Revista Memorial - Investigação, Arte e Cultura Edição #4

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MEMORIAL Investigação, Arte e Cultura | Ano II - Nº 4, Dez.

2023
Revista Semestral do MAAN

O uso exclusivo da língua portuguesa, como língua


oficial, veicular e utilizável actualmente na nossa
literatura, não resolve os nossos problemas. E tanto
no ensino primário, como provavelmente no médio,
será preciso utilizar as nossas línguas.
Agostinho Neto|24 de Novembro de 1977, na U.E.A.
Velho Negro

Vendido

e transportado nas galeras

vergastado pelos homens

linchado nas grandes cidades

esbulhado até ao último tostão

humilhado até ao pó

sempre sempre vencido

É forçado a obedecer

a Deus e aos homens

perdeu-se

Perdeu a pátria

e a noção de ser

Reduzido a farrapo

macaquearam seus gestos e a sua alma

diferente

Velho farrapo

negro

perdido no tempo

e dividido no espaço!

Ao passar de tanga

com o espírito bem escondido

no silêncio das frases côncavas

murmuram eles:

Pobre negro!

E os poetas dizem que são seus irmãos.


In Sagrada Esperança
Sumário
EDITORIAL ..................................................................05 PUBLICAÇÕES ............................................................74
O pensamento cultural de Agostinho Neto ..................06 Obra completa................................................................76
MAAN - Homenagem do Povo Angolano Léxico da Luta de Libertação Nacional ........................76
ao Fundador da Nação ..................................................14 Maio, Mês de Maria .......................................................77
As Minhas Elucubrações ................................................80
TESTEMUNHOS ..........................................................20 50 Entrevistas: Ditos e reditos em papel e tinta ...........84
O guardião do Mausoléu fala à Memorial....................22 O Estatuto do Indigenato ..............................................86
Pedro de Castro Van-Dúnem “LOY”,
ESTUDOS ......................................................................26
Um Percurso Singular ...................................................87
A memória de Agostinho Neto em colecção
de especial centenário ....................................................28 EXPOSIÇÕES ...............................................................88
Por: Joaquim Martinho Diário de um exílio sem regresso,
de Deolinda Rodrigues ..................................................90
Línguas vivas, línguas mortas e línguas
Exposição sobre as línguas nacionais ............................91
bloqueadas – Reflexões sobre a questão
linguística em Angola e mais além ................................32 LEITURA.......................................................................92
Por: Maria da Conceição Neto OFERTA DE LIVROS A BIBLIOTECAS ...................94
A HORA DO CONTO ..................................................95
Onomástica, toponímia e identidade MÚSICA .........................................................................96
nacional em Angola........................................................38 CONCERTOS INTIMISTAS .......................................96
Por: Virgílio Coelho INICIAÇÃO ÀS ARTES, FORMAÇÃO ARTÍSTICA
A legitimação do uso das línguas nacionais E PROMOÇÃO DO CONHECIMENTO ...................97
Intercâmbio Cultural entre o Memorial Dr. António
Orientações e fontes jurídicas........................................53
Agostinho Neto e a Embaixada da Itália em Angola
Por: Marcelo Sebastião
resultou no programa Italo Calvino/2023 ....................99
Multilinguismo e ensino bilingue em Angola: Centro de formação musical e artes cénicas de Caxito ...101
Problemas e soluções .....................................................56
LIVRO DE HONRA ...................................................102
Por: Maria Helena Miguel
Suas Majestades Rei Felipe VI e rainha Letizia Ortiz,
ACÇÃO CULTURAL de Espanha, assinaram o Livro de Honra do MAAN ..104
E EVENTOS CIENTÍFICOS ......................................68 DOCUMENTOS..........................................................105
Colóquio: Línguas de Angola, Identidade e Soberania ... 70 Processo de Querela ....................................................106
Ciclo de Conferências ....................................................73 Última Página...............................................................121
Conferência “A Raiz do Pan-africanismo” ....................73 Poema de João Melo

FICHA TÉCNICA
Propriedade: Secretária de Redacção: Participaram nesta edição:
Memorial António Agostinho Neto Conceição Ibiana Maria Helena Miguel
Director Geral: Secretariado Executivo: Joaquim Martinho
António Fonseca Elizabete Pereira, Brenda de Almeida, Maria da Conceição Neto
Conceição Ibiana e Neusa Muauanda Virgílio Coelho
Director Geral Adjunto:
Francisco Makiiesse Comunicação e Marketing: Edição:
Wilson Peliganga e Rigoberto Fialho Memorial – nº 4 – Ano II – Dezembro 2023
Editor-Chefe:
Administração e Publicidade: Design, Impressão e Acabamento:
António Fonseca
Esperança Camilo e Sérgio Mingas EAL – Edições de Angola Lda.
Chefe de Redacção: Coordenação Gráfica:
Marcelo Sebastião www.edicoesangola.com
Sérgio Mingas Tiragem: 500 exemplares
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António Fonseca, Francisco Makiiesse, Carolina Mabele, Djamila Torres e
Rigoberto Fialho, Wilson Peliganga, Marcelo Adelina Quifiquila Direcção e Redacção:
Sebastião e Abreu Graça Revisão: Memorial António Agostinho Neto
Redação: Óscar Guimarães, António Fonseca e Telef. +244 222 653 900 – 928 130 903
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Fialho, Ilda Mwanza, Enizineide Camilo, Carolina Distribuição: Website: www.maan.co.ao
Mabele, Adelina Quifiquila e António Fonseca, Livraria do MAAN Facebook: www.facebook.com\memorial.aneto
Editorial
Prezados leitores; que orgulhosamente prosseguirá o
estudo e a investigação sobre a vida e
de António Domingues, restaura-
das com o apoio do Institut Goeth.
obra do seu patrono, colocando o seu Na projecção do estudo e difusão da

À
saída do ano da celebração legado à disposição da sociedade e literatura nacional, mas, fundamen-
do centenário do nosso pa- das novas gerações em particular, de talmente no incentivo à leitura e em
trono, o Fundador da Nação modo a que as suas ideias cuja actuali- colaboração com a Associação Porta
e primeiro Presidente da República, dade é inquestionável, possam ajudar Treze, o MAAN ofertou cerca de
António Agostinho Neto, do ano em a trilhar os caminhos presentes e futu- 100 bibliotecas (Conjunto de livros)
tivemos a honra de acolher o acto de ros e, enfim, do seu legado, se cante: a centros universitários mas, acima
investidura do Presidente e Vice-Pre- de tudo, a escolas de formação de
sidente da República eleitos, respecti- *“ (..) professores, a bibliotecas escolares
vamente João Manuel Gonçalves Lou- Levantaremos novos monumentos e a bibliotecas comunitárias. Pen-
renço e Esperança Francisco da Costa paredes novas samos assim ter também cumprido
e em que acolhemos as exéquias do que dirão aos nossos filhos um dos desejos de Agostinho Neto.
Presidente José Eduardo dos Santos, o que nós juntos No plano internacional, as represen-
criado pelo Decreto Presidencial nº vamos edificando. tações de Angola no exterior, Mis-
1/13, de 3 de Janeiro, o Memorial An- sões Diplomáticas e Casas de Cultu-
Juntos serão lembrados
tónio Agostinho Neto celebrou os seus ra, foram potenciadas com o envio
os nossos nomes
10 anos de existência formal. Com da Exposição “Neto na Primeira
como juntos nos temos oferecido
efeito, foi nessa data que o Mausoléu Pessoa” e da Revista Memorial, a
em holocausto à vida
ganhou personalidade jurídica, se viu que cada uma de tais entidades deu
instituído como estabelecimento pú- E os filhos de nossos filhos o formato que teve para si como o
blico e viu alargada igualmente a sua de mãos dadas mais adequado, a que se juntou
vocação para o domínio da investiga- orgulhar-se-ão de nós.” material audiovisual para exibição,
ção científica, das artes e da cultura, o assim como publicações. Igualmen-
que de resto corresponde ao facto de Prezados leitores; te, cremos ser digna de registo, a
o MAAN ser também uma edificação Ainda sob o signo da celebração do realização de diversas conferências
classificada como património histórico- centenário, apresentamos-vos o nú- e exibições cinematográficas sobre
-cultural nacional, conforme o Decreto mero quatro, da nossa/vossa Memo- Agostinho Neto, em parceria com o
Executivo nº 256, de 20 de Agosto de rial, revista de estudo, informação “Projecto Abrindo Gavetas”, duran-
2014, publicado no D.R. I Série, nº e divulgação sobre os mais diversos te a Festa Literária Internacional de
153. Os dez anos da vida do MAAN, temas aos quais Agostinho Neto de- Maringá. Como nota, fica o registo
a que se devem juntar os anos desde dicou a sua atenção e saber, mas que da realização de exposições e con-
que a 20 de Dezembro de 1992 aco- queremos também seja de promo- ferências por outras entidades no
lheu no seu sarcófago os restos mortais ção do conhecimento e do desenvol- exterior, dentre as quais a Torre do
do Dr. Agostinho Neto, não foram um vimento da cultura e das artes e per- Tombo e a Universidade do Porto.
percurso linear, mas sim um percur- mita ampliar neste domínio o nosso As nossas acções em relação à come-
so em que cada uma das equipas que trabalho com a comunidade, tal moração do Centenário de Agostinho
teve a seu cargo a sua direcção, a cada como é uma das nossas atribuições. Neto foram programadas e esten-
momento teve que pensar e agir no Neste número poderá conhecer al- dem-se ainda no corrente ano civil.
sentido de encontrar as melhores vias, guma da intensa actividade desen- Dentre elas, tomam relevo a exposi-
os melhores caminhos, para a realiza- volvida cujas acções permitiram que ção (mostra) do diário de Deolinda
ção dos propósitos para que foi criado. com sobriedade e dignidade honrás- Rodrigues, após restauro do mesmo.
Ao celebrar o décimo aniversário semos a memória de António Agos- Junte-se o “Colóquio Línguas de An-
da sua criação, o Memorial António tinho Neto na celebração do Cente- gola, Identidade e Soberania” e a
Agostinho Neto, enquanto entidade nário do seu nascimento. Desde logo novel colecção “Havemos de voltar”,
incumbida de perpetuar a memória registe-se a actividade editorial pró- com foco em temas da tradição oral,
do Dr. António Agostinho Neto, como pria e em parceria com a União dos que são a concretização do desejo do
Líder da Luta de Libertação Nacional Escritores Angolanos, que permitiu POETA MAIOR quanto à valoriza-
e Fundador da Nação e, consequen- que fossem editados vários livros no ção da cultura e das línguas nacionais.
temente, enquanto guardião de uma domínio da literatura e da história
parte da História de Angola, reitera e a magnífica exposição de pinturas António Fonseca
O Pensamento
Cultural de
Agostinho
Neto
O Pensamento Cultural de Agostinho Neto

O Pensamento
Cultural de
Agostinho
Neto
“O povo, a base de todas
O
pensamento estruturante exagerado pelos valores culturais do
de Agostinho Neto quanto ocidente (muitos dos quais caducos);
as manifestações de arte,
à política cultural, mesmo incitava os jovens a redescobrir An-
é em África constituído se postulado muitos anos depois, gola em todos os seus aspectos (…)”1
pela massa indígena e é só poderá ser compreendido se nos A génese e desenvolvimento do
nela que terá de alicerçar- detivermos sobre o seu percurso de pensamento cultural do Dr. Antó-
vida, bem como sobre as caracte- nio Agostinho Neto e os seus prin-
se qualquer produção rísticas dos movimentos literários, cípios estruturantes podem ser
artística duradoura.” culturais e publicações de que par- encontrados quer na sua poética,
ticipou. Do mesmo modo, não po- quer em artigos por si publicados
derá ser compreendido se não for em periódicos como O Estudante
considerada a influência sobre si do ou O Farolim, órgão este no qual
movimento da negritude, do ideário o Dr. Agostinho Neto publicou
panafricanista e, naturalmente, do
Movimento dos Novos Intelectuais
de Angola e seu slogan “Vamos des- 1
Rocha, Jofre. “Geração de 50” – Percurso literário
cobrir Angola”. Como se sabe, esse e sua importância na Luta de Libertação de Ango-
la – Intervenções sobre literatura, artes e cultura,
movimento “combatia o respeito Kilombelombe, Luanda, 2004

8
MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

“A não ser que nós, os


angolanos, prefiramos
continuar a repetir mal
o que já foi dito sobre
Vasco da Gama, a narrar
aventuras de caça ou
incluir quimbundo nos
versos para lhes dar um
ar «africano»”

em 1946 o artigo “Uma Causa Psi- do norte, por onde lhes arda o co- como estranhos a si - de fora. (…).
cológica: A Marcha para o Exte- ração. Não compreendem esta gen- ‘’A minha pouca experiência impedi-
rior,” que terá sido a sua primeira te que aqui habita, seus costumes e ria que a voz chegasse ao céu se eu
teorização a propósito da Cultura idiossincrasia. Não têm tradições. desse conselhos. Acho, porém, que a
Nacional, artigo no qual escreve: Não têm orgulho da sua terra por- mezinha apropriada para anular os
“Os nativos são educados como se que nela nada encontram de que se efeitos perniciosos bastantes do eu-
tivessem nascido e residissem na orgulhar; porque não a conhecem. rotropismo seria começar por ‘des-
Europa. Antes de atingirem a ida- Não têm literatura, têm a alheia. cobrir Angola’ aos novos, mostrá-la
de em que são capazes de pensar Não têm arte sua. Não têm espírito. por meio de uma propaganda bem
sem esteio, não conhecem Angola. Não adoptam uma cultura; adap- dirigida, para que eles, conhecendo a
Olham a sua terra de fora para den- tam-se a uma cultura. sua terra, os homens que a habitam,
tro e não ao invés, como seria óbvio. Os indivíduos assim formados têm a as suas possibilidades e necessidades,
Estudam na escola, minuciosamente cabeça sobre vértebras nativas, mas o saibam o que é necessário fazer-se,
a História e Geografia de Portugal, seu conteúdo escora-se em vértebras para depois querer [transformá-la]”2
enquanto que as da colónia apenas estranhas, de modo que as ideias, as
as folheiam em sinopses ou estudam expirações do espírito são estranhas
muito levemente. Ingenuamente, à terra. Daí o olhar-se esta, a sua gen-
2
Uma Causa Psicológica: A Marcha para o Exterior
- O Pensamento Cultural do Dr. António Agostinho
suspiram pelas regiões temperadas te e hábitos, o mundo que os rodeia, Neto, MAAN, Luanda, 2022,

9
O Pensamento Cultural de Agostinho Neto

“O povo, a base de todas as manifes- Angola, havia transcorrido 29 anos e, “O povo, a base de todas
tações de arte, é em África constituí- do ponto de vista cultural, a situação
as manifestações de arte,
do pela massa indígena e é nela que de alienação não só se tinha manti-
terá de alicerçar-se qualquer produ- do como, diga-se, se tinha agravado. é em África constituído
ção artística duradoura. É naquele período e contexto que o pela massa indígena.”
Logo que haja um conhecimento Dr. António Agostinho Neto postula
mais humano das realidades espi- os primeiros elementos estruturantes
rituais, Angola acabará por «desco- de uma política cultural que viriam a
brir-se» em seu benefício e, certa- ser desenvolvidos e consolidados nos
mente, no de todo o Império. seus discursos Sobre a Literatura, So-
A não ser que nós, os angolanos, bre as Artes Plásticas e Sobre a Cultu-
prefiramos continuar a repetir mal ra Nacional, este último pronuncia-
O Memorial Dr. António Agostinho Neto tem a honra de apre-

o que já foi dito sobre Vasco da do a 8 de Janeiro de 1979, data que


sentar a obra “O Pensamento Cultural do Dr. Agostinho Neto” com
a qual pretende colocar à disposição dos decisores, dos estudio-
O P E N SA M E N T O C U LT U R A L D O D R . AG O S T I N H O N E T O

sos e do público em geral, informação que lhes possa ser útil

Gama, a narrar aventuras de caça em 1986, viria a ser institucionaliza-


para a compreensão da visão e do legado em matéria de Política
Cultural daquele que foi Líder da Luta de Libertação Nacional,
Fundador do Estado e da Nação Angolana, Primeiro Presidente
de Angola, Estadista, Homem de Cultura e Humanista.

ou incluir quimbundo nos versos da como o Dia da Cultura Nacional.


A presente obra reúne o discurso de abertura e as comunicações
apresentadas no Colóquio “O Dr. António Agostinho Neto e a O PENSAMENTO
Cultura Nacional”, realizado pelo MAAN a 10 de Janeiro de 2019,
em Luanda, bem como anexos, constituídos por artigos, discursos CULTURAL DO
para lhes dar um ar «africano»3. Damos agora nota do discurso de
e intervenções do Dr. Agostinho Neto acerca da Cultura Nacio-
nal, publicados ou pronunciados desde 1945, muitos dos quais DR. AGOSTINHO
raros e que pela sua importância e actualidade, devem ser por to-
NETO
De 1946 a 1975, ano em que peran- Agostinho Neto Sobre a Cultura Na-
dos conhecidos, de modo a alumiar o caminho do nosso futuro
e preservar a identidade cultural angolana, na sua diversidade...
António Fonseca

te a África e o Mundo, o Presidente cional a que fizemos referência, em Edição:

Neto declarou a independência de versão revista a partir do original mag-


nético, superando-se assim gralhas e
imprecisões presentes em transcri-
3
Da vida espiritual em Angola - Idem ções anteriores do referido discurso.

