda, bem como os interesses masculinos que os têm sus-
tentado. Ele tem produzido novos objetos de estudo, obrigando-nos,
além disso, a reformular velhos objetos (...) ele tem contribuído para
um deslocamento mais geral: da crítica anterior, baseada na noção de
ideologia, para abordagens que se centram nas identidades sociais, nas
subjetividades, na popularidade e no prazer ( JOHNSON, 1999, p. 14).

84
Uma das maiores contribuições que o feminismo, como projeto
político e pensamento crítico, trouxe para a humanidade foi o questio-
namento do modelo patriarcal de construção de sociedade, que destina-
va às mulheres o lugar de coadjuvantes do processo histórico, restringin-
do a existência da condição feminina à esfera privada. Ao propor uma
transformação nas relações de gênero e a igualdade e a liberdade para a
mulher, o feminismo a credenciou como sujeito político. A ruptura de
uma identidade socialmente imposta, que limitava o acesso delas à es-
fera pública foi outra conquista do feminismo, como resgata a socióloga
Maria Betânia Ávila (2000) ao analisar a produção da filósofa Hanna
Arendt:
Penso que, desta forma, se viabiliza o que Arendt (1988) definiu
como o direito a ter direitos, uma vez que a conquista dos direitos
exige um sujeito que anuncie seu projeto e tenha ação na esfera po-
lítica, participando, assim, do conflito, que deve ser inerente à de-
mocracia e instituindo, como parte desse conflito, a luta contra as
desigualdades a que estão sujeitas (ÁVILA, 2000, s.p.).
Apesar de ter dado largos passos rumo à “politização da esfera pri-
vada”, a conquista desse espaço ainda é um desafio para as mulheres.
Talvez porque “a esfera pública tanto na dimensão do Estado, como em
outros planos, onde também se processam os conflitos políticos, ainda
se constitui como um espaço social onde as desigualdades de gênero, de
classe e de raça estão presentes (ÁVILA, 2001, p. 17)”.
Entre as dificuldades enfrentadas pela população feminina em as-
cender à cena política, está a necessidade de romper com a construção
histórica que coloca a casa, o lar e a família como únicos espaços pos-
síveis para a existência cotidiana das mulheres. E é nesse ponto que
Betânia Ávila (2000) chama atenção para a importância de analisar o
patriarcado em meio ao momento histórico em que ele se apresenta:
[...] Reconhecer a existência desse sistema de dominação e fazer co-
nhecer os mecanismos de sua reprodução em qualquer medida que
isso ainda aconteça é uma importante contribuição do feminismo
para a democratização da vida social. Não levar em conta a questão
do patriarcado coloca, por outro lado, um limite na concepção e nas
estratégias de luta por igualdade (ÁVILA, 2000, s.p.).

85
Ao expor os enlaces entre o sexismo, o patriarcado e o capitalismo,
os estudos feministas têm contribuído para a disseminação de informa-
ções e para potencializar um olhar crítico acerca do lugar da mulher na
sociedade. Além disso, têm problematizado como os espaços midiáticos
podem ser, ao mesmo tempo, locais de disseminação da misoginia e do
patriarcado e campos de disseminação de valores capazes de fortalecer o
enfrentamento desses sistemas.

Mulher e mídia
É sabido que, muito mais do que constituir sustentáculos para o
exercício do poder pelas elites, os veículos de comunicação podem in-
fluenciar a produção mental, uma vez que são também responsáveis pela
massificação das ideias de uma época. Sendo assim, um dos campos
de ação do movimento feminista tem sido a contestação do lugar da
mulher na cultura – onde é historicamente marginalizada –, sobretudo
pela mídia. Segundo Mercedes Lima (2009), os meios de comunicação
reforçam a naturalização da discriminação contra a mulher, retratando-
-a como um ser predestinado a exercer papéis sociais seculares, como
a maternidade, a sexualidade vigiada e reprimida – quando se trata de
satisfazer a si mesma – o compromisso com o casamento e a não visibi-
lidade profissional.
Tais características são denunciadas desde os anos de 1980 quando
analisamos a relação das mulheres com os meios de comunicação, tendo
como referência, as constatações do documento da UNESCO, intitula-
do Un solo mundo, voces múltiples: comunicación e información en nuestro
tiempo.
Por supuesto, los medios de comunicación social no son la causa
fundamental de la condición subordinada de la mujer. Y no disponen
por si solos de medios para subsanarla. Las causas tienen profundas
raíces en las estructuras sociales, políticas y económicas así como en
actitudes culturalmente determinadas, y sólo se podrá encontrar la
solución mediante la introducción de cambios a largo plazo. Sin em-
bargo, los medios de comunicación social disponen hasta cierto pun-
to de la facultad de estimular o de retrasar tales cambios (UNESCO,
1988, p. 330-331).

86
Para muitos pesquisadores, os veículos de comunicação fixam este-
reótipos geradores de preconceitos e discriminação, produzindo e repro-
duzindo valores e hábitos consoantes a formações ideológicas sexistas. A
mídia reforça um modelo de superwoman, isto é, da mulher que está in-
serida no mercado de trabalho, que cuida dos filhos, do marido e da casa
e ainda está sempre arrumada, reforçando modelos de beleza calcados
na feminilidade e na juventude. Para a pesquisadora Rachel Moreno,
A mídia comanda, sem mandar. Mandam a mulher ser bela, ser ma-
gra, ser boba, ser mãe, ser invejosa, competir com as outras, manda
correr em busca da felicidade perfeita que virá a partir da compra de
produtos e valores, da exibição de marcas e etiquetas que nos identi-
fiquem e qualifiquem. Sem tom de mando, a mídia evita a resistência
e a rebelião (MORENO, 2009, p. 13).
Estudiosas e pesquisadoras do movimento feminista apon-
tam, ainda, a ausência de protagonismo das mulheres nos veículos de
comunicação e para a subordinação das mesmas ao sexo masculino. Para
Mercedes Lima (2009), “os conceitos e visão sobre a mulher veiculados
na mídia e na grade de programação de TV (...) reforçam a situação
hierárquica entre homens e mulheres, a partir de uma determinada vi-
são de mundo, levando à construção (ou desconstrução) da mulher real”
(LIMA, 2009, p. 27).
Essa discriminação fica ainda mais evidente quando fazemos um
recorte de raça. A presença da mulher negra na mídia é quase nula quan-
do comparada à população brasileira, e quando essa está presente limita-
-se a ser representada em papéis de pouco destaque e, quase sempre, com
conotação sexual ou fazendo alusão a servir outros indivíduos brancos. O
pensamento colonizador imperado à época da escravidão, que colocava
a mulher negra como mucama da casa-grande ou como instrumento de
sacies sexual do patrão, continua presente nas representações midiáticas
atuais: as negras são, quase sempre, empregadas domésticas e símbolos
sexuais, com seus corpos sendo vendidos como produtos em propagan-
das de cerveja e, até mesmo, em festas culturais, como o carnaval.
A imagem da negritude feminina é associada ao binômio puta-em-
pregada. É recorrente ver a mulher negra sendo retratada nas no-
velas, por exemplo, enquanto empregada doméstica. A alternativa

87
a esse papel é a identificação com a “cor do pecado”, cuja imagem
está associada à sensualização da “mulata”, em que a culpa pela “de-
sordem moral” é atribuída à negra. (...) É importante destacar que
para as mulheres negras não foi destinado outro para oprimir. As
mulheres brancas podem oprimir as mulheres negras, os homens ne-
gros podem oprimir as mulheres negras, as mulheres negras não são
institucionalizadas pela sociedade para oprimir ninguém, são vistas
sempre como oprimidas (FENED, 2012, p. 03-04).
No que se refere à sexualidade e à reprodução, Mercedes Lima
(2009) afirma que a maternidade, em especial na teledramaturgia, ainda é
colocada como uma imposição. Personagens têm sua valorização a partir
de sua capacidade reprodutiva: o fato de não poder ou não querer ser
mãe influirá negativamente em suas vidas. “Ainda é comum a louvação da
heroína da novela, como cuidadora (dos filhos, do marido/companheiro,
dos doentes, da casa), ignorando-se sua sexualidade” (LIMA, 2009, p. 28).
Como um todo, há certo espaço para a mulher nos veículos de co-
municação; no entanto, o déficit maior dessa representação não está na
quantidade desses espaços, mas na maneira e na qualidade com que essa
mulher é retratada pela mídia. Toda a complexidade das mulheres, ine-
rente a sua própria condição humana, é reduzida a estereótipos ligados ao
corpo e à beleza das mesmas. “Aparentemente modernos, os valores re-
presentados pelas mulheres que aparecem correspondem mais ao século
passado que à situação da mulher na sociedade contemporânea, com suas
demandas, seus problemas, suas expectativas” (MORENO, 2012, p. 24).
Diante do exposto, é possível perceber que a mídia brasileira tem
estimulado a estereotipação da imagem da mulher calcada em três pila-
res: (a) o acesso às imagens de um conjunto ou segmento de mulheres
despojadas de sua humanidade para emergir, nas telas, páginas, portais
e programas de rádio como personificação de um feminino concebido
pelo capital e materializado no protagonismo de atrizes e moças “belas,
recatadas e do lar”, como a edição da revista Veja, de abril de 2016, carac-
terizou a primeira-dama Marcela Temer; (b) a reafirmação de um femi-
nino reduzido ao corpo perfeito concebido para proporcionar o prazer;
e (c) a criação de uma imagem de desconfiança e descontrole, da mulher
como ser passível a variações emocionais e sem condições de galgar es-
paços de mais representatividade na sociedade.

88
Esse último pilar norteou a construção da cobertura midiática do
impeachment de Dilma Rousseff (PT). Vários veículos de comunicação
retrataram a então presidente como uma mulher destemperada e inapta
ao exercício do mandato. Dentre eles, destacamos uma das edições da
revista IstoÉ, de abril de 2016, objeto de análise deste artigo.

Os percursos metodológicos
O mergulho na Análise de Conteúdo e a realização de um levan-
tamento bibliográfico sobre a imagem da mulher na mídia foram es-
tratégias operativas quando da análise não só da matéria que compõe
o corpus do presente artigo, mas nas observações das produções jorna-
lísticas veiculadas ao longo da cobertura do processo de impeachment
da então presidenta do Brasil. No entanto, o estudo também levou em
consideração as conclusões de outros trabalhos acerca da influência da
mídia no debate público com recurso à teoria do agendamento, haja
vista o poder dos meios de comunicação no engendramento do real e da
vida em sociedade. A pesquisa também teve como base produções que
discutem a posição que as relações de gênero ocupam nos conteúdos
publicados pelos meios de comunicação.
Além da realização de uma análise qualitativa e analítica, estamos
lidando, fundamentalmente, com um estudo de caso. De acordo com
Gil (2009), o estudo de caso tem como características essenciais: o fato
de ser um delineamento da pesquisa, e não um método de coleta de
dados; preserva o caráter unitário do fenômeno pesquisado; de investi-
gar um fenômeno contemporâneo; de, no contexto onde está inserido,
o fenômeno ser considerado como fundamental; de requerer a utiliza-
ção de múltiplos procedimentos de coleta de dados; e é um estudo em
profundidade.
Para Robert Stake (2000), a investigação deve considerar: a natu-
reza do caso; o histórico do caso; o contexto (físico, econômico, político,
estético etc.); outros casos pelos quais é reconhecido; os informantes
pelos quais pode ser conhecido. Tais características têm forte relação
com a natureza da observação empreendida nesse artigo, uma vez que
observamos as características dos veículos, posições das mulheres nas
notícias, conteúdos veiculados e contexto onde o meio de comunicação
está inserido.

89
Seguindo essa linha, as análises acerca das estruturas ideológicas
que movimentam as indústrias da comunicação e as reflexões sobre im-
portância da atuação feminina nesse lócus ressaltam a imprescindível
realização de estudos que problematizem a relação das mulheres com os
grupos de mídia em meio ao contexto econômico, simbólico e cultural,
como alerta Michèle Mattelart.
Há uma tendência em analisar o assunto mulher e mídia de ma-
neira isolada e fragmentada, como se tanto a análise dessa relação
como a resposta e a formulação de propostas destinadas a modificá-
-la pudessem se desenvolver sem levar em consideração a totalidade
social, ou seja, todo o intrigante sistema social com características
de relacionamento e dinâmicas próprias. A articulação com a tota-
lidade social nos leva, antes de abordar o tema, a tentar definir, em
termos muito gerais, o papel das indústrias culturais e dos aparelhos
de comunicação e de cultura de massa e como se vinculam com a
sociedade, além de recordar, muito brevemente, o lugar e o papel
das mulheres nesta mesma sociedade9 (MATTELART, 1982, p. 5).
Dessa maneira, estudos com tais características, como o que ana-
lisa a produção da revista IstoÉ, podem espelhar tendências e ajudar na
caracterização das relações entre homens e mulheres no campo onde as
indústrias culturais estão se desenvolvendo.

O Impeachment da primeira presidente mulher do Brasil e


quando Dilma Rousseff (PT) é desqualificada pela IstoÉ
Diante da complexidade do país e dos impactos sociais, políticos
e econômicos de um impeachment para o regime democrático do país,
todo o processo esteve entre as principais pautas da discussão pública
e da mídia nacional e internacional. Inúmeras foram as reportagens,
matérias, manchetes e capas que abordaram a imagem de Dilma Rou-
sseff (PT), umas favoráveis e outras contrárias à saída da presidente do
poder.
Apesar do estudo em curso ter observado, quando do percurso
da revisão bibliográfica, diversas possibilidades de abordagem sobre o
tema, foi possível perceber um ponto em comum que permeou tanto as
9 Tradução livre das autoras.

90
discussões públicas interpessoais como aquelas que ganharam destaque
nos veículos de comunicação: o machismo e a misoginia. Dentre as di-
versas manifestações de desaprovação da presença de Dilma Rousseff
(PT) no mais alto cargo do Executivo brasileiro, é possível destacar ima-
gens que circularam nos meios de comunicação, sendo que parte delas
retratou a ação produzida por indivíduos da sociedade civil e outras fo-
ram reproduzidas pelos próprios agentes da mídia.
A primeira delas diz respeito a um adesivo para carro, uma mon-
tagem da imagem de campanha da presidente Dilma Rousseff (PT).
O mesmo foi pensado e confeccionado para ser aplicado na entrada
do tanque de gasolina dos veículos que, quando abastecidos, passavam
a ideia de que a bomba de gasolina estaria penetrando sexualmente a
presidente. Os sites que noticiaram o fato revelaram que o colante es-
tava sendo vendido no site de compras e vendas do Mercado Livre. O
adesivo foi descrito, por alguns usuários das redes sociais, como “‘forma
de protesto’ contra corrupção, baixo crescimento do país, desemprego,
alta de preços, entre outros problemas nacionais” (VEJA SÃO PAULO,
26 fev. 2017, s.p.).

Figura 1: Adesivo para carro com montagem de Dilma.


Fonte: Twitter

91
A ministra Eleonora Menicucci, à época à frente da Secretaria de
Política para as Mulheres, encaminhou denúncia ao Ministério Público
Federal, à Advocacia-Geral da União e ao Ministério da Justiça, pe-
dindo providências. Para Eleonora, os órgãos deveriam investigar e res-
ponsabilizar quem produz, divulga e comercializa produtos que violam
os direitos das mulheres. Além de poder ser enquadrada como crime, a
confecção do adesivo exemplifica o machismo e a misoginia: “(...) des-
qualificações de gênero não são realizadas quando os governantes cri-
ticados são homens. Porém, quando são mulheres, os insultos não são
dirigidos à política adotada, mas à figura feminina” (SÁ, 2017, s.p.). Para
Lourdes Bandeira,
Essas imagens da presidente Dilma ofendem qualquer ser humano,
sobretudo as mulheres. É um crime grave de ofensa, pois vulgariza
imagens identitárias femininas. E o caso é ainda pior porque en-
volve uma pessoa que exerce o cargo de presidente da República,
eleita democraticamente pela maioria da população. O adesivo ataca
moralmente a figura da mulher em sua condição mais íntima. Ma-
nifestações assim precisam ser combatidas, e as imagens devem ser
erradicadas imediatamente. (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 03
jul. 2015, s.p.)
Além das ações da sociedade civil, distintas foram as notícias
veiculadas pelos meios de comunicação no contexto da crise política
acerca da imagem de Dilma Rousseff (PT). Afastada da Presidência
da República, ela foi personagem central da mídia brasileira – e in-
ternacional –, nas semanas que antecederam à votação do processo de
impeachment, aprovado pela Câmara Federal em abril de 2016 e, no
Senado, em agosto de 2016. Ocupou grande parte do noticiário televi-
sivo, radiofônico e impresso, com direito, inclusive, a sucessivas capas
de revistas semanais como Veja, Época, Carta Capital e IstoÉ. A produ-
ção desta última, que foi para as bancas do dia 6 de abril de 2016, traz,
em sua manchete, o título As explosões nervosas da presidente, ilustrada
com uma foto de Dilma com uma expressão histérica, como induz a
figura 2.

92
Figura 2: Capa da revista IstoÉ. Edição no 2417, de 6 de abril de 2016.

Observando a foto da capa, a impressão que se tem é de uma mu-


lher desequilibrada, fazendo jus à manchete da revista. Diante da grande
repercussão que tal edição teve, sobretudo entre os movimentos femi-
nistas e nas redes sociais, veio à tona que a foto que estampava a capa
da revista foi tirada em 2014, quando Dilma comemorava um gol da
Seleção Brasileira, em um jogo da Copa do Mundo, ocorrida no Brasil.
A pesquisadora Jeana Laura da Cunha Santos estudou o tratamen-
to que a mídia conferiu à Dilma Rousseff (PT) no período que antece-
deu à votação do impeachment. Ela, que analisou, inclusive, os recursos
fotográficos utilizados pelos veículos de comunicação, percebe os traços
da ideologia dos grupos de mídia expressos nas produções.
Com recursos de fotomontagem ou foto em perspectiva, o jornalis-
mo praticado pelos meios hegemônicos constrói sentidos e revela
seu caráter ideológico perverso. (...) Tais fotos em perspectiva, atra-
entes pelo jogo inusitado e jocoso que contêm, trazem em si o refle-
xo sociocultural, econômico e político de quem a realiza ou a veicula,

93
convertendo-se assim num aparelho reprodutor de ideologia. Des-
caracterizando a realidade, sem propriamente inventá-la, revelam a
primazia da estética sobre a ética, quando não raro abandonam a
ética para ficar com a pilhéria (SANTOS, 2016, s.p.).
Para Jeana Santos, as narrativas reproduzem o tom preconceituoso
com uma presidente mulher, a primeira da história do Brasil. “Uma das
formas assumidas pela misoginia é o ato de ridicularizar uma mulher,
tornando seu corpo e/ou ações risíveis”. Ainda segundo a estudiosa, dis-
torcer os fatos é uma prática antiga da mídia. “Cortes, manipulações,
edições distorcidas de imagens, e até montagens, sempre estiveram pre-
sentes no fotojornalismo brasileiro e muitas vezes serviram para driblar
a censura de alguns governos. (...) em algumas situações estão a serviço
do preconceito, da desinformação” (SANTOS, 2016, s.p.).
Ao longo de oito páginas, a revista IstoÉ apresenta relatos de su-
postos episódios vexatórios, nenhum deles com fontes identificadas,
acusando a presidenta de ter vivido momentos de surto. Em artigo pu-
blicado no site da Carta Capital, a editora executiva do veículo, Clarice
Cardoso, classifica a edição da IstoÉ como sexista e critica a falta de
fontes qualificadas, as quais chama de fontes apócrifas, que colocam em
xeque a credibilidade da reportagem:
A mais minuciosa das leituras terá dificuldade em encontrar um pará-
grafo com argumentação que possa ser levada a sério, denúncia devi-
damente apurada ou fonte de informações que tire o artigo da catego-
ria dos mexericos. O que há são frases de pretensa ironia que resvalam
sem pudor no preconceito de gênero (CARDOSO, 2016, s.p.).
Na reportagem, cujo título é Uma presidente fora de si, a IstoÉ elen-
ca uma série de frases supostamente disparadas por Dilma, relatando
episódios em que ela teria ofendido ministros, assessores e funcionários
próximos, sem, no entanto, apresentar consistência nas acusações nem,
sequer, ouvir tais pessoas apontadas. Algumas das frases: “você está ma-
luco? Vai se f...! É a presidente que está aqui (no avião). O que está acon-
tecendo?” (PARDELLAS; BERGAMASCO, 2016, p. 35), atribuídas,
pela revista, à presidenta Dilma, ao se referir ao piloto, num momento
de turbulência a bordo do avião presidencial; ou “cale sua boca. Você
não entende disso. Só fala besteira” (PARDELLAS; BERGAMASCO,

94
2016, p. 35), expressão também atribuída à Dilma, em discussão com a
então ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário.
Nem no episódio do piloto, nem no da ministra, a reportagem da
IstoÉ, cujo autores são os repórteres Sérgio Pardellas e Débora Berga-
masco, ouviu os envolvidos, nem mesmo a presidenta Dilma Rousseff
(PT). O que Clarice Cardoso chama de fontes apócrifas e mexericos são
os recursos utilizados pelos jornalistas na construção do texto, sempre
recorrendo a termos como “segundo testemunho de um integrante do
primeiro escalão do governo” (PARDELLAS; BERGAMASCO, 2016,
p. 34), “segundo relatos” (PARDELLAS; BERGAMASCO, 2016, 34),
ou “um de seus assessores” (PARDELLAS; BERGAMASCO, 2016,
p. 36), sem identificar a fonte para justificar a informação.
As observações de Clarice Cardoso convergem com o que defende
Juarez Bahia, autor do livro Jornal, História e Técnica: as técnicas do jorna-
lismo. Na obra, ele chama atenção para o cuidado que deve existir duran-
te o processo de apuração jornalística, e ressalta que a credibilidade do
texto depende da idoneidade da fonte. “Grande parte da credibilidade
de um jornalista ou de um veículo repousa no uso que ele faz das suas
fontes na elaboração das notícias. Quanto mais responsável e transpa-
rente for, mais próximo da objetividade estará. Utilizar o anonimato da
fonte para embutir a opinião pessoal ou para abrigar interesse escuso é
uma frontal violação da ética profissional” (BAHIA, 2009, p.45).
Principal personagem da reportagem, a presidenta Dilma Rousseff
(PT) não foi ouvida em nenhum momento. As aspas que são creditadas
a ela partem de terceiros, de boatos, tudo sempre com uma introdução
do tipo “segundo alguém”. Além desse problema letal da falta de credi-
bilidade das fontes de informação, outra questão que coloca em cheque
a seriedade da reportagem é a adjetivação do texto, o excesso de opinião
e a falta de respeito para com o cargo máximo de um país, a Presidência
da República, o qual é desmoralizado na narrativa, indicando, inclusive,
a defesa do impeachment, tanto na reportagem como no editorial da
mesma edição. Eis alguns trechos dessa narrativa: “(...) Dilma Rousseff
perdeu também as condições emocionais para conduzir o país”; “(...)
dispara palavrões aos borbotões a cada e frequente má notícia” (PAR-
DELLAS; BERGAMASCO, 2016, p.34).
(...) nas últimas duas semanas, a presidente desmantelou-se emocio-
nalmente. Um governante, ou mesmo um líder, é colocado à prova

95
exatamente nas crises. E, hoje, ela não é nem uma coisa nem outra.
(...) Os surtos, os seguidos destemperos e a negação da realidade re-
velam uma presidente completamente fora do eixo e incapaz de gerir
o País (PARDELLAS; BERGAMASCO, 2016, p.37).
Para Elizabeth Lima,
“(...) Dilma foi sucessivas vezes exposta a toda sorte de práticas de
ódio, de misoginia e de expressões de desrespeito pelo fato de ser mu-
lher, o que se questiona nas frases de efeito propaladas por vozes ou es-
critas por mentes e mãos raivosas não é absolutamente o seu governo e
as ações de seu governo, mas ela enquanto persona feminina, enquanto
mulher que “ousa” ocupar um espaço que não é “legitimamente seu”, é
um espaço que ela usurpou, mesmo tendo sido, paradoxalmente, eleita
pelo voto popular (LIMA, 2016, p. 56).

Considerações finais
A forma como a então presidenta foi retratada por diversos meios
de comunicação – não só nas reportagens acerca do impeachment, mas du-
rante todo o seu governo – põe em relevo a reprodução de um tipo de jor-
nalismo que teve seus alicerces fincados em meio à expansão do modo de
produção capitalista e em uma sociedade historicamente patriarcal. Essa
superexposição de forma desqualificada levou a própria Dilma Rousseff
(PT) a reconhecer que estava sofrendo discriminação, tanto no campo
político, quanto no midiático, também pelo fato de ser mulher. Contu-
do, essa realidade vem mudando lentamente pela ação do movimento
feminista, sobretudo a partir dos anos de 1970, quando suas militantes
exigiram espaço na sociedade, maior presença no mercado de trabalho e
autonomia sobre suas vidas. Apesar disso, ainda são muitas as formas de
discriminação e violência sofridas pelas mulheres, e as representações do
feminino em parte dos meios de comunicação ainda segue essa tendência.
De tal sorte, a matéria que mereceu a chamada de capa da revista
IstoÉ, na edição de 06 de abril de 2016, tenta pautar no debate público bra-
sileiro que a então presidenta Dilma Rousseff (PT) não tinha condições
emocionais e políticas para continuar seu mandato. Agindo dessa forma,
o periódico mostra a fragilidade da mídia brasileira, que, em muitos mo-
mentos, abdica do papel de comunicar para agir tal qual partido político,
como bem defendeu, em 2010, Maria Judith Brito, então presidenta da

96
Associação Nacional de Jornais (ANJ) e executiva do grupo Folha de S.
Paulo: “os meios de comunicação estão fazendo de fato a posição oposi-
cionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada. E
esse papel de oposição, de investigação, sem dúvida nenhuma incomoda
sobremaneira o governo” (BRITO apud ARAÚJO, 2010, s.p.).
Contudo, a revista talvez não contasse com a capacidade de mo-
bilização de diversos/as leitores/as que acessaram as redes sociais para
problematizar o papel da mídia no Brasil e visibilizar perfis de mulheres
que puderam fazer outras escolhas, aquelas que subverteram a ordem
comandada pelos desvalores que imputam sérias restrições ao público
feminino, aquelas que não se enquadram no que os veículos expõem
como modelo e que perceberam que os ataques à imagem da presidenta,
pela IstoÉ, também acabaram por atingir outras mulheres que não acei-
tam que tais relações assimétricas de poder e misoginia venham a ser
reproduzidas pelos meios de comunicação.

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98
Produzindo insubordinações no pensamento
instituído: diálogos entre ciência, educação
moderna e epistemologias feministas

Gema Galgani Silveira Leite Esmeraldo1

Resumo
Este artigo problematiza as bases da sociedade e da ciência mo-
derna a partir de dois campos de conhecimento: a educação e os estudos
feministas. Em diálogo com o pensamento de Foucault que constrói o
sentido de regime de verdade, procuro percorrer esses campos e suscitar
indagações e dúvidas sobre a verdade afirmada na ciência moderna. Res-
salto a produção acadêmica de caráter feminista referenciada em Ban-
deira (2008), Scott (2002), Louro (2001), Sardenberg et al. (2002), Hé-
ritier (2012) como um campo aberto e que abre novas fronteiras para a
interpretação, interpelação e diálogo com a realidade social. Trago ainda
reflexões sobre a relação entre produção de conhecimento acadêmico e os
saberes produzidos na experiência realizada por mulheres camponesas.

Introdução
Acolho nesta escrita a possibilidade de abertura e diálogo com o
pensamento Outro, para dar vazão e lugar de insubordinação a modos
de pensar e de agir que determinam a atual ordem social, política e
econômica de caráter hegemônico. Criar espaços de expressão do pen-
samento Outro traz na sua raiz possibilidades de invenção de novas
subjetivações, de novas territorialidades, de avanço de fronteiras que ul-
trapassam as barreiras dos significados dominantes.
Dialogo com o tema proposto, orientando-me na seguinte direção
analítica: problematizo os regimes de verdade que orientam a trajetó-
ria constitutiva da educação moderna brasileira e faço relações com as

1 Doutora em Sociologia/UFC. Professora nos programas de Pós-graduação em


Desenvolvimento e Meio Ambiente/PRODEMA e Avaliação de Políticas Públicas/
MAPP/UFC. E-mail: gemaesmeraldo@gmail.com.

99
dimensões analíticas produzidas pela epistemologia feminista e as experi-
ências de mulheres camponesas que também produzem conhecimentos.
Faço reflexões preliminares sobre o processo de constituição da
sociedade moderna e os desafios e impasses que provocam ao modelo
paradigmático da ciência moderna, que é predominante na sociedade
brasileira; e apresento os elementos clássicos que vão constituir as bases
que fundamentam os princípios da educação moderna, estes voltados
para a ordenação da existência humana.
Embora o paradigma da modernidade se organize para definir e
orientar a formação de uma sociedade nos moldes da civilização ociden-
tal, o texto traz pensamentos que se conflitam e se contrapõem a esse
modelo. O debate sobre a diversidade humana, as diferentes experiên-
cias que produzem singularidades nos modos de ser e de viver, as práti-
cas de resistência culturais, produtivas, sociais e políticas forjam novas
formas pedagógicas de pensar e produzir modos alternativos de vida.
Nesse contexto analítico, os pilares formativos da sociedade, da
ciência e educação moderna e dos processos de configuração de uma
civilização capitalista serão pensados, relacional e criticamente, e em di-
álogo com as bases do pensamento feminista, este fundado na proble-
matização do sistema patriarcal e do sistema sexo-gênero, sistemas duais
que norteiam a lógica da sociedade moderna.
A crítica surge de diferentes campos de pensamento e de ações po-
líticas protagonizadas por grupos sociais. Podemos citar o pensamento
e a prática militante de orientação marxista, dos movimentos feminis-
tas, dos movimentos ambientalistas, dos movimentos anticolonialistas,
dos movimentos voltados para a educação popular (Consultar FREI-
RE, 1971; 1975a; 1975b; 1979) e, mais recentemente, do movimento da
educação do campo.
Marx, Engels, Gramsci2, dentre outros, questionam, exaustiva-
mente, o paradigma da modernidade no campo da economia política e
produtiva. Denunciam a formação de classes sociais pelo sistema eco-
nômico; a exploração do trabalho humano pela classe burguesa; a dis-
tribuição desigual de bens; a ação do estado para regular essas relações
sociais de produção privilegiando o poder econômico e a formação de
exércitos de reserva humana para atender ao capital.
2 Consultar Marx (1985); Marx & Engels (s/d); Gramsci (1988).

100
Este texto, compreendendo a amplitude e a pluralidade des-
ses campos de estudos, escolhe fazer o exercício da crítica produzida
pela epistemologia feminista à ciência e à educação moderna como
dimensão de análise possível compreendendo os limites deste trabalho
reflexivo.

Elementos que organizam e constituem os paradigmas da


sociedade moderna
Na gênese da sociedade moderna, traça-se, de forma articulada, a
organização: do estado moderno; da economia política; do capitalismo
comercial e industrial e da produção da ciência e da educação moderna.
Para fortalecer os pressupostos do conhecimento científico, configuram-
-se saberes e práticas voltadas para a substituição: da emoção pela razão,
da autoridade pela liberdade, do mito pela ciência (BOBBIO & MAT-
TEUCCI & PASQUINO, 1993, p. 695).
A partir do século XVII, Bacon, Locke, Hobbes e Descartes pro-
duzem o pensamento político para a sociedade moderna (SANTOS,
1989, p. 12). Esses teóricos sistematizam “uma visão de Estado, uma
concepção da natureza humana e da sociedade em geral” (WEFFORT,
1991, p. 9). Constroem as bases do discurso científico voltado para se
distanciar e questionar o discurso do senso comum, religioso e das artes
(SANTOS, 1989, p. 12).
O século das luzes e do esclarecimento3 origina e organiza uma
nova visão de mundo. O projeto iluminista que orienta as bases do Es-
tado e da ciência moderna apoia-se
Sobre noções clássicas de verdade (universal/transcendental), razão
(universal), identidade (centrada, una, estável) e objetividade, sobre
as ideias de progresso e emancipação, e sobre as grandes narrativas
fundadoras com seus sistemas totalizantes e explicações generalizá-
veis e definitivas (COSTA, 2005, p. 210).

3 O “termo Iluminismo” é considerado como “um movimento de ideias” que “visa


estimular a luta da razão contra a autoridade” e “a difusão do uso da razão para dirigir
o progresso da vida em todos os sentidos”. Para alguns historiadores se inicia no
século XV, mas se desenvolve especialmente no século XVIII (Conforme BOBBIO &
MATTEUCCI & PASQUINO, 1993, p. 605).

101
Mas como essa nova verdade vai se constituir? Como o pensamen-
to racional vai se instalar? Como as identidades vão se uniformizar?
Foucault (1993a) afirma que
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de
verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar
como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem
distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se
sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são va-
lorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm
encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT,
1993a, p. 12)
A ciência desempenha um papel fundamental e estratégico na pro-
dução de novos regimes de verdade para a construção das bases e forta-
lecimento da sociedade moderna. A “economia política” da verdade tem,
para Foucault (1993a),
Cinco características historicamente importantes: a “verdade” é cen-
trada na forma de discurso científico e nas instituições que o produ-
zem; está submetida a uma constante incitação econômica e política
(necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto
para o poder político); é objeto de várias formas, de uma imensa
difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educa-
ção ou de informação, cuja extensão no corpo social é relativamente
grande, não obstante algumas limitações rigorosas); é produzida e
transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns
aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército, escritura,
meios de comunicação); enfim, é objeto de debate político e do con-
fronto social (as lutas “ideológicas”) (FOUCAULT,1993a, p. 13).
A ciência moderna dá origem: às ciências exatas, que organizam o
pensamento para interpretar o movimento e funcionamento do planeta
e da natureza; às ciências biológicas, que constroem explicações para a
existência corporal e material humana e às ciências humanas, que inter-
pretam a existência imaterial, cultural e social.
As ciências modernas produzem saberes que o processo educacio-
nal trata de transformá-los em práticas disciplinares que visam ordenar

102
e homogeneizar a existência e as práticas humanas. Constroem mode-
los ideais e desejáveis. Delimitam e afirmam uma identidade humana
una e universal para fazer do homem um sujeito político voltado para
o projeto civilizatório que se orienta para a hegemonização de um pa-
drão humano em termos: racional, ocidental, branco, universal, livre e
emancipado.
A passagem do indivíduo para o mundo civilizado requer liberdade
de expressão; inserção no mundo do trabalho; ação produtiva; autono-
mia na gestão da vida individual; integração ao mundo racional e evolu-
ído e vida social condicionada à nova ordem.
O mundo civilizado se organiza a partir da revolução industrial e
da ação firme do Estado moderno que normatizam as relações políticas,
sociais e econômicas. Produz-se uma matriz histórica com base no ide-
ário liberal, produtivista, mercantil, que estrutura regimes de verdade a
orientar a trajetória constitutiva da sociedade e educação moderna.

Sentidos da educação para e na sociedade moderna


A vida civilizada necessita da educação para retirar o homem, se-
gundo Hobbes (2002), da condição de “estado de natureza” e transfor-
má-lo em sujeito civil. Para superar a sua condição de primitivo e de
bárbaro, o homem precisa ser educado para praticar regras sociais, a fim
de viver e constituir-se como parte da sociedade civil e assim alicerçar
as bases de um processo civilizatório nos moldes da sociedade moderna
e capitalista.
A civilização capitalista é produtora de sociedades cujas bases se
alicerçam na industrialização e na urbanização, na mercantilização de
bens materiais e imateriais, em valores de troca e na redução da huma-
nidade em seres consumidores.
O caminho para o mundo civilizado requer dos indivíduos: liber-
dade, ação formal do Estado, comportamentos sociais destinados ao tra-
balho produtivo e inclusão no mundo esclarecido, organizado, racional
e evoluído. Como afirma Cambi (1999, p. 199-200), a lógica de moder-
nidade “tende a moldar profundamente o indivíduo segundo modelos
sociais de comportamento, tornando-o produtivo e integrado”.
Eis a missão da ciência e da educação moderna: preparar os seres
humanos para viverem em sociedade; construir padrões de sociabilidade

103
visando à convivência social; formar o indivíduo com habilidades e ca-
pacidades para o ingresso no mundo do trabalho produtivo e econômi-
co; emancipar o homem para torná-lo político, capaz de agir, civilizada-
mente, em sociedade.
A ciência moderna produz regimes de verdade e o estado, o capital,
a mídia, as religiões constroem representações e institucionalidades para
ordenar e universalizar esses regimes de verdade. Modelados por essas
máquinas de captura, tornamo-nos sujeitos “livres, políticos e cidadãos”.
A educação moderna deve libertar o homem de sua condição de
existência natural, primitiva, atrasada, para transformá-lo num sujeito
que pensa por si. É racional, portanto, livre. É político, portanto, eman-
cipado, autônomo, capaz de intervir na natureza, na matéria para produ-
zir o progresso, a evolução da humanidade.
A educação moderna é, portanto, um instrumento político e ide-
ológico que atua na formação do sujeito para a liberdade, para a ação
autônoma, o pensar racional, o agir emancipado para o trabalho e o
progresso da humanidade.
Mas o que significa ser livre na sociedade moderna? Quem é real-
mente livre? Como são tratados os desejos, a criação, os impulsos huma-
nos nessa sociedade? Para qual modelo de organização produtiva está o
trabalho submetido? Quem está determinando a história da existência
humana? Quem está tendo acesso às “benesses” desse modelo de desen-
volvimento, das marcas e produtos desse progresso?
Os regimes de saber e de poder da educação moderna levam em
conta a diversidade e a desigual condição humana? O indivíduo é res-
peitado e considerado a partir da sua multiplicidade racial, étnica, de
classe, geracional, de sexo-gênero e de orientação sexual?
Como lembra Foucault (2003), a ordenação da sociedade é “con-
tingente” e “histórica”. O solo das realizações humanas não é determi-
nado para se eternizar. A ação política individual e coletiva dos sujeitos
é estratégica para mudar as metanarrativas históricas.
Embora a ciência, a educação, os gêneros sociais se constituam
como importantes edificações a produzir símbolos de objetivação, de
naturalização de modos de pensar e agir, que são orientados para enqua-
drar, identificar e “proteger” as pessoas na medida em que as fazem se re-
conhecer como pares semelhantes, sair desse campo identitário e abrir-se

104
para o diferente, o Outro, é, nos tempos atuais, um lugar necessário, para
o saber insurgente e para um agir emancipatório e humanizado.
A aventura humana para a sua constituição como indivíduo civili-
zado e a educação moderna vista como único instrumento de formação
e ingresso humano na vida civilizada está sendo questionada nos seus
sentidos e suas formas de subjetivação humana.
Nessa direção, vale problematizar: o que significa civilizar? Para
Giacóia Júnior (2004, p. 173), a civilização humana significa “ordena-
ção e tranquilidade da vida exterior”. Seu sentido remete à necessidade
de garantia de “limpeza, de adestramento, de conforto das habitações,
de vestimenta” e de ordenamento das atividades humanas. Afirma Gia-
cóia Júnior (Idem, 2004) que essa ordem se contrapõe a uma espécie
de formação voltada para a “cultura do espírito”, para o “esclarecimento
superior”.
Também Arendt (1993) ao designar e analisar a “vida activa” volta-
-se para pensar como o homem vem atuando em três atividades huma-
nas: o labor, o trabalho e a ação.
Para Arendt (1993),
O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do cor-
po humano. [...]. O trabalho produz um mundo “artificial” de coisas.
[...]. A “ação”, única atividade que se exerce diretamente entre os ho-
mens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condi-
ção humana da pluralidade. [...]. Essa pluralidade é especificamente
a condição - não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per
quam – de toda a vida política (ARENDT, 1993, p. 15).
Arendt traz para a atualidade a preocupação com os recentes ca-
minhos da civilização da humanidade. Para a filósofa alemã, a sociedade
moderna tem se voltado para agir no plano das atividades do labor e do
trabalho, distanciando-se de sua finalidade maior – a da ação.
A ideia de civilização em Giacóia Júnior (2004) e de ação em
Arendt (1993) é, ousadamente, problematizada por Foucault (1993b,
p. 131) ao refletir sobre o poder político do século XVIII e definir sua
forma de “gerir a vida”, denominada pelo filósofo de bio-política, mode-
lo que abre a “era do bio-poder” (Idem, p. 132). Esse produz “interven-
ções e controles reguladores” implantados sobre o corpo para “obterem a

105
sujeição dos corpos e o controle das populações”. É o poder investindo
na vida, para o seu domínio.
Foucault (1993a) afirma que
O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simples-
mente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com
o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de
tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-
-política (FOUCAULT, 1993a, p. 80).
Mas, focos de resistência a essa dominação (bio-política) surgem
em diversos cenários, que desencadeiam a problematização das diferen-
ças inscritas nos corpos, na sexualidade, nos modos de exercício da exis-
tência humana, nas singularidades.
Ao produzir reflexões sobre a nova civilização do capital e pensar a
mulher, as mulheres, no contexto da vida em mutação, sugere-se dialo-
gar com Pelbart (2003, p. 13), que afirma:
A vida tornou-se o alvo supremo do capital. [...] Nunca o capital
penetrou tão fundo e tão longe no corpo e na alma das pessoas,
nos seus genes e na sua inteligência, no seu psiquismo e no seu
imaginário, no núcleo de sua “vitalidade”. Ao mesmo tempo, tal
“vitalidade” tornou-se a fonte primordial de valor no capitalismo
contemporâneo: a produção imaterial seria impensável sem a força
de invenção disseminada por toda parte. Reservatório inesgotável
de genes e de ideias, de invenção e de recomposições, a vida é, afi-
nal, um “capital” comum (PELBART, 2003, p. 13).
Os movimentos de mulheres e especialmente os movimentos fe-
ministas atuam para afirmar a multiplicidade de modos de vida e de
trabalho, de diferenças entre os gêneros humanos, numa outra lógica,
que se dirige para a afirmação da vida e não para transformá-la em mer-
cadoria, objetivada como se faz pelos processos de domesticação do ca-
pital (LOURO, 2001; PETERS, 2000; GUATTARI & NEGRI, 1987;
PELBART, 2003).
As mulheres levam a crítica e o questionamento da sociedade mo-
derna para as ruas, os sindicatos, os partidos políticos, a máquina estatal,
a academia, em relação aos seus pilares civilizatórios e ao saber científico

106
ancorado nos pressupostos da verdade única e universal, na neutralida-
de, na igualdade humana e na racionalidade e objetividade.
Essas bases argumentativas passam a ser questionadas por sua
ambiguidade e a partir de suas contradições, construindo assim novos
discursos e narrativas a partir da realidade das mulheres e de sua plura-
lidade. A mulher passa também a ser compreendida na sua diversidade
– como mulheres, que se expressa na cor, na orientação sexual, religiosa,
etnia, relação com a vida e o trabalho, dentre outras especificidades.

