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Copyright © 2003 por Pema Chödrön

Copyright © 2003, 2020 por GMT Editores Ltda.

Em acordo com Shambhala Publications, Inc.


300 Massachusetts Ave., Boston, MA. 02115

Tradução de e Root Text of the Seven Points of Training the Mind © 1981, 1986, por
Chögyam Trungpa; tradução revisada © 1993, por Diana J. Mukpo e o Nalanda
Translation Committee. O Sadhana de Mahamudra © 1968, 1976, por Chögyam
Trungpa. Tradução para o português de Os Sete Pontos do Treinamento da Mente – O uso
dos cartões de máximas, por Shambhala Brasil, Comissão Nalanda de Tradução. As
máximas de Atisha foram utilizadas com permissão.

tradução: Helenice Gouvêa


revisão técnica: Shambhala do Brasil – Comissão Nalanda de Tradução
capa: Estúdio Bogotá
imagens de capa: Letícia Naves – Estúdio Bogotá
diagramação: Ana Paula Daudt Brandão
revisão: Ana Grillo, Antonio dos Prazeres, Hermínia Totti e Sérgio Bellinello Soares
e-book: Marcelo Morais

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
C473c
Chödrön, Pema
Comece onde você está [recurso eletrônico]/ Pema Chödrön; tradução de
Helenice Gouvêa. Rio de Janeiro: Sextante, 2020.
recurso digital

Tradução de: Start where you are


Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-85-431-0957-2 (recurso eletrônico)

1. Vida espiritual - Budismo. 2. Livros eletrônicos. I. Gouvêa, Helenice. II.


Título.
19-61872 CDD: 294.3
CDU: 24-583

Todos os direitos reservados, no Brasil, por


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Para minha mãe, Virginia,
e minha neta, Alexandria
SUMÁRIO
Prefácio

1. Não há saída, não há problema


2. Não é nada de mais
3. Puxando o tapete
4. Deixe que o mundo fale por si mesmo
5. O veneno é o remédio
6. Comece onde você está
7. Trazendo tudo que encontramos para o caminho
8. Atribua todas as culpas a um só
9. Seja grato a todos
10. Cortando a solidez dos pensamentos
11. Superando a resistência
12. O barco vazio
13. Ensinamentos para a vida e para a morte
14. Bondade amorosa e compaixão
15. Não leve a vida tão a sério
16. Abandone a expectativa de resultado
17. A ação compassiva
18. Assumir a responsabilidade por nossos atos
19. A comunicação que vem do coração
20. A grande pressão
21. Práticas em que apostamos alto
22. Pratique com determinação

Apêndice
Agradecimentos
Bibliografia
Fontes adicionais
Conheça outro livro da autora
Sobre a autora
Informações sobre a Sextante
Prefácio

Este livro é sobre o despertar do coração. Ele servirá como guia para quem
deseja saber o que fazer para que o seu autêntico coração compassivo se
manifeste.
Nos dias de hoje, em que tantas pessoas procuram ajuda para lidar com
os próprios sentimentos de dor ao mesmo tempo que desejam aliviar o
sofrimento que veem ao seu redor, os antigos ensinamentos aqui
apresentados são especialmente encorajadores e oportunos. Há instruções
sobre como podemos nos abrir quando percebemos que estamos nos
fechando para nós mesmos e para os outros. E também sobre como
aprender a doar, quando nossa tendência é reter. O que é indesejável, aquilo
que rejeitamos em nós mesmos e nos demais, pode ser visto e sentido com
honestidade e compaixão. Estes ensinamentos nos mostram como não
recuar e ser capaz de dar apoio aos demais.
Tive meu primeiro contato com esses ensinamentos através do texto e
Great Path of Awakening (A grande trilha do despertar), do mestre tibetano
do século XIX Jamgön Kongtrül, o Grande. Chamados de ensinamentos
lojong, eles incluem a meditação tonglen e a prática de trabalhar com os sete
pontos do treinamento da mente, contidos em um antigo texto tibetano
escrito por Chekawa Yeshe Dorje e denominado Texto-raiz dos sete pontos
do treinamento da mente (ver Apêndice).
Lojong signi ca “treinamento da mente”. Os ensinamentos lojong são
organizados a partir de sete pontos, contendo 59 máximas enérgicas que
lembram o que devemos fazer para despertar o coração. Trabalhar com as
máximas é o ponto central deste livro. Esses ensinamentos pertencem à
escola mahayana do budismo, que enfatiza a comunicação e o
relacionamento compassivo com os outros. Eles também nos ajudam a
perceber que a sensação de haver um “eu” e um “outro” – ambos isolados e
separados – não passa de um doloroso mal-entendido que podemos
esclarecer e abandonar.
Tonglen signi ca “dar e tomar”. Essa prática de meditação visa ajudar
pessoas comuns como nós a entrar em contato com a abertura e suavidade
do próprio coração. Por meio do tonglen, em vez de proteger nossos pontos
vulneráveis, nós nos permitimos sentir o que é ser humano. Com isso,
conseguimos ampliar nosso círculo de compaixão. Espero que este livro
possa trazer a todos esse encorajamento.
Quando li pela primeira vez os ensinamentos lojong, senti-me tocada
pela mensagem pouco habitual de que podemos usar nossas di culdades e
problemas para despertar o coração. Em vez de encarar os aspectos
indesejáveis da vida como obstáculos, Jamgön Kongtrül os apresentava
como a matéria-prima necessária para despertar uma compaixão genuína e
sem artifícios: podemos começar no ponto em que estamos. Embora os
ensinamentos de Kongtrül enfatizem principalmente o ato de tomar para si
o sofrimento dos outros, ca evidente, nos dias de hoje, que o primeiro
passo deve ser desenvolver compaixão por nosso próprio sofrimento. Este
livro repete diversas vezes que a compaixão incondicional em relação a nós
mesmos conduz naturalmente à compaixão incondicional pelos outros. Se
estivermos dispostos a ocupar plenamente o lugar que nos pertence e nunca
desistir de nós mesmos, seremos capazes de nos colocar no lugar dos outros
e nunca desistir deles. A compaixão verdadeira não decorre de querer ajudar
os que são menos afortunados, mas de perceber nossa a nidade com todos
os seres.
Mais tarde, ouvi essas instruções apresentadas de forma mais atualizada
por meu próprio mestre, Chögyam Trungpa Rinpoche, que depois publicou
seus ensinamentos no livro Training the Mind and Cultivating Loving-
Kindness (Treinando a mente e cultivando a bondade amorosa). Trungpa
Rinpoche dizia que havia recebido essas lições ainda bem jovem e que
sentira um grande alívio ao descobrir que o budismo podia ser tão prático e
útil na vida cotidiana. Ele se sentiu inspirado ao perceber que podemos
trazer tudo que encontramos para o caminho, usando os acontecimentos
para despertar nossa inteligência, compaixão e capacidade de ter uma nova
visão.
No inverno de 1992 e 1993, conduzi dathuns – períodos de prática de
um mês – inteiramente dedicados aos ensinamentos lojong e à meditação
tonglen. À medida que as inevitáveis frustrações e di culdades da vida diária
surgiam, os participantes se empenharam em colocar essas instruções em
prática. Víamos o dathun como uma oportunidade para levá-las a sério e
aplicá-las a todas as situações, principalmente àquelas que, de modo geral,
teríamos preferido ignorar, ou às quais reagiríamos criticando ou culpando
alguém. Ou seja, encaramos o dathun como uma oportunidade de usar os
ensinamentos para nos relacionar diretamente – com a mente e o coração
abertos – com a agressividade, o desejo e a rejeição que víamos em nós
mesmos e nos demais.
Os ensinamentos lojong apresentam a possibilidade de uma completa
mudança de atitude, mesmo para os que não estão familiarizados com a
meditação: podemos nos relacionar de forma compassiva com o que
gostaríamos de manter a distância e aprender a doar e compartilhar aquilo a
que mais nos apegamos.
Para aqueles que se consideram preparados para praticar a meditação
sentada e a meditação tonglen, e acham que podem trabalhar com as
máximas lojong de forma permanente, este pode ser o começo de um belo
aprendizado sobre o que realmente signi ca amar. Este é um método que
fornece muito espaço, de forma que as pessoas possam se descontrair e se
tornar mais abertas. Este é o caminho para um viver solidário incondicional
e destina-se principalmente àqueles que estão passando por momentos de
escuridão. Que ele possa bene ciá-los.
1
Não há saída, não há problema

Já temos tudo de que precisamos. Não há necessidade de


autoaprimoramento. O opressivo medo de ser mau e o desejo de ser bom, a
identidade a que tão amorosamente nos apegamos, a raiva, a inveja e os
vícios de todo tipo nunca atingem nossa riqueza fundamental. São como
nuvens que temporariamente encobrem o sol. Mas, o tempo todo, nosso
calor e brilho estão bem aqui. Isso é o que realmente somos. Estamos a um
piscar de olhos do completo despertar.
Não costumamos olhar para nós mesmos dessa forma. Por esse ponto de
vista, não precisamos mudar: podemos ser tão deploráveis quanto
quisermos e, ainda assim, somos bons candidatos à iluminação. Podemos
nos sentir um caso irremediavelmente perdido, mas esse sentimento é nossa
riqueza e não algo que deva ser jogado fora ou que precise ser melhorado.
Há beleza em todas as coisas de que não gostamos nem um pouco e que
preferiríamos manter a distância. O que nos dá prazer – aquilo que amamos
profundamente em nós mesmos e que nos faz sentir algum tipo de orgulho
ou inspiração – também é nossa riqueza.
Com as práticas apresentadas neste livro, você pode começar exatamente
no ponto em que está. Se está com raiva, carente ou em depressão, as
práticas aqui descritas foram feitas sob medida para você. Elas servirão de
estímulo para que use o que é indesejável em sua vida para despertar
compaixão por si mesmo e pelos demais. Essas práticas nos ensinam a
aceitar quem somos, a ter um relacionamento direto com o sofrimento e a
parar de fugir dos aspectos dolorosos da nossa existência. Elas nos mostram
como lidar de coração aberto com a vida, do jeito que ela é.
Quando ouvimos falar em compaixão, naturalmente pensamos em
trabalhar com os demais, cuidar deles. Frequentemente, não damos apoio
aos outros – seja um lho, a mãe, ou alguém que nos insulta ou amedronta –
porque não damos apoio a nós mesmos. Algumas de nossas características
são tão indesejáveis que tentamos escapar sempre que elas começam a
aparecer.
Fugir nos faz perder continuamente a oportunidade de estar aqui, de
estar bem aqui, neste ponto. Deixamos passar o momento presente.
Entretanto, se formos capazes de experimentá-lo, descobriremos que ele é
único, precioso e completamente novo. Ele nunca se repete. Podemos
apreciar e celebrar cada momento – não há nada mais sagrado. Não há nada
mais vasto ou absoluto. Na verdade, não há mais nada!
Somente à medida que conhecermos nossa dor pessoal e nos
relacionarmos com ela seremos corajosos e valentes o bastante para estar
dispostos a sentir a dor dos outros. Só então seremos capazes de encarar o
sofrimento dos demais porque teremos descoberto que a dor deles não é
diferente da nossa.
Entretanto, para isso, precisamos de toda a ajuda que pudermos
conseguir. Minha esperança é que este livro possa fornecê-la. As ferramentas
que você receberá são três práticas que servem de grande apoio:
1. Meditação sentada básica (denominada meditação shamatha-
vipashyana)
2. Prática de dar e tomar (chamada de tonglen)
3. Prática de trabalhar com as máximas (denominada os sete pontos do
treinamento da mente ou lojong)

Todas essas práticas despertam nossa con ança de que a sabedoria e a


compaixão de que necessitamos já estão dentro de nós. Elas nos levam a
conhecer melhor nossas partes rudes e suaves, nossa paixão, agressividade,
ignorância e sabedoria. As pessoas ferem umas às outras, o planeta está
poluído, as coisas não vão muito bem para os seres humanos e os animais
porque não nos conhecemos, não con amos uns nos outros nem nos
amamos su cientemente. A técnica da meditação sentada, denominada
shamatha-vipashyana (“tranquilidade-percepção intuitiva”), é como uma
chave de ouro que nos auxilia a alcançar o autoconhecimento.

MEDITAÇÃO SHAMATHA-VIPASHYANA

Na meditação shamatha-vipashyana, sentamos com a coluna reta, as pernas


cruzadas e os olhos abertos, as mãos repousando sobre as coxas. Então,
simplesmente tomamos consciência de nossa respiração no momento em
que expiramos. Estar bem ali, acompanhando a expiração, exige precisão.
Por outro lado, esse é um processo bastante descontraído e suave. Dizer
“estar bem ali, acompanhando a expiração” é o mesmo que dizer “estar
plenamente presente”. É estar exatamente ali, haja o que houver. Enquanto
camos atentos à expiração, podemos perceber também o que acontece ao
nosso redor – os sons que vêm da rua, a luz re etida nas paredes. É possível
que esses outros fatores capturem um pouco de nossa atenção, mas não
precisamos ser arrastados por eles. Continuamos sentados, conscientes da
expiração.
Acompanhar a expiração, porém, é apenas uma parte da técnica. Os
pensamentos que continuamente percorrem nossa mente constituem a outra
parte. Ficamos sentados, tendo uma conversa interior. Quando percebemos
nossos pensamentos, a instrução nos diz que devemos rotulá-los:
“pensando”. Se nossa mente começa a divagar, devemos dizer internamente:
“pensando”. Não importa se esses pensamentos são violentos, apaixonados
ou cheios de ignorância e rejeição; se contêm preocupação ou medo; se são
espiritualizados, agradáveis ou nos dizem quanto estamos indo bem; se são
encorajadores ou enaltecedores. Sem julgamentos e sem severidade,
simplesmente devemos rotular todos eles como “pensando”. E devemos fazer
isso com gentileza e honestidade.
O contato com a respiração é leve: apenas cerca de 25% da consciência
permanece nela. Não nos agarramos nem nos xamos. Estamos abertos,
permitindo que a respiração se misture ao espaço, deixando que ela
simplesmente ua para fora. Então, ocorre algo como uma pausa, uma
lacuna, até a próxima expiração. Enquanto inspiramos, pode haver certa
sensação de apenas estar aberto e à espera. É como tocar a campainha e
aguardar que alguém venha abrir a porta. Então tocamos mais uma vez e
esperamos. Provavelmente, nossa mente vai divagar e perceberemos que
estamos pensando de novo – nesse momento, usamos a técnica de rotular.
É importante manter-se el à técnica, mas, se você sentir que está
usando o rótulo de forma severa e negativa, como se estivesse dizendo
“Droga!”, se estiver sendo duro consigo mesmo, diga outra vez, de forma
mais leve. Não se trata de tentar abater os pensamentos a tiros, como se eles
fossem um alvo no ar. Em vez disso, seja gentil. Use a parte da técnica que se
refere a rotular como uma oportunidade para desenvolver suavidade e
compaixão por si mesmo. Na arena da meditação, tudo que surge é aceito. O
sentido está em poder olhar honestamente sua experiência e fazer amizade
com ela.
Embora seja constrangedor e doloroso, parar de se esconder de si
mesmo tem um grande poder de cura. Nós nos curamos quando entramos
em contato com todas as nossas formas de escapulir, nossos esconderijos,
nossa repressão, negação, fechamento e crítica aos outros. Todas as nossas
pequenas esquisitices. Podemos olhar para esses aspectos com um certo
senso de humor e bondade. Quando nos conhecemos, passamos a conhecer
a totalidade da condição humana. Todos nós temos as mesmas di culdades
– estamos todos no mesmo barco. Portanto, quando perceber que está
falando internamente, rotule “pensando” e observe qual é o tom de sua voz.
Deixe que ele seja compassivo, gentil e bem-humorado. Com isso, você
estará mudando velhos padrões arraigados, compartilhados por todos os
seres humanos. A compaixão pelos outros começa com bondade consigo
mesmo.*
* Se você nunca tentou a meditação sentada, pode preferir procurar a orientação de um instrutor
quali cado. Uma seção com informações sobre centros de meditação, no nal do livro, pode
ajudá-lo a encontrar quem o oriente.

A PRÁTICA LOJONG

A prática e os ensinamentos lojong são o coração deste livro. Lojong (ou


treinamento da mente) possui dois elementos: a prática, que é a meditação
tonglen, e os ensinamentos, sob a forma de máximas.
O fundamento básico de lojong é que podemos fazer amizade com
aquilo que rejeitamos, com o que vemos como “mau” em nós mesmos e nos
demais. Ao mesmo tempo, podemos aprender a ser generosos com aquilo de
que gostamos, com o que consideramos “bom”. Quando começamos a viver
desse modo, alguma coisa em nós, talvez esquecida há muito tempo, começa
a amadurecer. Tradicionalmente, essa “alguma coisa” é chamada de
bodhichitta ou coração desperto. É algo que já possuímos, mas, de modo
geral, ainda não descobrimos.
É como se fôssemos pobres, desabrigados, passando fome e frio e,
embora não soubéssemos, houvesse um pote de ouro bem embaixo do local
onde sempre dormimos. Esse tesouro é como o bodhichitta. Nossa confusão
e infelicidade decorrem de não sabermos que o ouro está bem aqui e de
estarmos sempre procurando por ele em outro lugar. Quando falamos em
alegria, em iluminação, em acordar ou despertar o bodhichitta, tudo isso
signi ca que sabemos que esse tesouro está exatamente aqui e percebemos
que esse é o lugar onde ele sempre esteve.
A mensagem básica dos ensinamentos lojong é a de que, quando há
sofrimento, podemos aprender a puxar nossa cadeira para mais perto dessa
dor. Inverter o padrão costumeiro de separar-se e escapar. Ir contra o
movimento habitual e não se mover. Lojong introduz uma atitude diferente
em relação àquilo que não desejamos: quando sofremos, passamos a estar
dispostos não apenas a suportar a dor, mas a deixar que essa experiência
desperte nosso coração e nos suavize. Aprendemos a abraçar a situação.
Quando uma experiência é agradável ou prazerosa, geralmente
queremos agarrá-la e fazer com que dure. Temos medo de que ela acabe e
não sentimos vontade de compartilhá-la. Os ensinamentos lojong nos
encorajam, nesses casos, a pensar nos demais e desejar que sintam o mesmo.
Distribuir nossa riqueza e alegria, dar aquilo que mais queremos, repartir
generosamente nossas intuições e prazeres. Em vez de temer que tudo isso
escape de nós, em vez de nos apegarmos, começamos a dividir com os
outros.
Quer se trate de prazer ou dor, através da prática lojong passamos a
permitir que nossa experiência seja o que ela é, sem tentar manipular, afastar
ou agarrar as situações. Os aspectos prazerosos e dolorosos da condição
humana tornam-se a chave para despertar o bodhichitta.
Há um ditado que representa o princípio fundamental da prática do
tonglen e das máximas: “Ganho e vitória para os outros, perda e derrota para
mim.” A palavra tibetana para orgulho ou arrogância é nga-gyal, que,
literalmente, signi ca “eu vitorioso”. Eu, em primeiro lugar. O ego. Esse tipo
de atitude “eu vitorioso” é a causa de todo sofrimento.
Em essência, o que esse pequeno ditado quer dizer é que palavras como
vitória e derrota estão completamente entrelaçadas com o modo pelo qual
nos protegemos, com a forma pela qual guardamos nosso coração. Nosso
sentimento de vitória apenas signi ca que guardamos nosso coração o
bastante para que nada o penetre e, assim, achamos que vencemos a guerra.
A armadura em torno desse ponto vulnerável – nosso coração ferido –
torna-se mais forti cada e nosso mundo ca menor. Talvez nada consiga
nos assustar durante uma semana inteira, mas nossa coragem começa a
diminuir e nossa intenção de cuidar dos demais ca completamente
obscurecida. Será que realmente vencemos a guerra?
Por outro lado, a sensação de ser derrotado signi ca que alguma coisa
nos penetrou. Algo atingiu nosso ponto fraco e alcançou a vulnerabilidade
que mantivemos protegida por tanto tempo. Talvez tenha sido apenas o
roçar de uma borboleta, mas nunca havíamos sido tocados antes – e era um
ponto tão sensível! Como tudo isso é novo, saímos, compramos cadeados,
escudos e armas para nunca mais ter essa sensação. Vamos atrás de qualquer
coisa – sete pares de botas que encaixem umas nas outras para não precisar
sentir o chão, doze máscaras para que nosso verdadeiro rosto que
escondido, dezenove jogos de armaduras para que ninguém toque nossa
pele – e isso sem falar no coração!
As palavras vitória e derrota estão profundamente interligadas com
nosso aprisionamento. A verdadeira confusão é causada por não sabermos
que possuímos riqueza ilimitada, e esse caos se aprofunda cada vez que
aceitamos a lógica do ganhar/perder: se você me toca, isso é derrota; se eu
consigo me proteger com uma armadura e não ser tocado, isso é vitória.
Perceber nossa riqueza poria um m ao nosso atordoamento e confusão.
Mas a única maneira de fazer isso é deixar que as coisas se desfaçam. Isso,
porém, é exatamente o que mais tememos – é nossa suprema derrota. No
entanto, deixar que tudo desmorone permitiria a entrada de ar fresco nesse
porão velho e mofado que é nosso coração.
Dizer “Perda e derrota para mim” não signi ca tornar-se masoquista:
“Chute minha cabeça, torture-me e, meu Deus, que eu nunca seja feliz.” Na
verdade, isso quer dizer que podemos abrir nosso coração e nossa mente e
saber como é sentir-se derrotado.
Você se acha baixo demais, passa mal do estômago, está muito gordo ou
é muito estúpido. Você diz para si mesmo: “Ninguém me ama. Sou sempre
deixado de lado. Não tenho dentes, meu cabelo está cando branco, minha
pele está cheia de manchas, meu nariz está escorrendo.” Tudo isso se encaixa
na categoria da derrota – a derrota do ego. Nunca queremos ser quem
somos. Entretanto, jamais nos conectaremos com nossa riqueza
fundamental enquanto acreditarmos no apelo publicitário que nos diz que
devemos ser outra pessoa, que devemos ter outro cheiro ou outra aparência.
Por outro lado, quando você diz “Vitória para os outros”, em vez do
apego, há um sentimento de estar compartilhando todo o aspecto prazeroso
da existência. De repente, você gosta do que vê no espelho, acha sua própria
voz agradável, alguém se apaixona por você ou você se apaixona por alguém.
Ou, talvez, as estações mudem e isso toque seu coração: você percebe a neve
que cai ou as árvores que balançam ao vento. Com tudo que acontece,
começa a desenvolver uma atitude de querer compartilhar, em vez de
tornar-se avarento ou sentir medo.
Talvez as máximas o desa em. Elas dizem coisas como “Não seja
invejoso”, e você se pergunta: “Como caram sabendo?” Ao ouvir “Seja grato
a todos”, talvez pense em como isso pode ser feito ou por que se dar ao
trabalho. Algumas máximas, como “Sempre medite sobre tudo que provoca
ressentimento”, exortam-no a ultrapassar o bom senso. As máximas nem
sempre são o que gostaríamos de ouvir – e isso sem falar em tentar
encontrar alguma inspiração nelas. Mas, se as praticarmos, serão como
nossa respiração, nossa visão, nosso primeiro pensamento; serão como os
cheiros que sentimos e os sons que ouvimos. Podemos deixar que permeiem
todo o nosso ser. Aí está o sentido. As máximas não são teóricas ou
abstratas. Elas se referem exatamente a quem somos e ao que nos acontece.
Elas têm a ver com nossa maneira de experimentar as coisas e nos relacionar
com tudo o que acontece na vida, com a forma pela qual lidamos com a dor,
o medo, o prazer e a alegria – e como tudo isso pode nos transformar total e
completamente. Quando trabalhamos com as máximas, a vida cotidiana
torna-se o caminho da iluminação.
2
Não é nada de mais

As práticas que faremos nos ajudarão a desenvolver con ança em nosso


coração desperto, nosso bodhichitta. Se pudéssemos, de uma vez por todas,
perceber quanto somos ricos, a sensação de carregar um pesado fardo seria
menor e nossa curiosidade aumentaria.
O bodhichitta possui três qualidades: (1) é suave e gentil, o que
representa a compaixão; (2) ao mesmo tempo, é claro e preciso, o que é
chamado de prajna, e (3) é aberto. Esta última qualidade é chamada de
shunyata e é também conhecida como “vacuidade”. A ideia de “vacuidade”
pode soar como algo frio. Entretanto, o bodhichitta não tem nada de frio,
pois contém uma qualidade sensível – o calor da compaixão – que permeia
o espaço e a clareza. Compaixão, abertura e clareza são uma única coisa,
denominada bodhichitta.
O bodhichitta é nosso coração – nosso coração ferido e suavizado.
Entretanto, se procurarmos esse coração suave que guardamos com tanto
cuidado, se decidirmos que vamos explorá-lo cienti camente com um
microscópio e tentar localizá-lo, não teremos sucesso. Podemos olhar, mas
tudo que veremos será algum tipo de ternura. Não há nada que possa ser
cortado e colocado no microscópio. Não há nada que possa ser dissecado ou
agarrado. Quanto mais olharmos, mais encontraremos apenas um
sentimento de ternura, permeado com alguns traços de tristeza.
Essa tristeza não tem nada a ver com ser maltratado por alguém. Ela é
inerente e incondicional. Faz parte de nossa bagagem inata, como uma
herança de família, e tem sido chamada de autêntico coração da tristeza.
Às vezes, enfatizamos o aspecto compassivo de nosso coração autêntico
e isso é chamado de parte relativa do bodhichitta. Às vezes, enfatizamos o
aspecto aberto e insondável, e o chamamos de absoluto – o coração
autêntico que está apenas esperando para ser descoberto.
A primeira máxima dos sete pontos do treinamento da mente é:
“Primeiro, pratique as preliminares.” As preliminares são a prática da
meditação básica – a bené ca, calorosa e brilhante meditação shamatha-
vipashyana. Quando dizemos “Primeiro, pratique as preliminares”, não
queremos dizer que começaremos com a prática de shamatha-vipashyana e,
depois, passaremos para alguma coisa mais avançada. Essa prática não é
apenas o chão em que pisamos, mas também o ar que respiramos e o
coração que bate dentro de nós. Ela é a essência de todas as demais. Assim,
essa primeira máxima signi ca simplesmente que sem essa base sólida não
há como construir nada. Sem ela, não seria possível entender a prática do
tonglen – que vou descrever adiante – e não conseguiríamos compreender
como nossa mente funciona: como é nossa loucura ou nossa sabedoria.
A seguir, apresento cinco máximas que enfatizam a abertura do
bodhichitta, sua qualidade absoluta. Todas elas nos lembram que, embora
estejamos geralmente muito presos à solidez e à seriedade da vida, podemos
parar de dar tanta importância a tudo e nos conectar com os aspectos vastos
e prazerosos de nosso ser.
A primeira das máximas absolutas é: “Considere todos os dharmas*
como sonhos.” Mais simplesmente, veja tudo como sonho. A vida é um
sonho e, por sinal, a morte também. Despertar é sonho. Dormir é sonho.
Em outras palavras, “toda situação é uma lembrança fugaz”.

* Noção ou ideia central no budismo. No contexto dessa máxima, são as manifestações da


realidade, do estado geral dos acontecimentos: coisas e fenômenos.

Saímos para uma caminhada esta manhã, mas isso agora é uma
lembrança. Toda situação é uma lembrança fugaz. À medida que a vida
transcorre, as repetições se sucedem – tantas manhãs já foram saudadas,
tantas refeições feitas, tantos percursos para o trabalho e de volta para casa,
tanto tempo passado com a família e os amigos, e assim por diante. Todas
essas situações despertam em nós irritação, desejo, raiva, tristeza e temos
todo tipo de sentimento pelas pessoas com quem trabalhamos ou vivemos,
por aqueles que, como nós, estão em uma la ou enfrentam o trânsito.
Muito ainda vai acontecer dessa mesma forma, repetidamente. Tudo é uma
excelente oportunidade para assimilar essa noção de que cada situação é
como uma lembrança.
Há apenas alguns momentos vocês estavam no saguão, mas esse fato já é
somente uma lembrança. Naquele momento, porém, era muito real. Agora
estou falando, mas o que acabei de dizer já passou.
Em relação às máximas que tratam da verdade absoluta – da abertura –,
dizem que não devemos a rmar: “Ah, sim, já entendi”, mas apenas permitir
que haja uma lacuna mental e questionar: “Pode ser isso mesmo? Será que
estou sonhando?” Belisque-se. Os sonhos são tão convincentes quanto a
realidade. Comece a pensar que talvez as coisas não sejam tão sólidas ou
con áveis quanto parecem.
Às vezes, temos essa experiência de forma automática – ela nos acontece
naturalmente. Recentemente, li sobre alguém que estava caminhando nas
montanhas e viu-se sozinho em uma região deserta, a uma grande altitude.
Se algum de vocês já esteve em um lugar muito alto, sabe que a luz ali é
diferente. É mais azul, há maior luminosidade. As coisas parecem mais
difusas e menos densas do que numa grande cidade, principalmente se
carmos sozinhos por algum tempo. Às vezes, nem sabemos ao certo se
estamos dormindo ou acordados. Esse homem descreveu que, enquanto
cozinhava, parecia estar vivendo um sonho e, quando saía para uma
caminhada, tinha a impressão de ir em direção a montanhas feitas de ar. Ao
escrever uma carta, sentia que ela era etérea: sua mão segurava uma caneta-
fantasma e escrevia palavras-fantasma que seriam enviadas a um
destinatário-fantasma. Às vezes, também temos esse tipo de experiência no
nosso dia a dia – e isso faz com que nosso mundo pareça muito maior.
Para não estender esse assunto, gostaria de voltar à nossa prática
shamatha. A chave é: não é nada de mais. Todos nós podemos simplesmente
ser mais leves. Considere todos os dharmas como sonhos. Com nossa
mente, fazemos toda uma grande história de nós mesmos, de nossas dores e
problemas.
Se alguém nos orientasse a prestar atenção no começo, meio e m de
cada pensamento, perceberíamos que eles parecem não ter um começo, um
meio e um m. Eles indiscutivelmente estão ali. Com nossa contínua
corrente mental, conversamos internamente, criamos toda uma identidade,
um mundo, uma sensação de ter problemas, um sentimento de bem-estar.
Mas, se tentarmos realmente encontrar os pensamentos, veremos que eles
estão sempre mudando. Como diz a máxima, cada situação – e mesmo cada
palavra, pensamento e emoção – é uma lembrança fugaz. É como tentar ver
a hora em que a água se transforma em vapor. Nunca vamos perceber o
momento exato. Sabemos que a água existe porque podemos bebê-la e usá-
la para fazer sopa ou tomar banho. Também sabemos que o vapor existe,
mas não conseguimos precisar exatamente quando um se transforma no
outro. Tudo é assim.
Você já deve ter passado por uma situação em que, de uma hora para
outra, deixou de se sentir derrotado e ferido e, sem nenhum motivo especial,
percebeu que esses sentimentos simplesmente desapareceram. Apenas
passaram. Quando isso acontece, você ca pensando por que fez “tanto
barulho por nada”. O que era tudo aquilo? Isso também acontece quando
nos apaixonamos. Ficamos completamente envolvidos, pensando em
alguém 24 horas por dia. Nós nos sentimos obcecados e experimentamos
um tremendo desejo. Então, um tempo depois, você tenta entender o que
deu errado, por que o encanto acabou e você não consegue trazê-lo de volta.
Todos nós conhecemos essa sensação: criamos uma grande história e depois
percebemos que não havia nada.
Gostaria de dar a todos um encorajamento para que sejam mais leves e
pratiquem com muita suavidade. Aqui não há um sargento dizendo: “Torne-
se mais leve, senão...” Descobri que, sempre que possível, usamos tudo que
aprendemos contra nós mesmos. Por exemplo, você se sente tenso, lembra
que eu disse para ser mais leve e já pensa: “No fundo, acho melhor desistir
de meditar porque não consigo ser mais leve, logo não sou um candidato a
descobrir nem o bodhichitta nem coisa nenhuma.”
A suavidade, na prática e na vida, ajuda-nos a despertar o bodhichitta. É
como se lembrar de alguma coisa. Essa compaixão, clareza e abertura são
como algo que havíamos esquecido. Ao sentar aqui, sendo gentis em relação
a nós mesmos, estamos fazendo um redescobrimento – como uma mãe que
reencontra o lho. Após uma longa separação, eles voltam a estar juntos.
Para reencontrar o bodhichitta precisamos nos tornar leves, tanto na prática
como em toda a vida.
A meditação é uma maneira formal pela qual você se acostuma a ser
leve. Eu o encorajo a seguir elmente as instruções. Contudo, seja gentil
dentro desse método. Deixe que tudo seja suave. Ao expirar, devemos tocar
a respiração à medida que ela sai, devemos estar com ela. Deixe que isso seja
como relaxar. Sinta que ela sai para o grande espaço e se dissolve. Não se
trata de tentar segurar, franzir a testa e prender a respiração, como se
devêssemos nos aferrar à técnica a todo custo para sermos bons praticantes.
Simplesmente relaxe, seguindo a expiração.
Rotular os pensamentos nos dá um poderoso apoio para sermos mais
leves e é um meio muito útil para nos reconectarmos com a shunyata – essa
dimensão aberta de nosso ser, esse aspecto novo e sem preconceitos de
nossa mente. Quando chegamos ao momento de dizer “pensando”, apenas o
fazemos, com uma atitude imparcial e extrema gentileza. Veja os
pensamentos como bolhas de ar que o rótulo toca com uma pluma. Há
apenas esse leve toque – “pensando” – e eles voltam a se dissolver no espaço.
Não pense em conseguir nada nem se preocupe com perfeição. Apenas
esteja ali a cada momento, tanto quanto puder. Quando perceber que está
divagando mais uma vez, simplesmente tome consciência disso com leveza.
Esse toque leve é a chave de ouro para reencontrar a abertura.
A máxima nos diz para considerar todos os dharmas – ou seja,
considerar tudo – como sonhos. Neste caso, poderíamos dizer “Considere
todos os pensamentos como sonhos”, toque-os simplesmente e deixe-os ir.
Quando perceber que está dando muita importância ao processo, apenas
olhe para isso com muita gentileza, com todo o coração. Não é nada de mais.
Se os pensamentos se dissolvem e você ainda sente ansiedade e tensão,
permita que essas sensações estejam ali, com muito espaço em torno delas.
Apenas deixe acontecer. Quando os pensamentos voltarem, considere-os
como são. Não são nada de mais. Você sempre pode se soltar e se tornar
mais leve.
Esse é o signi cado essencial das máximas do bodhichitta absoluto –
conectar-se com a qualidade aberta e espaçosa da mente, de modo a
perceber que não há necessidade de se fechar e dar tanta importância a tudo.
Da mesma forma, quando não conseguir deixar de criar uma grande
história, apenas dê a isso muito espaço e permita que também se vá.
Na prática sentada não há como errar, independentemente de como
você esteja. Apenas relaxe. Relaxe seus ombros, seu estômago, seu coração e
sua mente. Traga para a meditação toda a suavidade que puder. A técnica já
é bastante precisa. Ela possui uma estrutura, uma forma. Portanto, dentro
dessa forma, mova-se com cordialidade e gentileza. É assim que se desperta
o bodhichitta.
3
Puxando o tapete