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

Sobre a Cultura Nacional:


Discurso Proferido na Cerimónia da Tomada
de Posse do Corpo Dirigente da União dos Escritores Angolanos
Para o Biénio 1979/1980, em Luanda, a 8 de Janeiro de 1979. *

Camaradas e caros colegas: e de crítica…e não será muito fácil. emanação cultural do povo angolano.
Termina assim, hoje, mais um pro- Creio que o debate será em breve Essa dúvida levar-nos-á à afirmação.
cesso na vida da União dos Escrito- aberto, para a apreciação do nosso Evidentemente, a cultura não pode
res Angolanos, um acto em que nós trabalho, dentro do contexto verda- inscrever-se no chauvinismo, nem
empossamos, depois de eleições re- deiro da Nação Angolana, ou me- pretender evitar o dinamismo da vida.
gulares, novos corpos gerentes. lhor, do Povo Angolano. A cultura evolui com as condições
Um período de actividades para to- Por isso, em nome da Mesa da As- materiais e em cada etapa, corres-
dos os escritores vai iniciar-se, após sembleia Geral, me apraz dirigir ponde a uma forma de expressão e
esta tomada de posse dos corpos ge- parabéns ao executivo eleito para de concretização de actos culturais. A
rentes eleitos no dia 29 de Dezembro a gerência actual, que terá tarefas cultura resulta da situação material e
de 1978 e espero que em Março de grandiosas no sentido da dinamiza- do estado do desenvolvimento social.
1981 possamos fazer um balanço ção da cultura angolana e desejar- E, no contexto angolano, a expres-
muito positivo deste período que se -lhes um bom trabalho. são cultural resulta senão de cópia,
espera de prospecção e de produção. por enquanto, pelo menos do re-
A direcção da nossa União, tem-se I sultado de uma aculturação secular,
esforçado por dinamizar a produção Penso que é necessário falar de cul- pretendendo reflectir a evolução ma-
literária, num período em que se con- tura antes de literatura. E vamos terial do povo, que de independen-
fundem ainda, no conteúdo, um futu- aproveitar esta excelente ocasião, te se tornou submisso e completa-
ro angolano, africano e universal da li- para examinar alguns aspectos es- mente dependente para voltar a ser
teratura com a necessidade política de senciais sobre a nossa cultura. independente em novas condições.
nacionalismo; ou o da realização polí- Felizmente, já se criou entre os inte- Há que recorrer de novo à nossa rea-
tica do escritor com a própria política. lectuais angolanos hesitação e dúvida lidade, sem chauvinismos, e sem re-
Deste modo, a tarefa para os novos sobre se a cultura portuguesa que ser- nunciarmos à nossa vocação univer-
corpos gerentes, não terá simples- viu algumas camadas angolanas des- salista. O chauvinismo cultural é tão
mente o sentido de encargos admi- ligadas do seu povo é ou não aquela prejudicial como o foi, logo a seguir
nistrativos, mas também de análise que deveria ser apresentada como a à Revolução de Outubro, o concei-
to de cultura proletária que Lénine
tanto combateu, insistindo na ideia
DaviD Capelenguela
de o país soviético ter forçosamente
de fruir, e aproveitar-se para a elabo-
Agostinho neto diAlécticA do discurso poético e literário (AnotAções breves)

ração de uma nova cultura socialista,


voltada para as massas, do patrimó-
David Capelenguela nasceu na Huíla, em 1969.
Advogado de profissão é licenciado e mestre em
nio cultural herdado… mais tarde,
do conceito de realismo socialista.
Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade
Agostinho Neto (UAN), em Luanda. Mestrando em
Literatura de Língua Portuguesa pela Faculdade de
Humanidades, frequenta actualmente o curso de

A cultura do povo angolano é hoje


doutoramento em Ciências Sociais na Universidade

Agostinho neto
Agostinho Neto. Desde 1990, no Namibe, foi cola-
borador do Jornal de Angola e ANGOP - Agência
Angola Press, no entanto, foi pelo jornalismo radio-
diAlécticA do discurso
poético e literário
fónico que se notabilizou, tendo, durante 30 anos,
passado pelas rádios Namibe, Huíla, Cunene e Lun-
da Sul, até 2020.
constituída por pedaços que vão das
áreas urbanas assimiladas às áreas ru-
(AnotAções breves) Autor de 14 obras literárias, poeta às vezes prosa-

* Texto Conforme Registo Áudio Verifi-


dor e ensaísta, foi cofundador da Brigada Jovem
de Literatura de Angola, tendo entre 1993-1998 e
2006-2011 exercido as funções de Secretário Ge-
Prefácio:
Edson dos Santos Ramirez
cado Por: António Fonseca, Óscar Gui-
ral Provincial do Namibe e Cunene. É Membro da
União dos Escritores Angolanos, onde exerce a fun-
ção de Secretário-geral. Docente da Universidade
rais apenas levemente tocadas pela as-
marães, Marcelo Sebastião e Brenda
Óscar Ribas, onde exerce a função de Chefe de De-
partamento de Direito e Relações Internacionais, é
similação cultural europeia. E porque
Pires Ferreira.
investigador; para além das temáticas de Direito e
relações internacionais, tem-se ocupado com a di-

as capitais como a nossa, agigantadas

11
O Pensamento Cultural de Agostinho Neto

pela burocracia, exercem um efeito tual. Precisaremos de mais tempo; Angola uma só corrente compreen-
mágico sobre a maior parte do País, mas, Camaradas Escritores, esse tem- siva da mesma. Como o botânico, ou
existe a tendência para a imitação, po não pode ser dispensado a uma o zoólogo, o cientista ou o filósofo,
claro, visível no aspecto cultural. Daí acomodação a temas e formas impor- reunamos os elementos todos, anali-
uma responsabilidade muito especial tadas. A cultura angolana é africana, semos, e cientificamente, dentro dos
da União dos Escritores Angolanos. é sobretudo angolana, e por isso próximos dois anos, apresentemos
A responsabilidade e as tarefas são sempre consideraremos ultrajante a os resultados. E chegaremos à con-
grandes. maneira como o nosso povo foi trata- clusão que Angola tem uma caracte-
Por onde começar? Ou por onde do por intelectuais portugueses. rística cultural própria, resultante da
continuar? Se não possuímos ainda a capaci- sua história ou das suas histórias.
Se os estimados camaradas e co- dade de transformar o escritor em Seria bom – mas, se não for possível,
legas me permitem, direi que não profissional da literatura ou da pes- não choremos por isso – que o próxi-
podemos cair em esquemas ou es- quisa cultural, tenderemos para aí, e mo Congresso do Partido pudesse já
tereótipos como os teóricos do rea- algumas propostas feitas pelo Secre- contar com as opiniões da União dos
lismo socialista. A par da nossa ca- tariado poderão ser atendidas para Escritores sobre esta matéria.
pacidade nacionalista, teremos de períodos excepcionais de férias ou
intervir de modo a inscrevermo-nos para fins de semana activos. II
no mundo, à medida que formos Eu creio que dentro em breve, o ar- Quanto a outros agentes da cultura,
assumindo a realidade nacional. tista, o escritor, serão apenas escritor como os artistas plásticos e mesmo,
Na nossa primeira fase, e do pon- e artista, para se poderem dedicar aos nas nossas condições actuais, os ór-
to de vista cultural, há que anali- problemas que afloro simplesmente gãos de difusão de notícias junto
sar. Não adaptar mecanicamente. neste fim de Assembleia de posse. das massas populares, penso ser
Há que analisar profundamente a Mas, no meu entender, será neces- normal que a nossa União assuma
realidade e utilizar os benefícios da sário aprofundar as questões que a responsabilidade de orientação e
técnica estranha só quando estiver- derivam da cultura das várias nações de dar aos criadores e difusores de
mos de posse do património cultural angolanas, hoje fundidas numa, dos ideias, a função que os organismos
angolano. Desenvolver a cultura não efeitos da aculturação dado o con- do Partido apenas podem definir
significa submetê-la a outras. tacto com a cultura europeia e a ne- através de textos, e que o organismo
Não possuímos ainda suficiente pro- cessidade de nos pormos de acordo estatal poderá dinamizar, fazendo de
dução material para nos ocuparmos sobre o aproveitamento dos agentes si próprio o veículo dos resultados
intensivamente da produção espiri- populares da cultura e fazermos em a obter dos organismos pensantes.

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

Penso que é necessário o mais alar- tanto tentar libertar os artistas das execução dessa linha política, e por
gado possível debate de ideias, o cargas do passado e torná-los aptos outro lado, como o será em relação à
mais amplo possível movimento de para uma lata atitude compreensiva actividade espiritual do Povo.
investigação, dinamização e apre- de todo este nosso processo de re- Sugiro aos Caros Camaradas e Cole-
sentação pública de todas formas construção de uma cultura. gas escritores que sejam aproveitadas
culturais existentes no País, sem ao máximo as condições para que os
quaisquer preconceitos de carácter III escritores trabalhem e produzam e
artístico ou linguístico. Desejo mais uma vez recordar a observem cada canto do espaço geo-
Precisamos de fazer os artistas popu- necessidade de estar com os ar- gráfico nacional, vivendo a vida do
lares criar! tistas populares. Não para depois povo. As condições materiais serão
Seria necessário longo tempo para di- interpretar folclore, mas para com- sempre criadas na medida do possível,
zer aqui que para falar para o povo preender e poder interpretar a cul- até que possamos fazer do escritor, do
angolano, é preciso ser-se um elemen- tura. Para os reproduzir. artista, um profissional puro da cul-
to do povo angolano. Não é questão Repetir os aspectos importados de tura ligado à realidade socio-política.
de língua, mas de qualidade nacional. cultura, é um acto que ninguém cer- Por outro lado, espero que as condi-
tamente aprova. E já que tenho de ções criadas possam ajudar a formação
Caros colegas e camaradas, exprimir uma opinião, gostaria que de uma literatura angolana abrangen-
Se se prolonga a atitude alheia em tudo quanto fosse dito para o nosso do as circunstâncias políticas e prin-
relação ao nosso povo, não será pos- povo pelos agentes mais capazes da cipalmente a própria vida do Povo.
sível interpretar o «espírito» popular, cultura angolana, representasse o Desejo ainda endereçar a todos os
saído do estudo, e da vivência. Nar- desejo e as formas de expressão do empossados as minhas sinceras feli-
rar a interpretação política do mo- povo, como o foi em relação à Inde- citações.
mento é fácil, mas chegar ao íntimo pendência, como o é em relação à
do pensamento de várias ex-nações adopção da linha política do Partido, A Luta Continua!
é muito menos fácil. Vamos no en- como o é em relação às formas de A Vitória é Certa!

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

MAAN
Homenagem do
Povo Angolano
ao Fundador
da Nação

15
Homenagem do Povo Angolano ao Fundador da Nação

MAAN – Homenagem do Povo Angolano


ao Fundador da Nação

blico através do Decreto Presidencial


n° 1/13, de 3 de Janeiro, publicado
no Diário da República n° 2, I Série,
tendo como objectivos perpetuar
a memória do Dr. António Agosti-
nho Neto como Líder da Luta de
Libertação Nacional, Fundador da
Nação, Estadista, Homem de Cultu-
ra e Humanista, tendo ainda como
finalidade investigar e promover a
investigação da sua vida e obra, bem
como promover o conhecimento, a
formação artística e a organização de
acontecimentos culturais.
Com efeito, foi a 3 de Janeiro de
2013 que o Mausoléu se viu insti-
tuído como Memorial Dr. António
MAAN: RESENHA HISTÓRICA pelo então Presidente da Repúbli- Agostinho Neto e enquanto estabele-
ca Eng.º José Eduardo dos Santos. cimento público viu alargada igual-
Após o falecimento do Dr. António No decorrer dos anos 80, porém, mente a sua vocação para o domínio
Agostinho Neto, ocorrido a 10 de Se- com o agravar da situação político- da investigação científica, das artes e
tembro de 1979, na antiga União das -militar, económica e social que o da cultura, o que de resto correspon-
Repúblicas Socialistas Soviéticas, o Go- país enfrentou até à década de 90, as de ao facto de o MAAN ser também
verno da então República Popular de obras foram suspensas. uma edificação classificada como pa-
Angola, na década de 80, encomen- Em finais de 1998 e sob a coordena- trimónio histórico-cultural nacional,
dou ao Instituto de Projectos da anti- ção e gestão do C.I.G.O.E. (Comisão conforme o Decreto Executivo nº
ga URSS o projecto para a construção Instaladora do Gabinete de Obras 256, de 20 de Agosto de 2014, publi-
de um Mausoléu que teria como fun- Especias), actual “G.O.E” (Gabinete cado no D.R. I Série, nº 153.
ção principal acolher os restos mortais de Obras Especiais), o projecto foi O Memorial acolhe no seu seio o Sar-
do primeiro Presidente de Angola. reformulado. cófago onde, transladado do salão
O desenho arquitectónico do edifício Volvidos 6 anos de construção, após nobre do Palácio Presidencial para
foi inspirado no poema de Agosti- a retoma da empreitada em 2005, o então Mausoléu, desde 20 de De-
nho Neto “O caminho das estrelas’’, a execução da obra conheceu a sua zembro de 1992, repousam os restos
da obra Sagrada Esperança. conclusão em Janeiro de 2011. mortais do Fundador da Nação Ango-
Idealizado no perímetro do Centro No ano seguinte, a 17 de Setem- lana, o Dr. António Agostinho Neto.
Político Administrativo (C.P.A) na bro de 2012, o então Presidente da Visitar o Memorial Dr. António Agos-
Província de Luanda, a construção República Eng.º José Eduardo dos tinho Neto é fazer uma viagem no
do Mausoléu teve o seu início com a Santos procedeu à inauguração do tempo e na História de Angola, e ficar
cerimónia do lançamento da primei- edifício que viria a ser instituído for- a conhecer a vida e obra do primeiro
ra pedra a 17 de Setembro de 1982, malmente como estabelecimento pú- Presidente da República de Angola.

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

Maria Eugénia Neto define o Memo-


rial como sendo “uma obra monu-
mental que ajuda a fixar a memória
da saga gloriosa que foi a indepen-
dência nacional. Uma fixação da me-
mória, não só de Agostinho Neto, o
líder da libertação de Angola, mas de
todos os seus compatriotas que com
ele estiveram sacrificando a sua ju-
ventude, deixando as suas famílias,
muitos dos quais morreram…1. “A
sintaxe narrativa que se pode aferir
no interior do Memorial correspon-
de ao conteúdo definidor da escrito-
ra Maria Eugénia Neto. O imaginário
da luta de libertação nacional, o con-
texto colonial, as emoções, a convic-
ção, os silêncios são amplamente visí-
veis no MAAN através de fotografias,
retratos a óleo, testemunhos audiovi-
suais, bibliografia, documentos, auto-
biografias, biografias e epistolografia
político-nacionalista daqueles com
quem Agostinho Neto protagonizou
a epopeia até ao “Içar da bandeira”.
No interior do Memorial quando se
tem o guia especializado como in-
termediário da narrativa dos objec-
tos museais as memórias do silêncio
adquirem voz mediante argumentos
compreensíveis e pacíficos. A figura
do poeta-Presidente é uma repre-
sentação do agente que se desdobra
em “eu-nós”, em “somos nós-Na-
ção”. Aliás, o Memorial é um bastião
memorialístico do povo angolano,
no qual se preservam as aspirações
da luta de libertação nacional. A vin-
da ao Memorial permite conhecer e
meditar sobre o élan de uma justa
luta pelo desenvolvimento de uma
independência real da nossa pátria,
na perspectiva do poeta-Kilamba,
no poema “Depressa”.

1
Revista Memorial n.º 1, Luanda: MAAN, p. 81.

17
Homenagem do Povo Angolano ao Fundador da Nação

MAAN: MISSÃO, VISÃO E VALORES mesmo em ambiente de sobriedade, tante no sentido da iniciação às artes
como se impõe, a mais ampla liberda- pelas crianças e jovens.
MISSÃO: de de expressão cultural, no primeiro Com a entrada em funcionamento do
“Preservar e perpetuar a vida e obra caso e levam a muitos mais a oferta e MAAN pavimentaram- se novos ca-
do Dr. António Agostinho Neto, cui- o consumo cultural ampliando assim minhos para os criadores e promoto-
dando da herança do nosso povo, o capital cultural da sociedade. res de arte e cultura de Angola. Nesse
transmitindo-a ao mundo e criando Dez anos volvidos ao serviço públi- sentido, o MAAN disponibiliza os seus
História”. co, inúmeros angolanos e estran- espaços aos criadores e promotores
geiros visitam o MAAN, participam culturais para apresentação das res-
VISÃO: em eventos culturais e científicos, pectivas obras e eventos tornando-se
“Preservamos a qualidade dos espa- designadamente em colóquios, con- assim um centro cultural de referência.
ços do Memorial e continuamente, ferências, mesas redondas, palestras, Quer pela história do nosso patrono,
procuramos encontrar opções ino- espectáculos, exposições de arte e quer pela nossa oferta cultural, quer
vadoras para promover a arte e cul- cultura, e outros eventos, bem como pela imponência do edifício, quer
tura nacional, africana e universal, em acções de formação artística de porque se trata de um espaço em que
através de um programa cultural de vários níveis e especialidades, o que se guarda uma parte importante da
excelência internacional” tem permitido o aprimoramento de História de Angola, quer porque se
competências artísticas e profissio- quer transmitir o espírito patriótico
VALORES: nais, bem como permite aos parti- às novas gerações, o MAAN tornou-se
– Excelência, em tudo o que fazemos cipantes tornarem-se mais confian- um lugar de visitas individuais e colec-
e promovemos; tes, críticos e seguros como agentes tivas em que se inscreve um impor-
– EDUCAÇÃO, como âncora no de- criativos da transformação social. De tante número de estudantes e escolas.
senvolvimento da actividade do Me- igual modo, a realização de oficinas A este propósito, o historiador Cor-
morial; criativas tem sido uma prática cons- nélio Caley, na apresentação do livro
– COMPROMISSO, com o Legado
do Dr. António Agostinho Neto e
com a preservação e divulgação da
história/ cultura de Angola;
– DIVULGAÇÃO, colocar a cultura
angolana no mapa-mundo das artes.
– TRANSPARÊNCIA, uma história
e uma cultura translúcida aos olhos
de Angola e do Mundo.
- INTEGRIDADE E RESPONSABI-
LIDADE, preservando e divulgando
de forma íntegra e responsável a
identidade do Dr. António Agosti-
nho Neto e a História de Angola.
– ÉTICA, cumprir de forma honro-
sa com a visão e missão do Memorial
em prol do bem comum.

MAAN: ACÇÃO CULTURAL


Desde a sua existência, primeiro como
Mausoléu e ora como Memorial,
mantemo-nos como espaço de demo-
cracia e de democratização cultural,
enquanto processos que permitem,

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

“Agostinho Neto, uma Vida por An- localiza-se o teleporto, o centro de tro departamentos e um gabinete,
gola, Condecorações e Títulos Hono- documentação e informação, a bi- designadamente: Departamento de
ríficos” editado pela FAAN, realçou a blioteca/videoteca, as salas protoco- Administração e Serviços Gerais; De-
importância actual do Memorial, en- lares para as autoridades e a tribuna partamento de Conservação de Es-
quanto espaço referencial de even- presidencial. Na ala esquerda, situa- pólio; Departamento do Sarcófago;
tos para a juventude, nos seguintes -se a torre de imprensa, o vasto salão Departamento de Apoio à Investiga-
termos: “A minha intervenção tem multiusos, a galeria de exposições e ção e Gabinete de Apoio ao Presiden-
lugar neste emblemático edifício, as oficinas de artes, gráfica, madeira e te do Conselho de Administração.
o MAAN, onde repousam os restos de metal. Na ala direita encontram-se Em obediência ao decreto legislativo
mortais do Guia e Fundador da Na- instalações administrativas, foyer de presidencial n.º 2, de 19/2, de 2020,
ção e onde, felizmente, nos últimos exposições, salas de formação, átrio, que estabelece as regras de criação,
tempos, tudo vem acontecendo, de- livraria MAAN, sala de conferências organização, funcionamento, avalia-
bates e visitas, transformando-se num e serviços técnicos. O Memorial é ção e extinção dos institutos públi-
local de peregrinação do seu povo”. também um centro de convenções cos, houve a necessidade de se ajus-
Quanto à promoção do conhecimento com um parque de estacionamen- tar o estatuto orgânico do MAAN.
e apoio à investigação, o MAAN colo- to para mais de trezentas viaturas. Na actualidade, à luz do decreto pre-
ca à disposição do público informação sidencial n.º 302, de 15/12, de 2021,
através da sua biblioteca / videoteca, MAAN: Estrutura Orgânica que aprova o novo estatuto do MAAN,
teleporto e centro de documentação. O Memorial Dr. António Agostinho o mesmo passou a ter um Conselho
Neto completou dez anos de existên- Directivo, constituído por um Direc-
MAAN: Infraestrutura cia como instituição pública desde a tor-Geral e um Director-Geral Adjun-
Projectado numa área de 18 hectares, sua criação através do Decreto Pre- to, passando os serviços executivos a
o emblemático edifício, na sua estru- sidencial n.º 1, de 3 Janeiro de 2013, serem constituídos pelos seguintes
tura compreende um bloco central que aprovou, simultaneamente, o departamentos: Departamento de
no qual se encontra uma torre de 120 seu estatuto orgânico. Nos termos do Apoio ao Director-Geral, Departa-
metros, a ala direita e a ala esquerda. mesmo, no período de 2013 a 2021, mento de Sarcófago e Acção Cultural,
No bloco central encontram-se os ser- o MAAN teve um Conselho de Ad- Departamento de Apoio à Investiga-
viços principais de recepção, galeria ministração integrado por três ad- ção, Departamento de Administra-
das profissões, o sarcófago, o museu ministradores executivos, sendo um ção e Serviços Gerais, Departamento
e salas de trabalho administrativo. dos mesmos o presidente e os servi- de Comunicação, Inovação Tecno-
No primeiro andar do bloco central ços executivos constituídos por qua- logia e Modernização de Serviços.

19
Testemunhos
Testemunhos

“O MAUSOLÉU
DR. ANTÓNIO
AGOSTINHO NETO
FOI CONSTRUÍDO
NO ÂMBITO
DO INTERESSE
PÚBLICO”
Afirma aquele que foi o guardião do Mausoléu,
Domingos Agostinho Lopes

O Mausoléu foi construído no âm-


bito do interesse público, manter as
portas abertas para o povo angolano
prestar homenagem ao Presiden-
te-fundador da Nação angolana,
afirmou o primeiro guardião do
Mausoléu. Durante a breve conver-
sa decorrida na Sala Protocolar das
Autoridades, no MAAN, Domingos
Agostinho Lopes, “Ken´Exi”, (DAL)
explicou como exerceu a sua função
enquanto guardião do Mausoléu,
lembrando-se na ocasião da quan-
tidade de visitantes que de vários
pontos de Luanda vinham deposi-
tar flores no sarcófago e os esforços
feitos para dinamizar as actividades
culturais no interior do edifício.