Os estudos feministas em contraposição ao paradigma da


ciência moderna
Os movimentos feministas e as feministas acadêmicas inscrevem
no campo da ciência instigantes dúvidas e incertezas a serem pensadas
sobre quem é o sujeito social, o ser político e econômico da sociedade
humana. A questão se propõe a desnaturalizar a histórica organização
social que se funda em bases de caráter classista, racista, androcêntrica,
masculinista e patriarcal.
A ciência feminista organiza seu campo analítico para questionar o
pensamento androcêntrico que universaliza o sujeito de direitos em tor-
no do homem e invisibiliza a existência do sujeito mulher como agente
social, econômico e político (BANDEIRA, 2008).
A categoria do Universal omite a existência do Outro – a Mulher,
as Mulheres, nas esferas do mundo público e político, cuja função social
resume-se ao mundo familiar e doméstico. Para Bandeira (2008, p. 213),
o “pensamento científico fundador propugnava a ideia de um sujeito
– masculino universal –, o que equivaleu à exclusão feminina tanto da
produção da ciência como de sua história”. Tal exclusão deveu-se a jus-
tificativas construídas sobre o caráter fisiológico e psicológico atribuídos
de forma natural à mulher.
A crítica ao sujeito universal de direitos desloca-se do biológico,
considerado e atribuído pelas leis, como natural e não político, para a
condição da mulher enquanto indivíduo, como sujeito social e político
que deve ser tratado e ter garantidos os direitos e deveres de cidadã.
O campo de estudos do feminismo amplia seu raio de análise
para os feminismos que se multiplicam nas ações políticas dos movi-
mentos feministas, ao questionarem os direitos universais atribuídos,

107
unicamente, ao homem, reconhecido como o sujeito universal de direi-
tos nas dimensões social, econômica e política, instalado na sua dimen-
são burguesa, mas também nas desigualdades de classe, raça, etnia que
se aportam em lutas na construção de sociedades alternativas, para além
do capitalismo.
A estatura científica a se produzir na epistemologia feminista an-
cora-se em novos marcos analíticos para pensar a organização societária
e as relações de gênero (masculino e feminino), com base nas opressões
vivenciadas por mulheres brancas, negras, lésbicas, indígenas, campo-
nesas, quilombolas, operárias, dentre outras diversidades que se fazem
externar no campo das lutas sociais e políticas.
A partir dessa consideração, há instigantes debates na contempo-
raneidade que considero importante registrar. São realizados por Scott
(2002, p. 27), ao trazer para o campo dos feminismos a ideia de pa-
radoxo, incitada por Olympe de Gouges, em 1788, em torno da luta
por igualdade e reconhecimento das diferenças sexuais, ou seja, proble-
matizando a oposição produzida por correntes feministas ancoradas na
igualdade ou na diferença.
A Verdade construída com base no conhecimento científico e/ou
moral vai elaborar leis e dar a forma de verdade ao estatuto da natureza
humana. Não somente para o sexo, mas também para a raça e etnia.
Observe-se que essa outra lógica inverte a força do biológico como o
lugar da desigualdade entre os gêneros e constrói argumentações emi-
nentemente políticas.
Para Scott (2002),
Quando se legitimava a exclusão com base na diferença biológica
entre o homem e a mulher, estabelecia-se que a “diferença sexual”
não apenas era um fato natural, mas também uma justificativa onto-
lógica para um tratamento diferenciado no campo político e social
(SCOTT, 2002, p. 26).
Tal leitura analítica mostra que havia divergências entre as femi-
nistas da igualdade, que focavam a luta na negação ou omissão de suas
diferenças sexuais e o campo de lutas das feministas da diferença, que,
em nome da mulher acolhiam a diferença sexual. Presas a esse campo
de debates a questão analítica aprisionava-se na discussão da diferença

108
sexual e distanciava-se de sua centralidade que se refere à condição polí-
tica do sujeito social – mulher –, na sociedade democrática e de direitos.
A centralidade almejada pode ser mais bem compreendida a par-
tir do sentido de paradoxo, entendido “como um sinal de capacidade
de equilibrar pensamentos e sentimentos complexamente contrários
uns dos outros e, por extensão, da criatividade poética” (SCOTT, 2002,
p. 28). A incorporação do significado de paradoxo traz para os movi-
mentos e as acadêmicas feministas a necessidade de, ao mesmo tempo,
“aceitar e recusar a diferença sexual” (Idem, 2002, p. 27).
Os campos normativo, institucional e como construção homoge-
neizadora entre e intra-gêneros são colocados em questão com o reco-
nhecimento da pluralidade humana, expressa na dimensão sexo-gênero,
e também, racial, étnica, sexual.
A hierarquia e a representação constituída, histórica e culturalmen-
te, para dar superioridade e legitimidade ao sexo-gênero masculino traz
ainda para análise a identificação de quem é o indivíduo na sociedade
de direitos. A acepção de indivíduo atribuída ao homem o coloca num
sistema de alianças comuns em relação ao seu grupo social – os homens
–, que se consideram idênticos e em oposição ao grupo de mulheres,
considerado como o Outro, o diferente.
Tal formação em grupos sociais se dá a partir de categorias men-
tais, fundadas sobre algo irredutível como o funcionamento universal
do espírito, que constrói a igualdade pela aproximação de semelhanças,
de elementos já conhecidos. São formas mentais de categorização de
pessoas, objetos etc., de ação racional no mundo social (HÉRITIER,
2012, p. 50).
A ciência moderna tem a marca de um sistema de alianças e de
designações que se configuram a partir da ordenação de semelhanças, de
proximidades, em que é possível criar um “lugar comum”, onde é possí-
vel estabelecer ordem, uniformidade, universalidade, criar leis.
Assim, desde a Grécia Antiga, o grupo social formado pelos ho-
mens livres torna esse grupo como idêntico, igual, e os outros, as mulhe-
res, os escravos, as crianças, formam o Outro, o diferente (ARENDT,
1993, p. 83). O grupo que vai produzir a referência de grupo social cen-
tral e principal é o grupo dos homens para se pensar as relações políti-
cas, sociais e de gênero.

109
A categorização das pessoas de forma binária é assim constituída
para criar a ideia de hierarquia, de superioridade/inferioridade estatu-
tária, de posições de autoridade/subalternidade entre os gêneros. Essa
lógica ao ser naturalizada mantém a mulher vinculada ao estatuto de
natureza e o homem ao estatuto político.
A ação crítica e política das feministas somente superará seus im-
passes desmontando a força discursiva e simbólica, de viés androcêntrico.
Trabalhar com o paradoxo parece ser um caminho instigante e promissor.
Outra categoria importante a se desmontar se refere à Objetivi-
dade prescrita na ciência moderna. Esta é fortemente desnaturalizada
pela epistemologia feminista por compreender que o conhecimento é
permanentemente permeado por relações de poder.
Para Scott (1995, p. 73), “pesquisadoras feministas”, com visão glo-
bal e crítica, compreenderam que a categoria analítica de gênero, aliada
à de raça e de classe poderiam produzir “a escrita de uma nova história”
que “incluía as narrativas dos/as oprimidos/as e uma análise do sentido
e da natureza de sua opressão e, em segundo lugar, uma compreensão
das desigualdades de poder estão organizadas ao longo de, no mínimo,
três eixos”.
Concordando com Scott (Idem, p. 86) sobre a existência de duas
faces atribuídas ao conceito de gênero, que se referem a “o gênero é um
elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças perce-
bidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primária de dar significação
às relações de poder”, podemos reafirmar que os estudos que dialogam
com essa categoria de análise contribuem para a desmistificação da ob-
jetividade científica.
Pensar as relações de gênero atravessadas por relações de poder sig-
nifica compreender os poderes acumulados por determinado gênero, o
acesso desigual à tomada de decisão, aos recursos materiais e imateriais
produzidos pela sociedade.
O gênero é legitimado pelo poder a ele atribuído e é por ele constru-
ído. Sua constituição se dá nas relações de parentesco, mas se realiza tam-
bém nas regras instituídas para fazer funcionar a religião, a política, a eco-
nomia, a educação, ou seja, nos diferentes espaços de sociabilidade humana.
Chegar à crítica do poder instituído, seja no âmbito do Estado,
dos organismos sociais, seja no seio das relações familiares, ou entre os

110
gêneros, produz desestabilizações em modelos de organização social que
são alicerçados na disciplina das pessoas, na sujeição das mulheres, na
ordem patriarcal, na negação do desejo, da sexualidade plena.
A epistemologia feminista desenvolve conhecimentos para trans-
formar a sociedade e sobremodo as relações desiguais entre os gêneros.
Nessa direção, tem, também, criado impasses para a ciência moderna
que avalia a produção científica por sua neutralidade e distanciamento
em relação ao sujeito social da pesquisa.
Nesse sentido há que também construir argumentos para romper
com a visão e lógica da Neutralidade do conhecimento científico que,
apoiando-se na racionalidade epistemológica, desqualifica os saberes
da experiência, do conhecimento endógeno, das dimensões subjetivas e
nega o caráter político do saber.
A partir da década de 1960, a epistemologia feminista tem ques-
tionado a produção do conhecimento científico hegemônico e masculi-
no através da produção de saberes acadêmicos que incorporam o debate
da alteridade, da diferença, da identidade, das relações de poder e de
gênero, da divisão sexual do trabalho, sobre a vida cotidiana, sobre a mu-
lher como sujeito de pesquisa, com temas vinculados à sua vida coletiva,
familiar e individual, dentre outros estudos.
A suposta Neutralidade é questionada por estudiosas e, de forma
recorrente, por historiadoras, quando desnudam a história de mulheres
com importantes funções sociais, técnicas e políticas em temporalidades
históricas, cujos escritos eram de predomínio do masculino.
Assim, podemos falar não mais no singular, mas no plural, em
epistemologias feministas, quando temos um campo vasto de produção
de conhecimentos que avançam não apenas na crítica aos postulados
da ciência moderna, mas na produção de novos conceitos analíticos e
metodológicos, na produção de saberes úteis à transformação e eman-
cipação da mulher, digo, das mulheres, pois aliada à diferença sexual,
encontram-se existências de mulheres que expressam diversidades cons-
titutivas de mulheres, com diferenças ancoradas na raça, etnia, religião,
trabalho, geração e orientação sexual.
As epistemologias feministas e os movimentos feministas trazem
germes de reinvenções, de novas lutas e reivindicações coletivas que aco-
lhem saberes e práticas para a “cultura do espírito” e da vida como “ação”

111
que se deseja, não sejam aprisionados pelo modelo civilizatório capita-
lista, mas que recorram aos novos modos de existência experimentados
na permanente reinvenção e recriação da potência humana.
Nesse sentido, trazer para o debate acadêmico e político os saberes
transmitidos por mulheres camponesas para um pensar reflexivo se faz
necessário na medida em que esses conhecimentos se realizam na fron-
teira de possibilidades de construção de novas formas de entendimento
da vida humana.

Saberes da experiência em diálogo com saberes acadêmicos


As bases da ciência moderna têm sido problematizadas por acadê-
micas feministas4 desde a década de 1970, e provocado rupturas, ao tra-
zerem discursos de denúncia, de novos temas, com novos/as interlocu-
tores/as e “através das diferentes tradições disciplinares e áreas de saber”
(COSTA & SARDENBERG, 2002, p. 11-12). A luta das mulheres
por reconhecimento e distribuição equitativa de bens e direitos é, para
inúmeras feministas, um campo profícuo de análise e de produção de
conhecimentos a inscrever instigantes marcas na teoria crítica feminista.
Dessa forma, romper com as distâncias entre o conhecimento aca-
dêmico e o saber da experiência de mulheres camponesas se faz poten-
cializador e agregador de reflexões àquelas que buscam renovar os hori-
zontes do conhecimento, principalmente, do saber feminista e também
realizar deslocamentos, abrir novas fronteiras e criar interações entre
estudos feministas e experiências de mulheres camponesas (ESME-
RALDO et al., 2017).
As mulheres camponesas têm produzido saberes emancipatórios,
saberes a partir de suas experiências que instigam o diálogo com a pers-
pectiva feminista. São saberes que constroem e fortalecem comunidades
sustentáveis a se gestarem em sujeitos individuais e coletivos.
Poder trazer reflexões para compartilhar os saberes de mulheres
camponesas e que advêm das experiências exitosas em comunidades ru-
rais e não de determinações e imposições de modelos desenvolvimen-
tistas externos às realidades locais é necessário para afirmar e garantir
a transmissão e o reconhecimento desses saberes, como conhecimento
4 Para conhecer autoras, dentre outras acadêmicas feministas brasileiras, que produzem
epistemologia feminista, consultar Sardenberg (2002, p. 89-120) e Bandeira (2008).

112
que afirma e produz a sustentação da vida em todas as suas diferentes
expressões.
As questões aqui colocadas são, principalmente, tratadas a partir
das experiências agroecológicas desenvolvidas por mulheres campone-
sas. Assim pergunto: Como se constrói o saber produzido pelas mu-
lheres que realizam práticas agroecológicas? Como valorizar saberes e
práticas dessas mulheres?
Refletindo sobre como se constrói o saber produzido pelas mulhe-
res que realizam práticas agroecológicas. Dialogando sobre como valori-
zar saberes e práticas dessas mulheres. Construindo formas de diálogos
com o saber acadêmico e propondo caminhos para ressignificar os dois
saberes.
Há saberes locais nas experiências agroecológicas, realizadas por
mulheres rurais, em processo de transmissão que requerem ser perce-
bidos, compreendidos, reconhecidos e (re) significados na sociedade
moderna de base urbana, industrial e na ciência. Estou falando de uma
sociedade camponesa de e com saberes específicos, que reúne um pa-
trimônio imaterial importante da e para a humanidade. Destaco um
conhecimento que faz a unidade do saber nas coisas; que faz a trans-
missão de saberes secular; que constrói o tempo do aprendizado pessoal
e o tempo do aprendizado coletivo a se acumular em muitas gerações
(ESMERALDO et al., 2017).
São saberes que possuem um caráter vital, diretamente relacionado
à reprodução das diferentes espécies da natureza, não apenas humanas,
mas animais, vegetais e minerais. São saberes que fortalecem, a biodiver-
sidade, que mantêm a vida planetária, terrestre e para todos os que nela
habitam (ESMERALDO et al., 2017).
Trata-se de aprendizados que são resultados do trabalho humano,
integrado e em relação com o movimento, com a dinâmica da nature-
za; que ocorrem nos espaços das relações entre indivíduo-natureza e
produzem competências, habilidades, num trabalho silencioso, que são
difíceis de serem compreendidos e medidos pelas análises tradicionais
acadêmicas.
São aprendizados que se realizam de forma direta, subjetiva, que se
renovam a cada relação com a natureza, com a sociedade. São aprendi-
zados criadores de memória humana (MONEYRON, 2003).

113
São aprendizados que geram saberes incorporados em mulheres
agroecológicas a cada interação com seus quintais, nos seus cultivos (fru-
tíferas, oleícolas, medicinais, florícolas etc.), nas suas criações (aves, ove-
lhas, caprinos, suínos etc.), nas suas transformações (bolos, doces, queijos
etc.), no extrativismo (coleta de lenha, de água, pesca) e nas comercializa-
ções (em feiras municipais e agroecológicas, na vizinhança etc.). Apren-
dizados que nos últimos anos também são experimentados nos espaços
de formação, nas manifestações públicas, nas lutas organizadas pelos
movimentos de mulheres e sindicais (ESMERALDO et al., 2017).
Cada ato, cada prática alia, reúne, liga e integra dimensões afeti-
vas, físicas e cognitivas. Através da observação silenciosa do tempo, dos
espaços, dos sinais da natureza, do céu, da terra, da água, dos gestos, dos
ritmos e comportamentos dos membros da família, são produzidos por
mulheres, saberes em movimento, atitudes, tomadas de decisão incorpo-
radas e expressas na paciência, no cuidado, na autonomia, na alteridade a
circularem em suas relações com o meio ambiente, com a natureza, com
as pessoas (MONEYRON, 2003).
A sociedade moderna, de base urbana e industrial, e a ciência mo-
derna desvalorizam e desconhecem esse aprendizado, que é fruto da
observação diária, intensa, atenta às mudanças, sendo, no entanto, ge-
radora de saberes individuais e coletivos. São aprendizados individuais
muitas vezes solitários, mas que exigem ação e pensar reflexivos sobre a
realidade, sobre a experiência vivida. Há formação, há processo educa-
tivo, há elaboração mental, cognitiva, intelectual nesse cotidiano vivido,
experienciado.
Os saberes acumulados pelas mulheres nas práticas agroecológicas
se fazem na experiência cotidiana e, estão, profundamente, ligados à sua
sobrevivência e à reprodução da sua vida familiar. Mas não se trata de
um saber específico, como sendo somente de produção exclusiva de mu-
lheres. Este saber é universal em sociedades tradicionais como as cam-
ponesas, quilombolas, pescadoras, por exemplo, tais modos de aquisição
de saberes são semelhantes (ESMERALDO et al., 2017).
Não há neste trabalho qualquer risco de tratar esse conhecimento
de forma essencializada, de um saber que seja basicamente feminino,
nem de reafirmar a mulher numa relação direta com a natureza, como
a coloca a ciência moderna numa postura analítica dual. Trata-se de

114
saberes em processo de construção experiencial a partir das práticas exe-
cutadas pelas mulheres em seus quintais e no entorno de suas moradias,
principalmente. São conhecimentos aprendidos, não naturais de mulhe-
res. É importante ressaltar que são saberes cujo maior domínio está com
as mulheres rurais que exercitam manejos agroecológicos (ESMERAL-
DO et al., 2017).
Uma segunda reflexão para que possamos avançar no diálogo en-
tre o conhecimento acadêmico e os saberes das mulheres camponesas:
Como construir formas de diálogos com o saber acadêmico e propor
caminhos para ressignificar os dois saberes?
Para Héritier (2012), há que se compreender, inicialmente, as tra-
mas que dão lógica à formação do pensamento humano, ou como a
humanidade pensa o real. Um ponto de partida é descobrir como se
fazem as regras de organização social: idêntico x diferente; homem x
mulher. As categorias mentais são formadas a partir da definição do que
é desconhecido, ou seja, a classificação por cor, forma, comportamento,
são elementos de uma racionalidade que separa em idênticos e diferen-
tes as pessoas, os animais etc. Todos os seres que são do Mesmo sexo
são iguais, todos aqueles que são de Outro sexo são idênticos entre si e
diferentes dos primeiros (HÉRITIER, 2012, p. 52, tradução da autora).
Idêntico (masculino) e Diferente (feminino) são categorias dua-
listas, mas é a primeira que faz a categoria binária, que vai servir de
referência às populações a pensar o real (HÉRITIER, 2012, p. 52, tra-
dução da autora). O pensamento dual é assim carregado de hierarquia e
de poder para o idêntico, quando a sociedade faz a escolha de conjunto
atribuindo ao masculino à posição de idêntico. Ao diferente, portanto, à
mulher, se coloca uma posição de reciprocidade, de simetria, numa con-
dição de subalternidade. Ao gerar essa lógica, cria-se uma “invariante
universal” que gera a “valência diferencial do sexo” (HÉRITIER, 2012),
na qual o que vem primeiro é o superior.
A separação criada e construída pela ciência moderna entre natu-
reza e sociedade alicerçada no pensamento dual reforça a divisão sexual
na produção do trabalho material e imaterial da humanidade. Dentre
esses, destaco o trabalho intelectual, cognitivo produzido por mulheres,
quer estejam na academia, quer estejam fazendo experimentações no
campo rural. Para a ciência moderna, o conhecimento produzido pelo

115
gênero feminino é inferior, invisível e reconhecido apenas na arena pri-
vada, familiar.
Morin também chama a atenção para o conhecimento escolar, uni-
versitário, que, mesmo em tempos de globalização, tem sido apresentado
de forma fragmentada, dividido em disciplinas, numa época de “reali-
dades multidimensionais, globais, transnacionais, poli disciplinares e até
mesmo transdisciplinares” (2012, p. 14).
O conhecimento produzido na academia e transmitido nos “ban-
cos escolares” está desconectado do tecido social, das mudanças que se
realizam de forma imbricada entre o local e o global. Mas não há como
separar os problemas encarados pelas comunidades locais com os pro-
blemas vivenciados pelo planeta terra. As mulheres e as comunidades
camponesas e tradicionais já o fazem secularmente (ESMERALDO et
al., 2017).
Na direção da desfragmentação e da conscientização do caráter
complexo da condição humana, Morin propõe ao sistema educacional a
adequação de todas as disciplinas, científicas e humanistas, para: 1)
formar espíritos capazes de organizar seus conhecimentos em vez de
armazená-los por uma acumulação de saberes (“Antes uma cabeça
bem-feita que uma cabeça muito cheia”, Montaigne); 2) ensinar a
condição humana (“Nosso verdadeiro estudo é o da condição huma-
na”, Rousseau, Émile); 3) ensinar a viver (“Viver é o ofício que lhe
quero ensinar” Émile); 4) refazer uma escola de cidadania (MORIN,
2012, p. 18).
E aqui se coloca uma questão original para esta escrita relacionada
à reflexão sobre a transmissão do saber e a formação das pessoas. Qual
saber está sendo produzido, valorizado e transmitido? Quem recebe esse
saber? Quem está sendo formado? A que e a quem serve esse saber? O
mundo natural tem seus limites e quem está mais próximo dele para
conhecer sua capacidade de resistência?
Retomo a questão que se mantém aberta: como valorizar, (re) sig-
nificar os saberes das experiências produzidas por mulheres rurais? Sa-
beres vivos, experienciais, transgeracionais. As experiências das mulhe-
res e a transmissão de seus saberes se fazem com o objetivo de garantir
a manutenção da vida.

116
Mulheres aprendem pela observação e pelos sentidos. Usam as di-
mensões físicas, afetivas e cognitivas de forma interligada. O aprendiza-
do mobiliza os corpos, as mentes, os corações das pessoas, em conexão
com os dos animais e das plantas. O aprendizado pela observação re-
flexiva produz nas mulheres uma memória afetiva e um inventário das
plantas e das técnicas (ESMERALDO et al., 2017).
Quando dialogo com o aprendizado pela observação, estou falan-
do de processo pedagógico, de método de pesquisa. De aprendizado e
experimentação no cotidiano de trabalho das mulheres. Estou falando
de processos de educação da sensibilidade, de formação, de construção
de competências que se dão, repito, no plano afetivo, cognitivo, físico e
político. Essas observações podem ser pensadas a partir do campo da
experiência, como saberes da experiência, como saberes das práticas. E
seu reconhecimento como conhecimento apreendido tem pertinência e
competência (ESMERALDO et al., 2017).
Nesse sentido, no seu cotidiano de vida, as mulheres produzem
perspectivas de trabalho teórico-metodológico a ser estudado, compre-
endido, ressignificado na academia e enriquecido para ampliar o campo
da epistemologia feminista (ESMERALDO et al., 2017).
Na agenda das acadêmicas feministas, o caráter político das ações
das mulheres é simultâneo e gerador de conhecimento e de poder. O
feminismo, ao se posicionar no “ângulo de visão dos oprimidos”, passa a
considerar a inclusão, a luta por direitos negados, a denúncia da opres-
são, a afirmação de novos sujeitos sociais, o reconhecimento da diversi-
dade no interior do próprio sujeito social – a mulher (SARDENBERG,
2002, p. 107).
O feminismo crítico questiona o pressuposto da neutralidade, indi-
cando que o conhecimento deve ter o caráter transformador, e por isso ter
posição e estar em relação com o social, o político e o histórico. Ao mes-
mo tempo, tal debate adentra no questionamento da generalização da ci-
ência, demonstrando que somente se aceitam as generalizações se forem
“confirmadas por nossa experiência” (SARDENBERG, 2002, p. 104).
Há no debate questões de ordem teórico-metodológica a tratar
que remetem ao enriquecimento da epistemologia feminista, da catego-
ria analítica de gênero e do fortalecimento das práticas das mulheres no
campo da agroecologia (ESMERALDO et al., 2017).

117
Construir uma base reflexiva feminista é, como afirma Sardenberg,
propor princípios, conceitos e práticas que possam superar as limi-
tações de outras estratégias epistemológicas, no sentido de atender
aos interesses sociais, políticos e cognitivos das mulheres e de outros
grupos historicamente subordinados (2002, p.97).
A autora considera que no meio de tensões e de divergências entre
as correntes feministas “talvez a única assertiva epistemológica feminis-
ta” a ter consenso, “seja a noção geral de conhecimento situado”, que signi-
fica o conhecimento que reflete “a posicionalidade dos sujeitos cognos-
centes, sendo gênero um dos fatores determinantes na sua constituição”
(Cf. ANDERSON, 2001, citado por SARDENBERG, 2002, p. 98).
Portanto, considerar os saberes das mulheres camponesas como
saberes que produzem, reproduzem a vida humana e do planeta signi-
fica ressignificar e superar os limites da ciência moderna. Trazer para a
pauta feminista as experiências e os saberes das mulheres camponesas,
indígenas e quilombolas significa somar-se na produção de um pensar/
fazer para animar a luta por preservação do ambiente, da natureza, da
convivialidade com os bens comuns e por Bem-Viver.

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120
Cuerpos indisciplinados y resistencias al poder

Lilian Celiberti1

Resumo
Las historias feministas son historias de indisciplinas. Desde lo
privado a lo público y de lo público a lo privado pequeñas y grandes
rebeliones han marcado las silenciadas trayectorias de las mujeres. Mari
Luz Esteban afirma que “el cuerpo es un nudo de estructura y acción, de
experiencia y economía política” y que por ello “todo avance feminista, todo
‘empoderamiento’ de las mujeres a nivel social implica siempre una experien-
cia del cuerpo visto y vivido” (ESTEBAN, 2004, p.43). Una experiencia
del cuerpo, una acción de aparición performativa en el espacio público,
como resistencia, como acción discursiva y también como afirmación de
identidades políticas. En estas notas pretendo analizar la emergencia y
multiplicación feminista en las calles en los últimos años para dar cuenta
de este momento tan singular de la capilaridad feminista en un contexto
de voracidad y guerra capitalista contra la vida.

Emergencias y multiplicidades
En el 2015, las plazas, las calles y las escuelas de Brasil (particular-
mente en el sur) se llenaron de voces feministas contra las propuestas
para restringir aún más el derecho a decidir de las mujeres sobre su capa-
cidad reproductiva. El abuso sexual de una joven por parte de un grupo
de hombres, se “viraliza” en las redes, y es otro desencadenante de lo
que comenzó a llamarse la “primavera de las mujeres”; una emergencia
de rostros y voces, que combinaron el ciberactivismo con una presencia
activa en las calles. El hashtag “primer asedio” desbordó de testimonios,
experiencias y pronunciamientos contra el machismo cotidiano. A su
vez, miles de mujeres negras construyeron durante un año la Marcha
de las mujeres contra el racismo, el machismo y por el buen vivir” que
confluyó en Brasilia el 25 de julio del 2015.
1 Activista feminista desde hace 35 años, maestra y coordinadora del Centro de
Comunicación Virginia Woolf.

121
Las fuerzas desplegadas por esa maravillosa primavera de voces y
rostros, de ocupaciones de centros de estudio por parte de adolescen-
tes, con movimientos como “Lute como una minina”, encuentran una
respuesta brutal en el golpe parlamentario contra Dilma Rousseff y el
desmontaje progresivo de políticas públicas destinadas a garantizar de-
rechos sociales a grandes mayorías. Los asesinatos de lideresas sociales
como Marielle Franco, en el marco de un despojo brutal de dignidad y
derechos que abre paso al racismo desembozado y los más rancios dis-
cursos de odio homofóbicos y fascistas. El futuro de la democracia en
Brasil está en peligro y su crisis apela a una profunda re-invención de
las formas de hacer política. La vida cotidiana está atravesada por una
profunda tensión anti-derechos y nuevas subjetividades expresivas que
afirman nuevos derechos. En el escenario político de la región la demo-
cracia política, sus mecanismos de representación y garantías elementa-
les para la vida en común vuelven a ser tema central de debate.
La movilización convocada para el 3 de junio en Argentina con
la consigna “Ni Una menos”, se extendió rápidamente a otras ciudades
latinoamericanas y fue la antesala del Paro Internacional de Mujeres del
8 de marzo del 2017. Parece evidente que se expresan en las calles nue-
vas identidades colectivas, donde voces muy diversas ocupan el espacio
público llenándolo con rostros y rabias, jóvenes y viejas, multiplicidad de
consignas y demandas.
La diversidad de los feminismos es su característica actual. Es ade-
más su mayor riqueza, porque expresa las múltiples formas, espacios,
estrategias, desde donde los feminismos luchan por modificar las situ-
aciones de exclusión y subordinación de las mujeres, intersectadas por
condiciones étnico raciales, generacionales, de clase y sexuales, que ge-
neran desigualdad. Una diversidad que trae nuevas voces y presencias,
forjadas desde otras experiencias y culturas, y que proponen múltiples
categorías y epistemologías de conocimiento y acción, con enorme im-
pacto en la teoría y en las epistemologías feministas.
¿Hacia adonde se están orientando sus reflexiones?, ¿qué conflic-
tividades se están expresando?, ¿qué nuevos imaginarios están siendo
recreados?, ¿qué nuevas formas de organización y articulación se están
dando?, y ¿desde dónde es posible construir espacios de diálogos, inter-
cambios, eventuales coaliciones y alianzas?

122
Es un terreno complejo, porque existe una diversidad de feminis-
mos cuyas autodefiniciones y auto percepciones pueden ser críticamen-
te dialogantes o simplemente acusatorias. Para algunas, existe el “femi-
nismo tradicional”, hegemónico, liberal, que está recién “saliendo de la
resaca de la institucionalización”. Para otras, se dan nuevos discursos
feministas que posicionan la diversidad de formas de existencia feminis-
tas, confrontan la práctica hegemónica “occidental” de los feminismos
previos y adhieren y recrean la perspectiva decolonial. Otras corrientes,
asumen esa enriquecedora diversidad, para deconstruir teorías que no
dan cuenta de esta complejidad. Este espacio, enormemente diverso,
yuxtapuesto, con tiempos y ritmos diversos, es el sustento para el re-
conocimiento de los diferentes posicionamientos “situados” que le dan
la riqueza de las múltiples perspectivas a los feminismos. (VARGAS,
CELIBERTI, 2017, p. 20).
Es esta diversidad la que en este último periodo ha adquirido be-
ligerancia y visibilidad epistemológica, y marca un nuevo momento po-
lítico feminista porque confronta política y activamente, las múltiples
estructuras de dominación, en contextos de defensa del ecosistema, de
luchas contra la explotación económica, la misoginia, el heteropatriarca-
do, y el racismo. Estas luchas evidencian, epistemológicamente, aquellas
dimensiones de la realidad que han sido negadas, folclorizadas o invi-
sibilizadas por la cultura hegemónica y posicionan otras perspectivas y
cosmovisiones no ancladas en la hegemonía occidental.
Una de las asambleas del último Encuentro Feminista Latinoame-
ricano (EFLAC)2 se dedicó a debatir sobre los nombres de los feminis-
mos. El documento preparatorio del debate afirma que
La diversidad es, hoy, una dimensión trascendental en los feminismos.
Es su característica actual y su mayor riqueza, porque pone en eviden-
cia los múltiples espacios, concepciones políticas, formas de organiza-
ción, estrategias y cosmovisiones desde donde los feminismos luchan
por modificar sus múltiples exclusiones y subordinaciones. Esa diver-
sidad no es sólo reconocimiento de la diferencia, sino del hecho de
que dicha diversidad está profundamente teñida de desigualdad, y es
de esa desigualdad de la cual los feminismos tienen que hacerse cargo.

2 Montevideo, 23 al 25 de noviembre 2017. Disponible en www.eflac.org. Memoria


del 14 EFLAC.

123
Esta diversidad trae voces y presencias que se forjan desde experien-
cias, culturas y epistemologías diversas que enriquecen un horizonte
epistemológico, plural e inclusivo al que aspira el feminismo con-
formando el feminismo como un espacio no universal sino pluri-
versal (no un solo mundo sino una pluralidad de mundos), como
un espacio abigarrado donde se yuxtaponen relaciones asimétricas
de poder, distintas culturas, etnias, razas y sexualidades con la con-
siguientes experiencias de vida y estrategias de acción diferenciadas,
con tiempos y ritmos diversos. Todo ello nos da sustento para el
reconocimiento de los diversos “posicionamientos” que alimentan la
pluralidad feminista. El reto es recuperar la diversidad de pensa-
mientos “situados” por historia, experiencia, condición de clase, con-
dición racial, sexual y de habilidades especiales (EFLAC 2018: 90).
Esta pluralización aparece como un elemento central del momento
y solo un movimiento que no centraliza las experiencias puede dar cabi-
da a la expansión ilimitada de experiencias.

Cuerpos agredidos: nuevas dimensiones de las políticas


“Tocan a una tocan a todas” expresa un grito colectivo frente a la
guerra depredadora sobre el cuerpo de las mujeres. La violencia y los fe-
micidios, han adquirido dimensiones cruentas en el escenario público en
la medida que ese grito desgarrador de identidades colectivas, expresa su
voluntad de subvertir el orden cultural establecido. Sucede que en la me-
dida que estas rebeldías ganan espacio de expresividad y contundencia,
crece también la intolerancia, el fundamentalismo y las políticas anti de-
rechos. Rita Segato habla de las nuevas formas de la guerra que se expre-
san en el cuerpo de las mujeres que, además de inquietarnos, nos desafían
a explorar otras dimensiones para pensar alternativas (SEGATO, 2017).
Sayak Valencia habla del capitalismo gore en una búsqueda por en-
contrar nuevas pistas teóricas para pensar el momento actual.
Tomamos el término gore de un género cinematográfico que hace
referencia a la violencia extrema y tajante. Entonces, con capitalismo
gore nos referimos al derramamiento de sangre explícito e injus-
tificado (como precio a pagar por el tercer Mundo que se aferra a
seguir las lógicas del capitalismo, cada vez más exigentes), al altísimo

124
porcentaje de vísceras y desmembramientos, frecuentemente mez-
clados con el crimen organizado, el género y los usos predatorios de
los cuerpos, todo esto por medio de la violencia más explícita como
herramienta de necroempoderamiento (VALENCIA, 2010: 15).
Para Valencia el necroempoderamiento alude a los procesos que
transforman contextos y situaciones de vulnerabilidad o subalternidad
en autopoder, mediante prácticas violentas. Estos sujetos del necroem-
poderamiento son denominados por la autora como sujetos endriagos.
Los “sujetos endriagos se caracterizan por combinar la lógica de
la carencia (círculos de pobreza tradicional, fracaso e insatisfacción), la
lógica del exceso (deseo de hiperconsumo), la lógica de la frustración y
la lógica de la heroificación (promovida por los medios de comunicaci-
ón de masas) con pulsiones de odio y estrategias utilitarias. Resultando
anómalos y transgresores frente a la lógica humanista” (VALENCIA,
2012, p. 87).
Para Valencia, esta radicalidad de la violencia del capitalismo gore
nos sitúa en el filo de una época que encuentra precisamente en el fe-
minismo la posibilidad de ruptura con la producción de subjetividad
falocrática. Pensar la violencia de género como parte de la crisis civiliza-
toria nos orienta a dirigir la acción hacia el fortalecimiento de los lazos
comunitarios y la asociatividad para contrarrestar el debilitamiento de
los lazos sociales, el individualismo y el consumismo (SEGATO, 2017).
Por ello más que nunca, la apuesta al fortalecimiento de los lazos
sociales es la clave para pensar alguna alternativa posible. Necesitamos
una mirada más integral sobre la autonomía de las mujeres, incorporan-
do la autonomía reproductiva, la autonomía subjetiva y la inviolabilidad
de su cuerpo como entramados indisolubles. Explorar este vínculo es
una de las tareas que nos hemos planteado desde el feminismo, no solo
para denunciar la utilización que hace el capitalismo del trabajo gratuito
de las mujeres, sino para la revalorización del cuidado como una ética
social y ecológica imprescindible a la hora de pensar alternativas.
Introducir este debate muestra una vez más que cuando la experien-
cia social de las mujeres ingresa en el debate público se descubren disonan-
cias y contradicciones donde aparecían aparentes consensos. Los espacios
tomados como neutros y justos, la familia, por ejemplo, dejan de ser ino-
centes para mostrar sus matrices de desigualdad, dominación y violencia.

125
Es cierto que como afirma Amaia Pérez Orozco a pesar de que
“carecemos de una apuesta política clara, al mismo tiempo, desde ahí
otorgamos el sentido primero y último de la subversión: se trata de des-
privatizar y desfeminizar la responsabilidad de sostener la vida; que esta
pase a ser el eje sobre el que pivote una economía distinta. Por eso, aun-
que aún no tengamos del todo clara la articulación política que quere-
mos darle, sabemos que la subversión recorre la senda del decrecimiento
ecofeminista (OROZCO, 2017, p. 34).
En las Jornadas Feministas 2017 organizadas en Uruguay por Co-
tidiano Mujer, Yayo Herrero convocaba a articular los paradigmas de
la economía feminista y la economía ecológica. La economía feminista
subraya la honda contradicción entre la reproducción natural y social de
las personas, y el proceso de acumulación de capital, mientras que la eco-
nomía ecológica enfatiza la inviabilidad de un metabolismo económico
inconsciente de los límites biogeofísicos y de los ritmos necesarios para
la regeneración de la naturaleza. El diálogo entre ambos paradigmas es
urgente e imprescindible.
Maristella Svampa (2015) propone
subrayar también la afinidad electiva entre la cultura del cuidado
y el ethos procomunal. Dicho de otro modo, en el contexto de las
actuales resistencias al extractivismo, el lenguaje de valoración de las
mujeres enmarcado en la cultura del cuidado, tiende a expresar un
ethos procomunal potencialmente radical, que concibe las relaciones
sociales desde otra lógica y otra racionalidad, cuestionando el hecho
capitalista desde el reconocimiento de la ecodependencia y la valo-
ración del trabajo de reproducción de lo social. Muy especialmente
en su versión libre de esencialismos, el ecofeminismo contribuye a
aportar una mirada sobre las necesidades sociales, no desde la ca-
rencia o desde una visión miserabilista, sino desde el rescate de la
cultura del cuidado como inspiración central para pensar una socie-
dad ecológica y socialmente sostenible, a través de valores como la
reciprocidad, la cooperación y la complementariedad.
La sustentabilidad de la vida como concepto que surge de la teoría
feminista tiene precisamente la potencialidad de articular los saberes am-
bientales y ecológicos con las perspectivas feministas de las autonomías

126
para pensar alternativas al capitalismo. Es un concepto que acompaña
las luchas de resistencias al extractivismo en cientos de espacios.
Como indica el Veredicto del Tribunal ético de las mujeres en el
Foro Panamazónico (Tarapoto, Perú, mayo 2016), es necesario reconocer
la centralidad de las mujeres – como foco de las estrategias expansi-
vas del frente estatal-empresarial-mediático, y su transformación en el
objetivo de las guerras informales represivas y mafiosas que asolan el
continente latinoamericano – indican que ellas representan el centro
de gravedad del edificio comunitario. Es por eso que las guerras infor-
males del presente son “guerras feminizadas” y “guerras de profanaci-
ón”, como es consenso entre los estudiosos del tema. En su demolición,
física y moral, así como de los objetos que las representan y simbolizan,
su posición y significado en la vida comunitaria, alcanza en lleno el co-
razón de la vida colectiva, se desgarra y degrada el tejido comunitario”.3
Necesitamos entonces desplegar una nueva imaginación política
crítica capaz de enfrentar al mismo tiempo los fundamentalismos reli-
giosos, políticos y económicos. Ello implica abrir espacio a la creatividad
y la imaginación transgresora, perturbar las disciplinas y la disciplina,
cultivar la risa, la ironía, el humor y el amor. Reconocer y reconocernos
en la pluralidad que somos para pensar un mundo en el que quepan
muchos mundos al decir de los zapatistas.

Izquierdas y Feminismos: Tensiones y Conflictos – replanteando


las raíces
Los feminismos latinoamericanos en sus expresiones iniciales
(fines de los 70-80) aspiraban a un cambio radical de la sociedad. Al po-
nerle nombre a una experiencia propia, subjetiva, dinamizaron, huma-
nizaron, pusieron voz feminista a las aspiraciones de cambio levantadas
por las izquierdas de ese periodo. Hacerlo significó, para esa generación,
distanciarse del modelo de mujer que traían sus madres y que definía
roles sociales y de familia.

3 Veredicto del Tribunal ético realizado en TARAPOTO, Perú, el 29 y 30 de abril


2017 para analizar el impacto en la vida de las mujeres indígenas de la expansión
del extractivismo. Disponible en: http://www.forosocialpanamazonico.com/
hermosa-edicion-del-veredicto-del-tribunal-de-mujeres-del-viii-fospa/.

127
A partir de ese momento, las luchas feministas se colocaron en
rupturas con otras concepciones críticas que priorizaban una visión re-
ductiva del “sujeto revolucionario”, y una perspectiva que establecía la
dicotomía entre contradicciones principales y secundarias. Las luchas,
contra el patriarcado, contra el racismo, contra la heteronormatividad
han creado nuevos sujetos y ampliado el espacio de la política logrando
socavar profundamente esa perspectiva.
La memoria de esas rupturas y construcciones es una tarea para las
nuevas actoras del feminismo, porque recuperar la historia es también
una acción contrahegemónica para no silenciar y olvidar de dónde veni-
mos y qué aprendimos de otras mujeres, sus rupturas y luchas.
En el siglo XXI, ha corrido “mucha agua bajo el puente”, el lla-
mado “giro a la izquierda” en la región y en particular en América del
Sur, más allá de sus falencias y límites, ha sido un escenario propicio
para un nuevo ciclo de masificación feminista. Sin embargo, las rela-
ciones con las izquierdas han seguido siendo, como desde el principio,
relaciones complejas, con momentos de desencuentros abismales. El
feminismo movimientista se identifica con un campo de izquierda en
solidaridad y disputa con el partidario. Por ello, las luchas feministas
se han confrontado con una cultura de izquierda, y del pensamien-
to crítico, que continúa marginando campos del activismo político y
tiende a reproducir una división obsoleta, teórica y prácticamente, en-
tre “lo político” como gestión del Estado, y las relaciones sociales co-
tidianas en las que la exclusión social y el patriarcado impactan en los
cuerpos de las mujeres, sea con la violencia de género, el abuso sexual
o la discriminación a la disidencia sexual. La izquierda ha tendido a
minimizar las dimensiones que atañen a las raíces patriarcales de las
relaciones entre hombres y mujeres, la heteronormatividad, el sexismo
y el racismo, en suma, el núcleo patriarcal de la exclusión. A pesar de
ello, estas dimensiones comienzan a expresarse con fuerza y consti-
tuye, alguno de los ejes más radicales que cuestionan e interpelan sus
limitaciones teóricas. Desde las calles, y los territorios, las “Ni una
menos”, las luchas de resistencias al extractivismo, o por la legalización
del aborto, generan nuevas escuelas políticas en acción, que modifi-
can las consignas y orientan la reflexión a visiones más radicalmente
anticapitalistas.

128
La confrontación feminista con las izquierdas partidarias coloca en
debate dimensiones radicales acerca de la libertad y la justicia, capaces
de abrir nuevas perspectivas tanto materiales como simbólicas.

Re-estructurar el campo del deseo


La práctica política feminista en diferentes países parece mostrar
la importancia de una mirada abierta y plural capaz de hacer confluir
las múltiples sensibilidades políticas que surgen de la subversión de los
modelos hegemónicos. Y este es uno de los mayores desafíos y un nudo
significativo para las subjetividades políticas de los feminismos ¿podrán
generarse los diálogos y las escuchas que hagan posible inaugurar un
nuevo tiempo político en medio de la diversidad de sensibilidades, cuer-
pos y opresiones? Existen en el feminismo corrientes antagónicas que
se basan en expulsar de la “casa” a quienes piensan y actúan diferente,
muchas veces de forma virulenta poniendo en cuestión los postulados de
una nueva sensibilidad política. Siento que el principal desafío que te-
nemos pasa por reestructurar el campo del deseo como propone Franco
Berardi, pero también el del poder. Si
las utopías de la modernidad se fundaron sobre la exaltación tes-
tosterónica de la juventud. Fueron utopías violentas y esperanzadas
(esto es, en última instancia desilusionantes, consagradas al arrepen-
timiento). Nuestra fuerza ya no puede basarse en el ímpetu juvenil, la
agresividad masculina, la batalla, la victoria o la apropiación violenta,
sino en el gozo de la cooperación y el compartir. Reestructurar el
campo del deseo, cambiar el orden de nuestras expectativas, redefinir
la riqueza, es tal vez la más importante de todas las transformaciones
sociales (BERARDI, 2014).4
Para esta transformación se necesita desterrar las lógicas “funda-
cionales”, el vanguardismo y la apropiación de las experiencias colecti-
vas. La creación de un “nosotras” desde el “mejor y único feminismo” se
auto defina crítico, decolonial, popular o cualquier otro distintivo pero
que en realidad se sustente en la expulsión de otras corrientes, negando
la pluralidad constitutiva de los feminismos, constituye la reproducción
de viejas formas de reproducción del pensamiento único.

4 http://www.eldiario.es/interferencias/bifo-sublevacion-afectos_6_319578060.html

129
Por el contrario pienso que desde cada praxis política se abren ter-
renos de interpelación y disputa, que genera nuevos intersticios y es-
pesores a la política. El encuentro de experiencias políticas y prácticas
culturales subalternas es un campo de interacción relativamente reciente
que tuvo en el Foro Social Mundial experiencias de encuentro, debate y
traduccción intercultural entre movimientos.
Para desarrollar un pensamiento de frontera es necesario revisar
conceptualmente las categorías y los mapas de ruta con los cuales hemos
interpretado los problemas. Sospechar de las palabras y los conceptos
para cuestionar los mapas conceptuales con los que hemos interpretado
la realidad. Ponernos en diálogo significa un esfuerzo teórico, político
y personal para construir otras categorías y otros abordajes que posibi-
liten romper las formas hegemónicas de clasificación. Incluso la posi-
bilidad de pensar los problemas simultáneamente desde la perspectiva
feminista, antirracista, ecológica, no binaria, abre el espacio para crear
nuevas categorías e interrogantes. Para poder crear una pedagogía de la
alteridad, como dice Escobar, es necesario ver al otro/otra en su radical
diferencia sin pretensión de asimilación y/o conquista.

La palabra colectiva
Oír las voces de los cuerpos en las calles, las irreverencias y subver-
siones cotidianas, es mantener abierta la reflexión de una epistemología
feminista que permita articular dimensiones que crecen muchas veces
en mundos paralelos pero están presente en “la palabra colectiva de aba-
jo, esa que sacude al mundo cuando la tierra retiembla con epicentros de
autonomía” como dicen los zapatistas.5
Construir esa palabra colectiva supone combatir en nosotrxs, los
resabios de pensamiento hegemónico colonialista y universalista. Enun-
ciado así, parece una tarea sencilla, pero sabemos bien de sus dificultades
y fracasos. Reconocernos en nuestra radicales diferencias, con nuestras
historias y desigualdades, es un punto de partida para alianzas, com-
plicidades y potenciaciones. Las luchas sociales reúnen subjetividades
y miradas diversas, y sólo cuando pueden unir sus voces, es cuando el
escenario unipolar hegemónico, comienza a cambiar.
5 Congreso Nacional Indígena EZLN, 3 de enero 2017, http://espoirchiapas.blogspot.
com.uy/2017/01/y-retemblo-ezln-y-cni-es-el-momento-de.html.