Como eu já disse, a principal instrução é a de simplesmente ser mais leve. A


sensação de peso que todos nós carregamos começa a diminuir quando
assumimos essa postura diante da prática e da própria vida, quando temos
uma atitude mais gentil e compreensiva em relação a nós mesmos e aos
demais.
A próxima máxima é: “Examine a natureza da consciência inata.” A real
intenção dessa máxima é a de puxar seu tapete, caso você pense que
entendeu a máxima anterior. Se estiver orgulhoso de si mesmo porque acha
que realmente compreendeu que tudo é como um sonho, essa máxima vem
para desa ar sua pretensiosa certeza. Ela nos diz: “Bem, quem é esse, a nal,
que pensa ter descoberto que tudo é como um sonho?”
“Examine a natureza da consciência inata.” Quem é esse “eu”? De onde
vem isso? Quem está percebendo alguma coisa? Quem é esse que tem
consciência? Essa máxima refere-se à transparência de tudo, até de nossa tão
querida identidade, de nosso precioso EU. Quem é esse eu?
A armadura que construímos em torno de nosso coração causa muita
infelicidade. Mas não se deixe enganar, ela é bem transparente. Quanto mais
brilhante se torna e mais claramente a vemos, melhor percebemos que nossa
armadura – nosso casulo – é formada por pensamentos que produzimos
desenfreadamente e consideramos sólidos. O escudo não é de ferro. A
armadura não é de metal. Na verdade, eles são feitos de lembranças fugazes.
A qualidade absoluta do bodhichitta nunca pode ser xada. Se pudermos
falar sobre ela, não estaremos falando sobre ela. Portanto, se você acha que
sabe o que é o coração desperto, ele não é o que você pensa. Ele é uma
lembrança fugaz. Se você acha que esse grande fardo do ego – esse casulo
monstruoso – é alguma coisa, está enganado. Embora seja muito vívido, o
ego é apenas uma lembrança. Quanto mais praticamos, mais claro ele ca. E
isso é um paradoxo: embora não seja possível localizá-lo, ele é
extremamente nítido.
Passamos muito tempo tentando agarrar e tornar concreto tudo o que
nos acontece, desejando que as coisas sejam sólidas e seguras. Também nos
empenhamos muito para conseguir amortecer e atenuar essa nitidez ou para
escapar dela. Quando despertamos nosso coração, estamos mudando todo o
padrão – mas não através da criação de um novo padrão. Vamos nos
distanciando cada vez mais de tornar as coisas concretas, de torná-las tão
sólidas e sempre querer pisar em terra rme. Afastar-se do conforto e da
segurança para entrar no que é desconhecido, inexplorado e instável é
chamado de iluminação, de liberação. Krishnamurti fala sobre esse processo
em seu livro Liberte-se do passado, Alan Watts trata disso em e Wisdom of
Insecurity (A sabedoria de não ter segurança). Tudo vai dar no mesmo
ponto.
Caso você ainda não tenha percebido, essa não é nossa forma habitual de
lidar com as situações. Geralmente, tentamos pisar em terra rme. É como
se estivéssemos em uma nave espacial em direção à Lua e olhássemos para
trás, para esse minúsculo planeta Terra. Percebemos que as coisas são mais
vastas do que qualquer mente possa conceber e, como não conseguimos
lidar com isso, passamos a pensar no que vamos almoçar. Lá estamos nós no
espaço, com a percepção de que o mundo é imenso, reduzindo tudo a um
mundinho em que nossa única preocupação é o que vamos almoçar:
hambúrguer ou cachorro-quente? Fazemos isso o tempo todo.
Quando dizemos “Examine a natureza da consciência inata”, a palavra
examine tem uma característica interessante. Não se trata de olhar e
compreender – “Ah! Finalmente entendi!” –, mas sim de um processo de
observação e contemplação que nos leva a relaxar na insegurança, irritação
ou inquietude. Isso nos traz muita alegria.
“Examine a natureza da consciência inata.” Simplesmente examine a
natureza daquele que percebe – contemple isso. Podemos questionar nossa
sólida identidade, essa sensação de ser uma pessoa congelada no tempo e no
espaço, esse EU monolítico. Na prática da meditação, dizer “pensando” com
um toque suave introduz um ponto de interrogação sobre quem está tendo
todos esses pensamentos. Quem está produzindo continuamente o quê? O
que está acontecendo a quem? Quem é esse eu que está pensando, rotulando
os pensamentos, voltando à respiração, sofrendo ou querendo que chegue
logo a hora do almoço?
A próxima máxima é: “Permita que mesmo o antídoto se libere.” Caso
você ache que entendeu o “Examine a natureza da consciência inata”, abra
mão até mesmo dessa compreensão, abra mão desse sentimento de orgulho
e segurança, da sensação de terra rme. O antídoto do qual pedimos para
você se desapegar é a própria shunyata. Abandone até mesmo a noção de
vacuidade, abertura ou espaço.
Havia na Índia um mestre de louca sabedoria chamado Saraha. Ele dizia
que aqueles que acham que tudo é sólido e real são estúpidos como gado,
mas aqueles que acreditam que tudo é vazio são ainda mais estúpidos. Tudo
está mudando o tempo todo, e nós continuamos querendo imobilizar e xar
as coisas. Portanto, sempre que chegar a uma conclusão sólida, permita que
seu tapete seja puxado. Você mesmo pode puxá-lo, ou deixar que a vida se
encarregue disso.
Deixar o tapete ser puxado representa uma ótima oportunidade para
mudar nosso padrão fundamental. É como mudar o DNA. Uma forma de
fazer isso é simplesmente abrir mão, tornar-se leve, ser mais gentil e não dar
tanta importância a tudo.
Essa abordagem é muito diferente de praticar a rmações, atualmente um
método muito popular em alguns círculos. As a rmações são como gritar
que estamos ótimos para encobrir um sussurro que diz que não estamos tão
bem assim. Há um contraste muito grande entre essa atitude e realmente
deixar que o sussurro seja ouvido, percebendo que ele é apenas uma
lembrança fugaz e chegando mais perto de todos os medos e sentimentos
irritantes que indicam que talvez não estejamos nada bem. Ora, isso não é
nada de mais. Nenhum de nós está ótimo e todos nós estamos ótimos. Não
caminhamos em uma única direção. Somos paradoxos falantes e
ambulantes.
Quando contemplamos todos os dharmas como sonhos e vemos todos
os nossos pensamentos como lembranças fugazes – rotulando-os
“pensando” e tocando-os muito levemente –, as coisas já não parecem tão
monolíticas. Sentimos que nossa carga se torna mais leve. Rotular os
pensamentos como “pensando” nos ajuda a perceber a transparência que
eles têm e a ver que tudo, na verdade, é muito leve e ilusório. Sempre que a
corrente de pensamentos se solidi car em uma longa e pesada história que
parece nos transportar para outro lugar, devemos rotular esse processo
como “pensando”. Com isso, seremos capazes de perceber que toda a paixão,
agressividade e sofrimento ligados a esses pensamentos são apenas
lembranças fugazes. Se, mesmo que somente por um segundo, tivermos uma
profunda experiência de que tudo não passa de pensamentos, esse terá sido
um momento de pleno despertar.
É assim que começamos a despertar nossa habilidade inata de abrir mão
do controle, de nos reconectar com a shunyata, ou bodhichitta absoluto.
Além disso, é assim que despertamos nossa compaixão, nosso coração,
nossa suavidade inata, ou bodhichitta relativo. Use o rótulo e use-o com
muita gentileza, como uma forma de tocar seus dramas e perceber que, com
sua conversa interior, você mesmo os construiu.
Quando dizemos “Permita que mesmo o antídoto se libere”, esse é um
encorajamento para simplesmente tocar e largar tudo que aparece em sua
mente. Não importa que tipo de solução brilhante ou plano grandioso você
tenha elaborado. Apenas largue, largue, largue. Quer pareça ter acabado de
descobrir a causa de toda uma vida infeliz, quer esteja só pensando em
tomar um sorvete, não importa – largue. Quando surgir um pensamento
agradável, em vez de sair girando pela sala como um pião, apenas faça uma
pausa, perceba o que acontece e também deixe ir. Essa técnica fornece uma
abordagem suave que quebra a solidez dos pensamentos e lembranças. Se a
lembrança for forte, você provavelmente perceberá que algo mais está sendo
deixado para trás, ao mesmo tempo que as palavras desaparecem. Quando
isso acontecer, você estará chegando mais perto do coração. Mais perto do
bodhichitta.
Os pensamentos que surgem não são maus. Aliás, a meditação não tem
nada a ver com livrar-se dos pensamentos – nós pensaremos para sempre.
Entretanto, ao acompanhar a respiração e rotular os pensamentos,
aprendemos a abrir mão. Crenças na solidez, crenças na vacuidade –
deixamos que tudo isso se vá. Quando aprendemos a soltar, os pensamentos
deixam de ser um obstáculo. Entretanto, para a maioria de nós, eles ainda
estão muito ligados à nossa identidade, à sensação de que há um problema, à
forma pela qual vemos as coisas.

A máxima absoluta seguinte é: “Repouse na natureza do alaya, a essência.”


Podemos permitir que os pensamentos se diluam e simplesmente repousar
nossa mente em seu estado natural, no alaya – a base aberta e primordial de
todos os fenômenos. É possível descansar na abertura fundamental e
desfrutar o des le de tudo que surge, sem fazer disso um grande
acontecimento.
Portanto, quando pensamos que tudo é sólido, essa é uma armadilha e,
se mudarmos para outro sistema de crenças, essa será outra armadilha.
Temos que puxar o tapete de todas as crenças. Para isso, abrimos mão de
nossas certezas, bem como da noção de certo e errado, voltando à
simplicidade e à qualidade imediata de nossa experiência atual e repousando
na natureza do alaya.
4
Deixe que o mundo fale por si mesmo

A última das máximas do bodhichitta absoluto é: “Na pós-meditação, seja


lho da ilusão.” Essa máxima nos diz que, quando não estamos formalmente
praticando meditação – ou seja, basicamente, todo o resto de nossa vida –,
devemos ser lhos da ilusão. Essa é uma imagem poética e forte, nada fácil
de de nir. A forma como é expressa nos encoraja a não de ni-la. A ideia é a
de que nossa experiência, após terminar a meditação sentada, pode
representar uma percepção nova, uma contínua oportunidade para nos
soltarmos e nos tornarmos mais leves.
Essa máxima tem muito a ver com olhar para fora e fazer contato com a
atmosfera, com o ambiente em que estamos, com a qualidade de nossa
experiência. Percebemos que as coisas não são assim tão sólidas. Há sempre
algo acontecendo que não pode ser agarrado com palavras ou pensamentos.
É como o primeiro dia da primavera: há uma qualidade especial que lhe é
inerente; ele é o que é, não importa a opinião que possamos ter a respeito.
Quando estudamos o budismo, aprendemos sobre a visão e a meditação
como suportes que nos encorajam a abrir mão do ego e a aceitar as situações
do jeito que elas são. “Na pós-meditação, seja lho da ilusão” ou “Considere
todos os dharmas como sonhos”, por exemplo, são lembretes enérgicos sobre
uma outra forma de ver o mundo. Não precisamos exatamente ser capazes
de compreender essa visão, mas ela nos indica uma determinada direção. A
sugestão para que vejamos o mundo dessa maneira – e não como algo sólido
– lança sementes e faz despertar alguns aspectos de nosso ser.
Tanto a visão como a meditação representam um grande suporte. Elas
fornecem algo em que podemos nos apoiar, embora todos os ensinamentos
nos digam para não nos apoiarmos em nada. Não camos apenas nas
palavras, nós realmente trabalhamos com isso. Essa é a prática, essa é a
meditação. Podemos falar em descontração até perder o fôlego, mas, aqui,
temos a oportunidade de praticar a leveza, usando a expiração e o rótulo.
Aqui está a verdadeira prática, um método que nos é dado, uma disciplina.
A visão e a meditação são encorajamentos para sermos descontraídos o
su ciente para que, nalmente, a atmosfera de nossa experiência
simplesmente comece a chegar até nós. Não é possível ensinar a alguém
como as coisas realmente são. Ninguém pode nos dar uma fórmula: A + B +
C = iluminação.
Esse apoio é frequentemente comparado a uma canoa. Precisamos dela
para atravessar o rio, para chegar à outra margem. Quando chegamos lá,
deixamos a canoa para trás. Essa é uma imagem interessante, mas, na
prática, o que acontece é que a canoa nos abandona no meio do rio e nunca
chegamos realmente a terra rme. Isso é o que signi ca tornar-se lho da
ilusão.
A imagem do “ lho da ilusão” parece adequada, já que as crianças
pequenas parecem viver em um mundo em que as coisas não são tão sólidas.
Em toda criança observamos uma capacidade de se maravilhar que mais
tarde desaparece. Essa máxima nos encoraja a voltar a ser assim.
Li em O Universo Holográ co, de Michael Talbot, que a ciência está
fazendo as mesmas descobertas que fazemos durante a meditação. A sala em
que meditamos é sólida e muito presente; seria ridículo dizer que ela não
existe. Entretanto, a ciência está descobrindo que o mundo material não é
tão sólido quanto parece; ele é mais como um holograma – vívido, mas, ao
mesmo tempo, vazio. Na verdade, quanto mais percebemos a falta de solidez
das coisas, mais vívidas elas nos parecem.
Trungpa Rinpoche expressa esse paradoxo em uma linguagem poética e
forte. Parafraseando O Sadhana de Mahamudra: tudo que vemos é
vividamente irreal na vacuidade, embora haja de nitivamente uma forma. O
que vemos não está aqui; não está não-aqui. Ambos e nenhum dos dois.
Tudo que ouvimos é o eco da vacuidade; embora haja som – ele é real –, esse
é o eco da vacuidade. Então, Trungpa Rinpoche continua e diz: “Bons e
maus, felizes e tristes, todos os pensamentos se dissolvem na vacuidade,
como o rastro de um pássaro no céu.”
Isso é o mais próximo que podemos chegar ao descrever o que signi ca
ser lho da ilusão. Este é o ponto-chave: podemos permitir que o que
chamamos de bom e mau, feliz e triste, dissolva-se na vacuidade, como o
rastro de um pássaro no céu.
A prática e a visão são apoios, mas a realidade – a experiência do som
como um eco da vacuidade ou a natureza vividamente irreal de tudo que
vemos – chega até nós como uma revelação, como se despertássemos de um
sono muito longo. Não há como forçar ou fraudar esse processo. A visão e a
prática estão aqui para serem experimentadas com um toque leve, não para
serem tomadas como dogmas.
Devemos prestar atenção nas máximas, ruminá-las, re etir sobre elas.
Precisamos descobrir por nós mesmos o que elas signi cam. Elas
representam mais um desa o que uma a rmação inquestionável. Se
permitirmos, elas nos levarão a perceber que os próprios fatos são muito
incertos. Podemos ser lhos da ilusão durante nossa existência, seja
enquanto estamos despertos ou adormecidos. Podemos continuamente
permanecer assim, seja no nascimento ou na morte.
Ser lho da ilusão também representa um incentivo para deixar de ser
um campo de batalha ambulante. Temos sentimentos muito fortes sobre
bem e mal, certo e errado. Também sentimos que algumas partes de nós são
más ou perversas e outras são boas e bené cas. Todos esses pares de opostos
– feliz e infeliz, vitória e derrota, perda e ganho – vivem em guerra entre si.
A verdade é que bem e mal coexistem; amargo e doce coexistem. Eles
não são realmente opostos. É possível começar a abrir os olhos e o coração
para essa profunda percepção, como se estivéssemos nos movendo em uma
dimensão da experiência inteiramente nova: tornando-nos lhos da ilusão.
Talvez você já tenha ouvido dizer que o Buda não está do lado de fora,
mas dentro de nós. Entretanto, o Buda interno é a coexistência entre bom e
mau, perversidade e pureza. O Buda interno não é apenas o conjunto das
coisas boas. É confusão e é também ordem. É verdadeiramente sórdido, mas
também salutar: desagradável, malcheiroso, repulsivo, mas também seus
opostos – eles coexistem.
Não é fácil compreender a visão, mas vale a pena ouvir sobre ela.
Traduzindo isso para nosso dia a dia, ela simplesmente signi ca que, à
medida que vemos em nós mesmos aspectos que julgamos terríveis e sem
valor, talvez possamos re etir que isso é Buda. Nós nos sentimos orgulhosos
porque acabamos de ter uma boa meditação ou pensamentos muito
santi cados. Isso também é Buda. Quando entrarmos na prática do tonglen,
veremos como essa lógica é interessante. O tonglen, assim como a prática
básica shamatha-vipashyana, leva-nos a perceber que os opostos coexistem;
eles não estão em guerra entre si.
Na prática da meditação, lutamos muito tentando nos livrar de certas
coisas, enquanto outras são valorizadas. Para que o mundo fale por si
mesmo, primeiramente precisamos ver quanto lutamos e, então, começar a
abrir o coração e a mente para esse fato. A visão e a meditação – tanto
shamatha-vipashyana como tonglen – têm em vista estimular uma
abordagem mais gentil e suave a todo esse espetáculo, a toda essa catástrofe.
Começamos deixando que os opostos coexistam, sem tentar nos livrar de
nada, apenas treinando e abrindo cada vez mais os olhos, os ouvidos, as
narinas, as papilas gustativas, o coração e a mente, nutrindo o hábito de
estar aberto para tudo que acontece – até mesmo para nosso fechamento.
De modo geral, interpretamos o mundo tão pesadamente em termos de
bom e mau, feliz e infeliz, agradável e desagradável, que ele não tem uma
única oportunidade de falar por si mesmo. Quando dizemos “seja lho da
ilusão”, estamos sugerindo que, quando não estamos presos a nossas
esperanças e medos, dispomos de uma nova forma de olhar. Passamos a ser
atentos, despertos e gentis em relação a nossas esperanças e medos. Nós os
vemos claramente, com menos preconceitos, menos julgamentos e a
sensação de que nossa viagem não é assim tão pesada. Quando isso
acontece, o mundo fala por si mesmo.
Soube de uma história em que Trungpa Rinpoche estava em um jardim,
sentado ao lado de Sua Santidade Dilgo Khyentse Rinpoche. Algumas
pessoas estavam por ali, a uma distância su ciente para ouvi-los, mas longe
o bastante para que eles tivessem privacidade e espaço. O dia estava lindo; os
dois já estavam no jardim havia algum tempo, apenas sentados, sem dizer
nada. O tempo passava, e eles ali, sem falar, parecendo muito bem. Então,
Trungpa Rinpoche quebrou o silêncio e começou a rir. Apontando para o
outro lado do gramado, disse a Dilgo Khyentse Rinpoche: “Chamam aquilo
de árvore.” No mesmo instante, Khyentse Rinpoche também começou a rir.
Se tivéssemos presenciado essa cena, acho que teríamos compreendido um
pouco o que signi ca ser lho da ilusão.
Podemos praticar dessa maneira em nossa pós-meditação, agora e pelo
resto da vida. O que quer que estejamos fazendo, seja tomando chá ou
trabalhando, é possível fazê-lo completamente. Onde quer que estejamos,
podemos estar totalmente presentes, 100% ali.
Empregue a sua hora do chá apenas para tomar chá. Comecei a fazer
isso em aeroportos. Em vez de ler, sento, olho para tudo e aprecio. Mesmo
quando não há um sentimento de apreciação, simplesmente olhe. Sinta
aquilo que está sentindo, seja interessado e curioso. Escreva menos; não
tente capturar tudo no papel. Às vezes, escrever é como tentar pegar alguma
coisa e xá-la, em vez de viver as situações como um momento novo. Essa
tentativa de aprisionar nos deixa cegos e nos impede de ter uma perspectiva
nova, curiosidade e olhos bem abertos. Quando não estamos tentando
capturar nada, nós nos tornamos lhos da ilusão.
De manhã você se sente de um jeito e, à tarde, parece que já se passaram
anos. É simplesmente incrível como tudo está sempre em movimento.
Mandamos uma mensagem: “Estou me sentindo um lixo.” Mas, quando a
mensagem chega ao destino, tudo está diferente. Já aconteceu de você
receber uma resposta a algo que você enviou e pensar: “Mas do que ele está
falando?” Não nos lembramos mais daquela identidade há muito esquecida
nem daquilo que escrevemos.
Havia um índio americano chamado Ishi, que em sua língua nativa
signi ca “pessoa” ou “ser humano”. Ele foi um bom exemplo do que signi ca
ser lho da ilusão. No início do século XX, todos da sua tribo haviam sido
assassinados, caçados como se fossem coiotes ou lobos. Ishi era o único
sobrevivente e já vivia sozinho havia algum tempo. Ninguém sabe a razão,
mas um dia, ao amanhecer, ele simplesmente apareceu em Oroville, na
Califórnia. Ali estava aquele homem, totalmente nu. Logo vestiram-no e o
colocaram na prisão, até que o Departamento de Assuntos Indígenas lhes
dissesse o que fazer. Esse caso foi manchete nos jornais de São Francisco e
foi assim que o antropólogo Alfred Kroeber tomou conhecimento da
história.
Eis o momento em que o sonho de qualquer antropólogo torna-se
realidade. Esse nativo que havia vivido como selvagem a vida toda poderia
revelar os costumes de sua tribo. Ishi foi trazido de trem até São Francisco,
para um mundo totalmente desconhecido, no qual viveu – aparentemente
bem feliz – pelo resto da vida. Parecia totalmente desperto; estava
perfeitamente à vontade consigo mesmo e com o mundo, embora tudo
tivesse mudado tão drasticamente, quase da noite para o dia.
Quando o levaram para São Francisco, por exemplo, alegremente vestiu
o terno e a gravata que lhe deram, mas carregava os sapatos na mão porque
queria continuar a sentir o chão sob os pés. Havia vivido como um homem
das cavernas, sempre escondido, com medo de que o matassem. Mas, logo
que chegou à cidade, foi levado a um jantar formal. Ficou sentado,
imperturbável com esse ritual desconhecido, apenas observando. Então,
começou a comer da forma como os outros comiam. Estava maravilhado,
curiosíssimo com tudo e, aparentemente, sem medo ou ressentimento,
apenas completamente aberto.
Quando Ishi foi trazido a São Francisco pela primeira vez, foi até a
estação de trem de Oroville e cou parado na plataforma. Quando o trem
chegou, ele simplesmente se afastou sem que ninguém notasse e se escondeu
atrás de um pilar. Os outros deram pela sua falta, acenaram para ele e todos
embarcaram. Mais tarde, Ishi disse a Kroeber que, durante toda a vida,
quando ele ou os outros membros de sua tribo viam um trem, pensavam
que se tratava de um demônio que comia pessoas, pois serpenteava e soltava
fogo e fumaça. Quando Kroeber ouviu isso, cou boquiaberto. Perguntou:
“E como você teve coragem de entrar no trem, já que achava que era um
demônio?” Ishi respondeu: “Bem, minha vida me ensinou a ser mais curioso
que medroso.” Sua vida havia lhe ensinado o que quer dizer ser lho da
ilusão.
5
O veneno é o remédio

Com a máxima “Três objetos, três venenos e três sementes de virtude”,


começamos a entrar nos ensinamentos sobre o bodhichitta relativo, os
ensinamentos sobre o despertar da compaixão. Até aqui, tentamos
estabelecer que a base de toda a nossa experiência é muito ampla e menos
sólida do que imaginamos. Não precisamos dar tanta importância a nós
mesmos, nossos inimigos, amores – a todo esse grande espetáculo. A ênfase
na suavidade é a instrução essencial para que possamos nos reconectar com
a abertura e o frescor da vida e nos libertar do mundo estreito do ego.
Voltaremos sempre a essa noção de frescor, de espaço aberto, e à ideia de
não dar tanta importância a tudo, porque vamos entrar agora na parte
realmente confusa.
Nos ensinamentos budistas, o que é caótico é chamado de klesha, que
signi ca veneno. Resumindo tudo na fórmula mais simples possível,
chegamos a três venenos principais: paixão, agressividade e ignorância.
Podemos falar deles de outras maneiras, por exemplo, anseio, aversão e total
desinteresse. Todo tipo de vício encaixa-se na categoria do anseio, que
signi ca querer, querer, querer – sentir que precisamos de algum tipo de
solução. A aversão compreende violência, raiva, ódio e todo tipo de
sentimento negativo, bem como um verdadeiro leque de diferentes
irritações. E a ignorância? Atualmente, costuma-se chamá-la de negação.
A instrução essencial de todos os ensinamentos budistas e, mais
precisamente dos ensinamentos lojong, é a seguinte: aconteça o que
acontecer, não tente se livrar dos sentimentos indesejáveis. Esse é um
pensamento pouco comum. Não faz parte de nossa tendência habitual
deixar que esses sentimentos quem por aqui. De modo geral, sempre
tentamos fazer com que eles desapareçam.
As pessoas e situações de nossa vida estão sempre acionando nossa
paixão, agressividade e ignorância. Uma pobre e inocente xícara de café
desencadeia o anseio de alguns: eles são viciados em café. Essa bebida
representa conforto e todas as boas coisas da vida. Quando não podem
tomá-la, sua vida vira um inferno. Outras pessoas têm uma teoria bem
elaborada sobre quanto o café faz mal, sentem aversão e contam com um
grupo que as apoia. Muitas não dão a mínima para uma xícara de café. Para
elas, esse assunto não tem a menor importância.
Então, aparece o bom e velho Mortimer, aquela pessoa que está sentada
ao seu lado na sala de meditação ou, quem sabe, alguém do seu escritório.
Quando veem Mortimer, algumas pessoas se sentem atraídas. Elas o acham
maravilhoso. Não conseguem parar de pensar no que gostariam de fazer
com ele. Outras o odeiam. Ainda nem falaram com ele, mas, assim que o
viram, já sentiram aversão. Alguns nem percebem que ele existe, e talvez
nem venham a perceber. Na verdade, carão surpresos se ele disser, daqui a
alguns anos, que andava por aqui.
Assim, há três coisas que na máxima são chamadas de três objetos. Um
objeto é o que consideramos agradável; outro, o que achamos desagradável,
e o terceiro é o que nos deixa neutros. Quando o objeto é agradável,
desencadeia anseio. Se é desagradável, produz aversão. E, quando é neutro,
leva-nos a ignorá-lo. Anseio, aversão e ignorância são os três venenos.
Nossa experiência colocaria essa fórmula da seguinte maneira: “Três
objetos, três venenos e muita infelicidade” ou “três objetos, três venenos e
três sementes de confusão, perplexidade e dor”, pois, quanto mais os
venenos surgem e quanto maiores se tornam em nossa vida, mais nos
deixam loucos. Eles nos impedem de ver o mundo como ele é. Ficamos
cegos, surdos e mudos. O mundo não fala por si mesmo porque estamos tão
presos em nossa própria história que, em vez de sentir que há espaço
su ciente para levarmos a vida como lhos da ilusão, roubamos de nós
mesmos a oportunidade de deixar o mundo se expressar. Simplesmente
continuamos falando sozinhos e, por isso, não conseguimos ouvir nada.
De uma maneira ou de outra, os três venenos estão sempre nos
prendendo em uma armadilha, sempre nos aprisionando e fazendo com que
nosso mundo seja muito pequeno. Quando há anseio, podemos estar
sentados à beira do Grand Canyon, mas tudo que conseguimos ver é aquele
pedaço de bolo de chocolate que desejamos tanto. Na aversão, estamos
sentados à beira do Grand Canyon e só conseguimos ouvir as palavras de
raiva que, há dez anos, dissemos a alguém. Já na ignorância, estamos
sentados à beira do Grand Canyon com um saco de papel en ado na cabeça.
Cada um dos três venenos tem o poder de nos capturar tão completamente
que nem percebemos o que está bem à nossa frente.
A frase “três objetos, três venenos e três sementes de virtude” apresenta
uma ideia realmente peculiar. De forma inusitada e imprevisível, ela inverte
a fórmula habitual e nos diz como os três venenos podem se tornar três
sementes que nos levam a ser lhos da ilusão, a sair do mundo limitado pela
xação ao ego, a escapar de um mundo que tem a perspectiva de um túnel.
Essa máxima é apenas uma introdução a como esse conceito funciona. A
prática do tonglen nos dará um método muito claro para trabalhar com a
lógica lojong ou, em outras palavras, a lógica do coração aberto.
Não há nada realmente errado com a paixão, a agressividade ou a
ignorância, exceto que nós as levamos para um campo tão pessoal que
desperdiçamos tudo o que há de saboroso. O pavão ingere veneno e é isso
que torna as cores de sua cauda tão luminosas. Esta é a imagem tradicional
para essa prática: o veneno torna-se fonte de uma grande beleza e alegria; o
veneno torna-se remédio.
Não importa o que você faça, nunca tente se livrar dos venenos. Se zer
isso, juntamente com sua neurose, estará perdendo sua riqueza. Toda essa
confusão constitui sua riqueza, embora eu saiba que ouvir isso apenas uma
vez não será su ciente para convencê-lo. Pelo menos, você talvez re ita
sobre o que ouviu, que curioso sobre a possibilidade de ser verdade e sinta-
se inspirado a experimentar os ensinamentos por si mesmo.
A questão principal é que, quando Mortimer passa por aí despertando
nossos sentimentos – anseio, aversão, ignorância, inveja, arrogância ou
inutilidade –, podemos ver isso como um sininho tocando dentro da cabeça
ou uma lâmpada que se acende: essa é uma oportunidade para despertar o
coração. Essa é nossa oportunidade para amadurecer o bodhichitta e entrar
em contato com a sensação de vulnerabilidade, pois os três venenos, de
modo geral, fazem com que os escudos se tornem visíveis. Reagimos aos
venenos blindando o coração.
Quando os venenos surgem, usamos duas táticas principais para
enfrentá-los. Primeiro passo: Mortimer chega. Segundo passo: o klesha
surge. Terceiro passo: decidimos extravasar ou reprimir o que sentimos. Isso
signi ca que atacamos Mortimer física ou mentalmente, pensamos como é
possível alguém ser tão idiota e planejamos nossa vingança; ou, então,
reprimimos esses sentimentos.
Extravasar e reprimir são as principais maneiras de proteger nosso
coração, as formas que mais usamos para nunca nos conectarmos realmente
com a vulnerabilidade, compaixão, sensação de abertura e nova dimensão
de nosso ser. Extravasar e reprimir são como convites para que o sofrimento,
o atordoamento e a confusão se intensi quem.
Atribua todas as culpas a Mortimer. Alguém, certo dia, ouviu a máxima
“atribua todas as culpas a um só” e pensou que isso queria dizer “atribua
todas as culpas a João”. Podemos usar os nomes João, Joana ou Mortimer: a
tática habitual é extravasar ou reprimir. Quando sentimos anseio com a
chegada de Mortimer, João ou Joana, tentamos nos aproximar, ertando ou
puxando conversa. Quando há aversão, queremos vingança. Não camos
com esses sentimentos crus. Não camos parados. Damos um passo à frente
e os exteriorizamos.
A repressão, na verdade, pode ser colocada na categoria da ignorância.
Quando vemos Mortimer, João ou Joana, nós apenas nos fechamos. Talvez
nem queiramos entrar em contato com o que eles despertam em nós e, por
isso, apenas nos fechamos. Há outra forma comum de repressão que tem a
ver com a culpa: João aparece, surge a aversão, nós a exteriorizamos e nos
sentimos culpados. Achamos que somos más pessoas por odiar João e
reprimimos esse sentimento.
Com nossa prática básica de shamatha-vipashyana – e mais
especi camente com a prática do tonglen –, estamos trabalhando o campo
intermediário que existe entre extravasar e reprimir os sentimentos.
Estamos descobrindo como car parados e sentir completamente o que há
por trás de toda essa história de querer, não querer e daí por diante.
Quando os venenos surgem, a instrução nos diz para desistir de nosso
enredo, ou seja, em vez de extravasar ou reprimir, devemos usar a situação
como uma oportunidade para sentir nosso coração – nossa ferida – e tocar
nosso ponto fraco. Subjacente a todo anseio, aversão, inveja ou sentimento
de não ter nenhum valor, subjacente a toda desesperança, desespero e
depressão, há algo extremamente suave que chamamos de bodhichitta.
Assim que os sentimentos surgirem, pratique gradualmente e com muita
suavidade, sem dar tanta importância ao que acontece. Comece a pegar o
jeito de sentir o que permeia toda a história. Sinta o coração ferido que está
por trás do vício, autodepreciação ou raiva. Quando alguém chega e crava
uma echa em seu coração, é inútil car parado, gritando. É muito mais
proveitoso voltar a atenção para o fato de que há uma echa em seu coração
e se relacionar com a ferida.
Quando tomamos essa atitude, os três venenos se tornam sementes para
sermos nossos próprios amigos. Representam a chance de trabalhar a
paciência e a bondade, a oportunidade de não desistir de nós mesmos, nem
extravasando nem reprimindo nossos sentimentos. Eles nos oferecem a
possibilidade de mudar completamente nossos hábitos. Isso nos bene cia e
também ajuda os outros. Essa instrução nos diz como transformar as
circunstâncias indesejáveis em uma trilha para a iluminação. Ao segui-la,
podemos transformar toda a confusão em um caminho que nos leva à
iluminação, reconectando-nos com nosso coração suave, nossa clareza e
capacidade de maior abertura.
6
Comece onde você está

Há duas máximas que acompanham a prática do tonglen. A primeira é: “Dar


e tomar devem ser praticados alternadamente. Conduza-os através da
respiração.” Essa é, na verdade, uma descrição do tonglen e de seu
funcionamento. A outra é: “Inicie a sequência de dar e tomar com você
mesmo.”
A máxima “Inicie a sequência de dar e tomar com você mesmo” indica
que a compaixão começa ao sermos amigos de nós mesmos, principalmente
de nossos venenos – nossas áreas mais confusas. À medida que praticamos o
tonglen – dar e tomar – e re etimos sobre as máximas lojong, começamos a
compreender quanto estamos todos completamente interligados. Sabe-se
atualmente que a poluição dos rios na América do Sul, assim como a
poluição do ar no Alasca, afeta o mundo todo. Tudo está inter-relacionado –
e isso nos inclui. Portanto, é muito importante fazer amizade consigo
mesmo. Essa é a chave para um planeta mais saudável e solidário.
O que fazemos por nós – qualquer gesto de bondade e gentileza,
qualquer traço de honestidade e clareza na forma como nos vemos – afeta a
forma como experimentamos o mundo. Na verdade, pode transformar toda
a nossa experiência. O que fazemos por nós estamos fazendo pelos outros, e
o que fazemos pelos outros estamos fazendo por nós mesmos. Colocar-se no
lugar do outro, durante a prática do tonglen, torna cada vez mais difícil
de nir o que está fora e o que está dentro de nós.
Quando sentimos raiva e, ainda que justi cadamente, culpamos os
outros, quem mais sofre somos nós mesmos. Os outros e o ambiente
também são atingidos, mas nosso sofrimento é maior, porque, ao sermos
consumidos internamente pela raiva, nós nos odiamos cada vez mais.
Exteriorizamos nossos sentimentos porque, por ironia, achamos que isso
vai nos trazer algum conforto. Equacionamos nossa reação com felicidade.
Frequentemente há mesmo certo bem-estar momentâneo. Quando temos
um vício e o satisfazemos, há um momento em que sentimos alívio. Então o
pesadelo ca pior. O mesmo acontece com a agressividade. Quando dizemos
umas boas verdades a alguém, podemos nos sentir bem por um tempo, mas,
por alguma razão, nossa justa indignação e nossa raiva crescem e passam a
nos machucar. É como pegar carvão em brasa com as mãos e atirá-lo no
inimigo. Se conseguirmos acertar, as brasas vão feri-lo, mas, nesse meio-
tempo, com certeza nós também já nos queimamos.
Por outro lado, quando começamos a nos render a nós mesmos, quando
deixamos de lado nosso contínuo enredo e experimentamos sentir toda a
confusão que o permeia, descobrimos pouco a pouco o bodhichitta, a
suavidade subjacente a toda a nossa aspereza. Ao sermos bondosos em
relação a nós mesmos, tornamo-nos bondosos com os demais. Ao sermos
bondosos com os outros – se isso é feito corretamente e com o devido
entendimento –, também nos bene ciamos. Portanto, o primeiro ponto é
que somos completamente interligados. O que fazemos aos outros estamos
fazendo a nós mesmos. O que fazemos a nós mesmos estamos fazendo aos
demais.
Comece onde você está. Isso é muito importante. A prática do tonglen (e
qualquer prática de meditação) não se refere a mais tarde, ao momento em
que vamos compreender tudo e nos tornar alguém que realmente mereça
respeito. Você pode ser a pessoa mais violenta do mundo – esse é um bom
ponto para se começar. Esse é um ponto de partida muito rico, cheio de
sabores e cheiros. Você pode ser a pessoa mais deprimida, a mais viciada, a
mais invejosa. Pode achar que ninguém no planeta se odeia tanto. Todos
esses são bons pontos de partida. Exatamente onde você está – é daí que
deve começar.
À medida que praticamos a meditação shamatha-vipashyana, seguindo
nossa respiração e rotulando os pensamentos, passamos a perceber a
profundidade de simplesmente deixar que os pensamentos passem, sem
rejeitá-los nem reprimi-los, apenas reconhecendo-os como são: violentos,
raivosos, cheios de desejo, carência ou aversão. Encaramos tudo isso apenas
como pensamentos, deixamos que eles se dissolvam e começamos a sentir o
que restou. Sentimos a energia do coração, do corpo, do pescoço, da cabeça
e do estômago – o sentimento básico subjacente a todo o nosso enredo. Se
pudermos nos relacionar diretamente com isso, tudo que restar será nossa
riqueza. Quando não as extravasamos nem reprimimos, paixão,
agressividade e ignorância se tornam nossa riqueza. O veneno já é remédio.
Não precisamos transformar nada. Só é preciso deixar nossa história de
lado, mas isso não é nada fácil. O toque suave, no momento em que
reconhecemos o que estamos pensando e permitimos que se dissolva, é a
chave para nos conectarmos com a riqueza que já possuímos. Com toda a
confusão, e qualquer que seja o tamanho dessa confusão, comece do ponto
em que você está – não amanhã, não mais tarde, não ontem, quando você
estava se sentindo melhor. Comece agora mesmo, exatamente onde você
está.
Milarepa é um dos detentores da linhagem Kagyü do budismo tibetano.
É um desses heróis, um dos bravos, um sujeito muito louco e extraordinário.
Solitário, viveu em cavernas e meditou com dedicação por muitos anos.
Também era teimoso e determinado. Se não conseguisse encontrar o que
comer, ele se alimentaria de urtigas e caria verde, mas nunca deixaria
de praticar.
Certa noite, Milarepa voltou à sua caverna após ter recolhido lenha e
encontrou-a cheia de demônios. Eles estavam comendo sua comida, lendo
seus livros e dormindo em sua cama. Haviam tomado conta do lugar.
Milarepa conhecia o conceito de não dualidade entre si mesmo e o outro,
mas, ainda assim, não sabia muito bem como expulsar os invasores. Embora
percebesse que eram apenas uma projeção de sua mente – as partes
indesejáveis de si mesmo –, não sabia como se livrar deles.
Assim, primeiro, ensinou-lhes o dharma. Sentou-se em um lugar mais
alto e visível e disse coisas como “todos nós somos um”. Falou sobre
compaixão e shunyata e sobre como o veneno é também remédio. Nada
aconteceu. Os monstros continuavam ali. Milarepa perdeu a paciência, cou
bravo e investiu contra eles. Os demônios riram. Finalmente, ele desistiu e
sentou-se no chão, dizendo: “Eu não vou embora e parece que vocês
também não. Portanto, vamos simplesmente viver juntos.”
Nesse momento, todos saíram, com exceção de um. Milarepa disse: “Ah!
Este aqui é especialmente maligno.” (Todos nós conhecemos esse demônio.
Às vezes, temos muitos desse tipo; às vezes, achamos que são tudo que
temos.) Milarepa não sabia o que fazer e se rendeu ainda mais. Caminhou
até ele, chegou bem perto da sua boca e disse: “Se quiser, pode me comer.”
Então, esse monstro também foi embora. A moral da história é que, quando
a resistência acaba, o mesmo acontece com os demônios.
Essa é a lógica subjacente à prática do tonglen e aos ensinamentos lojong
em geral: quando a resistência acaba, o mesmo acontece com os demônios.
É como um koan* com o qual podemos trabalhar através do aprendizado de
como ser mais gentil, relaxar e se render às situações e pessoas que surgem
em nossa vida.