Memorial – Quem é Domingos


Agostinho Lopes?
DAL – Sou formado em Linguística
Francesa, pelo ISCED-Luanda. Fun-
cionário público. Assessor Político do

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

Vice-Governador para o Sector Polí- tigo Presidente José Eduardo dos Nacional. O acto foi presidido pelo
tico e Social da província de Luanda. Santos. Nós fomos indicados por antigo Presidente José Eduardo dos
Desde já agradeço o convite oportu- Aníbal Rocha para, em acumula- Santos. As pessoas vinham para aqui
no de partilhar memórias desta es- ção, exercer as funções de Director depositar flores em honra à memó-
trutura; sinceramente, sempre espe- do Centro Cultural e guardião do ria do pai da Nação.
rei este momento para passar o meu Mausoléu. Naquela altura, havia a
testemunho e ver juntado a outras previsão de ser retomada a constru- Memorial – Por que dinamizar
informações ligadas à construção do ção… estava tudo em betão puro, actividades culturais se não havia
Mausoléu; penso serem importan- salvo a zona do sarcófago que esta- condições no edifício?
tes, porque, digamos, fazem parte va concluída e onde já havia condi- DAL – Não bastava homenagear
da história. Era nostálgico vir aqui… ções de infra-estrutura para acolher Agostinho Neto com a deposição
os visitantes. Lá estava depositada de coroas de flores; o espírito cultu-
Memorial – Em que ano foi nomea- a urna com o corpo do Presiden- ral teria também de se manisfestar
do para vir cuidar do edifício e do te Dr. António Agostinho Neto. naquelas ocasiões, visto que ele er-
seu funcionamento? gueu a bandeira da cultura angola-
DAL – No ano 2000 foi inaugura- Memorial – Permaneceu como na e os seus discursos teóricos conti-
do o Centro Cultural Dr. António guardião do Mausoléu até termi- nuam nos dias de hoje a encabeçar
Agostinho Neto, no Bairro Ope- nar a obra de construção? o pensamento sobre aquilo que
rário, uma iniciativa da Delegação DAL – Não. Nós viemos para o Mau- deve ser a cultura angolana e o seu
Provincial da Cultura, que teve a soléu provisoriamente em 2001, pu- desenvolvimento. Havia necessida-
aprovação do antigo Governador demos aqui dinamizar actividades. de de montarmos aqui exposições
de Luanda, Senhor Aníbal Rocha, Nesse ano realizou-se pela primeira fotográficas sobre a vida e obra do
cujo acto de inauguração contou vez um acto político aqui, alusivo Presidente Dr. Agostinho Neto; as
com a prestimosa presença do an- ao 17 de Setembro, Dia do Herói pessoas deviam conhecer mais toda

23
Testemunhos

a sua vida por Angola. As visitas ofi- Memorial – As pessoas podiam li- a honra de poder apresentar o
ciais de Chefes de Estado a Angola vremente visitar o Mausoléu? Mausoléu em condições de ser visi-
passariam também por aqui, lem- DAL – Sim, as pessoas podiam visitar tado. Na verdade não tínhamos tra-
bro-me do Presidente da Argélia… livremente o sarcófago e a exposição balhadores fixos. Nós tirávamos do
teve contacto com a exposição fo- não permanente. Só se chegava ao Centro Cultural para o Mausoléu,
tográfica e com os quadros de ilus- sarcófago em momentos especiais. fazíamos os trabalhos e depois re-
trações do artista plástico António Criamos momentos culturais. Foi um tornavam para o Centro Cultural.
Domingues sobre a obra poética período muito bom. Fica aqui claro
Sagrada Esperança. Os trabalhos que o Mausoléu foi construído no Memorial – Será que esta institui-
eram feitos por trabalhadores do âmbito do interesse público, é uma ção corresponde à homenagem
Centro Cultural, no Bairro Ope- memória de todos os angolanos… merecida?
rário, deslocávamos alguns meios não haverá mais uma geração igual DAL – Não há obra física que cor-
de lá para cá. Felizmente consegui- para legar uma independência à ge- responda à grandeza espiritual de
mos manter funcional o Mausoléu ração seguinte como a geração dos qualquer homem. Ainda que fizés-
até que no ano de 2003, se a me- “Mais-velhos”. Estes legaram-nos semos aqui uma torre de “Babel”,
mória não me falha, saiu a decisão uma Nação independente, libertada não corresponderia à grandeza
de se retomar as obras do então do colonialismo. Não há povos sem espiritual do pai da Nação. Mas,
Mausoléu Dr. António Agostinho memória e que dela desenha um fu- o simbolismo e a qualidade que se
Neto. Bom, nesse ano entregamos turo melhor e dela poder reflectir procurou aqui apresentar, pode-
as chaves. Começaram as obras de para evitar os erros do passado. mos todos concordar, conferiu uma
requalificação do projecto que viria certa dignidade e reconhecimento
a ser o Memorial hoje. Estamos sa- Memorial – Nas vestes de guardião absoluto pelos seus feitos em prol
tisfeitos porque finalmente foi dada do Mausoléu qual foi o seu maior de Angola e de África libertada. Ao
a dignidade necessária àquele que desafio? redor do Mausoléu, numa extensão
é o fundador da Nação, com este DAL – Foi manter o Mausoléu de dois mil metros, seria construída
monumento património de África. atendível aos visitantes, coube-nos a cidade governativa onde funcio-
nariam todos os departamentos mi-
nisteriais. Desconheço as razões de
o projecto não sair do papel, mas
importa materializar o seu pensa-
mento célebre que nos legou: “O
mais importante é resolver os pro-
blemas do povo”.

Memorial – Qual é a diferença en-


tre Memorial e Mausoléu?
DAL – O Mausoléu tem uma di-
mensão um pouco menor, é apenas
um lugar para guardar os restos
mortais. O Memorial é uma espécie
de museu amplo, onde cabe toda
história da vida de quem é home-
nageado. Encontramos as relíquias
e os bens que foram usados, en-
contramos os seus escritos, encon-
tramos uma série de informações
sobre o homenageado. Gostaria de
realçar que na transição já estava

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

para ser chamado “Centro Cultu- preservar a História de Angola que numa sociedade que parece não ter
ral”, opusemo-nos enquanto Direc- é parte da história africana. Mas herança. É preciso reavivar a me-
tor de Centro Cultural Dr. António para nós os adultos exige-se maior mória, este povo tem uma memó-
Agostinho Neto, no Bairro Operá- responsabilidade de diálogo com os ria, estamos a falar desde a era pré
rio, porque seria confundido. mais novos. As heranças passadas os colonial, a resistência à penetração
jovens adquirem-nas porque nós as colonial, e, não se fala dos outros
Memorial – Quer dirigir uma passamos. E parece-me haver uma heróis que travaram batalhas para
mensagem à sociedade angolana certa amorfia da nossa parte nas que o colonialismo não se fixasse.
quanto à preservação da memória mais distintas esferas. Nós esque- Então, a nossa geração precisa de
e do espaço? cemos os nossos heróis, não só os preocupar-se em passar a herança
DAL – Para a juventude não, em- mortos, até os heróis vivos, nós os aos mais pequenos. É preciso de
bora não deva deixar de manifestar esquecemos, não só Agostinho Neto retomar o espírito de divulgação
o interesse de conhecer, respeitar e é esquecido. Estamos empolgados da memória colectiva deste povo.

25
Estudos
Estudos

A múltipla dimensão de Agostinho


Neto aloja-o como lugar de memó-
ria (Nora, 1984). Aliás, o Editor
desta colectânea assume-a como
tópico de preservação da memó-

A MEMÓRIA DE
ria política, histórica e cultural do
povo angolano. Significa que Ki-

AGOSTINHO
lamba pode ser matéria de pesquisa
em quaisquer áreas do saber.
Pode comprovar a nossa argui-

NETO
ção a obra Liberdade, Angolanidade
e Direitos de Cidadania em seis Poe-
mas de Agostinho Neto, do Professor
Catedrático Paulo de Carvalho. O

EM COLECÇÃO DE
pesquisador elegeu os artefactos
literários Adeus à Hora da Largada,

ESPECIAL CENTENÁRIO
Amanhecer, Havemos de Voltar, Parti-
da para o Contrato, Poesia é Vida e Re-
núncia Impossível (Neto, 2009), enfo-
cando a estética de Neto do ponto
de vista sociológico da arte, como
Por: Joaquim Martinho* ensina Jean Marie Guyau (1887),
a fim de os situar na esfera da li-
berdade, progresso, promoção da

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

cidadania e resgate dos valores da


angolanidade, numa época em que
se impõem referentes para a edu-
cação das jovens gerações. Na obra
de Paulo de Carvalho, o leitor vai
deleitar-se com a poética de Man-
guxi que dá voz e vez aos sem ela,
em Partida para o Contrato, sendo os
versos seguintes exemplos: “ O ros-
to retrata a alma/ amarfanhada pelo
sofrimento” (Carvalho, 2022:17).
Em Renúncia Impossível, há, por
exemplo, na visão do autor da obra,
em tela, a promoção da cidadania,
pela negação do alterícidio /apaga-
mento do outro, se quisermos falar
com o pensador camaronês Achile
Mbembe (2017): ”Atingiste o Zero
/Sois Nada e Salvastes o Homem”
(Carvalho, 2022:24). A íris investi- livro, itinerários de liderança si- Afinal, Agostinho Neto não teve vida
gativa de Paulo de Carvalho tam- nalizados, a título de exemplo, no fácil, quem no - lo diz é o Secretá-
bém aponta para o resgate de va- “Falar menos, ouvir mais de Neto”, rio-Geral da Academia de Letras em
lores da angolanidade, enquanto que pode pontuar, na actualidade, Agostinho Neto: Os caminhos das Estre-
identidade, e pontua para a liberta- a cultura da democracia participa- las. O pensador angolano António
ção das amarras coloniais, no texto tiva; o “ Estar próximos dos seus”, Quino perscruta as mundividên-
Adeus à hora da largada: “ Somos os em Neto, como o político, homem cias do rapazote de Ikolo e Bengo,
teus filhos/ dos bairros de pretos / de cultura, todavia, homem de fa- cujo percurso de vida se ladeou de
além aonde não chega a luz eléctri- mília, que amava a esposa e conhe- espinhos. O estudioso netiano pro-
ca” (Carvalho, 2022:15-22). cia o significado da antroponímia. cura demonstrar que, da região de
Tão fecundo é o lugar de memória Daí ter atribuído à Leda, filha sua, Catete, emergia o destemido rapaz
de Neto que o Professor Associado o nome em homenagem à mulher e, com ele, o desenho poético de
Manuel Muanza em Histórias Curtas que salvara a sua vida: Leda Giu- construção do projecto colectivo
da vida de Agostinho Neto: Lições de lini (Muanza, 2022:21-58). Temos, angolano, tendo como fito o “Ama-
simplicidade para as gerações de gover- na obra de Manuel Muanza, o ho- nhecer das Estrelas” para todas as
nantes angolanos se nos propõe um mem por detrás de Neto que, em Áfricas do mundo. O contexto de
roteiro de subsídios para a gestão, avant la lettre, doara ensinamentos sombras em que nasce a estética de
administração da Res publica, visan- para a boa gestão e governação. Neto acaba por servir de aconselha-
do o bem-estar comum de que nos Trata-se da cosmovisão e filosofia mento, sobretudo, para a juventude
ensina Platão, na sua A República de vida de Neto. Por isso, o autor de hoje que muito deseja “ser”, sem,
(2013), e arquitectado por Thomas compartimentou a obra: numa sec- contudo, construir um percurso…
More, em Utopia (1516; 2015). No ção, a Vida privada; noutra o mé- Kilamba, móbil desta colectânea,
livro de Manuel Muanza os leito- dico; a seguir Poesia, Simplicidade, dentre várias facetas, era um geo-
res poderão divertir-se com lições Riscos e Sobrevivência. De seguida, -estratega, porquanto pensara, pela
tributadas da vida de Neto como Liderança e Soberania. No final, sua poética, a comunidade imagina-
guião para a construção do Esta- Infância, Juventude e Formação. da angolana, a nação inventada por
do-ideal, ou melhor, do “HOMEM Sigamos as lições de simplicidade si, aí onde ela não existia, para falar
NOVO”, com que sonhara Kilam- e doação aos outros de Manguxi com Benedict Anderson (1989). É o
ba. Poderá o leitor encontrar, no para o esmerar da boa governação. que se pode ler de Apologia do Estado

29
Estudos

e da Nação: Ensaio sobre a reconstru- tacto com a pesquisa de João Pa- o inconsciente imanentista no tex-
ção do pensamento de Agostinho Neto, pelo, que a leitura do manancial to netiano, visando o despertar de
de Mário Ferraz. Para o ensaísta, poético de Kilamba fosse possível consciências, tendo em conta a épo-
a poética de Neto afigura-se num com o auxílio da Psicanálise. Papelo ca do projecto criativo de Kilamba.
compêndio de geopolítica, pela qual demonstra, para o leitor em A Liber- Em “Ópio”, o sujeito lírico assume
a 11 de Novembro de 1975 se con- dade nos Olhos, A estética da Negação não ter tido infância nem mocida-
quistou a Independência Nacional. em Sagrada Esperança e A Renúncia de”, o que funciona como negação.
Alguns marcadores do pensamento Impossível, apoiado nas experien- Contudo, em “O verde das palmeiras
estratégico de Neto, no ensaio de ciações psicanalíticas de Sigmund da minha mocidade”, o predicador
Mário Ferraz, merecem o nosso des- Freud, que a dívida histórica eu- afirma o que nega em “ Ópio”. Dessa
taque: Neto ante o apagamento do ropeia para os países africanos é aporia, o pensador João Papelo des-
outro, a visão cultural, a revolução resumida em “ Atingir o zero”. Na vela-nos a tese de Freud segundo a
cultural; o enfoque da dignidade óptica do estudioso, a Estética da qual o que é negado está sempre no
humana, o pan-africanismo. Con- Negação empreende artifícios ter- inconsciente. Assim, pairava pelo
tudo, sem descurar a advocacia da minológicos, o “Não”; bem como inconsciente imaginário de Neto
revolução económica. Segundo o ideológicos, como os do plano de- quer a infância, quer a juventude
ensaísta, na base dos Estados repou- notativo no poema “Noite”(Papelo, perturbada pela imposição do Ou-
sam os seus mentores, como é o caso 2022:11-12). Elegendo como corpus tro, o colonizador, a quem dá um
de Manguxi. Então, na linha de Má- da exegética literária os poemas “ A “Não”, rejeitando, sob esse viés,
rio Ferraz, o Estado angolano é tri- Renúncia Impossível”, Ópio” e “Não me o modelo de convivência propos-
butário do caudal literário de Neto. peças sorrisos”, o pesquisador enfoca to pela elite salazarista. Por outro
Para o investigador, a primeira tese
de Neto tem que ver com a cultura
estratégica angolana, que se resume
no posicionamento de Neto ante a
subjugação colonial. Neste tópico,
seguindo o ensaísta, convém des-
tacar os vectores culturais, enraiza-
dos na tradição africana, por meio
da literatura eivada de Negritude;
os vectores históricos, baseados na
experienciação de Neto das agru-
ras do regime colonial e os vectores
políticos, os da exigente necessida-
de de liberdade individual e /ou co-
lectiva. A segunda tese tem que ver
com o pensamento de Neto sobre
a construção do Estado angolano.
Neste particular, o autor levanta um
conjunto de interrogações, dentre
as quais, se algum dia chegamos a
compreender Agostinho Neto, por-
quanto a nossa realidade sociocultu-
ral, política e económica parece de-
notar a não compreensão das aspi-
rações e dos anseios do projecto so-
cial de Agostinho Neto para Angola.
Não sabíamos, até mantermos con-

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

lado, há, no inconsciente estético mente, identidades flutuantes, ou Referências bibliográficas


de Manguxi, o despertar das cons- em tânsitos; os lugares afiguram-se
ciências à luz da proposta cultural espaços identitários contínuos, com Anderson, Benedict. (1989). Nação e
e social da Geração da Mensagem, os quais se podem identificar vivên- Consciência Nacional. São Paulo: Ática.
advoga o autor do livro. cias, e/ou relações histórias, consu- Carvalho, Paulo de. (2022). Liberda-
AINDA O MEU SONHO, coordena- madas pela palavra. Exemplo disso de, Angolanidade e Direitos de Cidada-
ção/organização do Prof. Associado é o enunciador de “Adeus à hora da nia em Seis poemas de Agostinho Neto.
Manuel Muanza, congrega pesqui- largada”, quando se enuncia lugar Luanda: Mayamba.
sadores desde os Estudos Literá- em relação com os dilemas do con- Ferraz, Mário. (2022). Apologia do
rios, aos da Política, aos da Socio- texto: “ somos as crianças nuas das Estado e da Nação. Ensaio sobre a re-
linguística. Trata-se de uma espécie sanzalas do mato/no bairro de pre- construção do pensamento político de
de Cátedra Agostinho Neto, sem tos/além aonde não chega luz eléc- Agostinho Neto.Luanda: Mayamba.
memória na Comunidade Críti- trica” (Miguel, 2022:97-98). No poe- Guyau, Jean- Marie. (2009). A Arte
ca Angolana. Cada um no corre- ma “Noite”, o sujeito de enunciação do Ponto de Vista Sociológico. São Pau-
dor da sua esfera do saber avoca exterioriza o seu lugar decorrente lo: Martins Fontes.
a função pedagógica de subsidiar da relação com o meio circundante, Mbembe, Achile. (2017). Políticas da
aos Estudos Netianos mais um de- o seu marginal lugar. Desde logo, Inimizade. Lisboa: Antígona.
grau epistemológico da tão vasta a sua periferia social:” Eu vivo/nos Miguel, Bernardo. (2022). Lugares
memória sobre Kilamba. Nesse co- bairros escuros do mundo/sem luz em Neto. Luanda: Mayamba.
légio de estudiosos, damos ênfase nem vida”(Miguel, 2022:100). Em More, Thomas. (2015). Utopia. São
ao texto Angola como Itália: Poemas Marc Augé, com cujas ilações Ber- Paulo: Martin Claret.
de Neto Unem Nações, de Giorgio nardo Miguel comunga, os lugares Muanza, Manuel. (2022). Histórias
de Marchis, da Cátedra Agostinho transpõem a referencialidade físi- Curtas da Vida de Agostinho Neto. Lições
Neto, Universidade Roma Tre, Itá- ca, sinalizando duas dimensões, a de Simplicidade para as gerações de gover-
lia. Neste texto, o leitor encontra a saber: a linguística e a imaginária. nantes angolanos. Luanda: Mayamba.
rota que a poesia de Neto tomou, Na obra de Bernardo Miguel, o re- Muanza, Manuel (coord./org.).
enquanto instrumento unificador cepcionista encontra infinitas repre- (2022). Ainda O Meu Sonho. Luan-
de nações, por via da revisitação das sentações de lugar enunciadas pelo da: Mayamba.
relações entre Roma e o Reino do predicador poético em dezoito tex- Nora Pierre. (1984). Le Lieux de mémoi-
Congo. Outrossim, enfatizar, pela di- tos peomáticos de Agostinho Neto. re – I: La République. Paris: Gallimard.
mensão diplomática e histórica, um Os lugares dos enunciadores de Papelo, João. (2022). A Liberdade
outro, Neto no Vaticano, de Manuel Neto, de certo, captam os do ima- nos Olhos. A estética da negação em Sa-
Muanza, no qual se ressalta a mu- ginário de muitos de nós, porquan- grada Esperança e A Renúncia Impos-
dança da visão ocidental sobre a luta to a convivência nos arrolou numa sível. Luanda: Mayamba.
dos movimentos de libertação, após imensidade de territórios sociais Platão. (2013). A República. São
audiência do Papa Paulo VI a Agos- símiles aos dos musseques e bairros Paulo: Martin Claret.
tinho Neto, há quase seis décadas. de pretos, textualizados por Kilam- Quino, António. (2022). António
Nos Estudos Netianos, o lugar da ba. O auditório concordará comigo, Agostinho Neto: O Caminho das Estre-
memória pode testemunhar Os Lu- pois não são os lugares que alme- las. Luanda: Mayamba.
gares em Neto, livro do pensador an- jamos para as gerações vindouras.
golano Bernardo Miguel. Sob esco- Por esta exacta razão, deste lugar,
* Professor Auxiliar adstrito ao Depar-
ra de Não - Lugares –Introdução a uma de que vos falo, faço votos de que tamento de Ensino e de Investigação
Antropologia da Sobremodernidade, de a memória do Poeta-Maior seja o Científica de Letras na Escola Supe-
rior Pedagógica do Bengo onde, para
Marc Augé, o docente universitá- “AMANHECER” para o edifício do além de Regente da Área de Literatu-
rio identifica os espaços poéticos no “HOMEM NOVO”. ra, dirige o respectivo Departamento.
caudal literário de Agostinho Neto. Viva Agostinho Neto! Membro efectivo da Cátedra de Lín-
gua Portuguesa da UCAN e Pesqui-
Sendo os não-lugares espaços tran- Viva Angola! sador do CEL- Centro de Pesquisa
sitórios, que podem sinalizar, igual- Muito obrigado. em Letras da Univesidade de Évora.