130
Dice Judith Butler que “da la impresión de que en nuestra época se
libra una guerra contra la idea de interdependencia”. Interdependencia
y ecodependencia dos principios centrales para pensar alternativas. Para
Butler lo queer no alude a la identidad de una persona, sino a lo anóma-
lo y peculiar y por ello podría aplicarse también a cuando construimos
“alianzas incómodas o impredecibles en la lucha por la justicia social,
política y económica” (BUTLER, 2017, p.75).
Los esfuerzos deberían estar dirigidos a desplegar espacios colecti-
vos autónomos, re-inventando resistencias a la cultura capitalista en to-
das sus manifestaciones consumistas, individualistas, violentas, racistas,
colonialistas, y patriarcales y explorar el espacio de la invención política
creativa escapando también al juego político del estado y de la represen-
tación. Ello no implica desatender la crítica, o el cuestionamiento a las
formas tradicionales de la política y los estados, pero solo reconstruyen-
do acción política desde la comunidad, podremos construir formas de
vivir más cercanas a un imaginario transformador.
La necesidad de reconstruir “los tejidos comunitarios agredidos y
desintegrados por la intervención colonial primero ultramarina y más
tarde republicana” dice Rita Segato, coloca la acción feminista en los
territorios para construir, desde allí, lazos de solidaridad entre mu-
jeres, mujeres diversas, desiguales entre sí, pero capaces de construir
alianzas, y de mirarse y reconocerse. Necesitamos desplegar una nue-
va imaginación política crítica capaz de enfrentar al mismo tiempo
los fundamentalismos religiosos, políticos y económicos. Ello implica
abrir espacio a la creatividad y la imaginación transgresora, perturbar
las disciplinas y la disciplina, cultivar la risa, la ironía, el humor y el
amor.
Trascender las identidades cerradas hacia formas amebas, perme-
ables, abiertas o queer, resultan actos subversivos frente al capitalismo
gore, el de la competencia, el de la violencia y la exclusión.
El pensamiento crítico que necesitamos como hoja de ruta en un
contexto tan complejo como el actual, supone una subversión cognitiva
capaz de hacer interactuar dimensiones que coloquen en el mismo
plano las luchas contra el patriarcado, el etnocentrismo, el racismo, la
heteronormatividad, el antropocentrismo, y las perspectivas decolonia-
les en una relación fecunda entre teoría y práctica, para desmontar el

131
andamiaje conceptual que nos atraviesa y reinventar una poética capaz
de nombrar y anticipar nuevas aptitudes colectivas.
En definitiva, decolonizar el pensamiento y la acción para acortar
la relación fantasmal entre teoría y práctica, como propone De Sousa
Santos. Que lo que decimos sea parte de lo que hacemos cada día es una
aspiración y sueño frente a tanta destrucción y violencia. Abrir espacio a
nuevas formas de hacer política supone articular las luchas de resistencia
sin buscar nuevas hegemonías, reconociendo las y los múltiples sujetos
protagonistas de esas luchas. Tenemos demasiadas experiencias y cultu-
ras políticas saturadas de antagonismos y protagonismos.
“Diversas pero no dispersas” fue el lema del 14 Encuentro Femi-
nista Latinoamericano y del Caribe en Montevideo y expresa un lla-
mado a reconocer y reconocernos en las diferencias, ya sea de prácticas,
lenguajes e imaginarios políticos y a valorar esta capilaridad de feminis-
mos abigarrados. Conscientes de que solo un entretejido social activo
y con capacidad crítica, podrá enfrentar las expresiones destructivas y
violentas del capitalismo, el racismo y el heteropatriarcado.

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133
Para uma internet feminista, descolonizar
internet é urgente

Graciela Natansohn1

Resumo
As tecnologias digitais, com sua diversidade de ferramentas e dis-
positivos, suas oportunidades e riscos, constituem cenários privilegiados
para a ação política feminista, queer, LGBTT e antirracista, por isso,
vêm sendo objeto de reflexão crítica por parte dos feminismos acadê-
micos e dos movimentos sociais. Ao contrário da descentralização e de-
mocratização que a internet prometia, poucas empresas detêm o mono-
pólio sobre as operações desse recurso de comunicação. Apresentamos
aqui algumas reflexões sobre as exclusões e brechas no ciclo produtivo
das tecnologias digitais, que incluem internet e seus outros dispositivos,
desde uma perspectiva tecnofeminista e decolonial. Apresentamos as
formas de violência de gênero que se desenvolvem nesses ambientes e
finalizamos com um esboço sobre os princípios para uma internet femi-
nista decolonial, que reivindicam o fim da hegemonia do mercado e para
a livre circulação de ideias na rede.

Introdução
Como é que, em pleno século XXI, com tanta diversidade epistê-
mica existente no mundo, estamos ancorados em estruturas epistêmicas
tão provincianas camufladas de universais? – pergunta-se Ramón Gros-
foguel (2016) num precioso artigo onde discute os quatro genocídios
fundadores das colônias europeias de ultramar – os das mulheres e ju-
deus durante a Inquisição, os dos indígenas americanos e o das pessoas
negras vítimas do tráfico – desde o fim do século XV, genocídios estes
que vieram a consolidar os privilégios epistêmicos dos homens brancos
ocidentais sobre outros corpos geopolíticos. Justamente, durante este

1 Coordena o Grupo de Pesquisa em Gênero, Tecnologias Digitais e Cultura – GIG@,


na Universidade Federal da Bahia. Professora da FACOM/UFBA e POSCOM/UFBA.

135
evento em Fortaleza ouvimos falar muito de epistemicídios, – das exclu-
sões das mulheres, dos negros e negras, dos indígenas, das pessoas trans,
dos homens cis ou transgênero cuja masculinidade não é hegemônica –
em diversas áreas do conhecimento.
Vou me referir a um tipo de epistemicídio em particular: aquele
gerado pelas exclusões no ciclo produtivo das tecnologias digitais, que
incluem internet, mas também outros dispositivos, e vou fazê-lo des-
de uma perspectiva tecnofeminista e decolonial. Esta apresentação traz
questões que foram publicadas nos texto “Violência contra las mujeres
en red, vigilancia y el derecho a la privacidade”, em espanhol, publicado
nos anais da ABCiber de 2016, escrito junto à Florencia Goldsman, e
outras, ainda em processo de reflexão.

Tecnofeminismos decoloniais
Recolocando o tecnofeminismo no marco da colonialidade como
fator constitutivo dos processos de comunicação da contemporanei-
dade latino-americana, é preciso deslocar o olhar dos/das sujeitos/as e
suas práticas sociotécnicas para a análise à abordagem da cultura digital
(CASTELLS, 2008) como a matriz epistêmica filha da globalização
hegemônica e do capitalismo transnacional. Castells define a cultura di-
gital como: a) a habilidade para comunicar ou mesclar qualquer produto
baseado numa linguagem comum digital; b) a habilidade para comuni-
car a partir do local para o global em tempo real e vice-versa, para poder
disseminar o processo de interação; c) a existência de múltiplas modali-
dades de comunicação; d) a interconexão de todas as redes digitalizadas
de bases de dados; e) a capacidade de reconfigurar todas as configura-
ções criando um novo sentido nas diferentes camadas dos processos de
comunicação e f ) a constituição gradual da mente coletiva pelo trabalho
em rede através de um conjunto de cérebros sem limites (CASTELLS,
2008). Serão viáveis as possibilidades que os grupos subalternizados ge-
rem práticas tecnocomunicativas descolonizadas e descolonizantes no
seio da cultura digital tal como se desenvolve hoje?
Para Rivera,
abordar a decolonialidade como fator constitutivo dos atuais processos
comunicativos é mergulhar na necessária problematização das reivindi-
cações que os grupos subalternos da diferença colonial estão realizando

136
através do uso das tecnologias de informação e comunicação (TICs),
tendo como premissa evidente o fato de que as práticas que realizam
estão inseridas num contexto tecnocomunicativo, político e econômico
que, mais do que legitimar a participação das “outredades”, opta por
restringi-las em função da estabilidade do sistema de dominação, de
modo a assegurar que os benefícios conseguidos durante séculos de
aplicabilidade da colonialidade do poder não sejam desacreditados pe-
las vozes da dissidência (RIVERA, 2013, p.132)2.
Internet, tal como funciona hoje, é uma verdadeira caixa preta sub-
metida à privatização, oligopólios e confusão legal, pois se converteu
num espaço privilegiado para os interesses corporativos, a vigilância e as
manipulações políticas. Em que medida podemos falar de descolonizar
e feminizar internet quando a utopia de uma internet livre e descen-
tralizada foi se transformando num pesadelo, um espaço cuja aparência
de diversidade esconde um poderoso mecanismo de concentração via
mecanismos de indexação, bots, e-commerce e copyright, de vigilância e
controle via rastros digitais?

A brecha digital de gênero e as violências


Um dos efeitos mais conhecidos dessa aliança racial, de gênero e
de classe que produz conhecimento tecnológico, é a divisória ou brecha
digital. A brecha digital de gênero e raça se estende a todas as etapas
generativas de tecnologias. Homens brancos, instruídos e de países do-
minantes são os principais produtores de tecnologias, de hardwares e de
softwares. Mulheres pobres do mundo são as que menos acesso tem a
elas. Mas vou me referir a apenas um aspecto da brecha digital no Brasil
que acho importante trazer aqui, pois relaciona dois fenômenos funda-
mentais para uma crítica feminista antirracista à cultura digital hegemô-
nica: a) o acesso à internet via celulares inteligentes e b) as violências de
gênero. A minha proposta relaciona tipos de acesso à internet enquanto
modelos de inclusão digital, com um tipo de violência de gênero baseada
na vigilância exercida via celulares.
Como foi apresentado pelas colegas neste evento, no Brasil, só a
metade (51%) dos domicílios tem acesso à internet (TIC Domicílios

2 Tradução nossa.

137
2015, 2016). Dados dessa mesma pesquisa demonstram que pela pri-
meira vez, o número de brasileiros/as que acessam internet por celu-
lar é maior ao da população que acessa via computadores: 89% dos/
das brasileiros/as se conectam à internet por smartphone, superando aos
computadores, que são usados pelo 65% das pessoas que se conectam.
Desde 2014 o IBGE nos informa que são as mulheres as que usam mais
celulares que homens.
O acesso via celulares se dá preferencialmente por aplicativos: cô-
modos, exigem competências digitais mínimas. Contudo, muitas ativi-
dades online, como trabalhar, pesquisar, estudar, são feitas menos por
celular do que computador. Sabe-se que o computador é essencial para
uma apropriação efetiva das TIC; o uso combinado de celular e de com-
putador permite melhor desenvolvimento de habilidades digitais mais
sofisticadas e complexas que vão além de uso de redes sociais e mensa-
geiros eletrônicos. O acesso via celular tem-se constituído, de fato, em “o”
modelo de inclusão digital brasileiro, modelo imposto pelo mercado com
anuência do Estado, que abandonou a política de extensão da banda larga
no país. Trata-se de um modelo com baixíssimo potencial de produção,
criação e programação de conteúdos, derivando uma inclusão digital para
o consumo e não para a cidadania ou para o fortalecimento da democra-
cia, menos ainda para superar a brecha digital de gênero e raça, porque
como vimos, mulheres e pobres são os que mais acessam desse jeito. Vale
destacar que a exclusão digital é apenas um sintoma, uma manifestação
do modelo androcêntrico e racista da ciência e tecnologia. As brechas não
são “defeitos” do modelo senão parte constituinte desse modelo.
O segundo ponto a destacar relaciona este modelo dominante de
acesso à internet – que afeta principalmente aos pobres e às pobres – em
sua maioria, mulheres negras – com as violências de gênero. Proponho
que pensemos a violência contra as mulheres nos ambientes digitais –
via celulares, mas não só – com os dispositivos de vigilância massiva que
se instituem mediante internet, e que afetam nossa privacidade e nosso
direito à intimidade. Ou seja, estou estendendo, ampliando o conceito
de violência digital de gênero para fenômenos mais sutis e complexos
que envolvem a coleta de dados das mulheres via aplicativos.
Quando falamos de violência de gênero na internet pensamos
naquela que está localizada num espaço de internet, o das interações.

138
Assim, vemos (e sentimos) continuamente assédios, denúncias de extor-
são, ameaças, publicação de fotos e vídeos sem consentimento, revenge
porn etc. Esses fatos deram lugar a leis, como a famosa lei Carolina
Diekmann, que tornou crime a invasão de aparelhos eletrônicos para
obtenção de dados particulares (ela teve suas fotos do celular divulga-
das sem permissão). Isso é, sem dúvidas, uma extensão das corriqueiras
violências de gênero estendidas para os ambientes digitais. Mas há uma
outra violência, mais invisível, localizada na arquitetura da rede e no
modelo de negócios de internet, que é a coleta de nossos dados cada vez
que acessamos internet ou baixamos um simples aplicativo.
O uso massivo de internet via celular gerou um mercado gigante de
aplicações móveis, verdadeiros “chupa-dados” associados às gigantes de
internet (Facebook, Google, Yahoo, Apple, Microsoft e outras poucas),
cujos termos e condições de uso exigem dos(as) usuários/as muito mais
dados que o necessário para funcionar. Não apenas via celular, obvia-
mente. Aplicações web sugam nossos dados também.
Neste mercado em expansão se destacam app para celulares para
controlar a menstruação, a ovulação, o período fértil, o peso corporal, as
medidas do (cintura, peitos, cadeira), supervisar a pressão arterial, pulso
etc. Esses programas coletam dados íntimos numa escala alucinante e
os sistematizam sem nosso controle, pois não sabemos o que fazem com
essas informações. Falo de app de saúde feminina, mas a coleta se faz
sobre todo tipo de informação: ideológica, religiosa, cultural, da vida co-
tidiana, costumes e modos de consumo etc. Essa coleta indiscriminada
e com nosso consentimento não informado (pois ninguém lê os termos
e a coleta funciona por default) acreditamos que isso constitui mais uma
violência de gênero na medida em que realizam vigilância massiva sobre
os corpos das mulheres e violentam o direito humano a privacidade e
intimidade.
A vigilância via rastros digitais não é uma fantasia de Black Mirror,
é como funciona internet hoje na realidade. Mas esse funcionamento
não é produto de um imperativo tecnológico. A vigilância por defeito,
por default, embutida nas tecnologias, é uma estratégia comercial e pa-
triarcal para controlar e restringir direitos.
Há uma constante coleta, registro, análise e classificação de nos-
sos rastros digitais. Os fins são diferentes: comerciais e publicitários,

139
administrativos, por motivos de segurança, dentre outros. A vigilancia
existe como uma função potencial que está inscrita no próprio engrena-
gem e arquitetura dos dispositivos. Este rastreamento via rastros digitais
já está entrando em discussão – com maior força – nas esferas públicas
feministas.
Podemos exemplificar este fenômeno com uma piada que está cir-
culando em redes sociais: o cara que liga pro delivery de pizza, e os da
pizzaria já sabem tudo sobre ele: não apenas que gosto de pizza que ele
compra sempre mas também como estão o colesterol e triglicérides, por-
que cruzaram dados da farmácia onde ele se cadastrou – em troca de um
descontinho que não passa do 5% em pouquíssimos remédios – e sabem
quando e quantas caixas de atorvastatina comprou, então sugerem pizza
de ricota em vez de portuguesa. Ainda sabem que o cliente caminha
pouco, pois pede muitos 99Taxi por dia, sabem onde foi de férias porque
receberam os dados do AirBnb e do Booking, etc. E o cara, é bom dizer,
não usa Facebook.
Esta vigilância tem a missão fundamental produzir conhecimentos
sobre os vigiados, gerar target, perfis minuciosos de clientes. E por que
estariam violando os direitos das mulheres? Por que devem ser consi-
deradas violências de gênero? A saúde reprodutiva sempre foi cenário
privilegiado para o controle dos corpos femininos. Menstruação, con-
cepção, parto, puerpério, hormônios, menopausa, TPM, tudo é objeto de
intervenção biopolítica e biomédica (RIZK, OTHMAN, 2016).
Aqui no Brasil as pesquisadoras da coletiva (em feminino) Coding
Rights (FELIZI, VARÓN, 2016) estão estudando as “menstruapps”.
Estas aplicações (app), são oferecidas para controlar a ovulação, ciclo
e o período fértil, e alimentadas inocentemente com nossos dados, e
funcionam como laboratorios para a observação de padrões fisiológicos
e de comportamento feminino. Com as menstruapps, monitorar teu ciclo
significa informar regularmente ao app se bebeu, fumou, tomou algum
remédio, se fez sexo, se fez cocô regularmente, se teve problema de sono,
como está a secreção vaginal etc. etc. Não se espante se amanhã seu con-
vênio médico particular decide revisar seu plano de saúde. Talvez eles
já saibam da sua saúde mais do que você mesma.
Há outros exemplos interessantes. O movimento feminista faz
tempo que vem reivindicando o uso do copinho menstrual (o coletor

140
de sangue menstrual) em lugar dos tampons, pois estes últimos, além de
ser muito caros, são confeccionados com sustâncias com potencial efei-
to alergênico e tóxico (HOWARD et al., 2011), enquanto os copinhos
são ecológicos, antialérgicos, baratos e promovem o autoconhecimen-
to do corpo feminino, dentre outras muitas vantagens. No mercado de
“menstruapp” se oferece um copinho menstrual que promete um ciclo
menstrual “saudável” por meio de uma conexão a dispositivos Android
e iOS via Bluetooth. Ele permite controlar desde o celular a cor do flu-
xo menstrual, conhecer exatamente quando temos que vaziar e voltar a
colocar o copinho no canal vaginal. Outra proposta semelhante é a de
uma marca de tampons que são vendidos acompanhados por um cha-
veiro com um chip que, combinado com o uso do celular, avisa à usuária
sobre vazamentos ou derrames. E não acaba aí. Estão sendo desenvol-
vidos microchips para controlar a dose de hormônio anticoncepcional.
Um chip é implantado embaixo da pele e pode ser ativado por um sinal
de wi fi que libera a dose de droga programada (MANICA, 2015). O
laboratório clínico onde realizo meus exames me envia, todo mês, um
convite a baixar um app – disponível em IOS e GooglePlay – onde
disponibilizariam, dentre outros serviços, os resultados dos meus pro-
cedimentos clínicos. Enquanto prometem privacidade, ao submeter-se
aos termos de Google ou Apple, radicados nos EUA, como garantir que
terceiros não tenham acesso a essa delicada informação?
Estes exemplos nos interpelam: De que forma podemos garantir a
segurança da administração medicamentosa a distancia? Quem domina
o código de programação desse dispositivo? Estamos colocando nos-
sa vida e saúde nas mãos de terceiros (nem nós nem nossos médicos).
Todavia, há quem especule com um cenário de revenge pregnancy ou
hacking ovariano, pois esses mecanismos podem ser invadidos e con-
trolados por terceiros até com fins de vingança. Por que não? Entidades
médicas vêm discutindo faz tempo a inconveniência da informatização
da história clínica dos pacientes, pois a manipulação, difusão não auto-
rizada, venda ilegal, acesso por pessoal não autorizado fere o direito à
intimidade e confidencialidade dos dados médicos (SOUZA, J. MA-
CHADO, D. AVELINO, R., 2017).
Por isso, anonimato em internet é vital, permite a privacidade,
que é uma forma de autonomia e poder. A privacidade e o anonimato

141
empoderam. Por essa razão devemos discutir big data e internet das coi-
sas desde uma perspectiva tecnofeminista antirracista e decolonial e nos
questionarmos preguntarnos: até onde estas tecnologias permitem às
mulheres (no caso que estamos analisando) maior capacidade de agên-
cia, poder, autonomia e controle de si, dos corpos e dos intercâmbios
comunicativos?

Por uma outra Internet


Nesta tentativa de repensar uma outra internet, nós, grupos femi-
nistas, trabalhamos com as noções de autonomia tecnológica, soberania
digital, justiça social, enquanto promovemos a criação de redes livres,
ferramentas de segurança informática, plataformas livres e seguras, al-
goritmos confiáveis, abertos e servidores éticos, discutindo o que cha-
mamos de princípios para a descolonização de internet.
Trata-se de um conjunto de noções, ideias, proposições, utopias,
sonhos a respeito do potencial das redes digitais, considerando que es-
tas, com sua diversidade de ferramentas e dispositivos, suas oportuni-
dades e riscos, constituem cenários privilegiados para a ação política
feminista, queer, LGBTT e antirracista. São princípios que reivindicam
o fim da hegemonia do mercado e para a livre circulação de ideias na
rede. São eles:

– Direito à diversidade identitária, sexual e racial, contra o


hétero-cis-normativismo;
– Direito ao acesso amplo, irrestrito, igualitário à internet. O acentuado
uso do celular não pode ser a única forma de acesso massivo à internet,
pois implica na redução de investimentos em infraestruturas de internet
e permite uma apropriação estreita e pouco criativa dos recursos dispo-
níveis na rede;
– Pela defesa da neutralidade da rede;
– Pelo fomento às redes alternativas autogestionadas pelas comunidades;
– Desconstrução do caráter androcêntrico da ciência e da tecnologia
digital, em todas as suas fases (planejamento, desenho, realização, dis-
tribuição e usos); por mais mulheres no software livre, mais mulheres
hackers, inventoras, programadoras;

142
– Compreensão ampla, interseccional e não androcêntrica das brechas
(exclusões) digitais de gênero, raça, classe, nacionalidade, religião, idade,
etc. e das estratégias para superá-las; de nada adianta incluir mulheres
em entornos misóginos, racistas e androcêntricos das empresas tecnoló-
gicas sem mudar essa cultura;
– Não à misoginia, assédios, racismo e contra a proliferação das violên-
cias cometidas contra mulheres; articular estratégias para a defesa com
menor risco (redução de danos digitais);
– Ampliar a compreensão dos cibercrimes a partir de uma perspec-
tiva de gênero, incluindo a apologia ou incitação ao feminicídio e
transfeminicídio;
– Promoção do comum na Internet, para um amplo acesso à cultura e
ao conhecimento, por meio de compartilhamento livre (copyleft), e de
ações que visam fomentar e reconhecer formas de criação colaborativas
e coletivas;
– Pelo direito à segurança e garantia à privacidade por padrão, e pelo
direito ao anonimato e ao esquecimento.
– Contra o controle e a vigilância irrestritos e indiscriminados por parte
do Estado e dos mercados.
– Pela garantia de uma liberdade de expressão descolonizada, que não es-
teja exclusivamente em benefício de grupos historicamente dominantes;
– Promoção e estímulo estatal aos softwares e hardwares livres, contra as
“caixas pretas” da tecnologia;
– Direito à participação de mulheres negras, cis, trans, indígenas e mi-
norias na governança e a tomada decisões sobre políticas de internet,
infraestruturas lógicas e físicas;
– Estímulo às economias digitais alternativas e solidárias, que geram
bens comuns, sustentabilidade e empoderamento coletivo.

Considerações finais
O feminismo alimenta a utopia de que outra internet é possível:
anticapitalista, autônoma, não colonizada pelo comércio, pelo capi-
tal ou pelo estado; sustentada pela colaboração e gerenciada com au-
tonomia, pela cultura do compartilhamento e do código aberto, pela

143
desgooglização e descolonização de nossa vida digital. Nós mulheres
amamos internet. Nem paraíso nem o inferno, nós feministas estamos
tensionando as possibilidades liberadoras de internet, em termos de
autonomia; liberdade de criação e desafio aos sistemas mediáticos he-
gemônicos, por um lado, e as condicionantes socio-técnicas e políticas
que restringem e reorientam as possibilidades e tipos de apropriações
feministas de internet.
No início deste trabalho, citamos diversos tipos de epistemicídios,
mas finalizamos com epistemofilias: no mês de junho de 2017, em Sal-
vador, houve a primeira hackatona feminista do governo de Estado da
Bahia. Participaram durante 33 horas programadoras, hackers e invento-
ras, com o tema “Respeita as Mina”. O tema dos desafios foi a campanha
de combate à violência contra as mulheres, lançado pelo Governo do
Estado por meio da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Bahia.
O objetivo da ação foi promover o desenvolvimento de softwares que
contribuíssem para o fortalecimento da rede de atenção à mulher em
situação de violência oferecida pela Polícia Militar mediante a Ronda
Maria da Penha. Foram apresentados sete projetos pensados em espaços
na web e em aplicativos de celular. A esmagadora maioria das hackers
eram jovens mulheres negras. Quem levou o prêmio foi uma equipe
de três mulheres negras e um menino negro, estudantes de Ciências da
Computação da UFBA. Além de útil, o app usa tecnologias abertas, pri-
vacidade por default e mecanismos que garantem a privacidade e invasão
de celulares pelos agressores. É uma amostra de quanto a participação
de sujeitas historicamente banidas da criação científica pode vir a nos
mostrar que sim, uma outra internet é possível e necessária.

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145
Gênero e feminismos no movimento Latino-
Americano de cultura viva comunitária

Christiane Ribeiro Gonçalves1


Marcos Antonio Monte Rocha2

Este texto deve ser lido como um esforço inicial para compreen-
der como companheiras e companheiros, coletivos e organizações com
trajetória de ativismo ou interesse nas questões de mulheres / gênero /
sexualidades e que estão inseridas no Movimento Latino-Americano
de Cultura Viva Comunitária têm construído discursos e práticas que
introduzem no seio desse Movimento críticas, conceitos e pedagogias
feministas / despatriarcais.
Declinando dessa primeira questão e tendo em mente a pluralida-
de de miradas e interpretações feministas / despatriarcais da realidade,
qual ou quais dessas perspectivas têm se configurado como hegemônicas
no Movimento? Referimo-nos aqui ao largo espectro conceitual que vai
dos feminismos marxistas aos feminismos pós-estruturais, dos feminis-
mos decoloniais às perspectivas de luta contra o patriarcado que não
reivindicam o status de feministas. Como tem se dado internamente o
diálogo entre as pessoas mais atentas às questões de mulheres / gênero /
sexualidades de diferentes posicionamentos teóricos no âmbito do Mo-
vimento Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária?

1 Psicóloga, militante do Movimento Social de Luta Contra a Aids do Ceará, feminista,


integrante do Fórum Cearense de Mulheres e da Articulação de Mulheres Brasileiras,
membra da Rede Latino-Americana de Gênero e Cultura, fundadora e atual presidenta
da Fábrica de Imagens – ações educativas em cidadania e gênero, coordenadora do Ponto
de Cultura Outros Olhares – educação em direitos humanos, gênero e diversidade e
coordenadora geral do Curta o Gênero. E-mail: chrisrgoncalves@gmail.com
2 Graduado e licenciado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará, fundador
e diretor da Fábrica de Imagens – ações educativas em cidadania e gênero, integrante
da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura e da Comissão Cearense Cultura Viva,
articulador da Rede Latino-Americana de Gênero e Cultura, realizador audiovisual e
organizador do Seminário Outros Olhares de direitos Humanos e do Curta o Gênero.
E-mail: monterochapsico@gmail.com

147
Para finalizar, interessou-nos identificar a percepção das pessoas,
coletivos e organizações atuantes no trinômio mulheres / gênero / sexu-
alidades sobre possíveis pontos de aderência ou de tensão entre os con-
ceitos e práticas predominantes no Movimento Latino-Americano de
Cultura Viva Comunitária e as perspectivas feministas / despatriarcais.
Existindo esses pontos, quais são eles? Como o Movimento está lidan-
do com estas questões? Quais as estratégias ou, simplesmente, ideias
que aqueles e aquelas que se encontram nesse entre mundos possuem
ou imaginam para que o Movimento de Cultura Viva Comunitária em
discurso e na prática incorpore na sua carne o debate sobre mulheres /
gênero / sexualidades?
Como participantes, militantes e pesquisadores ativos tanto do
campo das questões de mulheres / gênero / sexualidades, quanto do
campo das questões relacionadas ao Movimento Latino-Americano de
Cultura Viva Comunitária, foi a nossa participação no último Congres-
so Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária, ocorrido em maio
de 2019 na Argentina, que desencadeou as questões acima mencionadas
e a construção desse texto.
Embora já acalentássemos há algum tempo o desejo de escre-
vermos sobre esse campo, especialmente a partir do momento em que
nossa trajetória no Cultura Viva cruzou com as perspectivas feministas
descoloniais (ESPINOSA-MIÑOSO, 2014; MILLÁN, 2014; LU-
GONES, 2014; SEGATO, 2014) na organização e produção de livros
relacionados ao Seminário Internacional que organizamos em Fortaleza
chamado “Gênero, Cultura e Mudança”, o surgimento de seis denúncias
ocorridas durante a Caravana do IV Congresso Latino-Americano de
Cultura Viva Comunitária, incluindo abuso sexual e discriminação, teve
impacto substantivo para empreendermos este esforço.
A partir disso, predispomo-nos a revisitar um percurso de aproxima-
damente 9 anos, que abrange mais de duas dezenas de encontros da Co-
missão Cearense Cultura Viva (CCCV), da Comissão Nacional dos Pontos
de Cultura (CNPdC) e de dois Congressos Latino-americanos de Cultu-
ra Viva Comunitária, dos quais participamos, o primeiro em La Paz, em
2013, e o último no referido Congresso argentino, que em Caravana cruzou
o país de oeste a leste, partindo de Mendoza, passando por San Francisco
de Córdoba e Paraná e finalizando seu percurso em Buenos Aires.

148
A metodologia para o desenvolvimento desse trabalho inclui assim
três fontes, a saber: como já assinalado, nossas observações no contex-
to do IV Congresso Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária,
outras observações e documentos construídos ao longo de quase uma
década de participação nesse movimento e as colaborações de outras
pessoas que integraram os Grupos de Trabalho de Gênero e de Sexuali-
dades na Comissão Nacional dos Pontos de Cultura e de outros compa-
nheiras e companheiros que participaram do referido Congresso e que
se mantêm conectadas e conectados por grupos de WhatsApp.
Sobre essa última fonte, a colaboração consistia no envio de ma-
teriais escritos, vídeos, depoimentos pessoais ou coletivos, incluindo os
construídos em encontros brasileiros e latino-americanos com foco nas
questões de mulheres/gênero/sexualidades nos contextos organizativos
do Movimento de Cultura Viva Comunitária (CCV).
Contribuíram, nesse contexto, quatro companheiras argentinas,
sendo que uma residente no México, uma companheira uruguaia e uma
companheira e um companheiro brasileiro, que estiveram, respectiva-
mente, em posição de liderança nos grupos de trabalho de Gênero e
de Sexualidades, espaços político-temáticos da Comissão Nacional dos
Pontos de Cultura do Brasil (CNPdC), instância composta exclusiva-
mente por representantes da sociedade civil.
Posteriormente, avaliamos e comparamos o conjunto do material.
Sempre que necessário, tornamos às nossas interlocutoras e interlocu-
tores para dirimirmos dúvidas sobre as percepções por elas e por eles
desenvolvidas.
Assim, o texto a seguir é, em todo este contexto, um produto teó-
rico-político compartilhado. Compartilhado porque consideramos que
não tivemos informantes, tivemos interlocutoras e interlocutores, cola-
boradoras e colaboradores que confiaram a nós suas impressões, escritos
e falas. Mesmo no que se refere às observações desenvolvidas nos Con-
gressos e Encontros que participamos, estas não são fruto do olhar da
pesquisadora ou do pesquisador como figuras distantes e neutras, mas
do pesquisador/pesquisadora ativista que reconhece as afetações de seus
próprios posicionamentos políticos prévios, que compreende que suas
observações só fazem sentido inseridas nesse processo/envolvimento
orgânico e que, pois, é impossível pensar a construção desse texto, sem

149
que se tenha a clareza ético-política de que ele é fruto de interações e
influências que nos afetaram e nos afetam inclusive aqui e agora, no
exato instante em que escrevemos.
Um produto teórico-político porque não concebemos esses cam-
pos como autônomos. Concebê-los assim é uma forma de criar uma
clivagem que não existe no processo de produção de conhecimento no
qual existiria de um lado a pureza de um conhecimento teórico, valo-
rizado e aceito, com exceções se considerarmos o exemplo de Estados
conservadores/fundamentalistas, e do outro lado a impureza de um co-
nhecimento maculado por visões políticas específicas ou, como comu-
mente escutamos, ideológicas, e por isso desvalorizado e não aceito.
Conceber que o teórico-científico e o político não se cruzam é
uma forma de despolitizar o trabalho teórico e científico e de apeque-
nar, desvalorizar ou mesmo demonizar a política e, sobretudo, a ação
política, de desprover, portanto, a possibilidade das pessoas construírem
avaliações mais amplas, densas e, por conseguinte, menos ingênuas e
manipuláveis. Quem ganha com essa dicotomia? Arriscaríamos dizer
que são os sujeitos, os segmentos político-econômicos hegemônicos que
discursivamente enaltecem e conferem o estatuto de verdade, ora para
o campo teórico-científico, ora para a ação política de segmentos da
sociedade alinhados com seus interesses, conforme suas conveniências
econômicas, políticas e morais.

Breve introdução ao cultura viva


No início do primeiro mandato de Luís Inácio Lula da Silva, tendo
como ministro da Cultura o compositor e cantor baiano Gilberto Gil,
o Brasil experimenta uma mudança significativa no campo das políti-
cas culturais. Essa mudança ocorreu pela instituição de duas Secretarias
ligadas ao referido Ministério e na formatação dentro destas de progra-
mas e ações com dotação orçamentária inédita para atuação nos campos
que lhes eram peculiares. Essas duas Secretarias eram a da “Identidade e
Diversidade” (SID) e a da “Cidadania Cultural” (SCC).
Esse acontecimento não consistiu em nenhuma revolução, pois as
estruturas não foram mudadas. A maior parte dos recursos não deixou
de escoar para onde historicamente escoaram, o eixo Rio-São Paulo e os
empresários da cultura, mas por uma condição econômica favorável do

150
país, foi possível instalar essas políticas para setores e sujeitos até então
ignorados pelas políticas públicas governamentais.
Estima-se que em torno de 3.000 organismos da sociedade civil
em todo o Brasil tenham sido impactados por essas ações e programas,
dentre os quais o que ficou mais conhecido aqui e nos demais países da
América Latina foram os Pontos de Cultura, coordenados pela Secreta-
ria da Cidadania Cultural (SCC) e que estão na gênese do programa e
posteriormente da Lei Cultura Viva. O foco dessa política consistia em
fomentar ações e projetos culturais já existentes realizando aquilo que
Gilberto Gil assinalava numa metáfora que se tornou famosa, um Do-
-In antropológico, uma massagem nos “pontos vitais, mas momentane-
amente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país” (GIL;
FERREIRA, 2013, p. 230).
Menos conhecidas, mas não menos importantes politicamente,
destacamos as ações desenvolvidas pela Secretaria da Identidade e Di-
versidade (SID). Esta, ao longo de 10 anos de atividade, como foi citado
em outro texto, “realizou encontros e concedeu prêmios direcionados a
segmentos socioculturais diversos como indígenas, ciganos, pescadores
artesanais, imigrantes, trabalhadores sem-terra, crianças, jovens, idosos,
pessoas com deficiência, LGBTs e áreas transversais ao segmento cultu-
ral como trabalho, saúde e, especificamente, saúde mental” (ROCHA,
2019, p. 21).
Esse conjunto de experiências realizadas no Brasil desde 2004 pas-
sa a dialogar e de certo modo inspirar iniciativas comunitárias culturais,
artistas e gestores culturais por quase toda nossa América Latina. E, nes-
se contexto, a despeito de todo o desinvestimento que o Cultura Viva so-
freu por parte do Governo Federal ainda no governo de Dilma Rousseff
e do desmantelamento total nos governos de Michel Temer e Jair Bol-
sonaro, em 17 países latino-americanos a experiência do Cultura Viva
se faz presente e dentre estes, 13 possuem Redes Nacionais organizadas.
No plano governamental latino-americano, o Programa IberCultura
Viva se constitui como um espaço de cooperação técnica e financeira
voltado para o fortalecimento das políticas culturais de base comunitária
dos países ibero-americanos, congregando 10 países membros.
Se por um lado a política pública governamental brasileira inspi-
rou todo um conjunto de coletivos e organizações por toda a América

151
Latina a partir do conceito de Pontos de Cultura e Cultura Viva foi,
na nossa avaliação, exatamente os aportes políticos e epistemológicos
vindos desses outros países com foco numa perspectiva descolonial,
anticapitalista e despatriarcal, que conferiram um giro necessário para
o fortalecimento do Movimento em nível latino-americano, influen-
ciando de volta o próprio Movimento brasileiro. É possível ainda nes-
se contexto que alguém indague se na trajetória brasileira do Cultura
Viva não se pautavam processos descoloniais, anticapitalista e despa-
triarcais. Para isso, responderíamos que estas questões passavam no
máximo ao largo, eram em última instância quando muito insinuadas
pelo Programa Cultura Viva brasileiro e que de fato não se constituíam
como elementos centrais na prática da ampla maioria dos Pontos de
Cultura.
O Movimento Cultura Viva, que pela influência dos outros países
latino-americanos agregou o qualitativo “Comunitária” ao seu nome, é
hoje um espaço, um campo a ser notado. Sobre o último Congresso
de Cultura Viva Comunitária, organizações, coletivos e redes culturais
e comunitárias de 14 países se fizeram presentes (Brasil, Costa Rica,
Peru, México, Paraguai, Chile, Cuba, Espanha, Colômbia, Guatemala,
Equador, El Salvador, Uruguai e Argentina) mobilizando em caravana
centenas de pessoas.
O discurso em torno de referências descoloniais, anticapitalistas e
despatriarcais é lugar comum entre participantes do Movimento Cul-
tura Viva, inclusive, desde o primeiro Congresso em La Paz no ano de
2013, no entanto, é importante avaliarmos o quanto desse discurso se
faz prática efetiva. E aqui volvemos nosso foco especificamente para
as questões abrigadas no guarda-chuvas da despatriarcalização. Refe-
rimo-nos aqui às questões de gênero, sexualidades e feminismos e as
utilizamos em bloco para guardarmos linearidade com as formas como
a Comissão Nacional dos Pontos de Cultura do Brasil (CNPdC) e o
Congresso Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária lidam com
estes temas. A primeira, tendo instituído dois grupos de trabalho, um de
Gênero e outro LGBT, que posteriormente, mudou seu nome para GT
de Sexualidades, e o segundo, tendo constituído um “círculo da palavra”
chamado “Feminismos, gênero e diversidade”.

152
Sobre as questões de gênero, sexualidades e feminismos no
cultura viva comunitária
Os esforços de ativistas, em sua ampla maioria mulheres, em te-
matizar as questões de gênero, sexualidades e feminismos dentro do
Movimento Cultura Viva acompanha-o desde seus primeiros passos.
No contexto brasileiro, na estrutura do encontro nacional dos Pontos de
Cultura, chamado de Teia, em 2008, em Belo Horizonte, Minas Gerais,
já se encontra estabelecido um Grupo de Trabalho, à época intitulado
LGBT e Gênero, que produziu uma série de resoluções para o Movi-
mento Nacional, dentre as quais “que o recorte de gênero, identidade de
gênero e orientação sexual sejam temas transversais a todos os Pontos
de Cultura”.
Outros conjuntos de deliberações se seguiram. Em 2010, na Teia
realizada em Fortaleza, Ceará, o Grupo de Trabalho de 2008 se des-
membra, dando origem a um GT de Gênero e outro LGBT. Em 2012,
diante da não realização de uma nova Teia pelo Ministério da Cultura,
a Fábrica de Imagens – ações educativas em cidadania e Gênero, através
do seu Ponto de Cultura Outros Olhares, promove no contexto do I
Curta o Gênero o I Encontro Gênero nos Pontos que integrou tanto
representantes do GT de Gênero, quanto do GT LGBT da Comissão
Nacional dos Pontos de Cultura (CNPdC). Novas resoluções são pro-
duzidas, que consistiam em quase uma repetição daquelas desenvolvi-
das nos encontros anteriores. No ano de 2014, no contexto da última
Teia nacional realizada em Natal, Rio Grande do Norte, realizamos em
conjunto o II Encontro Gênero nos Pontos e a reunião deliberativa do
GT de Gênero, que encaminhou as resoluções, explanadas a seguir, que
retomavam as principais ideias dos documentos passados, no máximo
com ajustes vocabulares e referências a alguns órgãos e políticas públicas
não citados anteriormente.
1. Deliberações específicas
– Criação de Pontos de Cultura, Pontões, Prêmios (tal como In-
terações Estéticas), com enfoque em gênero/mulher, por meio do
Ministério da Cultura e da articulação com a Secretaria de Polí-
ticas para Mulheres, dos Direitos Humanos e de Políticas para a
Igualdade Racial do Governo Federal, da FUNAI, do Ministério do
Desenvolvimento Agrário e outros;

153
– Implementar Programa de Formação em gênero/mulher como
uma ação estruturante do Programa Cultura Viva e dos Pontos de
Cultura.
2. Deliberações nacionais
– Institucionalizar o Programa Cultura Viva por meio da promulgação
da Lei Cultura Viva e da criação do Conselho Nacional Cultura Viva;
– Fomentar o Programa Cultura Viva pela simplificação do processo
de contratação e prestação de contas dos Pontos de Cultura e a am-
pliação do orçamento para o Programa Cultura Viva por meio de re-
cursos do próprio Ministério da Cultura, do Tesouro Nacional/PPA e
de outras secretarias e ministérios que desenvolvam ações congêneres.
Já o GT de Sexualidades encaminhou as seguintes resoluções, tam-
bém semelhantes às suas contribuições anteriores, realizadas em outros
Fóruns:
1. Deliberações específicas
– criação e animação de grupo/rede de membros do GT
SEXUALIDADES utilizando plataformas de redes so-
ciais como o Facebook, bem como a utilização de ferra-
mentas especificas desenvolvidas para a rede Cultura Viva;
– ações de incidência política em fóruns, comitês e conselhos, bem
como outras formas de organizações sociais a fim de ampliar a dis-
cussão acerca da temática da cultura LGBT, além da apresentação de
ações do GT SEXUALIDADE da CNPdC.
2. Deliberações nacionais
– articulação e realização de um fórum Cultura Viva LGBT, apro-
ximando iniciativas como articuladores da rede, pontos e pontões de
cultura e todas as ações envolvidas no programa, junto a movimentos
artísticos e movimentos sociais que articulem em seu fazer questões
de direitos sexuais, direitos reprodutivos e direitos humanos, a ser
realizado de forma bienal (a ser realizado em 2015), promovendo a
articulação prévia de GTS estaduais dentro da temática;
– retomada e continuidade de ações de fortalecimento e incenti-
vo à criação, produção e divulgação de produções ligadas à cultura
LGBT e temas interligados, por meio de prêmios e editais especí-
ficos e como tema prioritário em outras formas de incentivo e de
acesso a recursos.