* Narrativa metafórica apresentada sob a forma de desa o mental com a nalidade de exercitar a
atenção e conduzir ao despertar.

Agora passemos ao tonglen. Já percebi que as pessoas, em geral, devoram


os ensinamentos. Mas, quando chega a hora de praticar tonglen, elas dizem:
“Hum, parece bom, mas eu não tinha entendido que era para praticar de
verdade.” Em sua essência, a prática do tonglen pode ser resumida assim:
inspiramos o que é doloroso ou indesejável. Essa é uma outra maneira de
dizer para não resistir. Nós nos rendemos, reconhecemos quem somos e
honramos a nós mesmos. Quando surgem emoções e sentimentos
indesejáveis, nós os inspiramos de fato e nos conectamos com o que os
outros seres humanos sentem. Todos nós sabemos o que é sentir dor, nas
diversas formas que ela assume.
Essa inspiração é feita por nós mesmos, no sentido de que essa é uma
experiência real e pessoal, mas não há dúvida de que, simultaneamente,
estamos desenvolvendo nossa a nidade com todos os seres. O que
pudermos reconhecer em nós mesmos reconheceremos em todos os demais.
Quando experimentamos um acesso de inveja e nos ocorre inspirá-lo em
vez de tentar encontrar um culpado, quando entramos em contato com a
echa em nosso coração, ca muito fácil compreender que, nesse exato
momento, outras pessoas estão sentindo o mesmo. Essa prática ultrapassa
culturas, situação econômica, inteligência, raça ou religião. Há sofrimento
por toda parte – há inveja, raiva, abandono, solidão. Todos se sentem
exatamente da mesma maneira. As histórias pessoais variam, mas o
sentimento subjacente é sempre o mesmo.
Seguindo essa linha de raciocínio, quando sentimos algum tipo de
prazer, quando nos conectamos com o que para nós signi ca inspiração,
abertura, alívio e relaxamento, expiramos essa sensação, deixamos que ela
seja liberada e a doamos a todos. Mais uma vez, essa é uma experiência
muito pessoal que começa com nosso sentimento de prazer, nossa conexão
com uma perspectiva mais ampla, nosso alívio ou relaxamento. Se
estivermos dispostos a deixar de lado o enredo pessoal, sentiremos
exatamente o que os outros seres humanos sentem. Todos nós
compartilhamos os mesmos sentimentos. Nesse sentido, se zermos a
prática de forma pessoal e autêntica, ela despertará nossa sensação de
a nidade com todos os seres.
Outro ponto muito importante é o bodhichitta absoluto. Antes de
praticar o tonglen, estabelecemos a base do bodhichitta absoluto porque, no
momento em que inspiramos e nos conectamos com a nitidez e a realidade
da dor, é importante que haja alguma sensação de espaço. É importante que
exista o vasto, suave e vazio coração de bodhichitta, nosso coração desperto.
Bem ali, na dor, há muito espaço e abertura. Começamos a tocar esse espaço
no momento em que nos relacionamos diretamente com nossos aspectos
mal resolvidos, porque, ao fazer isso, revertemos completamente o padrão
que o ego utiliza para se manter.
Protegemos nosso coração com uma armadura tecida com o hábito
muito arraigado de afastar a dor e agarrar o prazer. Quando começamos a
inspirar a dor, em vez de afastá-la, passamos também a abrir o coração ao
que é indesejável. Nosso relacionamento direto com as áreas de nossa vida
de que não gostamos ventila o ambiente abafado do ego. Da mesma
maneira, quando abrimos nosso coração trancado e deixamos sair o que é
agradável, irradiando para o exterior e compartilhando, também revertemos
completamente a lógica do ego, o que signi ca reverter a lógica do
sofrimento. Lojong transcende o que é confuso e o que é claro, o prazer e a
dor. Ele começa a abrir espaço e ventilar o casulo em que nos encontramos.
Quer estejamos inspirando ou expirando, estamos abrindo o coração, e isso
equivale a despertar o bodhichitta.
Com isso, vamos passar agora à técnica. A prática do tonglen possui
quatro estágios. O primeiro estágio é a percepção súbita da abertura, ou
bodhichitta absoluto. A máxima “Repouse na natureza do alaya, a essência”
tem a ver com esse lampejo de abertura que acontece muito rapidamente.
Há uma certa sensação natural de silêncio e espaço, e tudo isso é muito
simples.
O segundo estágio consiste em trabalhar com a textura. Visualizamos
inspirar o que é escuro, pesado e quente, e expirar claridade, leveza e frescor.
A ideia é inspirar sempre a mesma coisa: essencialmente, estamos
inspirando a causa do sofrimento, sua origem, ou seja, a xação ou
tendência a nos apegarmos ao ego.
Você já deve ter notado que, quando está se sentindo raivoso, oprimido
ou cheio de inveja, isso é experimentado como algo escuro, quente, sólido e
pesado. Essa é, na verdade, a textura do veneno, da neurose e da xação. É
provável que você já tenha experimentado estar totalmente preso em si
mesmo e, então, haver algum tipo de contraste ou lacuna que lhe dá uma
sensação de muito espaço. Essa é a experiência da mente não xada em
fenômenos – a experiência da abertura. A textura da abertura é sentida, em
geral, como leve, branca, nova, clara e fresca.
Assim, no segundo estágio do tonglen, trabalhamos com essas texturas.
Inspiramos o que é escuro, pesado e quente por todos os poros, e irradiamos
claridade, leveza e frescor também por todos os poros, em 360 graus.
Trabalhamos com as texturas até sentir que elas estão sincronizadas: através
da respiração, o escuro entra e a claridade sai – inspirar e expirar, inspirar e
expirar.
O terceiro estágio consiste em trabalhar com um objeto especí co,
sinceramente sentido como sofrimento. Inspiramos a dor de uma
determinada pessoa ou animal que desejamos ajudar. Expiramos espaço,
bondade, uma boa refeição ou uma xícara de café – qualquer coisa que, a
nosso ver, diminua esse fardo. Podemos fazer isso por qualquer um: a mãe
desabrigada que encontramos na rua, nosso tio que pensa em suicídio, ou
nós mesmos e a dor que estamos sentindo exatamente agora. O ponto
principal é que o sofrimento seja real e não tenha absolutamente nada de
teórico. Ele deve ser sincero, tangível, honesto e claro.
O quarto estágio expande ainda mais esse desejo de aliviar o sofrimento.
Começamos com uma pessoa desabrigada e passamos a abranger todos os
que sofrem da mesma forma, que pensam em suicídio como nosso tio, ou
sentem a inveja, o anseio ou desprezo que nós experimentamos. Usamos
tipos especí cos de infelicidade e dor como meio para compreender o
sofrimento universal das pessoas e animais de toda parte. Simultaneamente,
inspiramos a dor de nosso tio e a de milhões de outras pessoas tão
desesperadas e solitárias quanto ele. Ao mesmo tempo, doamos espaço, boa
disposição, um buquê de ores, ou qualquer coisa que possa ter um efeito de
cura sobre ele e os demais. O que sentimos por uma pessoa pode ser
estendido a todas.
É preciso trabalhar tanto com o terceiro quanto com o quarto estágio:
com o sofrimento imediato de uma pessoa e a dor universal de todos. Se
pensarmos apenas na globalidade dos seres dotados de sensibilidade, nossa
prática será muito teórica e nunca tocará de fato nosso coração. Por outro
lado, se trabalharmos apenas com nós mesmos ou com a xação de uma
determinada pessoa, nossa perspectiva perderá sua abrangência e será muito
estreita. Trabalhar com as duas situações em conjunto torna a prática real e
sincera; ao mesmo tempo, teremos uma visão ampla e um meio para lidar
com todos os seres que vivem neste mundo.
Todas as nossas questões cármicas pendentes podem ser trazidas
diretamente para a prática. Na verdade, devemos convidá-las a vir. Suponha
que você esteja envolvido em um relacionamento horrível: sempre que
pensa em uma determinada pessoa, sente-se furioso. Isso é muito útil para o
tonglen! Talvez você esteja deprimido: sair da cama foi tudo que conseguiu
fazer hoje. Você se sente tão deprimido que gostaria de car deitado pelo
resto da vida. Aliás, chegou a pensar em se esconder embaixo da cama. Isso
é muito útil para a prática do tonglen. A xação especí ca deve ser real –
exatamente assim.
Vamos usar outro exemplo. Você pode estar formalmente praticando
tonglen ou apenas sentado, tomando seu café, e lá vem Mortimer – o objeto
de sua paixão, agressividade ou ignorância. Seu impulso pode ser o de bater
nele, abraçá-lo ou, talvez, desejar que ele nem estivesse ali.
Vamos supor que você tenha cado com raiva. O objeto é Mortimer e,
com ele, vem o veneno: fúria. Inspire isso. A ideia é desenvolver
compreensão por nossa própria confusão. A técnica consiste em não culpar
Mortimer nem pôr a culpa em si mesmo. Em vez disso, há uma raiva que
acabou de ser liberada – quente, escura e pesada. Experimente-a tão
plenamente quanto puder.
Inspire a raiva, remova o objeto e pare de pensar nele. Na verdade, ele é
apenas um catalisador muito útil. Nesse momento, você possui plenamente
essa raiva. Atribua todas as culpas a si mesmo. Isso exige muita coragem e é
extremamente insultante para o ego. De fato, esse processo destrói todo o
mecanismo do ego. Portanto, apenas inspire.
Então expire simpatia, relaxamento e amplidão. Em lugar de uma
situação pequena e escura, permita muito espaço para esses sentimentos.
Expirar é arejar e ventilar a situação. Expirar é como abrir os braços e apenas
deixar ir: signi ca ar fresco. Em seguida, inspire a raiva outra vez – seu calor
pesado e escuro. Expire, ventilando tudo e permitindo muito espaço.
Na verdade, o que estamos fazendo nesse processo é cultivar bondade
em relação a nós mesmos. Somente isso, muito simplesmente. Não
pensamos a respeito, não losofamos. Apenas inspiramos um klesha muito
real, possuímos integralmente esse sentimento e deixamos que ele seja
arejado, permitindo muito espaço à medida que expiramos. Nesse nível,
ainda estamos trabalhando com nós mesmos. Mas mesmo esse estágio – e
ainda que não tenha continuidade – já é uma prática incrível. Entretanto, a
verdadeira beleza da prática é que, em seguida, nós a expandimos.
Sem precisar fazer de conta, podemos reconhecer que bilhões de outros
seres dotados de sensibilidade sentem exatamente a mesma raiva. Eles a
experimentam da mesma maneira. O objeto pode ser diferente, mas isso não
vem ao caso: a questão é o sentimento em si. Inspiramos a raiva de todos
para que eles possam deixar de senti-la. Isso não torna nossa própria raiva
maior. Ela é apenas raiva, apenas uma xação nesse sentimento que causa
tanto sofrimento.
Às vezes, nesse momento, vislumbramos a razão pela qual existem
assassinatos, estupros, guerras; entendemos por que as pessoas ateiam fogo a
prédios, por que há tanto sofrimento no mundo. Tudo deriva de sentir raiva
e extravasá-la, em vez de acolher esse sentimento e arejá-lo. Tudo se
transforma no ódio e miséria que poluem o mundo e, obviamente,
perpetuam o círculo vicioso de sofrimento e frustração. Como nós sentimos
raiva, podemos ter um estalo, uma conexão que nos permitirá compreender
a raiva de todos os seres sensíveis. Primeiramente, trabalhamos com nosso
próprio klesha; então, expandimos rapidamente e inspiramos tudo isso.
Nesse ponto, não se trata mais de nossa própria carga particular: essa é
simplesmente a raiva dos seres dotados de sensibilidade – entre os quais
estamos incluídos. Inspiramos esse sentimento e expiramos uma sensação
de ventilação, para que todos os seres possam senti-la. Essa técnica aplica-se
a tudo que nos incomoda. Quanto maior for nosso desconforto, mais
despertos estaremos durante a prática do tonglen.
As coisas que realmente nos deixam loucos possuem uma enorme
energia. É por isso que temos medo delas. Pode ser até mesmo nossa própria
timidez: nós nos sentimos tão tímidos que temos medo de levantar e
cumprimentar uma pessoa; temos medo de olhar nos olhos de alguém.
Manter essa situação consome muita energia, mas é assim que nos
sustentamos. Na prática do tonglen, temos a oportunidade de reconhecer
integralmente nossos sentimentos – sem atribuir culpas – e ventilá-los com
a expiração. Então, podemos compreender melhor por que algumas pessoas
na sala parecem tão soturnas: não é porque nos odeiam, mas porque sentem
a mesma timidez e também não querem olhar nos olhos de ninguém. Desse
modo, o tonglen é, ao mesmo tempo, uma prática de fazer amizade consigo
mesmo e uma prática de compaixão.
Ao praticar, desenvolvemos nossa compreensão e começamos a entender
os outros muito melhor. Desse modo, nossa própria dor funciona como
meio. Nosso coração se desenvolve cada vez mais e, mesmo quando alguém
chega e nos insulta, podemos genuinamente entender toda a situação, pois
conhecemos muito bem o caminho de cada um de nós. Percebemos também
que podemos ajudar, simplesmente inspirando a dor dos demais e expirando
arejamento. O tonglen começa com relacionar-se diretamente com um
sofrimento especí co – nosso ou de outra pessoa. Em seguida, nós o usamos
para compreender que essa dor é universal, compartilhada por todos.
Quase todos nós podemos começar o tonglen pensando em alguém que
amamos muito. Às vezes, é mais fácil pensar em um lho, não em marido,
mulher, mãe ou pai, pois esses relacionamentos podem ser mais
complicados. Há algumas pessoas na vida que amamos diretamente, sem
complicações: pessoas idosas, doentes, crianças pequenas ou aqueles que
foram bondosos conosco.
Quando tinha 8 anos, Trungpa Rinpoche viu um cachorrinho novo,
ganindo e sendo apedrejado até a morte por um grupo, entre risos e
deboches. Ele relatou que, após essa experiência, sua prática do tonglen
passou a ser muito direta: bastava pensar no cachorrinho e seu coração
começava a se abrir instantaneamente. Não havia nenhuma complicação. Ele
faria qualquer coisa para inspirar o sofrimento do animal e expirar alívio.
Portanto, a ideia é começar com algo assim, alguma coisa que ative o
coração.
Pensamos em um cachorrinho sendo apedrejado e morrendo em
sofrimento e inspiramos esse sentimento. Então, já não há apenas o
cachorrinho, mas nossa conexão com a percepção de que, no mundo inteiro,
pessoas e animais sofrem injustamente como ele. Imediatamente
estendemos a prática e inspiramos o sofrimento de todos que estão em
situação semelhante.
Também é possível começar com o cachorrinho, com nosso tio ou com
nós mesmos e, então, estender gradualmente, cada vez mais. Após começar
com o desejo de aliviar a depressão de uma irmã, expandimos ainda mais e
inspiramos a depressão de todas as pessoas que, de algum modo, são
“neutras” – aquelas que não são próximas e tampouco causam medo ou
raiva. Inspiramos a depressão e enviamos alívio a todas essas pessoas
“neutras”. Então, aos poucos, a prática se dirige para aqueles que realmente
odiamos, que consideramos inimigos ou que de fato nos magoaram. Essa
expansão evolui à medida que praticamos. Não é possível simular esse
processo; por isso, começamos com o que nos é próximo.
É útil pensar na prática do tonglen em quatro estágios:
1. Experimentar um súbito lampejo de abertura
2. Trabalhar com a textura: inspirar o que é escuro, pesado e quente, e
expirar claridade, leveza e frescor
3. Trabalhar com o alívio de um tipo especí co e sincero de sofrimento
4. Estender o desejo de ajudar a todos

O mais importante é realmente entrar em contato com a xação e o


poder da atividade do klesha em nós mesmos. Isso torna a situação dos
outros perfeitamente acessível e real. Então, quando esse sentimento se
torna presente e nítido, lembramos sempre de expandir a prática. Deixamos
que nossa própria experiência seja um ponto de partida para trabalhar com
o mundo.
7
Trazendo tudo que encontramos para o
caminho

A máxima de hoje é: “Quando o mundo está cheio de maldade, transforme


todas as adversidades no caminho de bodhi.” A palavra bodhi signi ca
“iluminação”. Essa é a a rmação básica dos ensinamentos lojong: usar as
circunstâncias indesejáveis e desfavoráveis da vida como o verdadeiro
material para o despertar. Esse é o precioso legado desses ensinamentos.
Tudo que acontece é visto não como interrupção ou obstáculo, mas como
meio para despertar. Essa máxima se adapta muito bem à nossa vida
ocupada e a estes tempos difíceis. Na verdade, ela se destina a esse tipo de
vida: se não houvesse di culdades, não haveria necessidade de lojong ou de
tonglen.
Bodhisattva é outra palavra para referir-se ao guerreiro que desperta,
aquele que cultiva bravura e compaixão. Um ponto que essa máxima
enfatiza é que no caminho do guerreiro ou bodhisattva não há interrupções.
O caminho inclui todas as experiências, sejam elas serenas ou caóticas.
Enquanto tudo vai bem, estamos ótimos. Nós nos deleitamos com a beleza
da neve caindo lá fora ou a luz re etida no chão: há um sentimento de
apreciação. Mas, quando soa o alarme de incêndio e a confusão se instala,
camos irritados e aborrecidos.
Tudo é uma oportunidade para a prática – não há interrupção.
Gostaríamos de acreditar que as situações de tranquilidade e calma são o
que há de real. Quando há desordem, confusão e caos, ou achamos que
zemos algo de errado, ou, mais comumente, que alguém fez alguma coisa
para arruinar nossa maravilhosa meditação. Como uma pessoa disse certa
vez sobre uma mulher barulhenta e autoritária: “O que essa mulher está
fazendo no meu mundo sagrado?”
Outro ponto dessa máxima é que cultivar honestidade e uma visão clara
faz parte do despertar. Às vezes, as pessoas acham que, de acordo com
lojong, não deveríamos dizer que alguém nos feriu, já que, em vez de colocar
a culpa nos outros, devemos entrar em contato com os sentimentos
subjacentes à nossa própria história. Entretanto, ser capaz de reconhecer que
o mal foi feito faz parte da honestidade, da visão clara e da franqueza. A
primeira nobre verdade – o primeiríssimo ensinamento de Buda – é que o
sofrimento existe. Ele existe como parte da experiência humana. As pessoas
ferem umas às outras – nós magoamos e somos magoados. Reconhecer isso
é possuir visão clara.
Esse é um ponto complicado. Qual a diferença entre reconhecer que o
mal foi feito e atribuir culpas? Talvez esteja em levantar questões, em vez de
apontar um dedo acusador. Como posso me comunicar? O que fazer para que
o mal se desfaça por si só? Como ajudar os outros a encontrar sua própria
sabedoria, bondade e senso de humor? Esse é um desa o muito maior que
culpar, odiar e reagir.
Como ajudar? Podemos ser úteis, ao fazer amizade com nossos próprios
sentimentos de ódio, confusão e daí por diante. Desse modo, seremos
capazes de aceitá-los nos demais. Com essa prática, começamos a perceber
que podemos desempenhar todos os papéis. Não lidamos apenas com “eles”.
Somos “nós” e “eles”.
Eu me sentia chocada quando lia sobre pais que maltratam os lhos,
sobretudo quando isso incluía maus-tratos físicos. Ficava enfaticamente
indignada – até que me tornei mãe. Lembro-me muito bem de um dia em
que meu lho de 6 meses estava gritando e chorando, coberto de mingau de
aveia, enquanto minha lha de 2 anos e meio me puxava e derrubava tudo o
que estava na mesa. Nesse momento, pensei: “Entendo por que todas essas
mães maltratam seus lhos. Entendo perfeitamente. Simplesmente, fui
criada em uma cultura que não encoraja isso e, por essa razão, vou agir de
modo diferente. Mas, neste exato momento, tudo em mim deseja que essas
duas lindas criancinhas desapareçam.”
Portanto, para que você não se veja fazendo o tonglen com
condescendência por um outro que está tão confuso, lembre-se de que esta é
uma prática em que a compaixão começa a surgir em você porque você,
você mesmo, já esteve em situação semelhante. Já sentiu raiva, ciúme e
solidão. Sabe que sensações são essas e como, às vezes, agimos
estranhamente. Dizemos palavras cruéis porque nos sentimos sozinhos.
Insultamos os outros porque queremos ser amados por eles. Só é possível
pensar em se colocar no lugar do outro quando já estivemos ali. Isso não
acontece porque somos melhores, mas porque os seres humanos
compartilham as mesmas experiências. Quanto mais nos conhecemos, mais
compreendemos os demais.
Quando o mundo está cheio de maldade, como transformar as situações
indesejáveis em caminho para a iluminação? Uma forma é ter um lampejo
do bodhichitta absoluto. Entretanto, a maioria das técnicas relaciona-se com
o bodhichitta relativo, ou seja, com despertar a conexão com nosso ponto
vulnerável – não apenas através do que gostamos, mas também por meio de
nossos aspectos mais confusos.
As pessoas têm muitas razões para sentir raiva. É preciso reconhecer isso
– estamos com raiva. Colocar a culpa nos outros, porém, não vai resolver
nada.
Ishi tinha muitos motivos para sentir raiva. Toda a sua tribo havia sido
assassinada metodicamente, um a um. Só restara ele. No entanto, ele não
sentia ódio. Podemos aprender esta lição: não importa o que aconteça, se
pudermos nos relacionar com o ponto vulnerável subjacente à nossa raiva e
nos conectar com o que há ali, seremos capazes de nos relacionar com nosso
inimigo colocando-nos no lugar dele. Ter uma certa sensação de
comunicação com o inimigo – de coração para coração – é a única forma de
mudar as coisas. Enquanto o odiarmos, estaremos causando sofrimento a
ele, a nós mesmos e ao mundo.
Somente sem ódio poderemos realizar uma reforma verdadeira. Martin
Luther King, Cesar Chavez e Madre Teresa passaram essa mensagem. Gerald
Alce Vermelho – um velho índio sioux, meu mestre e grande amigo – disse-
me que, quando jovem, sentia ódio pela forma como seu povo havia sido e
continuava sendo tratado. Esse sentimento fez com que ele se tornasse
alcoólatra e infeliz. Mas, quando estava na Europa, durante a Segunda
Guerra, alguma coisa nele mudou: percebeu que estava sendo envenenado
por seu rancor. Voltou da guerra e, pelo resto da vida, tentou trazer de volta
aos jovens de sua tribo sentimentos de coragem, con ança e dignidade. Sua
principal mensagem era não odiar, mas aprender a se comunicar com todos
os seres. Esse homem possuía uma mente grandiosa.
Outra máxima diz: “Todo o dharma converge para um único ponto.”
Todos os ensinamentos – seja shamatha-vipashyana, lojong ou outras
instruções de qualquer tradição de sabedoria – convergem para um ponto:
renunciar ao apego a si mesmo. É assim que passamos a estar em casa no
mundo. Não estou dizendo que o ego representa um mal. Não é isso. O ego
não é alguma coisa de que devemos nos livrar, mas algo que passamos a
conhecer – algo com que fazemos amizade quando aprendemos a não
extravasar nem reprimir nossos sentimentos.
Quer estejamos falando da difícil conjuntura internacional ou de nossa
dolorosa situação doméstica, a dor é resultado do que chamamos de apego
ao ego, de querer que tudo seja feito ao nosso modo, de desejar o “eu
vitorioso”.
O ego é como um quarto todo nosso, um quarto com uma bela vista,
com a temperatura, os cheiros e a música de que gostamos. Queremos que
ele seja do nosso jeito. Gostaríamos somente de um pouco de paz, um pouco
de alegria, de “um tempo” para nós mesmos.
Entretanto, quanto mais pensamos assim e tentamos impor nosso estilo,
mais tememos que os outros ou o que está do lado de fora comecem a
ganhar terreno. Em vez de nos tornarmos descontraídos, fechamos as
cortinas e trancamos as portas. Quando conseguimos sair, achamos essa
experiência extremamente inquietante e desagradável. Ficamos mais
descon ados, assustados e irritáveis do que nunca. Quanto mais tentamos
fazer com que as coisas saiam do nosso jeito, menos nos sentimos em casa.
Para desenvolver compaixão por si mesmo e pelos outros é necessário
destrancar a porta. Ainda não vamos abri-la, porque, antes disso, é preciso
trabalhar com o medo de que entre alguém de quem não gostamos. Então,
quando relaxamos e fazemos amizade com nossos sentimentos, começamos
a abri-la. Com certeza vão entrar músicas e cheiros de que não gostamos.
Com certeza vão chegar pessoas dizendo que deveríamos ser de outra
religião, que deveríamos votar em alguém que desaprovamos, que
deveríamos dar uma quantia que não queremos gastar.
Nesse ponto, começamos a nos relacionar com esses sentimentos.
Desenvolvemos alguma compaixão, conectando-nos com nosso lado mais
vulnerável. Quando não nos protegemos tanto, passamos a ter contato com
o que vai acontecendo. Então, como Ishi, gradualmente, nossa curiosidade
se torna maior do que o medo. Ser corajoso não signi ca derrotar o medo,
mas conhecer sua natureza. Apenas abrimos a porta cada vez mais e, em um
dado momento, sentiremos que somos capazes de convidar todos os seres
sensíveis para serem nossos hóspedes.
Isso nos ajuda a perceber que os Nelson Mandela e as Madre Teresa do
mundo também sabem o que é estar em um quartinho, com portas e janelas
fechadas. Eles também conhecem a raiva, a inveja e a solidão. Essas pessoas
zeram amizade consigo mesmas e, por isso, tornaram-se amigas do mundo.
Desenvolveram a coragem de se relacionar com a instabilidade, a fragilidade
e o medo de seu próprio coração e, por isso, passaram a não temer esses
sentimentos quando eles são desencadeados pelo mundo exterior.
Quando começamos a praticar desse modo, nós nos tornamos tão
honestos com o que sentimos que começamos a desenvolver compreensão
também em relação aos outros. Em um grupo de discussão, durante um
treinamento lojong de m de semana, um jovem me contou a seguinte
história: ele estava em um bar de Los Angeles jogando bilhar. Antes de
começar a jogar, colocou sua jaqueta de couro novinha em uma cadeira.
Quando terminou, ela não estava mais lá. Os quatro outros jogadores
caram apenas sentados, sorrindo ironicamente. Eram uns sujeitos
grandalhões, e ele se sentiu pequeno e indefeso. Sabia que eles tinham
roubado sua jaqueta, mas não seria prudente enfrentá-los, já que ele era
menor e estava sozinho. Esse rapaz se sentiu humilhado e sem ação.
Então, como já havia trabalhado com esta prática, lembrou-se de que
poderia sentir empatia com todas as pessoas que já tivessem sido alvo de
deboche, escárnio e maus-tratos por causa de religião, cor da pele,
preferência sexual, nacionalidade, ou por qualquer outra razão. Sentiu-se
identi cado com todas as pessoas que, em algum momento, já tivessem
passado por situações humilhantes. Para ele, essa foi uma experiência muito
profunda. Essa atitude não o fez recuperar sua jaqueta, nem resolveu nada.
Entretanto, abriu seu coração para muitas pessoas com quem nunca tivera
qualquer sensação de empatia.
Esse é o ponto em que o coração aparece nesta prática e daqui vem a
sensação de gratidão e apreciação por nossa vida. Nós nos tornamos parte
de uma linhagem de seres que, ao longo da história, cultivaram a coragem,
mantendo-se abertos às grandes di culdades e às situações dolorosas e
transformando-as em caminho de iluminação. Ainda vamos bater muito a
cabeça e vamos continuar a sentir que somos inadequados. Como essas
pessoas, podemos usar nossas experiências para despertar. Os ensinamentos
lojong nos dão os meios para nos conectarmos com o poder de nossa
linhagem – a linhagem do guerreiro cheio de doçura.
8
Atribua todas as culpas a um só

Gostaria de falar um pouco sobre outra máxima: “Atribua todas as culpas a


um só.” Quando dizemos, como na máxima anterior, “quando o mundo está
cheio de maldade”, queremos dizer “quando o mundo está cheio da
consequência de apegar-se ao ego”. Se o mundo está cheio de apego ao ego
ou xação em um determinado resultado, existe muito sofrimento. Essas
situações dolorosas, porém, podem ser transformadas em trilha de bodhi.
Uma forma de fazer isso é atribuir todas as culpas a um só. Para entender
como isso funciona, vamos observar o resultado de acusar os outros.
Basta uma retrospectiva histórica para perceber o efeito provocado por
atribuir culpas. Na antiga Iugoslávia, por exemplo, existia uma situação
muito dolorosa. Sérvios e croatas se exterminavam e violentavam, matando
crianças e velhos. Se você perguntasse a qualquer pessoa de uma das facções
o que desejava, ela diria que queria simplesmente ser feliz. Os sérvios apenas
queriam ser felizes. Eles viam os outros como inimigos e achavam que, para
atingir seu objetivo, era preciso erradicar a causa de sua infelicidade. Todos
nós pensamos assim; se falarmos com o outro lado, veremos que eles dirão a
mesma coisa. Essa é a verdade em Israel, entre árabes e judeus. Essa é a
verdade na Irlanda do Norte, entre católicos e protestantes. Essa é a verdade
em qualquer lugar e está cando cada vez pior. Em todos os cantos do
mundo, a mesma realidade.
Quando olhamos para o mundo sob essa ótica, vemos que tudo se
resume ao fato de que ninguém é encorajado a sentir a ansiedade, o
nervosismo e a vulnerabilidade que permeiam essas situações. Como
consequência, achamos que acusar alguém é a única saída. Basta ler um
único jornal para concluir que culpar os outros não funciona.
Também precisamos olhar para nossa própria vida: como estamos indo
com nossos Joões e Joanas? Frequentemente, eles são as pessoas com quem
temos relacionamentos mais próximos. Eles nos atingem porque não
podemos nos livrar deles, simplesmente passando a morar do outro lado da
cidade, mudando de lugar no ônibus ou tomando qualquer outra
providência a que podemos nos dar ao luxo com meros conhecidos que
também detestamos.
A questão é que estamos errados quando pensamos que há alguma
diferença entre a forma como nos relacionamos com quem nos irrita e a
situação de con ito na Irlanda do Norte, na antiga Iugoslávia, no Oriente
Médio ou na Somália. Estamos errados quando achamos que há alguma
diferença entre nossa situação e o que sentem os índios em relação ao
homem branco, os homens brancos em relação aos negros, ou os que estão
envolvidos em qualquer dos confrontos que acontecem no mundo. É preciso
começar por nós mesmos. Se todas as pessoas do planeta começassem
consigo mesmas, veríamos uma enorme mudança na energia agressiva que
está causando esse holocausto generalizado.
“Atribua todas as culpas a um só” – ou, se preferir, “assuma a culpa” –
soa como uma máxima masoquista. É como se eu dissesse: “Pode me bater,
pode me cobrir com um monte de esterco, pode me dar um soco nos dentes
e me largar ali.” Entretanto, que tranquilo porque o verdadeiro signi cado
não é nada disso.
Uma forma de começar a praticar o “atribua todas as culpas a um só” é
perceber como nos sentimos quando colocamos a culpa em alguém. O que,
de fato, está por trás de toda discussão sobre quanto algo ou alguém está
errado? O que sentimos quando culpamos alguém? Quando prestamos
atenção ao que acontece, percebemos que, de algum modo, começamos a
cultivar a coragem, bem como a compaixão e a honestidade. Quando os
assuntos mal resolvidos da nossa vida vêm à tona, não mais tentamos
escapar, mas camos curiosos e abertos em relação a esses aspectos de nós
mesmos.
“Atribua todas as culpas a um só” é uma instrução saudável e compassiva
que provoca um curto-circuito em nossa avassaladora tendência a encontrar
um culpado. Não signi ca que, em vez de acusar alguém, vamos acusar a
nós mesmos. Signi ca entrar em contato com a forma pela qual a culpa é
sentida. Em lugar de nos retrairmos, em vez de afastarmos as situações,
entramos em contato com o fato de que há um ponto muito vulnerável sob
toda essa armadura, e responsabilizar os outros é, provavelmente, uma das
armaduras mais aperfeiçoadas de que dispomos.
Podemos levar essa máxima para além do que entendemos por “culpa” e
aplicá-la simplesmente à sensação geral de que há algo errado. Quando
sentimos que alguma coisa está errada, podemos abandonar nosso enredo e
entrar em contato com o que permeia essa sensação. Se deixarmos que as
palavras se esgotem e pararmos de falar de nós mesmos, poderemos
perceber que ainda resta algo – e esse “algo” é geralmente muito suave. A
princípio, ele pode parecer intenso e forte, mas, se não recuarmos e
continuarmos a abrir o coração, veremos que, por trás de todo o medo, está
o que tem sido chamado de frágil ternura.
A verdade é que, embora existam os ensinamentos e as práticas, cada um
de nós deve encontrar seu próprio caminho. O que realmente signi ca abrir-
se? O que signi ca não resistir? O que tudo isso quer dizer? Encontrar essas
respostas por si mesmo é um caminho para toda a vida e, para isso,
contamos com o enorme apoio da prática e dos ensinamentos.
Tente abandonar o objeto da acusação ou daquilo que você considera
errado. Em vez de jogar as bolas de neve para fora, coloque-as no chão e
relacione-se de forma não conceitual com sua raiva, com sua justa
indignação, com sua sensação de estar farto e zangado, ou com qualquer
outro sentimento. Se Mortimer, João ou Joana passarem por aí, em vez de
falar consigo mesmo sobre eles durante os próximos quatro dias,
experimente interromper esse monólogo interior. Simplesmente, siga a
instrução que recebeu: perceba que está falando consigo mesmo e abra mão
disso. Essa é a instrução básica shamatha-vipashyana – isso é o que signi ca
abandonar o objeto. Então, você pode começar a praticar o tonglen.
Quando não estamos alimentando o fogo da raiva ou do anseio com
nossa conversa interior, ele se extingue naturalmente; ele atinge seu pico e se
esgota. Diz-se que tudo tem um começo, um meio e um m. Entretanto,
quando começamos a atribuir culpas e a conversar internamente, as coisas
parecem ter um começo, um meio e nenhum m.
É bastante estranho, mas culpamos os outros e colocamos tanta energia
no objeto de nossa raiva, ou do que quer que estejamos sentindo, porque
temos medo de que essa raiva, mágoa ou solidão não termine nunca. Por
isso, em vez de nos relacionarmos de maneira direta com nossos
sentimentos, tentamos pôr m a eles jogando a culpa em alguém. Podemos
só conversar internamente sobre essa pessoa ou de fato bater nela, despedi-
la, gritar com ela. Quer estejamos usando nosso corpo, fala ou mente – ou os
três –, curiosamente, estamos tentando nos livrar da dor. Em vez disso,
extravasá-la é que faz com que ela dure.
“Atribua todas as culpas a um só” é o mesmo que dizer: em vez de
sempre culpar o outro, reconheça a sensação de culpa, reconheça a raiva,
reconheça a solidão e faça amizade com esses sentimentos. Use a prática do
tonglen para ver como é possível embalar sua raiva, medo ou solidão no
berço da bondade amorosa. Use o tonglen para aprender a ser gentil com
tudo isso. Ser gentil consigo mesmo e criar uma atmosfera de compaixão
exige parar de conversar internamente sobre quanto tudo está errado – ou,
a nal, sobre quanto tudo está certo.
Eu o desa o a tentar abandonar o objeto de sua emoção, a praticar o
tonglen e ver se, de fato, a intensidade do assim chamado veneno diminui.
Eu experimentei por mim mesma, porque não acreditava que fosse
funcionar. Achava impossível e, como minha descrença era muito intensa,
por certo tempo tive a impressão de que não funcionava mesmo. Entretanto,
à medida que minha con ança crescia, descobri que isso é o que ocorre.
Quando o ego começa a ser ventilado, a intensidade e a duração do klesha
diminuem. Esse grande e sólido eu – “eu tenho um problema, eu estou
solitário, eu sinto raiva, eu sou viciado” – começa, de algum modo, a ser
arejado, no momento em que revertemos nossa tendência habitual e
reconhecemos nossos sentimentos, em vez de culpar os outros.
O “um” em “atribua todas as culpas a um só” refere-se à nossa tendência
a nos proteger – nosso apego ao ego. Quando dirigimos todas as culpas para
essa tendência, reconhecendo nossos próprios sentimentos e sentindo-os
plenamente, estamos fazendo com que nosso habitual e monolítico EU se
torne mais leve, pois ele é fabricado com opiniões, alterações de humor e
muitas outras coisas que, embora efêmeras, são vívidas e convincentes.
Conheço um jovem de 15 anos, hispânico, que nasceu em Los Angeles,
cresceu em um bairro violento e, desde os 13 anos, já fazia parte de gangues.
Esse rapaz, chamado Juan, acabou se tornando uma pessoa realmente má.
Valentão, falava com rispidez e era cheio de rancor e ressentimento. Dava a
impressão de não ter outra escolha: para sobreviver em um mundo tão duro,
precisava ser o pior, o mais cruel.
Juan era dessas pessoas que jogam a culpa de tudo nos outros. Se tivesse
a oportunidade de criar problemas, certamente o faria. Por um lado, era
insuportável, mas, por outro, tinha certo brilho e talento. Havia uma
mistura: ele despertava, ao mesmo tempo, amor e ódio. Era um rapaz
atrevido, mas também cheio de vida e engraçado. Chegava a ser cruel, pois
seria capaz de surrar e intimidar alguém. Mas isso era até leve, comparado
ao que ele vivia em casa: ali, matar uns aos outros fazia parte da rotina.
Esse rapaz foi mandado para Boulder, no Colorado, para que pudesse ter
uma folga, para que tivesse um verão agradável nas Montanhas Rochosas.
Sua mãe e outras pessoas estavam tentando ajudá-lo a ter uma boa educação
e escapar do pesadelo em que havia nascido. As pessoas que o receberam
tinham certo vínculo com a comunidade budista local, e foi assim que eu
vim a conhecê-lo. Um dia, ele compareceu a um evento de que Trungpa
Rinpoche participava e, no nal, Rinpoche cantou o hino de Shambhala.
Essa era uma experiência péssima para todos nós porque, por alguma razão,
ele gostava de cantá-lo a plenos pulmões, com sua voz aguda e desa nada.
Esse evento aconteceu ao ar livre. À medida que Rinpoche cantava ao
microfone e o som se propagava por quilômetros pela planície, Juan
desmoronou e começou a chorar. Todos estavam se sentindo sem jeito ou
embaraçados, mas Juan simplesmente chorou. Mais tarde, disse que teve
essa reação porque nunca havia visto alguém ser tão corajoso, e explicou:
“Esse sujeito não tem medo de fazer papel de bobo.” Essa acabou sendo uma
virada importante em sua vida, pois o levou a perceber que, do mesmo
modo, não precisava ter medo de ser tolo: podia abrir mão de todas as
máscaras e provocações que protegiam sua vulnerabilidade. Sua inteligência
e brilho permitiram que ele compreendesse a mensagem, e assim sua vida
mudou completamente. Hoje, já formado, ele vive em Los Angeles, onde
trabalha ajudando crianças.
Portanto, esse é o ponto fundamental. Temos a tendência de jogar toda a
culpa em Juan porque ele é tão detestável. Não somos encorajados a entrar
em contato com o que está por baixo de nossas palavras de ódio, anseio e
inveja: nós apenas as expressamos continuamente. Entretanto, quando
praticamos esta máxima e atribuímos todas as culpas a um só, vemos que a
armadura do apego ao ego torna-se mais leve e nosso coração suave começa
a aparecer. Podemos nos sentir tolos, mas não precisamos ter medo disso.
Podemos ser nossos próprios amigos.
9
Seja grato a todos