31
Estudos

LÍNGUAS VIVAS, LÍNGUAS MORTAS


E LÍNGUAS BLOQUEADAS
Reflexões Sobre a Questão
Linguística em Angola e Mais Além
Por: Maria da Conceição Neto*

Resumo menos. Aceitando esta premissa, é Mais recentemente, houve em 2022


Na história da Humanidade, em to- urgente identificar os bloqueios que uma Conferência internacional no
dos os continentes, muitas línguas impedem o seu desenvolvimento – e Arquivo Nacional de Angola e tam-
floresceram e acabaram por desa- combatê-los com algo mais do que bém aconteceu a “1ª Conferência
parecer, por causas e circunstâncias discursos emotivos sobre o passado. Internacional sobre Línguas de
diversas. Àquelas que ainda reco- Angola no Sistema de Educação e
nhecemos mas já não têm popula- Palavras-chave: Política linguística, Ensino”.1 Em Maio desse ano o jor-
ções que as falem e as transmitam diversidade linguística, línguas vi- nal CULTURA dedicou ao tema um
aos seus descendentes, chamamos vas, línguas mortas. dossier, com destaque para o histo-
«línguas mortas», mesmo que sobre- Agradeço aos organizadores deste rial que o Dr. Virgílio Coelho ali fez
vivam em documentos escritos ou Colóquio a oportunidade que me das políticas preconizadas em An-
em cerimónias rituais (é o caso do foi dada para, mais uma vez, tro- gola (quase todas falhadas) desde
Latim em algumas igrejas cristãs). car ideias sobre questões que afec- 1975 à actualidade.2 Concordando
Da maioria das línguas perdidas na tam o presente e o futuro de todos ou não com as opiniões e conclu-
História nem sequer temos registo, nós. Entro no tema com a reserva sões veiculadas, o que quero salien-
ou temos registos que não sabemos de quem não é especialista de Lin- tar nesta introdução é que o pro-
interpretar. Quase por acaso, foi guística nem de Pedagogia (como blema não está na falta de análises e
possível compreender a língua do outros participantes) mas procura debates, pois quase tudo já foi dito
Antigo Egipto, que já ninguém fala, contribuir utilmente para o debate, e escrito sobre a importância de se
decifrando a sua escrita. Mas essa foi como historiadora e como cidadã desenvolverem as línguas africanas
a excepção, não a regra. Se a vida, a que, há décadas, vem acompanhan- de Angola e sobre o contraste entre
morte e a transformação das línguas do os altos e baixos das políticas lin- os discursos oficiais e o declínio a
fazem parte da História, se nenhu- guísticas e culturais em Angola.
ma língua é eterna, devemos inco- A África é, como todos sabemos,
modar-nos com a perda da diversi- um continente de enorme riqueza 1
Jornal de Angola (2022, Dezembro 24): “O Ministério
dade linguística no nosso país? Sim. linguística, mas com a riqueza vêm da Educação prevê inserir, a partir do próximo ano
lectivo, no ensino primário, sete Línguas Nacionais
Mas porquê? Evitando discutir o problemas associados a essa diversi- bantu no subsistema de ensino nacional, tão logo
que nos parece acessório (a que lín- dade, sendo legítimo prever que o que se conclua a formação de professores e a pro-
dução de gramáticas, informou, esta terça-feira, em
guas devemos oficialmente chamar interesse pelo tema não se esgota- Luanda, a ministra Luísa Grilo.” … “Luísa Grilo referiu
que a inserção e utilização escolar das Línguas de
“nacionais”, “regionais”, “africanas”, rá tão cedo. Em Angola, nos quase
Angola no Sistema de Educação e Ensino é um im-
“originárias” etc.) procuraremos 50 anos da nossa independência, perativo da Constituição, da Lei de Bases do Sistema
de Educação e Ensino e da Transformação Curricu-
reflectir sobre o essencial: a deca- foram inúmeros os Simpósios, Co- lar rumo à tão desejada qualidade do ensino. Mas a
dência evidente (actual) e o risco de lóquios e Conferências cujos par- qualidade que tanto se almeja, para ser completa,
observou, deve incluir, também, o conhecimento
desaparecimento (num futuro não ticipantes discutiram, criticaram, local, geralmente expresso nas Línguas de Angola”.
muito distante) de várias línguas de lamentaram, extraíram conclusões 2
Virgílio Coelho (2022, Outubro 26). A problemática
das Línguas Nacionais em Angola. Cultura – Jornal
Angola – e não só as que têm pou- e recomendações de amplos deba-
Angolano de Artes e Letras, nº 235, 20-30. O autor for-
cos milhares de falantes, ou ainda tes, na esperança de ver resultados. nece também importantes referências bibliográficas.

32
MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

que assistimos na prática. E embo-


ra seja importante para as políticas
linguísticas definir o estatuto jurídi-
co das línguas de um país (se são
“nacionais”, “oficiais”, “regionais”,
“africanas”, “originárias” etc.), ao
fim de tantos anos de discussão,
não creio que resida na terminolo-
gia o essencial do problema, que é,
em resumo, a decadência evidente
(actual) e o risco de desaparecimen-
to (a curto ou médio prazo) de vá-
rias línguas de Angola – e não só as
que têm apenas poucos milhares ou
umas centenas de falantes.
O problema não se resume a uma
disputa entre o Português e as prin-
cipais línguas bantu de Angola. A
questão da desigualdade /discrimina- Este não é um problema específi- (língua galo-românica) ou o bretão
ção/ hegemonia nas relações interlin- co de Angola e não ocorre apenas (língua celta).4 Em sentido contrá-
guísticas ocorre também, em várias com as línguas dos antigos coloni- rio, temos o exemplo do Húngaro,
zonas, com línguas bantu, já para não zadores. Na África central e orien- língua minoritária, isolada e em ris-
mencionar as muito minoritárias lín- tal, o Kiswahili tem força de língua co de extinção no início do século
guas dos !Kung (Khoisan). Mudanças oficial em vários países e continua a dezanove. Sem alfabeto próprio, era
demográficas importantes, antes, du- desenvolver-se extraordinariamen- considerada inferior, uma língua de
rante e depois das últimas guerras, te (aliás, aproximando-se do leste camponeses, por contraste com o
provocaram profundas alterações no de Angola), mas esse fenómeno foi Alemão, a “língua culta” falada e
mapa linguístico angolano que, diga- acompanhado da subalternização e escrita pelas elites escolarizadas da
-se, nunca foi de fronteiras estáticas. enfraquecimento de outras línguas Hungria. Mas o nacionalismo anti
Frequentemente, maiorias tendem locais. Na parte ocidental da actual austríaco revitalizou a língua hún-
a abafar minorias: veja-se a situação República Democrática do Congo gara, cujo desenvolvimento literário
dominante do Umbundu na Huí- foi o Lingala que passou de uma e científico é hoje inegável.
la e no Namibe, face ao Lunyaneka língua do noroeste do país a língua Na história da Humanidade, em
ou ao Txihelelo; ou a língua Cokwe franca e língua do aparelho de Esta- todos os continentes, muitas lín-
nas Lundas face às restantes línguas do, até se tornar a língua principal e, guas floresceram e desapareceram,
como o Urund, o Txiluba e outras.3 depois, a língua materna de milhões por causas diversas. Àquelas que já
de Congoleses, e de um número não têm populações que as falem e
importante de Angolanos também. as transmitam, chamamos “línguas
3
O professor universitário e linguista Muteteca Naue- Mas podemos sair de África, des- mortas” (ou extintas), mesmo que
je, entrevistado no Dundo pelo Jornal de Angola
(2022, Fevereiro 21) comentou essa hegemonia do
fazendo a ideia equivocada de que sobrevivam em documentos escritos
Ucokwe, segundo ele funcionando como “língua de estes são problemas específicos de ou em cerimónias rituais (é o caso do
unidade” na Lunda-Norte, onde convivem popula-
ções de língua Txiluba, Ukongo, Urund (Lunda), Ban- países colonizados: em França, onde
gala, Upende e outras “que carecem de um estudo historicamente coexistiam diversas
profundo das autoridades, para se ter a noção real
de quantas existem, o número de falantes e a possi- línguas, a política estatal de impor 4
É interessante consultar a Carta europeia de línguas
bilidade da criação do alfabeto com vista a conser- exclusivamente o Francês como regionais ou minoritárias que vigora desde 1998
vação, preservação e divulgação”. Muteteca Nauege (Convenção adoptada em 1992 pelo Conselho da Eu-
considera que a inserção de línguas como o Cokwe língua de escolaridade fez pratica- ropa, em Estrasburgo) e, entre outras coisas, procura
no sistema de ensino é um ponto de partida para a mente desaparecer aquelas línguas, proteger línguas da Europa historicamente margina-
sua valorização. https://www.jornaldeangola.ao/ao/ lizadas em muitos Estados da União Europeia. Não
noticias/cokwe-considerada-a-lingua-de-unidade/ como o Occitano ou Languedoc foi ainda ratificada por todos eles.

33
Estudos

Latim em algumas igrejas cristãs). informações que podem atravessar mas um verdadeiro direito a entra-
Da maioria das línguas perdidas na o tempo (de geração em geração) e rem, por exemplo, nos principais
História nem sequer temos registo, o espaço (se puderem chegar a ou- órgãos de imprensa escrita e na lite-
ou temos registos que não sabemos tras sociedades). A importância da ratura, coisa actualmente muito rara.
interpretar. Quase por acaso, foi pos- escrita na história da Humanidade O problema de quase sempre se
sível há apenas 200 anos compreen- foi, entre outras coisas, a de permi- associar, no nosso imaginário e nos
der a língua do Antigo Egipto, que tir que as palavras viajassem além debates públicos, “línguas bantu”
já ninguém fala, decifrando a sua dos limites do tempo e do lugar com “tradição” e “ancestralida-
escrita, que já ninguém escreve des- em que eram produzidas. Por isso, de” é que, implicitamente, se lhes
de há quase 2000 anos.5 Mas essa foi quando morre uma língua sem que recusa o papel de línguas capazes
uma excepção a confirmar a regra. dela fique registo, perdemos para de acompanhar as transformações
Se a vida, a morte e a transforma- sempre conhecimentos que ela nos sociais e culturais do presente. E o
ção das línguas fazem parte da His- poderia transmitir. presente africano é já mais urbano
tória, e se nenhuma língua é eterna, Por outro lado, as línguas vivas, que rural; o presente africano está
é legítimo perguntar se nos faz real- exactamente porque são vivas, es- permeado de internet e das novas
mente falta a diversidade linguística tão em permanente evolução. Não redes sociais que nela se formam;
no nosso país. Defendo que sim – e podemos adivinhar que “angolês” o presente africano não pode estar
não é só porque o desaparecimento falarão os nossos descendentes da- de costas para os avanços tecnoló-
de uma língua é uma enorme per- qui a cem anos. Acho, aliás, estra- gicos, nem à margem das lutas por
da para a história e a cultura de um nho ouvir alguém dizer que fala “a um mundo melhor – avanços e lu-
povo (embora se deva sublinhar língua de Camões”, porque se Ca- tas a fazer em qualquer lugar e em
que a identidade de um povo não mões ressuscitasse nenhum de nós qualquer língua.
depende apenas da língua). Mas a o iria entender com facilidade… Estando, como têm estado, alhea-
morte de uma língua é mais do que Tal como se Kimpa Vita hoje apa- das dos sectores vitais para o de-
isso: é uma perda para o conheci- recesse, muito poucos entenderiam senvolvimento do país (o ensino, a
mento do mundo, é uma perda o Kikongo dos seus discursos. pesquisa, a inovação tecnológica, a
para o desenvolvimento das ciên- Sendo as mudanças inevitáveis, deve- comunicação social ampla, os gran-
cias, da filosofia e do pensamento mos dar às várias línguas africanas de des debates de ideias) as línguas
da humanidade em geral. Porque Angola (e não só às principais) opor- bantu de Angola tornam-se veículo
todos os povos foram exprimindo tunidade e meios de se adaptarem às fácil para as ideias mais conserva-
nas suas línguas o conhecimento, novas realidades e de se afirmarem doras e até retrógradas, ao mesmo
mais empírico ou mais teorizado, como veículos de conhecimento, tempo que se vai alargando o fosso
das múltiplas realidades com que mais do que serem apenas guardiãs cultural entre gerações e entre a
se confrontaram. Todas as línguas de tradições. Desde logo, dar-lhes o cidade e o campo. Confinadas ao
– todas – transmitem saberes, téc- direito à escrita, de que nem todas mundo rural e a espaços religiosos,
nicas e interpretações do mundo. ainda gozam, apesar dos notáveis es- pontualmente incluídas num míni-
Uma língua não é apenas um meio forços do Instituto de Línguas desde mo de programas noticiosos e oca-
básico de comunicação para a vida os primeiros anos da independência.6 sionalmente celebradas na música
em sociedade; uma língua é, tam- Um direito à escrita, note-se, que urbana, as línguas assim “bloquea-
bém, um repositório dinâmico de não pode limitar-se à existência de das” dificilmente terão oportunida-
um alfabeto adaptado às suas carac- de de expressar as vivências, preo-
terísticas e alguns manuais básicos, cupações e visões do mundo dos
5
A “Pedra de Rosetta” (El-Rashid), de um monu- jovens dos centros urbanos, que
mento do antigo Egipto, com um decreto do faraó
Ptolomeu V (196 a.C.), permitiu decifrar os hierógli- são a maioria da população – aqui
fos egípcios (Jean-François Champollion em 1822), 6
Em 1987 (Resolução n.º 3/87, de 23 de Maio) o Con- como em toda a África.
porque incluía o mesmo texto escrito em Egípcio selho de Ministros da República Popular de Angola
demótico (escrita mais recente que os hieróglifos) e aprovou, a título experimental, os alfabetos das lín- Uma nota optimista são os casos
Grego antigo. Encontrada em 1799 na zona do del- guas Kikongo, Kimbundu, Cokwe, Umbundu, Mbun-
pontuais da introdução de algumas
ta do Nilo, foi levada pelos Franceses, mas acabou da e Oxikwanyama e as suas respectivas regras de
na mão dos Britânicos após a derrota de Napoleão. transcrição fonética. línguas africanas no ensino geral, a

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

título experimental, desde há uns não apenas preservação). Falar de em diversas regiões a alfabetização
poucos anos. E a decisão de, já a bloqueios obriga a considerar o le- chegou antes da língua portuguesa.
partir do próximo ano lectivo, vá- gado colonial – não o dos tempos Foi há cerca de cem anos, em 1921,
rias línguas bantu poderem entrar remotos de Diogo Cão ou de Paulo que as línguas bantu de Angola so-
no subsistema de ensino primário Dias de Novais, mas o dos anos pós- freram o primeiro grande bloqueio
nacional. Não duvidamos que ha- -Conferência de Berlim, quando a ao seu desenvolvimento, que estava
verá dificuldades com professores e ocupação colonial se estendeu ao em curso (com destaque para as de-
meios de ensino, que é problemáti- conjunto do território.7 mograficamente mais importantes:
co definir onde se ensinará o quê, e Na colónia portuguesa de Ango- Umbundu, Kimbundu e Kikon-
que o sucesso pedagógico não está la (a qual, até às últimas décadas go), após mais de 30 anos a serem
garantido, mas é um passo necessá- do século dezanove, não incluía utilizadas nas escolas (básicas) das
rio. Obviamente, não basta escolari- a maior parte do nosso território Missões cristãs, na fase de expan-
zar; é preciso alimentar a informa- actual) as línguas africanas não ti- são missionária do final do século
ção escrita nas diversas línguas para veram de lutar pela sobrevivência, dezanove e início do século vinte.
que isso faça sentido. Que vantagem até ao século vinte. Antes pelo con- Ou seja, as primeiras gerações de
há em estudar numa língua em que trário, queixavam-se autoridades escolarizados nas Missões, naquela
só se possam ler textos religiosos coloniais em séculos anteriores de época, foram-no na sua língua, não
ou conselhos sobre saúde ou regras que havia o “mau hábito”, mes- em Português. A criação de alfabe-
de civismo?... A projecção intelec- mo entre os Portugueses que vi- tos adaptados (variando de acordo
tual das línguas africanas, para que viam em Luanda, de se falar mais com a língua dos missionários) dera
possam afirmar-se no século vinte e Kimbundu do que Português no origem à produção de vocabulários,
um, sai cara e obriga ao empenho universo doméstico. A língua por- esboços de gramáticas, traduções bí-
e investimento dos que escrevem, tuguesa era, obviamente, a língua blicas e diversas publicações religio-
traduzem e publicam, e essa não é oficial e tinha também a sua im- sas e didácticas, obra de missionários
tarefa para deixar apenas ao Estado. portância nas relações diplomáticas católicos e protestantes e dos seus
Num tom mais pessimista, por outro formais com chefias africanas inde- indispensáveis auxiliares africanos,
lado, tem sido frustrante a experiên- pendentes ou semi-dependentes, fazendo prever um futuro promis-
cia de ensino de línguas bantu na ou na distinção identitária de al- sor. Se naquelas línguas se podiam
Universidade pública, a julgar pelos guns grupos sociais africanos mais traduzir os Evangelhos cristãos com
exemplos que conheço. A sua pre- “europeizados” (geralmente bilin- toda a sua complexidade, certamen-
sença no currículo deveria permitir gues, em maior ou menor grau). te se poderiam traduzir outros tipos
aos estudantes ganharem pelo me- Quanto ao comércio no interior, o de textos. Foi então que o decreto
nos uma competência linguística me- papel de “língua franca” coube ao nº 77 de 1921, do Alto-Comissário
diana (que a maioria não tem por vi- Kimbundu e ao Umbundu, res- de Angola José Norton de Matos
vência directa). Mas não é com duas pectivamente, nos dois principais determinou que toda a escolarida-
horas semanais e meios rudimenta- eixos leste-oeste que alimentavam a de na colónia se fizesse apenas em
res de ensino que se prepara alguém economia da colónia. Comerciantes língua portuguesa, podendo as lín-
para fazer entrevistas ou inquéritos, e missionários, muitas vezes prece- guas locais ser usadas na catequese.8
para traduzir uma sessão no tribu- dendo a ocupação militar e admi- As escolas oficiais do Estado sempre
nal, ou simplesmente atender pes- nistrativa portuguesa, aprenderam tinham ensinado apenas em Por-
soas numa repartição do Estado… as línguas locais e não o contrário, e tuguês, mas destinavam-se a uma
A referência a línguas “bloquea- pequena minoria, comparada com
das” é aqui uma simples metáfora o número dos que aprendiam a ler
que visa chamar a atenção para os 7
Retomo em parte, nos parágrafos seguintes, um tex- e escrever nas Missões cristãs. Mais
obstáculos colocados no caminho to publicado há mais de 25 anos: Neto, M. C. (1997).
Ideologias, contradições e mistificações da coloni-
do que seria o desejável e natural zação de Angola no século XX. Lusotopie – Enjeux
contemporains dans les espaces lusophones, vol. I, 8
Esse decreto, seguindo as leis republicanas de sepa-
desenvolvimento das nossas lín-
327-359. Disponível em: http://www.lusotopie.scien- ração das Igrejas e do Estado, dava reconhecimento
guas africanas (desenvolvimento e cespobordeaux.fr/neto97.pdf jurídico às missões protestantes na colónia de Ango-