154
No âmbito do Movimento e dos Congressos Latino-americanos
de Cultura Viva Comunitária, ocorreu de modo análogo. No primeiro
Congresso em La Paz, em 2013, estruturou-se um primeiro grupo para
discutir questões de gênero, chamado de Círculo de Feminismo Comu-
nitário. Não houve um Círculo específico para questões LGBT/sexua-
lidades. Este grupo teve na sua condução as ativistas Julieta Paredes e
Adriana Guzmán, da Bolívia. E logo nesse primeiro momento fica cla-
ra uma diferença entre o Movimento brasileiro e o Latino-americano.
Este último, desde seus primeiros passos, associa de modo peremptório
as ligações entre a lógica capitalista, a lógica colonialista e o machismo e
o patriarcado. A mensagem que nesse primeiro Congresso se constrói é
que ou se enfrenta as desigualdades de gênero associada à despatriarca-
lização, à descolonização e numa perspectiva anticapitalista ou, de outro
modo, essa categoria descontextualizada desses outros marcadores não
passaria de mais uma categoria colonizadora de baixo impacto transfor-
mador para a realidade concreta da maior parte das mulheres e também
dos homens, notadamente negras e negros, LGBTQI+, populações ori-
ginárias, comunidades tradicionais e o contingente de pobres e miserá-
veis que a ordem neoliberal inexoravelmente produz.
Essa perspectiva se ratifica nos Congressos de San Salvador (El
Salvador) em 2015, de Quito (Equador) em 2017 e da Argentina em
2019. Fazemos aqui um destaque especial aos acordos desenvolvidos
em Quito no Círculo da Palavra que passava naquele Congresso a
se chamar “Feminismos, gênero e diversidades” e que foram as bases
para o desenvolvimento das propostas do mesmo Círculo este ano na
Argentina.
1. Incluir os feminismos em todos os âmbitos dos próximos Congres-
sos e políticas públicas da CVC (Cultura Viva Comunitária);
2. Privilegiar os modos de fazer política das mulheres desde o cuidado,
a amorosidade, o respeito e a criatividade para transformar a hete-
ronormatividade;
3. Manter espaços específicos para a articulação com as comunidades
LGTBIQ em congressos e práticas cotidianas da CVC;
4. Comprometermo-nos a interpelar, a incomodar a todes, sair do conforto
trabalhando contra o racismo, a homolesbobitransfobia e a discriminação
de classe;

155
5. Elaborar ferramentas pedagógicas a partir dos nossos saberes para a
informação e sensibilização de nossas comunidades para incidir nas
práticas da CVC;
6. O cuidado coletivo deverá tomar em conta a despatriarcalização dos
papéis tradicionais binários.
7. Como urgência, incidir em políticas públicas e práticas cotidianas
frente a iminência da morte de pessoas vulneráveis pela sua condição
de gênero e de orientação sexual.
Essa brevíssima retrospectiva das movimentações ativadas nos cam-
pos do gênero, sexualidades e feminismos tanto no âmbito dos Pontos de
Cultura no Brasil, quanto no âmbito do Movimento Latino-Americano
de Cultura Viva Comunitária por companheiras e companheiros daqui
e de lá demonstra que, desde os princípios desse processo, essas questões
foram tematizadas, problematizadas. A questão aqui não é necessaria-
mente avaliar a robusteza teórica e política das ações e proposições, mas
deixar claro que aquelas e aqueles envolvidos com esses GTs e com esses
Círculos sempre se caracterizaram como vozes atuantes dentre do Mo-
vimento como um todo sugerindo outras percepções, caminhos, práticas
para superação das desigualdades instadas pelo patriarcado, pelo ma-
chismo, pela homolesbotranfobia.
Também é digno de nota e de ratificação algo que já assinalamos
acima, a distância significativa da compreensão epistêmica, política e
de enfrentamento desse cenário, simplificaríamos, machista e homo-
lesbotransfóbico, por parte de companheiras e companheiros brasi-
leiros e por parte daquelas e daqueles participantes dos Congressos
Latino-Americanos. Os temas da despatriarcalização, da descoloniza-
ção e de uma perspectiva anticapitalista passa muito ao largo nas propo-
situras dos GTs de Gênero e de Sexualidades, mas não somente nestes
GTs, todavia de modo generalizado no Movimento de Cultura Viva
brasileiro, o que denota, malgrado de algumas e alguns estudiosos do
assunto uma perspectiva de caráter mais reformista, que propriamente
revolucionária, de mudança real das estruturas sociopolíticas quando fa-
lamos da Política Cultura Viva Brasileira.
Para se ter uma ideia dessa distância, a Lei federal 13.018, de 22
de julho de 2014, que dispõe sobre a Política Nacional de Cultura Viva,
não faz sequer menção a termos como “gênero”, “LGBT”, tampouco

156
“comunitário(a)” à revelia do Ministério da Cultura e o Movimento de
Cultura Viva no Brasil à época enunciarem esta como uma Lei eminen-
temente de base comunitária. A primeira vez que termos como “expres-
sões culturais não hegemônicas, periféricas e descoloniais”, bem como
“direito à natureza e ao bem viver” surgem numa lei brasileira sobre o
Cultura Viva ocorre em 2018, quando da sansão da Lei Cultura Viva do
Estado do Ceará (no. 16.602, de 05 de julho de 2018), uma lei redigida
por membras e membros da Rede Cearense de Cultura Viva, com os
ajustes inevitáveis do palavreado jurídico.
Sobre isso, embora não seja objeto desse artigo, pensar nas ori-
gens do movimento no Brasil e nos demais países da América Latina
pode nos dar pistas para entendermos a distância discursiva entre os
dois campos citados. Enquanto no Brasil o desenvolvimento de um mo-
vimento protagonizado pela sociedade civil sucede a instalação de um
programa governamental com inédita aplicação de recursos, editais e
prêmios, ficando em boa medida a reboque desses financiamentos, nos
demais países da América Latina, inspirados pela experiência brasileira,
são as organizações e coletivos culturais que iniciam mobilizações na-
cionais e continentais de sedimentação da ideia de uma Cultura Viva
de caráter comunitário e assentada muito fortemente num horizonte
descolonial, anticapitalista e despatriarcal.
Aqui fica pelo menos uma pergunta para um outro momento, uma
outra investigação. A origem do Cultura Viva no Brasil, tendo sua ori-
gem na estrutura do Estado e em grande medida por ele financiado não
teria engendrado um movimento posterior, incluindo seus GTs de Gê-
nero e LGBT, reféns do Estado e de caráter mais reformista que revolu-
cionário, entendendo este último conceito como aquele que se propõe a
mexer efetivamente nas estruturas de poder e decisão?

Aderências e tensões entre o movimento Latino-Americano de


cultura viva comunitária e as perspectivas feministas / despatriarcais
Nas próximas páginas, vamos nos concentrar nas percepções de
três companheiras e de um companheiro sobre as questões propostas no
início deste artigo. Iniciaremos pelas percepções de uma companheira e
de um companheiro ligados, respectivamente, aos GTs de Gênero e de
Sexualidades da CNPdC do Brasil.

157
Leila Lopes, “lésbica, negra, ativista antirracista e de cultura afro,
jornalista e web designer, coordenadora do Ponto de Cultura Panella-
dexpressão – afrofuturismo, cultura digital, ecosol e etnogastronomia”
em Brasília, Distrito Federal, foi, ao longo de quase 10 anos, uma das
representações mais atuantes nos debates e no Grupo de Trabalho de
Gênero da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura.
Para Leila, “a cultura que permeia este país é a cultura do machis-
mo e ela interseccionalmente reflete também no movimento de cultura
viva”. Sobre sua atuação no âmbito do Movimento Cultura Viva brasi-
leiro, assinala que “o processo de desconstrução dos discursos machistas
relacionados com o tema de gênero no campo da cultura é um processo
cansativo, pois as questões de gênero são consideradas secundárias”. Na
mesma linha de pensamento, mas declinando para a relação entre as
membras e membros do GT de Gênero e o Coletivo da CNPdC, Leila
afirma que “muitas vezes nós ativistas deste campo de gênero e sexu-
alidade ficamos coagidas a ficarmos caladas, pois não havia urgência
na pauta por nós estabelecida”. Ainda sobre a referida relação, com-
pleta dizendo haver sim uma tensão entre estas duas instâncias que se
revela “justamente quando falamos que é preciso que os movimentos
se atentem aos discursos e práticas machistas que acabam reforçando
esta sociedade patriarcal e subjetivamente ou até diretamente a violência
contra a mulher e a LGBTFOBIA”.
Embora não estivesse no escopo das questões apresentadas, Leila
faz ainda uma crítica contundente em nível institucional governamen-
tal, em que ela expressa não ter presenciado nesse período de militância
“nenhum avanço no campo institucional relacionado a desenvolver uma
política de gênero inclusiva no campo dos pontos de cultura no país...
O sistema patriarcal é a força motriz que impera no fazer e acontecer
neste país e se reflete no silenciamento do protagonismo das mulheres
fazedoras de cultura e, por esta razão, o país é um dos destaques no acú-
mulo da violência contra as mulheres, com ênfase nas mulheres negras
e indígenas”.
As percepções de Sandro Ka não destoam significativamente da-
quelas apresentadas por Leila Lopes. Sandro é artista visual e pesqui-
sador. Doutorando em Artes Visuais (PPGAV/UFRGS), professor de
Produção e Gestão Cultural – IFRS Campus Alvorada e membro da

158
Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas – ANPAP
– Comitê de Poéticas Artísticas. Atuou “vinculado ao Movimento Cul-
tura Viva como coordenador do Ponto de Cultura LGBT e do SOMOS
– Pontão de Cultura LGBT, ambos realizados pela ONG SOMOS –
Comunicação, Saúde e Sexualidade, de Porto Alegre/RS. Atuou como
representante do GT Sexualidades (ex-LGBT) junto à Comissão Na-
cional dos Pontos de Cultura e, mais recentemente, participou do GT
de Cultura LGBT do Ministério da Cultura, descontinuado após o gol-
pe à presidenta Dilma”.
Sandro segue o entendimento de Leila sobre a relação entre go-
verno e as questões de gênero e sexualidade no campo da cultura, nas
gestões de Lula e Dilma Rousseff, argumentando que estes dois mar-
cadores “despontaram como pautas da Cultura a partir das tensões e
contribuições de movimentos feministas e LGBTI+ que contribuíram
na construção desses governos. Mas, nunca me pareceram temas de ‘pri-
meira linha’, sempre ficando à margem de outros temas mais populares
ou com mais visibilidade e popularidade... nunca estiveram em pé de
igualdade com as pautas das culturas relacionadas à Arte e Cultura Po-
pular ou do Movimento Negro. Talvez, isso seja reflexo de uma desorga-
nização política ou, mesmo, de uma demora, ausência ou debate tardio
sobre o quanto a cultura é determinante para a promoção da igualdade
de gênero e sexualidades diversas e para o enfrentamento a formas de
opressões sociais que se afirmam culturalmente, como misoginia, ma-
chismo e LGBTfobia”.
Ainda no plano dessa relação entre as questões de gênero e sexua-
lidades e com a esfera governamental nos governos Lula e Dilma Rou-
sseff, Sandro assinala que o reflexo disso foi as “poucas e descontinuadas
ações como grupos, fomentos, editais e prêmios ligados a essas temáticas
ao longo destes governos. Mesmo estes sendo mais sensibilizados com
tais pautas”.
É importante observar que mesmo que nas questões propostas
para Leila e Sandro, como de igual modo para as demais companheiras
da Argentina e Uruguai, não houvesse referência à relação entre a tríade
gênero-sexualidades-cultura e Governo / fomento, este tema compreen-
deu um grande espaço em suas respostas. Esse é um dado revelador que
dialoga sobre o que já foi comentado anteriormente sobre diferenças

159
entre as origens e percursos do Cultura Viva no Brasil e outros países
latino-americanos.
No que se refere à relação entre os GTs de Gênero e sexualidades
e a CNPdC de modo geral, nova concordância com Leila ao asseverar
que “todo o avanço que as pautas tiveram dentro do Movimento Cul-
tura Viva não veio sem tensionamento e insistência dos/das militantes
culturais sintonizados com tais pautas de Gênero e Sexualidade”.
Seria incorreto afirmar, no entanto, tanto para Leila, quanto para
Sandro, que tudo era tensão e não acordo ou acolhimento nessa relação
entre o conjunto da CNPdC e os GTs de Gênero e Sexualidades. Havia
momentos de entendimento, de acolhimento das pautas de gênero/mu-
lher e LGBTs, todavia Sandro afirma que, na sua percepção, “mais por
simpatia (a companheiras e companheiros ou ao tema de modo geral)
do que compreensão da dimensão política”. Já Leila assinala que alguma
aderência entre as proposituras e posições dos GT de Gênero e o con-
junto da CNPdC somente ocorriam “após muita conversação e muita
luta interna”.
Tanto Leila Lopes quanto Sandro Ka não se debruçam sobre a
indagação referente à presença de diferentes perspectivas teóricas femi-
nistas no interior dos GTs e, eventualmente, a alguma que se destacasse.
Sobre as contribuições das companheiras da América Latina, algu-
mas informações. Como participantes do Congresso ocorrido na Argen-
tina, após a caravana fomos adicionados em 06 grupos de WhatsApp,
três de Círculos da Palavra que havíamos participado, um geral, um só
de brasileiras e brasileiros que participaram do Congresso e um que se
formou para construir e enviar uma proposta de pesquisa para a CLA-
CSO. O menor destes grupos tinha 27 integrantes, o maior 217 e o de
“Gênero, feminismos e diversidade”, 47. Enviamos para cada grupo pelo
menos por três vezes informações sobre o artigo em construção e seus
objetivos, bem com as questões gerais assinaladas no início do artigo.
Desse universo, apenas cinco pessoas nos deram resposta nos enviando
algum material. Duas nos deram retorno com base nas questões sugeri-
das dialogando pelo aplicativo e três nos enviaram indicações de textos.
De modo aparentemente paradoxal e sobre o qual não temos como ava-
liar, apenas uma das companheiras que nos respondeu era do Círculo da
Palavra “Gênero, feminismos e diversidade”.

160
Importante salientarmos que as respostas de nossas interlocutoras
foram traduzidas por nós e incluídas neste artigo em português sem-
pre que nos sentimos seguros para tanto. Eventualmente, desse modo,
alguns termos abaixo aparecerão em espanhol e esse procedimento foi
utilizado sempre que nos pareceu mais seguro, mais fidedigno ao escrito
ou ao falado.
Começamos por Maria Emília Ruiz, que nos sugeriu a seguinte
apresentação sua, “trabalhadora cultural comunitária, livre pensadora,
tecelã de quando pode ser tecido e moradora das bordas. Membra de
TAGUA, organização cultural comunitária de Córdoba (Sierras Chi-
cas) e do movimento de cultura viva comunitária. Promotora de redes
territoriais. Licenciada em Serviço Social, argentina, 48 anos”.
Antes de Maria Emília nos acionar em privado para conversarmos
sobre este artigo e suas questões, já tínhamos observado a seguinte pos-
tagem de nossa interlocutora no grupo de “Gênero, feminismos e diver-
sidade”: “eu queria dizer que há algo que se repete e não mudou neste
Congresso e é que os ‘homens heteros cis’ não participam deste círculo.
Talvez um ou dois, como uma exceção... se os movimentos não se po-
sicionam diante do patriarcado, tornam-se funcionais para o próprio
patriarcado. Precisamos que os companheiros façam uma autocrítica e
demonstrem sua autocrítica, isso criaria outras condições para continuar
construindo uma cultura viva verdadeiramente não patriarcal”.
Maria Emília, que esteve no primeiro Congresso Latino-Americano
de Cultura Viva Comunitária em La Paz, em Quito, foi coordenadora
do Círculo “Gênero, feminismos e diversidade” e este ano participou
do referido Círculo em Córdoba, identifica de modo claro ao longo da
trajetória do Movimento de Cultura Viva Comunitária a permanên-
cia na condição de liderança, dos mesmos “referentes históricos, os pais
fundadores (todos homens heteros cis)”. Por isso mesmo indica nos-
sa interlocutora que “hoje a despatriarcalização das organizações e dos
movimentos sociais me mobiliza mais que o Movimento de Cultura
Viva Comunitária em si”.
Assim como no Brasil, ativistas ligadas à agenda de gênero/mulhe-
res, feminista e despatriarcal têm se mobilizado nos Congressos e entre
Congressos para influir no Movimento Latino-Americano de Cultu-
ra Viva Comunitária e um exemplo interessante disso foi um projeto

161
construído por participantes do Círculo da Palavra “Gênero, feminis-
mos e diversidade” que estiveram em Quito (2017) intitulado “Os mo-
dos de fazer política das mulheres”, projeto que Maria Emília foi uma
das idealizadoras e realizadoras, juntamente com Valéria Pratto (ARG),
Mariana Gutierrez (ARG), Manuela Toro (CHL). Claudia Orantes
(GUA), Rosa Villafuerte (PER), Poliana Herrera (BRA) e Katia Her-
rera (MEX).
Os depoimentos de Maria Emília, no entanto, fortalecem a ideia
de que, mesmo nos demais países latino-americanos, a agenda da des-
colonização caminha em passos desiguais em relação à agenda da des-
patriarcalização (GALINDO, 2013). No projeto referido acima e en-
viado a nós em arquivo digital, as autoras comentam: “Há questões que
concentram a maior atenção e disputa política desde o seu nascimento
no 1o Congresso, como as políticas públicas e legislação no CVC ou os
modos de organização do movimento, enquanto outros temas que são
também constitutivos e transversais às práticas e lutas do CVC ocu-
pam lugares mais periféricos... arte e transformação social, economias
populares, soberania alimentar, recursos naturais, comunicação popular,
gênero e diversidade, infância e criação de filhos, educação e processos
de pacificação”. E prosseguem... “há um longo caminho a percorrer para
efetivamente despatriarcalizar as práticas comunitárias e desenvolver
novas formas orgânicas de fazer política que sejam transparentes, par-
ticipativas, circulares e abertas. Nesse sentido, é apresentado como um
desafio contínuo para as culturas da comunidade desconstruir o colonia-
lismo e o patriarcado”.
O discurso de Maria Emília, avaliando a relação entre ativistas em
gênero, feminismos e diversidade com o conjunto do Cultura Viva Co-
munitária, tem ainda inegável sinergia com o relato de Leila Lopes,
quando esta se diz “cansada”. Maria Emília relata: “eu participo lá desde
2009 e, depois de certas experiências me distanciei e, quando voltei,
só podia estar / sobreviver neste círculo de palavra”, referindo-se ao de
“Gênero, feminismos e diversidade”.
Prosseguimos com as contribuições de Aldana Sardelli do movi-
mento de Cultura Viva Comunitária da Argentina e integrante do “O
Transformador”, uma organização social situada em Haedo, Buenos
Aires e que trabalha com temas diferentes, como agroecologia, cultura

162
popular, infância com experiência da vida nas ruas e feminismo. Aldana
tem 29 anos e se identifica como ativista cultural e feminista popular.
Os primeiros áudios que Aldana nos enviou tiveram como foco a
estruturação do Círculo da Palavra “Gênero, feminismos e diversidade”,
bem pensado e planejado na sua percepção, transitando pelo tema dos
abusos sexuais acontecidos durante o Congresso da CVC este ano e
uma análise geral de suas percepções sobre o lugar dos feminismos no
Movimento. Ela assinala que para “o movimento, o tema feminismo
ainda custa muito a ser entendido como algo transversal... no discurso se
diz que é algo importante, mas falta muito que isso seja visto em ações”.
Nesse momento, cita os casos de abuso ocorridos no Congresso e recep-
cionados pelo Círculo da Palavra “Gênero, feminismos e diversidade”
que culminaram com a solicitação de saída de um dos homens acusados
de abuso da Caravana e subsequentemente o desenvolvimento, ainda
não findo, de um protocolo com procedimentos claros para se evitar
esses casos e lidar com eles caso ocorram no próximo Congresso.
Aldana conclui esse pensamento afirmando que com esses ocor-
ridos se começou a visibilizar o feminismo como algo transversal e fez
emergir o que ela denominou uma “tensão latente” dentro do Movimen-
to CVC, diante da constatação, a princípio “impensável”, que dentro
de um movimento com valores sedimentados, possa não apenas haver
casos de abuso, mas, que seja essa uma prática instalada. E aponta ainda
que “mesmo nos movimentos comunitários e populares também esta-
mos atravessados pelo patriarcado e por um monte de violências, então
pressupor que porque nos dizemos comunitários isso implica em boas
práticas, é subestimar um pouco o contexto em que estamos imersos e
imersas”. Aldana vê algo positivo nesse acontecimento e denúncia de
abuso, pois imagina que em outros Congressos isso já pode ter ocorrido,
mas o movimento feminista dentro da CVC não estava tão forte.
Esta última análise de Aldana condiz com nossa própria experi-
ência no primeiro Congresso Latino-americano de CVC em La Paz.
Estávamos em um grupo não menor que de 50 pessoas de diversos paí-
ses, mas em sua maioria brasileiras e brasileiros no saguão de um hotel.
Em determinado momento um “mestre griô” do interior de São Paulo
passa a contar uma história. Resumidamente a história relatava como os
“viados” de Campinas, quando voltavam de suas viagens para o exterior,

163
creio que ele citava a França, voltavam mais “viados” ainda. As risa-
das foram generalizadas. Apenas eu (Marcos Rocha) tomei a palavra e
expressei meu descontentamento, meu repúdio pela situação, história
contada e risadaria. Ainda durante a minha fala, alguns homens já co-
meçaram a contestar, afirmando que era somente “uma história”, que
não tinha nada demais. Contestações que vinham inclusive de compa-
nheiros considerados referentes no Movimento CVC.
Hoje em dia uma atitude pública dessa seria impensável dentro do
Movimento CVC. Como cita Aldana, referindo-se ao processo de cons-
trução de uma agenda de gênero e feminista para o IV Congresso, todos
e todas se colocaram de acordo, pois seria “até politicamente incorreto
estar em desacordo em relação a como está hoje em dia a conjuntura”.
Mas aquilo que se apresenta tão afirmativo e bonito no horizonte dos
discursos não logra ainda ter a capilaridade e a profundidade necessárias
dentro do Movimento CVC que não toma as bandeiras feministas /
despatriarcais como essenciais para si.
Aldana toca de modo mais direto, respondendo a um dos ques-
tionamentos básicos que fizemos a todas, nas questões dos feminismos
presentes dentro da CVC, ou como ela se indaga, “que feminismos que-
remos?”. Nesse ponto, afirma que como “postura pessoal os feminismos
populares e comunitários são os que estão em mais consonância com
nossa identidade como Movimento na Argentina”. Todavia há tensões
com os feminismos queer ou com os movimentos LGTBIQ+ e, para
Aldana, põe-se uma questão, “como nosso discurso pode apaixonar aos
coletivos que hoje em dia nos formam e outros que ainda não partici-
pam do Movimento de Cultura Viva Comunitária e arremata com uma
impressão sua que nos parece apontar para um tema central sobre o qual
a CVC precisa se debruçar: a pouca permeabilidade do Movimento a
estes outros coletivos. E falando do Movimento CVC especificamente
da Argentina, este se configura pouco atrativo para os coletivos das dis-
sidências sexuais”.
Aldana concentra sua análise acima no cenário argentino, mas a
partir da nossa avaliação do cenário brasileiro e da observação da dinâ-
mica do IV Congresso, intuímos que os desafios que ela identifica são
gerais onde tem se construído movimentos de Cultura Viva Comunitá-
ria. E, finalizando essa sessão, retomamos reflexões realizadas pelo grupo

164
de mulheres que desenvolveram o projeto “Os modos de fazer política
das mulheres” que guardam sinergia com o que Aldana se remete acima,
onde para além da conclusão de que existe um longo caminho a percor-
rer na despatriarcalização das práticas no contexto do Movimento de
Cultura Viva Comunitária, há de se estar atenta e atento a como lidar/
integrar outras atrizes e atores “como las pibas, no âmbito da luta pela
legalização do aborto na Argentina, cujas lutas diárias (expressas em
“Educação sexual para decidir, contraceptivos para não abortar, aborto
legal para não morrer”) estão ligadas à reivindicação da soberania do
corpo e à regulação do desejo. Agregue-se a isso os acontecimentos em
nível internacional onde o movimento de mulheres é fortalecido e a
demanda por direitos LGBTIQ+ que adquirem crescente relevância na
agenda pública de nossos países, para mencionar alguns dos emergentes
com os quais convivemos com organizações de base comunidade nos
territórios e nos processos de transformação que produzimos”.

Considerações semifinais
Como assinalamos em mais de uma oportunidade ao longo do tex-
to, os GTs de Gênero e Sexualidades brasileiros e os Círculos da Palavra
de “Gênero, feminismos e diversidade” desde os primeiros momentos
da construção do Movimento Brasileiro Cultura Viva e do Movimento
Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária se organizaram, pro-
puseram e procuraram afirmar suas agendas em um contexto machista
e patriarcal.
O fato do Movimento Latino-Americano trazer em seu discurso a
perspectiva descolonial e despatriarcal não indica de modo algum uma
ausência de tensão entre os temas gênero, feminismos e diversidade e
o conjunto do Movimento Latino-americano. Como já mencionamos,
e corroborado pelas nossas interlocutoras, há uma distância significa-
tiva entre o discurso coletivo que acolhe as demandas em torno dos
temas de gênero, feminismos e de diversidade sexual e a ação efetiva de
acolhimento.
A lógica patriarcal, tanto no movimento brasileiro quanto latino-
-americano, manifesta-se de inúmeras formas, não apenas nos abusos e
discriminações reveladas no último Congresso na Argentina. Revela-se,
por exemplo, na baixíssima participação de homens, sobretudo héteros

165
e cis, como menciona Maria Emília, nos Círculos da Palavra “Gênero,
feminismos e diversidade”; na concentração dos “principais referentes”
latino-americanos nos Círculos da Palavra com maior poder simbóli-
co e prático, os Círculos de Organização do Movimento e de Políticas
Públicas; na pouca permeabilidade do Movimento para o acolhimento
de outros grupos, por exemplo, de dissidências sexuais como nos coloca
Aldana; no silenciamento destes temas nos coletivos maiores, como cita
Leila Lopes; e nos avanços sempre obtidos pelo exercício da insistência,
pelo tensionamento, como nos indica Sandro Ka e todas as demais in-
terlocutoras, mais ainda que isso, à custa, diríamos, de um cansaço, que
sabemos que não é banal, como citado também por Leila ou mesmo de
processos de adoecimento.
Como os feminismos são muitos e existem ainda um número não
insignificante de mulheres que estão na luta pela descolonização e des-
patriarcalização que não se colocam como feministas, é fundamental
o Movimento CVC no Brasil e nos demais países da América Latina
estarem atentos a isso. Soma-se a esta outra tensão, identificada por Al-
dana e por Maria Emilia no documento “Os modos de fazer política das
mulheres”, a existência de todo um campo de identidades e de militân-
cias nas áreas das questões de gênero e sexualidades que numa estrutura
patriarcal pode ser ainda mais “mal vista” e não acolhida, o que configura
um paradoxo para um Movimento que se intitula comunitário, de cará-
ter descolonial e despatriarcal.
De modo geral, parece-nos que muito embora o campo das pers-
pectivas feministas descoloniais, comunitárias ou populares sejam as
que têm estabelecido mais sinergias com o Movimento CVC, em que
pese as distâncias entre discurso e prática no interior do Movimento,
parece-nos que, para além das denominações, o foco precisa ser a despa-
triarcalização, a luta pela liberdade dos pensamentos e dos corpos para a
promoção do bem comum, do bem viver.
Finalizamos agradecendo a todas e a todos que nos ajudaram nesse
esforço inicial de pensarmos um tema de significativa complexidade e
atualidade, especialmente à Leila Lopes, Sandro Ka, Maria Emília Ruiz
e Aldana Sardelli.

166
Bibliografia
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Impresso. Argentina, 2019.

167
Los avances y retos de los feminismos de
América Latina / Abya Yala del Siglo XXI

Por Breny Mendoza2

Resumen
Este ensayo es un breve diagnóstico del contexto político actual y
los nuevos desarrollos dentro del movimiento feminista latinoamerica-
no, así como los nuevos desafíos que el movimiento enfrenta en la regi-
ón. El momento para este ejercicio es oportuno ya que no solo hemos
entrado en una nueva era política a nivel local y global, sino que también
estamos asistiendo a una nueva fase feminista.

Introdução
A nivel global, nos encontramos viviendo una situación límite que
algunos describen como la antesala a una era apocalíptica o por lo me-
nos una crisis civilizatoria que para los mas optimistas, de sobrevivirla,
podría dar luz a una nueva era de la humanidad bajo nuevos principios
ontológicos y sociológicos no-occidentales. El Zeitgeist o el espíritu de
la actual era política se podría caracterizar por una sensación colectiva
de estar al borde del precipicio, como si la catástrofe total fuera inmi-
nente. Obviamente, cuando se vive al borde del precipicio, la caída libre
se torna en una posibilidad muy real. El calentamiento global, la muerte
lenta de la Amazonía y los polos del planeta, la sexta extinción masiva
de especies que no se había visto en 700 millones de años, la amenaza
de una guerra nuclear, las múltiples guerras de exterminio alrededor del
mundo y la implosión de EEUU, son tan solo algunas de las señales de
esta crónica de muerte anunciada (MENDOZA, 2019).
1 Adaptación de la ponencia presentada en la Curta O Gênero 2017, Fábrica
de Imágenes, Fortaleza-Ceará, Brasil, titulada Los retos actuales de los feminismos
latinoamericanos: estrategias y posibles articulaciones.
2 Breny Mendoza es profesora del Departamento de Estudios de Género y la Mujer de
la Universidad Estatal de California, Northridge. Obtuvo su doctorado en la Universidad
de Cornell en Planificación Urbana y su maestría y licenciatura en Ciencias Políticas en
la Universidad de Heidelberg Ruprecht-Karl y la Universidad Libre de Berlín.

169
Sin lugar a duda, hemos llegado a los límites de la civilización oc-
cidental y del mundo que la civilización occidental creó. Estamos siendo
testigos de un final muy violento de esta civilización, donde todo su
aparataje epistémico, ideológico, estructural, institucional, económico,
político, cultural y ético construido a lo largo de 500 años se descalabra
ante nuestros ojos, es decir, vemos como todo su ordenamiento de la
realidad se viene abajo. Un indicio muy claro es la desquiciada presiden-
cia de Donald Trump en EEUU y la ruptura que se está gestando entre
EEUU y Europa, que son los aliados históricos que han mantenido en
pie los mitos de la superioridad de la civilización occidental. Occidente
se resquebraja por dentro.
En nuestras latitudes el peligro se expresa en las crisis políticas que
viven Brasil bajo Bolsonaro y Venezuela bajo Maduro, pero podemos
decir lo mismo de Colombia, Argentina, México y Honduras, Guate-
mala y muchos otros países. En América Latina tanto el socialismo del
S. XXI como la democracia liberal occidental considerada hasta ahora
la única forma de gobierno democrático posible se derrumban por sus
propias contradicciones y la renovada injerencia externa. La guerra civil
y la invasión de EEUU en Venezuela esta planificada. La ocupación de
territorios nacionales por fuerzas externas y la recolonización interna de
territorios indígenas están en proceso. La reorganización del Estado por
las fuerzas del narco y el crimen organizado es un hecho consumado en
muchos países.
En América Latina (como en el resto del mundo) presenciamos un
retorno violento de las oligarquías al poder, una regeneración del fascis-
mo, una re-intensificación del racismo y del fundamentalismo cristiano,
un relanzamiento del neoliberalismo, una guerra contra las mujeres y el
retorno de las intervenciones militares de EEUU. Pero también vemos
como las oligarquías entran rápidamente en crisis porque su ordena-
miento de la realidad, su propia institucionalidad ha dejado de servir-
les. Bajo estas circunstancias, el liberalismo y la institucionalidad de la
democracia representan mas bien un impedimento que una vía para la
realización de su proyecto neoliberal. El modelo de la democracia elec-
toral esta agotado.
El paradigma bipolar de izquierdas y derechas se desploma tambi-
én sobre nuestros pies. Los cambios suceden a una velocidad vertiginosa

170
gracias a los medios de comunicación y el Internet. No se sabe lo que
quedará en pie cuando todo haya caído. No solo no se vislumbra una
salida inmediata, en realidad, no tenemos la certeza que haya una salida,
porque pareciera que toda salida nos lleva a un callejón sin salida. ¿Qué
sucederá después de Bolsonaro, de Maduro, de Juan Orlando Hernán-
dez, de Macri? Ni la izquierda ni la derecha en el poder pueden dar
respuesta a los retos actuales; hasta ahora la violencia y la represión han
sido la única respuesta.
Esta situación causa caos y desorientación. Pero, América Latina
ha vivido experiencias similares en el pasado, ya ha vivido el apocalip-
sis en su historia. Surgimos de las experiencias límites de los pueblos
indígenas abatidos que tuvieron que vivir el genocidio y el derrumbe
de sus mundos, de las experiencias limites de los africanos esclavizados
arrancados de sus lugares de origen y de la orfandad y desorientación
del mestizo que no entiende el lugar que le corresponde; quizá no haya
nadie que conozca el derrumbe total de un mundo como Abya Yala. Por
eso nos llamamos la tierra en plena madurez, porque nacimos del abismo
y construimos sobre las ruinas. Tenemos experiencia post-apocalíptica.
Ahora bien, en el campo feminista se observan algunos desarrollos
mas alentadores. Estamos en una situación distinta, la crisis se vive mas
bien como una oportunidad para contribuir a la caída de occidente, para
poder ir mas allá del occidentalismo. Vemos una movilización crecien-
te de mujeres en especial, de jóvenes, que buscan otros parámetros de
pensamiento y acción. Presenciamos la consolidación de movimientos
de feministas indígenas y afro-descendientes y de fuertes contingen-
tes de movimientos queer y trans que tienen como proyecto político
pensar más allá de la izquierda, la derecha y la binariedad del género y
la heteronormatividad. Mientras el feminismo urbano, mestizo-criollo,
conocido otrora como el feminismo hegemónico y que antes llevaba la
voz cantante dentro el feminismo latinoamericano parece haber perdido
el brillo que una vez tuvo y su voz es casi imperceptible. Sin embargo,
ninguno de estos movimientos es homogéneo ni está exento de con-
tradicciones. Hay gran diversidad dentro de la diversidad y una gran
complejidad a su interior, sus proyectos políticos se realizan en contextos
muy duros y sus dinámicas internas son con frecuencia problemáticas.
Pero todxs buscan irse deslindando del pensamiento único y hay una

171
postura cuestionadora del masculinismo de la izquierda que las unifica
y las vuelve indigeribles tanto para las políticas de izquierda como de
derecha; todxs van caminando cuidadosamente por los bordes buscando
no caer en el intento.
También se observa un marcado interés por la teoría dentro de los
nuevos movimientos feministas. Esto contrasta con el pasado donde ha-
bía indiferencia y quizá una fobia hacia la teoría. Este interés surge con
el descontento con el liberalismo y el institucionalismo del feminismo
hegemónico y su incapacidad por reconocer el racismo en su entorno.
Mas importante aun, proviene del cansancio con las ideologías de gé-
nero etnocéntricas, las teorías feministas occidentales y la necesidad de
defender sus territorios y sus cuerpos de los ataques de una nueva fase
de conquista y colonialismo por parte de las fuerzas capitalistas, locales
y extranjeras. De este malestar nace el proyecto de reconstrucción de
conocimientos ancestrales y la creación de una teoría feminista desco-
lonial. Posiblemente, este sea uno de los desarrollos más importantes
dentro del feminismo latinoamericano. El cambio epistémico siempre
precede la acción.
Podemos ver como en los últimos años ha habido un esfuerzo
sistemático por el desarrollo de una teoría feminista geopolíticamente
anclada en nuestra historia y nuestro territorio. El giro descolonial ha
tenido algo que ver con este desarrollo, pero no lo explica todo. Ya había
dentro de la academia latinoamericana importantes avances en estudios
coloniales. El trabajo intelectual y la práctica política de los movimientos
indígenas y afro-descendientes lleva muchos años realizando notables
aportes al pensamiento anti-colonial. Sin embargo, el grupo de la mo-
dernidad/colonialidad de autores como Quijano, Mignolo, Grosfoguel y
Lugones sin duda han tenido una influencia significativa también sobre
el nuevo pensamiento feminista de la región. Se han publicado varios
libros y artículos que indagan sobre la colonialidad del poder y sobre el
feminismo descolonial; éstos circulan ampliamente en el Internet dando
cuenta sobre este naciente pensamiento feminista latinoamericano. Se
han formado diversas redes del feminismo descolonial como la de Sylvia
Marcos en México y GLEFAS para mencionar tan solo algunas. Se han
formado circuitos de conferencias de feministas descoloniales que van
por el mundo enunciando su pensamiento. Se va constituyendo así poco

172
a poco un pensamiento feminista latinoamericano que entra en dialogo
con otros feminismos tanto dentro el mundo colonial (con feminismos
islámicos, indígenas etc.) como de la metrópoli (feminismo negro de
EEUU etc.). Se va cerrando así la brecha que separa el sur del norte y la
academia del activismo. Esto es una novedad.
Poco a poco se va descolonizando el conocimiento y disminuyendo
la dependencia intelectual con el Norte. Hay un fuerte cuestionamiento
de la academia feminista occidental y del llamado feminismo hegemó-
nico de la región que otrora dominaba el pensamiento feminista latino-
americano. Con ello se va perdiendo el apego a políticas de presencia
y de inclusión que antes consumió al feminismo latinoamericano, se
va cuestionando la democracia liberal mas profundamente, pensando
estrategias políticas alternativas y actuando fuera del ámbito estatal con
nuevas herramientas. Estos cambios son de gran importancia.
El pensamiento feminista anti-colonial y descolonial de la región
crea un sentido o un horizonte histórico que carecíamos antes. Inclu-
so nos da un nuevo sentido geopolítico. Se opera con un nuevo mapa
conceptual y con nuevas categorías de análisis. Al centro de este pensa-
miento está la toma de conciencia de nuestra condición de colonialidad.
Se ha establecido entre nosotras la certeza que habitamos la colonia, no
solo que ocupamos el espacio de la colonia, sino que la colonialidad del
poder habita nuestros cuerpos, nuestras memorias, nuestras identidades
culturales, nuestras formas de producir conocimiento, nuestra ubicación
en el mundo laboral y la división mundial del trabajo, nuestras formas
de gobierno, nuestras formas de desear, amar, nuestras formas de vivir
y de morir; en suma, reconocemos que la colonialidad define nuestro
ser, nuestro saber y nuestro poder. La colonialidad nos hace reconocer
nuestro lugar en la historia del mundo y nuestra posición dentro del
sistema mundial moderno/colonial. Somos la colonia. Esta verdad es a
veces muy dolorosa porque acarreamos en nosotras mismas los vicios de
la colonia pese a nuestros esfuerzos de descolonización.
El giro descolonial en este sentido nos abre los ojos hacia nosotrxs
mismxs. Uno de sus aportes más importantes es haber recuperado la
importancia que tuvo la conquista de América o la caída de Abya Yala
en la historia del mundo y sobre todo para el ascenso de occidente y la
invención de la modernidad y el capitalismo que son el mayor problema

173
de la humanidad. Nos ha enseñado que el ascenso de occidente no tiene
que ver con la superioridad de su civilización, sino que con la coloniza-
ción. Desde nuestra perspectiva, la civilización occidental nos arrastra a
la muerte. La conocemos como una civilización de la muerte. Su historia
comienza con el genocidio en América en 1492 y continúa su labor de
muerte alrededor del mundo hasta hoy.
Sabemos ahora que el occidente jamás hubiese podido triunfar
sin la caída de Abya Yala, sin los recursos, las tecnologías, las ideas, las
instituciones, las formas de explotación del trabajo que encontraron o
recrearon en la conquista (esclavitud, mita, repartimiento, la plantación)
como tampoco hubiese podido realizarse el capitalismo, ni la moderni-
dad. Estamos en el centro de la historia del mundo moderno/colonial.
Somos la base sobre la que se construyó el mundo moderno/colonial
que habitamos y que vemos hoy entrar en su fase terminal. Por eso so-
mos la región más violenta del mundo, aunque no estemos en guerra.
Pero también por eso nuestros movimientos y nuestra recuperación his-
tórica de la memoria colonial es crucial para la liberación del mundo.
Somos la gran promesa.
Al revelarse la centralidad de Abya Yala en la invención de la mo-
dernidad se descentran los imperios de Inglaterra y EEUU y se redes-
cubre la importancia que tuvieron los imperios ibéricos – españoles y
portugueses – para la construcción del capitalismo y el mundo moder-
no. Se descubre el S. XVI como el momento histórico fundante de la
catástrofe mundial que hoy vivimos. No debemos olvidar que occidente
antes de la conquista era una de las áreas más atrasadas y oscurantis-
tas del mundo. No pudo haber ascendido al poder que aun goza sin
haberle robado a Asia, al Medio Oriente y África sus conocimientos y
tecnologías como tampoco, sin la anexión de nuestros vastos territorios,
la apropiación de las tecnologías indígenas, la esclavización y exter-
minio de los pueblos indígenas de esta región y el tráfico de africanos
esclavizados. El tráfico de indígenas y africanos esclavizados fueron la
fuente de las grandes fortunas que impulsaron el capitalismo europeo;
es lo que le brindó al occidente una ventaja comparativa con el resto
del mundo (HOBSON, 2012). Esta dependencia de los recursos y del
trabajo del mundo de la colonia continua hasta hoy y esta acabando con
nosotrxs.