A máxima “seja grato a todos” refere-se a fazer as pazes com aspectos que
rejeitamos em nós mesmos. Ao agir assim, também fazemos as pazes com as
pessoas de quem não gostamos, pois estar com elas frequentemente
funciona como catalisador para desenvolvermos amizade em relação a nós
mesmos. Portanto, “seja grato a todos”.
Se zéssemos uma lista das pessoas de quem não gostamos – as que
achamos insuportáveis, ameaçadoras ou dignas de desprezo –,
descobriríamos muito sobre os aspectos de nós mesmos que não
conseguimos encarar. Se atribuíssemos uma palavra a cada um dos criadores
de caso que aparecem em nossa vida, acabaríamos com uma lista de
características nossas que rejeitamos e projetamos no mundo exterior.
Mesmo sem ter consciência disso, as pessoas que nos causam aversão
mostram aspectos que consideramos inaceitáveis em nós mesmos e que,
sem elas, não conseguiríamos enxergar. Nos ensinamentos tradicionais de
lojong, isso é colocado de outra maneira: os outros desencadeiam nosso
carma mal resolvido. Eles funcionam como um espelho e nos oferecem a
oportunidade de nos reconciliarmos com antigos problemas que carregamos
por aí como uma mochila cheia de pedras.
“Seja grato a todos” é uma forma de dizer que podemos aprender com
qualquer situação, principalmente se praticarmos essa máxima com
consciência. As pessoas e situações de nossa vida podem servir como
lembrete para percebermos a neurose como neurose, para vermos quando
estamos no quarto en ados debaixo das cobertas, quando fechamos as
cortinas, trancamos a porta e decidimos car por ali mesmo.
Podemos aprender com tudo porque temos sabedoria, inteligência e
bondade fundamentais. Portanto, quando o ambiente é propício e nos
estimula a ter coragem, a abrir o coração e a mente, descobrimos que
podemos nos conectar com a sabedoria e a compaixão que já existem –
buscamos recursos em nossa própria fonte, naquilo que já possuímos.
Temos vontade de abrir os olhos, o coração e a mente, de permitir que as
situações da vida se tornem nossos mestres. Com consciência, somos
capazes de descobrir por nós mesmos o que causa infelicidade e o que gera
alegria.
“Ser grato a todos” é alcançar uma completa mudança de atitude. Essa
máxima não é insípida nem ingênua – não signi ca que, se formos atacados
e assaltados na rua, devemos sorrir com condescendência e dizer: “Ah! Devo
ser grato a isso”, antes de desmaiar. Essa máxima refere-se ao modo como
aumentamos nossa ignorância através da fuga, sem perceber que estamos
ingerindo veneno, que estamos colocando mais uma camada de proteção
sobre nosso coração e deixando de ver o que realmente acontece.
“Seja grato a todos” signi ca que todas as situações são um aprendizado
e, frequentemente, as mais difíceis são as que mais nos ensinam. Pode haver
um Juan, um João ou uma Joana em nossa vida, e são eles que nos fazem
andar para a frente. Estou falando daqueles que não vão embora: mãe,
marido, mulher, amores, lhos – as pessoas com quem lidamos todo santo
dia e que fazem parte de situações que não podemos evitar.
Essas situações realmente nos ensinam porque não existe uma solução
pronta para elas. Estamos a cada dia enfrentando adversários, encarando
desa os e chegando ao limite. Ninguém pode nos dizer exatamente o que
fazer, já que só nós conhecemos nossa tortura, só nós sabemos onde nosso
relacionamento com João ou Joana nos atinge. Os outros não sabem: eles
não sabem quando devemos ser mais gentis ou mais diretos, quando
precisamos car quietos e quando precisamos falar.
Ninguém sabe o que abrir a porta signi ca para cada um de nós. Para
alguns, falar já é abrir um pouquinho; para outros, isso acontece quando se
calam. Tudo tem a ver com nossa antiga e habitual reação a um momento
difícil, e com o que é preciso para suavizar a situação e causar uma mudança
de atitude. São os Joões e Joanas que nos confrontam com esses dilemas e
desa os.
Basicamente, só conseguiremos nos comunicar com essas pessoas se
encararmos os ensinamentos e a prática de forma muito pessoal, sem contar
com a interpretação dos outros. Já possuímos sabedoria interior e cabe a nós
descobrir o que é preciso para abrir a porta. Por alguma razão, por mais que
desejemos que desapareçam da nossa vida e nos deem um descanso, essas
pessoas estão sempre por ali e, mesmo quando conseguimos nos livrar delas,
muito rapidamente parecem reaparecer com outros nomes e rostos. São elas
que apontam nossos aspectos mais arraigados.
Quanto a ser grato a tudo, é importante perceber que nenhuma máxima,
nenhuma prática de meditação nem nada do que ouvimos nos
ensinamentos representa uma solução. Estamos evoluindo. Estamos
continuamente aprendendo, abrindo-nos mais e mais.
É bom manter a mente aberta, de modo que cada situação seja
completamente nova. É como se nunca tivéssemos estado ali, como se cada
cena fosse inédita. Entretanto, mesmo essa abordagem pode ser uma
armadilha. Digamos que você seja instrutor de meditação. Sua aluna chega
e, por você estar aberto e sintonizado, algo mágico acontece. Existe algum
tipo de comunicação verdadeira e é possível perceber que alguma ajuda foi
dada, que algo atravessou a barreira e houve conexão com o outro coração.
Quando ela sai, você se sente ótimo: “Uau! Fiz algo maravilhoso e pude
sentir isso.” Quando o próximo aluno entra, você esquece que essa é uma
situação nova porque ainda está se sentindo muito bem com o que acabou
de acontecer. Ele senta, fala – e você se sai com as mesmas respostas que
acabou de dar. O resultado, entretanto, é uma reação fria e desinteressada.
Você passa, então, pela humilhante experiência de perceber que não existe
uma única solução para um problema. Ajudar a si mesmo ou aos outros tem
a ver com abrir-se e apenas estar ali: é assim que alguma coisa acontece entre
as pessoas. Esse é, porém, um processo contínuo de aprendizado. Não é
su ciente abrir-se apenas uma vez.
O que aprendemos com os Joões e Joanas da nossa vida não é algo que
podemos patentear e vender, com absoluta certeza de que sempre vai dar
certo. Não é assim que funciona. Esse tipo de aprendizado é uma contínua
jornada rumo ao despertar.
Certa vez, eu trabalhava com um estudante de meditação – a quem
chamarei de Dan – que tinha um sério problema com álcool e drogas. Ele
estava fazendo grandes progressos, mas, em um dado momento, tomou uma
bebedeira. No dia em que soube disso, tive a oportunidade de encontrar
Trungpa Rinpoche. Não me contive e contei a ele quanto estava aborrecida
por Dan ter bebido. Eu estava muito decepcionada. Bem, Rinpoche cou
muito bravo, e isso estancou completamente meu coração e minha mente.
Ele disse que estar chateada com a bebedeira de Dan era problema meu:
“Você nunca deve ter expectativas em relação aos outros. Apenas seja gentil.”
Quanto a Dan, eu deveria apenas ajudá-lo a progredir, centímetro por
centímetro, e ser gentil – convidá-lo para jantar, dar-lhe pequenos presentes
e fazer o que fosse possível para trazer alguma alegria à sua vida – sem xar
grandes metas para ele. Disse-me também que colocar objetivos para os
outros pode ser agressivo: o que realmente queremos é uma história de
sucesso para nós mesmos. Quando agimos assim, estamos querendo que os
outros vivam de acordo com nossos ideais. Em vez disso, devemos apenas
ser bondosos.
O ponto principal do “Seja grato a todos” – a “cutucada” – é que
queremos nos livrar das situações que mais nos deixam loucos: nossos Joões
e Joanas. Não desejamos ser gratos a eles. Queremos resolver o problema e
não sentir mais dor. João nos faz sentir envergonhados, rebaixados ou
ofendidos; algo no jeito como ele nos trata nos faz tanto mal que
simplesmente queremos acabar com isso.
Essa máxima nos encoraja a perceber que, no momento em que
encontramos um adversário à altura, também encontramos um mestre. Isso
não signi ca que devemos nos calar, não dizer nada, e apenas car ali,
inspirando e expirando – embora essa possa ser exatamente a nossa reação.
O tonglen é muito mais profundo do que isso e tem a ver com abrir-se à
situação, de modo que a bondade fundamental de João ou Joana e nossa
própria bondade fundamental comecem a se comunicar.
Precisamos de algo que ca entre reprimir e extravasar, mas que é único
e diferente a cada vez: nossa sabedoria nos permitirá descobrir o que é isso.
Cada um de nós possui sabedoria para chegar à abertura: ela é inerente a
todos nós. Não ser aprisionado pelo ego é um processo que implica render-
se às situações, não para ser vitorioso, mas para chegar a uma comunicação.
A ação e a fala compassivas não são uma tentativa isolada, mas uma
jornada para toda a vida. Essa jornada, porém, parece começar ao
percebermos que, quando alguém nos atinge e nos deixa loucos, a solução
não é ser tão simplista a ponto de engolir qualquer coisa, como uma
minhoca: “Tudo bem, podem me atacar.” Por outro lado, também não é tão
fácil quanto dizer: “Vou pegá-los.” É um desa o. Nesse momento surge o
koan na vida cotidiana: as questões sem resposta que a vida nos apresenta
são nossos maiores mestres.
Quando Atisha, o grande mestre budista hindu, foi ao Tibete, já
praticava os ensinamentos lojong há algum tempo. Como a maioria dos
praticantes, sentia-se obcecado pelo fato de que há pontos cegos que
desconhecemos – não sabemos que estamos presos em determinados
aspectos. Por isso, valorizava os Joões e Joanas de sua vida, pois sentia que
somente eles seriam capazes de afetá-lo o bastante para lhe mostrar seus
pontos obscuros. Por meio deles, seu ego cava menor. Por meio deles, sua
compaixão aumentava.
A história conta que Atisha foi informado de que os tibetanos eram
afáveis, simples, exíveis e abertos. Atisha achou que eles não seriam
irritantes o bastante para tirá-lo do sério e, por isso, levou como auxiliar um
jovem bengalês, genioso e de temperamento difícil, pois achava que essa
seria a única maneira de permanecer atento. Os tibetanos gostam de contar
que, quando chegou ao Tibete, esse mestre percebeu que nem precisava ter
trazido seu acompanhante, já que a população local era bem mais
desagradável do que ele esperava.
Em nossa própria vida, nossos acompanhantes bengaleses são as pessoas
que, assim que as deixamos cruzar a soleira da porta, vão direto ao porão
onde guardamos muitas coisas que preferimos nem ver, pegam algo, trazem
até nós e perguntam: “Isto é seu?”
Essas são aquelas pessoas que dizem: “De jeito nenhum vou fazer o que
acabou de me pedir. Acho sua ideia estúpida”, bem no momento em que seu
estilo habitual está funcionando e todos estão a seu favor. Você pensa: “E
agora, o que eu faço?” Em geral, o que fazemos é tentar conseguir que os
outros passem para o nosso time. Sentamos e falamos sobre como essa
pessoa que nos desa ou é horrível. Quando a discordância está nos
domínios da política ou em “ismos” de qualquer natureza, fazemos faixas e
cartazes dizendo até que ponto estamos certos e até que ponto o outro está
errado. A essa altura, nosso adversário também já formou seu time, e assim
surgem os con itos raciais e religiosos e a Terceira Guerra Mundial. Nossa
enfática indignação torna-se um credo para nós e toda a nossa turma.
Acabamos em uma cruzada entre certos e errados, e assim começam os
confrontos. Ninguém nos encoraja a sentir que, em primeiro lugar, fomos
feridos para, em seguida, tentar encontrar a fala e a ação corretas que
poderiam se seguir.
Gurdjieff – mestre do início do século XX e detentor de um tipo de
sabedoria quase louca – compreendia o signi cado dessa máxima. Ele vivia
não muito longe de Paris, em um solar com extensos jardins. Todos os seus
discípulos iam até lá para aprender com ele. Um de seus principais
ensinamentos era o de estar desperto para qualquer processo que se
estivesse atravessando. Ele gostava de pressionar seus alunos; na verdade,
conta-se que ele os fazia aceitar as funções que menos desejavam: se alguém
quisesse ser professor universitário, ele faria com que se tornasse vendedor
de carros usados.
Havia nessa comunidade um homem que tinha um temperamento
horrível. Era tão suscetível que ninguém o suportava. Qualquer coisinha
fazia com que ele tivesse um ataque e casse irritado. Reclamava de tudo e
explodia diante de um simples comentário. Por isso, quando ele estava por
perto, os outros pisavam em ovos. Todos gostariam, simplesmente, que ele
fosse embora.
Gurdjieff costumava pedir a seus alunos que zessem coisas sem sentido.
Um dia, cerca de quarenta pessoas estavam retirando pequenos pedaços de
grama de um lugar e levando para outro ponto do jardim. Isso foi demais
para esse sujeito, foi a gota d’água. Gritou, explodiu, pegou o carro e foi
embora, causando uma reação espontânea de alegria nos demais. Todos
caram animados e felizes. Mas, quando Gurdjieff soube do que havia
acontecido, disse: “Ah, não!”, e saiu atrás dele.
Três dias depois, os dois voltaram. Nessa noite, seu ajudante, ao servir-
lhe o jantar, perguntou: “Por que o senhor o trouxe de volta?” Em voz muito
baixa, ele respondeu: “Você não vai acreditar... isso ca entre nós dois e não
conte para mais ninguém, mas eu pago para que ele que aqui.”
Contei essa história em um centro de meditação e, mais tarde, recebi
uma carta que dizia: “Tínhamos duas pessoas ajudando e tudo estava na
mais perfeita harmonia. Agora, temos quatro, e as confusões estão
começando. Por isso, todos os dias, perguntamos uns aos outros: ‘Alguém
está pagando para que você que por aqui?’”
10
Cortando a solidez dos pensamentos

Certa vez, numa conversa, uma aluna me disse: “Isso tudo é meio
deprimente, não é? Há algo de sinistro e desanimador no que estamos
fazendo aqui. Onde está a alegria? Onde está o bom humor de tudo isso?”
Conversamos um pouco e, no nal, ela teve sua própria intuição: “Acho que
a alegria vem de nos tornarmos reais.”
Isso de fato me impressionou. Quer estejamos nos conectando com o
autêntico coração da tristeza e com as áreas confusas de nossa vida, quer
com a visão, expansão e abertura, o bem-estar inclui tudo que existe. A
alegria não tem a ver com prazer em oposição à dor, ou com entusiasmo em
oposição à tristeza. A alegria engloba tudo.
Há uma máxima que diz: “Não chafurde na autocomiseração.” Se você
acha que a prática do tonglen o faz chorar muito, essa é uma boa máxima
para ter em mente. Essa abordagem, em geral, pode evoluir facilmente para
a autopiedade, e a autopiedade requer muita manutenção. Para sustentá-la, é
preciso falar um bocado consigo mesmo. Essa máxima nos diz para
conhecer a sensação causada pela autocomiseração que permeia nossa
história – é assim que o treinamento nos leva a desenvolver um
relacionamento genuíno, sincero e inteligente com a totalidade da
experiência humana.
Somos realmente engraçados: as pessoas que choram muito acham que
deveriam chorar menos; as que choram pouco acham que deveriam chorar
mais. Um homem me disse que talvez devesse abandonar o tonglen, já que
não experimentava nada. Pensava que não havia entendido a prática: não
cava nem sentimental nem caloroso, apenas um tanto entorpecido. Tive
que encorajá-lo, dizendo que uma experiência genuína de entorpecimento
equivale a uma experiência genuína do que é ser humano.
Tudo é matéria-prima para o despertar. Podemos usar o
entorpecimento, a insensibilidade e até mesmo a autopiedade – não importa
o que seja – desde que possamos ir mais fundo e chegar ao que está por
baixo de nossa história. É nesse ponto que nos conectamos com o que
signi ca ser humano e é daí que decorrem a alegria e o bem-estar: da
sensação de ser real e de ver a realidade nos demais.
Uma máxima nos diz que, quando o mundo está cheio de maldade ou de
coisas que não desejamos, tudo isso pode ser transformado no caminho do
despertar. Temos, então, algumas sugestões como “Atribua todas as culpas a
um só” ou “Seja grato a todos”. Uma terceira sugestão poderia ser a de que é
possível usar aparentes obstáculos para despertar, percebendo a falta de
solidez de todas as coisas, percebendo a shunyata ou o bodhichitta absoluto.
A máxima seguinte é bastante difícil e se refere à shunyata: “Ver a
confusão como os quatro kayas é a proteção insuperável da shunyata.” O
trecho que fala sobre ver a confusão é bastante acessível para todos nós, mas
o restante exige algumas ponderações.
A palavra kaya signi ca corpo. Os quatro kayas são: dharmakaya,
sambhogakaya, nirmanakaya e svabhavikakaya. Podemos dizer que os
quatro kayas são maneiras de descrever como a vacuidade se manifesta e
como podemos experimentá-la.
Em primeiro lugar há a sensação de espaço fundamental do dharmakaya
– corpo do dharma. Em nossos cânticos da manhã dizemos: “A essência dos
pensamentos é dharmakaya; não é nada, mas tudo emerge daí.” Dharmakaya
é o espaço fundamental a partir do qual tudo surge, e tudo que surge é
essencialmente vasto – não é xo nem pesado.
Sambhogakaya – o “corpo de fruição” – tem a ver com a experiência de
que a vacuidade não é exatamente o espaço, tal como entendemos isso. Há
energia, cor e movimento. Ela é vibrante, como um arco-íris, uma bolha de
sabão ou o re exo de nosso rosto no espelho. Ela é vívida, embora seja, ao
mesmo tempo, insubstancial. Sambhogakaya refere-se a essa qualidade
energética, ao fato de que a vacuidade é uida e vívida. O som é
frequentemente usado como imagem para o sambhogakaya: não podemos
vê-lo ou capturá-lo, mas ele possui vibração, energia e movimento.
Nirmanakaya – o terceiro dos quatro kayas – refere-se à experiência de
que a vacuidade se manifesta na forma. Nirmanakaya é o meio de
comunicação com os outros. O Sutra do Coração diz: “A forma é vacuidade;
a vacuidade também é forma.” Nirmanakaya tem a ver com o fato de que os
fenômenos realmente se manifestam. Árvores, grama, prédios, tráfego, cada
um de nós e o mundo todo, de fato, se manifestam. Essa é a única maneira
pela qual podemos experimentar a vacuidade: aparência/vacuidade,
som/vacuidade. Eles são simultâneos. Tudo que surge é vividamente irreal
na vacuidade, mas a vacuidade não é de fato vazia, não da forma como
imaginamos isso. Ela é vibrante e se manifesta, embora, em geral, só
percebamos sua manifestação. Nós a tornamos sólida, tornamos a nós
mesmos sólidos e solidi camos aquilo que vemos. Tudo passa a ser como
uma guerra ou uma sedução e camos totalmente presos a esse drama.
O quarto kaya é svabhavikakaya. Este último signi ca que os três
anteriores ocorrem ao mesmo tempo. Na verdade, eles não são separados.
Espaço, energia e aparência surgem simultaneamente.
A máxima diz que “Ver a confusão (a sensação de obstáculo, aversão e
interrupção) como os quatro kayas é a proteção insuperável da shunyata.” A
shunyata representa proteção porque corta a solidez de nossos pensamentos,
a maneira pela qual tornamos todas as coisas – inclusive a nós mesmos –
concretas e separadas. Shunyata atravessa nossa atitude de “nós estamos
aqui e todo o resto está ali”.
Como já foi dito em algumas das máximas examinadas anteriormente,
quando a confusão surge, ela se torna parte do caminho – ela é suculenta e
rica. A sensação de que existe um obstáculo é muito fértil e pode nos
ensinar. Nestas práticas, o obstáculo é o ingrediente necessário, sem o qual
não seria possível fazer tonglen ou trabalhar com os ensinamentos lojong.
Entretanto, essa máxima nos diz que, quando a confusão surge, não apenas
praticamos o tonglen e nos conectamos com o coração, mas, a qualquer
momento, podemos ter também uma súbita percepção da falta de solidez
dos fenômenos. Em outras palavras, podemos simplesmente desistir deles.
Todos nós sabemos qual a sensação de desistir de algo. De repente, apenas
desistimos.
Em um retiro de meditação, por exemplo, servem macarrão no café da
manhã. Talvez, no começo, isso possa parecer engraçado. Mas, no decorrer
da refeição, você – em vez de estar consciente da comida, dos pauzinhos em
sua mão, das outras pessoas e das boas instruções que recebeu – percebe que
está falando consigo mesmo sobre quanto seria bom, quanto você gostaria
de estar tomando um bom café da manhã como o que sua mãe costumava
preparar. Pode ser café com leite, pão com manteiga ou presunto com ovos.
Tudo que você deseja é um bom café da manhã, como a mamãe costumava
fazer. Esse macarrão faz você car indignado.
Então, sem qualquer esforço especial, você simplesmente desiste. Para
sua surpresa, há ali um vasto mundo. Você vê todos os pontinhos luminosos
que brilham no fundo de sua tigela. Nota tristeza no rosto de alguém.
Percebe que o homem sentado à sua frente também está pensando em
outros cafés da manhã, já que ele tem o mesmo ar indignado, e isso faz você
rir porque era exatamente assim que você se sentia há apenas um minuto.
O mundo se abre e, de repente, estamos presentes para o que acontece. A
solidez de nossos pensamentos se torna transparente e podemos nos
conectar automaticamente com nosso próprio espaço – shunyata. Somos
capazes de desistir da nossa história, de sacudir a nós mesmos.
Essa é uma experiência cotidiana da shunyata. No entanto, é também
uma prática muito avançada, se formos capazes de realizá-la quando não
estamos nem um pouco a m dela. Quando tudo é sólido, intenso e estamos
mergulhados em autocomiseração ou qualquer coisa desse tipo, se alguém
nos diz: “Desista disso” – mesmo que seja com a voz mais suave, doce e
gentil –, sentimos vontade de dar um soco em seu nariz. Nós só queremos
continuar a afundar em nosso ressentimento e autocomiseração.
Todo o sentido da prática lojong está em começar no ponto em que
estamos. A máxima “Abandone qualquer expectativa de resultado” também
é um encorajamento para carmos exatamente onde estamos, com nosso
entorpecimento, insensibilidade, ressentimento, ou o que quer que seja.
Apenas começamos no ponto em que estamos. Então, como resultado da
prática e para nossa surpresa, vemos que nesta semana está sendo mais fácil
abrir mão de nossa história que na semana passada. Ou que, neste ano,
estamos desistindo mais facilmente do que no ano passado. À medida que o
tempo passa, percebemos que somos capazes, cada vez mais, de apenas
desistir.
O mesmo se aplica à compaixão. Todos somos compassivos. Quando
lembramos ou vemos certas coisas, somos capazes de abrir o coração sem
nenhum esforço. Então, ouvimos que devemos ter compaixão por nossos
inimigos, por aqueles que realmente detestamos. Essa já é uma prática
avançada. Mas, como efeito de praticar lojong e abandonar qualquer
expectativa de resultado, como consequência de simplesmente entrar em
contato com quem somos e com o que estamos sentindo neste exato
momento, percebemos que o círculo de nossa compaixão começa a se
ampliar e passamos a senti-la em situações cada vez mais difíceis.
A compaixão começa a chegar até nós porque temos a aspiração de
praticar e ter maior contato com nossa própria dor e alegria. Em outras
palavras, queremos nos tornar verdadeiros. Percebemos que não é possível
fraudar ou forçar esse processo, mas também sabemos que já possuímos o
que é necessário para trabalhar com nossa atual maneira de ser. Portanto,
começamos assim, e tanto a capacidade de desistir e ser mais alegre quanto a
habilidade de abrir o coração começam a crescer espontaneamente.
“Ver a confusão como os quatro kayas é a proteção insuperável da
shunyata”; é, na verdade, um encorajamento para não dar tanta importância
a tudo. Ao menos podemos ter em mente que é possível desistir, lembrar
qual a sensação que isso nos traz – como o mundo se abre – e descobrir a
amplidão que existe além do estreito casulo limitado pelo ego.
Essa máxima, em particular, é uma instrução de meditação. Diz-se que
somente sentados em nossa almofada conseguiremos entendê-la. De modo
geral, entretanto, gostaria de encorajá-los a usar a abordagem lojong e
tonglen como uma prática, mesmo quando tiverem acabado o período
formal de meditação. É nesse momento que essas noções são mais
poderosas, reais e profundas. À medida que continuamos com nosso dia,
vemos coisas que tocam nosso coração, enfrentamos situações que
provocam medo ou nos deixam rígidos e ressentidos. Nesses momentos
podemos começar a pensar em fazer a troca, inspirando e expirando
imediatamente. Esse é um processo necessário e bené co. Após a meditação,
essa prática parece muito real; às vezes, muito mais real que na sala de
meditação.
Essa máxima sobre os quatro kayas enfatiza que a prática shamatha-
vipashyana nos leva a ver a natureza insubstancial de todas as coisas. Ela se
refere ao momento da prática em que dizemos “pensando”. Estamos
totalmente aprisionados: em nossa mente, estamos tomando aquele café da
manhã, revivemos ressentimentos e alegrias. Então, sem nenhum esforço,
despertamos. Sabemos que é isso que ocorre, mas não estamos falando em
nos forçar a voltar. Apenas percebemos o que acontece e despertamos. Nesse
momento, devemos dizer “pensando”.
O rótulo “pensando” nos faz começar a perceber que nossa história não
tem nenhuma substância e, embora pareça extremamente vívida, ela surge
do nada. Mesmo quando abrimos mão dela, ainda há energia e movimento
que claramente parecem se manifestar sob a forma de mesas, cadeiras,
pessoas e animais. Tudo parece muito tangível, mas, no momento em que
dizemos “pensando”, vemos que todo esse drama é apenas um pensamento
em nossa mente e reconhecemos a shunyata ou vacuidade. Provavelmente,
cada um de nós já teve momentos em que percebeu o quanto isso pode ser
libertador.
Talvez você tenha curiosidade de saber a origem dos pensamentos. De
onde eles vêm de fato? Parece que de lugar nenhum. Você está ali, seguindo
elmente sua respiração e – Zás! – está surfando no Havaí. De onde veio isso
e para onde vai? Grande drama! Grande drama surgindo! E são apenas 9:30
da manhã. “Uau! Puxa! Isso é muito pesado!” Soa uma buzina e, de repente,
você não está mais nessa história, já está em outra.
Certa vez recebi instruções para meditar sobre os pensamentos.
Examinei sua natureza durante dois meses inteiros. Posso dizer a vocês, por
experiência própria, que nunca conseguimos encontrá-los. Os pensamentos
não possuem nenhuma substância, mas nossa mente os transforma em
Assunto Extremamente Importante.
Outra máxima diz: “Todas as atividades devem ser realizadas com uma
intenção.” Inspirar, expirar, sentir-se ressentido, sentir-se feliz, ser capaz de
abrir mão disso, não ser capaz de abrir mão daquilo, comer, escovar os
dentes, andar, sentar – tudo que fazemos pode ser feito com uma intenção:
queremos despertar, queremos amadurecer nossa compaixão e nossa
capacidade de abrir mão. Qualquer coisa pode servir para nos acordar ou
nos fazer adormecer. Só depende de nós permitir o despertar.
11
Superando a resistência

A máxima do dia é: “As quatro práticas são o melhor dos métodos.” Essa
máxima refere-se a quatro atividades que nos ajudam a praticar tanto o
bodhichitta relativo quanto o absoluto: (1) acumular méritos, (2) puri car
nossas ações negativas – geralmente chamado de confessar as ações
negativas, (3) alimentar os fantasmas e (4) fazer uma oferenda aos
protetores, às vezes traduzido como pedir aos protetores que nos ajudem em
nossa prática.
Cada uma dessas quatro práticas trata muito diretamente dos
sentimentos, emoções e situações indesejáveis. Já falamos que a melhor
proteção é perceber a qualidade de vazio e sonho que a confusão possui.
Enquanto ver a confusão como os quatro kayas é algo que fazemos no nível
do bodhichitta absoluto, essas quatro práticas referem-se a coisas reais e são
feitas no nível relativo, em termos de ritual e cerimônia.
Quaisquer que sejam os nomes que dermos, o cerne da questão está em
superar a resistência. Essas práticas são os quatro métodos que Milarepa
deve ter usado para tentar se livrar dos demônios que estavam em sua
caverna. O sentido daquela história é que, quando não há mais resistência,
também não existem mais demônios. Resistir às situações indesejáveis faz
com que elas se mantenham vivas e fortes por muito tempo.

ACUMULAR MÉRITOS
A primeira das quatro práticas se refere a acumular méritos. Fazemos isso
quando estamos dispostos a dar, a nos abrir. Esse processo é descrito como
desistir de apegar-se a si mesmo ou desistir da fortaleza do ego. Em vez de
colecionar coisas, nós nos abrimos e as doamos.
Como resultado dessa abertura, começamos a experimentar nosso
mundo como mais amistoso. Este é o mérito: ca mais fácil praticar o
dharma, temos menos kleshas e as circunstâncias parecem mais favoráveis.
Podemos achar que, para encontrar as circunstâncias em que teremos a
oportunidade de praticar o dharma, devemos usar nosso velho e habitual
estilo. Entretanto, a ideia que está por trás de acumular esse tipo de situação
meritória é a de abrir-se, dar e não reter. Em vez de nos fecharmos em um
casulo e encouraçar o coração, nós nos abrimos e deixamos que tudo se
dissolva. É assim que os méritos são acumulados.
Em sociedades budistas, como as de Myanmar (antiga Birmânia), Tibete
e China, acumular méritos é identi cado com praticar qualquer tipo de boa
ação, como, por exemplo, fazer doações para a construção de monastérios e
centros de retiro. É ótimo angariar fundos em Hong Kong ou Taiwan porque
as pessoas acham que é meritório dar dinheiro para esse tipo de obra. Pensa-
se que uma doação feita para essas boas causas funciona – se esse for um
gesto de real generosidade, sem desejar nada de especial em retorno.
Quando tomamos o voto de bodhisattva, oferecemos um presente. No
momento em que damos nosso presente, recebemos uma das marcas que
indicam que tomamos esse voto. A instrução nos diz que devemos dar algo a
que estejamos apegados, algo cuja perda nos cause alguma dor. Se
pretendermos dar dinheiro, devemos dar um pouco mais do que realmente
gostaríamos.
Em todas essas formas tradicionais de acumular méritos, o sentido mais
profundo está em abrir-se completamente à situação com um pouco de
ousadia. Há uma certa magia nisso e diz-se que essa prática é a expressão
máxima de obter méritos porque tem a ver com abandonar a esperança e o
medo: “Se for melhor que eu que doente, que seja assim. Se for melhor que
eu me recupere, que seja assim. Se for melhor que eu morra, que seja assim.”
Ou, em outras palavras: “Conceda-me a bênção de que, se for para eu car
doente, que eu que doente. Conceda-me a bênção de que, se for para eu me
recuperar, que eu me recupere.” Não se trata de pedir a um poder superior
que conceda sua bênção. Na verdade, estamos apenas dizendo: “Deixe
acontecer, deixe acontecer.”
Render-se, abrir mão do sentimento de posse, chegar ao completo
desapego – todos são sinônimos de acumular méritos. O sentido está em
abrir-se, em vez de se fechar.

CONFESSAR AS MÁS AÇÕES

A segunda das quatro práticas é confessar as más ações ou expor as ações


neuróticas. Nos monastérios budistas, isso é feito como um cerimonial, nos
dias de lua nova e lua cheia. Confessar as ações neuróticas consiste em
quatro partes: (1) arrepender-se da ação praticada; (2) abster-se de praticá-la
novamente; (3) realizar algum tipo de ação reparadora, como recitar o
mantra Vajrasattva, buscar refúgio nas três joias ou praticar tonglen; e (4)
expressar completa disposição para continuar esse processo quádruplo no
futuro e não mais reagir neuroticamente. Portanto, os quatro elementos
dessa fórmula são: arrependimento, abstenção, atividade reparadora e
decisão de não repetir a ação.
As más circunstâncias podem surgir, mas sabemos que é possível
transformá-las. Aqui, somos aconselhados a confessar tudo porque esse é
um dos melhores métodos. Em primeiro lugar, não precisamos confessar a
alguém, já que esse é um assunto pessoal. Nós mesmos olhamos para o que
foi feito e percorremos o processo quádruplo. Em segundo, ninguém nos
perdoa. Não estamos confessando um pecado. Não somos “pecadores”,
como nos ensina a cultura judaico-cristã em que fomos criados.
Neste contexto, “neurose” signi ca continuar a ter uma visão estreita,
trancar-se no quarto e colocar ferrolhos na porta, mesmo quando existe um
espaço ilimitado e in nito com o qual podemos nos conectar a qualquer
momento. Se há tanto espaço, por que permanecer com óculos escuros,
protetores de ouvido e armaduras?
Confessar nossas ações neuróticas é um processo quádruplo através do
qual aprendemos a ver honestamente o que estamos fazendo e
desenvolvemos o anseio de tirar os óculos, protetores e armaduras,
experimentando plenamente o mundo. Mais uma vez, esse é também um
método para deixar de se retrair, para se abrir, em vez de se fechar ainda
mais.