35
Estudos

tarde o ensino oficial alargou-se,


continuando a língua portuguesa a
ter a sua exclusividade. O impacto
desse afastamento das línguas afri-
canas da escola foi enorme, mesmo
que alguns aprendessem informal-
mente a ler e escrever nessas línguas
e não fossem proibidas traduções de
textos religiosos. Trinta anos depois,
confrontado com a insuficiente ge-
neralização da língua portuguesa e
uma das mais altas taxas de analfa-
betismo das colónias europeias em
África, o Estado português deu um
pequeno passo atrás, admitindo que
o emprego de “idiomas nativos” te-
ria forçosamente um papel, embo-
ra transitório, na escolaridade da
maioria da população.9
O segundo golpe no desenvolvi-
mento das línguas bantu de Angola
veio com a discriminação jurídica
consolidada com o “Estatuto dos
Indígenas” entre 1926 e 1961, que contrário do que por vezes se afirma, integração de milhares de angola-
considerava a grande maioria da nunca houve lei que proibisse falar nos nas forças armadas portuguesas
população da colónia como “não ci- as línguas bantu mas, proibindo-as tiveram o mesmo efeito.
vilizada”. O domínio da língua por- no sistema de ensino e exigindo-se É preciso não esquecer, porém, que
tuguesa era condição exigida para o abandono da sua prática para os até 1975 mais de 70% da população
obter o estatuto de “civilizado” e os que queriam obter o estatuto de de Angola era rural e a ocupação
direitos de “cidadão português”. Ao “civilizado” (e portanto “cidadão”), portuguesa na maior parte do ter-
essas línguas foram marginalizadas ritório tinha durado menos de cem
e marcadas com o selo da inferiori- anos. Quase todos os Angolanos ti-
la e garantia a liberdade de todas as formas de culto. dade atribuída aos “não civilizados”. nham uma língua bantu como língua
Mas do ponto de vista linguístico impedia a continui-
dade da instrução dos ditos “indígenas” nas línguas
Isso explica a opção pelo Português materna, a maioria fazia um uso limi-
vernáculas. Artº 3º §1: “É vedado na catequese das como primeira língua (e depois tado da língua portuguesa, e muitos
missões, nas suas escolas e em quaisquer relações
com os indígenas o emprego das línguas indígenas como única língua) em alguns sec- eram bilingues ou trilingues, depen-
por escrito [sublinhado meu] ou de outra língua que tores da sociedade angolana, embo- dendo da sua experiência de vida.
não seja a portuguesa, por meio de folhetos, jornais,
folhas avulsas e quaisquer manuscritos”. O texto em ra, como já referido, à maioria dita Entre os que dominavam bem o Por-
Português poderia ser acompanhado de uma versão “indígena” não se impusesse o uso tuguês, muitos podiam entender e
paralela na língua local e o uso das línguas africanas
era apenas (Artº3º §3) “permitido transitoriamente e do Português. Após 1961, abolido o falar também alguma língua africana,
enquanto não se generalizar entre os indígenas o co-
“Estatuto dos Indígenas” e estendi- com maior ou menor facilidade. Era,
nhecimento da língua portuguesa”. Ver, entre outros,
Henderson, L. (2015). A Igreja em Angola: um rio com da a cidadania portuguesa a todos como facilmente se constata, uma
várias correntes. Luanda: Livraria Barquinho, p. 287.
os colonizados, deu-se também a situação muito diferente da actual.
9
O artigo 6º do “Estatuto dos Indígenas” de 1954
(Decreto-Lei n.º 39.666 do Ministério do Ultramar, unificação do ensino, com a corres- Fenómeno relativamente recente,
de 20 de Maio), após referir os objectivos do en- pondente expansão da escolaridade portanto, o recuo das línguas bantu
sino “especialmente destinado aos indígenas”, de-
termina (Artº 6º, § 1º): “O ensino a que este artigo a contribuir para uma maior difusão face ao Português foi sobretudo con-
se refere procurará sempre difundir a língua por-
da língua portuguesa na população sequência da urbanização, do uso
tuguesa, mas, como instrumento dele, poderá ser
autorizado o emprego de idiomas nativos”. jovem. A crescente urbanização e a exclusivo do Português em todos os

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

a situação é ainda mais evidente).


O bilinguismo e o multilinguismo,
no plano individual como no plano
colectivo, são uma vantagem cultu-
ral, que se pode traduzir em vanta-
gem económica e política, pois mul-
tiplicam as nossas capacidades de
resposta aos problemas e, portanto,
as oportunidades de um desenvol-
vimento que sirva a sociedade de
hoje e as gerações futuras.
Praticamente duas gerações depois
da independência (passaram qua-
se 50 anos) temos de admitir que
nós, Angolanos, temos, em relação
à diversidade linguística nacional,
problemas de definição de políticas
concretas e de práticas educativas
eficazes, que exigem maior investi-
mento financeiro e humano nas ins-
tituições competentes.11 Mas temos,
sobretudo, problemas de atitude
quanto à importância a dar, a par da
níveis de ensino e nos serviços públi- nacional, confundindo-se unicidade língua portuguesa, às outras línguas
cos em geral. Logicamente, estabe- linguística com identidade nacional, de Angola, aquelas cujo desenvol-
leceu-se a associação entre a língua veio contribuir, também, para lhe vimento está bloqueado mas ainda
portuguesa e o prestígio social, o reforçar o estatuto de superioridade continuam bem vivas. Quanto às que
acesso à formação técnico-científica e face às outras línguas do país. Vale a estão ameaçadas de se tornar línguas
a ascensão económica e social, com pena referir que os equívocos nas re- mortas, pelo muito reduzido núme-
os correspondentes reflexos a nível lações entre língua e identidade na- ro de falantes, é urgente registá-las
político. Estes aspectos não foram cional têm jogado entre nós nos dois (conversas, narrativas, léxicos, pro-
corrigidos no período pós-indepen- sentidos: para uns, quem não domi- vérbios, canções…) sob todas as for-
dência, apesar das mudanças anun- na a língua portuguesa tem um dé- mas possíveis, para memória futura.
ciadas logo nos primeiros anos de fice de angolanidade; para outros é E espero que, daqui a 20 anos, os jo-
governação do MPLA, cujos líderes exactamente o contrário: quem não vens que hoje nos ouvem possam di-
estavam conscientes do problema e fala uma das línguas bantu tem um zer com orgulho que a situação mu-
se propunham resolvê-lo. Aliás, há défice de angolanidade. Ambas as dou e que Angola se tornou exemplo
muitos exemplos de notícias, comu- posições ignoram (ou pretendem ig- de um país multilingue bem-sucedido.
nicados, boletins e outras publicações norar) que a língua é apenas um dos
do MPLA feitas em línguas nacio- marcadores possíveis da identidade * Professora de História de Angola
nais (como são usualmente chama- de uma pessoa ou de um grupo, e de Epistemologia da História na
das) durante a luta de libertação.10 dependendo o seu uso e evolução Faculdade de Ciências Sociais da
A insistência no papel da língua das circunstâncias históricas con- Universidade Agostinho Neto.
portuguesa como factor de unidade cretas. Vários exemplos no mundo
mostram nações plurilingues e, no
extremo oposto, línguas que se espa- 11
Veja-se, neste mesmo Colóquio, a esclarecedora
10
Uma simples pesquisa no portal da Associação Comunicação “Problemática do ensino em contex-
lham por várias nações (e se em vez
Tchiweka de Documentação (www.tchiweka.org) to de multilinguismo em Angola: Problemas e solu-
pode confirmar isso. de “nações” analisarmos os Estados, ções” da professora Maria Helena Miguel (UCAN).

37
Estudos

ONOMÁSTICA, TOPONÍMIA E
IDENTIDADE NACIONAL EM ANGOLA*
Por: Virgílio Coelho**

Resumo: O presente texto consti- ção que apresentei no Encontro sobre da, 2022, pp. 121-152, no prelo);
tui a segunda e terceira partes de Toponímia e Identidade Nacional, or- entretanto, um resumo desse mes-
um longo trabalho em prepara- ganizado pela Academia Angolana mo material, intitulado «A proble-
ção, denominado Línguas nacionais, de Letras (AAL), no dia 28 de Ou- mática das Línguas Nacionais em
onomástica e identidade nacional que, tubro de 2022, no Centro de Im- Angola: em busca de um estatuto»,
condensado, resultou a comunica- prensa Aníbal de Melo (CIAM), em foi publicado em Cultura. Jornal
Luanda. A primeira parte desse tra- Angolano de Artes e Letras (Luanda,
balho, que aborda especificamen- Ano VIII, n.º 235, 26 de Outubro
te a questão das línguas nacionais de 2022, pp. 20-30). Finalmente,
* Este material constitui parte da actividade refle-
xiva que venho desenvolvendo há já alguns anos em Angola, foi integrada na obra o texto que o leitor tem em mãos
e que deverá constituir um dos capítulos de uma colectiva Letras sobre as Línguas de aborda as questões que especificam
obra em preparação que deverá integrar essa vas-
ta problemática. Agradeço os comentários efec- Angola, coordenada por Paulo de o título deste trabalho: inclui uma
tuados por alguns colegas, o que me permitiu limar
Carvalho e António Quino (cf. Aca- abordagem sobre os problemas re-
arestas e melhorar algumas das ideias aqui apos-
tas. As responsabilidades são obviamente minhas. demia Angolana de Letras, Luan- lativos à onomástica/onomatologia

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

em Angola, destacando, sobretudo, tem qualificado como «poder po- Berlim.1 Com efeito, com a excep-
questões de linguística em que a lítico tradicional» —, diversidade ção de alguns poucos casos,2 essa
toponímia e a antroponímia cons- geográfica, linguística e cultural; e premissa continua a ser válida ain-
tituem o seu ordenamento clássico, múltipla estruturação económica e da hoje e tem possibilitado que os
e, finalmente uma introdução à social a que tiveram, numa primei- países africanos não se digladiem
discussão sobre a nação e unidade ra fase, de aceitar e se submeter e por territórios e povos acomodados
nacional na Angola pós-colonial. numa fase posterior, de procurar durante a época histórica da colo-
Trata-se, com efeito, de questões e dominar e enquadrar. Os povos nização. Mas, visivelmente, essa via
problemas que em quase meio sé- encontrados assentavam sobre uma ou tomada de posição não resolveu
culo de independência não encon- evidência de multilinguismo, dese- a maioria dos problemas que os no-
trou entre os angolanos os consen- nhando e estruturando múltiplas vos senhores no poder tiveram e
sos desejados, porque, ao que me culturas e sistemas de pensamento, têm ainda hoje que se confrontar.3
parece, não têm sido tratadas em onde os contactos a estabelecer não No entanto, uma vez assumidas as
lugares e contextos apropriados, se mostraram fáceis, razão porque regras do poder de Estado, os países
nomeadamente nos círculos acadé- as elites políticas e demais dirigen- africanos foram constatando quan-
micos mais abertos à compreensão tes que lutaram pela independência tas mudanças terão sido efectuadas
de fenómenos e problemas desse — sobretudo aqueles que fizeram a durante a colonização. Por exemplo,
jaez. O que aqui se propõe não é luta armada de libertação nacional em Angola, constatou-se desde os
mais do que um ponto de vista que a partir do exterior —, que na sua primeiros momentos que os nomes
busca a compreensão dos demais. grande maioria eram desconhece- das pessoas, os nomes dos sítios e
doras de muitas das estruturações lugares, das cidades, vilas e demais
Palavras-chave: Angola, África, ono- étnicas das comunidades encon- aglomerações e circunscrições ad-
mástica / onomatologia, toponímia, tradas, entre modelos políticos, ministrativas, eram semelhantes aos
antroponímia, identidade nacional, línguas e culturas componentes de do Portugal colonial e até à data de
problemas pós-colonial. uma diversidade nua e crua, tive- hoje pouco ou quase nada mudou.
ram que aceitá-la e perante esta, Observa-se, portanto, com a maior
decidiram estrategicamente man-
1. Introdução ter a língua de colonização, com
vista a possibilitar os contactos com
1
A história que antecede a famosa reunião da Orga-
Os países africanos, que geralmen- e entre os povos autóctones e, so- nização da Unidade Africana (OUA) primava pela
te estiveram submetidos pela colo- bretudo, nas relações com o mun- mudança a todo custo das fronteiras herdadas
da colonização; sobre o assunto consulte Branco
nização aos países europeus, após do, seja através do inglês, do fran- (2013) Lousada (2010), Santos (2011) e Dopcke
a instauração das independências cês, do português, do espanhol, do (1999). Acerca do que se decidiu leia-se a «Resolu-
tion AHG/Res.16(I), Cairo 21 July 1964 <http://www.
passaram por inúmeros problemas italiano ou do alemão. au.int/en/sites/default/files/ASSEMBLY_EN_17_21_
para perceber as novas condições JULY_1964_ASSEMBLY_HEADS_STATE_GOVERN-
Ao que parece, a questão das fron-
MENT_FIRST_ORDINARY_SESSION.pdf>
encontradas, resultantes sobretudo teiras que, em muitos casos, divi- 2
São conhecidos inicialmente os casos da Eritreia
da luta pela obtenção da indepen- diam um mesmo povo e respectiva e do Djibouti e mais recentemente o surgimento
do Sudão do Sul, países reconhecidos pelo siste-
dência nacional e da liberdade po- língua e cultura, foi em parte e ao ma das Nações Unidas; e, finalmente, o chamado
lítica pós-colonial. Não foi uma si- que se sabe, airosamente resolvi- Estado Islâmico de Azawad, que é uma proposta
militar de um novo Estado que divide a meio a Re-
tuação fácil de entender e absorver, da pela Organização da Unidade pública do Mali, mas que, até a data que escrevo
este artigo, não foi reconhecido mundialmente
porque no novel país independente Africana (OUA), quando numa
por nenhum outro Estado (cf. Branco, 2013; 2012).
foram encontradas novas situações: reunião, que se tornou histórica, 3
Observa-se hoje em dia em alguns países africanos
fronteiras fixas ou rígidas, popula- foi decidido que as fronteiras não o registo de embates dirigidos por indivíduos e es-
truturas militares, que tentam levar adiante a con-
ções e comunidades étnicas com as eram para ser mexidas e cada país quista de espaços ou a busca de territórios com o
mesmas origens divididas de um e tornado independente teria que fim de estabelecer novos países desavindos, con-
trários aos países estabelecidos e independentes;
outro lado da fronteira, múltiplas se ambientar com os arranjos das trata-se de assunto que persiste e cada vez com
mais insistência e perigo para países democrati-
formas de organização política — fronteiras da colonização defini-
camente constituídos. Hoje, em África, os golpes
naquilo que ordinariamente se das após o fim da Conferência de de Estado sucedem-se ao ritmo do quotidiano.

39
Estudos

facilidade, que os nomes de algumas e religiosos, oriundos desde os pri- bressai nos trabalhos especializados
ruas e artérias dos principais centros meiros momentos da proclamação sobre o assunto.
urbanos, o nome dos bairros e ajun- da independência nacional, a soma Assim, para se ter um conhecimen-
tamentos orgânicos, continuam a ser da governação do país nestes quase to mínimo acerca dessas terminolo-
de personagens lusos e a representar meio-século aponta para um cada gias, qualquer estudo especializado
a história de Portugal, antigo país vez maior desconhecimento e incom- ou um bom dicionário é susceptí-
colonizador, enquanto que o sistema preensão dos governados, onde a vel de explicar o que seja isso e o
de representações que são impostos inexistência de estudos sistemáticos que representa. O volume II (G-Z)
pela língua portuguesa, as atribui- e de uma estratégia de resolução de do Dicionário da Língua Portugue-
ções notariais dos nomes das pessoas conflitos constitui a sua maior perdi- sa Contemporânea da Academia das
e das famílias continuam a ser efec- ção. E como a tendência para aque- Ciências de Lisboa (2001: 2668),
tuadas com base nos nomes portu- les que governam continua a ser a apresenta várias acepções de ono-
gueses e, obviamente, na sua língua de ignorar a necessidade de incluir mástica: «1. Ramo da lexicologia
e cultura, factos concretos que con- a universidade para a produção de que tem como objecto de estudo
tinuam a ajudar a impôr as marcas e estudos sobre a realidade objectiva, os nomes próprios, de pessoas e de
os freios da colonização então banida parece-nos ser difícil perceber como lugares. A onomástica divide-se em
e a marcar o espírito característico a questão aqui colocada constitua dois campos: o da antroponímia e
da cultura portuguesa, que escamo- algum contributo para ajudar a de- o da toponímia; 2. Relação dos no-
teou e silenciou o melhor das cultu- belar os males, ou seja, alguns dos mes próprios de uma língua; 3 Ex-
ras das populações e comunidades males conhecidos que por vezes se plicação dos nomes próprios».
sócio-culturais e linguísticas do país. arrastam por décadas e, dentre es- Para António Houaiss (2003: 2678),
A questão que se impõe hoje é o que tes, alguns dos quais aqui apontados. onomástica é: «1. Relação, colecção,
mudar e como mudar essa estrutu- A configuração observada ao nível lista de nomes próprios; 2. Estudo
ração da nomenclatura colonial e dos nomes parece ser o que maior linguístico dos nomes próprios;
quais as bases que devem sustentar visibilidade tem sido observada, onomatologia (compreende várias
todo um trabalho de mudança, sem destacado e reclamado por todos subdivisões, como a antroponímia,
criar os maiores atritos do ponto de aqueles que sobre o assunto têm a astronímia, a mitonímia e a topo-
vista psicológico de uns e de outros reflectido. Parece-me, pois, ser nímia, etc.) 2.1. Parte da lexicologia
e estar baseado num sustentáculo mais avisado começar por abordar que trata dos nomes próprios. 3. Li-
assente no conhecimento científico o problema introduzindo o assun- vro, estudo ou tratado que contém
e técnico, na noção do bem comum, to de modo mais geral e, para tal, tal relação de nomes ou tal estudo».
e sobretudo, entrar no espírito que nada melhor que procurar esclare- Por sua vez, Aurélio Buarque de Ho-
levou muitos dos nossos heróis a cer as bases metodológicas em que landa Ferreira (2003: 1446), em seu
lutar pela independência, e que este trabalho assenta. Novo Aurélio Século XXI: O Dicionário
hoje, se entende estarem a ser traí- da Língua Portuguesa, propõe para
dos por uma política que não vai ao 2. Onomástica e/ou Onomatologia: a o termo Onomástica: «1. Estudo e
encontro da realidade, de suas as- ciência dos nomes investigação da etimologia, transfor-
pirações e que vem sendo imposta Como se sabe, a disciplina que nos mações, morfologia, etc., dos nomes
pelo novel Estado independente, dá a noção que se tem acerca dos próprios de pessoas e lugares; 2. Lis-
cuja prática parece não assentar nomes próprios, de todos os géne- ta ou catálogo dos nomes próprios;
em estudos concretos aprofunda- ros, das suas origens e dos proces- 3. Explicação desses nomes; 4. Con-
dos, nem em estratégias seguras de sos de denominação no âmbito de junto de regras, práticas e repre-
conhecimento, de valorização e de uma ou mais línguas ou variantes sentações que, em cada sociedade
sustentação dos interesses mais ge- dialectais, é conhecida por onomás- ou cultura, estão associadas à atri-
rais sobre a realidade objectiva. tica e/ou onomatologia. Constituindo buição de nomes aos indivíduos».
Mergulhado num imenso emara- ambos os designativos de origem Onomástica é uma palavra originá-
nhado de problemas políticos, eco- grega, no entanto, o primeiro ter- ria do grego antigo, όνομ$στικός, sig-
nómico-financeiros, sociais, culturais mo tem sido aquele que mais so- nificando «acto de nomear, dar nome».