174
La conquista de América fue tan importante que incluso causó
el comienzo de la larga y lenta caída de la China que había dominado
la economía mundial hasta 1840. Por 300 años China importó casi la
mitad de la producción de plata en el mundo, la mayoría proveniente de
nuestros territorios y fruto del trabajo esclavizado de indios y africanos.
En aquel momento, como hoy la economía china pasó a depender en
buena parte de un recurso fuera de sus fronteras, un recurso controlado
por los españoles y dependiente del trabajo esclavo. Es decir, que nuestra
relación desigual con China no es nueva. Estamos ante una reedición de
esta historia. China renace y se acerca a América Latina por la necesi-
dad de nuestros recursos. Lastimosamente, como colonias no conoce-
mos otra cosa más que economías extractivas y esclavistas y les abrimos
nuestras puertas sin preguntar (MENDOZA, 2017).
El giro feminista descolonial opera entonces con una nueva visión
histórica y con nuevas categorías de análisis. Por ejemplo, la categoría
de raza es ahora utilizada para entender nuestra colonialidad. Viene en
la caja de herramientas de la teoría descolonial. La tradicional ceguera
y negación del racismo dentro del movimiento feminista hegemónico
ya no es posible. La lucha anti-racista ha sido asumida por los nuevos
movimientos feministas de la región como un derrotero tan importante
como la cuestión de género, sexualidad y la clase social. En este senti-
do, el concepto de interseccionalidad creado por feministas negras del
Norte ha sido muy útil para el nuevo pensamiento feminista latinoame-
ricano. La idea de la co-constitución de género, raza, clase y sexualidad
es central para las políticas y las articulaciones entre los distintos movi-
mientos tanto dentro del feminismo como fuera de él. Pero, se observa
también que no ha sido asumido acríticamente como en el pasado. El
concepto de interseccionalidad se ha conjugado con concepciones simi-
lares desarrolladas por feministas indígenas y negras de la región. Ya no
se importan conceptos sin antes cuestionar su utilidad. Se cuestionan,
se adaptan a nuestras necesidades y se les da nuevo contenido. Se va
forjando así un episteme propio.
Mas interesante aun, el concepto de género ha sido nuevamente
puesto en disputa, esta vez no por Judith Butler, sino por la argen-
tina Maria Lugones quien niega la existencia de género en la épo-
ca pre-colombina (LUGONES, 2008) y las feministas indígenas y

175
afro-descendientes de nuestra América que ponen en duda este enun-
ciado de Lugones. Por primera vez el epicentro de la teoría feminista
está en Abya Yala. Por primera vez el epicentro de la teoría feminista
no está en el norte de Europa o EEUU. Es decir, los debates en torno al
género han experimentado un desplazamiento geográfico. Se han tras-
ladado al sur y son quizás los debates más innovadores sobre género del
feminismo contemporáneo. Constituyen una ruptura epistemológica
y ontológica con el pensamiento occidental moderno que no se había
producido antes. Las feministas mestizas/criollas en América Latina
están prestando mucha más atención a las formas de conocimiento
indígena y afro-descendiente y están entablando un diálogo sin prece-
dentes con las mujeres indígenas y negras. Esto es una gran novedad.
El feminismo latinoamericano se ha visto obligado a profundizar en
la historia. Lo interesante aquí, es que la búsqueda de las claves de la
historia lleva a todos los distintos grupos feministas a concluir que lo
que las mujeres mas necesitan no es la igualdad o el reconocimien-
to cultural y jurídico, sino la descolonización y la despatriarcalización.
Entonces, en lugar de la consigna de las feministas occidentales, “lo
personal es político”, que exuda su conexión con el individualismo y el
liberalismo, la consigna es “no hay descolonización sin despatriarcali-
zación” (GALINDO, 2013). De hecho, gran parte de estos debates se
conceptualizan en términos de descolonización y la reconstitución de
la comunidad.
Si bien es cierto, que en este contexto discursivo teórico, el con-
cepto de la colonialidad de género de Lugones es fuertemente cuestio-
nado, la comprensión del género como un constructo colonial o como
fenómeno de la colonialidad del poder tiene su utilidad. El concepto de
colonialidad de género no se refiere a formas políticas (no contiene en
su léxico un pensamiento político explícito) pero es útil para entender
la colonialidad de la democracia o entender como la democracia liberal,
la soberanía y la ciudadanía en nuestros territorios es una empresa im-
posible. Digo imposible porque por definición, la democracia occidental
depende de la exclusión de los pueblos colonizados, no-occidentales, y
de la exclusión de las mujeres. No puede existir sin esta exclusión. La
colonialidad de la democracia no tolera el desarrollo de democracias
liberales en la colonia, ni otros modelos de democracia. Hoy en día no

176
tolera ni siquiera la democracia liberal en sus propios ámbitos metro-
politanos, aunque obviamente aun ahí debió excluir a mujeres, negrxs e
indígenas para operar.
Del aparato conceptual de Lugones se pueden sacar algunas con-
clusiones con relación a género, colonialidad y democracia. Veamos. En
primer lugar, si género como ella afirma, no es aplicable para las gentes
de la colonia porque género tal como lo conocemos hoy surge de la
deshumanización de las gentes de la colonia, de la división entre coloni-
zadores y colonizados, entre humanos y no humanos, civilizados y sal-
vajes, los pueblos de la colonia – mujeres y hombres cis y trans, entonces
nosotrxs no podemos formar parte del mundo de lo social ni tampoco se
puede ser parte de la sociedad política porque no somos seres humanos.
No se puede gozar de ciudadanía, ni soberanía sobre nuestros cuerpos ni
sobre nuestros territorios. Nuestras vidas son desechables. No hay casti-
go ni duelo por nuestras muertes sociales ni nuestras muertes violentas
porque no somos parte del mundo humano y social. Basta ver las altas
tasas de femicidio, la impunidad y el maltrato a lxs migrantes. Nuestros
territorios son usurpables, porque como subhumanos no tenemos dere-
chos sobre ellos. Por eso se piensa que no puede haber crimen allí donde
no hay derecho. Somos gentes sin derechos. Dentro de la colonialidad
del poder de la democracia, los estados-naciones considerados bárbaros
o salvajes como los nuestros no pueden gozar de soberanía nacional, se
puede intervenir en ellos cada vez que se piense necesario. Tampoco se
puede ser parte de la comunidad internacional como estados-naciones
en iguales condiciones ni se puede ser parte de la economía mundial si
no es a partir de una economía de despojo y extracción.
Por eso es importante enfatizar en el hecho que la democracia li-
beral occidental no tiene sus orígenes en la antigua Grecia como nos
quieren hacer creer los historiadores eurocéntricos, sino que la demo-
cracia occidental se origina en la conquista de América, es la conquista
de América la que la hizo posible. Se origina en el contrato colonial
entre hombres blancos europeos en el momento en que se reparten los
territorios de los indígenas, un contrato social/colonial que excluye a
todos los no-europeos. El conocido contrato social de Hobbes y Lo-
cke, por ende, no es una abstracción o un dispositivo heurístico para
entender el nacimiento del Estado liberal, sino mas bien un velo para

177
encubrir los fundamentos no-democráticos y coloniales de la democra-
cia. En suma, la democracia occidental desde su incepción dependió de
la usurpación de nuestros territorios, de nuestra exclusión de la humani-
dad y el despojo de nuestros recursos. Esto no ha cambiado. El proyecto
de la democracia occidental no es una forma de gobierno benigna y
emancipatoria para los que habitamos colonia. Es mas bien una forma
de dominación constituida históricamente en la usurpación de territo-
rios indígenas y los derechos de los pueblos no-occidentales mediante
guerras coloniales, la violenta destrucción de otras formas de gobierno
y otras formas de organización social que habían sido en muchos casos
mas igualitarias. Puso en su lugar formaciones sociales, económicas y
políticas extremadamente opresivas y explotadoras que se sostienen has-
ta hoy solo mediante la violencia y el excesivo poder de occidente y sus
esbirros-colaboradores en nuestro continente.
Es importante reconocer por eso que no hay colonización sin cola-
boración interna. No solo se trata de la colonización interna que ejercen
los mestizos-criollos, hay colaboradores por todos lados. Colaboradores
los hubo siempre incluso durante los primeros días de la conquista. (es
decir, que los propios indígenas e incluso africanos estuvieron involu-
crados en la colonización y el comercio de esclavos). Este es un tema
delicado, pero creo que es importante empezar a ponerlo sobre el tapete.
En suma, es muy importante reconocer que el proyecto de democracia
occidental liberal con que operamos hoy muy malamente surge de las
mismas fuerzas que causaron el derrumbe del mundo indígena, la mer-
cantilización del trabajo esclavizado de los africanos y la colonialidad
del género que necesitó deshumanizar a todo el mundo no-europeo. Por
eso se debe hablar de la colonialidad de la democracia.
Esto coloca a los movimientos feministas de la región ante dos
retos: uno, es la necesidad de descolonizar la democracia liberal, de pro-
fundizar en el análisis de la colonialidad, la democracia y el género. Es
necesario construir alternativas a la democracia liberal occidental, crear
nuevas prácticas políticas teniendo en cuenta la complejidad de la so-
ciedad colonial que habitamos. Ya no se trata de cuotas, participación,
inclusión en un sistema que por definición nos excluye, de la transversa-
lidad de género o del retorno del régimen democrático porque sabemos
que es una trampa. Estamos obligadas a repensar, re-crear y re-existir

178
bajo una nueva visión de la democracia, una democracia desprendida de
la lógica colonial e imperial. Necesitamos desarrollar nuevas formas de
organización social y política, económica y cultural, nuevas formas de
vida y pensamiento, y nuevas políticas de alianzas fuera del modelo de la
democracia occidental. Necesitamos seguir construyendo nuestra propia
teoría e investigando nuestra historia de género que tiene dos fases: la
fase anterior a la intrusión colonial y la que se gesta con la llegada de los
españoles y portugueses.
Abya Yala es uno de los continentes que mayores avances ha teni-
do en estas materias. Desde los zapatistas con su concepto de mandar
obedeciendo y un mundo donde quepan muchos mundos que implica
todo un nuevo pensamiento político, o la idea mesoamericana que uno
mas uno no son dos, sino uno que es una visión ontológica alternativa al
binarismo y agonismo occidental, o el concepto del buen vivir que nada
tiene que ver con la idea de la buena vida de los europeos o el feminismo
indígena y comunitario de Abya Yala que teoriza el género mas allá de
la binariedad del pensamiento occidental, Abya Yala tiene mucho que
ofrecer al mundo. Los movimientos feministas indígenas y afro-descen-
dientes son probablemente los que están en mejores condiciones para
ofrecer conceptos contrarios al occidentalismo y la lógica moderna/
colonial que incluye la binariedad del género y la sexualidad; sin duda
muestran un camino alternativo a considerar. Pero en este camino se
presentan nuevos retos y otras interrogantes. ¿Como se articulan los
grupos no-indígenas y no afro-descendientes a las nuevas propuestas
de lxs indígenas y afro-descendientes? ¿Qué lugar ocupa el mestizaje y
el mulataje en las nuevas propuestas? ¿Logra la idea del Estado pluri-
-nacional dar respuestas a las contradicciones internas de los distintos
grupos que componen la sociedad colonial?
La cuestión del mestizaje y el mulataje, por ejemplo, no ha sido
teorizado lo suficiente dentro de la teoría descolonial, tampoco lo han
hecho las feministas descoloniales. Pese a que el análisis interseccional
implica la imbricación de distintos sistemas de opresión y que existe
una crítica profunda del pensamiento categorial y la separación de ca-
tegorías dentro el pensamiento descolonial, cuando se habla de género
y raza, parece que no existen los matices; casi siempre se refieren ex-
clusivamente a indígenas y afro-descendientes. Tenemos a indígenas y

179
afro-descendientes de un lado, y por otro a los europeos. Y los mestizos
y los mulatos desaparecen como categoría analítica y como categoría
política.
Sin embargo, tanto el mestizaje como el mulataje son categorías
coloniales tal como la figura del indígena o africano esclavizado lo son.
Surgen de la conquista de los cuerpos, de la violación de la mujeres
indígenas y africanas esclavizadas y las relaciones ilícitas entre coloni-
zadores y colonizados. Quizá por eso la lógica de su existencia es una
paradoja, sobre todo el mestizaje. El mestizaje ha tenido históricamente
una doble función, ambas contradictorias: por un lado, impulsa la lógi-
ca de la eliminación de lo indígena y lo negro de nuestras sociedades;
sirve para borrar, limpiar, y blanquear y al mismo tiempo, fuera de esa
lógica de eliminación, también sirve para la conservación de la cultura
indígena; en el proceso colonial permanente los indígenas se ven obli-
gados a asumir formas no indígenas o a infiltrar lo propio en las formas
impuestas (el sincretismo religioso, las comidas etc.). Lugones se refiere
a esto como procesos de transculturalizacion y no de aculturalización
para recordarnos que las culturas indígenas han sido conservadas pese
al genocidio, pero esta transculturalización es, en realidad, un proceso
de mestizaje. Esto es lo que crea la paradoja. La conquista produce todo
tipo de mestizajes, nadie se puede deslindar del otro por completo. El
mestizaje existe también dentro de los pueblos indígenas.
El caso de los mestizos de nuestras sociedades es muy interesan-
te. El problema básico ha sido (deberíamos asimismo pensar a chinos,
árabes, japoneses etc.) que históricamente lxs mestizos han carecido de
un lugar sociológico. Como decía Anzaldúa los mestizos existen en los
intersticios, en el entremedio, en la frontera, en el umbral. Histórica-
mente, no tuvieron pertenencia ni lealtades hacia una comunidad es-
pecifica; se ven obligados a negociar y justificar permanentemente un
lugar en la sociedad y en la historia. En la colonia, el mestizo buscaba el
reconocimiento del padre conquistador para gozar de sus privilegios o
buscaba pasarse por indígena para poder ser cacique y tener a su man-
do indios tributarios; pero otras veces era absorbido en la comunidad
indígena y pasaba a ser parte de las listas de los tributarios. La mestiza
estaba obligada a negociar varias identidades y culturas para crearse una
posición dentro la sociedad colonial que la excluía de sus instituciones

180
por no ser española (portuguesa), indias o negras (los mestizos no esta-
ban exentos de la Inquisición como los indígenas, pero estaban exentos
del tributo); los mestizos de la colonia y en especial las mujeres mestizas
podían entrar y salir de los distintos estamentos coloniales, ocupar dis-
tintas posiciones al mismo tiempo, podían heredar o amasar fortunas
o ser indio tributario, podían heredar y ocupar algunas posiciones de
prestigio o ser desheredados por completo dado su estatus de “hijos ile-
gítimos”. La situación fue cambiando a favor del mestizaje con el correr
del tiempo. Pero el mestizaje sigue marcado por la ambigüedad y la
ambivalencia. Actualmente, los mestizos y las mestizas ocupan varias
posiciones: son verdugos y victimas a la vez. Las historias de femicidios
y muerte violentas de nuestro continente están pobladas de mujeres y
hombres mestizos; pero también lo están las filas del ejército y los cuer-
pos policiales, las maras y el crimen organizado y sus gabinetes políticos
en el gobierno. El Estado narco descansa sobre un imaginario mestizo-
-criollo. Bajo estas circunstancias, ¿Cómo se construye una propuesta
mestiza feminista? ¿Acaso es necesario crear una? ¿Cómo se descoloniza
el mestizaje? ¿Cuáles son las condiciones para una nueva conciencia de
la mestiza de la que nos habla Anzaldúa en Abya Yala? ¿O es que debe
subsumirse el mestizaje en las propuestas de los movimientos feministas
indígenas y afro-descendientes? Pensar el mestizaje es un reto al interior
del movimiento feminista que habría que ir abordando. También lo
sería la reflexión del mulataje que ha tenido quizá una posición social
mas fija dentro del sistema de castas coloniales pero, ha sido negado e
invisibilizado en los discursos sobre mestizaje.
Como se puede constatar, el contexto político actual tiene un carác-
ter de urgencia como jamás antes visto y es extremadamente complejo.
La sensación de que se acaba el mundo y la esperanza que entre nosotrxs
ya vive el mundo del mañana conviven simultáneamente en nuestros
corazones. De nosotrxs dependerá que el futuro se haga realidad.

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182
Dos estudos culturais ao pensamento
descolonial: intervenções feministas nos
debates sobre cultura, poder e política na
América Latina

Sonia E. Alvarez 1
Claudia de Lima Costa2

Resumo
Este ensaio argumenta que a abordagem dominante dos estudos
latino-americanos (e latino-americanistas) a respeito da cultura, poder
e política não levaram (e possivelmente ainda não levam) em conside-
ração as contribuições feministas e que muitos dos primeiros estudos
de gênero na região também não fizeram da cultura um eixo central
de análise. Apesar do impacto significativo causado pelas intervenções
feministas nos Estudos Culturais no âmbito da academia anglo-ameri-
cana, sustentamos que tal influência foi, na melhor das hipóteses, secun-
dária nos círculos acadêmicos no sul das Américas, a despeito da clara
relevância política da cultura para a militância feminista. Com foco no
Brasil, discutiremos vários fatores que explicam as razões pelas quais o
pensamento feminista hegemônico ignorou a cultura e, principalmente,
seus desdobramentos políticos. Defendemos ainda que no início dos
anos 1990 intervenções culturais por parte da militância feminista se
tornaram invisíveis graças à ascensão de uma política feminista institu-
cionalizada, profissionalizada e com enfoque na advocacy. Concluímos

1 Intelectual-militante feminista, antirracista, pela justiça social, Sonia E. Alvarez


é Professora Titular de Política, da Cátedra Leonard J. Horwitz, na Universidade de
Massachusetts-Amherst. Escreve sobre movimentos sociais, feminismos, ONGs/
sociedade civil, protestos, raça/racismo e ativismo transnacional.
2 Claudia de Lima Costa é mestre em Comunicação pela Michigan State University
e doutora em Estudos Culturais pela University of Illinois. Possui pós-doutorado
em Teorias Feministas na University of California-Santa Cruz e na University of
Massachusetts. Desenvolve pesquisa sobre feminismos decoloniais e feminismos no
antropoceno.

183
este ensaio considerando como e quando uma política da cultura voltou
ao primeiro plano a partir dos anos 2000 através de múltiplas expressões
de um ativismo feminista subalterno; identificaremos o contraponto
acadêmico a essas expressões entre as recentes teorizações descoloniais,
transnacionais, queer e antirracistas, entre outras.

À procura do feminismo: a “presença da ausência” no estudo da


cultura, poder e política na América Latina
Apesar de sua influência decisiva no campo dos Estudos Culturais
no Norte global, a ausência de uma agenda feminista nos estudos da
cultura, poder e política na América Latina é notável. Abordaremos as
razões dessa ausência nas próximas páginas, antes, porém, considerare-
mos o sequestro dos Estudos Culturais britânicos pelo feminismo, já
que este é um caso exemplar de como questões feministas mudaram a
agenda de pesquisa no Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS)
de Birmingham, Inglaterra.
As pensadoras feministas, desde que se constituíram um grupo
de pesquisa nesse Centro, tal como “ladras noturnas” (BRUNDSON,
1996), revolucionaram muitos dos debates em curso ao colocarem a mu-
lher e o gênero como ponto principal de pauta. Entre as consequências
mais significativas dessa inclusão, ou melhor dito, interrupção dentro dos
Estudos Culturais, citamos a valorização da esfera privada e das esferas
públicas alternativas; o deslocamento da categoria de classe como meca-
nismo primário de dominação; e ênfase nas questões sobre subjetivida-
de, identidade, sexualidade, desejo e emoção, possibilitando assim maior
compreensão da dominação/subordinação em nível subjetivo.
Estudar como a subjetividade se posiciona contraditoriamente fez
com que as pesquisadoras compreendessem que as categorias da iden-
tidade raramente formam unidades sociais monolíticas. Ao contrário,
estão sempre em inter-relações complexas e conflitantes com outras
identidades e relações de poder (por exemplo, para uma trabalhadora
negra lésbica, as categorias gênero, raça, classe e sexualidade não consti-
tuem elementos homogêneos, mas derivam seus significados de outras
categorias sociais).
Devido a um compromisso histórico com o movimento de mu-
lheres (de onde surgiu), para as primeiras pesquisadoras dos “estudos

184
culturais feministas”, a subordinação e a dominação estavam marcadas
no próprio corpo, excedendo, portanto, seus limites puramente epistemo-
lógicos. Em outras palavras, eram algo mais que categorias analíticas
abstratas. Por conseguinte, a insistência na análise das dimensões sub-
jetivas e simbólicas das experiências das mulheres, junto com o projeto
político de intervenção nas estruturas do cotidiano dessas mulheres –
projeto este que orientou desde o princípio as pesquisas feministas no
campo dos Estudos Culturais, tanto na Inglaterra como nos Estados
Unidos –, equipou as teorias feministas com poderosos instrumentos
para “cortar” na materialidade tanto da cultura como do poder.
No entanto, não parece ter havido uma “interrupção” feminista
equivalente, ou mesmo comprável, nos Estudos Culturais (ou como
preferem alguns, Estudos da Cultura, Poder e Política) na América La-
tina. A tradição intelectual do estudo da cultura na região preocupou-se
majoritariamente com os chamados problemas “maiores”, como impe-
rialismo, dominação ideológica e luta de classes, articulados pelos pre-
cursores dos Estudos Culturais latino-americanos nos anos 1970. Tais
estudos permaneceram alheios às dimensões críticas do gênero, da raça
e da sexualidade que necessariamente permeavam as questões “maiores”
em complexa imbricação com o capitalismo, colonialismo e “imperialis-
mo cultural”. Nos anos 1980, com a exceção da contribuição de algu-
mas poucas intelectuais feministas comprometidas com a reformulação
dos Estudos Culturais emergentes na América Latina - entre elas Jean
Franco, Nelly Richard, Mary Louise Pratt, Silvia Rivera Cusiquanqui,
Francine Masiello, Debra Castillo, Marta Lamas, Heloisa Buarque de
Hollanda e Carlos Monsivais – os debates predominantes se centravam
no pós-modernismo, na luta de classe, na cultura de massa e na hegemo-
nia a partir da influência de Gramsci, Althusser, da sociologia francesa
da cultura e da Escola de Frankfurt (DEL SARTO, 2004, p. 165).
Ainda assim, os Estudos Culturais continuaram insensíveis ao fato
de que, nos anos 1980, centenas de organizações militantes feminis-
tas espalhadas pelo continente tentavam de vários modos interromper
concepções culturais predominantes sobre “mulheres” e, mais tarde,
elaborar as intersecções entre gênero, raça, sexualidade e classe. Mui-
tas das primeiras militantes feministas na América Latina encenaram
uma política corporificada da cultura através de práticas inovadoras,

185
manifestações lúdicas e intervenções performáticas que visavam ridi-
cularizar e desestabilizar os significados constitutivos que definiam e
sustentavam arranjos de gênero prevalecentes. As manifestações do Dia
Internacional da Mulher – sempre um importante momento mobiliza-
dor para as mulheres na América Latina – frequentemente mostravam
noivas vestidas de branco e bruxas montadas em vassouras; feministas
peruanas se juntaram a ativistas anti-Fujimori nas ações “lava-lav(b)an-
dera” na Plaza de Armas, que traziam lavadeiras (e alguns “lavadeiros”)
cerimoniosamente limpando em bacias a bandeira nacional que tinha
sido “manchada” pela corrupção e repressão governamentais; chilenas
que, como outras tantas feministas latino-americanas, estavam ligadas
à esquerda, colocaram literalmente seus corpos na linha de frente na
luta contra Pinochet – Mujeres por la Vida, por exemplo, levaram ao
alto suas “manos limpias” quando Carabineros (com as mãos encharcadas
de sangue) impiedosamente atingiram as mulheres com jatos de água.
Em suma, enquanto boa parte de uma esquerda tradicional continuava
a se organizar hierarquicamente e a entoar palavras de ordem obsoletas,
muitas dessas feministas militantes demonstraram uma arguta consci-
ência de que a cultura é política, “pois significados são constitutivos de
processos que, implícita ou explicitamente, procuram definir o poder
social” (ALVAREZ, DAGNINO e ESCOBAR, 1998, p. 7).
Apesar da significativa, ainda que marginalizada, a presença dessas
intervenções feministas na cultura e na política, a ausência de um im-
pacto paralelo no campo acadêmico dos Estudos Culturais na América
Latina pode ser atribuída à rigidez das variantes da teoria social marxis-
ta dominante, considerada o lugar privilegiado para o estudo da cultura
e do poder – lugar este insensível, se não abertamente hostil às análises
de gênero, sexualidade e raça. Segundo Franco (2000), os Estudos Cul-
turais latino-americanos, no seu apogeu,
parecen haber pasado por alto tanto por la constitución de lo feme-
nino en la cultura como “la crisis de la masculinidad” permeada en
tantas manifestaciones culturales. Mientras los estudios culturales
citan teóricos de toda clase – desde Stuart Hall a Walter Benjamin,
desde Bakhtin a Foucault – prescinden de teorías de genero en su
análisis. Si en sus escritos mencionan el término género, lo hacen en
compañía de otros términos como “etnias” o “identidades”, pero sin

186
explorar las genealogías ni los alcances involucrados. Dicha omisión
es particularmente desastrosa si tomamos en consideración que el
género y la diferencia sexual no son cuestiones de mujeres y feminis-
tas, sino que afectan un espectro considerable de la sociedad desde
las organizaciones sociales, la política, las formas de resistencia hasta
la reproducción social (FRANCO, 2000, p. 76).
Franco se refere não apenas aos críticos culturais indiferentes ao
gênero, tais como Nestor García Canclini, Jesus Martin-Barbero e Re-
nato Ortiz, mas também a algumas importantes pesquisadoras, como
a argentina Beatriz Sarlo. Franco analisa os trabalhos pioneiros sobre
crítica cultural de feministas latino-americanas – mais especificamente
os de Nelly Richard, Kemy Oyarzún, Marta Lamas e Lia Zanotta Ma-
chado –, detalhando os modos como elas articularam o gênero a várias
questões como igualdade e diferença, o estado neoliberal, violência con-
tra a mulher e direitos das mulheres indígenas.
As intervenções desse relativamente pequeno grupo de feministas
não produziram grandes efeitos na tradição intelectual latino-americana
do estudo da cultura e do poder, muito menos o tipo de “interrupção”
em larga escala apontada por Stuart Hall no caso inglês. Para Mary
Pratt (1962), essa tradição é como uma irmandade nacional que criou e
institucionalizou obstáculos e hierarquias na construção de uma hege-
monia cultural favorável às formações patriarcais das classes dominan-
tes, impedindo qualquer acesso das mulheres e de outros grupos menos
privilegiados. Ecoando as preocupações de Pratt, George Yúdice (2002)
mostra que essa tradição prestou pouquíssima atenção às
cuestiones de género y orientación sexual, incluso hasta hoy en día,
por ejemplo, en el trabajo de Néstor García Canclini… Por lo ge-
neral, la categoría de género se está abriendo camino en varias dis-
ciplinas a través del trabajo de feministas, pero no posee la misma
importancia que en los Estados Unidos (YÚDICE, 2002, p. 346).
Nelly Richard (2010), de maneira semelhante, define os Estudos
Culturais como
la incorporación de la teoría feminista como una dimensión clave
de la crítica del saber, de la politización del conocimiento desde el
lugar “situado” de la diferencia. Y no necesariamente los Estudios

187
Culturales latinoamericanos, o lo que se reconoce como tal, incorpo-
ran la perspectiva teórica del feminismo como un modelo de cono-
cimiento “insurrecto” que se rebela contra las bases autoritarias del
conocimiento trascendente y universal (RICHARD, 2010, p. 72).
Outro caso a ser considerado em relação à contínua impermeabi-
lidade ao gênero (e à raça e sexualidade) dentro dos Estudos Culturais
latino-americanos diz respeito à antologia The Latin- American Cultural
Studies Reader (2004). Essa coletânea precursora de 818 páginas, cuja
proposta é de mostrar o “estado da arte” no campo dos estudos da cultu-
ra, contém apenas (e lamentavelmente) seis contribuições feministas em
comparação ao total de 32 capítulos sobre o que poderia ser considerado
preocupações culturais “mais gerais” (e mais sérias?)3. Seu coorganiza-
dor, Abril Trigo (2004), argumenta que
as formas mais irrequietas do feminismo estadunidense e francês
não prosperaram na América Latina, onde muitas vezes foram con-
siderados fenômenos burgueses e metropolitanos e onde as deman-
das das mulheres foram integradas a agendas sócio-políticas mais
amplas […], o feminismo deixou uma marca sólida, ainda que di-
fusa, nos Estudos Culturais latino-americanos (ABRIL TRIGO,
2004, p. 370).
No entanto, a noção de que houve uma influência “sólida, mas difu-
sa” do feminismo nos Estudos Culturais latino-americanos é, na melhor
das hipóteses, ilusória e, na pior, enganadora, como bem mostra a afir-
mação de Trigo de que o feminismo não encontrou solo fértil na região.

Rastros dos estudos culturais feministas


Não obstante a falta de reconhecimento – e incorporação – por
parte das formações masculinas de conhecimento, incluindo os Estudos
Culturais, dos estudos feministas e, mesmo diante da tendência de re-
duzir o feminismo ao “gênero” (algo de que trataremos mais adiante), é
possível encontrar importantes, ainda que dispersas, formas feministas
de Estudos Culturais na maioria dos países da América Latina. A crítica
3 Uma crítica semelhante pode ser feita ao equivalente em espanhol dessa antologia,
intitulada Nuevas perspectivas desde/sobre América Latina: El desafio de los estudios culturales
(2000).

188
literária feminista, os estudos das memórias das mulheres vítimas da di-
tadura e as análises das intervenções performáticas das mulheres produ-
ziram importantes incursões em várias práticas políticas, metodológicas
e epistemológicas. É impossível abarcar o amplo escopo e relevância
dessas contribuições, portanto, mencionaremos algumas das mais in-
fluentes críticas feministas da cultura, mesmo quando pouco valorizadas
ou citadas pelos Estudos Culturais malestream tanto ao sul quanto ao
norte das Américas.
No Chile, por exemplo, o intenso trabalho da imigrante francesa
Nelly Richard sobre a tensão entre estética e política e suas leituras des-
construtivas do gênero foram fundacionais para os estudos da cultura,
poder e política. Como editora da Revista de Critica Cultural, seu traba-
lho feminista influencia outros círculos, o que não é muito comum. Na
Argentina, o Instituto Interdisciplinar de Estudos de Gênero da Uni-
versidade de Buenos Aires foi essencial para a legitimação dos Estudos
Culturais feministas, como atesta o reconhecido periódico Revista Mora.
O periódico cultural argentino Feminaria (1988-2007) teve grande im-
portância na articulação da crítica cultural às análises da produção literá-
ria de mulheres. O suplemento feminista do jornal argentino Página/12,
chamado periodismo de género, também desponta como uma tentativa de
construir pontes entre o discurso acadêmico e as leituras feministas/de
gênero da cultura, poder e política. De acordo com Las12, o gênero não
é entendido como simples marcador da diferença sexual ou como índice
de discriminação, mas como “una arma con el potencial de desarmar
los sustentos mismos del sistema politico” (TORRICELLA, 2011, s.p.).
No México, Marta Lamas, chefiando o reconhecido periódico Debate
Feminista, pautou agenda significativa para a análise de gênero, raça e
etnicidade ao lado de expressivas intervenções culturais feministas.

Disciplinando o gênero e a marginalização dos estudos culturais


feministas no brasil
Apesar do lugar razoavelmente visível e institucionalizado que os
estudos sobre a mulher/feministas ocupam na academia brasileira desde
os anos 1980, quando comparados com outros contextos latino-ameri-
canos, os Estudos Culturais encontraram maior resistência dentro e fora
dos estudos de gênero. Apenas depois do final dos anos 1990, debates

189
sobre o feminismo a partir de uma perspectiva dos Estudos Culturais
– com inflexão pós-estruturalista, enfatizando as múltiplas e contraditó-
rias posições do sujeito em relação ao gênero, a raça, classe, sexualidade e
outros eixos de dominação e diferença – começaram a encontrar espaço
em periódicos e conferências das associações profissionais brasileiras.
Quatro possíveis razões que contribuíram para tal cenário foram: a si-
tuação específica da conjuntura da sociedade brasileira; a resistência dos
estudos sobre a mulher no Brasil à interdisciplinaridade; a escassez de
traduções de acadêmicas feministas não-brasileiras; e o contínuo silen-
ciamento de vozes marginalizadas (por exemplo, afrodescendentes, lés-
bicas, pessoas transgênero) dentro da academia brasileira.
Albertina Costa (1996), avaliando o campo dos estudos sobre a
mulher no Brasil feito em meados dos anos 1990, argumenta que as
transformações sociais – tais como migração, urbanização, expansão dos
meios de comunicação de massa, modernização industrial, melhoria dos
padrões educacionais e a queda da taxa de fertilidade –, transcorridas
durante o regime autoritário dos anos 1970, tiveram profundas impli-
cações para a condição das mulheres e ressoaram nas rígidas estruturas
burocráticas do sistema acadêmico. Um crescente número de mulheres
estudantes ingressaram nas humanidades e nas ciências sociais e, com
elas, as questões feministas começam a adquirir legitimidade acadêmica.
Além disso, reformas estruturais da universidade, a expansão dos pro-
gramas de pós-graduação e os incentivos governamentais para a pesqui-
sa científica foram importantes fatores para a emergência de projetos de
pesquisa priorizando “questões femininas”.
Entretanto, Costa (1996) também sugere que, no contexto maior
de “modernização” econômica, injustiça social e repressão – e “seguindo
os então predominantes paradigmas da teoria da dependência, a versão
latino-americana do marxismo e a teoria da modernização” – as áreas
de pesquisa aplicada mais privilegiadas foram trabalho, população e de-
senvolvimento, que rapidamente se transformaram no “gueto” das inter-
venções feministas. Ademais, as feministas sofreram pressão tanto das
agências de fomento quanto de seus colegas para aderir a padrões “cien-
tíficos” sancionados. À luz desses fatores, foi difícil para o feminismo
acadêmico brasileiro apresentar um desafio mais aprofundado aos câno-
nes científicos e acadêmicos estabelecidos.

190
A situação começou a mudar no final dos anos 1980 durante as
fases finais da transição do autoritarismo militar, o que permitiu a ar-
ticulação de movimentos sociais e a configuração de novos sujeitos e
identidades políticas. Durante este período, os estudos sobre a mulher,
como um campo, se expandiram e diversificaram ao incluir novos inte-
resses de pesquisa (sexualidade, corpo, cotidiano, o movimento de mu-
lheres) e áreas (história, antropologia, literatura, política, comunicação).
Os anos 1980 também viram a criação dos primeiros núcleos e centros
independentes de pesquisa sobre gênero – tais como o pioneiro grupo
de pesquisa da Fundação Carlos Chagas em São Paulo, em meados da
década de 1970, o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher
(NEIM), na Universidade Federal da Bahia, criado em 1983, e o Núcleo
de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPEM) da Universidade Fe-
deral de Minas Gerais, fundado em 1984.
Contudo, no final dos anos 1980, em parte devido à influência de
debates teóricos feministas transnacionais e dos financiamentos para
pesquisa oferecidos por organismos internacionais como a Fundação
Ford, o gênero como categoria analítica passou a substituir a categoria
“mulher” – tanto na academia quanto nos setores mais profissionalizados
do ativismo feminista. Ana Alice Costa e Cecilia Sardenberg (1994)
argumentam, em um influente (e controverso) artigo escrito em 1994,
que o deslocamento da mulher pelo gênero teve consequências contradi-
tórias. De um lado, essa virada conceitual, a princípio, deu às feministas
a oportunidade de abandonar o “gueto” dos estudos sobre mulheres e
efetivar “a conquista de um espaço de reflexão em outro nível, bem mais
amplo, através de outros campos de saber que incorpore não só mulhe-
res, mas a comunidade científica como um todo” (394). Por outro lado,
o uso da categoria gênero em vários aspectos representou apenas uma
mudança de rótulo: isto é, os estudos continuaram a conceituar a mulher
como uma essência pré-existente, sem levar em consideração como a
categoria é cultural, social e se constitui relacionalmente. Ainda mais,
além de fracassar na quebra dos muros que separam as disciplinas tradi-
cionais, o crescente foco nos estudos de gênero (em oposição aos estudos
sobre mulheres ou feministas) também sinalizou uma gradual despoliti-
zação do feminismo acadêmico, acentuado pela clivagem teoria/prática
e, consequentemente, acirrou a tensão entre as feministas acadêmicas e

191
as militantes. Ana Alice Costa e Cecília Sardenberg (1994), em uma crí-
tica incisiva às colegas que denominam como “as genéricas” afirmam que
para a academia é muito mais fácil assimilar ‘estudos de gênero’ do
que o ‘feminismo’, sempre identificado pelos setores mais resistentes
com a militância e não com a ciência. Portanto também muito mais
digerível para uma parcela significativa das acadêmicas que assim
puderam incorporar-se aos women’s studies sem correr o risco de
serem identificadas com o feminismo, engrossando assim o que as
militantes feministas chamam pejorativamente de genéricas (COS-
TA e SARDENBERG, 1994, p. 395).
De fato, a procura pela excelência e rigor científicos e um direcio-
namento para os estudos empíricos, junto à rigidez estrutural da univer-
sidade brasileira, impediram o diálogo entre as feministas de diferentes
disciplinas, dificultando consideravelmente o desenvolvimento não ape-
nas de práticas interdisciplinares e discussões teórico-metodológicas,
mas principalmente o questionamento do próprio cânone científico –
uma das facetas fundamentais das investigações feministas e dos Estu-
dos Culturais fora do Brasil.
O exemplo específico do campo da crítica literária merece atenção
particular, dado seu papel relevante como ponto de entrada dos Estudos
Culturais na América Latina. Ao notar que apenas em 1986 o Grupo
de Trabalho “Mulher na Literatura” foi constituído na maior associação
profissional de Letras e Linguística (Associação Nacional de Pós-gra-
duação e Pesquisa em Letras e Linguística/Anpoll), Heloisa Buarque
de Hollanda lamenta a demorada e tardia formulação de uma tradição
literária feminista nos departamentos de literatura brasileiros. Mesmo à
luz da crescente importância da interdisciplinaridade dentro dos estu-
dos literários e da progressiva legitimação de gêneros alternativos como
testemunho, diário e romance popular, a pesquisa feminista encontrou
muita resistência. Apesar das escritoras terem estado ausentes do câno-
ne literário brasileiro, um número de pesquisadoras, com destaque para
Zahidé Muzart e Constância Lima Duarte, descortinaram a existência,
no século XIX e início do século XX, de uma profusão de espaços fe-
mininos alternativos onde circulava uma rica “economia literária infor-
mal” de mulheres (HOLLANDA, 1992, p. 66). Apesar das evidências

192
da produção literária das mulheres, Hollanda afirma que as críticas fe-
ministas tardaram a intervir ou influenciar a crítica literária tradicional.
Outra razão para que as acadêmicas feministas brasileiras te-
nham encontrado dificuldade em descartar as “ferramentas do mestre”
ao construir um novo campo de conhecimento foi a falta de material
bibliográfico sobre mulheres, notavelmente os produzidos em outros
países, incluindo a produção latino-americana. Algumas teorias, prin-
cipalmente aquelas tratadas na rubrica do feminismo, viajam considera-
velmente menos do que suas contrapartidas masculinas no negócio da
tradução. Tornou-se comum ver a profusão de traduções para português
de filósofos europeus, mas as publicações de discussões teóricas feminis-
tas de pensadoras como Donna Haraway, Judih Butler, Gayatri Spivak,
ou de feministas de cor como Angela Davis, bell hooks, Chela Sandoval,
Paricia Hill Collins e Gloria Anzaldúa permaneceram relativamente es-
cassas. Em meados dos anos 1990, Sandra Azeredo (1994) argumentou
que muito da teorização dos anos 1970 e 1980 foi realizada por feminis-
tas brancas, economicamente privilegiadas [heterossexuais, de esquer-
da], para quem a questão de múltiplas diferenças/posições de sujeito
eram limitadas à dinâmica gênero/classe. A raça não importava, nem
a identidade sexual ou a sexualidade. No contexto brasileiro, de acordo
com Azeredo (1994), algumas intelectuais feministas ainda escreviam
dentro de uma tradição branca individualista (e, podemos acrescentar,
sob a influência do marxismo ortodoxo e do estruturalismo), o que as
limitava às dimensões de diferenças de classe em suas discussões sobre
assimetrias de gênero.
No final dos anos 1980, setores significativos da militância femi-
nista brasileira mostravam-se “disciplinados”, uma vez que uma variante
mais técnica da militância de gênero (uma verdadeira “generologia”),
implementada por ONGs profissionalizadas, eclipsou em parte as prá-
ticas mais irreverentes e performativas de grupos feministas que pre-
cederam tal disciplinarização (ALVAREZ, 2014). Costa e Sardenberg
(1994) argumentam que
imediatamente a categoria gênero passou a figurar em todas as ins-
tâncias do movimento, substituindo pura e simplesmente a palavra
mulher. As pautas de negociações dos sindicatos passaram a incor-
porar as reivindicações de ‘gênero’! As demandas dos movimentos

193
populares e até mesmo do movimento feminista seguem esta mesma
prática. Mais uma vez as mulheres tornaram-se invisíveis (COSTA e
SARDENBERG, 1994, p. 395-396).

Indisciplinando os feminismos e multiplicando intervenções


político-culturais no Brasil
O cenário acima descrito começou a mudar de forma significativa
quando o feminismo (e a “mulher”) se tornou ainda mais plural, hetero-
gêneo, multifacetado, interseccional e as práticas feministas tornaram-se
cultural e politicamente mais contenciosas. Por exemplo, mesmo for-
mando uma parte crucial, ainda que silenciada, do campo discursivo de
ação feminista desde o início da chamada segunda onda, a organização
feminista das mulheres afro-brasileiras, pobres, trabalhadoras, lésbicas e
trans – e tantas outras entre as “outras” do feminismo anterior – despon-
ta no início dos anos 1990.
Tanto essas faces múltiplas e diversificadas da militância feminista
quanto a proliferação de publicações feministas alternativas, periódicos
acadêmicos, núcleos universitários e conferências feministas, por exem-
plo, gradualmente se infiltraram na teorização feminista, pouco a pouco
deslocando-a de seu tradicional lugar na interseção entre gênero e classe.
O impacto da Quarta Conferência Mundial das Mulheres em Pe-
quim, em 1995, sinalizou uma mudança na “indisciplina” da militância
feminista brasileira e na de outros países da América Latina (ALVA-
REZ, 1998; ALVAREZ, FARIA e NOBRE, 2003). Na segunda me-
tade dos anos 1990, ficou claro – mesmo para aquelas que ativamente
participaram da militância de gênero – que o projeto feminista visando
influenciar esferas oficiais nacionais e internacionais de políticas de gê-
nero gerou poucos resultados concretos. Mesmo com alguns elemen-
tos da agenda feminista incorporados em acordos internacionais e em
políticas locais, no final da década tornou-se claro que mudanças mais
significativas nas condições de vida da maioria das mulheres foram blo-
queadas pela intensificação da globalização neoliberal e concomitante
erosão da cidadania e das políticas sociais.
Debates intensos e energéticos, críticas e autocríticas introspecti-
vas dentro do campo feminista a respeito do excessivo foco dado às “po-
líticas de gênero” nacionais e internacionais, em detrimento de outras

194
arenas de intervenção político-cultural, impulsionaram outra impor-
tante mudança na militância feminista, que, como mostraremos mais
adiante, encontrou companhia teórica e acadêmica em variantes do pen-
samento feminista descolonial, afrodescendente, indígena, antirracista
e queer/trans. A imbricação cultura, poder, política está no centro dessa
virada feminista. Procuraremos ilustrá-la primeiramente fazendo breve
referência a três marchas e dois festivais feministas brasileiros.
Se, em 1995, Pequim sinalizou o ápice do advocacy de gênero
ONGizado, o processo do Fórum Social Mundial (FSM), cuja primei-
ra edição aconteceu em Porto Alegre, em 2001, foi um referencial das
transformações na militância feminista que ocorreram desde o início da
chamada segunda onda, mesmo quando marginalizadas ou invisibiliza-
das pelo neoliberalismo. A Marcha Mundial das Mulheres (MMM),
com origem em Quebec, encontrou solo fértil no Brasil em seu momen-
to fundador, em 2000, tornando-se um poderoso ator político-cultural
no FSM. A MMM pressionou insistentemente o FSM para incorporar
preocupações de gênero/mulheres de forma “transversal”, ou seja, em
todos os aspectos do programa político do Fórum. Apesar de centrada
em um modelo atualizado (antineoliberal) da conjunção entre classe e
gênero, graças aos seus laços com as facções mais à esquerda do Partido
dos Trabalhadores, a MMM brasileira também foi literalmente instru-
mental na valorização, dentro do FSM, de práticas de gênero lúdicas e
transgressoras. Com seus enormes bonecos representando a mulher tra-
balhadora e sua efusiva batucada feminista, a MMM acabou assumindo
as rédeas das manifestações “carnavalizadas” que abriam os eventos do
FSM desde 2001.
Muitas das práticas da MMM continuam centradas na promo-
ção da conscientização política através da cultura, o que fica evidente
nas frequentes oficinas de arte e performance dirigidas às participantes
pobres e das classes trabalhadoras. A sua batucada evoluiu para uma
grande “fuzarca” semiautônoma, invariavelmente barulhenta e irreve-
rente que toca nas manifestações da MMM e em outras, populares ou
de esquerda. Um exemplo das marchinhas dessa fuzarca é a “Marchinha
sem água”, composta como protesto contra o racionamento de água de
São Paulo, entre 2014-2015, resultado da incompetência e negligência
do governo conservador do estado:

195
Ai ai ai ai
A água tá acabando e o meu trabalho aumenta mais
Ai ai ai ai
Depois de um dia inteiro nem um banho eu posso
mais
É um sistema que alimenta o capital
Enquanto privatiza acaba a água mineral
A culpa não é do povo é do governo estadual
Eu quero fim do sistema patriarcal.
Uma marcha diferente, sem conexão explícita com partidos polí-
ticos ou outras formações de esquerda, é a Marcha das Vadias, versão
brasileira do fenômeno global da Slut Walk. A Marcha das Vadias mobi-
lizou dezenas de milhares de mulheres jovens, feministas trans, homens
gays e heterossexuais solidários em dezenas de cidades brasileiras desde
sua primeira edição em 2011. Corporificando de forma literal seus fe-
minismos ao pintar slogans subversivos de gênero, queer, antirracistas,
em prol da justiça social e defendendo a inclusão trans, a provocação
rebelde das Vadias contra as normas de gênero e sexuais escancara uma
política cultural radical.
Por que usar o termo “Vadias”? Uma explicação, tirada de uma
Marcha na cidade paulista de São Carlos é:
Vadia (substantivo). Nos apropriamos desse nome porque nos de-
mos conta que é uma palavra usada para se dirigir a nós mulheres
diante de qualquer atitude de liberdade, sobretudo sexual. Se ser livre
é ser vadia, somos todas vadias. Vivemos em uma sociedade que se
escandaliza diante de uma palavra forte mas não diante da violência
[contra as mulheres] (apud FERREIRA, 2013, p. 40).
Gleidiane Ferreira (2013), uma Vadia do Coletiva das Vagabundas
do Desterro, de Florianópolis, explica que o uso do termo deflagrou in-
tenso debate entre feministas e seus críticos. Ela argumenta que, de for-
ma semelhante à perspectiva estadunidense, “que buscou exprimir outra
conotação para o termo queer, a luta pela ressignificação do termo Vadia
– recorrentemente utilizada no Brasil, como expressão de escárnio e xin-
gamento – foi um dos objetivos principais da construção das marchas”
(p. 40).

196
A Marcha das Vadias produziu intervenções culturais que, junto à
cena “anarca”, à “galera do hip hop”, às blogueiras feministas, às bloguei-
ras negras, às “minas do rock” e a tantas outras expressões político-cultu-
rais lúdicas, sinalizam a crescente “popularização do feminismo” entre as
novas gerações de militantes. Muitas feministas da segunda década do
século XXI declaram que querem construir um “movimento feminista
que vai novamente às ruas” (NAME e ZANETTI, 2013) e muitas en-
tendem o feminismo por uma ótica deveras irreverente: querem “fazer o
feminismo ser uma ameaça de novo, fazer o feminismo ser uma ameaça
real”.4
Assim como a Marcha das Vadias e a fuzarca da MMM, uma am-
pla gama de outras formações feministas heterogêneas, frequentemente
(e erroneamente) aglomeradas na categoria homogeneizada das “femi-
nistas jovens”, buscam solapar esferas dominantes de poder através de
inovadoras políticas da cultura. Um novo formato de organização femi-
nista que está despontando é o “festival” que, como explica o grupo or-
ganizador do primeiro AntiFest Suspirin Feminista, em Belo Horizonte,
em abril de 2014, é mais fluído e menos estruturado do que os tradicio-
nais encontros feministas de outrora: “é uma coisa bem menos acadê-
mica, bem mais faça você mesmo, do contato com a rua, vamos juntar
agora aqui e fazer por nós mesmas”5 – “um suspiro feminista em meio
à violência machista e às tretas da vida. É a tentativa de praticarmos
juntas formas feministas de nos relacionar entre nós e construir uma
zona de resistência autônoma feminista” (MARTELLO, 2015, p. 50).
Para dar uma noção da sua agenda cultural, basta dizer que esse evento
anarco-autonomista apresentava “cozinha vegana, shows, debates sobre
transfeminismo, feminismo antiprisional, conversa sobre cabelo afro,
binarismos, lançamento de zines, oficinas de autodefesa, gordofobia e
cuerpa, FTM, faça-você-mesmx, brinquedas sexuais faça-você-mesmx,
spanking, entre outras” (p. 51).
O AntiFest foi inspirado por um festival parecido que aconteceu
no ano anterior em Salvador – Bahia, entre 2010 e 2013: o Festival
Vulva La Vida, cujo slogan para a terceira edição foi “orgulhosamente

4 Depoimentos retirados de entrevistas coletivas com membros da Coletiva Vadias do


Desterro, Florianópolis, 13 de novembro de 2013.
5 Entrevista de grupo, Belo Horizonte, 13 de fevereiro de 2014.