1. Arrependimento
Portanto, em primeiro lugar, está o arrependimento. Em decorrência da
prática, temos consciência e percebemos o que fazemos. Com isso, ca cada
vez mais difícil esconder-se de si mesmo. Bem, essa acaba sendo uma ótima
notícia, pois nos tornamos capazes de ver a neurose como neurose – não
como uma autocondenação, mas como algo de que podemos tirar partido.
O arrependimento implica estarmos cansados de nos esconder atrás de uma
armadura, de ingerir veneno ou de gritar com alguém sempre que nos
sentimos ameaçados, de falar internamente durante horas quando alguém
nos contraria, de nossa constante reclamação interior. Ninguém precisa
tornar nossa vida difícil. Ninguém precisa dizer nada. Mantendo os olhos
abertos, nós mesmos nos cansamos da neurose. Essa é a ideia do
arrependimento.
Uma vez alguém que estava realmente arrependido de algo que zera foi
até seu mestre e explicou toda a situação. O mestre respondeu: “É bom que
você se arrependa; é preciso reconhecer o que fez. É muito melhor ver que
magoou alguém do que se proteger contra isso. Mas você só tem dois
minutos para pensar no seu arrependimento.” É bom ter isso em mente
porque, caso contrário, podemos começar a nos agelar: “Ai de mim! Ai de
mim!”

2. Abstenção
A segunda parte da con ssão das ações neuróticas é a abstenção. É doloroso
ver como, apesar de tudo, continuamos com nossa neurose. Às vezes é
preciso que ela se gaste por si mesma, como um sapato velho. Entretanto, a
abstenção é muito útil, desde que não imponhamos a nós mesmos um tom
muito autoritário. Abster-se não é uma resolução de Ano-Novo, não é dizer
“Reconheço o que z e nunca mais farei isso” só para nos sentirmos
péssimos quando repetimos a mesma ação meia hora depois.
A abstenção vem espontaneamente, ao ver como nossas ações neuróticas
funcionam. Podemos até pensar: “Continuo achando que seria bom, que
seria divertido”, mas nos abstemos, pois conhecemos a reação em cadeia de
infelicidade que nossas ações provocam. A primeira mordida, o primeiro
gole, a primeira palavra áspera pode trazer certo sentimento de bem-estar,
mas gera uma sequência dolorosa que já percorremos não uma, mas cinco
mil vezes. Assim, a abstenção é um processo natural decorrente de nossa
sabedoria básica. É importante lembrar que a abstenção não é algo áspero –
não signi ca gritar consigo mesmo ou forçar-se a fazer o que não se quer.
Esse é um processo gentil; no máximo, dizemos a nós mesmos: “Uma coisa
de cada vez.”

3. Ação reparadora
A terceira parte da con ssão da neurose é a ação reparadora, ou seja, tomar
alguma providência em relação ao que aconteceu, realizar alguma prática
que regue a semente da sabedoria, dando a ela a umidade necessária para
germinar. Ver a neurose como neurose, ter um sentimento de
arrependimento, abster-se e, em seguida, realizar uma prática, ajuda a
puri car toda a situação. A prática tradicionalmente recomendada é a de
buscar refúgio nas três joias: o Buda, o dharma e o sangha.
Buscar refúgio no Buda signi ca ser acolhido por alguém que
abandonou o apego, o que nós também podemos fazer. Buscar refúgio no
dharma quer dizer buscar abrigo em todos os ensinamentos que nos
encorajam a alimentar nossa habilidade inerente de abrir mão. E buscar
refúgio no sangha é ser amparado pela comunidade de pessoas que
compartilham nosso desejo de abrir mão e nos abrir, em vez de nos proteger.
Como praticantes, a ajuda que damos uns aos outros é diferente do apoio
samsárico* habitual, no qual nos unimos em um time para reclamar de
alguém. Aqui, cada um cuida de si mesmo, completamente sozinho. É de
grande auxílio, porém, saber que há quarenta outras pessoas passando pelas
mesmas situações: esse é um grande apoio e encorajamento. Basicamente,
embora os outros possam nos ajudar, estamos sozinhos e crescemos nesse
processo – em vez de nos tornarmos ainda mais dependentes.

* Samsara: ciclo vicioso da existência. Opõe-se a nirvana: estado em que há cessação da ignorância
e das emoções con itantes e que é, portanto, livre dos renascimentos compulsivos do samsara.

4. Resolução
O quarto aspecto de confessar as más ações consiste na decisão de não
repeti-las. Mais uma vez, se não for bem compreendido, esse pode ser um
ponto complicado: não estamos falando em ser severo consigo mesmo. Não
permita que uma autoritária voz interior lhe diga que, se zer isso mais uma
vez, Papai Noel não vai trazer seu presente de Natal.
As quatro partes desse processo resultam da con ança em nossa
bondade fundamental. Todas elas derivam de uma certa bondade em relação
a nós mesmos decorrente do sentimento de apreciação que já possuímos.
Lamentamos nossa neurose e permitimos a abertura. Paramos de repetir
esse tipo de ação porque não queremos nos machucar ainda mais.
Praticamos porque temos respeito básico por nós mesmos e desejamos fazer
o que permite alimentar nossa sensação de con ança e condição de
guerreiro, e não aquilo que nos faz sentir ainda mais arrasados e isolados.
Portanto, no nal, decidir abster-se da ação neurótica é uma rendição total,
o último estágio no processo quádruplo de abrir-se cada vez mais.
ALIMENTAR OS FANTASMAS

Até aqui, descrevemos duas das práticas a que se refere a máxima “As quatro
práticas são o melhor dos métodos”: acumular méritos e confessar nossas
faltas neuróticas, ou puri car nossa neurose através do processo quádruplo.
A terceira prática consiste em alimentar os fantasmas. Esse aspecto envolve
trabalhar com nossa irracionalidade e, para isso, nós nos relacionamos com
ela. Tradicionalmente, preparamos um pequeno torma – um bolinho – e o
oferecemos. Podemos oferecê-lo durante uma cerimônia ou colocá-lo do
lado de fora de casa todas as manhãs. De qualquer modo, oferecemos
concretamente alguma coisa a nossos fantasmas, aos aspectos negativos de
nós mesmos.
Quando Trungpa Rinpoche falava sobre alimentar os fantasmas, ele se
referia à irracionalidade que simplesmente aparece, não se sabe de onde. De
repente, estamos terrivelmente tristes. Sem saber como, estamos furiosos,
querendo quebrar tudo. Como ele disse: “De repente, o soco já atingiu o
olho de alguém.” Que imagem! Sem aviso, quando menos esperamos, a
irracionalidade simplesmente aparece. Zás! Ali está ela. Frequentemente, ela
é a primeira coisa que surge pela manhã e, então, o dia todo passa a ter um
caráter de raiva e exasperação. O mesmo acontece com a tristeza, o mesmo
acontece com a paixão.
Essa súbita irracionalidade que surge do nada é chamada de dön. Ela nos
desperta e devemos encará-la como algo bom, em vez de tentar nos livrar
dela. Portanto, no nível exterior, damos um bolinho a esse dön. No nível
interior, vemos que um dön surgiu, reconhecemos sua força, mas nos
abstemos de deixar alguém com o olho roxo – não extravasamos nem
reprimimos. Uma vez mais, escolhemos o caminho do meio e nos
permitimos estar ali, com a totalidade da força do dön. Permanecer na
situação tem o poder de nos puri car. Essa atitude é a descrição do que é
estar 100% consciente.
Acumulamos méritos quando ultrapassamos a esperança e o medo e
dizemos: “Deixe acontecer.” O mesmo ocorre com o dön: há uma certa
sensação de “deixar acontecer”. Existe até mesmo uma invocação que diz:
“Não apenas desejo que você que, como pode voltar sempre que quiser. E,
tome, pegue um bolinho.”
Pessoalmente, quando li sobre isso, quei um pouco assustada. Somos
orientados a convidá-los a voltar porque eles nos mostram quando
deixamos de estar conscientes. Nós os convidamos a voltar porque eles nos
lembram que estamos desligados. Os döns nos despertam. Enquanto
estivermos conscientes, nenhum dön poderá surgir. Entretanto, eles são
como os germes e os vírus. Sempre que há um espaço – boom! –
manifestam-se. Enquanto estivermos despertos e abertos, os döns recusarão
nosso convite para voltar, mas, no momento em que nos fecharmos, eles não
só o aceitarão com prazer como comerão nosso bolo. Isso é chamado de
alimentar os fantasmas.

FAZER OFERENDAS AOS PROTETORES

A quarta prática consiste em fazer uma oferenda aos protetores, ou pedir a


eles que nos ajudem em nossa prática. Os protetores guardam o princípio da
iluminação, protegem nossa inerente sabedoria e compaixão. Nas thangkas –
pinturas ornamentais tibetanas – eles aparecem como guras iradas das
quais saem chamas, com grandes dentes e garras, enfeitadas com colares
feitos de crânios. Os protetores nos guardam de nossa falta de bondade e nos
protegem contra os lapsos de nossa sabedoria, contra a dureza e a
mesquinhez, contra qualquer tipo de insanidade básica. Eles são
representados de forma tão irada porque não compactuam com nada disso.
Na verdade, o que não compactua com nada disso é nossa própria
sabedoria.
Com essa máxima, somos ensinados a valorizar o gigante Não. Mais
uma vez, isso é baseado em autorrespeito e bondade amorosa em relação a
nós mesmos, o que signi ca con ança em nossa bondade fundamental.
Quando começamos a car fechados e isolados, ocorre uma ruptura que,
basicamente, é o gigante Não. Esse gigante não é autoritário, no sentido de
que está ali para nos punir. Ele é um encorajamento permanente para não
nos deixarmos levar pela neurose.
Quando a raiva ou qualquer outro klesha surge, sua energia básica,
poderosa, clara e aguda tem o poder de cortar nossa neurose. Normalmente,
porém, não paramos aí. De modo geral, produzimos paralelamente o que
tem sido chamado de negatividade negativa: mesquinhez, ressentimento,
agressividade e uma enfática indignação. Então, esse aspecto protetor da
mente, que guarda nossa sabedoria fundamental, ergue sua cabeça coberta
de chamas e diz Não. Aprender a valorizar esse gigante decorre de sentir
compaixão por si mesmo, e é muito semelhante a arrepender-se, abster-se,
buscar refúgio nas três joias e decidir não repetir a ação.
Imagine-se muito aborrecido, discutindo aos gritos com alguém durante
uma briga. De repente, você bate uma porta com toda a força e prende o
dedo. Essa é a essência do princípio protetor: ele nos desperta.
A prática exterior está em fazer uma oferenda aos protetores, ao
princípio de sabedoria. Tradicionalmente, oferecemos um bolo. No nível
interior, convidamos esse princípio a estar vivo e à vontade em nosso ser.
Estamos dispostos a praticar porque queremos nutrir nossa capacidade de
saber quando estamos acordados e quando estamos adormecendo, porque
desejamos nos conduzir de volta à qualidade desperta do momento
presente.
A abordagem dos ensinamentos lojong nos diz que a melhor maneira de
usar as circunstâncias indesejáveis como caminho para a iluminação é não
resistir e, em vez disso, utilizá-las como apoio. Acolher as emoções ou
desenvolver compaixão por nossos aspectos constrangedores – aqueles que
vemos como pecaminosos ou maus – torna-se a matéria-prima, a essência
com a qual podemos trabalhar para despertar. As quatro práticas são o
melhor dos métodos para superar a resistência, o melhor dos métodos para
transformar as más circunstâncias em uma trilha para a iluminação.
12
O barco vazio

Certa vez, uma pessoa me disse que não podia meditar. Ela considerava isso
impossível, pois seus problemas eram bem reais. Na meditação que fazemos,
estamos tentando compreender a orientação muito animadora que diz que
os problemas da vida real são nosso material para despertar, não uma razão
para pararmos de tentar. Essa é uma boa notícia que pode nos servir.
A máxima de hoje diz: “Incorpore à meditação tudo o que você
encontrar inesperadamente.” As máximas enfatizam que tudo pode ser
usado para despertar o bodhichitta, que nada é uma interrupção. Essa
máxima que vamos examinar nos mostra como as próprias interrupções
podem nos acordar, como elas mesmas – surpresas, situações inesperadas,
acontecimentos repentinos – têm o poder de nos despertar, tanto para a
experiência do bodhichitta absoluto quanto para o bodhichitta relativo: para
a qualidade espaçosa e aberta de nossa mente e para o calor que existe em
nosso coração.
Essa máxima trata as surpresas como dádivas. Quer sejam prazerosas ou
desagradáveis, o importante é que elas têm o poder de parar nossa mente.
Estamos andando por aí e levamos uma bolada na cabeça: isso nos faz parar.
A máxima “Repouse na natureza do alaya, a essência” caminha ao lado
desta. Geralmente diz-se que essa é uma máxima para o momento em que
estamos sentados em nossa almofada meditando. Nessa ocasião podemos
repousar nossa mente em seu estado natural, imparcial. Mas, na verdade, o
mesmo acontece quando nosso tapete é puxado: sem nenhum esforço, nossa
mente se percebe em repouso na natureza do alaya.
Eu estava pegando uma carona no carro de um amigo um dia, quando
alguém buzinou ruidosamente atrás de nós. Ao ultrapassar, o motorista,
vermelho de raiva e sacudindo os punhos, gritou: “Vai trabalhar!” Esse fato
ainda hoje faz parar minha mente.
A instrução nos diz que quando algo faz parar nossa mente devemos
aproveitar esse momento de lacuna, de muito espaço, confusão e total
surpresa, e nos permitir repousar nele um pouco mais do que normalmente
faríamos.
É interessante, mas essa é também a instrução sobre como morrer.
Aparentemente, a morte é uma grande surpresa. Talvez vocês já tenham
ouvido falar em samadhi (absorção meditativa), e que nós permanecemos
em samadhi no momento em que morremos. Isso signi ca que podemos
repousar a mente na natureza do alaya e permanecer abertos e conectados
com a qualidade fresca e imparcial da mente que nos é dada no momento da
morte. Essa qualidade, porém, também nos é oferecida em todos os dias da
vida! Recebemos essa dádiva através das circunstâncias inesperadas a que
essa máxima se refere.
Após a lacuna, quando começamos a pensar: “Que pessoa horrível” ou
“É ótimo que ele tenha me dado a oportunidade de repousar a mente na
natureza do alaya”, podemos nos recompor e começar a praticar o tonglen.
Se estivermos nos deixando levar pela raiva, ressentimento ou qualquer dos
sentimentos “negativos” indesejáveis, se estivermos cando muito nervosos
ou qualquer outra coisa, lembramos do tonglen e da lógica lojong, inspirando
nossos sentimentos e entrando em contato com eles. Abrimos mão de nossa
história e camos em contato com nós mesmos. Também é possível lembrar
dessa instrução quando começamos a pensar na maravilha que acabou de
nos acontecer – expiramos e compartilhamos essa sensação de bem-estar.
Geralmente, estamos tão presos e fortemente apegados a nós mesmos
que precisamos, no mínimo, ser atropelados por um caminhão para que
nossa mente pare e desperte. Mas, quando começamos a praticar, até mesmo
o vento que balança a cortina tem esse poder. A surpresa pode ser algo
muito suave, apenas um desvio do foco. Algo atrai nosso olhar, a atenção o
acompanha, e repousamos nossa mente na natureza do alaya. Então, quando
começamos a falar sozinhos mais uma vez, praticamos o tonglen.
A surpresa chega até nós sob formas agradáveis ou desagradáveis – isso
realmente não faz diferença. O importante é que ela é repentina. Estamos
andando na rua, sem perceber nada, presos em uma visão estreita, falando
internamente, e até mesmo o grito de um corvo pode nos despertar desse
dormir-acordado que, de modo geral, é muito denso e cheio de
ressentimento. Algo simplesmente acontece: o escapamento de um carro dá
um estouro e, por um momento, olhamos para o céu, enxergamos o rosto
das pessoas, o trânsito e as árvores. Independentemente do que aconteça, de
repente vemos o mundo enorme que existe além de nossa visão estreita.
Tive uma experiência interessante com algo que me surpreendeu em um
retiro. Foi uma experiência muito forte de shunyata, a completa vacuidade
de tudo. Eu tinha terminado minha prática da noite. Já havia praticado o dia
inteiro, o que pode levar você a pensar que meu estado mental era calmo e
cheio de bondade. Mas, assim que saí do quarto e comecei a andar pelo
corredor, vi que alguém havia deixado louça suja em nossa cozinha.
Comecei a car muito brava.
Nesse retiro, colocamos nosso nome na louça. Todos têm um prato, uma
tigela, uma caneca, uma faca, um garfo e uma colher, e todos esses objetos
estão marcados com nosso nome. Assim, fui andando, tentando ver o que
estava escrito naqueles pratos. Eu já tinha quase certeza de quem poderia
ser, pois havia somente uma mulher, em nosso grupo de oito, capaz de fazer
aquela bagunça: ela sempre deixava as coisas jogadas para que os outros
arrumassem. Quem ela pensa que vai lavar os pratos? A mãe dela? Ela acha
que somos seus escravos? Eu já estava indo por esse caminho. Pensei: “Eu a
conheço há muito tempo e todo mundo acha que ela é uma praticante
experiente, mas, na verdade, daria na mesma se não tivesse praticado nunca,
pois não tem a menor consideração por ninguém neste planeta.”
Quando cheguei perto da pia, olhei para o prato e vi que o nome que
estava nele era “Pema”. E “Pema” era o nome marcado na caneca, no garfo e
na faca. Era tudo meu! Não é preciso dizer que isso cortou totalmente
minhas divagações. Também nesse momento minha mente parou.
Há uma história zen na qual um homem está tranquilamente em um rio,
ao entardecer. Ele vê outro barco se aproximar. De início, parece-lhe muito
bom que alguém mais esteja aproveitando o rio em um belo m de tarde de
verão. Então, ele percebe que o barco vem direto contra ele, cada vez mais
veloz. O homem começa a car nervoso e grita: “Ei! Ei! Cuidado! Por favor,
desvie!” Mas o barco vem cada vez mais rápido, bem na sua direção. A essa
altura, ele já está em pé, gritando e sacudindo os braços. Quando o barco se
espatifa contra o dele, o homem percebe que ele está vazio.
Essa é uma história clássica para as situações da vida de modo geral. Há
muitos barcos vazios passando por aí e nós estamos sempre gritando e
sacudindo os braços para eles. Em vez disso, podemos permitir que eles
parem nossa mente. Mesmo que isso aconteça somente por um décimo de
segundo, já será possível repousar nesse pequeno intervalo. Quando
começamos com nossas histórias, usamos a prática do tonglen que nos
ensina a trocar de lugar com o outro. Desse modo, tudo que encontrarmos
terá potencial para nos ajudar a cultivar a compaixão e entrar em contato
com a qualidade espaçosa e aberta de nossa mente.
13
Ensinamentos para a vida e para a morte

As cinco forças são o tema de duas máximas: “Pratique as cinco forças, as


instruções essenciais para o coração” e “A instrução mahayana para ejetar a
consciência na hora da morte é utilizar as cinco forças: como você se conduz
é importante”.
O ponto principal de todo o nosso estudo e prática é que a felicidade que
buscamos está aqui, à nossa disposição a qualquer momento. A felicidade
que desejamos é nosso direito inato. Para descobri-la, precisamos ser mais
gentis e compassivos em relação a nós mesmos e ao Universo. Ela nunca
será encontrada por meio do controle e do apego. Nunca seremos felizes,
enquanto desejarmos de forma séria e rígida que as coisas se encaminhem
da maneira que julgamos ser a mais adequada. Estamos sempre “pegando o
bonde errado” – a felicidade que buscamos já está aqui e será encontrada
quando, em vez de lutar, aprendermos a relaxar e soltar.
Isso signi ca que podemos dormir o dia todo? Isso quer dizer que não
precisamos fazer nada? A resposta é não. Parece que há algo que realmente
devemos fazer. Essas máximas nos dizem para praticar as cinco forças: forte
determinação, familiarização, semente de virtude, reprovação e aspiração.
As cinco forças são cinco fontes de inspiração para acreditarmos que já
temos tudo de que precisamos na palma da mão.
Essas instruções para o coração nos dizem como viver e como morrer.
No ano passado estive algum tempo com duas pessoas que estavam
morrendo: Jack e Jill, ambos velhos amigos. Cada um deles teve uma relação
muito diferente com a morte. Os dois tiveram o privilégio de saber, com
alguns meses de antecedência, que estavam próximos da morte – o que é
uma enorme dádiva – e ambos começaram a de nhar. Quando sua saúde
deteriorou e seu corpo parou de funcionar bem, Jack sentiu raiva a
princípio, mas alguma coisa mudou e ele passou a relaxar. Enquanto se
tornava claro que tudo estava se dissolvendo e escapando ao controle, ele
parecia car cada vez mais feliz, como se estivesse abrindo mão de todas as
coisas que o mantinham separado de sua bondade fundamental, abrindo
mão de tudo. Chegava a dizer coisas como: “Não há nada a fazer, não há
nada a querer”, e começava a rir. Ele se consumia mais a cada dia, mas isso
não parecia ser um grande problema. Para ele, “dissolver-se” era muito
libertador.
A situação externa era a mesma para Jill, mas ela teve medo e começou a
lutar contra todo o processo. À medida que seu corpo de nhava e havia
menos a que se apegar, ela se tornava mais soturna e aterrorizada, cerrando
os dentes e contorcendo as mãos. Ela se via diante de um enorme abismo no
qual seria lançada e gritava horrorizada: “Não! Não! Não!”
Eu entendi por que pratico: podemos conhecer o processo de abrir mão
e relaxar durante a vida. Na verdade, essa é uma maneira de viver: paramos
de lutar contra o fato de que tudo escapa por entre os dedos, paramos de
lutar contra o fato de que, a nal, nada é sólido ou permanente. Reconhecer
isso pode nos dar muita amplitude e espaço, se formos capazes de relaxar,
em vez de gritar e lutar contra essa realidade.
As cinco forças são instruções sobre como viver e como morrer. Na
verdade, não há nenhuma diferença. O mesmo bom conselho se aplica às
duas situações: se soubermos morrer, saberemos viver; se soubermos viver,
saberemos morrer. Suzuki Roshi disse: “Apenas esteja disposto a morrer
continuamente.” A cada expiração, deixe que ela seja o m de um momento
e o nascimento de algo novo. À medida que todos os pensamentos surgem,
apenas os observe e abra mão deles, deixe toda a sua história se extinguir,
abra espaço para o surgimento de alguma coisa nova. As cinco forças se
referem a desistir de tentar agarrar continuamente o que não pode ser
agarrado e relaxar no espaço que existe. O que encontraremos, então? Talvez
seja essa a questão: temos medo de descobrir.

FORTE DETERMINAÇÃO

A primeira força é a forte determinação. Em vez de algum tipo de férrea


obstinação, a forte determinação envolve conectar-se com a alegria, envolve
relaxar e con ar. É a determinação de usar todos os desa os que
encontramos como oportunidade para abrir nosso coração e nos suavizar –
é a decisão de não recuar. Podemos cultivar essa força de uma forma
simples, através do desenvolvimento de um rme apetite espiritual. Para
isso, é necessário haver certa disposição para brincar. Quando acordamos,
pela manhã, podemos dizer: “O que será que vai acontecer hoje? Este pode
ser o dia da minha morte, mas também pode ser o dia em que vou entender
todos os ensinamentos.” Antes de sair para uma batalha, os índios nativos
norte-americanos costumavam dizer: “Hoje é um bom dia para morrer.”
Também poderíamos dizer: “Hoje é um bom dia para viver.”
A forte determinação nos fornece o meio necessário para descobrir, por
nós mesmos, que já temos tudo de que precisamos, que a felicidade
fundamental está bem aqui, à nossa espera. A forte determinação de não
excluir nada do coração e de não nos fecharmos assume um caráter de
humor e apetite – o apetite pela iluminação.

FAMILIARIZAÇÃO

A próxima força é a familiarização. Familiarização signi ca que o dharma


não mais parece ser uma entidade estranha: nosso primeiro pensamento se
torna dhármico. Começamos a perceber que todos os ensinamentos se
referem a nós: estamos aqui para estudar a nós mesmos. O dharma não é
loso a. Basicamente, o dharma é uma boa receita para cozinhar a si
mesmo: como amaciar esse pedaço de carne muito duro e rijo. O dharma é
uma boa instrução para não nos enganarmos mais, para pararmos de roubar
a nós mesmos e descobrirmos quem realmente somos, não no sentido
limitado do “eu preciso” ou “eu vou conseguir”, mas através do
desenvolvimento do estado desperto como um hábito, como nossa forma de
perceber tudo.
Falamos sobre iluminação como se ela fosse uma grande conquista.
Basicamente, iluminação tem a ver com relaxar e descobrir o que já
possuímos. O “eu” iluminado pode ser um pouco diferente do “eu” a que
estamos acostumados, mas nosso cabelo cresce do mesmo jeito,
continuamos a ter papilas gustativas e, quando pegamos uma gripe, ainda
precisamos assoar o nariz. Como iluminados, entretanto, podemos
experimentar a nós mesmos de uma forma um pouco menos claustrofóbica
ou, talvez, de uma forma nem um pouco claustrofóbica.
Familiarização signi ca que não é preciso procurar mais e que já
sabemos disso. Tudo está incluído no “prazer de estar no momento
presente”, nos próprios pensamentos discursivos que estamos tendo agora,
em todas as emoções que uem em nós – de algum modo, tudo já está aqui.

SEMENTE DE VIRTUDE

A terceira força é chamada de semente de virtude. Na verdade, isso signi ca


natureza de Buda ou bondade fundamental. É como uma piscina sem
bordas, na qual nadamos para sempre. Na verdade, somos feitos de água.
Natureza de Buda não tem nada a ver com receber um transplante de
coração. Certa vez, Rinpoche disse: “Não é como tentar ensinar uma árvore
a falar.” É simplesmente algo que pode ser despertado ou, em outras
palavras, algo em que podemos relaxar. Nós nos permitimos desmoronar no
estado desperto. A força decorre de a semente já estar ali: com calor e
umidade, ela germina e se torna visível acima do solo. Nós nos percebemos
parecidos com um narciso, ou melhor, nós nos sentimos um narciso. A
prática tem a ver com tornar-se suave e relaxar, mas também com
desenvolver precisão e visão clara. Nada disso implica busca. Procurar a
felicidade impede-nos de encontrá-la.

REPROVAÇÃO

A quarta força é chamada de reprovação. Ela exige falar consigo mesmo:


“Ego, há muito tempo você só vem me causando problemas. Vê se me dá um
tempo. Isso não está mais funcionando.” Tente fazer isso no chuveiro. Você
pode falar consigo mesmo o tempo todo, sem constrangimento. Quando
perceber que está começando a se deixar levar por bobagens, diga a si
mesmo: “Fora, seu criador de caso!”
Essa abordagem pode ser um pouco difícil porque, geralmente, não
conseguimos distinguir entre o ego e o que pensamos ser. Quanto maior
nossa gentileza, quanto maior a amizade que sentirmos por nós mesmos,
mais esse diálogo será frutífero. Entretanto, se nos tratarmos com dureza,
essa conversa pode servir somente para aumentar nossa autocrítica.
Ao longo dos anos, com o encorajamento de mestres maravilhosos,
compreendi que, em vez de nos culparmos e nos tratarmos aos gritos,
podemos ensinar o dharma a nós mesmos. A reprovação não tem que ser
uma reação negativa a nosso tipo especí co de insanidade. Ela se refere a
enxergar a insanidade como insanidade, a neurose como neurose, o
atordoamento como atordoamento. Nesse momento, podemos ensinar o
dharma a nós mesmos.
Esse conselho me foi dado por rangu Rinpoche. Eu estava tendo
ataques de ansiedade e ele me disse que eu deveria ensinar o dharma a mim
mesma – apenas o bom e simples dharma. Por isso, hoje digo: “Pema, o que
você de fato deseja? Quer se retrair, fechar e continuar aprisionada? Ou quer
relaxar no que acontece e se permitir morrer? Aqui está sua oportunidade de
realmente entender alguma coisa. Aqui está sua chance de se libertar.
Portanto, o que de fato deseja? Você quer ter sempre razão ou prefere
acordar?”
A reprovação pode ser muito poderosa. Ensinamos o dharma a nós
mesmos, usando nossas próprias palavras. Podemos nos dar ensinamentos
sobre as quatro nobres verdades e a busca de refúgio – qualquer coisa que
tenha a ver com esse momento em que estamos a ponto de recriar o
samsara, como se ele fosse uma invenção nossa. Olhe para a frente, para o
resto da vida, e pergunte a si mesmo o que deseja.
Sempre que estivermos dispostos a ver nossos pensamentos como
vazios, deixando que eles se dissolvam e voltando para a respiração,
estaremos lançando sementes de despertar, sementes da capacidade de
enxergar a natureza da mente e repousar no espaço incondicional. Não tem
importância se nem sempre conseguirmos fazê-lo. Nossa disposição e forte
determinação já signi cam semear virtude. Perceberemos que, sem nenhum
esforço, somos mais espontâneos e naturais. No início, há um certo
empenho, mas, depois, esse se torna nosso estado normal. A semente do
bodhichitta começa a germinar e descobrimos quem realmente somos.

ASPIRAÇÃO

A última força – aspiração – é também uma ferramenta poderosa. Um


sincero sentimento de aspiração atravessa a negatividade que sentimos em
relação a nós mesmos e interrompe as duras viagens que nos impomos. Na
aspiração, simplesmente expressamos nosso desejo de iluminação. Dizemos
a nós mesmos, por nós mesmos, sobre nós mesmos e através de nós
mesmos, coisas como: “Que minha compaixão por mim mesmo possa
crescer.” Podemos estar nos sentindo totalmente perdidos, descontentes e,
ainda assim, expressar nossa sincera aspiração: “Que minha sensação de
di culdade diminua. Que eu esteja mais desperto. Que eu possa
experimentar minha sabedoria fundamental. Que eu possa pensar nos
outros antes de pensar em mim mesmo.” A aspiração se parece muito com
uma prece, mas, neste caso, não há ninguém nos ouvindo.
A aspiração, repito, é falar consigo mesmo, é ser um bodhisattva
excêntrico. É uma maneira de dar poder a si mesmo. Na verdade, o mesmo
acontece com qualquer das cinco forças. O próprio budismo tem a ver com
dar poder a si mesmo e não com conseguir o que se quer.
As cinco forças são instruções para o coração que nos ensinam a viver e
a morrer. Quer seja exatamente agora, quer seja no momento de nossa
morte, elas nos dizem como despertar para tudo que acontece.
14
Bondade amorosa e compaixão

Todo o dharma converge para um único ponto. Todos os ensinamentos e


práticas são sobre um único tema: quando nos protegemos fortemente,
nosso sofrimento também é muito forte. Se o ego ou casulo se tornar mais
leve, o sofrimento também será menor. O ego é como uma pessoa bem
gorda tentando passar por uma porta muito estreita. Quando há muito ego,
nós nos sentimos sempre pressionados, cutucados e irritados por tudo que
acontece e, quando acontece algo que não nos pressiona, cutuca ou irrita,
nós nos aferramos desesperadamente a isso e desejamos que não acabe
nunca. Então, sofremos ainda mais, em consequência do apego a nós
mesmos.
Parece que estamos falando do ego como um inimigo, como um pecado
original. Mas nossa abordagem é muito diferente, muito mais branda. Em
vez de um pecado original, o que existe é uma vulnerabilidade original. Os
aspectos confusos que vemos em nós mesmos e que percebemos no mundo
sob a forma de violência, crueldade e medo não são resultado de algum tipo
de maldade fundamental, mas do fato de termos um coração de bodhichitta
suave, vulnerável e caloroso que protegemos instintivamente para que nada
o atinja.
Este é um enfoque que rea rma a vida: seu ponto de partida é a bondade
ou o bom coração fundamental. O problema é que continuamente “pegamos
o bonde errado”. Todas as práticas concordam que possuímos algum tipo de
padrão básico que sempre nos leva a evitar o que é desagradável e agarrar o
prazer. Parece ser necessário mudar essa tendência a sempre buscar proteção
contra tudo que possa tocar nosso ponto vulnerável. A prática do tonglen
tem a ver com essa mudança de padrão.
Anteriormente, referi-me ao ego como um quarto em que tentamos
manter as coisas do jeito que queremos. Para sair desse quarto, não pegamos
um trator e saímos destruindo tudo. Em vez disso, de acordo com nosso
próprio ritmo e partindo do ponto em que estamos, começamos a abrir as
portas e janelas. Essa é uma abordagem muito suave que reconhece que
somos capazes, gradualmente, de começar a abrir a porta. Também podemos
fechá-la, sempre que acharmos necessário – não por conforto, mas com a
intenção nal de ganhar mais coragem, senso de humor e curiosidade básica
em relação a todo esse processo, até ser possível deixá-la aberta e convidar
todos os seres dotados de sensibilidade como nossos hóspedes; até nos
sentirmos em casa, mesmo sem ter uma programação e terra rme sob
nossos pés.
O principal sobre esta prática e todas as demais – todo o dharma
converge para um único ponto – é que só nós podemos dizer o que abertura
e fechamento signi cam para nós. Só nós sabemos. A próxima máxima –
“Dentre as duas testemunhas, que com a principal” – quer dizer que os
outros são testemunhas quando expressam seus comentários e opiniões, mas
a principal testemunha somos nós mesmos. Vale a pena ouvir as outras
pessoas, pois há sempre alguma verdade no que elas dizem, mas somente
nós podemos dizer quando estamos nos abrindo e nos fechando, quando
usamos as situações para nos proteger e manter nosso ego intacto, e quando
nos abrimos, permitindo que tudo se desfaça e o mundo venha do jeito que
ele é – trabalhando com ele, em vez de combatê-lo. Só nós sabemos.
Há uma última máxima que diz: “Não transforme deuses em demônios.”
Podemos pegar qualquer coisa boa – por exemplo, a prática do tonglen e os
ensinamentos lojong (essa é a ideia, quando falamos em “deuses”) – e
transformá-la em demônio. Simplesmente, podemos usar qualquer coisa
para fechar nossas portas e janelas.
Como um dos meus alunos descreveu certa vez, é possível praticar o
tonglen da seguinte maneira: “Eu pratico, mas sou muito cauteloso com o
botão de controle; inspiro apenas o su ciente para que isso não seja
doloroso ou penetre em mim, e expiro apenas o bastante para convencer a
mim mesmo de que estou praticando. Entretanto, basicamente, nada muda.”
Ele estava usando o tonglen somente para acalmar as situações e se sentir
bem. Também podemos usar o tonglen para virar heróis: simplesmente
inspiramos e expiramos por todo lado, mas nossa motivação não é agir com
mais amizade e começar a penetrar as áreas de nós mesmos que tememos ou
rejeitamos. Na verdade, esperamos que a prática aumente nossa con ança,
nossa sensação de estar no lugar certo na hora certa, nossa impressão de que
escolhemos a religião mais adequada e “estamos do lado do bem e vivemos
no melhor dos mundos”. Isso não ajuda muito. Talvez você já tenha
percebido que, às vezes, parecemos estar em guerra contra a realidade e a
realidade sempre vence.
Todos os ensinamentos, especialmente os lojong, encorajam-nos a parar,
pensar e começar a respirar no momento em que nos vemos lutando, para
tentar sentir o que está por baixo de toda essa guerra. Quando estamos
reclamando, não é o caso de dizer: “Ah! Eu sou ruim porque estou me
debatendo.” Reclamar não é pecado. Estou só querendo dizer que inspirar e
entrar em contato com o coração, com a suavidade subjacente a toda essa
proteção, é uma forma de mudar o padrão.
Carma é um assunto difícil, mas somos encorajados a trabalhar com as
situações, em vez de atribuir a culpa aos outros, porque, de algum modo, o
que nos acontece é o resultado cármico de nossas ações anteriores. Esse tipo
de ensinamento pode facilmente ser mal interpretado. As pessoas entram
em uma pesada viagem de culpa e pecado, achando que as coisas estão indo
mal porque zeram algo errado e estão sendo punidas. Absolutamente, essa
não é a ideia. Carma quer dizer que estamos continuamente recebendo os
ensinamentos necessários para abrir nosso coração. À medida que, no
passado, não soubemos parar de proteger nosso ponto fraco nem deixar uir
os sentimentos, receberemos a dádiva dos ensinamentos sob a forma de
nossa vida e teremos tudo que é preciso para aprender a abrir um pouco
mais.
Vi uma tira humorística que descreve isso. Um pé de alface está em uma
horta, lamentando: “Ah, não! Como eu vim parar aqui de novo? Eu queria
ser uma or do campo!” A legenda diz: “Oscar nasceu outra vez como alface
para poder superar seu medo de ser comido.” Nossa perspectiva pode ser
mais ampla do que toda essa história de prêmio e castigo: podemos encarar
a vida como um curso para adultos. Gostamos de algumas matérias e não
gostamos de outras; achamos que algumas partes são viáveis, outras não.
Esse é o programa que nos leva à iluminação. A questão é: como lidamos
com ele?
Quando começamos a tocar nosso coração ou permitir que ele seja
tocado, descobrimos também que ele é insondável e nunca pode ser
decifrado: esse coração é amplo, vasto e ilimitado. Percebemos quanto ele é
caloroso e bom, quanto é imenso. Nosso mundo parece menos sólido, mais
amplo e espaçoso; nossa carga diminui. No começo, essa sensação pode se
assemelhar à tristeza ou insegurança e vir acompanhada de muito medo.
Entretanto, nossa disposição para aceitar o medo e torná-lo nosso
companheiro vai crescendo. Queremos nos conhecer até esse nível mais
profundo. Depois de um tempo, esse sentimento se transforma na vontade
de destruir todas as paredes, ser plenamente humano e viver no mundo sem
precisar se fechar e afastar algumas situações. Passamos a querer apoiar os
amigos quando eles têm problemas e realmente ajudar este pobre e
maltratado planeta. Estranhamente, com esse desejo, com essa tristeza e
ternura, vem um enorme bem-estar, um bem-estar incondicional que não
tem nada a ver com prazer ou desprazer, bom ou mau, esperança ou medo,
descrédito ou prestígio. É simplesmente algo que chega até nós quando
sentimos que podemos deixar nosso coração aberto.
15
Não leve a vida tão a sério