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Etimologicamente, onomástica é um épocas, etc., como Janeiro, Hégi- de linguística, possuindo, no en-
substantivo feminino derivado do ra, Seiscentos, isto é, o mesmo que tanto, um importante vínculo com
adjectivo grego onomastikós, ê, ón > século XVII, e muitos outros; a história, a geografia e algumas
hé ou onomastiké, «arte de denomi- 5) Etnonímia, do grego Éthnos, que outras disciplinas que integram as
nar». Onoma deriva do grego óno- significa «povo», «raça»; os etnóni- ciências humanas e sociais. Mas,
ma, atos, «nome designativo de uma mos são nomes de «castas», raças, tal como começamos por apontar,
pessoa ou de uma coisa» (Houaiss, tribos ou povos, mas também de além da história e de algumas ou-
2002: 2678), sendo, pois, sinónimo comunidades tanto políticas como tras disciplinas, a onomástica tem
de Onomatologia e constituindo, igual- religiosas, desde que possam ser como campo fundamental da sua
mente, um termo oriundo do grego tomadas em sentido étnico, como abordagem a linguística. Para tal,
e que junta duas palavras: ónoma e Brasileiros, Portugueses, Israelitas, Ju- afigura-se-me mais apropriado ver
onomatos, que significam «nome», e lo- deus, Tugues, Angolanos,5 etc.; o lugar e a forma como esta discipli-
gos que significa «tratado», acrescido 6) Hertonomia, do grego herté, que na está enquadrada e estruturada.
do sufixo nominal –ia com os quais se significa «festa»; os heortónimos
obtém a ciência dos nomes em geral. são todos os nomes com que se 3.1. Linguística: lexicologia e lexi-
Assim, os principais ramos da ciên- designam festas populares e con- cografia
cia dos nomes, geralmente designa- sagradas como o Carnaval, Luper- Nesta conformidade, localizamos
dos por onomástica ou onomatologia, cais, Bacanais, Olimpíadas, etc.; facilmente a onomástica e/ou ono-
sendo ambos de origem grega, são, 7) Mitonímia, do grego mýthos, que matologia dentro da lexicologia que
de acordo com Ivo Xavier Fernan- significa «mito»; os Mitónimos é a ciência linguística destinada a
des (I, 1941: 200), os seguintes: são nomes de seres fabulosos e captar os materiais que constituem
1) Axionomia, do grego axia, que sig- mitológicos, sejam designativos um determinado património que
nifica «dignidade»; os axiónimos de entidades, de lugares ou de é fornecido a partir de nomes, e a
são todas as palavras ou locuções animais, como Minerva, Vénus, lexicografia que é a ciência linguís-
com que se indicam tratamento, Baco, Deméter, Juno Moeda, etc.; tica destinada ao desenvolvimento
como Dom, Doutor, São ou Santo, 8) Potanomia, do grego Potamo, que dos dicionários. É que a onomástica
Senhor, Senhora, Vossa Eminência, significa «rio»; os potanónimos são não só é importante para criar co-
Vossa Excelência, Reverendíssimo, os nomes de rios, como Douro, Gua- nhecimentos sobre uma língua, mas
Sereníssimo entre tantos outros; diana, Tejo, Amazonas, Pó, Zaire, etc.; também fornece informação sobre
2) Astronomia, do grego ástron, que 9) Teonomia, do grego Théos, que outras áreas, sobretudo, como vimos
significa «astro»; os astrónomos significa «Deus»; os teónimos são no parágrafo anterior, aquelas rela-
são os nomes de astros, estrelas, os nomes de seres divinos como cionadas com o estudo do passado.
planetas, cometas ou constelações Deus, Padre-Eterno, Santíssima Assim, temos em primeiro lugar de
como o Sol, a Lua, Sírio, Cassiopeia; Trindade, Espírito Santo, Senhor. tentar perceber o significado de lé-
3) Biblionomia, do grego biblion, que sig- No entanto, esse importante le- xico. Acerca disso, a linguista brasi-
nifica «livro»; os bibliónimos são os vantamento não esgota o assunto. leira Maria Cândida Seabra (2006)
nomes de livros de reputação uni- É uma questão a qual poderemos escreve que, tradicionalmente, o
versal, como Bíblia, Alcorão, Talmude, retomar numa outra ocasião, para léxico é definido como o conjunto
Lusíadas, Eneida, Ilíada, Divina Comé- não ultrapassar o espaço que geral- de palavras de uma língua, respon-
dia, Sagrada Esperança,4 entre outros; mente é indicado para um artigo. sável por nomear e exprimir o uni-
4) Cronomia, do grego Khrónos, que 3. Onomástica/Onomatologia: or- verso de uma sociedade. Transmi-
significa «tempo»; os cronóni- ganização e contextualização tidos de geração em geração como
mos são os nomes de qualquer A onomástica e/ou onomatologia signos operacionais, é através dos
calendário, de eras históricas, está inserida sobretudo nos estudos nomes que o homem exerce a sua
capacidade de exprimir sentimen-
tos e ideias e de cristalizar conceitos.
Nesta conformidade, esta autora
4
O acréscimo na citação do nome da obra Sagrada 5
O acréscimo na citação do designativo Angolanos
Esperança de Agostinho Neto é meu, VC. é meu, VC. propõe que o património lexical de

41
Estudos

uma língua constitui um arquivo antes, existem outros vocábulos de Portugal dos estudos sobre antro-
que armazena e acumula aquisições formação semelhante para a expli- ponímia em 1887 na Revista Lusita-
culturais representativas de uma cação do estudo de outras tipos de na (cf. vol. I, n.º 45), um órgão de
determinada sociedade, reflectindo nomes, geográficos ou não, tal como investigação fundado por ele pró-
percepções e experiências multise- já foi apontado anteriormente. prio e da qual foi director durante
culares de um povo. A essa ciência décadas. Posteriormente, publicou
linguística, conclui, dá-se o nome 3.2. Acerca do conceito de Antro- a sua obra mais importante sobre o
de lexicologia (Seabra, 2006: 1953). ponímia assunto, cujo título esclarece os fins
Ainda com base no entendimento Como vimos, o designativo «antro- da mesma: Antroponímia Portuguesa.
de Seabra, a onomástica se integra ponímia» vem do grego ánthro- Tratado comparativo da origem, signifi-
à lexicologia, caracterizando-se como pos (homem) acrescido de onoma cação, classificação, e vida do conjunto
as ciências da linguagem que pos- (nome) e dela resulta o estudo dos dos nomes próprios, sobrenomes, e apeli-
sui fundamentalmente duas áreas nomes próprios de pessoas e se- dos, usados por nós desde a Idade Mé-
de estudo: a Antroponímia e a Topo- res personificados, sendo, por isso dia até hoje (1928).
nímia — sendo ambas constituídas mesmo, parte da onomástica de- Mais recentemente, segundo
por elementos linguísticos que con- dicada ao estudo etimológico dos Eduardo Buzaglo Paiva Raposo,
servam antigos estágios denomina- nomes próprios, dos sobrenomes e investigador na área de linguística
tivos. A Antroponímia6 tem como ob- apelidos. Sendo a onomástica uma no Department of Linguistics da
jecto de estudo os nomes próprios área de estudo com relativa antigui- University of California, em San
individuais, os nomes parentais ou dade, contudo, é recente a introdu- Diego, Estados Unidos da América
sobrenomes e as alcunhas e apeli- ção de estudos sobre antroponímia e coordenador geral da obra em 3
dos (Seabra, 2006: 1953). Quanto a em Portugal, país colonizador de volumes Gramática do Português, os
Toponímia,7 aclara que ela se integra Angola, de onde por certo recebeu antropónimos são os comummente
à onomástica como disciplina que in- influências e as marcas conhecidas chamados nomes de pessoas por-
vestiga o léxico toponímico, através hoje em relação à recepção e atri- que a elas atribuídos. Trata-se do
do estudo da motivação dos nomes buição notarial de nomes lusos. No nome completo, isto é, o chama-
próprios dos lugares. Constitui-se de entanto, convém desde já esclarecer do nome pessoal, nome próprio,
enunciados linguísticos, formados que a maioria dos cidadãos angola- acrescidos dos chamados nomes de
por um universo transparente sig- nos apesar de serem portadores de família ou apelidos, isto é, os nomes
nificante, que reflecte aspectos cul- nomes de origem portuguesa, não de pais e mãe. O nome pessoal, tal
turais de um núcleo humano exis- só não conhecem os lugares espe- como os apelidos da mãe e do pai
tente ou preexistente (idem, ibidem). cíficos de onde são originários e podem ser simples, de um só nome,
Antroponímia e Toponímia são, pois, muito menos o significado dos mes- ou compostos de dois nomes cada
os dois principais vocábulos conhe- mos; pois, como se sabe, a maioria (cf. Raposo, 2013, I: 1004). Por sua
cidos que se reportam ao estudo desses nomes são imposições nota- vez, na opinião de Ivo Xavier Fer-
dos nomes;8 mas tal como já vimos riais, que, desde há muito entraram nandes, todos os nomes de homem
no jogo das imposições coloniais. e mulher, bem como os respectivos
Ao filólogo José Leite de Vasconce- apelidos e sobrenomes ou apelidos
6
A Antroponímia deriva do grego ánthropos (ho- llos se deve assim a introdução em com vida independente, tais como
mem), mais onoma (nome), constituindo-se como Júnior ou Sénior, devem ser enten-
ramo da Onomástica que se ocupa dos nomes pró-
prios das pessoas (cf. Houaiss, 2002: 2678). didos como antropónimos (Fernan-
7
A Toponímia é um vocábulo de origem grega for- mara, 1992; 182). Entretanto, Raposo (2013: 999) des, 1941, I: 11).
mado pelo radical tópos (lugar) mais onoma (nome),
sendo a parte da Onomástica que estuda os nomes
considera onomástica/onomatologia como sendo a Convém notar o que Raposo real-
«[…] disciplina da linguística que estuda os nomes
próprios dos lugares (Houaiss, 2003: 3541). próprios canónicos, do ponto de vista da sua mor- ça: a antroponímia tem uma es-
8 A esse respeito, afigura-se-me pertinente o apon- fologia, origem e motivação», precisando, ademais, treita relação com a toponímia
tado por Mattoso Câmara quando esclarece que a que no «[…] âmbito da onomástica, a toponímia tem
onomástica e/ou onomatologia é não só o conjunto também relações com a antroponímia, visto que visto que muitos nomes de pessoas
dos antropónimos e topónimos de uma língua, mas muitos topónimos têm origem em nomes de pes-
acabam por resultar em nomes de
também o estudo linguístico desses vocábulos, o soas, particularmente os proprietários ou povoado-
qual requer métodos de pesquisa específicos (Câ- res das regiões nomeadas» (Raposo, 2013: 1005). sítios e lugares, nomes de deter-

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

minados espaços geográficos e até elemento formador, de origens em pedra, madeira, marfim e barro;
de localidades. É por isso que o es- diversas entre si: Porto Nacional; por outro lado, ajuda-as a revelar os
tudo dos nomes aponta para uma • Topónimo híbrido ou elemen- escritos em papiros e pergaminhos.
importância considerável visto que to específico híbrido: elementos A combinação dos dois métodos
a partir deles se pode conhecer os oriundos de diversas línguas. permite identificar o nascimento,
processos históricos que denotam É a partir do espírito desta e outras a evolução, a cronologia e, conse-
o surgimento de novos nomes bem de sua contribuição que a toponímia quentemente, a morte de um nome.
assim como a extinção ou desapa- passa a ser uma área das ciências da
recimento crescente de outros que linguagem com terminologia cien- 4.1. A importância dos nomes em
poderão ter marcado o período de tífica e metodológica próprias. Pos- África, seu lugar e papel para per-
existência de uma determinada co- teriormente, esta sua investigação ceber a história dos povos
munidade. É isso que poderemos foi-se desenvolvendo e ampliando No período decisivo da elaboração
ver mais adiante quando analisar o a partir de referenciais toponímicos da História Geral da África, a Orga-
assunto a partir da história. relacionados a características geográ- nização das Nações Unidas para
ficas, sócio-culturais e históricas dos a Educação, a Ciência e a Cultura
3.3. Acerca do conceito de Topo- lugares pesquisados, até se ter chega- (Unesco), organizou na sua sede
nímia do a 27 referenciais toponímicas sub- em Paris uma importante reunião
Para tratar deste assunto, vamos divididas em duas grandes áreas: ta- de peritos com vista a discutir a
procurar entendê-lo socorrendo- xonomia de natureza física e taxionomia questão dos etnónimos e topónimos
-nos de uma das principais espe- de natureza antropoculturas (cf. Dick, africanos e a sua importância como
cialistas mundiais, a académica 1997, 1999, 2004). Isquerdo (2012), contributo para o conhecimento da
brasileira Maria Vicentina Dick. De uma outra investigadora brasileira história, da cultura e das civilizações
acordo com esta, a toponímia é um da mesma escola de Dick, ao se refe- do continente. As contribuições saí-
imenso complexo línguo-cultural, rir aos referenciais toponímicos acla- das dessa importante reunião foram
que em dados das demais ciências ra: «[…] são os lugares, os hidrónimos publicadas na obra denominada
se interseccionam necessariamente (rios, mares, lagos…); os etnónimos que Ethnonymes et toponymes africains, ten-
e não exclusivamente (Dick, 1980: indicam clãs, tribos etnias; os exónimos do sido enquadrada numa colecção
36). Nos últimos tempos, é esta es- (nomes de lugares dados por estrangeiros); conhecida como «História Geral da
pecialista que com os seus trabalhos os nomes próprios; os nomes de família». África: Estudo e documentos».9
desenvolvidos na Universidade de Um eventual programa de estudo
São Paulo, no Brasil, traz para o da Toponímia a ser desenvolvido em
universo do nosso conhecimento a Angola haverá que pôr em conexão 9
Cf. Ethnonymes et toponymes africains. Documents
de travail et compte rendu de la réunion d’experts
questão da toponímia nesse país. esta disciplina e a sua relação com organisée par l’Unesco à Paris, 3-7 juillet 1978. Pa-
Ela elucida-nos que a «toponímia a cultura, a história, a geografia e a ris, Unesco, 1984, 212 pp. [«Histoire générale de
l’Afrique: Études et documents»; 6]. Esta importante
estuda os nomes dos lugares motivados cartografia, a etimologia, a formação obra integra os seguintes estudos: Pathé Diagne,
circunstancialmente pelos referenciais dos topónimos e a relação destas va- «Introduction au débat sur les ethnonymes et les
toponymies» (pp. 11-17); Mohammed El Fasi, «La
geográficos, físicos, humanos e cultu- riantes com a toponímia portuguesa. toponymie et l’ethnonymie, sciences auxiliaires de
l’histoire» (pp. 19-23); Robert T. Zwinoira, «Topony-
rais. Tendo na investigação etimoló-
mies et ethnonymes du Swaziland» (pp. 25-42); Ola-
gica, na descrição das transformações 4. História e outras disciplinas das biyi B. Yai, «Ethnonymie et toponymie africains; ré-
flexions pour une décolonisation» (pp. 43-55); Pierre
linguísticas para busca do significado ciências sociais Alexandre, «Quelques problèmes d’onomastique
dos topónimos o seu objecto de estudo» Alarguemos agora o campo de com- africaine: toponymie, anthroponymie, ethnonymie»
(pp. 57-75); Robert Cornevin, «Quelques suggestions
e para a sua compreensão propõe preensão desta disciplina estenden- concernant l’harmonisation de la graphie des noms
três formas, a saber: do-a aos profissionais da história. africains (toponymies et ethnonymes)» (pp. 77-88);
David Dalby, «La transcription des ethnonymes et
• Elemento específico simples com Como vimos anteriormente, no des toponymes en Afrique en relation avec leur étu-
radical mais sufixo e terminações: âmbito da história os estudos rami- de historique» (89-95); Cheick Anta Diop, «Pour une
méthodologie de l’étude des migrations» (pp. 97-121),
lândia, pólis, burgo; ficam-se pela epigrafia e paleografia, materiais estes que constituem instrumentos teóri-
cos e metodológicos de suma importância para o
• Topónimo composto ou elemento oferecendo, por um lado, os seus
conhecimento local e regional da história dos povos
específico composto: mais de um métodos para a leitura de inscrições e das civilizações do continente. Ademais, esta obra

43
Estudos

A contribuição nesta reunião do cio-temporal das sociedades afri- do com Pathé Diagne, para além da
historiador Pathé Diagne é deveras canas levantam muitos problemas reflexão sobre a onomástica parece
significativa. Ele designa a onomás- (Diagne, 1984: 11-12). essencial que se elabore, numa pro-
tica como a Convém notar que entre nós, en- blemática de conjunto, a concep-
«[...] ciência dos nomes, nos quais tenda-se em África, não existe ain- tualização do léxico e da lexicogra-
participam a “etnonímia”, ciência da, tal como se observa para a his- fia próprias às culturas cuja história
dos nomes das etnias, a “toponí- tória da civilização ocidental, por se tem em conta, assim como da
mia”, ciência dos sítios e dos luga- exemplo, os aparelhos conceptuais valorização gráfica adequada para
res, mas também a “antroponímia”, e os esquemas explicativos precisos unificar a sua transcrição (Diagne,
ciência do nome das pessoas, desem- de referência que possam servir 1984: 12).
penhando um papel considerável para uma síntese (Diagne, 1984: As civilizações, conclui Diagne, pe-
na elucidação do facto histórico. É 12). Contudo, para se poder avan- los conceitos que estas elaboram
uma das disciplinas anexas da his- çar coerentemente sobre o trabalho sob o plano da formulação dos
tória. Ela fornece um material pre- de recuperação e valorização da seres e dos objectos reais ou abs-
cioso aos linguistas, aos geógrafos, onomástica no nosso país, temos tractos, pelo vocabulário que lhes
aos especialistas de evolução e ao que dominar os conhecimentos que permite dar uma representação de
estudo dos contactos entre as cultu- nos levam a criar noções apropria- sua experiência, oferecem, através
ras e as civilizações. No entanto, a das cujos referenciais sejam ou par- de diversos léxicos, os meios de
onomástica ela própria depende de tam sobretudo das comunidades e reconstruir o seu passado e o seu
um problema mais vasto, o da con- dos lugares em que estas estão inse- presente.
ceptualização» (cf. Diagne, 1984: ridas e são por si dominados.
11, tradução minha, V.C.). É que a análise da história africa- 4.2. A problemática geral dos no-
na continua a recorrer não apenas mes em Angola
Ao tentar explicar o seu entendi- às fontes escritas estrangeiras, mas Concordamos plenamente com o
mento acerca do que possa ser isso, também aos aparelhos conceptuais que propõe este consagrado autor
este autor aclara que as civilizações, vindos de um ou outro lugar e que e entendemos, por isso mesmo, que
pelos conceitos que elaboram sobre são mais ou menos adaptados ao necessitamos de os ter em devida
o plano da formulação dos seres contexto. A esse propósito e ba- conta na reflexão e estudos sobre a
e dos objectos reais ou abstractos, seando-nos sempre em Diagne, onomástica a efectuar em Angola.
pelo vocabulário que lhe permi- continuamos a raciocinar em ter- Entre nós não existe ainda aparelhos
te dar uma representação da sua mos de feudalidade africana e não conceptuais e esquemas explicativos
experiência, oferecem, através de de mansaya, do sistema esclavagista precisos e de referência, que possam
diversos léxicos os meios de recons- e não jõya. Não é apenas somente o servir como síntese. Não são unica-
truir o seu passado e o seu presente etnónimo e a toponímia que cons- mente a etnonímia, a antroponímia
(Diagne, 1984: 11). Por isso mes- tituem o problema tanto no plano ou a toponímia que constituem pro-
mo, qualquer analista do domínio da grafia e do significado, mas uma blemas tanto sob o plano gráfico e
da história está confrontado, sobre boa parte dos léxicos das civiliza- dos sentidos, mas também uma boa
todos os planos, às dificuldades de ções africanas merecem atenção e parte do léxico acerca das cultu-
conceptualização. Os termos que requerem a precisão dos dicioná- ras angolanas, que deve merecer a
identificam a experiência filosófica, rios de referência cientificamente nossa atenção, solicitando, quando
psicológica, histórica, económica, elaborados (Diagne, 1984: 12), mas existam, respostas plausíveis aos di-
política, social, geográfica ou espa- que, praticamente não existem ou cionários de referência que cientifi-
ainda não foram recuperados e es- camente venham a ser elaborados.
critos seguindo uma norma basea- Assim, parece-nos essencial que
inclui um importante relatório da reunião dos peritos da em conhecimentos endógenos para lá da reflexão sobre a onomás-
(pp. 123-150), assim como uma «lista de etnónimos
africanos» (pp. 154-196) elaborada pelo historiador concatenados no espaço e no tempo tica, seja necessário que se elabore
Ivan Hrbek e uma vasta «bibliografia sobre a topo-
e que justificam a sua perenidade. uma problemática de conjunto da
nímia africana» (pp. 197-206), constituindo assim um
importante instrumento de consulta e de trabalho. Consequentemente, ainda de acor- conceptualização da lexicologia e