197
feministas, necessariamente inconvenientes”. A chamada para o evento,
publicada em mídias sociais e no website do festival, assim o descrevia:
Trata-se de um festival de contracultura feminista: através da ética
do faça-você-mesma, acreditamos que a mudança não depende da
iniciativa dos partidos e instituições políticas; devemos praticá-la no
dia-a-dia, desenvolvendo novos valores para as relações travadas no
cotidiano. Isso implica em repensar nossos hábitos mais ‘íntimos’, fa-
zendo a revolução das ruas à cama. Política também é diversão! (apud
GONÇALVES et al., 2013).
Ainda assim, feministas afro-brasileiras criticam a Marcha das
Vadias e outras expressões de transgressão feminista predominante-
mente brancas e de classe média, tais como os festivais, pela dificuldade
que têm em “lidar com as especificidades das mulheres negras”, rei-
vindicando “que o antirracismo deixe de ser palavreado fácil e se torne
uma prática cotidiana e de franca compreensão para todas e todos”
(HERMIDA, 2014, p. 13). Uma feminista negra, coorganizadora da
Marcha das Vadias em Salvador, afirma que “[o] racismo nos rotula
como vadias e putas desde o dia em que nascemos, por causa do fator
racial. O racismo histórico se apoderou e nos aprisionou dentro de nos-
sa própria sexualidade e isso é algo que, há anos, vem sendo trabalhado
para ser desconstruído pelas lutas de mulheres negras” (HERMIDA,
2014, p. 14).
Hoje, o movimento de mulheres negras no Brasil, ao se entrecruzar
cada vez mais com outros feminismos em diversos pontos e momentos,
constitui-se em um campo discursivo de ação, extenso, diverso e com-
posto por várias vertentes – como sugere a teórica militante feminista
negra, Luiza Bairros (Bairros e Alvarez, 2012). Entre essas vertentes,
encontramos domésticas, quilombolas, lésbicas, mulheres de comunida-
des tradicionais de matriz africana e jovens/hip-hopeiras/grafiteiras/b-
-girls/capoeiristas, entre outras.6 No interior de cada uma dessas ver-
tentes, há mulheres, alguns homens e pessoas trans que se proclamam
feministas negras.

6 Entrevista coletiva com “feministas jovens” de diversas identidades raciais, sexuais e


de gênero, provenientes de vários setores do campo feminista baiano, em Salvador - 13
de maio de 2014.

198
Vale observar que a “Marcha das Mulheres Negras 2015 contra o
Racismo e a Violência e pelo Bem Viver” representa um dos processos
recentes que propõe uma “metodologia inovadora [que] é o reconheci-
mento dessa diversidade”. Os esforços de organização em nível nacional
da Marcha assumiram a cultura da política como ponto central, incluin-
do afro-religiosidades, musicalidade, performance, eventos de interação
comunitária, hip-hop e uma ampla mistura de expressões para estimular
mulheres “que nunca foram no encontro do feminismo hegemônico” a
se engajar para “construir a Marcha”, independentemente de onde es-
tivessem situadas. O processo levou em consideração a diversidade dos
setores organizados e até então desorganizados das mulheres afro-bra-
sileiras e suas aliadas (de quaisquer raças e gêneros) para se juntarem à
proclamação das mulheres negras como sujeitos de suas próprias vidas,
de uma cidadania transformada e conscientes da raça e do gênero. O
reconhecimento pela Marcha da diferença dentro da “diferença cultural”
racializada e generificada, amplamente evidente na chamada abaixo, si-
naliza a necessidade urgente de teorizarmos a cultura de outra maneira:
estamos especialmente interessadas na mobilização: de meninas, adolescentes
e jovens negras, das zonas urbanas e rurais; enfermeiras, professoras, domés-
ticas negras, quilombolas, prostitutas negras, médicas negras, as mulheres li-
gadas às religiões africanas […] Mulheres negras cujos filhos e filhas foram
assassinados pela polícia, lavadeiras, cozinheiras, pedreiras negras […] nerds,
punks, emos, atletas, artistas, ateias negras […] rappers, funkeiras, DJs, gra-
fiteiras, lixeiras, empresárias negras […] lésbicas, bissexuais, transexuais,
modelos, sem-terra negras, mulheres negras afetadas pelas enchentes, sem-teto
negras […] Ou seja, todas as mulheres negras, incluindo e principalmente,
todas que são ou foram discriminadas por vizinhos, médicos, dentistas e outros
e que se sentiram indefesas diante de tão grande opressão.
A marcha em Brasília, que de acordo com vários relatos atraiu entre
5.000 e 20.000 mulheres e homens de todo o Brasil em 18 de novembro
de 2015, foi o ponto culminante de um processo inédito de mobilização
nacional que durou mais de dois anos, liderado por feministas negras,
mas que envolveu todos os setores de organização de mulheres afro-
descendentes e muito do movimento feminista negro “misturado”. O
“bem viver” no nome da Marcha evoca o discurso descolonial, bastante
expressivo nos campos feministas em outras partes da América Latina,

199
mas que também ganha adeptas entre algumas teóricas, militantes ne-
gras e indígenas no Brasil.

A virada feminista descolonial


A virada militante-intelectual feminista, enfatizando a imbricação
cultura-poder-política e explorada nos exemplos acima, também repre-
senta, em outro nível, uma resposta aos desafios propostos por novas
configurações epistemológicas e ontológicas presentes no século XXI.
Em termos epistemológicos, uma das principais mudanças de para-
digma foi encabeçada por movimentos de descolonização do gênero e
dos feminismos subalternos no âmbito da América Latina. Esses mo-
vimentos buscam um desligamento das epistemologias eurocêntricas ao
salientarem a importância dos diferentes saberes e paradigmas outros
produzidos a partir da ferida colonial, os quais questionam cânones e
métodos autorizados.
Os feminismos decoloniais, ao trazerem a colonialidade do gênero
como elemento recalcitrante na teorização sobre a colonialidade do po-
der, abrem um importante espaço para o projeto de descolonização do
saber eurocêntrico-colonial através do poder interpretativo das teorias
feministas, visando o que Walsh (2007, p. 231) irá chamar de pensamien-
to propio latino-americano e que a pioneira afro-brasileira Léila Gonza-
lez teria chamado de pensamento feminista amefricano. De acordo com
Maria Lugones (2007), ver o gênero como categoria colonial permite
historicizar o patriarcado, enfatizando os modos como a (cis)heteronor-
matividade, o capital e as classificações raciais estão sempre interligados.
A autora também afirma que o binarismo do gênero traz consigo uma
outra hierarquia: a de humanos e não humanos. A missão civilizatória
do cristianismo se concentrou na transformação do não humano colo-
nizado em homem e mulher. O não humano feminino colonizado não
foi somente racializado, mas também reinventado como “mulher” pela
missão civilizatória por meio dos códigos de gênero ocidentais.
Apoiando-se nos escritos da feminista nigeriana Oyuronke
Oyewumi (1997) e da escritora indígena Paula Gunn Allen (1992), Lu-
gones e outras teóricas argumentam, de um lado, que o gênero e a raça
são construções que racializam e generificam sociedades subalternas.
Elas afirmam que o gênero não era um princípio organizador ou uma

200
categoria hierárquica até o “contato”, daí a necessidade de descoloni-
zá-lo. Por outro lado, Rita Segato (2008), baseada em seus estudos do
povo Iorubá, encontra evidências de nomenclatura de gênero naquela
cultura, portanto defendendo que sociedades afro-americanas e tribais
revelam a existência de uma clara ordem patriarcal que é, no entanto,
diferente do patriarcado ocidental. Segato (2008) dá a esse fenômeno o
nome de “patriarcado de baixa intensidade” ou, nas palavras da feminista
lésbica aimará Julieta Paredes (2010), um entroncamiento de patriarcados.
Ao invés de nos posicionarmos contra ou a favor de um ou de outro polo
na narrativa de se o gênero é ou não uma categoria advinda da moder-
nidade europeia, gostaríamos de argumentar a possibilidade de vermos
o gênero através da noção de equivocação, derivada do perspectivismo
ameríndio, e do conceito de tradução feminista.

Além do cultural? Equivocação e a política feminista da tradução


Em seu influente ensaio sobre a cosmopolítica, Marisol de la Ca-
dena (2010) analisa a articulação feita por comunidades indígenas an-
dinas da presença dos seres terrestres, tais como animais e montanhas
sagradas, em protestos sociais. Ela argumenta que, ao trazer criaturas
não humanas para o domínio da política humana, as comunidades indí-
genas andinas subvertem a distinção ontológica entre humanidade e na-
tureza que sempre constituiu a marca da modernidade ocidental. Levar
em consideração as necessidade e desejos políticos do que de la Cadena
denomina como “criaturas da terra” possibilita o respeito e o afeto neces-
sários para a manutenção de redes de relacionalidade entre os humanos
não-humanos em tais comunidades. A introdução de tais práticas nos
protestos sociais – ou seja, expressar o que as criaturas da terra, tais como
montanhas sagradas, demandam no contexto dos protestos sociais – nos
convida, nas palavras de Isabelle Stengers (2005), a desacelerarmos a
reflexão, uma vez que coloca uma significativa ruptura epistêmica.
É aqui que a noção de equivocação – termo derivado do perspecti-
vismo ameríndio e articulado teoricamente por Eduardo Viveiros Cas-
tro (2004) – se torna central. Por um lado, equivocação significa não
apenas engano ou erro, mas a impossibilidade de entender que há dife-
rentes entendimentos de diferentes mundos. Por exemplo, entendemos
raça, classe e etnia como categorias que pertencem à divisão colonial

201
natureza/cultura. Contudo, quando usadas por povos indígenas, elas não
correspondem necessariamente aos sentidos que lhes foram dados ao
longo da história (ocidental). Em outras palavras, elas são equivocações
ou categorias equívocas: apesar de parecerem as mesmas (isto é, terem o
mesmo sentido), de fato elas podem não o ser quando significadas por
outras comunidades.
Por outro lado, para que existam mundos heterogêneos e catego-
rias equívocas, bem como a possibilidade de articular conexões parciais
entre eles, é necessário o trabalho da tradução. Em outras palavras, a
equivocação (no sentido de engano, erro) precisa da tradução: é a partir
de traduções infiéis que os vários mundos/ontologias se interconectam
sem se tornarem comensuráveis. Através da noção de equivocação, do
engajamento com a tradução e da prática de “desaceleração da reflexão”,
os feminismos descoloniais têm desfeito o perverso dualismo entre na-
tureza e cultura inculcado pela epistemologia ocidental e que é a causa
do desaparecimento de mundos pluriversais.
Defendemos que uma política feminista translocal é crucial para a
virada descolonial e central para a estratégia de construção de “episte-
mologias conectantes” (LAO-MONTES, 2007, p. 132) que confrontem
as equivocações e traduções coloniais que impedem as alianças feminis-
tas, mesmo entre as mulheres que partilham a mesma língua e cultura,
como as latinas vivendo nos Estados Unidos e as latino-americanas. A
tradução, então, se torna um elemento chave na formulação de conexões
políticas e epistemologias feministas que sejam antirracistas, anti-im-
perialistas e descoloniais. Se, como Millie Thayer (2014) argumenta, os
movimentos de mulheres na América Latina e em outras partes do Sul
global partilham um contexto comum de luta, então “seus conflitos com
as ‘hegemonias dispersas’ representadas pelos estados, desenvolvimento
industrial, capital global, fundamentalismo religioso e relações de mer-
cado criam poderosas, ainda que apenas parcialmente sobrepostas, iden-
tidades e interesses que tornam o projeto de tradução possível e urgente”
(p. 405; nossa tradução).
Rebecca Prada (2014), por exemplo, nos dá uma instigante análise
de como o grupo feminista anarquista boliviano Mujeres Creando – que
se descrevem como cholas, chotas, e birlochas (termos racistas usados em
referências às migrantes indígenas nas cidades) e que adotam outras

202
designações de subjetividades abjetas (tais como puta, rechazada, descla-
sada, extranjera) – conversa com a feminista chicana Gloria Anzaldúa
ao transportar sua importante obra, Borderlands/La Frontera, para um
contexto de política feminista além dos muros da academia (onde essa
autora tinha sido lida em primeira instância), estabelecendo, assim, afi-
nidades entre dois projetos políticos. Dessa maneira, a linguagem de
Anzaldúa, enunciada no Sul do Norte, é apropriada pelo Sul do Sul
e “de fato incorporada pelo feminismo transnacional […] cujas únicas
fronteiras são aquelas que o patriarcado, o racismo e a homofobia insis-
tem em erigir” (p. 73).
Audaciosamente traficando as teorias feministas por meio das “zo-
nas de contato” (ou “zonas de tradução”), as feministas latino-america-
nas e as latinas residentes nos Estados Unidos desenvolvem uma políti-
ca da tradução que utiliza o conhecimento produzido por mulheres de
cor e pelos feminismos pós-coloniais ao norte das Américas, canibali-
zando-o, assim lançando, nova luz sobre teorias, práticas e culturas do
Sul e vice-versa. Outros lugares no contexto latino-americano ocupados
por esses sujeitos subalternos/descoloniais podem ser encontrados nos
diários da favelada Carolina Maria de Jesus, nos escritos da ativista fe-
minista afro-brasileira Lélia Gonzalez, nos romances autobiográficos
da escritora afro-brasileira Conceição Evaristo, assim como na poesia,
no grafite e performances de rua das Mujeres Creando, para citar alguns
exemplos. Uma preocupação com o não esquecimento, com os “becos da
memória” (EVARISTO, 2006) e a narrativa de outras histórias é, sem
dúvida, uma das práticas culturais descoloniais mais importantes. Como
nos lembra Paredes (2010),
ao fazer referência à nossa própria memória, nossa memória ontoge-
nética e filogenética, nós a conectamos a nossa primeira revolta das
wawas, quando resistimos e lutamos contra as regras injustas e sexis-
tas da sociedade, a conectamos à rebelião de nossas bisavós, que resis-
tiram ao patriarcado colonial e pré-colonial. (PAREDES, 2010, p. 10)
Traduções equívocas, leituras queer de textos coloniais, invasões na
arena da política pelos mais incomuns seres da terra, “desacelerando o
pensamento” e a reescrita das memórias e das histórias na articulação de
outros conhecimentos são práticas éticas e políticas que as feministas

203
descoloniais já começaram em muitos lugares nos vastos e densos terri-
tórios de nossa América Latina, ou melhor dito, Abya Yala.
A resistência à colonialidade do gênero implica, entre outras coi-
sas, resistência linguística e diríamos também mediação e resistência
tradutória. Significa colocar os paradigmas de representação eurocên-
tricos, com ancoragem na lógica dicotômica, sob rasura. Sem abrir mão
da categoria (sempre equívoca) do gênero, mas articulando-a de forma
que desafie os binarismos perversos da modernidade/colonialidade, tal-
vez possamos nos juntar àquelas feministas – latino-americanas, latinas,
negras e indígenas – para repensar as fronteiras coloniais entre huma-
no e não humano, matéria e discurso que estruturaram a colonialidade
do gênero e a colonialidade do poder, possibilitando dessa forma uma
outra noção, mais robusta, de democracia a partir da inclusão de outras
comunidades ontológicas, bem como de outra perspectiva, muito mais
profunda e densa, das imbricações entre poder, cultura e política.

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206
Apuestas políticas desde los
feminismos descoloniales

Verónica Renata López Nájera1

Resumen
En este artículo reviso los aportes desde los feminismos descolo-
niales y las movilizaciones feministas de los años recientes a un proyecto
de transformación que se gesta desde un feminismo que propone una
agenda antirracista, anticolonial, anticapitalista y antipatriarcal.

Introducción
En años recientes hemos sido testigos del ascenso de las movili-
zaciones de mujeres. Multitudinarias, creativas, irreverentes, disrupti-
vas, han generado espacios de encuentro, de diálogo, de acuerpamiento.
Con una agenda que pone en el centro la violencia hacia las mujeres
y acciones concretas para evidenciarla, el movimiento feminista es el
que mayor potencial transformador tiene en la escena global contem-
poránea. En este ensayo intentaré exponer las razones de lo anterior,
a partir de establecer, en un primer momento, las formulaciones que
desde la teoría feminista descolonial contribuyen a las agendas femi-
nistas y a la vez se enriquecen de los movimientos feministas. En un
segundo momento hablaré de las primeras marchas #niunamenos en
distintos países de América Latina, y en una tercera parte conclusiva,
expondré las apuestas políticas de los feminismos descoloniales que

1 Dra. en Estudios Latinoamericanos(UNAM); Profesora Investigadora Titular A,Tiempo


Completo, adscrita al Centro de Estudios Latinoamericanos, FCPyS-UNAM; entre sus
últimas publicaciones se encuentran la coordinación del libro colectivo De lo Poscolonial
a la descolonización. Genealogías Latinoamericanas, versión electrónica; libro de autoría,
Derrotada política, crisis teórica y transición epistémica: los estudios post/de/descoloniales
en América Latina, FCPyS, UNAM. 2018; sus líneas de investigación versan sobre la
producción de conocimiento en América Latina, Genealogías de las Teorías Descoloniales,
Feminismos Descoloniales; pertenece a la Red de Investigación Interdisciplinaria sobre
Identidades, Racismo y Xenofobia en América Latina (Red Integra) y a la Red de
Feminismos Descoloniales; correo electrónico: veronicarenat@politicas.unam.mx.

207
están contribuyendo a la transformación de los espacios horizontales
de relacionamiento social; los espacios más mínimos y cercanos, desde
donde se configura la dominación pero también las resistencias, resigni-
ficaciones y transformaciones.

Teoría Feminista y Descolonización


Voy a hablar desde los feminismos descoloniales ya que mi primer
acercamiento a los feminismos fue a través de la discusión descolonial, ya
que cuando era estudiante, durante la década de los 90s, ser feminista en
México, se consideraba un estigma. El feminismo de esos años abrevaba
en su mayoría de discusiones que colocaban la agenda de lo que ahora
nombramos como el feminismo blanco-hegemónico2. Y era un feminismo
muy cercano a las ONG´s y que seguía los dictados de los grandes or-
ganismos internacionales y que reflexionaba desde el concepto mujer
como un concepto universal. Y que pensaba que las “problemáticas” de
las mujeres tenían que ver con la implementación de políticas públicas
y de financiamiento de partidas presupuestales a temas focalizados que
dislocaban las perspectivas de las mujeres como sujetas políticas.
En ese contexto ser feminista era considerado como algo restringi-
do a un sector profesional, ya sea que formaran parte de organizaciones
políticas o sociales, preparado para ofrecer diagnósticos de problemáti-
cas sectoriales y no había una presencia fuerte ni una discusión como la
que se da ahora en las calles, en las escuelas e incluso en los hogares. Es
decir, si bien existía un feminismo disidente, que pensaba desde las ex-
periencias propias y se articulaba con diversas organizaciones, su trabajo
no era tan visible como el de aquellas que llevaban la agenda institucio-
nal. Ese feminismo de a pie, disidente, popular, diverso, que se hacía en
las calles, del cual aún se está escribiendo su historia, es del feminismo
que quiero recuperar sus acciones y agenda.3
2 Cuando hablamos de “Feminismo blanco-hegemónico” intentamos dar cuenta de
una concepción liberal del feminismo, que coloca en el centro al sujeto-mujer entendido
como individuo; es un feminismo que concibe a una mujer universal, la cual se encuentra
oprimida por un patriarcado universal, un feminismo que en la década de los 80´s acepta
la agenda de los grandes organismos internacionales. Aunque estamos conscientes de
que es una caracterización polémica e insuficiente.
3 Para un estudio detallado del feminismo del siglo XX en México, ver Gisela Espinosa
Damián, Cuatro vertientes del feminismo en México. Diversidad de rutas y cruce de caminos,

208
A partir del año 2000 el paisaje político latinoamericano se trans-
forma con las experiencias de lo que con posterioridad serán denomi-
nados “gobiernos progresistas”: Bolivia, Argentina, Brasil, Ecuador y
Venezuela viven procesos que se convierten en un referente para pensar
la transformación social, después de la larga noche neoliberal. Sin em-
bargo, en los últimos años lo que hemos presenciado es una vuelta a la
derecha en casi todos estos países, y en los casos en que se mantienen
los gobiernos que participaron de los procesos de transformación, es
evidente que están enfrentado contradicciones que no han logrado re-
solver y que son gobiernos que ahora son acusados de corrupción o de
prácticas neo-extractivistas, que se han distanciado de los mismos movi-
mientos sociales que los impulsaron. Lo cual abre un nuevo escenario de
conflictividad en el que, por un lado, la derecha ha reconquistado espa-
cios que se habían disputado en el periodo de impugnación neoliberal y
por el otro, la izquierda no ha logrado retomar un camino de confluencia
con proyectos que rompan con la matriz productiva que genera y repro-
duce el atraso, la dependencia y que imposibilita la capacidad autónoma
de tomar decisiones, frente a una economía cada vez más globalizada e
interdependiente que profundiza las desigualdades.
Y es justo en este escenario confuso y convulso en el que los mo-
vimientos feministas adquieren presencia y visibilidad en las agendas
nacionales y se articulan en distintos países en torno a demandas como
el #niunamenos; #miprimeracoso, #metoo, por el derecho a decidir sobre
nuestros cuerpos, contra la violencia de género, por la despenalización
del aborto, por el reconocimiento de las relaciones sexo-afectivas diver-
sas etc. Como la llama Raquel Gutiérrez, una política en clave femenina.
En décadas pasadas, las luchas feministas se enfocaban a temas
como la participación equitativa en la política, en la cultura, en los es-
pacios públicos, y quienes no pensaban que la vida cotidiana jugara un
papel central en las formas en que damos sentido, significado, forma,
al ser mujer, desde la Red de Feminismos Descoloniales4 retomamos la
vieja consigna del feminismo sobre que lo personal es político y plan-
teamos que la vida cotidiana es un espacio de disputa. Pero un espacio

UAM-X, México, 2009.


4 Para consultar material de las integrantes de la red de Feminismos Descoloniales se
puede consultar la página: https://feminismosdescoloniales.wordpress.com/

209
en que lo personal es y se politiza. Y pensar la política en clave femenina
nos ha llevado a apostar por una descolonización que implique también
la propia subjetividad femenina.
Por eso el título de nuestro primer libro como Red fue Más allá
del feminismo: caminos para andar (MILLÁN, 2014) porque estábamos
interesadas en abrir una discusión que reconociera nuestros distintos
feminismos y que diera cuenta de que el feminismo desde el cual ha-
blamos toma en cuenta lo político, toma en cuenta la historia, toma en
cuenta la transformación social, y lee atentamente los procesos que en
algunos casos y de muy diversas formas también acompañamos. En-
tonces planteamos que hablar más allá del feminismo era distanciarnos
de un feminismo que no sentíamos que nos representaba, en el que no
estábamos incluidas ni nombradas y que no nos ofrecía respuestas a
nuestras inquietudes.
Y justo la Red se enreda en un contexto bien interesante porque
esas mismas inquietudes las compartíamos con mujeres de otras regio-
nes de América latina y no solo entre nosotras. Y decidimos discutir
desde las teorías descoloniales siguiendo a Silvia Rivera Cusicanqui,
entendiendo que la teoría descolonial implica una práctica descolonial,
y dialogamos con Karina Bidaseca y Rita Segato, con Aura Cumes y
con muchas otras feministas de distintas latitudes que se propusieron al
igual que nosotras, descolonizar el feminismo.
Por ello, no pensamos desde un feminismo acabado, universal, que
termina siendo excluyente, que anula la diversidad de formas del ser-
-mujer y que mide o evalúa la condición del ser mujer en función de
esta idea universal, crítica que plantearon las feministas poscoloniales
desde los 80s, por ejemplo Chandra Mohanthy cuando cuestiona las
formas en que la academia anglosajona construye al sujeto mujer del
Tercer Mundo como siempre sometida por el patriarcado, la pobreza, la
violencia, la colonización y la religión, como sujetas sin agencia, sin ca-
pacidad de actuar, de incidir políticamente; como lo han demostrado las
mujeres indígenas de Abya Yala que defienden la tierra porque defender
la tierra es defender la posibilidad de la vida. O como las mujeres negras
que han cuestionado las jerarquías sociales y los privilegios de aquellas
feministas que hablaban desde el privilegio de ser blancas. Esas mujeres
que criticaban a otras feministas por no ser suficientemente ilustradas

210
ni académicas, no reconocían y no podían ver otras formas de lucha que
no fueran en los términos planteados por Occidente.
Así que también nos dimos a la tarea de pensar desde dónde nos
sabemos mujeres y eso nos llevó a ubicar, a situar nuestros feminismos
históricamente, a problematizar que las distintas formas de opresión se
articulan históricamente en el inicio de la modernidad, pero no de la
modernidad liberal que la reconoce en el momento de las revoluciones
europeas en el siglo XVIII, sino en la génesis de la modernidad con el
descubrimiento, conquista y colonización de América, porque es en ese
momento histórico en que nace la historia universal, pero también nace
la historia de sometimiento de nuestros pueblos, donde nos convertimos
en la otredad, cuando somos subalternizados, sometidos y dominados.
Cuando nos clasifican en función de nuestra diferencia y cuando la raza
se convierte en el primer principio organizador de la vida social de estas
tierras.
Y quiero enlazar la idea del racismo con las mujeres que para noso-
tras ha sido fuente de inspiración, que nos mueven, que nos cuestionan
y nos enseñan tanto, que son las mujeres zapatistas. Desde la Ley Re-
volucionaria de Mujeres Indígenas que es un texto muy claro en el que
exponen la necesidad de tener derechos dentro de sus propias comuni-
dades y frente a sus propios compañeros, su derecho a participar en la
lucha, a ser madres y decidir cuantos hijos tener, a estudiar, a ser electas,
a no ser violentadas por sus compañeros, son un llamado de atención y
colocaron desde entonces problemáticas que las mujeres urbanas tam-
bién compartimos pero que muchas no nos habíamos dado a la tarea de
reflexionar quizá porque creíamos ser libres y autónomas porque tení-
amos la posibilidad de estudiar o trabajábamos o utilizabamos méto-
dos anticonceptivos o íbamos a fiestas y andábamos solas en las calles y
no teníamos miedo. Y a pesar de que ya se tenía conocimiento de “las
muertas de Juárez” desde 1993, pensábamos, quizá, que era un problema
local y que nos encontrábamos a salvo.

La violencia nos une, la muerte nos separa: #niunamenos


Considero que es un momento singular de las apuestas de los dis-
tintos feminismos, ya que estamos frente a una escalada de violencia ge-
neralizada por las condiciones de deterioro social, pero particularmente

211
de una violencia hacia las mujeres que se distingue por su saña, por
su odio, por su perversidad. Mujeres violadas, asesinadas, estranguladas,
quemadas, perforadas con palos, desaparecidas, pero también invisibili-
zadas, abandonadas, estigmatizadas. No es un escenario alentador y por
ello es necesario reflexionar sobre las causas de esta violencia.
En 2018 el terror de la violencia hacia las mujeres nos alcanzó.
Según las cifras de periódicos nacionales, 7 mujeres son asesinadas en
México al día. Sólo el 25% de los casos son investigados como feminici-
dios (DENIS, 2017). La mayoría de los casos cuando son denunciados
inician un recorrido burocrático a través de una espiral de omisiones,
complicidades y dilaciones en las investigaciones. En algunos, como en
el caso de Lesvy Osorio, casi un año después y tras movilizaciones fe-
ministas y estudiantiles, logró ser catalogado como feminicidio y recién
en días pasados de juzgó al novio y actualmente se encuentra en proceso
para dictar sentencia. Pero lejos de ser un triunfo, es una muestra repre-
sentativa de la impunidad e incapacidad de las autoridades para impartir
justicia, para analizar los casos con perspectiva de género, para incorpo-
rar de lleno la tipificación del feminicidio como un delito. A pesar de
que en la legislación mexicana, desde el 2012 se tipificó el feminicidio,
son pocos los casos en que se reconocen como tal, ya que se requiere
demostrar signos de agresión o mutilación genital y que la posible vícti-
ma tuviera alguna relación con el probable asesino para ser considerado
como tal (KRAUS, 2017).
La violencia de género en un país con una marcada cultura ma-
chista se ha intensificado en los últimos años. Las razones de este in-
cremento son multifactoriales; entre las explicaciones se encuentran las
condiciones económicas, el empobrecimiento, la exclusión y la intensifi-
cación general de la violencia en el país. Pero las cifras oficiales sobre la
violencia hacia las mujeres son alarmantes:
• De las mujeres de 15 años y más, 66.1% han enfrentado al menos un in-
cidente de violencia por parte de cualquier agresor, alguna vez en su vida.
• 43.9% de las mujeres han sufrido violencia por parte de su actual o última
pareja, esposo o novio, a lo largo de su relación.
• En los espacios públicos o comunitarios, 34.3% de las mujeres han expe-
rimentado algún tipo de violencia sexual. (INEGI, 2017)

212
Sobre el tema de la violencia sexual en particular me interesa hacer
un comentario ya que en la encuesta mencionada, se dice que: “De los
actos de violencia más frecuentes destaca la violencia sexual, que han
sufrido 34.3% de las mujeres de 15 años y más, ya sea por intimidación,
acoso, abuso o violación sexual” (INEG, 2017, p. 02).
Sin embargo a través del hashtag #miprimeracoso se obtuvieron
datos reveladores y desgarradores: de 10 mil testimonios que se revisa-
ron, la edad promedio en que una mujer inicia su primer experiencia de
violencia se ubica entre los 5 y los 10 años. Y de los casos de violación
narrados, en el 90% de los casos el violador es alguien cercano al círculo
familiar, ya sea el padre, hermanos, tíos, abuelos o amigos de la familia.
Es decir, en las estadísticas oficiales no se contempla un rango de edad
en el que se experimentan las primeras vivencias de acoso y violencia;
además, la violación pareciera ser más recurrente en niñas y adolescentes
que en mujeres mayores de 18 años, lo cual es otro dato alarmante que
no se contempla en las encuestas disponibles hasta ahora. Es por ello
que:
• La mayoría de las mujeres no denuncia por miedo o por vergüenza, por-
que crecemos en una sociedad que permanentemente nos recuerda que
no valemos, la agresión siempre tiene que ver con que nosotras lo pro-
vocamos o lo permitimos, o estamos destinadas a ser violentadas por qué
somos mujeres, pienso por ejemplo en el testimonio de una chica que
menciona que su abuela le dice constantemente: “pues para que usas una
falda tan corta”, explicando así las posibles agresiones que sufre su nieta
en las calles. Es decir, un sentido común que ha naturalizado el acoso y la
violencia de género.
También documentar la violencia hacia las mujeres es un tema
problemático: para obtener datos contamos con encuestas y datos pro-
porcionados por el INEGI, que concentran la información por cada en-
tidad; respecto a las encuestas tenemos como referencia más reciente la
Encuesta Nacional sobre la Dinámica de las Relaciones en los Hogares
(ENDIREH), en sus cuatro levantamientos: 2003, 2006 y 2011 y 2017.
• Cuando una mujer se atreve a denunciar, cuando supera el miedo o la
vergüenza e incluso la culpa, se enfrenta a una serie de mecanismos que
en muchas ocasiones provocan que desistan de hacer la denuncia, em-
pezando con que los mismos sujetos que toman las declaraciones les

213
sugieren que renuncien a levantar la denuncia ya que en la mayoría de
los casos son funcionarios públicos sin conocimientos de perspectiva de
género; los interrogatorios de psicólogos y los exámenes médicos llegan a
ser humillantes y revictimizantes. Según testimonios de las denunciantes,
insistentemente se les pregunta cómo iban vestidas, como en el caso de
una joven brasileña que fue violada multitudinariamente: en el caso de
una joven brasileña de 16 años que fue violada en 2016, según informaci-
ón del periódico el universal (C., J. L., 2016), la violación tumultuaria se
realizó por una cifra poco clara, de entre 9 y 33 hombres; además, la chica
fue trasladada a otro lugar durante la misma noche en que fue atacada,
donde volvió a ser violada por tres hombres más, que además tomaron
video y se sacaron fotos con ella, estando inconsciente. Por si esto no fuera
suficiente, después inicio una revictimización cuestionando la actitud de
la joven, al ser madre soltera. En el caso de Brasil, cada 11 minutos una
mujer sufre algún tipo de agresión sexual, según datos del Foro Brasileño
de Seguridad Pública (C., J. L., 2016).
• El problema es la mujer, no el violador, no el sistema de justicia, no la revicti-
mizacion, no el juicio moral, no la cultura de la violación, no el machismo…
• La impunidad como resultado de los vacíos legales y de las condenas.
Las penas por hostigamiento sexual oscilan de los seis meses a los
dos años de cárcel y de 40 a 100 días de multa. Las prácticas conside-
radas como acoso sexual van desde miradas lascivas, toma de fotos y
videos, tocamientos, agresión verbal etc.
Si bien los testimonios narrados durante #miprimeracoso son muy
diversos y los casos de violación minoritarios en el conjunto, las prácti-
cas de intimidación, acoso, amedrentamiento, confrontación, humillaci-
ón, reflejan desde distintos ángulos, una red de significados compartidos
en los que las mujeres ocupan un lugar inferior. Las mujeres somos vio-
lentadas porque se nos puede violentar. Ese poder masculino erosiona la
soberanía del cuerpo de las mujeres y su poder de ser. Como dice Rita
Segato la violencia implica “la erradicación de la potencia de éstos como
índices de alteridad o subjetividad alternativa” (SEGATO, 2013, p. 20).
Así pues, el incremento en las movilizaciones de mujeres en años
recientes, particularmente de jóvenes mujeres que han abrazado a los
feminismos como sentido de vida, responde a esta escalada de violen-
cia que ha llegado incluso a los recintos universitarios. Son las jóvenes

214
estudiantes las que han alzado la voz y tomado los espacios público para
gritar “nos están matando” y “nos queremos vivas”.
Frente a este ambiente generalizado de violencia hacia las muje-
res, las movilizaciones se han convertido en la principal estrategia de
visibilización y resistencia. El 3 de junio de 2015 se llevó a cabo en
Argentina la primera manifestación multitudinaria #niunamenos en la
que participaron más de 200 mil personas. La movilización se replicó en
200 ciudades del país, además de Chile, Uruguay y México; los organi-
zadores, artistas, intelectuales se expresaron en su página de internet de
la siguiente forma:
“Ni Una Menos es un grito colectivo contra la violencia machista. Sur-
gió de la necesidad de decir ‘basta de femicidios’, porque en Argentina cada 30
horas asesinan a una mujer sólo por ser mujer. La convocatoria nació de un
grupo de periodistas, activistas, artistas, pero creció cuando la sociedad la hizo
suya y la convirtió en una campaña colectiva.”5

https://www.lanacion.com.ar/1948483-ni-una-menos-miles-de-mujeres-se-concentran-en-
-el-obelisco-en-contra-de-los-femicidios

En su página web (niunamenos.com.ar), los promotores de esta


iniciativa propusieron cinco puntos para comprometerse con la lucha en
contra de la violencia de género: 1) los recursos necesarios que posibi-
liten implementar el Plan Nacional para la Prevención, la Asistencia y
5 Consultado en: http://niunamenos.com.ar/?page_id=6, 16 de septiembre de 2016.

215
Erradicación de la Violencia; 2) garantizar el acceso a la justicia de las mu-
jeres que han sido violentadas; 3) elaborar un registro oficial único; 4) edu-
cación sexual; 5) garantizar la protección de las víctimas de la violencia.6
Un dato importante y para dar continuidad a la labor iniciado el 3
de junio consiste en la realización de La primer encuesta contra la violen-
cia machista la cual fue contestada por 59 380 mujeres y los resultados
finales se publicaron el 25 de noviembre de 2016. Se cuenta con un
documento ejecutivo (BECK, 2016) en el que se detallan los resultados.
Es interesante resaltar que el 97% de las mujeres argentinas manifestó
haber sido acosada en espacios públicos y privados; el 95% ha sufrido
aislamiento por parte de su pareja; el 93% desvaloración por parte de su
pareja; el 92% estigmatización; 67% maltrato físico entre otros rubros
que se contemplan en la encuesta.
Además, para dar continuidad a las iniciativas se convocó a otra
marcha el 3 de junio de 2017, para salir a exigir la necesidad de concre-
tar iniciativas que se plantearon el año 2016 y que siguen sin cumplirse
(GIAMBARTOLOMEI, 2017).
La respuesta a la convocatoria de “Ni una menos” fue atendida en
otros países de América del Sur, como en Chile, Uruguay, Brasil y Perú.
Un dato interesante es que a la primer manifestación del Perú, que reci-
én se llevó a cabo el 13 de agosto del 2016, asistió el presidente, así como
altos funcionarios del gobierno.
En México se convocó a una concentración en el Ángel de la inde-
pendencia para el mismo día, 3 de junio de 2015, a la que concurrieron
cerca de 300 mujeres. A pesar de la baja convocatoria en esta ocasión,
distintas organizaciones feministas promovieron la marcha En contra de
las violencias machistas, que finalmente se realizó el 24 de abril del 2016,
la cual se conoce como #24A.
La convocatoria a la marcha circuló principalmente a través de las
redes sociales por medio del hashtag #vivasnosqueremos. Según cifras
oficiales, participaron cerca de 10 mil personas, la mayoría mujeres; la
manifestación salió desde Ecatepec en el Estado de México7, hacia el
centro de la ciudad, y se re-agrupó en el Monumento a la Revolución

6 Ídem.
7 Ecatepec, que se encuentra en el Estado de México, es el municipio con más altos
índices de feminicidios desde el 2015, a pesar de que se ha decretado la alerta de género.

216
para salir de ahí hacia el Ángel de la Independencia. Entre las consignas
de las organizadoras de la marcha, se difundió una serie de recomen-
daciones a los medios de comunicación para que no tomaran fotos de
miembros de partidos políticos que intentaran capitalizar la marcha8 a
su favor, así como que en sus tomas fotográficas y de video se priorizara
la presencia de las mujeres y evitar entrevistar a varones.
Además, la marcha se organizó por contingentes: a la cabeza iban
las madres de mujeres desaparecidas, víctimas de la violencia y organiza-
ciones como Nuestras hijas de regreso a casa; después contingentes por or-
ganizaciones civiles y universidades y al final los contingentes mixtos en
los que se podían incorporar varones; días más tarde llamó la atención
y fue objeto de críticas por algunos sectores el que no hubiera hombres
encabezando la marcha.
Pero lo más interesante de todo este llamado a la movilización
consistió en la convocatoria, realizado un día antes por la abogada Ca-
talina Ruiz Navarro, del hashtag #Miprimeracoso. En pocas horas, miles
de mujeres se sumaron a la iniciativa contando – algunas por primera
vez – experiencias desgarradoras de su primer acoso:
Cuando cuentas que te metieron mano en la calle o cuando platicas
que un tipo se te arrimó en el Metro, ¿Qué es lo primero que te
dicen? “Ay, hija, cuídate, es que andas bien zancona y ya sabes cómo
son los hombres”. Justo, ésta fue la primera impresión que me dio
mi abuela al contarle lo que me pasó: un sujeto con el pene expuesto
venía grabándome bajo la falda en el transporte público que tomo
para ir a la universidad.9
Se publicaron en las redes sociales más de 10 mil testimonios y el
hashtag #miprimeracoso se retwitteo más de 100 mil veces (SURSIEN-
DO, 2016). La promotora del hashtag, Catalina Ruiz-Navarro cuenta
cómo surgió la idea de la convocatoria en redes:
Yo me encontraba en Brasil, en un foro feminista sobre los efectos
del virus Sika, y escuché la historia del hashtag #MiPrimerAsedio.

8 En esos meses en la ciudad de México se realizaban campañas de candidaturas a la


Asamblea Constituyente de la Ciudad de México.
9 Consultado en: http://www.chilango.com/ciudad/nota/2016/04/22/el-acosoa-las
-mujeres-no-es-normal.

217
Pensamos que la experiencia podía replicarse en México (y en toda
Latinoamérica) y lanzamos el hashtag desde la cuenta de @estere-
otipas. La respuesta, al igual que ocurrió en Brasil, fue abrumadora:
en menos de dos horas el hashtag era Trending Topic y la verdad es
que no hemos tenido tiempo de sacar la edad promedio [de la edad
promedio en que inicia el acoso] – mi hipótesis es que ronda los 7
años (RUIZ, 2016).
Uno de los relatos más conmovedores es de la misma compañera
de Catalina en estereotipias, Estefania Vela, también convocante, que
narra la que, recuerda como su primer experiencia de acoso:
Fui abusada sexualmente cuando era niña por un psiquiatra infantil.
Si fue por unos meses o por años, no sé. Tampoco sé cuándo ocur-
rió. Recuerdo olores sensaciones y algunas imágenes. Entre ellas, la
de mi muñeca portando un reloj que me había regalado mi abuela
cuando tenía 9 años. Es lo único que tengo para calcular las fechas
(VELA, 2016).
Igual cientos, miles de historias, todas semejantes, todas invisibi-
lizadas, todas atravesadas por la culpa y el miedo. Algo que logramos
reconocer como sociedad a través de esta experiencia fue las constantes
de la violencia.
Si en México, 2 de cada 3 mujeres hemos sufrido algún tipo de
acoso, agresión o violencia, la pregunta es: ¿quienes son los varones que
comenten estos actos? Tradicionalmente se pensaba que eran enfermos
mentales, cubiertos de amplias gabardinas que, acechando en los callejo-
nes oscuros esperaban pacientemente a sus víctimas para abrir sus abri-
gos y mostrar sus penes; después del Mi primer acoso, sabemos que los
varones que realizan estas prácticas están entre nosotras, son nuestros
amigos, novios, conocidos, primos, tíos, padres o hermanos. Los hijos
sanos del patriarcado.
En un artículo titulado “Este texto es solo para hombres” el perio-
dista Daniel Moreno reflexiona acerca de las evidencias que nos arrojan
los testimonios de #miprimeracoso:
Porque en este país, una mujer debe saber que en la calle, en la ofici-
na o en la escuela, hay hombres convencidos de que pueden agredir-
la, acosarla, insultarla, solo porque son mujeres.

218
Y no hablo de hombres ‘enfermos’, sicópatas. Hablo de casi cual-
quier hombre-jefe-compañero-pariente-colega-desconocido, que
además sabe que su agresión quedará impune. Gente común, que ha
normalizado esta violencia (MORENO, 2016).
Aún más alarmante es el promedio de edad en que inicia esta expe-
riencia para miles de mujeres: el físico y profesor de la Universidad Na-
cional Autónoma de México (UNAM), Adrián Santuario, analizó los
tuits generados por el hashtag #miprimeracoso y descubrió que la edad
promedio oscila entre los 6 y los 10 años. De los 78 mil tuits de gente
real, el 93% fueron mujeres, lo cual representa que el 59 por ciento del
total de los testimonios que se publicaron en las redes sociales, cuentan
historias de acoso que sucedieron entre los 6 y 10 años (SA, 2016).
Otra cosa que descubrimos a partir de esta experiencia fue reco-
nocer las formas sociales en que se tiende, por un lado, a culpar a las
mujeres por las agresiones, frases hechas que se construyen discursos
sociales que naturalizan y legitiman las prácticas de violencia hacia las
mujeres por ejemplo: “viene muy destapada”, “bien que quieres, no te
hagas”, “tápate que se te ve todo” etc., frases que crecemos escuchan-
do en los hogares, en los espacios públicos, con los compañeros de la
escuela o el trabajo, “así son los hombres”, “es que seguramente lo pro-
vocaste”, “debes tener cuidado con la forma en que te vistes, por donde
caminas, con quien te juntas”, o mi preferida “los hombres tienen ne-
cesidades” etc.
En algunos casos las reacciones de los varones refuerzan la violen-
cia, ya que al verse descubiertos y ser increpados por las mujeres, res-
ponden con más agresión con frases como “ni que estuvieras tan buena,
pinche vieja”, “deberías agradecer que me masturbe pensando en ti”, o
“estas mintiendo, y te echaste yogurth”, como en el caso de Ninde, una
chica que acuso al hombre que se masturbó a su lado en el metro.10
En twitter las experiencias que se contaron fueron breves, pues
tenían que ceñirse al límite establecido de 140 caracteres, pero en Fa-
cebook las mujeres pudieron explayarse y narrar verdaderas historias
de terror. Muchas de ellas fueron violadas siendo niñas por parientes

10 http://www.diariodemexico.com.mx/joven-denuncia-hombre-eyaculo-pantalon-
metro-victima-agresiones/. Disponible en: http://www.mientrastantoenmexico.mx/38549/

219
cercanos o amigos de la familia; otras han sido tocadas, insultadas, ma-
noseadas en el transporte público, a cualquier hora del día; pero también
nos enteramos de abusos en los espacios laborales, en las escuelas, con
los grupos de amigos, en fiestas o paseos, lo cual indica que no existe un
solo espacio de la vida pública y privada de las mujeres en el que o se
haya cometido alguno de estos actos.
Laura Rita Segato, antropóloga argentina que lleva años trabajan-
do en Brasil. Su trayectoria académica, los temas de sus investigaciones
y su práctica docente son un claro ejemplo de análisis interseccional, es
decir, del cruce analítico entre raza/clase/género. Todas sus publicacio-
nes muestra la tensión presente en las dinámicas identitarias en tiempos
de globalización neoliberal. Además de ello, es feminista.
Rita Segato fue Invitada a participar en julio de 2004 en un foro de
análisis sobre los feminicidios en Ciudad Juárez, pero el sexto día de su
estancia, cuenta la antropóloga que tuvo que salir intempestivamente de
la ciudad después de que se cayera la señal de televisión en toda la ciu-
dad, justo en el momento en que se transmitirá su participación en una
entrevista con el periodista Jaime Pérez Mendoza. Este hecho, sumando
a otros incidentes en los días anteriores, la llevó a tomar la decisión de
preservar su vida.
¿Cuál fue la razón de este acto de censura y al mismo tiempo, señal
de alerta para la autora?, ¿Qué signos codificados pudo leer la autora en
este acontecimiento aparentemente casual? Rita Segato estudió en los
años 90 la mentalidad de los condenados por violación sexual, presos
en la penitenciaria de Brasilia. De sus entrevistas en la cárcel, extrae las
siguientes conclusiones:
Mi “escucha” de lo dicho por estos presidiarios, todos ellos conde-
nados por ataques sexuales realizados en el anonimato de las calles
y a víctimas desconocidas, respalda la tesis feminista fundamental
de que los crímenes sexuales no son obra de desviados individuales,
enfermos mentales o anomalías sociales, sino expresiones de una es-
tructura simbólica profunda que organiza nuestros actos y nuestras
fantasías y les confiere inteligibilidad. En otras palabras: el agresor y
la colectividad comparten el imaginario de género, hablan el mismo
lenguaje, pueden entenderse (SEGATO, 2013).