As duas máximas seguintes – “Mantenha sempre uma mente alegre” e “Se


puder praticar, mesmo quando distraído, você estará bem treinado” –
caminham juntas. A primeira a rma que teremos sempre boa disposição se
encararmos tudo que surge como combustível para o despertar. A segunda
nos diz que estaremos bem treinados se conseguirmos fazer isso em qualquer
situação, se utilizarmos tudo que acontece para despertar, em vez de
adormecer.
Se você estiver se sentindo completamente preso, perdido em um
cenário infeliz, a máxima “Se puder praticar, mesmo quando distraído, você
estará bem treinado” pode servir como lembrete para que comece a
trabalhar com o tonglen – inspirar a adversidade ou tristeza, como um meio
para desenvolver compaixão por si mesmo e começar a compreender a dor
dos demais. A distração pode ser usada para nos trazer de volta ao momento
presente, da mesma forma que um cavalo se corrige após perder o
equilíbrio, ou um esquiador consegue se endireitar quando está prestes a
cair. Estar bem treinado signi ca que recuperamos nosso equilíbrio e
voltamos para o presente.
Quando tudo vai bem, isso também pode servir de lembrete. Em vez do
apego habitual ao que é agradável, podemos nos acostumar a abrir mão da
sensação de bem-estar, doando-a aos outros com a expiração. Isso nos
permite ter sempre uma mente alegre e começa a aliviar não só o peso de
manter nossa própria felicidade individual, mas também nosso fardo de
infelicidade e pequenas irritações – a carga do ego.
Entretanto, dar as coisas boas é uma tarefa difícil. Como disse alguém:
“Gosto de praticar a expiração com essa ideia de compartilhar. Isso é muito
bom, mas doar signi ca que deixarei de ter.” Expirar e compartilhar o que é
agradável pode ser ameaçador. Nem sempre nos sentimos dispostos a dividir
ou doar o prazer.
Sentimos muita alegria quando nossa carga começa a diminuir, e esse
sentimento decorre de estarmos fazendo alguma coisa para mudar o padrão
de medo e resistência diante do que é desagradável. Na verdade, resistir é o
que causa dor. Mais do que a própria raiva ou inveja, é a resistência que gera
sofrimento. Qualquer coisa que comece a diminuir essa resistência nos
ajudará a relaxar, a nos abrir e celebrar.
Cedo ou tarde, nós nos veremos em uma situação em que é
absolutamente impossível mudar as circunstâncias externas e perceberemos
que tudo se resume ao modo como lidamos com os acontecimentos.
Podemos continuar a lutar contra tudo que chega até nós ou passar a
trabalhar com o que nos acontece. Lembrar do “Mantenha sempre uma
mente alegre” pode ser muito útil nessas situações.
Tudo que colabore para aprendermos a não ser tão desesperados pelo
prazer e a não temer sua natureza transitória também estará nos ensinando
a estar em casa no nosso mundo e a ajudar os demais. Já ouvimos coisas
como “liberdade é não ter nada a perder” ou “tenho bastante de nada e nada
é o su ciente para mim”. Nos textos tibetanos tradicionais, isso é descrito
como “a grande felicidade que surge da experiência da vacuidade”, o que soa
um tanto distante de nossa vivência pessoal. Entretanto, tudo isso quer dizer
a mesma coisa: praticamos e vivemos para nos tornarmos capazes de relaxar
e ser mais leves, para pararmos de dar tanta importância a tudo que
acontece – nossos sucessos e fracassos, prêmios e punições.
Se nossa principal testemunha (em “Dentre as duas testemunhas, que
com a principal”) é uma gura autoritária e julgadora, pode ser complicado
tornar-se mais leve. Estamos meditando, mas existe esse outro “eu” vigiando,
ameaçando com uma vara e dizendo: “Pensando novamente... você está
sempre pensando! Zum! O sino do tonglen já bateu e você não conseguiu
praticar nem um segundo! Zás!” Então pensamos: “Não consigo mesmo, sou
um imprestável. Todo mundo parece estar indo bem, mas eu... acho que não
tenho nenhuma bondade fundamental.” Nós nos morti camos e
esquecemos tudo sobre gentileza ou, quando lembramos, dizemos a nós
mesmos: “Não estou sendo gentil! Zum!”
Ouvimos uma máxima como “Mantenha sempre uma mente alegre” e,
nas duas semanas seguintes, camos nos dando cascudos porque nunca
estamos alegres. Esse tipo de testemunha é um tanto pesado. Portanto,
torne-se mais leve. Não dê tanta importância a tudo. Conseguir ser mais leve
é a chave para nos sentirmos em casa com nosso corpo, nossa mente e
nossas emoções, para nos sentirmos dignos de viver neste planeta. A
gravidade e a seriedade em relação à prática e a tudo que acontece na vida, a
atitude voltada para os objetivos, do tipo “preciso-conseguir-isso-senão”, são
o maior estraga-prazeres do mundo. Essa postura solene não nos permite
nenhuma apreciação, enquanto uma mente alegre é muito simples e
descontraída.
Uma vez, em um retiro, eu estava lendo um texto tradicional sobre
felicidade absoluta e ocorrências especiais e comecei a me sentir um lixo.
Estava abatida por nunca ter tido nenhuma experiência que se parecesse
com beatitude, clareza ou iluminação. Comecei a car deprimida por não
estar à altura de nenhuma dessas brilhantes palavras. Por sorte, coloquei esse
livro de lado e peguei um outro mais simples, que tratava apenas de
estarmos vivos com quem somos exatamente agora. Não havia nada de
especial ou importante, só uma instrução corriqueira: mantenha os olhos e
os ouvidos abertos e permaneça acordado. Esses ensinamentos simples
começaram a me animar porque senti que podia segui-los.
Quando desejamos nos tornar mais leves, começamos a ter senso de
humor. Nosso estado mental sério é interrompido a toda hora. Além do
senso de humor, a curiosidade, a capacidade de prestar atenção e o interesse
pelo mundo que nos cerca são também apoios fundamentais para manter a
mente alegre. Isso não signi ca necessariamente ser feliz, mas ser curioso,
sem uma pesada atitude crítica, pode ajudar. E, se formos críticos, podemos
ser curiosos até mesmo sobre isso.
Perceba e aprecie tudo, até mesmo o que é comum. É assim que nos
ligamos à alegria ou boa disposição. A curiosidade estimula nosso
entusiasmo. Lembrar de fazer algo diferente também tem o mesmo efeito.
Estamos tão presos à sensação de peso – o peso da Grande Alegria, o peso
da Grande Tristeza – que apenas mudar o padrão já é muito útil. Qualquer
coisa que saia do habitual pode ajudar, e o tonglen é, com certeza, algo
diferente. Essa prática tem a ver com nossa reprogramação. A um só tempo,
mudamos o padrão básico e deixamos de ter qualquer padrão. Também
podemos simplesmente ir até a janela e olhar o céu. Podemos jogar um
pouco de água fresca no rosto, cantar no chuveiro, sair para correr –
qualquer coisa que reverta nosso padrão habitual. É assim que as coisas
começam a se tornar mais leves.
Acabei de ler a história de uma mulher que havia sido taciturna durante
toda a vida. À medida que envelhecia, tornava-se cada vez mais irritável e
difícil. Então, ela teve câncer e, após um período inicial de raiva e
resistência, em vez de se tornar mais sombria, começou a se animar. Quanto
mais desmoronava, mais feliz se sentia. Dizia sempre que estava contente
por ter um tempo para curtir a vida, o que não havia feito até car doente.
No nal, um dia antes de morrer, entrou em coma. Todos os seus familiares
– que haviam passado a gostar cada vez mais dela, depois de anos achando-a
uma grande chata – reuniram-se em volta da cama, chorando e parecendo
tão sombrios quanto ela mesma havia sido. Um pouco antes de morrer, ela
abriu os olhos, viu toda aquela gente e disse: “Credo! Vocês parecem tão
infelizes. Aconteceu alguma coisa?” Ela morreu rindo.
Portanto, “Mantenha sempre uma mente alegre” e “Se puder praticar,
mesmo quando distraído, você estará bem treinado” querem dizer que a
leveza é o melhor presente que podemos dar a nós mesmos. Permitir que a
distração nos conduza de volta ao momento presente é uma maneira de
conseguir isso. Ser curioso é outra. Além disso, quando tudo é muito pesado
e estamos realmente presos, seja em nossa alegria, seja em nossa tristeza,
podemos fazer algo diferente para mudar o padrão. Nesse caso, o tonglen é
uma boa sugestão.
16
Abandone a expectativa de resultado

Nossa próxima máxima é: “Abandone qualquer expectativa de resultado.”


Poderíamos dizer também “desista de qualquer esperança”, “desista” ou
apenas “dê”. Quanto mais curto, melhor.
Um dos ensinamentos mais poderosos da tradição budista diz que nada
mudará enquanto desejarmos que isso aconteça. Enquanto quisermos ser
melhores, não o seremos. Enquanto estivermos voltados para o futuro, não
poderemos simplesmente relaxar no que já possuímos ou naquilo que
somos.
Um de nossos padrões habituais mais arraigados é o de achar que o
momento atual não é su cientemente bom. Lembramos muito do passado,
que pode ter sido melhor ou pior que o presente. Também pensamos
bastante no futuro, sempre com a esperança de que ele seja um pouco
melhor, o que não nos impede de car apreensivos. Mesmo quando tudo vai
muito bem no presente – quando gozamos de boa saúde, encontramos nossa
alma gêmea, tivemos um lho ou conseguimos o emprego que queríamos –,
ainda assim temos uma profunda tendência a pensar no que acontecerá a
seguir. De modo geral, não damos a nós mesmos todo o crédito pelo que
somos no presente.
Por exemplo, é fácil ter esperança de que as coisas melhorem como
resultado da meditação: nunca mais teremos acessos de mau humor, nunca
mais sentiremos medo, ou os outros passarão a gostar mais de nós. Talvez
nada disso seja um problema neste momento, mas sentimos que não somos
su cientemente desenvolvidos em termos espirituais. Sem dúvida,
passaremos a nos conectar com o mundo desperto, brilhante e sagrado que
vamos encontrar através da meditação. Em tudo que lemos, quer seja
loso a, textos sobre o dharma ou psicologia, ca implícito que estamos
presos a algum tipo de perspectiva muito estreita e que, se zéssemos a coisa
certa, começaríamos a nos conectar com um mundo maior e mais vasto, um
mundo diferente daquele em que vivemos hoje.
Uma das razões pelas quais gostaria de falar sobre abandonar qualquer
expectativa de resultado é que, já há algum tempo, tenho meditado e dado
palestras sobre o dharma, mas percebo que ainda tenho uma paixão secreta
por descobrir o que acontecerá quando, como dizem alguns textos clássicos,
“todos os véus forem removidos”. É o mesmo desejo de ir além de si mesmo
e descobrir algo mais desperto do que a situação presente, mais alerta do
que o momento atual. Às vezes, isso ocorre em um nível muito banal:
queremos ser mais magros, ter menos acne ou mais cabelos. Mas, de
qualquer modo, quase sempre há um sentimento – sutil ou não – de
desapontamento, uma sensação de que as coisas não estão como deveriam
estar.
Em um dos primeiros ensinamentos que ouvi, o instrutor disse: “Não sei
por que vocês vieram até aqui, mas, desde já, gostaria de avisá-los que a base
de todos os ensinamentos é que vocês nunca vão conseguir ter tudo
completamente organizado.” Eu senti como se ele tivesse me dado um tapa
no rosto ou jogado água fria na minha cabeça. Entretanto, nunca mais
esqueci isto: “Vocês nunca vão conseguir ter tudo completamente
organizado.” Nunca chegará esse precioso momento futuro em que tudo
estará em plena ordem. Mesmo chocada, pude perceber a verdade que há
nisso. Uma das coisas que nos mantêm infelizes é essa contínua busca por
prazer ou segurança, por uma situação um pouco mais confortável, seja no
aspecto familiar ou espiritual, ou em termos de tranquilidade mental.
Atualmente, as pessoas vão a muitos lugares diferentes para encontrar o
que procuram. Há programas de 12 etapas, e alguém me disse que já existe
um programa de 24 etapas. Qualquer dia desses haverá provavelmente um
de 108 etapas. Existem muitos grupos de apoio e as mais diversas terapias.
Muitas pessoas sentem-se feridas e procuram algo que as cure. Para mim, a
raiz da cura, a base para nos sentirmos plenamente adultos, pressupõe não
tentar afastar nada e dar valor ao que já possuímos. No entanto, quando o
que possuímos é sofrimento, isso não é nada fácil de engolir.
Em Boston há uma clínica para redução do estresse baseada em
princípios budistas. Essa clínica foi fundada pelo Dr. Jon Kabat-Zinn,
budista praticante e autor de Full Catastrophe Living (Vivendo plenamente a
catástrofe). Ele a rma que a premissa básica de sua clínica, à qual chegam
muitas pessoas em grande sofrimento, é abandonar qualquer expectativa de
resultado. Caso contrário, o tratamento não funcionará. O desejo de mudar
decorre de não nos acharmos su cientemente bons. Esse desejo é motivado
por uma autoagressão: não gostamos da mente, fala ou corpo que temos no
momento; há algo em nós que julgamos não ser bom o bastante. As pessoas
chegam a essa clínica com vícios, histórias de maus-tratos ou estresse
provocado pelo trabalho – com todo tipo de problema. Ainda assim,
abandonar a esperança é o ingrediente mais importante para desenvolver a
cura e a saúde.
Esse é o ponto principal. Enquanto quisermos ser mais magros, mais
inteligentes, mais iluminados, menos nervosos ou qualquer outra coisa, de
algum modo estaremos sempre abordando o problema exatamente com a
mesma lógica que o fez surgir: não somos bons o bastante. Essa é a razão
pela qual o padrão habitual nunca se dissolverá enquanto estivermos
tentando melhorar, pois estaremos empregando o mesmo estilo habitual que
fez surgir todo o sofrimento.
Há um ensinamento budista que rea rma a vida: Buda, que signi ca
“desperto”, não é alguém que veneramos e queremos igualar, não é alguém
que nasceu há mais de 2 mil anos e foi mais inteligente do que jamais
seremos. Buda é nossa natureza inerente. Isso signi ca que, para crescer,
precisamos começar a nos conectar com a inteligência que já possuímos.
Não se trata de receber o transplante de um pouco de sabedoria. Ser maduro
implica deixar de estar aprisionado pela necessidade infantil de sempre
buscar proteção ou esconderijo quando as coisas são duras demais. Para
sermos adultos – o que eu de no como estar completamente à vontade no
mundo, independentemente da di culdade da situação –, precisamos nutrir
o que já possuímos. Em vez de sempre esconder, proteger e encobrir,
devemos possibilitar o crescimento e a manifestação do que já existe em nós.
Certa vez alguém me disse: “Quando sentimos medo, isso é ‘buda com
medo.’” Podemos aplicar essa ideia a tudo que sentimos. Talvez o problema
seja a raiva: simplesmente perdemos o controle, vemos tudo vermelho e,
quando nos damos conta, já estamos gritando, jogando coisas ou batendo
em alguém. Nesse momento, passamos a aceitar o fato de que isso é “buda
com raiva”. Se sentirmos inveja, isso é “buda com inveja”. Quando não
estamos bem do estômago, isso é “buda com azia”. Se estivermos felizes, isso
é “buda feliz”, e, se estivermos entediados, “buda entediado”. Em outras
palavras, tudo que experimentamos ou pensamos merece nossa compaixão,
tudo que pensamos ou sentimos merece nossa apreciação.
Para mim, esse foi um ensinamento poderoso – ele me tocou. Quando
me via nos diversos estados mentais e diferentes humores – para cima e para
baixo, para a esquerda e para a direita, quebrando a cara e me levantando –,
eu lembrava: “Buda quebrando a cara, buda se achando o máximo, buda
com saudade do que aconteceu ontem.” Comecei a perceber que, por mais
que tentasse, não podia me separar de buda; podia estar comigo mesma para
o que desse e viesse. Quando temos um relacionamento incondicional com
nós mesmos, temos um relacionamento incondicional com buda.
É por isso que a máxima diz: “Abandone qualquer expectativa de
resultado.” “Resultado” implica sentir-se bem em algum momento futuro.
“Aberto” é outra palavra importante: ter a mente e o coração abertos. Essa
palavra refere-se principalmente ao presente. Ter um relacionamento
incondicional consigo mesmo signi ca aderir ao buda exatamente agora, no
ponto em que estamos.
Em Gampo Abbey, como em qualquer monastério, não há nada
divertido para fazer, a menos que se goste de meditar o tempo todo ou de
caminhar em meio à natureza. De qualquer modo, após um tempo, tudo ca
muito tedioso. Não há sexo, não é permitido beber e não se pode nem
mentir. De vez em quando, assiste-se a um vídeo, mas isso é raro e, em geral,
há uma disputa para resolver o que será visto. Às vezes, a comida é boa; às
vezes, péssima. Gampo Abbey é simplesmente um lugar muito
desconfortável porque, ali, não é possível fugir de si mesmo. Entretanto,
quanto mais as pessoas fazem amizade consigo mesmas, mais passam a
achar que esse é um lugar que as nutre e apoia, no qual podem descobrir a
natureza búdica de seu próprio ser, do jeito que são hoje, exatamente agora.
Você conseguiria estabelecer um relacionamento incondicional consigo
mesmo hoje, exatamente agora? Com a altura e o peso que tem, com a
inteligência que possui e sua carga de sofrimento? Você conseguiria se
relacionar incondicionalmente com tudo isso?
Abandonar qualquer expectativa de resultado tem algo em comum com
o título de outro livro que escrevi, e Wisdom of No Escape (A sabedoria de
não fugir). “Não fugir” nos deixa continuamente no presente, e o presente
pode ser qualquer coisa, qualquer humor em que possamos estar, qualquer
pensamento que possamos ter. Ele é o que é.
Quer estejamos recebendo instruções de meditação da tradição
eravada, Zen ou Vajrayana, sempre nos dirão, basicamente, que devemos
estar despertos no momento presente. O que não é dito é que o momento
presente pode ser cada um de nós – essa pessoa de quem às vezes não
gostamos muito. É para isso que devemos despertar.
Quando um dos imperadores da China perguntou a Bodhidharma (o
mestre que trouxe o Zen da Índia para a China) o que era iluminação, ele
respondeu: “Muito espaço; nada sagrado.” A meditação não tem nada de
sagrado. Portanto, não há nada que possa ser visto ou sentido como
“pecado”, como “mau” ou “errado”. Tudo é bom e rico – tudo é adubo para
despertar e alcançar a iluminação, tudo é a arte de viver no momento
presente.
17
A ação compassiva

Como podemos ajudar? Como criar um mundo, uma situação familiar ou


um ambiente de trabalho mais saudável, onde quer que estejamos? Como
trabalhar com nossas ações, fala e mente de forma que haja abertura, em
lugar de fechamento? Em outras palavras, como criar condições para que
todos nós possamos entrar em contato com nossa própria sabedoria? Como
abrir espaço para que possamos, cada vez mais, fazer parte do mundo em
que vivemos e, cada vez menos, sentir que estamos separados, isolados e
assustados? Como fazer tudo isso?
Tudo começa com bondade amorosa consigo mesmo, que, por sua vez,
transforma-se em bondade amorosa com os demais. À medida que as
barreiras em torno do nosso coração desmoronam, sentimos menos medo
dos outros. Passamos a ser mais capazes de ouvir o que é dito, de ver o que
está diante de nossos olhos e agir de acordo com a situação, em vez de lutar
contra ela. Os ensinamentos lojong nos dizem que uma maneira de ajudar,
uma forma de agir compassivamente, é trocar de lugar com o outro. Quando
nos colocamos no lugar do outro, sabemos o que é necessário e conseguimos
falar ao coração.
Recentemente, recebi a carta de uma amiga, na qual ela me criticava e
repreendia. Minha primeira reação foi car magoada, minha segunda reação
foi sentir muita raiva. Então comecei a escrever mentalmente uma resposta
em que eu usava todos os ensinamentos e a lógica lojong para revidar. Pelo
estilo do nosso relacionamento, sei que minha reação a deixaria muito
intimidada, mas isso não teria adiantado nada. Eu só teria reforçado ainda
mais o que nos tornava duas pessoas separadas, cada uma delas acreditando
mais e mais em seu papel – eu, a que sabe tudo; ela, a aluna incapaz. No dia
em que gastei tanta energia imaginando minha resposta, por uma simples
mudança de circunstâncias, algo fez com que eu me sentisse extremamente
solitária, triste e vulnerável. Nesse estado de espírito, compreendi
subitamente o que havia causado a atitude de minha amiga: solidão e
rejeição. Com aquela carta, ela estava tentando se comunicar.
Às vezes, quando estamos muito infelizes, desa amos os outros só para
ver se eles continuam gostando de nós, mesmo quando mostramos quanto
podemos ser detestáveis. Meu estado de espírito me permitiu compreender
que ser criticada era do que minha amiga menos precisava naquele
momento. Por isso, escrevi uma resposta muito diferente da que havia
planejado, dizendo com extrema honestidade: “Sabe, você pode me criticar
quanto quiser e despejar tudo em cima de mim, mas eu não vou desistir de
você.” Não escrevi uma carta branda, tentando ignorar a existência do
confronto e a mágoa que isso me causara. Por outro lado, também não
cheguei ao extremo oposto de acabar com ela. Pela primeira vez, senti que
havia experimentado o que signi ca trocar de lugar com o outro. Quando já
estivemos em um lugar, sabemos como ele é. Portanto, somos capazes de
oferecer algo que pode abrir espaço e fazer com que as coisas continuem
uindo. Somos capazes de dar alguma coisa que ajude o outro a entrar em
contato com sua própria intuição, coragem e suavidade, em vez de polarizar
ainda mais a situação.
“Atribua todas as culpas a um só” é uma máxima essencial porque
atribuir a culpa ao outro geralmente decorre de nos sentirmos feridos e
desejarmos revidar. Essa é a lógica subjacente. Por isso, trocar de lugar –
colocar-se no lugar do outro – não é uma postura teórica, na qual tentamos
imaginar o que os outros estão sentindo. Essa atitude é resultado de
olharmos com tanta familiaridade, franqueza e honestidade para o que
somos e fazemos que passamos a compreender toda a condição humana e
respondemos adequadamente à situação.
A ação compassiva baseia-se principalmente em não lutar contra, mas
trabalhar com o que chamo de nossos aspectos indesejáveis e inaceitáveis.
Desse modo, quando o que é indesejável e inaceitável manifesta-se
externamente, nós nos relacionamos com a situação utilizando a bondade
amorosa que já desenvolvemos em relação a nós mesmos.
Consequentemente, não seremos condescendentes. Essa abordagem não
dualística fala ao coração porque seu fundamento é a a nidade que existe
entre todos nós. Sabemos o que dizer, pois entendemos o que signi ca
fechar-se, retrair-se, sentir raiva, mágoa, revolta ou outros sentimentos, e já
nos relacionamos pessoalmente com cada um deles.
Não estou falando de resolver problemas. Esta é uma abordagem mais
aberta e corajosa. Ela implica não saber o que vai acontecer e não tem nada a
ver com pisar em terra rme. Aqui, estamos falando em manter a mente e o
coração abertos para tudo que surge, sem nenhuma expectativa de
resultado. Tentar resolver problemas pressupõe, em primeiro lugar, achar
que existe um problema e, em seguida, acreditar que há uma solução. Os
conceitos de “problema” e “solução” podem nos manter presos ao raciocínio
de que há um inimigo e um santo, ou um modo certo e outro errado. A
abordagem que estamos sugerindo não nos oferece tantas certezas.
Uma máxima essencial é: “Mude sua atitude, mas permaneça natural” ou
“Mude sua atitude e relaxe naquilo que acontece”.
Para haver compaixão em nossa relação e comunicação com os outros, é
necessária uma fundamental mudança de atitude. Achar que “Eu posso
ajudar e você precisa de ajuda” pode funcionar por um certo tempo, mas,
basicamente, nada muda, pois continua existindo alguém que possui algo e
alguém que precisa disso. Essa visão dualística não fala verdadeiramente ao
coração.
Como nos dizem os ensinamentos lojong, a completa mudança de
atitude está em inspirar o indesejável e expirar o prazeroso. Isso é o
contrário da atitude epidêmica deste planeta, em que se busca afastar o que é
desagradável e agarrar rmemente o que é agradável.
Essa mudança de atitude não acontece da noite para o dia. Ela ocorre aos
poucos, em nosso próprio ritmo. Quando paramos de resistir aos aspectos
que julgamos inaceitáveis em nós mesmos e, em vez disso, passamos a
inspirá-los, temos muito mais espaço. Passamos a conhecer cada um deles –
não temos mais monstros no armário nem demônios na caverna. Isso é
como acender as luzes e olhar para si mesmo com honestidade e compaixão.
É possível aprender a mudar de atitude em um nível cotidiano: se nossa
experiência é agradável e maravilhosa, doamos esse prazer com a expiração
e compartilhamos com os demais. Isso também gera um enorme espaço –
não apenas para nós, mas para todos. Quando agimos assim, começam a se
dissolver todos os obstáculos internos que impedem nosso contato com o
frescor e a abertura que nos são inerentes. Essa é a mudança de atitude
fundamental: trabalhamos com a dor e o prazer de forma corajosa e
revolucionária.
Aceitar a dor e doar o prazer não signi ca “suportar estoicamente”. Esta
abordagem é muito mais divertida, é como se dançássemos com tudo que
acontece. Percebemos que nossa separação não passa de um estranho mal-
entendido. Vemos que, no início, as coisas nem eram tão dualísticas: somos
capazes de despertar para essa percepção. A base de qualquer ação
compassiva verdadeira está em perceber intuitivamente que os outros – que
parecem estar do lado de fora – são como nossa imagem re etida no
espelho. Ao fazer amizade com nós mesmos, fazemos amizade com os
demais. Ao ferir os outros, ferimos a nós mesmos.
Outra máxima diz: “Atenha-se sempre aos três princípios básicos.” O
primeiro princípio é manter sempre qualquer voto que tenhamos tomado –
os votos de refúgio que recebemos quando nos tornamos budistas e os de
bodhisattva, que tomamos posteriormente e que são a expressão do nosso
desejo de bene ciar os outros. O segundo princípio é evitar uma conduta
exibicionista ou ostensiva. O terceiro é sempre cultivar a paciência. Assim,
estes são os três princípios básicos: manter os votos tomados, evitar uma
atitude ostensiva e cultivar a paciência.
MANTER OS VOTOS TOMADOS

O primeiro princípio – manter os votos tomados – fala especi camente


àqueles que tomaram os votos de refúgio e de bodhisattva. Ouvir um pouco
sobre eles, no entanto, pode ser útil a todos. O voto de refúgio trata de
assumir o compromisso de se tornar um refugiado. Em essência, isso
signi ca que, em vez de sempre buscar segurança, nós desenvolvemos a
atitude de querer caminhar em território desconhecido. Tomamos esse voto
porque sentimos que, se quisermos ser saudáveis e nos tornar seres
humanos completos, precisamos romper com o forte apego que temos a nós
mesmos. Desejamos ir além, não temos mais medo de nós mesmos.
Podemos nos tornar refugiados porque, quando não temos medo, não
sentimos mais necessidade de um esconderijo seguro.
A imagem para o voto de bodhisattva poderia ser “Não ter medo dos
outros”. Quando tomamos o voto de bodhisattva, abrimos portas e janelas e
convidamos todos os seres sensíveis para entrar em nossa casa. Após ver
quanta inutilidade e dor são geradas pelo contínuo apego a si mesmo,
desejamos dar o próximo passo e começar a trabalhar com os demais.
Podemos achar que trabalhamos com os outros porque somos mais
esclarecidos e queremos propagar essa lucidez. Uma visão mais profunda,
porém, é perceber que só conseguiremos prosseguir se abrirmos as portas e
janelas, parando de nos proteger e passando a trabalhar com tudo que surge.
Só assim estaremos mais despertos. A motivação para fazer amizade consigo
mesmo se transforma no desejo de auxiliar os outros. Esses dois aspectos
trabalham juntos. Sabemos que, enquanto não formos nossos próprios
amigos, não seremos capazes de ajudar ninguém.
Evitar uma conduta ostensiva. O segundo princípio básico é evitar uma
conduta ostensiva. Enquanto idealizarmos para nós mesmos o papel de
herói, patrono ou médico e olharmos para os outros como vítimas e doentes,
ou como desprovidos e miseráveis, estaremos criando continuamente a
separação. Com essa atitude, podemos até ajudar alguém a ter mais
alimentos ou uma casa melhor, e essa será uma ajuda importante porque
essas coisas também são necessárias. Entretanto, não estaremos lidando com
o problema fundamental subjacente ao isolamento, ao ódio e à
agressividade. Às vezes, nossa ajuda assume um caráter bombástico – vemos
isso com frequência na política. As pessoas fazem uma grande aparição e, de
repente, isso não tem mais nada a ver com ajudar o outro, mas com
construir a própria imagem.
Na década de 1970 cou famosa uma fotogra a em que a Guarda
Nacional aparecia per lada e armada, durante uma passeata contra a guerra.
Uma jovem se aproximou e colocou uma or no cano de uma das armas,
uma cena que cou imortalizada na foto publicada em vários jornais. O
soldado que segurava a arma – e que, mais tarde, tornou-se um grande
ativista pela paz – declarou nunca antes ter experimentado algo tão
agressivo quanto a atitude daquela garota sorridente, des lando
ostensivamente com sua or. Muitos dos rapazes que faziam parte da
Guarda Nacional já se perguntavam como tinham ido parar daquele lado
especí co do muro. Então surge essa hippie! Nem por um segundo ela olhou
para o rosto do soldado. Em nenhum momento o viu como ser humano.
Somente o protesto importava e isso o magoou. Esse é o sentido dessa
máxima. É preciso questionar o que está por trás de nossa ação,
principalmente quando ela causa um poderoso efeito.

CULTIVAR A PACIÊNCIA

O último dos três princípios básicos é cultivar a paciência, que é o mesmo


que cultivar a não agressão. Basicamente, paciência e não agressão são
encorajamentos para esperarmos. Às vezes, penso no tonglen desta maneira:
nós nos deparamos com uma situação em que normalmente reagiríamos
gritando, jogando alguma coisa em alguém ou pensando na pessoa com
quem estamos nos velhos modelos habituais. Em vez disso, lembramos de
trocar de lugar com o outro. Todo esse sólido sentimento de que há um “eu”
e um “outro” começa a ser questionado quando cultivamos a paciência.
Aprendemos a parar, esperar, escutar e olhar, concedendo mais espaço a nós
mesmos e aos demais – simplesmente diminuindo o ritmo da câmera, em
vez de acelerá-la.
Esse princípio se parece um pouco com o velho conselho que nos diz
para contar até dez antes de falar: ele nos faz parar. Quando começamos a
sentir medo, ou raiva, há uma certa adrenalina, no exato momento em que
começamos a acelerar. Nossa própria aceleração pode servir para nos trazer
de volta ao momento presente. Podemos usá-la como um lembrete para ir
mais devagar, ouvir, olhar, esperar e desenvolver paciência.
“Renuncie aos alimentos venenosos” e “Não transforme deuses em
demônios” são avisos de que nós somos os únicos que sabemos se o que
estamos fazendo é uma boa prática (“deuses” ou “bons alimentos”). Tudo
pode ser usado para recompor nossa própria imagem, atenuar problemas,
acalmar situações ou manter as coisas sob controle. Quando os usamos para
car no quarto com as portas e janelas trancadas, o bom alimento
transforma-se em veneno e os deuses transformam-se em demônios.
Outra máxima que tem a ver com a ação compassiva é: “Trabalhe
primeiro com as maiores imperfeições.” Desenvolver bondade amorosa por
si mesmo é a base para uma relação e comunicação compassivas. A hora é
agora, não mais tarde. A maior imperfeição é aquilo que consideramos
nosso maior obstáculo. Essa máxima sugere que devemos começar com
aquilo que mais nos aprisiona. Estabelecer amizade com esse aspecto faz
com que, automaticamente, sejam trabalhados os obstáculos menores.
Os maiores obstáculos, como ódio, inveja ou terror, são muito
dramáticos, e sua própria nitidez pode servir como lembrete para
trabalharmos com a prática do tonglen. Às vezes, estamos tão acostumados a
uma variedade de pequenas irritações cotidianas que nem pensamos nelas
como obstáculos. Até certo ponto, é mais difícil lidar com essas pequenas
di culdades, já que elas não se revelam claramente. Nossa enfática
indignação é o único sinal de que estão surgindo. Permita que ela seja um
indicador de que alguém está se apegando a si mesmo – e esse alguém,
provavelmente, é você.
Quando começamos a trabalhar com nossas maiores imperfeições ou
aspectos mais arraigados, os pequenos problemas tendem a parecer mais
óbvios. Ao passo que quando tentamos lidar diretamente com as pequenas
coisas, elas se parecem com nossa mão ou nosso nariz: só conseguimos
pensar nelas como parte de nós e nem as percebemos como obstáculos.
Sempre que acontecem, nós apenas as aceitamos.
Os maiores obstáculos são também nossa maior sabedoria. Em todos os
aspectos indesejáveis há algo de agudo e penetrante – há uma grande
sabedoria. Suponha que a raiva, o ódio ou talvez o vício e o desejo sejam o
que você considera seu maior obstáculo. Esses sentimentos criam todo tipo
de con ito, tensão e estresse, mas, por outro lado, possuem uma qualidade
penetrante que corta qualquer confusão e ilusão. Eles têm todas essas
características ao mesmo tempo.
Quando percebemos que estamos diante de nossa maior imperfeição,
quando ela nos desa a e, por ser muito grave, parece não haver um jeito de
sair dela, seguimos a orientação de abandonar nossa história e parar de
conversar internamente, reconhecendo plenamente nossos próprios
sentimentos. Deixamos que as palavras se esgotem e voltamos à qualidade
essencial do que está por baixo de tudo isso. Essa é a ideia quando falamos
em inspirar e tornar-se seu próprio amigo em um nível mais profundo.
Nesse processo, estamos fazendo amizade também com todos os seres
sensíveis, pois é disso que a vida é feita. Trabalhar primeiramente com as
maiores imperfeições é o mesmo que dizer que a hora é agora e, também,
que nossos maiores obstáculos são nossa maior riqueza. Do ponto de vista
de quem quer estar confortável e isolado em seu quarto, esse trabalho pode
parecer extremamente ameaçador. O caminho para a ação compassiva inclui
explorar o que “inspirar” signi ca, testando essa instrução para ver se ela
encontra eco em você.
18
Assumir a responsabilidade por nossos atos