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da lexicografia próprias das cultu- tração do país, como a área ideal trazidos pelos colonizadores portu-
ras cuja história esteja relacionada para desenvolver estudos e ajudar gueses. Ignorando ou desconhecen-
a Angola e da grafia correcta e ade- a resolver as principais questões e do os arcanes dos antepassados do
quada para unificar a transcrição. problemas aqui levantados. Uma país independente, os nomes des-
outra estrutura, o Instituto Nacio- tes últimos passaram a representar
4.2.1. A questão da Toponímia em nal do Património Cultural (INPC), para a administração independente
Angola tem certamente um lugar cativo do país valores que nem sempre re-
Como vimos antes, a toponímia é a porque desempenha múltiplas fun- presentam mais valias sobre a reali-
ciência que estuda os lugares e os ções no seio das comunidades do dade e a história milenar das refe-
sítios. O conhecimento dos nomes país e do qual esperamos ver asso- ridas comunidades sócio-culturais e
dos lugares (aglomerados, aldeias, ciada o tratamento destas questões. linguísticas do país.
vilas, cidades, montanhas, rios, la- Do mesmo modo, o trabalho levado Consequentemente, apesar dos ou-
gos, fontes e outros pontos geográ- a efeito pelo MAT não foi efectuado vidos de mercador expressos por
ficos) pode dar à história uma ajuda com o apoio da academia angolana, parte dos serviços de administração
preciosa, porque os nomes dos luga- nem, muito menos, teve em conta do país, a publicação dessa legisla-
res e sítios geralmente não mudam. a prática e experiência das popula- ção tem merecido no dia-a-dia crí-
A própria evolução da fonética não ções e das comunidades sócio-cul- ticas acentuadas seja da parte das
acompanha jamais as suas transfor- turais e linguísticas do país, a quem populações esclarecidas, seja da
mações radicais, e, por isso mesmo, deverá certamente interessar o as- parte de investigadores e professo-
altera raramente a pronúncia das sunto. Não tendo merecido o apoio res universitários, observando-se o
antigas grafias. É justamente por de especialistas e académicos, e em silêncio absoluto da instituição go-
isso que o estudo da toponímia pode geral das comunidades linguísticas vernamental que criou o problema
revelar os factos que se ligam ao pas- de todo o país, o conteúdo dessa e dos respectivos serviços indicados
sado e dar assim informações sobre a legislação constitui hoje um verda- em cima. Deste modo, o silêncio
história, a religião e a civilização dos deiro colete de forças. destes tem sido uma prática a que
primeiros ocupantes desses lugares. Na verdade, o problema parece par- já nos vamos habituando quotidia-
A questão da toponímia em Angola tir mais da incompreensão sobre o namente e que vai atardando a sua
mereceu do Ministério da Admi- lugar e o papel das Línguas Nacio- respectiva resolução.
nistração do Território (MAT) um nais na harmonização da vida dos
momento de reflexão que culmi- indivíduos e comunidades do que 4.2.2. Acerca da «Lei de Bases da
nou com a publicação em Diário da o verdadeiro significado de cada Toponímia»
República de legislação sobre o as- topónimo e das formas como estes Como se viu, por livre iniciativa e
sunto. O trabalho foi efectuado por devem ser analisados e correcta- sem praticamente ter efectuado as
funcionários desse departamento mente transcritos. Aqui inscrevemos consultas alargadas que se impõe,
ministerial que, no entanto, não o problema acima levantado acerca quando se promove uma iniciativa
eram especialistas em áreas como da conceptualização, que deveria desse teor e alcance, ao Ministério
a Linguística, a Literatura, a His- merecer também uma mais ampla da Administração do Território
tória, a Antropologia, a Sociologia discussão e acordo. Sem se ter em (MAT) se deve a proposta de uma
ou a Geografia, e, segundo se sabe, conta as questões fundamentais re- «Lei de Bases da Toponímia», apro-
o trabalho foi efectuado em total lativas à conceptualização e à expe- vada pela Assembleia Nacional e
ignorância e contradição com a riência dos povos que constituem a promulgada e manadada publicar
actividade que vem sendo realiza- nata do país, não se pode esperar pelo então presidente da Repúbli-
da pelo Instituto de Línguas Na- um ordenamento correcto e ajusta- ca, José Eduardo dos Santos.10
cionais (ILN), uma instituição que do, seja da nomenclatura geográfica
esteve desde sempre adstrita à área local, seja dos nomes comunitários
da cultura e hoje ao ministério da e locais guardados pela língua de 10
Cf. Lei n.º 14/16, «Lei de Bases da Toponímia», in Diário
da República. Órgão Oficial da República de Angola
Cultura e Turismo (MCT) e que se cada grupo e comunidade, nem,
(Luanda), I Série, n.º 155, Segunda-feira, 12 de Setem-
apresenta no quadro da adminis- muito menos, dos nomes estranhos bro de 2016, pp. 3740-3743. A anteceder a aprovação

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Estudos

Mas, afinal, quais são os principais claramente a desvalorização das lín- da da língua portuguesa. Com o apoio
problemas levantados pela «Lei de guas nacionais e a adopção de um da mesma política, esta, engolindo to-
Bases da Toponímia»? Além de al- sistema aculturado. Deste modo, das outras línguas com as quais coa-
guns outros a que nos referiremos o Ministério da Administração do bitava, acaparou-se do espaço deixado
adiante, as principais questões estão Território (MAT) e, mais tarde, o vazio e tornou-se plurifuncional pelo
inscritas no «Capítulo III, Normas próprio Vice-Presidente da Repú- seu uso em todas as situações formais.
da Toponímia», nomeadamente no blica,11 baseados numa incompreen- Esse esforço de imposição do unilin-
seu «Artigo 7.º (Regras de Grafia sível cegueira, não se dão conta que guismo conquistou o terreno permitin-
dos Topónimos)», em cujo ponto 1 esta Lei recupera com toda a clareza do à língua portuguesa sobrepor-se às
se pode ler: «Os topónimos são escritos a toponímia colonial, nem ao facto línguas autóctones em todo o território
em língua portuguesa, seguindo a grafia de ao agirem assim extrapolaram nacional. Contudo, não obstante essa
latina», e no ponto 2: «Os topónimos, a Resolução n.º 3/87, que aprova e agressão cultural, as línguas afri-
nas demais línguas de Angola, são es- normaliza a ortografia de algumas canas resistiram ao ímpeto colonial
critos em conformidade com as regras de das línguas nacionais já estudadas que visava o seu esmagamento total.
grafia da língua correspondente, deven- pelo Instituto de Línguais Nacio- Assim, passadas que são três décadas
do ser certificados pelo Instituto de Lín- nais (ILN). Ao querer normalizar a após a independência, o “continuum”
guas Nacionais» (op. cit., 2016: 3741). grafia das províncias, municípios e da política linguística colonial origi-
Afigura-se-nos que o ponto 1 do comunas que compõem o país, sem nou uma situação diglóssica em que
Artigo 7.º constitui uma norma que querer prestar a atenção ao contex- se estabeleceu uma hierarquia entre
contradiz o espírito aberto pretendi- to a que estes nomes se referem, os dois grupos de língua em presença
do, visto que a oficialização da lín- reforça-se assim a desconstrução da e onde se destaca uma língua domi-
gua portuguesa como único meio cultura, da história e das identida- nante (português) pelo seu uso ofi-
de comunicação nas diversas insti- des dos povos, dentre os outros va- cial e institucionalizado, e as línguas
tuições públicas constrói um sistema lores que lhe dizem respeitos e que nacionais dominadas. Esta situação
segregador e reforça a marginaliza- lhe são afectos. Com esse instrumen- favoreceu o nascimento de um senti-
ção das línguas nacionais. Ademais, to, estamos assim perante uma clara mento de “auto-ódio-linguístico” em
essa forma de homogeneização lin- adulteração onomástica em Angola. que os locutores das línguas domina-
guística não se encaixa numa reali- Concluímos esta parte lembrando das adquirem a língua dominante e
dade bilingue ou multilingue. Entre o que diz um dos mais esclarecidos os modelos de comportamento social
a língua portuguesa e as línguas na- linguistas angolanos, quando reflec- e cultural que ela veicula, abando-
cionais há uma contrariedade orto- tiu justamente sobre este assunto: nando os seus próprios valores e a
gráfica e fonológica e para tal basta sua identidade. Este comportamento,
ver alguns exemplos: Kwanza por «[…] Todas a comunidades linguís- corporizando-se, culminou com o fe-
Cuanza, Kuneni/Kunene por Cune- ticas têm direito a fixar, preservar e nómeno de aportuguesamento que se
ne, Malanji/Malanje por Malange, rever a toponímia autóctone. Esta generalizou em muitos domínios, pelo
o primeiro refere-se ao nome do não pode ser suprimida, alterada ou que, […] “quando um povo pode esco-
principal rio de Angola e do nome adaptada arbitrariamente, nem pode lher ser outro, nega-se enquanto povo
do dinheiro; o segundo designa um ser substituída em caso de mudança de e é um outro que está no lugar, no seu
rio importante do sul de Angola e conjuntura política ou outras. […] A lugar”» (Ntondo, 2009: 97-98).
o terceiro é o nome de um rio e da política colonial portuguesa que con-
cidade com esse nome. O quadro sagrou a glotofagia das línguas dos Com a clareza desta mensagem
com que nos deparamos espelha povos colonizados tentou impor o uni- omito o desejo de acrescentar seja
linguismo com a utilização prestigia- lá o que for. Mas sugere, lembra até
que as mais altas estruturas do país
afinal sempre podem contar, caso
deste documento, tenha-se em conta, igualmente, a
Lei n.º 8/16, «Lei da codificação das circunscrições 11
Cf. «Bornito de Sousa: Vice-Presidente defende uni- queiram, caso desejem, com a ex-
territoriais», in Diário da República. Órgão Oficial ficação da grafia toponímica», in Jornal de Angola
periência e a mais valia da academia
da República de Angola (Luanda), I Série, n.º 97, (Luanda), Ano 46.º, n.º 16.489, Sábado, 25 de Setem-
Quarta-feira, 15 de Junho de 2016, pp. 2205-2218. bro de 2021, pp. 1 e 3. nacional, da universidade angolana

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que já deu ou semeou muitos frutos, primeiro Presidente de Angola, não seria que bazófia e isso confi-
mas que, infelizmente, ainda nada constatamos, logo na primeira li- guraria uma distorção da realida-
na ignorância do vosso silêncio!... nha, a mensagem segundo o qual a de. No entanto, essa distorção vai
independência do novo país é pro- ocorrer após a sua morte ocorrida
5. Nação e identidade nacional em clamada «Em nome do Povo Ango- em 10 de Setembro de 1979, cerca
Angola lano», e que a palavra «povo» é ci- de quatro anos após a proclamação
Hoje em dia, constitui um facto tada de forma lapidar exactamente da independência e passará a ser
observar que o debate acerca da trinta e duas vezes, identificando-se acentuada logo após a sua morte,
existência ou não de uma nação assim a nova linha de sustentação quando uma «palavra de ordem»
em Angola ainda vai no adro. A política, sociológica e antropológica lançada pelo seu partido, o MPLA
discussão opõe sobretudo políticos da República Popular de Angola, ― Partido do Trabalho, passou a
a pesquisadores e especialistas das que parece assentar sobretudo e atribuir-lhe o título de «Fundador
ciências sociais e humanas, uma vez abraçar até, simultaneamente, so- do Estado e da Nação Angolana».
que os primeiros procuram trans- bre a noção de Estado, não obstan- Em meu entender, se parece cor-
formar uma aspiração em realida- te, aqui e ali surja a palavra nação, recto poder afirmar que Agostinho
de e impô-la aos últimos. Assim, a sem que esta expresse algo impor- Neto é, com efeito, o fundador do
discussão sobre a questão da Nação tante ou referencial. Estado Angolano já parece menos
e da Identidade Nacional em Ango- Com efeito, a proclamação da in- acertado que este seja fundador da
la permanece como um diálogo de dependência da República Popular Nação Angolana. As razões que en-
surdos e ainda deverá levar algum Angola não assenta nem é conclu- tram em desacordo com essa afir-
tempo até que o bom senso pene- siva a esse respeito, porém, ao ex- mação são inúmeras e vamos pro-
tre na discussão e ponha de parte pressar uma vontade política em curar abordá-las em outro lugar
os posicionamentos ideológicos nome de uma nova entidade, o ter- desta reflexão; no entanto, esse fac-
que constituem hoje as bases fun- mo composto «Povo Angolano» le- to abriu uma discussão que passou
damentais dos conhecimentos que vanta aqui um problema que é o de a tornar-se um verdadeiro diálogo
têm sido esgrimidos por cada uma ignorar que à data da independên- de surdos, porque essa atribuição
das partes e a extraordinária con- cia do país havia, e há ainda hoje, política é apenas um pressuposto
tradição evidenciada entre estas. uma diversidade de povos em An- ideológico que, não só não assenta
gola, povos esses até aí designados na realidade, nem, muito menos,
5.1. Enquadramento geral do as- «etnias», «grupos étnicos» ou «tri- em factos que o compaginem en-
sunto bos», e ao abrir caminho para con- quanto tal.
Para enquadrar a discussão do as- siderar que o Estado se conjugava Além desta questão fundamental, é
sunto, precisamos ainda de voltar em nação, surgia assim na arena in- importante notar que os mais dis-
atrás para observar e tentar per- ternacional um novo Estado-Nação tintos dirigentes que conduziram
ceber alguns outros pressupostos que a partir da autodeterminação e durante longos anos lutas arma-
que assentam, por um lado, na a independência cumpria assim o das para a libertação nacional do
proclamação da independência da seu principal desígnio, estipulado jugo colonial, quer seja em Angola,
República Popular de Angola pelo na «Carta» pelo sistema das Nações como em Moçambique ou até mes-
Dr. António Agostinho Neto e, por Unidas: autodeterminação e inde- mo na Guiné-Bissau, fizeram-no,
outro, posteriormente, o que se pendência dos povos. com efeito, movidos sobretudo por
passou a propor após a sua morte. Compreende-se assim porquê que mudanças políticas nos seus países
a palavra nação não constituiu no pelo alcance da independência e
5.1.1. A realidade angolana no discurso da «proclamação da inde- pensaram, ou melhor, acreditaram
contexto da proclamação da inde- pendência» o ponto fundamental piamente que com a independência
pendência do discurso político anunciado pelo e, simultaneamente, com a criação
Quando nos debruçamos sobre o fundador do novel Estado indepen- do novo Estado, teriam alcançado
documento histórico que constitui dente. Dizer que surgia na arena simultaneamente a Nação, fazendo
o texto da proclamação lido pelo internacional uma nova nação mais tecnicamente corresponder o equi-

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Estudos

valente ao princípio de um estado do Agostinho Neto proclamou his- vência política e postas de parte em
uma nação, mas esquecendo-se que toricamente a independência de relação ao sonhado pelos seus diri-
isso ocorre ou corresponde à fór- Angola, a direcção do Estado era gentes sobre o futuro do país?
mula-modelo da Organização das dirigida por uma única força polí- A experiência das primeiras inde-
Nações Unidas (ONU). No entan- tica, no caso o Movimento Popular pendências no continente africano
to, vejo aqui duas excepções: por de Libertação da Angola (MPLA), conjugava-se com a entrega dos
um lado Amílcar Cabral, que movi- uma experiência que na argumen- territórios pelas nações coloniza-
do por uma rara visão, faculdade e tação histórica e política, e, em ge- doras (a Inglaterra e a França, so-
experiência, constatara, através das ral, nas ciências sociais, se passou a bretudo), e as fronteiras dos novos
longas discussões encetadas com os designar por Partido-Único, orga- países independentes obedeciam
distintos povos da Guiné e de Cabo nização política essa que passou a aos princípios marcados ou ditados
Verde, combatentes e militantes e os dirigir a sociedade angolana, e que pelas potências coloniais desde que,
seus principais quadros políticos, di- se assemelhava ou seguia uma cor- ambiciosos e desejosos de usufruir
rigentes da luta do Partido Africano rente com longa experiência, que já das riquezas do continente, estes
para a Independência da Guiné e vinha de alguns anos atrás, desde o deixaram a Conferência de Berlim,
Cabo Verde (PAIGC) que, naquele surgimento dos primeiros países in- que então ditara as regras sobre a
momento da luta, seria inútil pensar dependentes em África, em fins da forma como poderiam tomar conta
ou reclamar pela Nação guineense- década de 1950 e inícios da década dos territórios africanos ditos «sel-
-caboverdiana e assim adiara a dis- de 1960, que, nos seus países, pu- vagens» e «atrasados». Até à data
cussão dessa questão para depois da nham de parte ou ignoravam as de- da saída do continente das nações
independência; e, por outro lado, mais organizações políticas; no caso colonizadoras, parece-me imperio-
os posicionamentos do Presidente de Angola, notou-se a ausência no so que se pense e ponha à frente o
Ahmed Sekou Touré (em cujo país teatro político da Frente Nacional raciocínio segundo o qual a coloni-
não houve luta armada de liberta- de Libertação de Angola (FNLA) e zação estruturou fronteiras a régua
ção nacional), que, ao não aceitar os da União Nacional para a Indepen- e esquadro, dividindo as múltiplas
desígnios franceses de neocoloniza- dência Total de Angola (UNITA), comunidades africanas pelos ter-
ção advindos de propostas do então organizações políticas que represen- ritórios coloniais e assumiram esse
presidente da República Francesa, o tavam partes substanciais de grupos papel (Inglaterra, França, Bélgica,
General Charles de Gaulle, se afas- populacionais espalhados em con- Portugal, Alemanha, Espanha e Itá-
tou do Estado Francês e proclamou textos e espaços territoriais do país, lia) sem se importarem com a forma
unilateralmente (e a contra-corrente que incentivados pelos acordos de como dividiram os povos pelos ter-
dos demais países de língua france- Alvor, deixaram entender que qual- ritórios que passaram a gerir. Essa
sa), a independência do Estado e da quer uma das três organizações po- divisão vai transformar-se em epi-
Nação Guineense (Guiné-Conakry). lítico-militar poderia lutar para pro- sódios extraordinariamente atrozes
Esse posicionamento político, toma- clamar a independência e dirigir o e desestabilizadores para os novos
do naquele momento ter-se-á trans- Estado, e isso supostamente através países independentes surgidos pos-
formado em acto histórico, sobre o da realização de eleições, o que não teriormente com a descolonização,
qual se me afigura absolutamente ocorreu obviamente pelos desenten- e que, certamente, passaram a cons-
lógico pensar e falar de uma Nação dimentos políticos e militares regis- tituir grandes interferências para
Guineense independente e livre do tados a partir de meados de 1975. as múltiplas identidades dos povos,
neocolonialismo francês. Nesta conformidade, registado este seja ele do ponto de vista político,
quadro, a pergunta que se impõe é social, cultural ou religioso.
5.1.2. A independência nacional e como se pode falar da nação quan- Portanto, em 1975, quando Agos-
o contexto africano do uma parte considerável dos tinho Neto proclamou a indepen-
Há um outro factor que não pode- componentes sociais e políticos do dência da República Popular de
remos ignorar quando analisamos país, por força da guerra entre as Angola, não ignorava que a maioria
estas questões e este relaciona-se três organizações, duas delas foram dos outros países independentes,
com o facto segundo o qual quan- simplesmente ignoradas da convi- apesar da diversidade dos povos