220
El acto violento cometido en contra de las mujeres dice la autora,
es un acto social, no se realiza en solitario como exponen las series y
películas enfocadas a construir un discurso explicativo del fenómeno
de la violación; es, por el contrario, un acto simbólico que tiene como
finalidad última establecer la soberanía frente al otro, atacando su cuer-
po, y demoliendo su subjetividad. Y dice Segato: “Expresar que se tiene
en las manos la voluntad del otro es el telos o finalidad de la violencia
expresiva” (SEGATO, 2013, p.18).
Si bien los testimonios narrados durante #miprimeracoso son muy
diversos y los casos de violación sexual, minoritarios en el conjunto,
las prácticas de intimidación, acoso, amedrentamiento, confrontación,
humillación, reflejan desde distintos ángulos, una red de significados
compartidos en los que las mujeres ocupan un lugar inferior frente a los
varones. Las mujeres son violentadas porque se las puede violentar. Ese
poder masculino erosiona la soberanía del cuerpo de las mujeres y su
poder de ser. Como dice Segato, la violencia implica “la erradicación de
la potencia de éstos como índices de alteridad o subjetividad alternativa”
(SEGATO, 2013, p.18).
Me toco, frotó su pene contra mi hombro, me metió la mano bajo la
blusa, me rozó, me tocó las nalgas, me sentaba en sus piernas y me
tocaba bajo la falda, me gritó puta, me dijo piruja, da las gracias de
que me masturbe pensando en ti… ni que estuvieras tan buena…
mamacita, etc etc etc. Son los sonidos de la violencia patriarcal (SE-
GATO, 2013).

Actualidad de los movimientos feministas latinoamericanos


Los movimientos feministas de hoy han reactualizado la discusión
del patriarcado como un sistema de dominación que, a la manera de la co-
lonialidad del poder en Aníbal Quijano, organiza, jerarquiza y configura
el mundo social. La intersección entre la triada raza/clase/género cobra un
matiz distinto, más profundo e intenso, en los tiempos de la globalización.
Así, contradictoriamente, al tiempo que las mujeres hemos con-
quistado derechos – lo cual llevó en algún momento incluso a platearse la
posibilidad de un pos-feminismo – hemos progresivamente visibilizado
problemáticas comunes ancladas en las formas en que nos relacionamos,

221
concebimos, proyectamos como sociedad. Hemos recuperado el espacio
de la vida cotidiana como un lugar privilegiado de politización y donde
se expresa de manera más clara y evidente la desigualdad entre géneros
y la violencia que esto produce.
Es necesario superar aquellos discursos que, planteados desde una
estrecha dicotomía, entienden a los movimientos feministas como “lu-
chas aisladas” o que reducen las implicaciones de la violencia a una “guer-
ra entre sexos”, cargada incluso de tintes románticos ya que la agresión
se entiende como un acto de amor. En respuesta a la movilización femi-
nista del 24ª en México, en las redes sociales pudimos observar un in-
cremento o intensificación discursiva de las agresiones hacia las mujeres;
“feminazis”, “hormonales” o “mal cogidas” fueron algunos adjetivos para
“explicar” el mal humor y la supuesta “virulencia” con que las mujeres
expresaron su malestar previo, durante y con posterioridad a la marcha.
Pero los movimientos de jóvenes feministas van más allá.

Sobre el encuentro de mujeres que luchan y las tareas pendientes


de los feminismos descoloniales
Platicando con muchas mujeres que tuvieron oportunidad de asis-
tir al I Encuentro Internacional, Político, Artístico, Deportivo y Cultural de
Mujeres que Luchas (que no necesariamente feministas) coincidimos en
la sensación de no poder articular con claridad, con palabras, la expe-
riencia colectiva que se gestó en el encuentro, y después de varios días
de tratar de entender, de rumiar lo que ahí pasó, lo que sentimos, lo que
hicimos juntas, pienso que no tenemos palabras para explicarlo porque
lo que ahí vivimos no se inscribe en las lógicas convencionales del hacer
política, de convivir o de relacionarnos socialmente. Lo que ahí expe-
rimentamos fue un momento extraordinario, un tiempo de ruptura, de
quiebre del imaginario, en que se pusieron en suspenso nuestras formas
convencionales de pensar y vivir el feminismo, por ello me imagino que
así es como se debe sentir cuando se participa de alguna insurrección
popular o de los inicios de una revolución. Una necesidad de pensar de
otra manera, de acercarnos a los problemas con un enfoque que supere
los clásicos binarismos, las categorías gastadas con que seguimos tratan-
do de explicar fenómenos nuevos que quizá ya dan cuenta, en el presente
convulso, de lo que se está gestando para el porvenir.

222
Lo que ahí paso, creo yo que sentó las bases de nuevas subjeti-
vidades, de transmisión de conocimientos colectivos, de diálogos muy
diversos, de una experiencia que nos recordó las razones por las que
estamos luchando, quiénes son nuestras aliadas y quién es el enemigo.
Que nos recordó que “acordados vivir y como vivir es luchar, entonces,
acordamos luchar”.
Y quiero citar algunos fragmentos de los comunicados de las com-
pañeras zapatistas, tanto al inicio como en la clausura, para hilar mis
reflexiones finales. Por ejemplo, en el discurso inaugural dijeron:
“todas somos mujeres.
pero lo sabemos que hay de diferentes colores, tamaños, lenguas, culturas, profe-
siones, pensamientos y formas de lucha.
pero decimos que somos mujeres y además que somos mujeres que luchan.
entonces somos diferentes pero somos iguales.
y aunque hay mujeres que luchan y no están aquí, pero también las pensamos
aunque no las veamos.
y también lo sabemos que hay mujeres que no luchan, que se conforman, o sea
que se desmayan.
y entonces en todo el mundo podemos decir que hay mujeres, un bosque de mu-
jeres, que lo que las hace iguales es que son mujeres.
pero entonces nosotras, como mujeres zapatistas, vemos algo más que está
pasando.
y es que también nos hace iguales la violencia y la muerte que nos hacen.
así vemos de lo moderno de este pinche sistema capitalista.
lo vemos que hizo bosque a las mujeres de todo el mundo con su violencia y su
muerte que tienen la cara, el cuerpo y la cabeza pendeja del patriarcado.”11
En el entorno del encuentro salieron a flote las contradicciones
que nos acompañan, como bien dicen las zapatistas, a pesar de que sea-
mos mujeres que nos sentimos convocadas por la lucha, llevábamos en
nuestras maletas nuestros malestares y prejuicios, nuestros sectarismos
y nuestros posicionamientos, que se pusieron en juego en un ambiente

11 Palabras a nombre de las mujeres zapatistas al inicio del primer encuentro


internacional, político, artístico, deportivo y cultural de mujeres que luchan, consultado
en: http://enlacezapatista.ezln.org.mx/2018/03/08/palabras-a-nombre-de-las-mujeres-
zapatistas-al-inicio-del-primer-encuentro-internacional-politico-artistico-deportivo-
y-cultural-de-mujeres-que-luchan/

223
que las compañeras generaron en todo momento de escucha, de acom-
pañamiento, de alegría por estar juntas. Y creo que en buena medida
eso desactivo las divergencias que a veces nos separan. Como ejemplo
rescato el papel de los varones en la lucha feminista; las mujeres zapa-
tistas tienen un posicionamiento muy claro respecto del papel que los
varones juegan, que para ellas son sus compañeros y no sus enemigos: y
al respecto dijeron lo siguiente:
“Lo que no vamos a hacer es echarle la culpa a los hombres o al sistema de los
errores que son nuestros.
porque la lucha por nuestra libertad como mujeres zapatistas que somos es
nuestra.
no es trabajo de los hombres ni del sistema darnos nuestra libertad.
al contrario, como que su trabajo del sistema capitalista patriarcal es mante-
nernos sometidas.
si queremos ser libres tenemos que conquistar la libertad nosotras mismas como
mujeres que somos.”12
Este me parece que fue uno de los temas que quedaron flotando
en el ambiente, que a algunas generó incomodidad, a otras recelo, pero
que nos hemos traído como una de las tareas, pensar sobre las luchas, su
articulación y con quiénes y desde dónde podemos pensar en procesos
de transformación. Lo que yo encuentro en sus palabras es un llamado
a perder el miedo a luchar por nuestra libertad como mujeres, más que
pensar en el reconocimiento o aceptación de ésta por parte de los hom-
bres. Y la lucha de las mujeres es contra el patriarcado que acompaña al
capitalismo y a la colonialidad del poder.
Pienso, además, que otra de las grandes tareas, quizá la más im-
portante y que yo observo que ha modificado los distintos lugares de los
feminismos, que se piensan desde la articulación y no desde el desen-
cuentro, tiene que ver con el tema de la violencia y me pregunto si es la
violencia hacia las mujeres el sentido común que puede articular a los
feminismos en la actualidad.
Porque una de las demandas más sentidas de los feminismos
contemporáneos, que nos articulan entre nuestra diversidad, tiene que

12 http://enlacezapatista.ezln.org.mx/2018/03/08/palabras-a-nombre-de-las-mujeres
-zapatistas-al-inicio-del-primer-encuentro-internacional-politico-artistico-deportivo-
y-cultural-de-mujeres-que-luchan/

224
ver con la lucha contra la violencia hacia las mujeres, y esa lucha tiene
como finalidad, como dijeron las hermanas zapatistas: “que nunca más
ninguna mujer, del mundo que sea, del color que sea, del tamaño que
sea, de la edad que sea, de la lengua que sea, de la cultura que sea, tenga
miedo”.13
Y aquí quiero empezar a hilar las apuestas políticas desde los femi-
nismos descoloniales:
• El feminismo descolonial desde el que hablo es un feminismo antirracis-
ta, anticapitalista, anticolonial y antipatriarcal lo cual nos lleva a plantear
la descolonización del ser, del saber y del poder, es decir, de las formas
en que vivimos, experimentamos y pensamos el mundo, y de la forma en
que nos relacionamos, de la como estamos articulados socialmente, como
estamos organizados o desorganizados en la actualidad.
• Pensamos que el feminismo descolonial debe plantearse como agenda de
lucha el antirracismo ya que la idea de raza es un principio organizador,
es una idea estructurante que posibilita las opresiones jerarquizadas y que
jerarquizan la vida de las personas pero que afectan de manera radical la
vida de las mujeres. Desde el momento de la conquista hasta el día de hoy,
la raza opera y produce desigualdades, exclusiones, invisibilizaciones. Lu-
char contra el racismo es luchar contra las jerarquías y los privilegios, no
sólo de los varones hacia las mujeres, sino de mujeres privilegiadas sobre
mujeres racializadas, colonizadas y subordinadas.
• El feminismo descolonial es anticapitalista porque reconoce que el capi-
talismo es un sistema de producción y re-producción de la vida material
que se basa en el despojo sistemático y en la opresión de unos grupos
sociales por otros, lo cual a su vez genera nuevas jerarquías y formas de
organización social en las que las mujeres siempre estamos en el lugar
inferior, somos las que recibimos menos paga, la que más se explota en
trabajos precarios, las que trabajamos doble o incluso triple jornada, las
que no superamos el techo de cristal (en México sólo ocupamos el 17% de
los cargos públicos); somos las que cuidamos los espacios domésticos, las
que, como dice Kate Lappin, del foro Asia-Pacífico del organismo Mu-

13 Palabras de las mujeres zapatistas en la clausura del primer encuentro internacional,


político, artístico, deportivo y cultural de mujeres que luchan, consultado en: http://
enlacezapatista.ezln.org.mx/2018/03/10/palabras-de-las-mujeres-zapatistas-en-la-
clausura-del-primer-encuentro-internacional/

225
jeres, Leyes y Desarrollo (APWLD): “Las mujeres constituyen la mayor
parte de la fuerza laboral que trabaja por el salario mínimo en el mundo”
(NOTIMEX, 2015).
• El feminismo descolonial es antipatriarcal porque reconoce que un punto
de engarce con las desigualdades raciales y clasistas, tiene que ver con la
forma en que nos relacionamos socialmente entre géneros y el sistema
patriarcal es un sistema en el que las mujeres jugamos un papel central
ya que somos las que posibilitamos la dominación. Este sistema de do-
minación afecta la vida de la mitad del mundo, como afirma la feminista
comunitaria Julieta Paredes. En el caso de sociedades como la mexicana,
el machismo como expresión patriarcal, profundiza las desigualdades y
violenta a las mujeres de manera sistemática, ya que es un dispositivo
que se expresa culturalmente y que tiene múltiples dimensiones, espacios
invisibles y retóricas igualitarias que justifican dichas prácticas al mismo
tiempo que contribuyen a negar el problema.
• Por lo anterior, es necesario reconocer que el sujeto-mujer, históricamente
colonizada, racializada, sexualizada, violentada, invisibilizada y sometida
no ha sido contemplada en la historia y que es necesaria una descoloni-
zación de la vida social, entendida como una descolonización del patrón
moderno/colonial del poder.

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227
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VELA,Estefanía.Por qué voy a marchar este 24 de abril. El Universal.2016,Abril 22.Dis-
ponible en: <http://www.eluniversal.com.mx/blogs/estefania-vela-barba/2016/04/22/
por-que-voy-marchar-este-24-de-abril>.

228
Feminismos emergentes:
descolonización y crisis civilizatoria

Márgara Millán1

Resumo
Un fenómeno se expande en latino/america, se trata de la emer-
gencia de movimientos de mujeres que ponen en el centro una crítica
a la modernidad capitalista desde dos vertientes: descolonizante, desde
cosmovisiones de los denominados pueblos o naciones originarias; y por
otro lado, desde el interior de las subjetividades y movimientos urbanos.
Lo particular es la confluencia de agendas en torno a un hecho común:
la violencia contra las mujeres, la violencia estructural, feminicida, jurí-
dica y vinculada al despojo. La segunda particularidad es la convergen-
cia etaria, de clase, étnica, multicultural, y de diversidades sexuales. La
“guerra contra las mujeres” (SEGATO, 2018) ocurre en un plano multi-
dimensional, transversal, y por ello aglutina hoy a movimientos urbanos,
comunitarios, y de clase. Si bien esto no ocurre con la misma intensidad
y transversalización sectorial en todos los países, lo que ha ido produ-
ciendo son una serie de documentos que trabajaremos en este ensayo,
que van configurando un horizonte de lucha que supera los posiciona-
mientos de los feminismos (neo)liberales y desarrollistas, anclados aún
en el éxito personal de las mujeres en el entramado sistémico. Incluso
trasciende el horizonte igualitarista y de reconocimiento de las identi-
dades, para ir desarrollando frente al capitalismo y al patriarcado afir-
maciones colectivas, de clase y descolonizantes, que se vinculan no a un
programa político cerrado, sino a la puesta en acto del deseo femenino.

1. Ya basta! El zapatismo de los noventas y su impacto en el


relanzamiento de la crítica
El espíritu de los años noventa a nivel global estaba enmarcada en
el triunfo del neoliberalismo2 que se había posicionado como eje rector
1 Socióloga y Doctora en Antropología Social, profesora titular en la Facultad de
Ciencias Políticas y Sociales de la Universidad Nacional Autónoma de México.
2 Luc Boltanski y Ève Chiapello analizan en El nuevo espíritu del capitalismo lo que

229
de la modernidad capitalista desde los años setentas, y la caída del muro
de Berlín, que significaba la derrota del socialismo realmente existen-
te. El fin de la guerra fría avanzaba hacia la globalización neoliberal
como única vía. Las tesis del fin de la historia reemplazaban la discusión
ideológica, discusión que además se había dogmatizado con la defen-
sa acrítica del campo socialista. En México esto se vivía con un gran
escepticismo, una especie de pasmo de la crítica y de la organización,
frente al régimen neoliberal de Carlos Salina de Gortari que avanzaba
desincorporando la propiedad ejidal y comunal, sustento material de las
culturas originarias, al tiempo que reconocía retóricamente a México
como nación pluricultural. La convergencia simbólica de la firma del
primer Tratado de Libre Comercio con América del Norte en enero
de 1994 con la aparición de la rebelión armada zapatista fue el inicio
de una extraordinaria gesta de articulación de una nueva enunciación
crítica. Nueva porque sin duda entrecruzó, como lo sigue haciendo, la
crítica de la izquierda radical3 junto con la crítica que establecía por su
parte la teología india, los movimientos agrario-campesinos populares
y la propia tensión crítica que establece la forma de cosmo-vivencia de
los pueblos originarios frente la modernidad capitalista. Estas distintas
racionalidades críticas van construyendo un andamiaje poderoso que sin
duda influye a nivel global, siendo el zapatismo el primer movimiento
que se viraliza en redes sociales y que logra a través de sus acciones
convocantes, atraer a un movimiento que cada vez más de auto-convoca
globalmente.4
Es importante la referencia al Ya Basta zapatista que llegó para
quedarse en las nuevas izquierdas sociales de América Latina y del
mundo debido a dos cosas: plantan en la agenda de los movimientos la
crítica al modelo de industrialización y de consumo de la modernidad

denominan “la nueva gestión empresarial” como respuesta a la crítica al capitalismo, y de


hecho cómo se va generando una respuesta a lo que llaman el “bucle” de liberación de los
movimientos de los años sesenta en una recuperación cultural del dominio capitalista.
3 Más precisamente la idea de la guerrilla de masas del maoísmo del Ejército de
Liberación Nacional (ELN) que operaba en el norte del país y se interna en las selvas
chiapanecas al parecer desde inicio de los años ochenta, si no es que antes.
4 Carlos Fuentes denomina al neo-zapatismo el primer movimiento poscomunista.
Han sido numerosos los estudios que lo posicionan como el primer movimiento
cibernético global.

230
capitalista, al establecer sus luchas por la recuperación del territorio y
la autosuficiencia de las prácticas del sustento de la vida. Y porque de
manera temprana, posicionan a las mujeres como centrales protagonis-
tas de la lucha. Su vocación por otra relación con la naturaleza va de
la mano con el reconocimiento de la triple dominación de las mujeres
indígenas. Esto va a marcar el horizonte enunciativo de los movimien-
tos sociales que se irán desplegando en distintos contextos, y donde el
acento será más o menos descolonizante, más o menos feminista, pero
siempre incluyendo parte de estos dos supuestos.
Los feminismos mexicanos en esos años noventas estaban como
muchos otros en un proceso de institucionalización y ongeinización
apabullante (ÁLVAREZ, 2001). El feminismo blanco, (neo)liberal,
asistencialista, era el dominante, frente a los feminismos radicales y
autónomos, que también algunos con financiamientos internacionales,
posicionaban agendas distintas, más concernientes a los feminismos po-
pulares y campesinos (ESPINOSA DAMIÁN, 2009).
Es el zapatismo el que en México interpela a las feministas desde
otra perspectiva, no ilustrada y por tanto, cuestionando el indigenismo y
la visión paternalista (maternalista) hacia las mujeres indígenas que era
preponderante (MILLÁN, 2009).
Importante señalar como el (neo)zapatismo que releva la agencia
moral y política de las mujeres indígenas por ejemplo, con la Coman-
danta Ramona, y la responsabilidad de mando de la guerrilla de las in-
surgentes, desplazando el imaginario guerrillero machocentrado, se va
desplegando también en el zapatismo civil de las comunidades indíge-
nas, y lo que va a ir siendo la recuperación de la agencia política de la au-
todeterminación comunitaria con la participación de las mujeres. Desde
el zapatismo hay una concatenación de presencias y de enunciaciones:
Ramona como Comandanta Política, las insurgentes y sus testimonios
de la guerra, la Comandanta Esther como representante en el Congreso
mexicano en marzo del año 2000, las mujeres zapatistas que a nivel
comunitario forman parte de las Juntas de Buen Gobierno, y son pro-
motoras de salud, de derechos humanos, de cooperativas productivas, es
decir, toda una revolución al interior de las comunidades indígenas que
acogen, no sin contradicciones, un ordenamiento de género más “pare-
jo”, como ellas mismas dicen (MILLÁN, 2014).

231
2. De los márgenes al centro: marchas, encuentros y huelga
Feminismo fue la palabra del año 2017 para el diccionario Mer-
riam Webster por fenómenos tan diversos como Wonder Woman y el
movimiento #Me Too, la #Marcha de las mujeres, #Nosotras paramos,
#Vivas nos queremos, #Ni una menos, que son algunos de los hashtags
– nueva manera de enunciar la intervención de cada movimiento – que
van formando la historia reciente del activismo de las mujeres. El punto
es que cualquiera de las ascepciones de “feminismo” que nos ofrecen los
diccionarios ha quedado sobrepasada por los caminos que está tomando
la lucha de las mujeres. Según el Merriam-Wesbter: la primera acepción
dice que es “la teoría de la igualdad política, económica y social de los
sexos”. La segunda asegura que es “la actividad organizada en nombre de
los derechos e intereses de las mujeres”. Según el diccionario de la RAE:
“La ideología que defiende que las mujeres deben tener los mismos de-
rechos que los hombres”. Hoy, los feminismos son otra cosa, algo más
parecido a una plataforma antisistémica de lucha contra la violencia, que
reconoce que la situación diversa de las mujeres y sus distintas opresio-
nes y violencias están contenidas en una estructura capitalista, colonial y
patriarcal. Y que son esas estructuras las que hay que transformar.
Estas acepciones quedan cortas cuando la agenda de estos movi-
mientos de mujeres intergeneracionales, que son en realidad red de re-
des, toma en sus manos el futuro del planeta, diciendo como Saramago:
“Lo que está en el mundo me pertenece, en el sentido de responsabilidad.”
Así, los feminismos se han ampliado y descentrado, al tiempo que
están ocupando una nueva centralidad, la de las manifestaciones y de-
nuncias, la de la lucha en las calles. Daremos algunos ejemplos de este
doble movimiento, de descentramiento de la reivindicación del cuerpo
(mi cuerpo es mío) a la responsabilidad de poner el cuerpo en la revuelta
social de las mujeres. ¿Cómo y porqué ocurre esto?
Los desplazamientos significativos han sido certeros desde el 2015
hasta hoy. La resignificación del #8M ha ido creciendo en número y
en países que se suman, también en la cualidad de los manifiestos y
enunciados. La economista feminista española Amaia Pérez Orozco
plantea que el movimiento de mujeres contemporáneo está empujando
por instalar un debate interclasista, intercultural e intergeneracional que
de lugar a cambios estructurales. Todas las capas sociales (léase clases y

232
podríamos incluir etnias y diversidades en general) instalen un debate
que dé lugar a cambios estructurales. El sujeto politico “mujeres”, que en
el zapatismo mexicano se ha enunciado de dos formas: como mujeres
que somos, y mujeres que luchan, y que en otras latitudes y contextos se
enuncian como feministas con una serie de adjetivaciones (feminismos
populares, descoloniales, emergentes, transfeminismos) forman un con-
glomerado de diversidades que golpean juntas. ¿Qué golpean? El sentido
común, pero no solo en relación a las mujeres y su lugar o atributos, sino
el sentido común de estar juntxs, de vivir hoy en el mundo, de las vio-
lencias y despojos que atraviesan el cuerpo, los territorios, los desplaza-
mientos forzados. El sentido común de qué vida merece hoy ser vivida.
Silvia Federici ha posicionado desde hace tiempo la idea de que
las mujeres, el trabajo que realizamos, es el trabajo de sostenibilidad
de la vida (FEDERICI, 2015). No sólo el de los cuidados, sino el de la
reproducción de las condiciones de existencia. El trabajo reproductivo
que hacemos las mujeres se devela así no sólo como el lado femenino
del trabajo (no remunerado, invisibilizado) sino como el trabajo cen-
tral en el proceso de reproducción social, es decir, la reproducción y sus
trabajos aparecen como lo que debería de estar en el centro del proceso
(re)productivo.
Amaia Pérez (OROZCO, 2015) plantea que los procesos de sos-
tenibilidad de la vida, que reconstruyen la vida misma, no son los mis-
mos que los procesos y necesidades del mercado. Amaia regresa a una
perspectiva de la economía como sustento de la vida (POLANYI, 2011)
para de-construir palabras clave que totalizan e imponen su lógica en
el mundo contemporáneo. Una de ellas es “crecimiento económico”. Las
mujeres develamos la violencia y la falacia del “crecimiento económico”,
ya que así se le llama a al crecimiento de los flujos del mercado, cuando
muchos de ellos destruyen directamente la vida. Para Pérez Orozco, el
iceberg que queda oculto en todo este entramado somos las mujeres en
tanto eje vertebrador de la economía sustantiva, es decir, la economía
feminizada que se ocupa del sustento e la vida, y no del productivismo
guiado por la acumulación del valor.
Por otra parte las teorías transfeministas se ha ido decantando
hacia la consideración de un sujeto feminista amplio, interesado en la
deconstrucción de las dicotomías, es decir, en la afirmación y desarrollo

233
de las contradicciones dialécticas, sujetos siempre situaos, rizomáticos
y nómades. Generaciones distintas, localizaciones múltiples, de eso se
nutre el/los feminismos contemporáneos, y se dan cita en las calles, en
los encuentros, en las asambleas, en los paros.
Así, en el norte continental, nos topamos con un Manifiesto que
muestra y concretiza lo que denominaré una praxis interseccional, el de
La Marcha de las Mujeres del 2018 que transcribo acá en su totalidad:
“Este 8 de Marzo de 2018, Día Internacional de las Mujeres, nosotras,
mujeres de la Marcha Mundial de las Mujeres, mujeres diversas, de todos
los pueblos, razas y edades, nos unimos una vez más para reafirmar que
seguiremos en Marcha hasta que todas seamos libres de toda la opresión
patriarcal capitalista y colonial. Seguimos con el feminismo como nuestra
forma de vida y con las calles como nuestro espacio para manifestar nues-
tras demandas.
Denunciamos y resistimos frente al contexto político mundial, marcado
por la creciente crisis económica, social, política, climática e ideológica, en
definitiva, denunciamos el estado de guerra total donde nosotras, mujeres,
¡somos las principales afectadas!
Denunciamos los argumentos económicos y nacionalistas como forma de
privarnos del ejercicio de derechos y libertades fundamentales y, como
consecuencia, el boicot a la autonomía de las mujeres y los pueblos. Re-
chazamos todas las políticas de los gobiernos de derecha, que, cada vez
más radicales, expresan odio, racismo, misoginia, intolerancia y demás
formas de discriminación. Nos mantenemos firmes y en lucha contra la
criminalización de los movimientos sociales. La lucha por nuestros De-
rechos y libertades es una forma de expresión justa, por lo tanto: ¡NO
SOMOS CRIMINALES! Seguiremos en las calles y en solidaridad con
nuestras compañeras asesinadas, perseguidas y privadas de su libertad y
acción política.
Denunciamos y enfrentamos el avance de la militarización en todo el mun-
do como estrategia de control de la vida de los pueblos. La militarización
refuerza el neocolonialismo, el neosaqueo y la apropiación del capital sobre
los recursos naturales y es un soporte de enriquecimiento para la industria
de armamento frente a la crisis. Además del permanente estado de guerra
en Medio Oriente y África. Nos preocupan los movimientos de las poten-
cias militarizadas del Norte que indican una amenaza de retorno a la

234
guerra fría y la continua interferencia en los países del sur intentando pro-
mover el modelo de democracia neoliberal nórdico como la meta alcanzable.
Denunciamos los acuerdos de libre comercio, que empobrecen cada vez
más a los pueblos del sur global. La apropiación, privatización y mer-
cantilización del conocimiento, de la tierra, el agua, la salud, la educa-
ción y demás bienes comunes, agudizan las condiciones de explotación en
el trabajo de las personas empobrecidas y dejan sin oportunidades a las
futuras generaciones, perpetuando el círculo de la pobreza. La industria
extractiva y el agronegocio siguen degradando nuestra salud y nuestras
condiciones de vida, mientras las élites políticas acumulan una riqueza
basada en la corrupción y la impunidad y construyen Estados en función
de los intereses de las transnacionales. Reafirmamos que seguiremos sa-
cando nuestros cuerpos a la calle para enfrentar la situación, ya que las
instituciones de derecho están cada vez más fragilizadas frente al poder
del capital y no funcionan como deberían. Las fuerzas del mercado desnu-
tren el estado social y de derecho.
Denunciamos el asesinato del planeta por la institucionalización de un
universalismo occidental y por la búsqueda desenfrenada del lucro. El
cártel formado por las corporaciones multinacionales antiéticas está des-
truyendo la madre tierra que nos mantiene. Los acuerdos climáticos han
creado falsas soluciones fundamentadas en un marketing de lenguaje cada
vez más vacío, ¡y que perpetúa la violencia contra la naturaleza! Noso-
tras, mujeres de la Marcha Mundial de las Mujeres, mujeres del campo y
de las ciudades, estamos a favor de sostener la vida. Damos nuestras vidas
por defender la naturaleza de la cual vivimos, de la que hacemos parte y
que nos mantiene allí donde estamos (el agua, la tierra y los bosques en
nuestros territorios), pues creemos en modos de vida que interactúen de
forma sostenible con los recursos naturales.
Denunciamos un mercado que explota y precariza las condiciones de
trabajo de las mujeres con largas jornadas de trabajo, bajos salarios y
exposición a riesgos diversos; denunciamos la precarización del trabajo
doméstico y de cuidados. Un trabajo que garantiza el sustento de la vida
humana, que nutre, armoniza, enseña, ampara. ¡Un trabajo invisibili-
zando e infravalorado! Cuestionamos la división sexual del trabajo que
sobrevalora el trabajo socialmente concebido para los hombres a partir de
la negación del valor del trabajo atribuido a las mujeres.

235
¿Cómo puede el mundo pretender inferior la realización de las tareas más
básicas para la existencia humana, como el acto de cocinar que nos ali-
menta y el de limpiar el lugar donde vivimos y dormimos? El trabajo
ejercido por las mujeres es la base para sostener la vida y por lo tanto, una
importante fuente de contribución económica. Exigimos el reconocimiento
del valor del trabajo doméstico, pues las contribuciones económicas van
más allá de lo que puede ser monetizado.
Denunciamos a la industria de la ayuda internacional y los programas
de desarrollo, en particular a los que se centran en las cuestiones de géne-
ro, como agentes que promueven las agendas neoliberales e imperialistas,
perpetuando la discriminación, racialización y explotación de mujeres de
los países del sur.
Denunciamos y seguiremos denunciando siempre todas las formas de vio-
lencia porque, no olvidamos la violencia machista que enfrentamos coti-
dianamente en espacios públicos y privados. Gritamos bien alto ¡BASTA!
Basta de abusos, violaciones, matrimonios forzados y feminicidios que no
suceden únicamente en países de Asia y África, sino que están presentes en
las vidas de las mujeres de todas las clases y en todo el mundo. Nuestros
cuerpos y nuestras vidas nos pertenecen y ese derecho no es negociable.
Enaltecemos, apoyamos y participamos en iniciativas para acabar con el
silencio, como son los recientes movimientos de denuncia y de ocupación
del espacio público: Marcha das Mulheres, Time‘s up, #metoo, ¡Ni una
a menos!, ¡Vivas nos queremos! y la Huelga Internacional de Mujeres,
así como en iniciativas que se suman a las luchas permanentes e incon-
trolables que venimos tejiendo contra la opresión del sistema patriarcal,
capitalista y colonialista.
Enaltecemos las luchas y resistencias de las mujeres que trabajan a nivel
local construyendo nuevas narrativas y reescribiendo la historia de las
poblaciones marginalizadas, manifestando la diversidad y multicultu-
ralidad de los pueblos, la solidaridad como estrategia de subversión del
sistema actual y como estrategia de humanización, contribuyendo así para
la transformación de las sociedades, haciéndolas más justas e iguales.
Es por todo ello y más, que nosotras, mujeres de la Marcha Mundial de las Mu-
jeres, como movimiento de acción permanente, marcharemos este 8 de Marzo.5

5 https://tribunafeminista.elplural.com/2018/03/declaracion-internacional
-de-la-marcha-mundial-de-las-mujeres/

236
La serie de manifiestos, declaraciones y documentos de las mujeres
feministas, mujeres en lucha, mujeres en marcha y en protesta, son un
acervo de una teoría que va tomando cuerpo y ha ido floreciendo en po-
sicionamientos que desde lo local retoman toda una plataforma crítica
antisistémica. Son, de alguna manera, las nuevas formas de hacer teoría
acuerpada en el movimiento, dejando ver un sujeto político múltiple,
diverso, translocal, el sujeto político de los feminismos y de las mujeres
que luchan. El siguiente documento es también producto de una alianza
transnacional, norte-sur, que propone, así como la marcha, otra herra-
mienta de lucha, la huelga. Pongo algunos fragmentos:
Manifiesto 8M 2018
JUNTAS SOMOS MÁS. Cada 8 de Marzo celebramos la alianza
entre mujeres para defender nuestros derechos conquistados. Fue la
unión de muchas mujeres en el mundo, la que consiguió grandes
victorias para todas nosotras y nos trajo derechos que poseemos hoy.
Nos precede una larga genealogía de mujeres activistas, sufragistas
y sindicalistas. Las que trajeron la Segunda República, las que lu-
charon en la Guerra Civil, las que combatieron al colonialismo y las
que fueron parte las luchas anti-imperialistas. Sin embargo, sabemos
que aún no es suficiente: queda mucho por hacer y nosotras seguimos
luchando.
La sororidad es nuestra arma; es la acción multitudinaria la que nos
permite seguir avanzando.
La fecha del 8 de marzo es nuestra, internacional y reivindicativa.
Hoy, 8 de Marzo, las mujeres de todo el mundo estamos convocadas
a la HUELGA FEMINISTA.
Nuestra identidad es múltiple, somos diversas. Vivimos en el entorno
rural y en el entorno urbano, trabajamos en el ámbito laboral y en el
de los cuidados. Somos payas, gitanas, migradas y racializadas. Nues-
tras edades son todas y nos sabemos lesbianas, trans, bisexuales, inter,
queer, hetero... Somos las que no están: somos las asesinadas, somos
las presas. Somos TODAS. Juntas hoy paramos el mundo y gritamos:
¡BASTA! ante todas las violencias que nos atraviesan. […..]
¡BASTA! De violencias machistas, cotidianas e invisibilizadas,
que vivimos las mujeres sea cual sea nuestra edad y condición. QUE-
REMOS poder movernos en libertad por todos los espacios y a todas

237
horas. Señalamos y denunciamos la violencia sexual como expresión
paradigmática de la apropiación patriarcal de nuestro cuerpo, que
afecta de modo aún más marcado a mujeres en situación de vul-
nerabilidad como mujeres migradas y trabajadoras domésticas. Es
urgente que nuestra reivindicación Ni una menos sea una realidad.
¡BASTA! De opresión por nuestras orientaciones e identidades
sexuales! Denunciamos la LGTBIfobia social, institucional y labo-
ral que sufrimos muchas de nosotras, como otra forma de violencia
machista. Somos mujeres y somos diversas.
¡MUJERES LIBRES, EN TERRITORIOS LIBRES!
Somos las que reproducen la vida. El trabajo doméstico y de cuida-
dos que hacemos las mujeres es imprescindible para el sostenimiento
de la vida. Que mayoritariamente sea gratuito o esté devaluado es
una trampa en el desarrollo del capitalismo. Hoy, con la huelga de
cuidados en la familia y la sociedad, damos visibilidad a un trabajo
que nadie quiere reconocer, ya sea en la casa, mal pagado o como
economía sumergida. Reivindicamos que el trabajo de cuidados sea
reconocido como un bien social de primer orden, y exigimos la re-
distribución de este tipo de tareas.
Hoy reivindicamos una sociedad libre de opresiones, de explotación
y violencias machistas.
Llamamos a la rebeldía y a la lucha ante la alianza entre el patriarca-
do y el capitalismo que nos quiere dóciles, sumisas y calladas.
No aceptamos estar sometidas a peores condiciones laborales, ni
cobrar menos que los hombres por el mismo trabajo. Por eso, hoy
también hacemos huelga laboral.
Huelga contra los techos de cristal y la precariedad laboral, porque
los trabajos a los que logramos acceder están marcados por la tem-
poralidad, la incertidumbre, los bajos salarios y las jornadas parciales
no deseadas. Nosotras engrosamos las listas del paro. Muchos de los
trabajos que realizamos no poseen garantías o no están regulados. Y
cuando algunas de nosotras tenemos mejores trabajos, nos encontra-
mos con que los puestos de mayor salario y responsabilidad están co-
pados por hombres. La empresa privada, la pública, las instituciones
y la política son reproductoras de la brecha de género.
[….]

238
Exigimos también las pensiones que nos hemos ganado. No más pen-
siones de miseria, que nos obligan a sufrir pobreza en la vejez. Pe-
dimos la cotitularidad de las pensiones y que el tiempo dedicado a
tareas de cuidado, o que hemos desarrollado en el campo, sea reco-
nocido en el cálculo de las pensiones al igual que el trabajo laboral y
luchamos por la ratificación del convenio 189 de la OIT que regula
el trabajo doméstico.
Gritamos bien fuerte contra el neoliberalismo salvaje que se impone
como pensamiento único a nivel mundial y que destroza nuestro
planeta y nuestras vidas. Las mujeres tenemos un papel primordial
en la lucha contra del cambio climático y en la preservación de la
biodiversidad. Por eso, apostamos decididamente por la soberanía
alimentaria de los pueblos. Apoyamos el trabajo de muchas com-
pañeras que ponen en riesgo su vida por defender el territorio y sus
cultivos. Exigimos que la defensa de la vida se sitúe en el centro de la
economía y de la política.
Exigimos ser protagonistas de nuestras vidas, de nuestra salud y de
nuestros cuerpos, sin ningún tipo de presión estética. Nuestros cuer-
pos no son mercadería ni objeto, y por eso, también hacemos huelga
de consumo. ¡Basta ya de ser utilizadas como reclamo!
Exigimos también la despatologización de nuestras vidas, nuestras
emociones, nuestras circunstancias: la medicalización responde a in-
tereses de grandes empresas, no a nuestra salud. ¡Basta de considerar
nuestros procesos de vida como enfermedades!
La educación es la etapa principal en la que construimos nuestras
identidades sexuales y de género y por ello las estudiantes, las maes-
tras, la comunidad educativa y todo el movimiento feminista exigi-
mos nuestro derecho a una educación pública, laica y feminista. Libre
de valores heteropatriarcales desde los primeros tramos educativos,
en los que las profesoras somos mayoría, hasta la universidad. Rei-
vindicamos también nuestro derecho a una formación afectivo-se-
xual que nos enseñe en la diversidad, sin miedos, sin complejos, sin
reducirnos a meros objetos y que no permita una sola agresión ma-
chista ni LGTBIfóbica en las aulas.
[….]
¡VIVAN LA HUELGA DE CUIDADOS, DE CONSUMO,

239
LABORALY EDUCATIVA! ¡VIVA LA HUELGA FEMINISTA!
Ninguna mujer es ilegal. Decimos ¡BASTA! al racismo y la exclusi-
ón. Gritamos bien alto: ¡No a las guerras y a la fabricación de ma-
terial bélico! Las guerras son producto y extensión del patriarcado
y del capitalismo para el control de los territorios y de las personas.
La consecuencia directa de las guerras son millares de mujeres refu-
giadas por todo el mundo, mujeres que estamos siendo victimizadas,
olvidadas y violentadas. Exigimos la acogida de todas las personas
migradas, sea por el motivo que sea. ¡Somos mujeres libres en ter-
ritorios libres!
[…..]
¡NOS QUEREMOS LIBRES, NOS QUEREMOS VIVAS, FE-
MINISTAS, COMBATIVAS Y REBELDES!
Hoy, la huelga feminista no se acaba:%¡SEGUIREMOS HASTA
CONSEGUIR EL MUNDO QUE QUEREMOS!6
Los encuentros entre mujeres tienen una tradición diversa según
cada país. En Argentina lleva años de realizarse, conjuntando una po-
derosa alianza entre mujeres trabajadoras, militantes feministas, jóvenes
y mujeres mayores. Ha sido fundamental para el poderoso movimiento
de mujeres en argentina, que acuerpa una multiplicidad de luchas y que
nos ha hecho ver las más impactantes movilizaciones de mujeres y su
incidencia en el legislativo y en la cultura del país, dejándose ver incluso
en la cultura masculina. México no ha tenido esa tradición. Los encuen-
tros feministas se han sucedido, y también ha habido algunas convoca-
torias a un frente más amplio. Sin embargo, a partir del llamado de las
mujeres zapatistas en el 2018, con el Encuentro Internacional Político,
Cultural y Deportivo de Mujeres que Luchan, en el Caracol Morelia de
territorio zapatista, y que aglutinó a cerca de 7000 mujeres de casi todo
el planeta, se han sumado más convocatorias destinadas a tejer la lucha
local contra los distintos despojos que hoy vivimos en México, a través
de las convocatorias hechas por el Congreso Nacional Indígena, CNI, y
las concejalas que son parte del Concejo Indígena de Gobierno.7
6 http://hacialahuelgafeminista.org/
7 El Congreso Nacional Indígena se funda en el año 1996, como resultado del
movimiento que en torno al zapatismo se va articulando entre los pueblos y naciones
indígenas en el país. En el año 2018 el EZLN y el Congreso Nacional Indígena deciden

240
La vocación de género, es decir, una política de visibilización y
participación de las mujeres indígenas, ha estado presente desde el inicio
del movimiento del EZLN. Muy pronto se dejaron ver las declaraciones
de las insurgentes, y la incidencia de las mujeres indígenas como coman-
dantas del cuerpo político del EZLN. El día del alzamiento, primero
de enero de 1994, se dan a conocer una serie de leyes revolucionarias,
una de las cuáles es la Ley de Mujeres. En sucintos 10 puntos, esa ley
posiciona a las mujeres indígenas en relación al Estado, a la comunidad
y a la organización revolucionaria. Haciendo un encabalgamiento entre
estado-patrón-esposo-padre-estructuras comunitarias de género-reco-
nocimientos y grados de la organización revolucionaria, las mujeres van
estableciendo sus derechos como “mujeres que somos”, derechos a ser
respetadas, a no ser intercambiadas ni golpeadas, pero también a ser re-
conocidas por el estado nación como sujetos plenos políticamente, y en
sus diferencias de lengua, vestido, costumbre, así como capaces de tener
grado militar en la organización. Esta ley se consenso en las comunida-
des al menos un año antes de ser parte de las leyes revolucionarias que
tocan temas como trabajo, tenencia de la tierra, educación.8
A partir de ahí, la serie de declaraciones del vocero del movimien-
to, Subcomandante Marcos, relativos a las mujeres indígenas en lo par-
ticular, son constantes. En el año 2007 se llama al primer encuentro de
mujeres en la selva lacandona. Las imágenes de las mujeres indígenas
zapatistas proliferan, en sus tres niveles de participación: las insurgentes,
las comandantas y las mujeres indígenas de las comunidades.
Pero es en 2018 que el zapatismo se encadena con las acciones que
desde el 2015 empezamos a ver en distintas localidades a nivel global, al
hacer el llamado internacional de Mujeres que Luchan. Lo interesante
de su convocatoria es que se apertura a actividades culturales y depor-
tivas, y posiciona en la discusión política la idea de unidad – somos
bosque – dentro de la diferencia, de la violencia compartida, y de señalar
conformar un Concejo Indígena de Gobierno, CIG, que propone una vocera como
contendiente a las elecciones presidenciales en México 2018.
8 El Despertador Mexicano Periódico publicado por EZLN en donde da a conocer
la declaración de Guerra en el texto: Declaración de la Selva Lacandona. Hoy decimos
¡basta! Y se incluyen una serie de leyes revolucionarias. Se da a conocer el 1 de enero de
1994 pero esta fechado el 1 de diciembre de 1993. http://movimientosarmados. colmex.
mx/files/docs/G81.pdf.