A nal, o que realmente pode ajudar alguém? O que, de fato, faz com que as
coisas evoluam de forma natural e espontânea? As próximas máximas nos
fornecem alguma orientação. Todas começam com a palavra não. Gosto de
chamá-las de máximas da “verdade nua”.
Assumir a responsabilidade pelas próprias ações, em parte, é ser capaz
de enxergar muito claramente e, por isso, essa é uma outra forma de falar
sobre despertar o bodhichitta. Assumir a responsabilidade também se
relaciona com a gentileza, com não fazer julgamentos, não atribuir conceitos
de certo e errado, bom e mau, mas, em vez disso, olhar para si mesmo com
suavidade e honestidade. Um terceiro aspecto é a capacidade de seguir em
frente, descrita anteriormente como se desapegar. Em um certo sentido, no
entanto, isso signi ca apenas seguir em frente: não camos completamente
dominados pela identidade do vencedor ou vencido, ofensor ou ofendido,
bom ou mau sujeito. Simplesmente olhamos o que fazemos com toda a
clareza e compaixão de que formos capazes e continuamos nosso caminho.
O momento seguinte é sempre novo e aberto, não precisamos estar
congelados em nenhum tipo de identidade.
De modo geral, temos a impressão de que nossa imagem está “do lado de
fora” e parecemos sempre atacá-la. Queremos culpar os homens ou as
mulheres, os brancos ou os negros, os políticos ou a polícia; queremos
culpar alguém. Há certa tendência a sempre colocar nossa imagem do lado
de fora, mesmo quando “fora” é nosso próprio corpo. Em vez de lidar com as
situações, lutamos contra elas. Como resultado, nós nos tornamos alienados.
Então, tomamos o remédio errado para nossa doença: usamos diferentes
métodos para criar uma armadura e, de um jeito ou de outro, nunca lidamos
com nossos pontos vulneráveis.
Portanto, as máximas de hoje apresentam uma importante revelação. A
primeira é: “Não fale sobre membros defeituosos.” Em outras palavras, não
fale sobre os defeitos dos outros. Todos nós temos o mesmo tipo de
satisfação quando sentamos juntos ao redor de uma mesa, falando sobre o
mau hálito de Mortimer. E, além disso, ele tem caspa, a risada dele é
esquisita e ele é ignorante. Falar sobre os defeitos dos outros nos dá um tipo
peculiar de segurança. Às vezes, douramos a pílula e disfarçamos. Dizemos
algo como: “Olá! Você sabia que Joana rouba?” Então, continuamos: “Puxa!
Não devia ter dito isso. Desculpe, fui muito grosseiro. Não vou dizer mais
nada.” Gostaríamos de continuar interminavelmente, mas, em vez disso,
falamos apenas o su ciente para colocar as pessoas contra Joana, mas não o
bastante para que elas nos desaprovem por estarmos difamando alguém.
Então, há outra: “Não pense nas falhas dos outros.” Essa máxima refere-
se a rebaixar os outros para elevar a si mesmo. Talvez façamos isso apenas
mentalmente. A nal, não fazemos críticas em voz alta porque sabemos que
os outros desaprovariam. Mentalmente, porém, não paramos de falar de
Mortimer: como detestamos as roupas que ele usa, seu jeito de andar e o
olhar frio com que recebe nossa tentativa de sorriso. Dizemos: “Agora chega!
Desde que cheguei aqui, não faço outra coisa senão criticá-lo. Vou tentar ser
seu amigo.” Mas Mortimer responde ao nosso falso sorriso luminoso com
um olhar gelado. Então, sentados em nossa almofada, continuamos a julgar
seu horrível comportamento e, frequentemente, rotulamos nosso
julgamento como “pensando” ou começamos a inspirá-lo. Não nos ocorre
trocar de lugar com ele e, certamente, não sentimos nenhuma gratidão.
A próxima máxima – “Não seja tão previsível” – também tem sido
traduzida por “Não seja tão con ável”. Essa máxima diz que somos óbvios
demais, o que é bem sabido no mundo da propaganda. Os anunciantes
sabem exatamente o que devem colocar nos painéis e anúncios para que
desejemos comprar seus produtos. Mesmo pessoas inteligentes como nós
são, às vezes, magnetizadas pela propaganda porque somos muito
previsíveis.
Somos 100% previsíveis principalmente quando se trata de fugir do que
não gostamos e dedicar muito tempo e esforço tentando, por assim dizer,
devorar aquilo de que gostamos. Quando alguém nos trata bem, temos isso
sempre em mente e desejamos recompensar a gentileza. Mas, quando
alguém nos fere, lembramos disso pelo resto da vida e sentimos vontade de
nos vingar, de um modo ou de outro. Esse é o signi cado do “Não seja tão
previsível”. Não reaja sempre de modo tão óbvio ao prazer e à dor. Não
continue a tomar o remédio errado.
A próxima máxima é muito fácil de compreender: “Não fale mal dos
outros.” Gastamos muito tempo e energia em fofocas sobre os outros. Talvez
haja alguém, e talvez seja uma única pessoa, com quem você tem um
problema. Talvez seja Pearl, que é tão lamentável. Ela sempre se sente
rejeitada e isso faz você se lembrar de sua mãe, que também é assim. De
algum modo, Pearl e sua mãe se confundem, você se percebe continuamente
irritado e aborrecido com o jeito dela e isso desencadeia muitos
sentimentos. Não existe o menor interesse em conhecê-la realmente e
descobrir o que acontece, não há nenhum desejo de se comunicar e
descobrir quem ela é. Ao contrário, não gostar dela provoca certa satisfação
e você perde muito tempo e energia conversando internamente sobre a
Pobre Pearl ou quem quer que seja – o Horrível Horácio ou o Miserável
Mortimer.
“Não se ponha de emboscada” é outra máxima da “verdade nua”.
Ensinaram-lhe que deveria ser uma boa pessoa, mas você não se sente tão
bondoso assim. Talvez você saiba algo sobre seu marido e ele nem descon e
disso. Esse é um trunfo que ca guardado na manga, esperando o momento
certo para ser usado. Um dia, você está muito alterada, no meio de uma
briga. Ele acaba de ofendê-la. Nesse momento, você tira seu ás da manga e
coloca seu marido contra a parede. Isso é “pôr-se de emboscada”. Estamos
dispostos a ter muita paciência até que o momento certo se apresente e
alguém possa ser encurralado. Esse não é o caminho do guerreiro: esse é o
caminho do covarde. Não apenas queremos “ganhar” – nós não fazemos
nenhum esforço para que haja comunicação. A aspiração de se comunicar
com a outra pessoa, ser capaz de ouvir e falar com o coração, é o que muda
nossos velhos padrões arraigados.
“Não leve as coisas a um ponto penoso” é uma máxima que, de certa
forma, a rma a mesma coisa. Estamos falando de nuances da tragédia
humana, da situação tragicômica em que nos encontramos. “Não leve as
coisas a um ponto penoso” está querendo dizer novamente: “Não humilhe
os outros.” Fazemos isso porque sentimos dor, porque nos sentimos feridos e
isolados. Em vez de, em primeiro lugar, fazer amizade com o que estamos
sentindo e, em seguida, tentar nos comunicar, usamos vários expedientes
para manter forte e sólida toda essa questão do “nós e eles”. Essa atitude
causa todo o sofrimento que há na Terra, incluindo o caos em que está
nosso ecossistema. Tudo isso é resultado de as pessoas não fazerem amizade
consigo mesmas e nunca estarem dispostas a se comunicar com aqueles que
julgam ser os criadores de problemas. É desse modo que camos presos
neste campo de batalha, nesta zona de guerra.
A máxima seguinte diz: “Não trans ra a carga do boi para a vaca.”
Digamos que você seja o chefe de João. Quando aparece uma tarefa que não
lhe agrada e da qual quer se livrar, você a transfere para João. A carga vai
para outra pessoa. É como o mito grego de Atlas: ele só estava passando
inocentemente e alguém disse: “Ah! Atlas, você se incomoda de segurar a
Terra só por um momento?”
Isso é o que fazemos. Quando não gostamos de alguma coisa, não nos
ocorre trabalhar de fato com esse sentimento e ter uma comunicação com a
pessoa que nos passou a tarefa; não pensamos em, de algum modo, abrir a
situação e lidar de forma honesta e corajosa com o que está acontecendo.
Em vez disso, transferimos nossa carga para outra pessoa e pedimos que ela
a carregue. Isso é chamado de “passar o bastão”.
“Não aja ardilosamente” é a máxima seguinte. Isso signi ca não ser falso,
mas se parece com aquelas máximas que falam em não comer alimentos
venenosos ou transformar deuses em demônios. Estamos dispostos a
atribuir todas as culpas a nós mesmos publicamente, para que todos vejam,
porque desejamos que pensem o melhor de nós. Nossa motivação é fazer
com que os outros nos considerem uma pessoa maravilhosa, e esse é o
“ardil”. Ou alguém nos trata mal, lembramos de lojong, mas usamos de um
estratagema. Não dizemos: “Cai fora, Joana” ou qualquer coisa áspera –
somos pessoas doces que têm a admiração de todos. O outro lado disso,
porém, é que as pessoas gostam cada vez menos de Joana porque ela nos
trata mal. Nossa atitude bondosa é uma forma de dar o troco. Essa é a ideia
quando falamos em agir ardilosamente. Há muitas maneiras de se conseguir
uma doce vingança.
Finalmente, “Não procure fazer da dor alheia as pernas de sua própria
felicidade”, que é o mesmo que dizer “Não deseje a dor dos outros como um
meio para ser feliz”. Ficamos contentes quando os que criam problemas em
nossa vida são atropelados por um caminhão, vão à falência ou algo dessa
natureza. Na minha vida, algumas pessoas se encaixam nessa categoria, e
acho incrível ver quanto me sinto feliz quando uma delas me escreve
dizendo que as coisas vão muito mal. Ao contrário, co cheia de desgosto
quando sei que estão indo bem. Tenho sempre comigo a lembrança do mal
que me zeram e desejo que simplesmente continuem a ir ladeira abaixo e
caiam mortas dolorosamente. É assim que usamos a dor dos outros como
base de nossa própria felicidade.
Essas máximas são um curioso estudo sobre a espécie humana. Elas
revelam que precisamos ser muito honestos em relação ao que fazemos. Ao
ver o que acontece, somos capazes de sentir muita compaixão, pois, ao
estudar a nós mesmos, estamos aprendendo sobre toda a raça humana. As
regras monásticas nos dão uma noção de como eram bondosos todos os
monges e monjas da época de Buda. Há regras do tipo: “Não cubra sua carne
com o arroz para que o atendente pense que você ainda não a recebeu e lhe
sirva mais uma porção”, “Não aborreça seu companheiro de quarto com a
intenção de que ele vá embora e você tenha o quarto só para você”. Essas
regras existiam mesmo – eram normas de comportamento para monges e
monjas do tempo de Buda.
Todas as tiras e lmes cômicos do mundo inspiram-se nos mesmos
temas de que trata esse grupo especí co de máximas. Quando agimos assim,
de duas uma: ou nem percebemos, ou percebemos e achamos que estamos
cometendo um pecado. Assim, ou nem prestamos atenção ou damos
enorme importância ao fato: “Falo mal dos outros. Não fui feito para viver
neste planeta. Que cruz! Quanto mais me conheço, mais posso ver. Estou
sempre fofocando. Sou um caso perdido! Ai de mim!” Podemos, no entanto,
simplesmente ver o que fazemos – não apenas com honestidade, mas
também com senso de humor – e prosseguir em nosso caminho sem fazer
disso toda uma identidade.
Ainda nos resta, porém, uma questão: quando vemos o que temos de
pior, quando sentimos inveja ou desejo de vingança, como dar o que temos
de melhor? O primeiro passo é mergulhar na experiência de sentir-se mal e
fazer amizade com esse sentimento. O passo seguinte é aprender a se
comunicar com a pessoa que parece estar nos causando dor e infelicidade,
não para provar que ela está errada e nós estamos certos, mas para chegar à
comunicação que vem do coração. Essa é uma profunda jornada para toda a
vida: não é algo que acontece fácil ou rapidamente.
19
A comunicação que vem do coração

Vamos continuar a examinar a ação compassiva. Temos uma forte tendência


a nos distanciar de nossa experiência porque ela nos causa dor. O dharma,
porém, encoraja-nos a chegar mais perto dela. Embora existam muitas
palavras que poderiam ser usadas para explicar a ação compassiva, gostaria
de enfatizar apenas uma, e essa palavra é comunicação – especialmente a
comunicação que vem do coração.
“Todas as atividades devem ser realizadas com uma intenção.” Essa
intenção é a de despertar o bodhichitta ou despertar o coração. Poderíamos
dizer: “Todas as atividades devem ser realizadas com a intenção de chegar à
comunicação.” Essa é uma sugestão prática: devemos falar de modo que os
outros possam nos escutar, em vez de usar palavras que aumentem as
barreiras e tapem os ouvidos. Nesse processo, também aprendemos a ouvir e
a olhar.
Outra máxima extremamente oportuna que caminha ao lado de “Todas
as atividades devem ser realizadas com uma intenção” é “Sempre medite
sobre tudo que provoca ressentimento”. Em vez de ser um obstáculo, o
ressentimento é um lembrete. Sentir-se irritado, inquieto, temeroso e
desesperançado é um aviso para ouvir mais atentamente: pare de falar,
preste atenção e ouça. É um lembrete para usar a prática do tonglen com a
intenção de permitir mais espaço.
Por exemplo, detestamos a pessoa que está à nossa frente. Queríamos
apenas ajudar alguém que está passando fome e, de repente, precisamos falar
com o inimigo – um burocrata, um político, eles. Durante a conversa para
pedir recursos, como não fazemos outra coisa senão car cada vez mais
irritados, nada acontece. À medida que camos furiosos e polarizados, eles
se tornam mais obstinados, o que só aumenta a sensação de um enorme eu
contra um enorme eles.
Quando sentimos ressentimento, nossas palavras, ações e pensamentos
deixam de produzir o resultado que esperávamos. Além disso, quando
camos agressivos, não estamos exatamente adicionando paz e harmonia ao
mundo. O ressentimento pode passar a ser um lembrete, não para nos
sentirmos mal em relação a nós mesmos, mas para nos abrirmos ainda mais
à dor e ao mal-estar.
Se realmente quisermos nos comunicar, devemos desistir de saber o que
fazer. Quando já chegamos com um esquema pronto, camos simplesmente
impedidos de ver a pessoa que está à nossa frente. É melhor desistir de nosso
plano para os próximos cinco anos e aceitar a estranha e desalentadora
sensação de entrar desarmado em uma situação. Não sabemos o que vai
acontecer ou o que faremos a seguir.
A máxima “Mantenha as três inseparáveis” nos diz que nossa mente,
ação e fala não podem se separar do desejo de ter uma comunicação que
vem do coração. Tudo que dizemos pode polarizar ainda mais a situação e
nos convencer de que estamos muito isolados. Por outro lado, tudo que
dizemos, fazemos e pensamos pode servir de apoio ao nosso desejo de
comunicação e aproximação, fazendo-nos sair desse mito de separação e
isolamento a que estamos presos.
Em geral, quando nos sentimos maltratados, nossa única intenção é a de
conseguir vingança. A máxima “Corrija todos os erros com uma intenção”
tenta nos animar um pouco, tornando a situação mais leve e acrescentando
algum espaço. Essa “uma intenção” é a de trocar de lugar com o outro. Essa é
a chave. Corrigir todos os erros com uma intenção signi ca ouvir o que está
sendo dito, ver a pessoa que está diante de nós e ser capaz de relaxar, mesmo
sem saber o que dizer ou fazer, apenas observando e esperando. Então,
respondemos alguma coisa, pois a pessoa à nossa frente acabou de dizer:
“Bem, o que você acha?”, ou “Não sei, veja se você consegue me convencer a
agir do seu modo” – ou está simplesmente gritando conosco.
Se nosso grande desa o fosse aprender a nos comunicar, não apenas
seríamos capazes de conseguir alimento para os que têm fome e abrigo para
os que vivem nas ruas, mas até poderíamos ver uma mudança fundamental:
menos agressividade neste planeta e maior cooperação.
Nós somos diferentes; somos muito diferentes uns dos outros. O que
uma pessoa entende por educado pode ser rude para outra. Em algumas
culturas é grosseiro arrotar à mesa; em outras, isso demonstra que
apreciamos a refeição. Um cheiro repulsivo para alguns pode ser delicioso
para outros. Somos muito diferentes e precisamos reconhecer isso. Mas, em
vez de começar uma guerra por causa de nossas diferenças, vamos jogar
futebol. Vai ser uma estranha partida, já que nossa instrução nos diz para
deixar a vitória para o outro e car com a derrota. Isso não signi ca que
jogamos para perder: nós jogamos para jogar. Mesmo em times opostos,
podemos jogar juntos. Ninguém vai apostar alto, é apenas um jogo. Há times
diferentes – de outro modo, a partida não daria certo. Entretanto, ela não
precisa nos levar à Terceira Guerra Mundial ou à destruição do planeta.
Um de meus professores do dharma preferidos é o Dr. Seuss, célebre
autor norte-americano de livros infantis. Ele captura maravilhosamente a
condição humana. Uma de suas histórias começa com duas pessoas
andando, uma em direção à outra, em um caminho estreito. Quando se
encontram, nenhuma delas se afasta para deixar a outra passar. Os outros
começam a construir pontes e até cidades inteiras ao redor delas, e a vida
continua. Os dois teimosos, porém, recusam-se a arredar pé e continuam ali
pelo resto da vida. Nunca ocorre a essas duas pessoas, nem mesmo depois
de 85 anos, que poderiam se perguntar por que a outra não se move, ou
tentar se comunicar. Elas poderiam ter tido uma conversa bem interessante
durante todos esses anos, ainda que continuassem sem sair do lugar.
O sentido não está em tentar harmonizar ou suavizar todas as situações.
Se esse for seu objetivo, boa sorte! O sentido está em viver juntos neste
mundo com nossas diferenças, em chegar a uma comunicação para nosso
próprio bem. O importante é o processo, não o resultado. Se alcançarmos
nossos objetivos através de táticas agressivas, de qualquer modo, nada
mudará.
Dr. Seuss conta uma outra história, sobre os Sneetches. A raça superior,
aqueles que todos gostariam de ser e detestavam ao mesmo tempo eram os
Sneetches com Estrela na Barriga: só eles tinham uma estrela na barriga. Um
sujeito muito esperto, sabendo que os Sneetches eram muito previsíveis,
apareceu com uma máquina capaz de colocar uma estrela na barriga. Todos
os Sneetches sem estrela na barriga correram até ele e saíram com a tal
estrela. Mas é claro que os originais, com estrela na barriga, ainda sabiam
muito bem quem eram e quanto eram superiores – e nem se abalaram. Para
encurtar essa história muito óbvia, o mesmo sujeito esperto apareceu com
uma nova máquina que poderia tirar a estrela. Assim, todos os Sneetches
com Estrela na Barriga foram até ele e tiraram a estrela – os superiores eram,
agora, os sem estrela.
O astuto homem continuou a aplicar suas máquinas. Os Sneetches
corriam de lá para cá, e o sujeito ganhava cada vez mais dinheiro. Depois de
um tempo, todos os Sneetches experimentaram shunyata: já não sabiam
mais quem era quem, o que era o que, quem era um Sneetch com Estrela na
Barriga e quem era um Sneetch sem Estrela na Barriga. Assim, depois de um
tempo, tiveram simplesmente de olhar uns para os outros sem rótulos nem
opiniões.
Outra máxima diz: “Treine-se imparcialmente em todas as áreas. É
crucial que isso seja feito sempre, de modo abrangente e sem reservas.”
Treine-se imparcialmente – esse é o truque. Imparcialmente e sem rótulos.
Essa abordagem é apoiada por toda a prática do tonglen e ensinamentos
lojong que nos encorajam a ver a parcialidade quando ela surge e a nos
conectar com o sofrimento que ela envolve – sentir o preconceito, o
ressentimento e o julgamento. Esse é um ensinamento poderoso e
compassivo porque respeita nossa inteligência e nosso bom coração inato.
Ele diz simplesmente: “Comece a ver o que você faz, sem necessariamente
tentar mudar, apenas veja.” É assim que as coisas começam a se transformar.
Quando dizemos “treine-se imparcialmente”, nosso primeiro passo é
meditar sobre o preconceito, à medida que o vemos surgir. Isso é o mesmo
que dizer: “Sempre medite sobre tudo que provoca ressentimento.” Desse
modo, começamos a ser capazes de treinar de modo abrangente e
meticuloso em todas as situações.
Com frequência, o tonglen é ensinado exatamente como essa máxima
descreve: a maneira como treinamos de modo abrangente e meticuloso com
todas as pessoas. Essa prática pode ser feita em qualquer situação.
Começamos com nós mesmos. Estendemos a prática para as situações em
que a compaixão surge espontaneamente, trocando de lugar com aquele que
queremos ajudar. Então, passamos para uma área um pouco mais difícil.
Essa máxima nos diz que devemos estender a prática a todos, de forma
abrangente, sem excluir ninguém. Nós a estendemos para todos aqueles que
costumamos chamar de “neutros” e que, provavelmente, são nossos
relacionamentos mais frequentes. São aquelas pessoas que nunca chegamos
a conhecer bem e que nem nos interessam – os desabrigados que estão nas
calçadas e pelos quais passamos rapidamente porque nos causam muito
sofrimento, ou todas as outras pessoas que, como nós, também se afastam
com pressa. Não é fácil fazer tonglen por aqueles que nem chamam nossa
atenção, mas essa pode ser a prática mais valiosa: enquanto andamos pelas
ruas da vida, passamos a ver pessoas que nem enxergávamos antes e nos
tornamos curiosos sobre elas.
Quando deparamos com situações que despertam nossa compaixão, não
é necessário passar pelos quatro estágios. Podemos começar pelo terceiro,
aquele em que inspiramos a dor da situação e expiramos algo que possa
ajudar. Já é su ciente inspirar a dor e expirar alívio ou amor, e não é preciso
passar pelos outros passos: ter uma súbita percepção do bodhichitta absoluto
ou trabalhar, de um lado, com o que é escuro, pesado e quente, e, de outro,
com o que é claro, leve e fresco. Quando praticamos o tonglen bem no
momento em que a situação está ocorrendo, podemos omitir essas etapas.
A chave para a ação compassiva é que todos precisam de alguém que
lhes dê apoio, que simplesmente esteja ali, naquele momento.
Uma amiga minha sofreu sérias queimaduras e cou des gurada. Mais
tarde, ela pôde se submeter a uma cirurgia plástica que melhorou sua
aparência, mas, durante muito tempo, era difícil olhar para ela. Esse foi um
período de intenso isolamento. As enfermeiras apareciam no quarto, diziam
algumas palavras animadoras e saíam o mais rápido possível. Os médicos
entravam solenemente, faziam algum comentário e ciente e olhavam para
seu prontuário, mas não para ela. Todos que a encontravam mantinham-se a
distância, porque olhar para ela era desagradável e perturbador demais. Isso
acontecia até mesmo com a família e os amigos. As pessoas cumpriam seu
dever de visitá-la, mas percebia-se um certo desejo de não se relacionar com
o horror que aquela pessoa des gurada causava. A nal, alguns voluntários
começaram a aparecer. Sentavam e seguravam sua mão – apenas cavam ali;
eles não sabiam o que dizer ou de que ela realmente precisava, mas não
tinham medo. Minha amiga, então, percebeu que as pessoas só precisam de
alguém que não sinta medo e não se afaste delas.
É isso que o tonglen nos dá: encorajamento para apenas car ao lado de
outro ser humano e tentar uma comunicação. Às vezes, não há nada a dizer
ou fazer. Nesses momentos, a comunicação mais profunda é simplesmente
estar ali.
A prática vai mais adiante. Começamos com nós mesmos, estendemos
às situações em que a compaixão surge naturalmente, chegamos aos
“neutros” e passamos para nossos inimigos. “Seja grato a cada Juan.” Se
formos sinceros, teremos de reconhecer que provavelmente ninguém nesta
sala se sente preparado para praticar o tonglen por um inimigo. A simples
palavra “inimigo” já é um problema, um rótulo que carrega muita emoção,
raiva e sensibilidade. Basicamente, precisamos começar no ponto em que
estamos, com nossa aversão ou o que quer que estejamos sentindo, mas com
a intenção de ampliar o círculo da compaixão.
Ao trabalhar com minha própria prática para despertar o bodhichitta,
percebi que o círculo da compaixão se amplia em um ritmo próprio e de
forma espontânea. Isso não é algo que forçamos e, decididamente, não é um
processo que podemos fraudar. Entretanto, acho que há ao menos um
pequeno encorajamento para tentar simular de vez em quando, observando
o que acontece quando tentamos praticar o tonglen por um inimigo. Há
muito encorajamento para tentar ngir e ver o que acontece no momento
em que nosso inimigo está diante de nós ou quando, intencionalmente, nós
o trazemos à mente para praticar o tonglen na sala de meditação. Pense nesta
instrução simples: o que é necessário para que eu me comunique com meu
inimigo? O que é preciso para que ele ouça o que estou tentando falar e o
que me tornará capaz de ouvir o que ele tem a dizer? A essência do tonglen é
a comunicação que vem do coração.
Podemos estender o tonglen a todos os seres dotados de sensibilidade, e
isso envolve perceber que essa é uma prática extraordinariamente ampla. É
claro que podemos usar a expressão “todos os seres dotados de
sensibilidade” para nos afastar da dor, para tornar mais abstrata e distante
uma situação que é imediata e próxima. Alguém uma vez me disse com a
maior seriedade: “Acho muito fácil praticar o tonglen por todos os seres
sensíveis, mas tenho alguns problemas quando faço isso por meu marido.”
Praticar o tonglen por todos os seres não deve ser diferente de fazê-lo por
nós mesmos e por nossa situação imediata. Esse é o ponto que reforçamos o
tempo todo. Ao nos conectarmos com o nosso próprio sofrimento, devemos
pensar que incontáveis seres, nesse exato momento, sentem precisamente a
mesma coisa. As histórias são diferentes, mas o sofrimento é o mesmo.
Quando praticamos por nós mesmos e por todos os seres sensíveis,
começamos a compreender que não há tanta diferença assim entre o que
entendemos por “nós” e “outros”.
20
A grande pressão

Quando desejamos nos comunicar e temos um grande desejo de ajudar os


demais – seja no nível da ação social, da família, do trabalho, da
comunidade, ou simplesmente dando apoio às pessoas que precisam de nós
–, mais cedo ou mais tarde, experimentaremos uma grande pressão. Há uma
disparidade entre nossos ideais e a realidade do que está acontecendo.
Sentimos como se estivéssemos sendo esmagados pelos dedos de um
enorme gigante. Ficamos entre o fogo e a frigideira.
Frequentemente há uma discrepância entre o que almejamos e aquilo
com que de fato nos confrontamos. Quando criamos nossos lhos, por
exemplo, temos ótimas teorias, mas, às vezes, não é nada fácil conciliar
nossas boas ideias e o que as crianças são, bem ali no café da manhã, com
comida por todo lado. Durante a meditação, vocês já perceberam como é
difícil sentir de fato as emoções sem sermos arrastados por elas? Como é
custoso cultivar amizade consigo mesmo quando se está arrasado,
apavorado ou preso a uma situação?
Há uma discrepância entre nossa inspiração e a situação, à medida que
ela se apresenta com sua qualidade imediata. Esse atrito – a pressão entre a
realidade e aquilo que idealizamos – é que nos faz crescer e despertar para
sermos 100% decentes, vivos e compassivos.
A grande pressão é um dos momentos mais produtivos do caminho
espiritual e desta jornada para despertar o coração. Vale a pena falar sobre
isso, porque, quando as situações começam a se repetir, sentimos vontade de
fugir. Às vezes, gostaríamos de desistir de tudo. É como se cássemos
“esgotados”: nós nos sentimos extremamente desconfortáveis, mas não
encontramos uma saída. É como se um cachorro ncasse os dentes em
nosso braço e não conseguíssemos nos livrar dele. Tempos de grande
pressão são como períodos de crise. Temos o desejo de despertar e ajudar os
outros, mas, ao mesmo tempo, nada parece sair como gostaríamos. Parece-
nos impossível aceitar a situação, mas não conseguimos nos livrar dela. Estar
submetido a uma grande pressão é humilhante, mas nos dá uma visão mais
ampla. Essa é a parte interessante: a pressão nos suaviza e, ao mesmo tempo,
apresenta-nos uma perspectiva maior.
Com a prática da meditação, aprendemos a não rejeitar, mas também a
não agarrar. É o mesmo paradoxo com que nos defrontamos na vida. Não se
trata tanto de rejeitar ou não: tem mais a ver com o fato de que, às vezes, não
conseguimos fazer nenhuma das duas coisas, ou fazemos as duas ao mesmo
tempo.
Fui convidada para ensinar em um evento junto com o Sawang,
primogênito de Trungpa Rinpoche. Minha posição não estava exatamente
clara. Às vezes, eu era tratada como uma pessoa muito importante que
deveria entrar por uma porta especial e sentar em um lugar de destaque.
Nesses momentos, eu pensava: “Tudo bem. Sou muito importante.” Seguia
essa linha de raciocínio e chegava a altas conclusões sobre o que aconteceria.
Então, recebia outra instrução: “Não, não, não! Você deve se sentar no chão
como todos, e ser apenas mais um.” Tudo bem. A mensagem, então, era a de
que eu deveria ser uma pessoa comum, sem me destacar ou assumir o papel
de professora. Entretanto, assim que começava a me sentir confortável em
minha humildade, alguém me pedia para fazer alguma coisa especial ou algo
que só os mais importantes eram chamados a fazer. Essa foi uma experiência
dolorosa porque eu estava sendo constantemente insultada ou humilhada
por minhas próprias expectativas. Assim que tinha certeza do que deveria
acontecer e me sentia segura, recebia uma mensagem contrária.
Finalmente, disse ao Sawang: “Isso está sendo muito doloroso. Eu
simplesmente não sei quem devo ser.” Ele respondeu: “Bem, você precisa
aprender a ser grande e pequena ao mesmo tempo.” Acho que essa é a
questão. Sempre podemos nos sentir confortáveis, sendo pequenos ou
grandes, certos ou errados.
Estar errado não nos parece bom. Entretanto, criar o hábito de sempre
achar que estamos errados também pode ser muito confortável. Qualquer
terra rme serve – queremos segurança, seja como vencedores ou
perdedores, como muito importantes ou muito comuns. Mas, se desejarmos
nos comunicar e abrir o coração, cedo ou tarde nós nos veremos sob uma
grande pressão, sem poder nem aceitar nem largar. Nesse momento,
estaremos presos na rica situação de ser grande e pequeno ao mesmo tempo.
A vida é gloriosa, mas também adversa. As duas coisas ao mesmo
tempo. Apreciar seu lado glorioso nos inspira, encoraja e anima. Nós nos
sentimos cheios de energia e conectados, nossa perspectiva é mais ampla.
Mas, se só tivermos isso, caremos arrogantes e começaremos a olhar para
os outros com superioridade. Passaremos a nos achar muito importantes,
levando tudo muito a sério e desejando perpetuar as situações. A glória se
reveste de um certo apego e vício.
Por outro lado, somos bastante suavizados pelas adversidades, pelos
aspectos dolorosos da vida. Conhecer a dor é um ingrediente muito
importante para ser capaz de dar apoio aos demais. Quando sofremos,
podemos olhar bem nos olhos dos outros porque sentimos que não temos
nada a perder – apenas estamos ali. A infelicidade nos torna humildes e nos
abranda. Entretanto, se só experimentarmos sofrimento, acabaremos
cando arrasados. Nós nos sentiremos tão deprimidos, desencorajados e
desesperançados que não teremos energia nem para comer uma maçã.
Glória e adversidade são mutuamente necessárias; uma nos inspira, a outra
nos suaviza – elas caminham juntas.
As máximas de hoje são instruções para nos comunicarmos com o
coração. A ênfase está em manter o coração aberto para o que há de
saboroso e rico na grande pressão. Uma das máximas é: “Qualquer das duas
que ocorra, seja paciente.” Glorioso ou adverso, ótimo ou detestável – seja
paciente. Paciência signi ca permitir que os acontecimentos evoluam em
seu ritmo próprio, sem nos precipitarmos sobre eles com nossa resposta
habitual de prazer ou dor. A verdadeira felicidade, subjacente tanto à glória
quanto à adversidade, muitas vezes deixa de ser experimentada porque
reagimos rapidamente à situação com nosso eterno padrão habitual.
Não aprendemos paciência quando estamos seguros. Não é possível
aprendê-la quando as coisas são harmoniosas e caminham bem. Quando
tudo é um mar de rosas, quem precisa de paciência? Enquanto estamos
trancados no quarto, com as cortinas fechadas, tudo nos parece em paz, mas
no momento em que as coisas fogem ao nosso controle explodimos. Não
estaremos cultivando a paciência se nosso padrão for sempre o de tentar
equilibrar e acalmar todas as situações. A paciência implica disposição para
estar vivo, em vez de tentar harmonizar tudo.
Um eremita bem conhecido por sua austeridade praticava em uma
caverna havia vinte anos. Um dia, Patrul Rinpoche, um mestre pouco
convencional, apareceu por lá. O eremita o saudou humildemente e, com
doçura, convidou-o a entrar. Patrul Rinpoche perguntou: “O que você tem
feito por aqui?” “Tenho praticado a paciência perfeita”, respondeu ele.
Chegando bem perto do homem, Patrul Rinpoche disse: “Bem, na verdade,
somos dois salafrários que não ligam a mínima para a paciência. Só fazemos
isso para impressionar, para que os outros nos achem o máximo, não é
mesmo?” O eremita começou a car irritado, mas Patrul Rinpoche não
parou. Continuou a rir, batendo nas costas do outro e dizendo: “Puxa! Nós
sabemos mesmo enganar todo mundo. Sabemos muito bem. Aposto que
você ganha muitos presentes, não é?” Nesse ponto, o eremita se levantou e
gritou: “Por que você veio até aqui? Por que está me atormentando? Saia
daqui e me deixe em paz!” Rinpoche respondeu: “Bem, e agora, onde está
sua paciência perfeita?” Essa é a questão. Podemos criar uma situação ideal
que nos permita ter uma ótima opinião sobre nós mesmos. Mas como
reagimos quando nos vemos sob uma grande pressão?
“Não dependa das circunstâncias externas” é nossa máxima seguinte.
Quando alguma coisa é gloriosa ou mesmo só um pouco agradável,
dizemos: “Uau! Quero isso para mim!” Quando uma situação é infeliz ou só
um pouco irritante, nossa reação é: “Quero isso longe de mim!” A questão é
que esse con ito nunca termina e, se estivermos dispostos a manter nosso
coração aberto, os desa os rapidamente aumentarão, em vez de diminuir. A
harmonia poderá, então, parecer uma esperança remota.
Caso você seja duro consigo mesmo quando se sente dominado pelas
circunstâncias externas, lembre-se da história do Buda Shakyamuni. Pouco
antes de alcançar a iluminação, todas as circunstâncias externas vieram
tentar desviá-lo, sob a forma das lhas de Mara (Mara simboliza os métodos
que utilizamos ao procurar escapatórias para a situação em que estamos).
Pouco antes de sua iluminação, o Buda teve todo tipo de ideia. Foi como
se todos os desa os possíveis resolvessem aparecer. O que aconteceu de
diferente nessa noite é que ele simplesmente permaneceu sentado, abriu o
coração a tudo que pudesse acontecer, não se fechou e cou totalmente
presente. Caso você se sinta mal consigo mesmo, lembre que a completa
experiência de não ser dominado pelas circunstâncias externas é
chamada de iluminação.
A máxima “Não vacile” complementa muito bem a anterior. Podemos
manter o coração aberto, aconteça o que acontecer. Além disso, é possível
encarar nosso retraimento e fechamento como oportunidades para
despertar. Perder o equilíbrio quando as coisas são dolorosas ou agradáveis
representa uma oportunidade para praticar lojong. Temos boas instruções
sobre o que fazer com a dor: nós a inspiramos e a conhecemos mais
profundamente, fazendo amizade com ela. Temos instruções sobre o que
fazer com o prazer, doando-o e abrindo mão do que menos queremos
perder. Desse modo, passamos a compreender a dor dos demais e a desejar
que eles sejam felizes, usando nossa alegria e prazer não como obstáculos,
mas como ferramentas para bene ciar os outros.
A máxima seguinte – “Não espere aplauso” – signi ca “Não espere
agradecimentos”. Isso é muito importante. Abrimos a porta e convidamos
todos os seres sensíveis como nossos hóspedes. Não apenas isso, mas
abrimos também as janelas e até as paredes começam a desmoronar.
Quando fazemos isso, nós nos vemos no mundo sem nenhum tipo de
proteção. Estamos ali para o que der e vier. Podemos achar que, ao fazer isso,
vamos nos sentir bem e receber agradecimentos a torto e a direito. Não, isso
não vai acontecer. Em vez de esperar gratidão, é melhor apenas esperar o
inesperado. Desse modo, seremos curiosos e inquisitivos em relação ao que
vai entrar pela porta. Quando não temos nenhuma expectativa de retorno,
conseguimos abrir o coração aos outros. E esse é o nosso objetivo.
Por outro lado, é bom expressar nosso reconhecimento, é útil mostrar
nossa gratidão aos outros. Entretanto, quando nossa meta é fazer com que as
pessoas gostem de nós, devemos nos lembrar dessa máxima. Podemos
agradecer aos outros, mas devemos abandonar qualquer esperança de
retorno. Simplesmente deixamos a porta aberta, sem expectativas.
Há outra máxima que diz: “Não interprete incorretamente.” Não
imponha uma noção errônea do que harmonia, compaixão, paciência e
generosidade signi cam. Não interprete incorretamente esses conceitos.
Existe compaixão e compaixão idiota; existe paciência e paciência idiota;
existe generosidade e generosidade idiota. Por exemplo, tentar contornar
todas as situações para evitar confrontos, para não “entornar o caldo”, não
signi ca compaixão ou paciência. Isso é controle. Nesse caso, não estamos
tentando caminhar em território desconhecido, não estamos abrindo mão
de nossa armadura ou proteção para car mais em contato com a realidade.
Ao contrário, estamos usando formas idiotas de compaixão ou outros
sentimentos apenas para conseguir segurança. Quando abrimos a porta e
convidamos todos os seres sensíveis como nossos hóspedes, temos que
deixar de lado nossa programação. Pessoas muito diversas vão entrar. No
momento em que pensamos ter encontrado um esquema que dá certo, ele
deixa de funcionar. Ele foi muito útil com Juan, mas, quando o usamos com
Mortimer, este nos olha como se estivéssemos loucos e, quando tentamos
com Joana, ela se sente insultada.
Inventar uma fórmula não funciona. Se convidarmos todos os seres
humanos como hóspedes esperando ter harmonia, cedo ou tarde, veremos
que um deles não está se comportando bem e que não leva a nada apenas
carmos sentados, praticando nosso tonglen animadamente e tentando
harmonizar a situação.
Sentamos e dizemos: “Tudo bem. Agora vou fazer amizade com o fato de
estar magoado e com medo, e isso é terrível.” Entretanto, nesse caso, nosso
objetivo está sendo apenas evitar o con ito e impedir que as coisas quem
piores. Os convidados estão se comportando muito mal: trabalhamos duro o
dia inteiro e eles só sentados por ali, fumando, tomando cerveja, comendo
nossa comida e, além do mais, espancando-nos. Nós nos consideramos
guerreiros ou bodhisattvas porque não fazemos nem dizemos nada, mas
estamos sendo é covardes – estamos com medo de piorar ainda mais a
situação. Finalmente, eles nos chutam para fora de nossa própria casa e
sentamos no meio- o. Alguém passa e pergunta: “Por que você está sentado
aí?”, e respondemos: “Estou praticando paciência e compaixão.” Isso é não
entender nada.
Mesmo após deixar de lado nossa programação, mesmo ao tentar
trabalhar com as situações em vez de lutar contra elas, talvez seja preciso
dizer: “Vocês podem car aqui esta noite, mas amanhã terão de ir embora e,
se não saírem, vou chamar a polícia.” Não sabemos o que é bené co para os
outros, mas permitir que alguém nos maltrate, coma toda a nossa comida e
nos coloque na rua não traz nenhum benefício para ninguém.
Portanto, “Não interprete incorretamente” tem a ver com a grande
pressão. Essa máxima nos diz que não sabemos o que pode ajudar, mas
precisamos falar e agir com clareza e decisão. Clareza e decisão decorrem de
nossa disposição de diminuir o ritmo, de ouvir e ver o que está acontecendo.
Elas resultam de abrir o coração e não fugir. Desse modo, a ação e a fala
passam a estar em sintonia com o que precisa ser feito – tanto por nós
mesmos quanto pelos outros.
Cometemos muitos erros. Se perguntarmos às pessoas que
consideramos sábias e corajosas, veremos que elas já magoaram muita gente
e erraram muito, mas usaram essas ocasiões como oportunidades para
aprender sobre humildade e para abrir o coração. Ficar no quarto, com as
portas e janelas fechadas, não nos torna mais sábios.
“Treine-se nas três di culdades” é minha máxima preferida porque
reconhece que, embora o caminho seja difícil, vale a pena dedicar nosso
tempo a ele. Existem três di culdades. A primeira delas é ver a neurose como
neurose. A segunda é estar disposto a fazer algo diferente e a terceira é desejar
fazer disso uma maneira de viver.