241
entre toda la diversidad de mujeres las causas que provocan nuestras
rabias y dolores. El encuentro fue multitudinario y fue el primero que
realizan sólo mujeres zapatistas, sin intervención de varones. Fue tambi-
én un encuentro de juventudes. La asistencia confirma la fuerza que aún
tiene el zapatismo a nivel internacional. La declaratoria de cierre es muy
interesante porque muestra las tensiones que se producen entre culturas
urbanas e indígenas, y se dice que aún falta para identificar bien la lucha
anticapitalista.9

3. ¿Un nuevo sujeto político, una nueva forma de revolución?


Lo que he querido mostrar hasta acá es la apertura de un campo
de teoría y praxis de mujeres, interseccional, intergeneracional, inter-
cultural y antisistémico. Ese campo se ha venido construyendo desde
hace tiempo, tiene genealogías y trayectorias disímiles, pero se ha ido
encontrando en espacios globales. Las redes sociales han sostenido un
diálogo que después se acuerpa en experiencias conjuntas. Se está cre-
ando una narrativa y un discurso, donde partes del movimiento más
permeables que otras para diferentes intersecciones de la lucha apor-
tan a una plataforma común. Eso se observa en los dos manifiestos
expuestos más arriba. Según la localización de las enunciaciones se va
generando un entendimiento de lo común. Cada “nodo” se hace poroso
a su manera, de las diferentes intersecciones locales y globales. Y así,
demandas sectoriales pierden su particularismo al encadenarse a otras
demandas de facetas distintas de un solo sujeto, multidinámico, plural,
y que se va definiendo cada vez con mayor claridad como anticapita-
lista, anticolonial y antipatriarcal. Rita Segato visualiza en estos pro-
cesos “una política en clave femenina” que significa la acción de retejer
comunidad con un cosmos propio y contrario al proyecto histórico del
capital.
Un mundo en plural es un mundo probablemente no republicano,
pero sí más democrático. Necesitamos recuperar lo que restó y
existe en nuestros paisajes, después del gran naufragio, para retirar
de allí el formato de un nuevo estilo de política para el futuro. Al

9 Se puede consultar en: https://enlacezapatista.ezln.org.mx/2018/03/10/palabras-de-


las-mujeres-zapatistas-en-la-clausura-del-primer-encuentro-internacional/.

242
hacerlo, tendremos que ir componiéndole su retórica, es decir, las
palabras que nombran y confieren valor discursivo a este proyecto
femenino y comunitario, con su historia propia y sus tecnologías
de sociabilidad, pues solo ese discurso de vinculación podrá de-
fendernos de una retórica tan poderosa como es la del valor de los
bienes y la cosificación de la vida (SEGATO, 2018).
En voz de las mujeres indígenas participantes de los Encuentros
de Mujeres del CNI que desde 2018 se llevan a cabo, esto se registra y
traduce de la siguiente forma:
DECLARATORIA final del Primer Encuentro Nacional de Muje-
res del CNI y el CIG, 30 de Julio 2018 10
Reunidas mil cien mujeres indígenas y mestizas del campo y de la
ciudad de nuestro país de los Pueblos Originarios: Nahua, Toto-
naca, Otomí, Ñûhu/Otomì, Zapoteco, Maya-Yucateco, Popoluca,
Hñahñu/Otomì, Tsotsil, Tzeltal, Chol, Purépecha y Mazahua de
los estados de Aguascalientes, Baja California, Ciudad de México,
Chiapas, Chihuahua, Coahuila, Estado de México, Guanajuato,
Guerrero, Hidalgo, Jalisco, Michoacán, Morelos, Nayarit, Nuevo
León, Oaxaca, Puebla, Querétaro, San Luis Potosí, Sinaloa, Ta-
maulipas, Tlaxcala, Veracruz, Yucatán y Zacatecas; así y como visi-
tas del Kurdistán y de países como Alemania, Argentina, Austria,
Brasil, Chile, Colombia, Costa Rica, Ecuador, Estado Español,
Estados Unidos, Francia, Guatemala, Italia, Noruega, País Vasco,
Perú, Uruguay y Venezuela, en la comunidad indígena Hñähñu
de San Lorenzo Nenamicoyan, Estado de México, para celebrar
el ENCUENTRO NACIONAL DE MUJERES convocado por
la Comisión de Mujeres del Concejo Indígena de Gobierno para
México del CONGRESO NACIONAL INDÌGENA con los si-
guientes objetivos:
Tejer redes nacionales e internacionales de mujeres comprometidas
con la lucha anticapitalista y antipatriarcal de abajo y a la izquierda.
Reflexionar para llevar a la acción los nueve temas de trabajo del Con-
sejo Indígena de Gobierno desde nuestra visión como mujeres rebeldes.

10 https://www.congresonacionalindigena.org/2018/07/30/declaratoria-final-
del-primer-encuentro-nacional-de-mujeres-del-cni-y-el-cig/.

243
Intercambiar nuestras experiencias de lucha para seguir articulando
nuestra organización como mujeres anticapitalistas y antipatriarcales.
Generar acuerdos y acciones concretas que permitan seguir tejiendo
esta red de mujeres.
Nos declaramos como mujeres en lucha contra el patriarcado, el ca-
pitalismo neoliberal y el neocolonialismo, con la convicción de que,
si las mujeres no nos liberamos de la esclavitud, la sociedad nunca
será libre.
Nos enfrentamos al reto de no reproducir las relaciones de poder pa-
triarcales entre nosotras y valorarnos todas como sujetas de nuestras
propias vidas, con mucho respeto.
Reconocemos nuestras diversidades y estamos convencidas de que
para construir este mundo donde quepan muchos mundos que soña-
mos, será posible si incluimos todas estas diversidades.
Reconocemos que las sociedades estamos constituidas por mujeres,
hombres y personas de identidades sexuales diversas, todas igual-
mente importantes y necesarias en el proceso de construcción de
una sociedad anticapitalista, antipatriarcal de abajo y a la izquierda.
Desconocemos esta sociedad capitalista y patriarcal que nos ha “co-
sificado” y se ha alimentado de nuestras esperanzas y de nuestros
sueños.
Declaramos que la participación de la mujer en todos los ámbitos de
la vida es imprescindible.
Declaramos todas las mujeres que nos reunimos estos dos días que
los acuerdos tomados en las mesas de los nueve grupos de trabajo
del CIG: Tierra y Territorio, Autonomía, Mujeres, Jóven@s y niñ@s,
Diversidad sexual, Justicia, Personas con discapacidad, Migrantes,
Trabajo y explotación, serán parte fundamental para fortalecer nues-
tro quehacer cotidiano, organizativo y de lucha para lograr nuestro
florecimiento como pueblos, comunidades, barrios y colonias.
Desde abajo y a la izquierda
Por una sociedad anticapitalista, antipatriarcal y anticolonial
Nunca más un México sin nosotras.

244
Bibliografía
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90 y retos para el nuevo milenio”, en Arturo Escobar, Sonia E. Álvarez y Evelina Dagni-
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SEGATO, Laura Rita. “Manifiesto en cuatro temas”. Revista Critical Times, Inter-
ventions in glogal Critical Theory. Volume 1, Issue 1, 2018. pp. 212-225.

245
Entrevista1
‘‘Debemos crear otros conceptos que generen
un desplazamiento profundo de lo que ahora
describimos como feminismo hegemónico.”

Mariana Mora Bayo

Mariana Mora Bayo (Ciudad de México, 1973) es profesora e


investigadora del Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en
Antropología Social (CIESAS) en la Ciudad de México desde 2011.
Es doctora en Antropología por la Universidad de Texas, Austin, y ma-
estra en Estudios Latinoamericanos por la Universidad de Stanford.
Es autora del libro Kuxlejal politics, indigenous autonomy, race and deco-
lonizing research zapatista communities, University of Texas Press (2017)
y co-coordinadora de Luchas “muy otras: zapatismo y autonomía en las
comunidades indígenas de Chiapas (2011), entre otras publicaciones. Sus
áreas de interés incluyen los movimientos sociales; la formación del es-
tado y el colonialismo; el género, la raza y la racialización; los derechos
humanos, y las metodologías feministas descoloniales. Su investigación
más reciente tiene que ver con los nuevos procesos de racialización y
racismo como parte de procesos neocoloniales del Estado mexicano en
contextos de extrema violencia y construcciones de justicia desde otras
epistemologías. Forma parte de la Red de Feminismos Descoloniales y
de la Red de Investigación Acción Anti-Racista.
¿Podría hacernos una cartografía de los feminismos latinoamericanos en
estos últimos años? ¿Cuáles son las propuestas que cuentan con una mayor
visibilidad y cuáles son los principales debates?
Comenzaré hablando del caso de México para posteriormente
dialogar con feminismos de otros países latinoamericanos, particular-
mente en Guatemala, en Brasil, en Bolivia y en Colombia. En Méxi-
co, prefiero centrarme en los feminismos no hegemónicos puesto que
éstos cuestionan el feminismo de la clase media urbana blanca. Los

1 Entrevista realizada na cidade do México em 17 de agosto de 2018, concedida a Luis


Martínez Andrade, originalmente publicada no livro Feminismo a la contra: entre-vistas
al sur global, e gentilmente cedida pela Editora La Vorágine.

247
feminismos no hegemónicos tuvieron un punto de inflexión sumamen-
te importante en el movimiento zapatista, empezando en 1994. Por
supuesto, antes ya se estaban gestando críticas relevantes que provenían
de distintas corrientes del feminismo, muchas de ellas influenciadas por
el feminismo marxista. Gisela Espinosa, profesora de la Universidad
Autónoma Metropolitana (UAM), en su libro las Cuatro Vertientes del
Feminismo en México detalla una genealogía de los diferentes feminis-
mos de este último medio siglo en el país: una corriente dominante,
una popular, una corriente que ella define como el feminismo civil que
proviene sobre todo de organizaciones no gubernamentales, y una cor-
riente que surge desde mujeres indígenas (hay que reconocer que este
genealogía no incluye el importante papel de las mujeres afro mexica-
nas y afro indígenas en México). Si bien es cierto que la corriente del
feminismo popular produjo un quiebre frente al feminismo de clase
media urbano, su posicionamiento se da sobre todo desde una diferen-
cia de clase, sus críticas y contribuciones influenciadas principalmente
por feministas marxistas. Pienso por ejemplo en intelectuales y lucha-
doras sociales tan relevantes para entender el feminismo en México
como Mercedes Olivera Bustamante2, que con el paso del tiempo y
después de escuchar los cuestionamientos de campesinas que también
son indígenas empieza a complejizar sus posturas para incluir, como se
decía en ese entonces, diferencias étnicas. Sin embargo, es sobre todo
con el zapatismo cuando estas críticas incipientes empiezan a concre-
tarse en enunciados políticos y demandas elaboradas colectivamente
por mujeres indígenas en el país.
Dichos planteamientos políticos se han ido consolidando a través
de debates y discusiones sumamente ricos no solo entre mujeres bases
de apoyo zapatista, sino en organizaciones de mujeres indígenas como
la Coordinadora Nacional de Mujeres Indígenas (CONAMI). En el
último año se nota un nuevo giro en los planteamientos políticos de
estos colectivos, sobre todo en torno a la movilización para registrar a

2 Olivera Bustamante, Mercedes, De sumisiones, cambios y rebeldías. Mujeres indígenas


de Chiapas, Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología, Universidad de Ciencias y Artes
de Chiapas, Universidad Autónoma de Chiapas, México, 2004. Véase también, Mariana
Mora, “Aportaciones a una genealogía feminista: La trayectoria política-intelectual de
Mercedes Olivera Bustamante”, Desacatos, (31), 2009, pp. 159-164.

248
Marychuy3 como candidata independiente a la presidencia. Como parte
de sus planteamientos contra los despojos territoriales, la violencia y po-
líticas extractivistas, ella empieza a describir relaciones de desigualdad a
partir de racismo. Por supuesto, no es que no se haya hablado de racismo
antes, sino que ahora se habla abiertamente de racismo, con el uso del
término. Los enunciados de colectivos de mujeres indígenas generan una
diferenciación importante respecto a un análisis limitado de clase de los
llamados feminismos populares; desde el zapatismo mujeres campesinas
insisten: “Sí, pero además somos indígenas”. La propuesta de los pueblos
indígenas por la autonomía obliga a los distintos tipos de feminismos a
tomar posición frente sus exigencias y a redimensionar la categoría de
género en relación a desigualdades étnico raciales y de clase.
Las luchas por la autonomía de los pueblos indígenas provocan un
giro relevante en el debate público y, por tanto, los feminismos tuvieron
que posicionarse en relación a dichos cambios. En los feminismos más
dominantes hubo una serie de cuestionamientos que se irán vinculando
a las mismas críticas que tuvieron sectores de la clase política frente a la
demanda por la autonomía indígena, cuestionamientos que tienen como
trasfondo ponderar los derechos individuales en relación a los derechos
colectivos. Algunas mujeres que se adhieren al feminismo dominante se
posicionaron en contra del reconocimiento de los derechos colectivos
de los pueblos indígenas bajo el argumento que las mujeres indígenas
iban a ser violentadas porque sus hombres, al no estar sujetos a las reglas
y normas del Estado, iban a hacer con ellas lo que les diera en gana.
Reprodujeron en sus argumentos una de las representaciones dominan-
tes y (neo) coloniales sobre las llamadas mujeres del tercer mundo que
Chandra Talpade Mohanty describe cuando se etiqueta como la eterna
víctima de sus hombres4. Los mismos argumentos los reprodujeron se-
nadores y diputados. Por ejemplo, en el Congreso de la Unión en marzo
de 2001 – cuando se discutía el contenido de las iniciativas de ley en
3 María de Jesús Patricio Martínez (1963). Vocera representante indígena para las
Elecciones federales de 2018, candidatura apoyada además por el Ejército Zapatista de
Liberación Nacional (EZLN).
4 Véase, Chandra Talpade Mohanty, “Bajo los ojos de Occidente: academia feminista
y discursos coloniales”, en Liliana Suárez Navaz y Rosalva Aída Hernandez (eds.),
Descolonizando el feminismo: Teorías y prácticas desde los márgenes, Cátedra, Valencia,
2008, pp. 117-163.

249
materia de derechos y cultura indígena – preguntaban si los derechos
colectivos iban a permitir que los hombres violentaran a sus mujeres
indígenas.
Pero otro sector de los feminismos no hegemónicos se empezó
a preguntar: ¿de qué manera las mujeres indígenas están redefiniendo
los debates?, ¿cuáles son los elementos que ellas están colocando en el
centro?, ¿cómo tendríamos que construir alianzas feministas entre mu-
jeres indígenas y mestizas (en ese entonces se excluía de la discusión a
las mujeres afro mexicanas)? Llámenlo o no feminismo (no todas las
mujeres zapatistas o mujeres indígenas cercanas al zapatismo o parte del
Congreso Nacional Indígena se identifican como feministas) están rea-
lizando cuestionamientos profundos a las estructuras del poder a partir
de una perspectiva de género. Un planteamiento que tiene esa mirada
como base y lucha por desmantelar las jerarquías que se sustentan en de-
sigualdades entre los hombres y las mujeres, se puede considerar como
una crítica feminista, aunque no utilice ese concepto.
En la ponencia de la comandanta Esther, mujer tzeltal y zapatista,
en el Congreso de la Unión en 2001, ella habla de sus anhelos contra las
opresiones que ellas y otras han vivido por ser mujeres, indígenas y po-
bres. Lo que encuentra un eco importante para feministas mestizas tra-
tando de aliarse con las mujeres indígenas es aproximarse a las relaciones
de opresión y luchas de liberación a partir de esa “interseccionalidad”.
El tipo de enunciados elaborados por mujeres como la comandante
Esther abre una serie de debates entre mujeres indígenas y entre mu-
jeres mestizas sobre cómo transformar las relaciones de desigualdad no
solo frente al Estado o a los hombres, sino entre ellas misma. Ante este
desafío yo tengo una crítica a las aproximaciones políticas de una parte
importante de las feministas mestizas en ese entonces. En un momento
en que los debates en torno a las multiculturalidad y la interculturalidad
influenciaban fuertemente el debate público, predominaban propuestas
sobre cómo establecer alianzas a través de y respetando las diferencias
culturales, sin una discusión profunda sobre cómo los privilegios raciales
y el racismo forman parte de las relaciones de poder; se discutía muy
poco sobre cómo la racialización inferioriza a mujeres indígenas y re-
fuerza las posiciones relativas de privilegio de mujeres mestizas, sobre
todo profesionales de clase media urbana. Creo que allí radican algunas

250
capacidades e incapacidades de escucha por parte de diversos sectores
de grupos feministas en México: una capacidad reflejada en un compro-
miso profundo y genuino de repensar presupuestos del feminismo; una
incapacidad que proviene en parte de la permanente resilencia de la ide-
ología del mestizaje que desplaza discusiones sobre el racismo en el país.
Al mismo tiempo y de manera paralela, el fortalecimiento de los
pueblos indígenas como actores políticos en el país provoca una serie de
debates al interior de los grupos de mujeres indígenas quienes, frente a
las posturas de un sector predominante de la clase política y de muchas
feministas hegemónicas, defienden los reclamos de sus pueblos por la
autonomía al decir: “Nuestra lucha es inseparable de la autonomía de
nuestros pueblos”. Aquí surge un desafío creativo fundamental: ¿Cómo
luchar de manera simultánea por la autonomía y por la reconfiguraci-
ón de las relaciones de género? Muchas mujeres indígenas se refieren al
andar “parejo”, a la necesidad de caminar parejo, juntos. Por ejemplo, en
las comunidades zapatistas se habla “del parejo”. Allí el debate en torno
al andar “parejo” se aproxima a lo que mujeres indígenas en otros países
como Guatemala se refieren como complementariedad y en Bolivia don-
de mujeres Aymara hablan del “Chacha-warmi”5, como la dualidad que
establece las relaciones entre hombres y mujeres. Surge la pregunta: ¿a
qué se refieren con “caminar parejo” cuando hay relaciones asimétricas
de poder al interior de las comunidades? Una crítica al esencialismo que
predomina en algunas corrientes antropológicas y, por supuesto, en las
ciencias sociales en general, radica en entender a qué se refiere uno con
esta idea de “complementariedad” y de qué manera contempla las profun-
das relaciones desiguales de poder. La tensión radica en que no se trata de
que la mujer ande por su lado y el hombre por el suyo, sino en reconocer
que a pesar de esas desigualdades (que se tienen que transformar) existe
una necesidad de interdependencia, no solo entre hombres y mujeres,
sino sobre todo entre la producción de feminidades y masculinidades.
Una parte de los debates recientes que han abierto algunas femi-
nistas afrodescendientes e indígenas radica en colocar la interdependen-
cia del cuidado entre individuos, incluyendo entre hombres y mujeres,

5 El Chacha-warmi (hombre-mujer) es un concepto utilizado en la cosmovisión andina


en general y especialmente en las culturas aymara, quechua y uru referido al código de
conducta basado en el principio de dualidad y de lo complementario.

251
como propuesta política radical: la autonomía no es la autonomía del
individuo, sino que se trata de establecer relaciones basada en una inter-
dependencia del cuidado entre sujetos y con el medioambiente. Frente a
las olas de violencia extrema, frente al despojo, frente a estos giros hacia
un (neo) fascismo y políticas de extrema derecha, proponen construir
comunidades de vida a partir de la interdependencia del cuidado mutuo
como un proyecto radical de transformación. Pienso que la complemen-
tariedad y el “andar parejo” insiste en que el feminismo no es algo que
transcurre por su lado, no se trata sólo de la liberación de las mujeres,
sino también de la liberación de los pueblos y, por tanto, la propuesta
del zapatismo de construir autonomías entabla una transformación pro-
funda en las relaciones entre hombres y mujeres e incide en las diversas
construcciones de feminidades y de masculinidades. La idea de “andar
parejo” significa que la liberación de las mujeres deberá ir acompañada
de la liberación del hombre y que dicha transformación está basada en
la noción de cuidado: “Si tú me cuidas a mí, yo te cuido a ti, cuidamos
la tierra juntos”. Frente a las políticas de muerte, este “andar parejo” fo-
menta políticas de vida, comunidades de vida, lo que comunidades afro-
colombianas en la región del Chocó denominan como redes de vida6.
Por consiguiente, pienso que, en estos últimos veinte años, la “au-
tonomía” en este tipo de discusiones y cuestiones se relaciona con los
feminismos comunitarios que se alejan de un feminismo que concibe a
la comunidad como una suma de individuos para insistir en un femi-
nismo que tiene como núcleo la colectividad. El feminismo liberal dice:
“Una mujer, más dos, más três... somos tantas mujeres haciendo estos
reclamos”. Sin embargo, el feminismo comunitario dice: “El núcleo no
es un individuo, sino la colectividad”. Pienso que el “andar parejo” como
un concepto filosófico plantea el feminismo desde otro punto de partida
porque concibe la liberación de las mujeres imbricada con la liberación
de los pueblos, incluyendo con los hombres, y que se sustenta en otra
serie de principios éticos. Dicha discusión que se está llevando a cabo
entre mujeres indígenas de Latinoamérica me parece muy importante.
Pienso que esto también está trascendiendo la noción de “intersecciona-
lidad” puesto que estamos frente a una nueva filosófica política y nuevas
acciones políticas desde lo femenino.
6 Arturo Escobar.

252
Por otra parte, considero que la explosión de la violencia extrema
de los últimos doce años en México, las mismas que se viven en otras la-
titudes de Latinoamérica, necesariamente provoca otro punto de infle-
xión importante para los feminismos. ¿Cómo se han posicionado estos
feminismos frente a la maquinaria de muerte que está destruyendo al
país? Si bien las movilizaciones entorno a la autonomía indígena obligó
a los feminismos a posicionarse políticamente y replantearse muchos
supuestos, ahora nuevamente se está dando una reconfiguración de los
feminismos frente a estas políticas de muerte. Con los asesinatos, las de-
sapariciones y los feminicidios, algunos feminismos desde los márgenes
han recuperado y reformulado los horizontes políticos expresados en las
demandas por la autonomía para insistir que la lucha hoy en día se re-
fiere a tejer y fortalecer redes de vida frente a una maquinaria de muerte.
Por ejemplo, esta idea de “andar parejo” como un cuidado colectivo, una
interdependencia en colectivo genera comunidades de vida. De hecho,
mi libro sobre el zapatismo y la autonomía indígena lleva por título
“Política Kuxlejal” ya que “Kuxlejal”, en tzeltal, significa vida. Frente a
un estado racista, se trata de entender lo cotidiano como una política de
vida, la autonomía como una política de vida colectiva estrechamente
vinculada a un territorio. Me parece que parte de las aportaciones de las
mujeres indígenas al quehacer político, más allá de la perspectiva liberal
de la acción individual, ha sido la manera como se crean y se fomentan
estas comunidades de vida ¿Cómo defendemos la vida frente a las po-
líticas de muerte? No sólo se trata de defenderse frente al narcotráfico,
sino también frente a las políticas extractivistas, al despojo, a lo que
extrae la fuerza vital del cuerpo social y de la tierra.
Si bien las políticas estatales de muerte no son fenómenos nue-
vos para comunidades y regiones indígenas, a partir de 2006, durante
el gobierno de Felipe Calderón, la violencia adquiere otra dimensión y
se intensifica en México. El trabajo de mujeres que han luchado con-
tra el feminicidio, donde se encuentran las aportaciones de Rita Laura
Segato y de Sayak Valencia, contribuye a entender la dinámica de esta
maquinaria de muerte vinculada a la lógica del capital. La profundi-
dad de la relación entre la violencia extrema y las lógicas del capital
en la actualidad no se entienden en la densidad de sus capas sino se
leen desde la forma en que operan sobre el cuerpo de la mujer, sobre

253
todo mujeres racializadas como inferiores. Valencia argumenta que no
se puede entender la violencia extrema en México sino se entiende la
producción de hípermasculinidades y el fenómeno del macho herido.
Cuando el neoliberalismo empuja a los hombres hacia una precarizaci-
ón absoluta, no pueden cumplir con su papel esencial de proveedores e
intentan recuperar este papel asignado a la masculinidad tóxica a través
de actos violentos. Las políticas neoliberales, al dejarlos incapaces de
cumplir su papel de proveedores, los arrincona a llenar el vacío de este
lugar asignado. La saña expresada en actos de violencia extrema muestra
una hípermasculinidad que pretende controlar, dominar, muchas veces
destruyendo con saña un territorio-cuerpo. Aquí es pertinente lo que
señala Rita Laura Segato: que el cuerpo de la mujer se convierte en el
lienzo en que se inscribe y se escribe esta nueva época. Los feminicidios
no están al margen de la violencia de estado, no son un exceso de esa
violencia, sino son un eje rector, son un acto comunicativo de la violencia
actual vinculado a un estado patriarcal, por lo mismo son un punto de
partida para entender la violencia estatal.
Dentro de este contexto de violencia extrema, el caso de los 43
estudiantes normalistas de Ayotzinapa desaparecidos la noche del 26 de
septiembre de 2014 abrió debates y posicionamientos contrario entre
algunos grupos feministas, pues un grupo de “feministas separatistas”,
a raíz de un artículo publicado por Dolores Casas7 en 2015, empezó a
decir que ellas no eran Ayotzinapa (en respuesta a los cientos de miles
de personas que en las calles gritaban “Yo soy Ayotzinapa” como parte
de las exigencias colectivas de justicia). Me parece una posición muy
problemática, pues sin comprender realmente la interseccionalidad, sos-
tenían que no eran Ayotzinapa porque [ellas] no son hombres pobres
provenientes del estado de Guerrero y, por consiguiente, no se podían
identificar con el dolor de los familiares de los desaparecidos. Fue un
pésimo uso de la “interseccionalidad” porque en lugar de invitar a la
comprensión, a la empatía, a tejer alianzas a partir de las diferencias, el
argumento justificó la falta de solidaridad, incluyendo [la solidaridad]
hacia las madres, esposas y hermanas de los desaparecidos. De hecho,
empezaron a cuestionar el por qué estos jóvenes tuvieron una cobertura

7 https://origenoticias.com/nosotras-no-somos-ayotzinapa-y-por-eso-ustedes-no-
nos-lloran/

254
mediática y empujaron a que tantas personas salieran a las calles, mien-
tras que los feminicidios de Ciudad Juárez y del Estado de México no
han causado tanta indignación. En vez de verlo como un punto de par-
tida para poder tejer diversas alianzas, las feministas separatistas repro-
dujeron una suerte de competencia entre las víctimas de los feminicidios
y las de los desaparecidos de Ayotzinapa. Incluso, durante algunas de las
marchas feministas, ellas pintaron alrededor de un “anti monumento”,
una escultura metálica que en color rojo dice 43+ colocada en un ca-
mellón de la avenida Reforma en la Ciudad de México donde personas
siembran maíz cada año, las letras “Yo no soy Ayotzinapa”.
En contraste, muchas nos estamos planteando qué papel debe asu-
mir el feminismo cuando esta máquina de muerte también destruye la
vida de hombres, sobre todos los que habitan condiciones de una po-
breza racializada. Las mismas herramientas analíticas y políticas que
utilizamos para entender las estructuras desiguales de poder que afectan
a las mujeres las podemos y – considero que – las debemos aplicar para
entender cómo el capitalismo gore lucra con la muerte y desaparición
de estos hombres. ¿De qué manera la maquinaria de muerte está pro-
duciendo tanto feminidades como masculinidades desechables? Desde
los feminismos contrahegemónicos no sólo hay que luchar por la libera-
ción de las mujeres, sino que también hay que acompañar a los varones
que forman parte de nuestras comunidades para que reconfiguren sus
formas de relacionarse con nosotras desde esa propuesta de fomentar
prácticas de cuidado mutuo que permiten sostener y tejer comunidades
de vida. Con la cantidad de desaparecidos que hay en el país – algo más
de 40.000 entre 2006 a 2018 –, me parece que esto es un elemento fun-
damental que deben discutir los feminismos.
Este tipo de planteamientos y propuestas surgen desde algunas
comunidades afrodescendientes, pienso en el caso brasileño donde mu-
chas madres se organizan frente a los asesinatos de sus hijos en las fave-
las o en grupos de mujeres-madres con hijos asesinados en Colombia, en
colonias como Aguablanca en la periferia de Cali. Hay una necesidad de
trabajar con los hombres y cuidar de su vida, exigir que cuiden las nues-
tras bajo los mismos principios, puesto que ellos también son nuestros
padres, hermanos e hijos. El asesinato de un varón afecta a la comunidad
entera y, por supuesto, a las mujeres. Un acto violento contra el cuerpo

255
de un varón afrodescendiente o indígena no solo atenta contra su vida
de un individuo sino la suma de estos actos como parte de un racismo
estructural atenta contra poblaciones enteras que han sido empujadas
sistemáticamente al margen de la comunidad política, llevándolas hacia
una mayor probabilidad de una muerte prematura (así la definición que
utiliza Ruth Gillmore para referirse a los efectos del racismo). Estas son
el tipo de propuestas que se está gestando en la prefiguración de comu-
nidades de vida ante estos escenarios de muerte.
Una de las principales figuras del feminismo latinoamericano, me refiero a
Breny Mendoza, plantea que no ha existido el feminismo latinoamerica-
no, ya que buena parte de las feministas de la clase media urbana estaban
más interesadas en seguir las conferencias internacionales fomentando su
“ONGización” y además porque estaban desprovistas de una teoría polí-
tica descolonial8 ¿Qué piensas de esta idea planteada por Mendoza? Por
otro lado, mientras que María Lugones plantea que el género es un ar-
tificio de la “colonialidad del poder” 9 , Rita Segato reconoce la existencia
de patriarcados de baja intensidad10… desde tus propias investigaciones
en antropología, ¿cuáles serían las consecuencias políticas de dicho debate?
Por un lado, coincido con Breny Mendoza en que, si pensamos
en el feminismo o en los feminismos desde los márgenes, quizá el fe-
minismo como concepto ha sido vaciado de su contenido original. Lo
mismo plantea Veronica Schild cuando señala que la profesionalización
del feminismo conduce a algunos sectores a dedicarse a diseñar, evaluar
y reformar políticas públicas del Estado a partir de una perspectiva de
género, este reenfoque convierte al feminismo en tecnicismos e indi-
cadores, no en propuestas de acción colectiva de transformación social
desde abajo. En ese sentido, la categoría “feminista” se queda corta y
delimita lo que estamos tratando de enunciar como un imaginario de
liberación, como una utopía, como horizontes políticos, como una ma-
nera de reformular por completo la acción política y el quehacer políti-
co, justo lo que hemos estado hablando en esta entrevista. ¿Qué aportan
mujeres a un análisis complejo del poder que nos pueda conducir hacia

8 Breny Mendoza, Ensayos de crítica feminista en nuestra América, Herder, México, 2014.
9 María Lugones, “Colonialidad y género”, Tabula Rasa, Colombia, 2008.
10 Rita Segato, La crítica de la colonialidad en ocho ensayos, Prometeo, Buenos Aires, 2015.

256
nuevos horizontes sociales? Esa es la apuesta, sobre todo, en un mo-
mento de tanta muerte y violencia. Hablar solo del patriarcado y de la
liberación de la mujer como el eje rector de la acción política, aunque
necesario, queda corto. Coincido con Breny Mendoza en que quizá hoy
el concepto feminismo, tal como ha sido vaciado de contenido radical
por esa ‘ONGenización’, no traduce y no ayuda a expresar cómo estamos
imaginando la transformación social desde nuevas formas de alianzas,
desde lo redistributivo radical, desde el anticolonialismo y antiracismo
como parte de una lucha contra la dominación de una masculinización
extremadamente tóxica.
Diría que los planteamientos que se están haciendo desde los fe-
minismos que cuestionan la permanencia de estructuras coloniales y que
cuestionan el racismo a partir de otras bases epistemológicas, incluso
ontológicas, van mucho más allá de lo que entendemos por feminismo,
en su sentido acotado. De hecho, creo que el feminismo como concepto
constriñe y delimita la dimensión de dichos planteamientos. En ese sen-
tido, coincido con Breny Mendoza, aunque quizás por razones distintas.
Por ello pienso que lo que se está gestando en esta última década en
Latinoamérica es una efervescencia de diálogo y de debate entre diver-
sos feminismos que rechazan esa ONGización de reclamos feministas.
A veces creo que no estamos en condiciones de realmente escuchar lo
que se está gestando en estos debates (y esto es también una autocríti-
ca) porque no logramos desplazar el feminismo hegemónico; seguimos
privilegiando el referente del feminismo dominante cuando seguimos
colocando ese feminismo dominante en el centro porque lo seguimos
convirtiendo en el referente para cuestionar o criticar. Es una autocrí-
tica porque justo eso he estado haciendo para describir otros feminis-
mos. Con frecuencia este énfasis en cuestionar el feminismo dominante
distrae nuestra concentración dedicada a escuchar y dialogar entre los
otros feminismos, por ende, corre el riesgo de producir silencios. Por
otro lado, creo que la categoría feminista está tan cargada que filtra y
enmarca qué puedes o qué no puedes decir, qué puedes o qué no puedes
escuchar de las diversas expresiones de lucha que vienen desde cuerpos
feminizados, y que se identifican como tales; quizás la categoría “femi-
nista” no logra transmitir esos horizontes políticos. Recuerda que hace
varias décadas la escritora afroamericana Alice Walker creó el concepto

257
de “womanism” para referirse a las políticas y planteamientos de mujeres
negras porque consideraba que “feminismo” era un concepto demasiado
cargado con las formas en que mujeres blancas en Estados Unidos ven y
actúan en el mundo. Quizás estamos en un momento en el que debemos
crear otros conceptos que puedan generar ese tipo de desplazamiento
profundo de lo que ahora describimos como un feminismo hegemóni-
co, blanco, ONGenizado, para poder dialogar entre otros referentes sin
tener que pasar necesariamente por aquel.
En lo que respecta a los aportes de las feministas en los deba-
tes descoloniales debo reconocer que los textos de María Lugones y de
Rita Laura Segato, aunque por razones distintas, son fundamental para
cuestionar los planteamientos de Aníbal Quijano respecto a la colonia-
lidad del poder y las imbricaciones entre raza y división del trabajo. Pero
también pienso en las contribuciones que vienen de autoras que contri-
buyen de manera novedosa a entender y cuestionar las relaciones entre
raza, género y la colonialidad, como es el caso de Aura Cumes, quien es
una intelectual guatemalteca Maya-Kaqchikel. Ella complejiza y fisura
algunos de los debates de la Modernidad/colonialidad, como también
lo hacen otros intelectuales indígenas de Latinoamérica como Héctor
Nahuelpan, del Colectivo de Historia Mapuche, y que cuestionan la
afirmación de que el periodo histórico colonial ya concluyó, que estamos
en otro momento histórico marcado por el poder/conocimiento colo-
nial. Por lo contrario, ellos argumentan que los pueblos indígenas y afro-
descendientes de Latinoamérica siguen viviendo un momento colonial.
Los mestizos latinoamericanos, por más críticos que sean, están dicien-
do que otro momento histórico se abre con la independencia respecto a
España y Portugal, algo que se puede afirmar cuando el Estado-nación
es tu eje analítico. Sin embargo, si lo ves desde las lógicas y experiencias
de pueblos indígenas y afrodescendientes, el colonialismo continúa: no
es ni un colonialismo interno, ni es la colonialidad, sino que perma-
necen relaciones coloniales. Aura Cumes sustenta su argumento desde
una perspectiva de género al argumentar que en el caso guatemalteco
existen dos nichos que se fijan sobre cuerpos de hombres y mujeres in-
dígenas, nichos que a su vez sustentan y sostienen las vidas de los ladinos
y mestizos, son nichos de servidumbre: sea el mozo o sea la empleada
doméstica. Son nichos que se establecen en el periodo preindependencia

258
del Estado-nación guatemalteco y permanecen. El trabajo de Cumes
es sobre mujeres indígenas que trabajan como empleadas domésticas.
Argumenta que ese nicho, junto con la del mozo, alimentan la perma-
nencia de estructuras coloniales ya que sostienen las otras relaciones
socio-económicas en el país. Las otras mujeres no pueden conseguir su
liberación como ladinas si no tienen a estas mujeres trabajando en su
casa. Me parece que este tipo de aportaciones son de gran calado, pues
están contribuyendo a cuestionar el poder (neo) colonial del Estado y
del capital desde una perspectiva de género racializada. El colonialismo
permea las estructuras de los Estados-naciones: no es colonialismo in-
terno, no es colonialidad. Me parece que este tipo de aportaciones no se
están escuchando lo suficiente en la mayoría de los debates feministas y
deberían precisamente estar en el centro de los debates.
¿Podría hablarnos de cómo se encuentra hoy la cuestión del género en las
comunidades zapatistas? ¿Qué ha cambiado desde aquella declaración de
La Ley Revolucionaria de Mujeres del EZLN de 1993, sobre todo, si ha-
blamos de las nuevas generaciones a su interior? ¿Cómo ve al movimiento
zapatista en este nuevo contexto socio-político?11
Me parece que el movimiento zapatista vive ahora un momento
mucho más interesante que bajo el sexenio de Enrique Peña Nieto12.
Primero, porque antes era la voz que estorbaba y que trataba de enunciar
verdades frente al poder mientras que ahora puede ser un contrape-
so efectivo y sumamente necesario. Tiene que jalar hacia otro lado los
planteamientos del presidente [electo, en el momento de la entrevista]
López Obrador, quien en ocasiones dice cosas medianamente progre-
sistas y después está con Alfonso Romo13 y con otros de los princi-
pales empresarios del país, mostrando ese titubeo y esa ambigüedad
de tratar de conciliar con todos y de complacer a todos. Frente a estas

11 El 1 de julio de 2018, Andrés Manuel López Obrador fue el candidato ganador


en las elecciones para presidente en México, contendiendo por la coalición “Juntos
Haremos Historia”, conformada por Movimiento Regeneración Nacional (Morena), el
Partido del Trabajo (PT) y el Partido Encuentro Social (PES).
12 Presidente de México de 2012 a 2018. Integrante del Partido Revolucionario
Institucional (PRI).
13 Empresario agroindustrial regiomontano. Fiel colaborador en la campaña para la
presidencia de Vicente Fox (Partido Acción Nacional) y hoy es miembro del Morena.

259
ambigüedades, el zapatismo mantiene ciertas críticas y planteamientos
radicales firmemente anclados en la tierra.
En lo que respecta a las mujeres zapatistas, efectivamente, estamos
hablando de nuevas generaciones. La generación que nació en 1994 ya
va a cumplir 25 años, algunas ya tienen tres hijos, ya son autoridades
en su comunidad, municipio o incluso a nivel del Caracol, como centro
político administrativo zapatista que coordina las actividades de varios
municipios autónomos rebeldes. De hecho, durante el Primer Encuentro
Internacional, político, artístico, deportivo y cultural de Mujeres que Luchan
celebrado el pasado 8 de marzo de 2018 en el Caracol IV, en Morelia
(que es donde yo he trabajado desde 1996), surgieron algunas dinámicas
contradictorias.
Para empezar, lo que me pareció impresionante del Encuentro fue
esta afirmación colectiva como mujeres indígenas zapatistas de lo que
son capaces de hacer. No es cualquier cosa organizar un evento de esa
magnitud con sus hombres en la retaguardia. La sede del encuentro se
encuentra encima de una loma, tiene una vista a toda la cañada de Al-
tamirano donde antes las tierras estaban en manos de los finqueros y
ahora son de las comunidades zapatistas. Visualmente es fuerte como
imagen de liberación. Pues en ese espacio llegaron entre 7 mil y 8 mil
mujeres de todo el mundo. Las mujeres zapatistas tuvieron que organi-
zar absolutamente toda la logística para que eso se llevará a cabo, ellas
definían la agenda de todos los días. Tenían que resolver el problema de
la comida, del hospedaje, de la limpieza de las letrinas y toda una lista
de detalles logísticos – la luz eléctrica, el sistema de sonido, primeros
auxilios, etcétera –; no es fácil dimensionar lo que implica un evento
de esta magnitud. Obviamente, el trabajo organizativo lo hicieron con
ayuda de los hombres, pero con ellos en un papel de apoyo, secundario.
En el momento en que inició el evento ellos permanecieron antes de la
valla que decía: “Prohibido la entrada a los hombres”. Del otro lado ellas
se encargaban de todo. Los que apoyaban en la retaguardia al margen
del evento eran hombres zapatistas, pero no estoy hablando de cualquier
tipo de hombre, estoy hablando de gente que es autoridad en la comu-
nidad, de los hombres de las juntas de buen gobierno, los hombres de
los concejos autónomos, los hombres de las comisiones de producción y
educación, figuras de autoridad de ese caracol que estaban limpiando el

260
frijol durante toda la mañana y poniendo etiquetas a las maletas de las
mujeres que iban a estar de paso por el evento, el tipo de actividades que
solemos hacer las mujeres cuando los hombres son los protagonistas.
Esto me pareció muy potente en el sentido de lo que se disloca cuando
ellas están en el centro, fue una suerte de inversión de papeles. Creo
que esa es una expresión de lo que se ha logrado en territorio zapatista
en términos de relaciones entre los hombres y las mujeres a lo largo de
estos años.
Sin embargo, dos cosas adicionales que me llamaron la atención.
Una fue el discurso de la Capitana zapatista Erika, quien habló del dolor
colonial representado en la figura del patrón, el patrón es un referente
para entender las relaciones de explotación y dominación hasta nuestros
días en las cañadas de la selva Lacandona. La Capitana Erika habló del
patrón-marido para explicar cómo las relaciones de dominación mas-
culinas son reproducidas por los hombres indígenas cuando tratan de
emular el poder del finquero mestizo. Es una referencia a las estructuras
de dominación colonial en donde el hombre indígena tiene pocas op-
ciones frente a las masculinidades heridas e inferiorizadas que alimenta
el colonialismo. Por consiguiente, la Capitana Erika habló de la lucha
contra el patrón-marido, que a su vez es una lucha contra los nichos de
dominación que genera una economía de fincas, donde la lucha no sólo
ha sido contra los terratenientes sino también contra las esposas de los
finqueros. Dijo que las mujeres zapatistas no solo han sufrido opresión
por parte de los finqueros, el Estado y los hombres, sino por parte de
otras mujeres. Las mujeres mestizas esposas de los terratenientes tam-
bién las han maltratado. Por ejemplo, se mencionó el caso de mujeres
mestizas que sabían que sus hombres violaban a las mujeres indígenas
que trabajaban en sus fincas y guardaban silencio. Una complicidad si-
lenciosa que permite la reproducción de esta estructura de dominación.
Aquí no existe una complicidad inherente entre mujeres y es justo esta
falta de “sororidad” la que permite la reproducción de relaciones (neo)
coloniales. Me parece una crítica al poder muy potente.
Ahora, pasemos a las ambigüedades. En el Encuentro se hablaba
mucho de “ser mujeres” en términos homogéneos, poco se habló de que
los cuerpos de ciertas mujeres no son valorados de la misma manera. Allí
la crítica que yo haría, por supuesto, no es a las mujeres zapatistas sino

261
a algunas mujeres mestizas, blancas y europeas que después de veinti-
cuatro años han reformulado poco de sus prácticas cotidianas. La mujer
indígena zapatista existe en relación a los hombres de su comunidad,
pero también en relación a estas mujeres noindígenas. Para mí, el En-
cuentro también fue una manera de ver cómo en algunos contextos no
se han modificado estas relaciones entre las mujeres no-indígenas con
mujeres indígenas y afrodescendientes. Hay algo que se me hizo muy
fuerte, el racismo que se expresa cuando el cuerpo de algunas personas
se convierte en el escenario para la acción de otras. Por ejemplo, como en
las películas sobre África, donde los africanos son representados exclusi-
vamente con parte del paisaje, como la escena en la que se desarrollan las
historias de los personajes europeos. Esto se reprodujo en el Encuentro.
Yo presencié varias mujeres europeas pidiendo a las mujeres zapatistas
que les cargaran sus maletas para llevarlas al auditorio donde iban a
dormir. Las mujeres que servían la comida, que limpiaban las letrinas,
que preparaban el escenario, entre otras actividades, eran todas mujeres
indígenas zapatistas. Por supuesto, que yo entiendo esto en el sentido de
que ellas cumplían el papel de anfitrionas, en ese sentido encargarse de
todo era una afirmación de su dignidad y de sus capacidades organizati-
vas como anfitrionas. Lo que no entiendo es por qué no hubo un cues-
tionamiento por parte de las otras mujeres, en este caso las europeas. En
algunos casos presencié escenas en donde algunas mujeres tomaron la
actitud de: “Claro, ella me tiene que servir la comida y, además, le voy a
decir que sus frijoles no están bien cocidos”. Mi principal crítica radica
en cómo es posible que después de veinticuatro años (del levantamien-
to), una buena parte de las asistentes mestizas no han cambiado sus
formas de relacionarse con mujeres indígenas ¿Por qué no cuestionar sus
propios privilegios? En lugar de sólo venir y animar un taller, por qué no
preguntan cómo me puedo sumar a la organización del evento: me sumo
a los turnos de limpiar la letrina, me sumo a los turnos de preparar la
comida, entre otras cosas. Si algo señalaría como un pendiente urgente
en las luchas feministas latinoamericanas es eso: el ejercicio profundo y
autoreflexivo de cuestionar, nombrar y transformar los privilegios que
siguen colocando a otras mujeres, sus cuerpos, sus conocimientos y sus
vidas, como si valieran menos.

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