VER A NEUROSE COMO NEUROSE

A primeira di culdade está em ver o que fazemos. Há uma máxima que a


complementa: “Libere-se através do exame e da análise.” Esse é um ponto
interessante: sermos capazes de ver o que fazemos sem odiar a nós mesmos.
Essa também pode ser uma descrição de maitri – bondade amorosa.
Podemos nos olhar honestamente, mas com gentileza, percebendo que essa
é nossa primeira experiência de aceitar a grande pressão. Encarar o que
fazemos sem usar isso contra nós mesmos é o caminho do guerreiro.
Essa máxima, assim como “Não seja invejoso”, “Não seja frívolo” e “Não
chafurde na autocomiseração”, quer dizer que o primeiro passo é ver-se
invejando, ver-se sendo frívolo, ver-se afundando em autocomiseração. Em
vez de usar isso como munição contra nós mesmos, podemos ser mais leves
e ver que essa é a informação de que precisamos para manter o coração
aberto. Se todos neste planeta pudessem olhar para o que fazem com
gentileza, tudo começaria a mudar muito rapidamente, ainda que nem
chegássemos à segunda di culdade.

FAZER ALGO DIFERENTE

A segunda di culdade é fazer algo diferente. Quando você vê o que faz,


consegue agir de outro modo? Quando sente ciúme, consegue estalar os
dedos e livrar-se desse sentimento? Todos nós sabemos que isso não é fácil.
Você está numa festa e vê seu namorado, que foi buscar uma bebida, se
divertindo muito com alguém do outro lado da sala. Isso a deixa cada vez
mais cheia de ciúme e raiva. No seu ombro há um passarinho que diz: “Bem,
aqui está sua grande oportunidade. Use-a para despertar.” Você responde:
“Nem pensar! Ele é um cretino! Eu quero car furiosa porque ele merece
toda a minha raiva.” O passarinho começa a pular: “Ei! Ei! Ei! Você
esqueceu? Já esqueceu?” Você diz: “Não acredito em nada disso! Tenho
razão de sentir raiva. Ele é horrível!” Lá vai você. O passarinho pula para o
outro ombro e puxa sua orelha: “Vamos lá, vamos lá! Vê se consegue dar um
tempo. Conheça a situação. Deixe de lado sua história.” E você responde:
“Não! Nem pensar!” Puxa! Como você é teimosa!
Percebo isso em mim. Mesmo quando temos um método que nos ensina
como dar um tempo a nós mesmos, continuamos sendo tão teimosos! Se
você acha que parar de fumar é difícil, tente desistir de seus padrões
habituais. Isso nos causa o mesmo tipo de desconforto que experimentamos
quando tentamos abandonar qualquer vício.
Assim, em vez de “nos liberarmos através do exame e da análise”, nossa
resposta habitual, quando olhamos para nós mesmos com clareza, é tomar o
remédio errado: alimentamos a inveja, chafurdamos em autocomiseração e
aceleramos nossa frivolidade. Geralmente, fazemos isso através de uma
conversa interior. É como usar foles para atiçar o fogo. Sentamos ali e
fantasiamos que nosso namorado vai sair da festa com a outra garota,
pensamos em como tudo é inútil, em como sempre nos sentimos mal, em
como nunca vamos nos sentir melhor.
Faça algo diferente, como, por exemplo, o tonglen. Qualquer coisa
diferente ajudaria, qualquer coisa que não seja habitual. Levante e tome um
banho frio. Cante a plenos pulmões.

CONTINUAR DESSA MANEIRA

Mesmo quando vemos o que estamos fazendo e agimos de modo diferente,


ainda há uma terceira di culdade: prosseguir, transformar a quebra do
padrão habitual em uma maneira de viver. Portanto, sempre que estivermos
perdidos em algum tipo de padrão habitual, podemos tentar parar e fazer
algo diferente, como forma de cultivar compaixão por nós mesmos e pelos
demais. Mas não se surpreenda nem desista se essa for uma tarefa difícil.
“Duas atividades, uma no início, outra no m” é uma máxima que nos
encoraja a praticar as três di culdades. No começo do dia, quando
acordamos, expressamos nossa aspiração: “Que eu possa praticar as três
di culdades. Que eu possa ver o que faço. Quando isso acontecer, que eu
possa agir de modo diferente e que isso se torne para mim uma maneira de
viver.” No início do dia, usando nossa própria linguagem, podemos nos
encorajar a manter o coração aberto e ser curiosos, independentemente das
di culdades que possam surgir.
Então, no m do dia, antes de dormir, fazemos uma retrospectiva. Em
vez de usar os acontecimentos como munição para car mal – por causa de
nossas atitudes ou porque o dia acabou e não nos lembramos nem uma
única vez da aspiração da manhã –, simplesmente aproveitamos tudo como
oportunidade para nos conhecermos melhor. Vemos todos os truques
engraçados que usamos quando queremos nos enganar, todos os métodos
de fuga e fechamento em que somos especialistas. Quando não queremos
mais praticar as três di culdades porque elas parecem nos levar sempre ao
fracasso, devemos ser generosos em relação a nós mesmos. Re etir sobre as
atividades de um dia pode ser doloroso, mas também pode aumentar nosso
autorrespeito: vemos que muitas coisas aconteceram e que tivemos
diferentes reações. Como disse Carl Jung, já no m da vida: “Estou surpreso,
desapontado e feliz comigo mesmo. Estou angustiado, deprimido e
extasiado. Sou todas essas coisas ao mesmo tempo e não posso chegar a uma
soma.”
Portanto, essa é a grande pressão. Ouvimos os ensinamentos e temos as
práticas como apoio, mas eles precisam se tornar reais para nós – é preciso
digeri-los. Os ensinamentos e as práticas são como suco concentrado, e a
vida, como água. É preciso misturá-los para ter uma boa laranjada que possa
ser trazida em uma grande jarra para que todos bebam.
21
Práticas em que apostamos alto

“Nós encontramos o inimigo, e o inimigo somos nós.”* Esse slogan aparece


muito no movimento ambientalista atual. Não são os outros que estão
poluindo os rios – somos nós. Confusão, atordoamento e violência não são
problemas de outra pessoa, e sim algo que podemos reconhecer em nós
mesmos. Entretanto, para fazer isso, precisamos compreender que nós
encontramos o amigo, e o amigo sou eu. Quanto mais nos tornarmos nossos
próprios amigos, mais perceberemos que os meios que usamos para nos
fechar e isolar estão enraizados na errônea crença de que, para ser feliz, é
preciso culpar alguém.

* Frase famosa de Pogo, personagem-animal de histórias em quadrinhos, criado pelo cartunista


norte-americano Walt Kelly.

Não é fácil de nir quem somos nós e quem são eles. Bernard Glassman
Sensei, que realiza muitos trabalhos com desabrigados de Nova York, diz
que trabalha com essas pessoas não por ser um ótimo sujeito, mas porque
entrar em contato com camadas da sociedade que ele rejeita é a única
maneira de fazer amizade com aspectos que também rejeita em si mesmo.
Tudo está inter-relacionado.
Trabalhamos com nós mesmos para poder ajudar os outros, mas também
ajudamos os outros para poder trabalhar com nós mesmos. Esse é um ponto
muito importante. Podemos dizer que trabalhar com os demais é uma
prática de maitri em que apostamos alto porque, por alguma razão, quando
começamos a trabalhar com os outros, todos acabam se parecendo com
Juan. Quando somos sinceros em nossa disposição de dar apoio a todos
incondicionalmente, sem deixar nada ou ninguém fora do coração, vemos se
desfazer a linda autoimagem que nos diz quanto somos bons ou
compassivos. Somos testados continuamente e encontramos sempre um
adversário à nossa altura. Quanto mais queremos abrir o coração, mais
surgem desa os que nos fazem desejar fechá-lo.
Não é possível realizar esse trabalho dentro de uma zona de segurança. É
preciso sair e viver a vida como todo mundo, mas acrescentar um
ingrediente: a disposição para não excluir nada do coração. A maitri –
bondade amorosa – tem que ser muito profunda porque, quando a
praticamos, enxergamos tudo sobre nós mesmos. Sempre que estivermos
sob pressão, isso será como um grande espelho re etindo nosso próprio
rosto e, como a madrasta malvada em Branca de Neve e os Sete Anões, vamos
preferir que ele nos diga o que queremos ouvir – mesmo quando isso
signi ca ouvir que não fomos bondosos ou que somos egoístas. De algum
modo, podemos usar até mesmo o reconhecimento de nossas limitações
para manter a sensação de que estamos bem.
Não queremos que o espelho nos dê nenhum feedback inesperado. Não
desejamos estar desarmados e expostos. Temos alguns pontos obscuros e
empregamos muita energia para que eles continuem assim. Um dia, a
madrasta cruel disse: “Espelho, espelho meu! Quem é a mais bela?” Em vez
de: “Você, querida!”, o espelho respondeu: “Branca de Neve.” Assim como
nós, ela não queria ouvir isso. No entanto, acho que todos sabemos que não
faz sentido culpar o espelho quando ele mostra nosso próprio rosto e, com
certeza, quebrá-lo não vai resolver nada.
Conheci uma mulher muito poderosa que sempre dava um jeito para
que tudo saísse à sua maneira. A síntese de sua abordagem diante da vida
era uma balança que tinha no banheiro – estava sempre alterada para
menos, de forma que, ao se pesar, ela via exatamente o peso que desejava ter.
Olhamos no espelho, vemos que temos uma enorme espinha na ponta do
nariz e decidimos encará-la realmente. Isso pode nos fazer estremecer e nos
deixar embaraçados, mas, mesmo assim, continuamos tocando a vida. Desse
modo, quando uma criança de 5 anos chega e diz: “Ei! Você tem uma
enorme espinha na ponta do nariz!”, nós apenas respondemos: “Eu sei.”
Entretanto, se tentarmos cobrir a espinha com cosméticos, vamos nos sentir
chocados e ofendidos quando percebermos que, de qualquer modo, todos
podem vê-la.
Essa tendência a voltar-se para si mesmo e tentar se proteger é muito
forte e permeia tudo. Mudamos esse hábito usando o método simples de
desenvolver curiosidade e espírito inquiridor em relação a todas as coisas.
Essa é mais uma maneira de falar em ajudar os outros, mas é claro que esse
processo também nos bene cia. Todo o caminho parece se relacionar com
desenvolver curiosidade, olhar para fora e ter interesse por todos os detalhes
da vida e do ambiente que nos cerca.
Quando nos vemos em uma situação que toca em nossos pontos
sensíveis, podemos reprimir ou extravasar, ou podemos decidir praticar. Se
formos capazes de começar a troca, inspirando com a intenção de manter
nosso coração aberto ao constrangimento, medo ou raiva que estamos
sentindo, perceberemos, para nossa surpresa, que também estamos abertos
para o que o outro sente. Um coração aberto é um coração aberto. Quando
conseguimos abri-lo, o mesmo acontece com nossos olhos e nossa mente, e
somos capazes de ver o que acontece no rosto e no coração dos outros.
Estamos andando na rua e lá longe – tão longe que não podemos fazer nada
a respeito – vemos um homem batendo em seu cachorro. Nós nos sentimos
impotentes, mas, nesse momento, podemos iniciar a troca. Começamos a
fazê-lo pelo animal, mas passamos a praticar também pelo homem. Então,
acabamos praticando por nosso próprio sofrimento, por todos os animais e
seres humanos que maltratam e são maltratados, por todas as pessoas que,
como nós, assistem e não sabem o que fazer. Essa troca já é o bastante para
transformar o mundo em um lugar mais amplo e amoroso.
Há um ensinamento tradicional que nos diz para ver todos os seres
sensíveis como nossa mãe. Todos foram nossa mãe: já existiu afeto e
intimidade entre nós. Esse ensinamento sempre me pareceu antiquado.
Então, li um livro escrito por Joanna Macy em que ela relata ter estado na
Índia e ouvido um ensinamento tibetano sobre esse assunto. Ela estava tão
entediada que saiu da sala para tomar um pouco de ar. Enquanto
caminhava, veio em sua direção uma velha senhora, encurvada sob a carga
de lenha que levava nas costas. Subitamente, ela pensou: “Essa mulher já foi
minha mãe.” Embora já tivesse cruzado na Índia com muitas pessoas tão
encurvadas sob o peso de pesadas cargas que nem era possível ver seu rosto,
ela desejou olhar nos olhos dessa mulher. Queria saber quem era ela, pois só
conseguia pensar que ela havia sido sua mãe.
Aprendi alguma coisa com essa história: esse ensinamento tem a ver
com interessar-se pelos outros, ser curioso e bondoso. Todas as pessoas
anônimas que encontramos na rua já foram nossos amantes, irmãos, irmãs,
pais, mães, lhos, amigos. Se isso não zer nenhum sentido para você, tente
apenas imaginar quem são e comece a olhá-los com algum interesse e
curiosidade. Todos são exatamente como nós. Temos nossa vida, achamos
que somos o centro do Universo, e nenhum de nós presta muita atenção em
ninguém – a menos que as situações se tornem realmente passionais ou
agressivas.
A máxima de hoje é: “Assuma as três causas principais.” As três causas
principais nos ajudam a manter o coração aberto, a lembrar de trocar de
lugar com o outro e a nos comunicar. Essas três causas são: o mestre, os
ensinamentos e o precioso nascimento humano.

O MESTRE

Em primeiro lugar, vamos falar no mestre. Nos ensinamentos bodhichitta, o


mestre é chamado de amigo espiritual ou kalyanamitra. O mestre é como
um guerreiro experiente ou um aprendiz de guerreiro que está um pouco
mais adiantado ao longo do caminho. É alguém que nos inspira a também
percorrer a trilha do guerreiro. Olhar para ele nos traz à mente nossa
própria suavidade, clareza mental e capacidade de continuamente avançar e
nos abrir. Algo nele nos fala ao coração: desejamos ter uma relação de
amizade com essa pessoa, como mestre. Aqui, a con ança é um ingrediente
essencial: quando entramos em um relacionamento sério com um mestre,
assumimos o compromisso de car com ele, e ele, por sua vez, compromete-
se a não desistir de nós. Desse modo, estamos presos um ao outro.
Caso alguém pretenda ter uma visão romântica desse relacionamento,
gostaria de repetir algo que Trungpa Rinpoche disse: “O papel do amigo
espiritual é insultá-lo.” Isso é verdade. Não que o mestre vá xingar você por
telefone ou enviar cartas chamando-o de idiota. O amigo espiritual é nosso
principal Juan. Ele faz com que venham à tona todos os aspectos que não
queremos ver. A única diferença entre ele e outra pessoa qualquer é que
assumimos o compromisso de ser éis, aconteça o que acontecer: na alegria
e na tristeza, na riqueza e na pobreza, na doença e na morte. Nos dias de
hoje, não somos muito bons em honrar compromissos, isso não é uma
atitude muito valorizada.
Quando iniciamos um relacionamento com o amigo espiritual, estamos
pedindo exatamente isso. Em vez da situação acolhedora e encorajadora que
havíamos imaginado a princípio – o mestre sempre bondoso que substituirá
a mãe ou o pai que nunca nos amou, o amigo que a nal nos amará
incondicionalmente –, descobrimos que, neste caso, começamos a ver as
espinhas no nariz e o espelho nos diz que não somos os mais belos. Nesse
relacionamento, tudo que estava escondido passa a ser visto claramente.
Com Trungpa Rinpoche, nós nos sentíamos muito expostos. Muitas
vezes, ele quase não falava. Tínhamos a impressão de ter um enorme
problema. Quando nalmente conseguíamos conversar, isso já não parecia
tão importante. De qualquer modo, começávamos a liberar as emoções e ele
apenas nos ouvia. Às vezes, até olhava pela janela ou bocejava. Entretanto,
mesmo quando ele cava sentado, só olhando e escutando, nós nos
sentíamos expostos diante de nós mesmos. Mesmo quando estávamos em
um grupo e nem parecíamos ser notados, sentíamos todo o nosso
constrangimento.
Com um mestre, percebemos todos os estratagemas que usamos para
trapacear e parecer bons. Vemos claramente o que fazemos o tempo todo.
Entretanto, assumimos um compromisso – não vamos fugir dele, não vamos
cancelá-lo. Desta vez, vamos honrá-lo. Não fugir assemelha-se às três
di culdades. Quando estamos com nosso amigo espiritual ou mesmo só
pensando nele, começamos a ver a neurose como neurose. Isso nos encoraja
a praticar a segunda di culdade: aplicar os ensinamentos. Finalmente,
desejamos transformar isso em uma maneira de viver. O amigo espiritual
não con rma nossa existência – ele funciona como um espelho que nos
mostra onde estamos presos. Esse relacionamento nos encoraja a despertar.
O mais importante é que esse relacionamento é um treinamento básico
para enfrentar todas as situações da vida. Tudo nos treina para sermos
gratos a cada pessoa, e não apenas àquele que chamamos de amigo
espiritual. Assim, quando algo toca em nossos pontos fracos, começamos a
perceber que o que está nos acontecendo é nosso mestre. Quando somos
desmascarados, vemos essa situação como um mestre. Percebemos que
sabemos o que fazer, que podemos entrar em contato direto com a dor e
usar essa capacidade para nos relacionarmos com o sofrimento de todos os
seres. Quando estamos inspirados e cheios de alegria, somos capazes de
compartilhar isso com os outros e desenvolvemos um sentimento de
a nidade.

OS ENSINAMENTOS E AS PRÁTICAS

A segunda causa principal são os ensinamentos e as práticas. Recebemos


muito apoio quando somos capazes de ver o que fazemos, sem voltar isso
contra nós mesmos ou fugir da situação. Somos encorajados pelos
ensinamentos e práticas a abrir ainda mais o coração, a sentir o que está
acontecendo, a não nos fecharmos, estendendo nossa abertura aos outros
seres dotados de sensibilidade. Quando o espelho diz que não somos os
mais belos e nos sentimos embaraçados e desajeitados, pensamos nas
diversas pessoas que, neste exato momento, sentem-se da mesma maneira.
Inspiramos essa sensação por todos os poros. Quando estamos felizes,
pensamos nos outros e desejamos que todos os seres tenham a mesma
experiência.

O PRECIOSO NASCIMENTO HUMANO

Portanto, a causa principal é o mestre, que serve como exemplo e representa


a própria vida. Ele é também um lembrete oportuno para que paremos de
nos apegar a nós mesmos. A segunda causa são os ensinamentos e as
práticas, que nos fornecem as ferramentas para abrir o coração. Nosso
precioso nascimento humano é a terceira. Todos nós desfrutamos desse
nascimento valioso. Temos muita sorte em não passar fome, dispomos de
alimentos e de abrigo, somos afortunados porque ouvimos os ensinamentos
e recebemos métodos para despertar, temos um bom nível de inteligência e
podemos nos dar ao luxo de explorar e questionar as causas do sofrimento.
Outra máxima nos diz: “Desta vez, pratique os pontos principais.” Isso
quer dizer que, para todos nós, este é um momento crucial. Possuímos tudo
de que precisamos para abrir o coração e trabalhar com os outros de forma
autêntica. Temos um precioso nascimento humano e não estamos morrendo
de fome na Somália. Não vivemos em um país onde nos ensinam a matar
qualquer um que seja de outra facção. Há uma tremenda quantidade de
aspectos a nosso favor e, por isso, este é o momento crucial para praticar os
pontos principais.
Na máxima “Cuide para que as três nunca desvaneçam”, as “três” são a
gratidão ao mestre, a gratidão aos ensinamentos e às práticas e a promessa
de manter os votos fundamentais que tomamos. A gratidão ao mestre
começa com o compromisso de nunca abandonar essa pessoa, que também
se compromete a não desistir de nós. Quando penso em meu próprio
mestre, sinto sempre uma enorme gratidão, em quase todos os momentos da
minha vida. Sinto-me agradecida porque existe alguém corajoso, arrebatado,
bem-humorado e compassivo o bastante para en ar na minha cabeça dura
que não existe nenhum esconderijo possível. Sou grata aos ensinamentos e
às práticas porque são um bom remédio e nos ajudam a descobrir pontos
vulneráveis escondidos há muito tempo.
Finalmente, cuidamos para que os votos de refúgio e bodhisattva nunca
desvaneçam. O voto de refúgio é o compromisso de não mais buscar ilhas de
segurança, e sim de aprender a saltar, voar, sair do ninho e entrar em
território desconhecido, livres de nossas visões e opiniões estreitas e
egocêntricas. O voto de bodhisattva é uma prática em que apostamos alto
porque envolve desistir tanto da privacidade quanto da busca de conforto,
como uma forma de despertar ainda mais nosso coração, para nós mesmos e
para todos os seres sensíveis.
De modo geral, devemos cuidar para que a gratidão e a apreciação por
tudo que nos acontece nunca desvaneçam. Quer consideremos o que nos
acontece como sorte ou azar, a apreciação pela vida pode nos despertar e
nos dar a coragem de que necessitamos para estarmos bem aqui,
independentemente do que entra pela nossa porta.
22
Pratique com determinação

Agora é tempo de continuar nossa jornada e “colocar a teoria em prática”.


Uma das últimas máximas é: “Observe essas duas, mesmo com risco de
vida.” Mais uma vez, estamos falando dos votos de refúgio e bodhisattva. Há
um sentimento de urgência – “mesmo com risco de vida” – que nos diz para
não ter medo de deixar o ninho. Não tenha medo de perder terreno, de que
tudo desmorone ou de não conseguir harmonizar todas as situações.
Observar a essência do voto de refúgio, mesmo com risco de vida,
signi ca que “não há saída, não há problema”. Observar o voto de
bodhisattva é colocar-se no lugar do outro e desenvolver compaixão por si
mesmo e pelos demais. Assim, quando algo é doloroso, mesmo correndo
risco de vida, inspiramos o sofrimento e pensamos em todos os outros seres
que sentem dor. Quando temos uma experiência prazerosa, abrimos mão
dela e desejamos que todos sintam a mesma alegria. Essa é a essência dessa
máxima. Essa é a ideia revolucionária.
Aqui vai uma última história sobre se colocar no lugar do outro.
Encontrei um jovem que havia passado a maior parte da vida em uma
jornada espiritual. Ele estava desperto, mas presunçoso. Sofria do que
chamamos de orgulho espiritual. Reclamava da namorada que estava
passando por maus momentos tentando parar de fumar: a ansiedade havia
desencadeado nela um antigo transtorno alimentar. Esse jovem contou que
sempre a aconselhava a ser mais forte, corajosa e disciplinada. Ela respondia:
“Estou tentando, estou realmente tentando. Estou fazendo o melhor que
posso.” Ele estava aborrecido porque achava que ela não se empenhava o
bastante: “Sei que não deveria car tão aborrecido e que deveria ser mais
compassivo, mas não consigo evitar, não consigo me controlar. Isso me irrita
profundamente. Quero ser mais compreensivo, mas eu a vejo tão presa!”
Então ele ouviu o que tinha dito: “Estou tentando, estou realmente tentando.
Estou fazendo o melhor que posso.” Quando se ouviu usando as mesmas
palavras dela, ele entendeu. Compreendeu o que ela estava enfrentando e
isso o tornou mais humilde.
Acho que todos nós somos como águias que esqueceram que sabem
voar. Os ensinamentos nos lembram quem somos e o que podemos fazer.
Eles nos ajudam a perceber que estamos no ninho, com muita comida velha,
programações antigas, excrementos e ar viciado. Desde muito jovens,
sonhamos ver as montanhas distantes, experimentar o amplo céu e o vasto
oceano, mas por alguma razão camos presos a esse ninho, simplesmente
porque esquecemos que sabemos voar. Somos como águias, mas usamos
roupa de baixo, calças, saias, meias, sapatos, chapéu, casacos, botas, luvas e
óculos escuros. Lembramos que podemos experimentar a amplidão do céu,
mas para isso precisamos largar algumas dessas coisas. Assim, tiramos o
casaco e o chapéu – e sentimos frio. Sabemos, porém, que isso é necessário.
Tiritamos na borda do ninho e voamos. Desse modo, descobrimos por nós
mesmos que é preciso abrir mão de tudo. Não conseguiremos voar enquanto
estivermos usando meias, sapatos, casacos, calças e roupa de baixo. É preciso
abrir mão de tudo.
Marpa o Tradutor era mestre de Milarepa. Percorreu três vezes todo o
caminho do Tibete até a Índia para receber ensinamentos. Certa vez, ele
voltava da Índia com um companheiro que encontrava de tempos em
tempos. Os dois gostavam de “competir” para ver quem havia aprendido
mais. Seu companheiro cou com inveja porque teve a impressão de que
Marpa sabia mais. Quando estavam em um barco, no meio de um rio
turbulento, o amigo jogou na água todos os textos que Marpa havia reunido.
Eis aqui uma oportunidade para o tonglen! Marpa não se sentiu muito
amistoso, mas, ao chegar ao Tibete, percebeu que havia compreendido
alguma coisa sobre todos os ensinamentos contidos naqueles livros. Não
precisava realmente dos textos. Já havia entendido algo, já havia digerido
alguma coisa. Ele e os ensinamentos haviam se tornado um só.
Cada um de nós já entendeu algo e isso é o que levaremos de nosso
estudo e prática. A partir de agora, esses ensinamentos passarão a fazer parte
de nós, parte da forma como vemos, ouvimos e cheiramos tudo.
Tentamos arduamente nos apoderar dos ensinamentos e “captá-los”. O
que acontece, porém, é que a verdade penetra em nossa mente e nosso
coração como a chuva em um solo compacto. Essa chuva é muito branda e
nós nos suavizamos lentamente, em nosso próprio ritmo. Entretanto,
quando isso acontece, alguma coisa em nós muda fundamentalmente. A
terra dura foi amaciada. Isso não parece ser o resultado de agarrar ou
capturar, mas de deixar acontecer, relaxar a mente, ter a aspiração e o desejo
de chegar a uma comunicação, com nós mesmos e com os demais. Cada um
encontra sua própria maneira.
Nossa última máxima é: “Pratique com determinação.” Poderíamos
dizer: “Viva com determinação.” Deixe que tudo pare a sua mente. Permita
que tudo abra seu coração. Poderíamos dizer ainda: “Morra com
determinação, a cada momento.” A cada momento deixe-se morrer
irrestritamente.
Tenho uma amiga que está muito doente, em estágio terminal de câncer.
Recentemente, Dzongzar Khyentse Rinpoche ligou para ela e as primeiras
palavras que ele disse foram: “Não pense, por um momento sequer, que você
não vai morrer.” Esse é um bom conselho para todos nós; ele nos ajudará a
viver e praticar com determinação.
Mesmo parecendo muito concretos, esses ensinamentos são inatingíveis:
quando há sofrimento, inspire a dor; quando há prazer, expire a alegria. Não
conseguimos “captá-los” de forma de nitiva e por completo. Podemos ler os
comentários de Trungpa Rinpoche sobre o treinamento da mente ou os
textos escritos por Jamgön Kongtrül, tentando aplicá-los à nossa vida.
Podemos permitir que eles nos tornem obcecados pelo desejo de entender o
que realmente signi ca trocar de lugar com o outro. O que isso
verdadeiramente quer dizer? O que signi ca ser lho da ilusão? O que é
atribuir todas as culpas a um só ou ser grato a todos? A nal, o que é
bodhichitta? Tentar passar esses ensinamentos a vocês é, para mim, uma
oportunidade para digeri-los um pouco mais. A partir de agora, vocês se
perceberão repetindo, vivendo e digerindo os ensinamentos. Que vocês
possam praticá-los e levá-los muito a sério. Que vocês possam assimilá-los e
estendê-los aos demais.
Apêndice

TEXTO-RAIZ DOS SETE PONTOS DO TREINAMENTO DA MENTE


Chekawa Yeshe Dorje

PRIMEIRO PONTO
As preliminares: base da prática do dharma

Eu me prostro diante do grande compassivo.


1. Primeiro, pratique as preliminares, 23

SEGUNDO PONTO
Prática principal: treinamento do bodhichitta

Máximas do bodhichitta absoluto


2. Considere todos os dharmas como sonhos, 25, 35
3. Examine a natureza da consciência inata, 29, 31
4. Permita que mesmo o antídoto se libere, 31, 33
5. Repouse na natureza do alaya, a essência, 34, 55, 102
6. Na pós-meditação, seja lho da ilusão, 35

Máximas do bodhichitta relativo


7. Dar e tomar devem ser praticados alternadamente.
Conduza-os através da respiração, 49
8. Três objetos, três venenos e três sementes de virtude, 43, 45
9. Todas as atividades devem ser realizadas com uma intenção, 91, 147
10. Inicie a sequência de dar e tomar com você mesmo, 49

TERCEIRO PONTO
Transformação das circunstâncias adversas no caminho da iluminação
11. Quando o mundo está cheio de maldade, transforme todas as
adversidades no caminho de bodhi, 62
12. Atribua todas as culpas a um só, 47, 69, 70, 71, 73, 85, 133
13. Seja grato a todos, 21, 76, 77, 80, 85
14. Ver a confusão como os quatro kayas é a proteção insuperável da
shunyata, 85, 89
15. As quatro práticas são o melhor dos métodos, 92, 98, 101
16. Incorpore à meditação tudo o que você encontrar inesperadamente,
102

QUARTO PONTO
Utilização da prática em todos os aspectos da vida
17. Pratique as cinco forças, as instruções essenciais para o coração, 107
18. A instrução mahayana para ejetar a consciência na hora da morte é
utilizar as cinco forças: como você se conduz é importante, 107

QUINTO PONTO
Avaliação do treinamento da mente
19. Todo o dharma converge para um único ponto, 65, 115, 116
20. Dentre as duas testemunhas, que com a principal, 116, 122
21. Mantenha sempre uma mente alegre, 120a, 121, 122, 124
22. Se puder praticar, mesmo quando distraído, você estará bem treinado,
120, 124

SEXTO PONTO
Disciplinas para o treinamento da mente
23. Atenha-se sempre aos três princípios básicos, 135
24. Mude sua atitude, mas permaneça natural, 134
25. Não fale sobre membros defeituosos, 141
26. Não pense nas falhas dos outros, 141
27. Trabalhe primeiro com as maiores imperfeições, 138
28. Abandone qualquer expectativa de resultado, 88, 125, 129
29. Renuncie aos alimentos venenosos, 138
30. Não seja tão previsível, 142
31. Não fale mal dos outros, 142
32. Não se ponha de emboscada, 143
33. Não leve as coisas a um ponto penoso, 143
34. Não trans ra a carga do boi para a vaca, 144
35. Não aja ardilosamente, 144
36. Não transforme deuses em demônios, 117, 138
37. Não procure fazer da dor alheia as pernas de sua própria felicidade,
145

SÉTIMO PONTO
Diretrizes para o treinamento da mente
38. Todas as atividades devem ser realizadas com uma intenção, 91, 147
39. Corrija todos os erros com uma intenção, 149
40. Duas atividades, uma no início, outra no m, 165
41. Qualquer das duas que ocorra, seja paciente, 158
42 Observe essas duas, mesmo com risco de vida, 176
43. Treine-se nas três di culdades, 163
44. Assuma as três causas principais, 171
45. Cuide para que as três nunca desvaneçam, 174
46. Mantenha as três inseparáveis, 148
47. Treine-se imparcialmente em todas as áreas.
É crucial que isso seja feito sempre, de modo abrangente e
sem reservas, 151
48. Sempre medite sobre tudo que provoca ressentimento, 21, 147, 151
49. Não dependa das circunstâncias externas, 159
50. Desta vez, pratique os pontos principais, 174
51. Não interprete incorretamente, 161, 162
52. Não vacile, 160
53. Pratique com determinação, 176, 178
54. Libere-se através do exame e da análise, 163
55. Não chafurde na autocomiseração, 84, 163
56. Não seja invejoso, 21, 163
57. Não seja frívolo, 163
58. Não espere aplauso, 160

Quando as cinco eras de escuridão ocorrerem,


Esta é a maneira de transformá-las no caminho de bodhi.
Esta é a essência do amrita das instruções orais,
Que nos foram dadas pela tradição de sabedoria de Suvarnadvipa.

Tendo despertado o carma do treinamento anterior


E instigado por intensa dedicação,
Eu ignorei as adversidades e calúnias
E recebi as instruções orais sobre como domesticar o apego ao ego.
Agora, mesmo na morte, não terei arrependimentos.
Agradecimentos

Gostaria de agradecer a Pat Cousineau e Lynne Vande Bunte, que zeram a


maior parte do trabalho de digitação. A Judith Anderson, Marilyn Hayes,
Trime Lhamo, Lynne Vande Bunte e Helen Tashima, encarregadas da
transcrição. Quero agradecer também a Pam Gaines, que não só digitou mas
também encontrou quem a ajudasse. E, especialmente, a Migme Chödrön,
que preparou a primeira edição do manuscrito original e foi um apoio
constante durante todas as etapas da elaboração deste livro. Por m, gostaria
de agradecer a Emily Hilburn Sell, da Shambhala Publications. Sinto-me
extremamente afortunada por ela, mais uma vez, ter concordado em dar às
minhas palestras seu formato nal.
Bibliografia

CHÖDRÖN, PEMA. e Wisdom of No Escape and the Path of Loving-


Kindness. Boston e Londres: Shambhala Publications, 1991.
KONGTRÜL, JAMGÖM. e Great Path of Awakening. Traduzido por Ken
McLeod. Boston e Londres: Shambhala Publications, 1987.
TRUNGPA, CHÖGYAM. Além do materialismo espiritual. São Paulo:
Cultrix, 1986.
____________. e Heart of the Buddha. Editado por Judith L. Lief. Boston
e Londres: Shambhala Publications, 1991.
____________. O mito da liberdade e o caminho da meditação. São Paulo:
Cultrix, 1987.
____________. A trilha sagrada do guerreiro. São Paulo: Cultrix, 1992.
____________. Training the Mind and Cultivating Loving-Kindness. Editado
por Judith L. Lief. Boston e Londres: Shambhala Publications, 1993.
Fontes adicionais

Para informações sobre instrução em meditação ou para encontrar um


centro de prática próximo a você, por favor entre em contato com:

Shambhala Brasil
Rua José Antonio Coelho, 460
Vila Mariana, São Paulo
CEP: 04011-061
Site: shambhala-brasil.org
E-mail: info@shambhala-brasil.org

Heart Advice: frases semanais de Pema Chödrön


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e receber palavras de sabedoria de Pema Chödrön uma vez por semana no
seu e-mail.
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Palavras essenciais

“Esta coletânea reúne alguns dos ensinamentos mais memoráveis e


poderosos de Pema Chödrön, que tem o impressionante dom de expressar
os conceitos budistas em termos simples, que ressoam na vida e na
experiência de todos nós.
Sua escrita vai além de fronteiras religiosas, alcançando leitores de
muitas fés e origens.
Sua imensa popularidade parece ligada ao fato de ela não se apresentar
como um ser iluminado, mas como uma pessoa comum que fala
abertamente sobre suas lutas e limitações.
Como qualquer um de nós, ela também sente raiva, ciúme, tristeza – e
justamente por isso é capaz de nos oferecer orientações tão signi cativas.”

Eden Steinberg
Sobre a autora

PEMA CHÖDRÖN é uma monja budista americana. Uma das mais


brilhantes discípulas do famoso mestre de meditação Chögyam Trungpa, é
professora residente no mosteiro de Gampo Abbey, no Canadá.

Conhecida no mundo inteiro por sua interpretação pé no chão do budismo


tibetano, Pema se destaca no ensinamento das práticas de meditação e de
cura para estudantes ocidentais.

É autora de Palavras essenciais, da Editora Sextante, Quando tudo se desfaz,


A beleza da vida e Sem tempo a perder, entre outras obras.
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