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que compunham esses países, eram tintos autores. Por exemplo, o soció- A base desta proposta é de Ca-
dirigidos por partidos-únicos e que logo espanhol Manuel Castels, par- lhoun quando explica o surgi-
falavam apenas de estados indepen- tindo de uma leitura de Calhoun, mento da política de identidade
dentes e não de nação. Contudo, a entende que «identidade [é] a fonte de (Castells, 2007, II: 4-5; Calhoun,
maioria desses países eram com- significado e experiência de um povo», já 1994: 7); e, finalmente,
postos por povos com característi- que, anota pertinentemente 3. Uma identidade de projecto quando
cas culturais e linguísticas diversas, «Não temos conhecimento de um povo que os actores sociais, servindo-se de
que desde a antiguidade deixavam não tenha nomes, idiomas ou culturas em qualquer tipo de material cultural
entender princípios que se asseme- que alguma forma de distinção entre o ao seu alcance, constroem uma
lhavam aos múltiplos traços políti- eu e o outro, nós e eles, não seja estabele- nova identidade capaz de redefi-
cos, sociais e culturais que consti- cida... o auto-conhecimento — invaria- nir a sua posição na sociedade e,
tuíam os traços ou os indicativos de velmente uma construção, não importa ao fazê-lo, de procurar a transfor-
pressupostos nacionais. E Angola, o quanto possa parecer uma descoberta mação de toda a estrutura social.
por ocasião da independência, era — nunca está totalmente dissociado da A base argumentativa deste pro-
formada por uma diversidade de necessidade de ser conhecido, de mo- cesso de construção de identidade
povos/nações, que o Estado Ango- dos específicos, pelos outros» (Castells, segue Alain Touraine, segundo o
lano procurou ou julgou possível 2007, II: 2; Calhoun, 1994: 9-10). qual, com isso se produz sujeitos,
aglutinar num só de um dia para o Ademais, Castells entende que a que não são indivíduos, mas sim
outro. Daí a palavra de ordem: «Um construção social da identidade o actor social colectivo pelo qual
só Povo, uma só Nação!» Mas a nação, ocorre sempre num contexto de- os indivíduos atingem o signifi-
que é um sentimento a alcançar, terminado por relações de poder, cado holístico na sua experiência
uma construção política, mostra pelo que, baseado em três autores (Castells, 2007, II: 5, 7; Touraine,
que a maioria dos países africanos — Richard Sennett, Craig Calhoun 1992; 1995: 29-30).
não estavam, nem estão ainda hoje, e Alain Touraine — propõe uma dis- Em Angola já vivemos a situação
preocupados com essa veleidade. E tinção em três formas e origens de entendida no ponto 2, «Identidade
se se quisesse expressar esse senti- construção de identidades, a saber: de resistência ao sistema colonial-fascista
mento faziam-no seguindo o prin- 1. Uma identidade legitimadora, no português», o que levou as estruturas
cípio declarado do sistema das Na- caso em que esta é introduzida políticas de vanguarda a se empe-
ções Unidas, que fala em sistema de pelas instituições dominantes da nharem quer na luta clandestina
Estados-Nações. Rosa Ismaguilova, sociedade no intuito de expandir (internamente no território), quer
eminente académica russa explica e racionalizar a sua dominação através da luta armada de liberta-
que essa terminologia é aquela que sobre os actores sociais. Baseia-se ção nacional (a partir do exterior).
mais problemas causa nos debates assim na teoria da autoridade e Ninguém ignora que nos estamos a
com colegas estrangeiros, já que, dominação de Sennett e aplica-se referir às seguintes organizações po-
escreve, geralmente no Ocidente o a várias teorias do nacionalismo líticas: Frente Nacional de Liberta-
termo Nação confunde-se com o de (Castells, 2007, II: 4; Sennett, ção de Angola (FNLA), Movimento
Estado: a Organização das Nações 1978; 1980); Popular de Libertação de Angola
Unidas, quer dizer, dos Estados; in- 2. Uma identidade de resistência, no (MPLA) e União Nacional para a In-
teresses nacionais, ou seja, interes- caso em que determinados ac- dependência Total de Angola (UNI-
ses do Estado, Bancos Nacionais, tores se encontram em posições/ TA). A independência foi consegui-
ou seja, Bancos do Estado» (cf. Is- condições desvalorizadas e/ou da da forma mais dramática possível
maguilova, 2003: 134-135). estigmatizadas pela lógica da e a organização política que dela se
dominação, construindo, assim, obteve instituiu, como já vimos, uma
5.1.3. A problemática da Nação e trincheiras de resistência e sobre- organização do tipo promovido e
a Identidade Nacional em Angola vivência com base em princípios aceite pelo sistema das Nações Uni-
A questão do entendimento sobre o diferentes dos que permeiam das: com a independência surge em
que possa ser Identidade Nacional as instituições da sociedade, ou Angola um novo Estado-Nação, mas
já foi objecto de abordagem por dis- mesmo opostos a estes últimos. não uma Nação-Estado que, dora-

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Estudos

vante vai ser necessário promovê- clusivo da língua portuguesa, como Academia das Ciências de Lis-
-la: é o que Manuel Castells aponta língua oficial, veicular e utilizável boa; Editorial Verbo.
como a construção de uma «identi- actualmente na nossa literatura, não BRANCO, Luís Castelo
dade de projecto», e em cuja situação, resolve os nossos problemas. E tanto no 2013, «O mito das fronteiras em
os actores sociais baseando-se so- ensino primário, como provavelmente África», Lusíada. Política Interna-
bretudo na cultura, procurarão em no médio, será preciso utilizar as nos- cional e Segurança (Lisboa), n.º 8,
conjunto, construir uma nova iden- sas línguas. E dada a sua diversidade pp. 67-84.
tidade capaz de redefinir a sua po- no país, mais tarde ou mais cedo de- 2012, «O Estado Islâmico de
sição na sociedade e, ao fazê-lo, de veremos tender para a aglutinação de Azawad», Observatório de África,
procurar a transformação de toda alguns dialectos, a fim de facilitar o Fundação Portugal África, n.º
a estrutura social. Esse modelo de contacto. Todo o desenvolvimento do 37, Julho/Agosto <http.//www.
construção constitui aquilo que hoje problema linguístico naturalmente, fportugalafrica.pt/Default.as-
em dia tem sido comum apelidar de dependerá também da extinção das px?id=75&tabid=149>
«invenção da Nação» que, tal como barreiras regionais, da consolidação CALHOUN, Craig (Coord.)
temos observado na prática quoti- da identidade nacional, da extinção 1994, Social theory and the politics
diana promovida pelo Estado Ango- dos complexos e taras herdadas do co- of identity. Oxford, Blackwell.
lano, parece levar antes de tudo à in- lonialismo e do desenvolvimento eco- CÂMARA Jr., J. Mattoso
venção do monolinguismo em Angola, nómico» (NETO, 1980: 34-35). 1992, Estrutura da língua portu-
e isso, devido a promoção a solo da guesa, 21.ª edição. Petrópolis, RJ:
Língua Portuguesa e a tentativa de É, parece-me, um assunto que cons- Editora Vozes.
aniquilamento da diversidade linguísti- titui preocupação para quem se inte- CASTELLS, Manuel
ca no país (uma política claramen- ressa e trata destas questões, a ter de- 2007, O poder da identidade. A
te idealizada com a marginalização vida em conta e a seguir atentamente. era da Informação, Economia, So-
global do uso das Línguas Nacionais ciedade e Cultura, Volume II, 2.ª
no país e a tentativa de estiolamento edição. Tradução de Alexandra
destas); aliás, uma política em séria Lemos e Rita Espanha. Lisboa,
contraposição ao que o Presidente Fundação Calouste Gulbenkian.
António Agostinho Neto desde há COELHO, Virgílio
muito havia preconizado. 2022, «A problemática das Lín-
Termino, apontando dois momen- guas Nacionais em Angola», in
tos claros que o seu pensamento Paulo de Carvalho & António
expôs sem tibiezas: Quino (orgs.), Colectânea sobre
Línguas de Angola. Luanda, Aca-
«[…] Quando as nossas línguas, demia Angolana de Letras, 2022,
aquelas que serviram e servem de veí- pp. 121-152 (no prelo).
culo à cultura angolana, não são fa- 2022, «A problemática das Línguas
ladas nas escolas, não são usadas nos Nacionais em Angola: em busca de
jornais, na rádio, etc., quando a nossa um estatuto», Cultura. Jornal Ango-
música, a nossa escultura, apenas en- lano de Artes e Letras (Luanda), Ano
contram guarida em sorridentes e pa- VIII, n.º 235, Quarta-feira, 26 de
ternais caçadores do exótico, quando Referências bibliográficas Outubro, pp. 20-30.
as nossas formas literárias não podem 2018, «Diversidade étnica, etni-
socorrer-se dos modernos processos de ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE cidade e nação na República de
veiculação, é evidente que a nossa cul- LISBOA Angola (1975-2015)», in Paulo de
tura não se pode desenvolver. Estacio- 2001, Dicionário da Língua Por- Carvalho (org.), Leituras cruzadas
na; degrada-se, mas felizmente, não tuguesa contemporânea (G-Z), Vo- sobre Angola e Brasil: identidade,
morre» (NETO, 1988 [1960]: 15). lume II. Lisboa, Instituto de memória, direitos e valores. Jundiaí,
«[…] Referi-me às línguas. O uso ex- Lexicologia e Lexicografia da SP: Paco Editorial, pp. 147-191.

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

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** Antropólogo, é diplomado pela Hautes Études en Sciences Sociales Plásticos (UNAP). Publicou cerca
École Pratique des Hautes Études (EHESS). é doutorando em Ciên- de 100 artigos em revistas de espe-
(EPHE), Université de Paris – Sor- cias Sociais, na especialidade de An- cialidade, em livros colectivos, em
bonne (França), tendo submetido tropologia Social, pela Faculdade jornais e publicou dois livros: «Em
o trabalho intitulado La place des de Ciências Sociais (FCS) da Uni- busca de Kábàsà!...» Estudos e re-
jumeaux dans le système religieux des versidade Agostinho Neto (UAN). flexões sobre o «Reino» do Ndòn-
Ndongo (Ambundu), Angola (Paris, Investigador do Centro Avança- gò (Luanda, Kilombelombe, 2010,
EPHE, 1987, 524 pp.), onde tam- do de Estudos Africanos (CAEA) 470 pp.) e Os Túmúndòngò, os
bém efectuou estudos doutorais e Professor Auxiliar da cadeira de «génios» da natureza e o Kílàmbà.
em Antropologia Social e Cultu- Antropologia do Departamento Estudos sobre a sociedade e a cul-
ra. Concluiu o mestrado: Diplôme de Antropologia da FCS-UAN. É tura kímbùndù (Luanda, Kilom-
d’Études Approfondis (DEA), na membro fundador da Academia belombe, 2010, 420 pp.). Com es-
especialidade de «Anthropologie Angolana de Letras (AAL), Associa- tas obras, foi galardoado em 2010,
comparée des Religions d’Afrique, ção de Antropólogos e Sociólogos com o Prémio Nacional de Cultura
d’Orient et d’Extreme Orient». de Angola (AASA), membro corres- e Artes. Foi condecorado em 2023
Efectuou estudos especializados em pondente da Academia de Ciências com a Ordem de Mérito Civil. Foi
História de África no Centre des Re- de Lisboa, da União dos Escritores Delegado Provincial da Cultura de
cherches Africaines (CRA) da Uni- Angolanos (UEA) e membro funda- Luanda e vice-ministro da Cultura
versidade de Paris I e na École des dor da União Nacional dos Artistas (2002-2008) do Governo de Angola.

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

A LEGITIMAÇÃO DO USO DAS


LÍNGUAS NACIONAIS
Orientações e fontes jurídicas
Por: Marcelo Sebastião*

Resumo ancorar decisões que possam ser as características e idiossincrasias


A legitimação, orientações e fontes tomadas no âmbito da política lin- pode-se sentir a necessidade da
jurídicas do uso das línguas na- guística, que não poderá deixar de importância da língua portadora
cionais são uma realidade político ter em conta o legado de Agostinho e difusora da cultura e das tradi-
e socio-cultural de Angola que se Neto sobre esta matéria, bem como ções angolanas. Sobre este quesito
pretende evidenciar neste breve a legislação vigente e toda a juris- Agostinho Neto orienta a criação
artigo enquadrado no debate de prudência assim como as disposi- de políticas que possam instaurar
ideias cuja necessidade de muitos ções internacionais a propósito. o reconhecimento e o respeito às
dos seus proponentes consiste no Quem acompanhar os discursos línguas nacionais para evitar resul-
exrcício da cidadania fazer-se sentir doutrinários de Agostinho Neto tados nada abonatórios me emper-
o respeito e valorização das línguas poderá constatar os desafios lega- rando o desenvolvimento do país.
nacionais veículo de identidade dos se nos ativermos quando fez Se não respeitarem as tradições, os
cultural e da idiossincrasia do povo ver ao país, com menos de quatro costumes, a história do povo, não se
angolano. Procurou-se reunir aqui anos de independência as questões poderia organizar nada. Em Ango-
as fontes legais com valor jurídico em torno da cultura angolana no la país plurilinguístico e multicul-
legitimadoras do uso das línguas discurso sobre a Cultura Nacional tural na perspectiva de Agostinho
nacionais como forma de demons- na tomada de posse do corpo diri- Neto, a comunicação oficial feita
trar a preocupação dos órgãos de gente da União dos Escritores An- em português devia coexistir com
dirieto sobre a política linguística. golanos, em 8 de Janeiro de 1979: as línguas nacionais, como afirma:
“Será necessário aprofundar as questões
Palavras-chave: Línguas nacionais, que derivam da cultura das várias na- “O uso exclusivo da língua portuguesa
Lei, Língua e Cultura. ções angolanas, hoje fundidas numa, como língua oficial, veicular e utilizá-
A realização do colóquio “Línguas dos efeitos da aculturação dado o con- vel actualmente na nossa literatura,
de Angola, Identidade e Sobera- tacto com a cultura europeia e a neces- não resolve os nossos problemas […]2.
nia”, foi que não deixou de ser um sidade de nos pormos de acordo sobre o Todo o desenvolvimento do problema
fórum apropriado de debate inte- aproveitamento dos agentes populares linguístico, naturalmente, dependerá
ractivo em que se aprofundou o da cultura e fazermos em Angola uma também da extinção das barreiras re-
conhecimento e estudo da política só corrente compreensiva da mesma”1. gionais, da consolidação da unidade
linguística, bem como os aspectos A partir desta realidade geográ- nacional, da extinção dos complexos
de soberania a ter-se em conta na fica, política e cultural com todas e taras herdadas do colonialismo, e do
preservação do conteúdo histórico desenvolvimento económico”3.
e socio-cultural encerradas em inú-
meros lexemas, particularmente
1
Neto, Agostinho (1979) Sobre a Cultura Nacional –
Discurso proferido na cerimónia da tomada de posse
nas palavras formadas por fonemas do corpo dirigente da União dos Escritores Angola-
nos para o biénio 1979/1980, em Luanda, a 8 de Ja-
pré-nasais, suscitou-nos a presen- 2
Idem, (2022). op. cit., pp. 189-190
neiro: In: MAAN (2022). O Pensamento Cultural do
te abordagem com o propósito de Dr. Agostinho Neto. Luanda, pp. 193-199. 3
Ibidem, (2022), p. 190

53
Estudos

À vista impunha-se o estatuto das o estudo, o ensino e a utilização das Esse mesmo dispositivo, tendente
Línguas Nacionais (LN) veículos demais línguas de Angola, bem como a salvaguardar a democracia cultu-
da tradição e cultura, e apesar de das principais línguas de comunicação ral, estabelece i) promover o acesso
o conflito armado ter retardado a internacional”5. A mesma redacção ao ensino e ao uso das línguas de
implementação das linhas orienta- serve de suporte legal à Lei n.º Angola, corrigindo o défice pro-
dores para um projecto de carácter 17/16 também chamada lei de bases vocado pela política de assimilação
nacional, foram tomadas contudo do sistemas de educação e ensino, colonial e pela situação de guerra
boas iniciativas como a realização que estabelece os princípios e as ba- que o país viveu; ii) utilizar de for-
de vários cursos e seminários so- ses gerais do Sistema de Educação ma mais assídua e extensa as lín-
bre Linguística Geral, antecedida de e Ensino, no artigo 16.º , em seu guas de Angola na divulgação de
um estudo aplicado de seis línguas ponto 1: “O ensino deve ser minis- programas económicos e sociais,
– umbundu, kimbundu, kikongo, trado em português”; no ponto três quer de instituições públicas, quer
cokwe, mbunda e oshiikwayama. inclui o direito de o ensino ocorrer de instituições privadas e promover
Em 1978, em Luanda, cria-se o Ins- em línguas de Angola: “sem pre- o uso das mesmas em todas as esfe-
tituto Nacional de Línguas visando juízo do previsto no n.º 1 do pre- ras da vida nacional; iii) prosseguir
a alfabetização. sente artigo, e como complemento o estudo científico das línguas de
Em 1985, o Instituto de Línguas e instrumento de aprendizagem, Angola, conferindo-lhes dignidade
Nacionais produziu o Esboço Fono- podem ser utilizadas línguas de An- institucional; iv) fomentar e apoiar
lógico tendo entre outros objectivos gola nos diferentes subsistemas de a criação literária e artística nos di-
a revisão dos primeiros seis alfabe- ensino, nos termos a regulamentar ferentes domínios, em todas as lín-
tos em línguas nacionais propostos em diploma próprio”6, cabendo a guas faladas em Angola.
para a sua aprovação. Um ano de- sociedade através do Instituto Na- A Lei da Política Cultural no âmbi-
pois o Conselho de Ministros4 apro- cional das Línguas Nacionais e aca- to das línguas de Angola espelha a
vou os alfabetos da línguas umbun- demias elaborarem propostas para posição do Executivo que “...consi-
du, kimbundu, kikongo, cokwe, o “estatuto” próprio para o efeito. dera a Língua como importante re-
mbunda e oxikwanyama e regras Um outro diploma legal sobre as lín- positório e veículo da cultura pelo
de transcrição de cada uma delas. guas de Angola tem a ver com a lei que lhe atribui estatuto científico
Surgia o primeiro instrumento de 15/11 sobre Política Cultural que dis- e jurídico...”, e dispõe meios e re-
legitimação na vertente jurídica põe no ponto 1: “A cultura angolana cursos para promover o “o estudo,
daquelas línguas, passaria a impor é africana e exprime-se nos seus valores o ensino e o uso das línguas nacio-
obediência à grafia no discurso es- materiais e imateriais que constituem o nais, e particularmente no sistema
crito. A nota introdutória justifica património cultural do povo angolano. do ensino e na comunicação social
a legitimação do uso das Línguas Os nossos sistemas de valores, profun- e encoraja a edição bilingue”.
Nacionais “suporte e veículo das damente enraizados na alma das diver- A temática “Conflito Linguístico
heranças culturais, exigem um sas comunidades que constituem o povo na Forma de Grafar os Topónimos
tratamento privilegiado, pois que angolano, manifestam-se no dia-a-dia e Antropónimos à Luz do Mosaico
constituem um dos fundamentos através das tradições, crenças, artes e Linguístico Angolano”, apresenta-
importantes da Identidade Cultu- sobretudo das suas línguas que apresen- da durante o colóquio “Línguas de
ral do Povo Angolano”. tam o essencial da nossa identidade”7. Angola, Identidade e Soberania”,
A lei suprema e fundamental da por Narciso Homem, é resolvida
República de Angola, no seu artigo pela Lei n.º 14/16, ou seja, pela
19.º, determina: “1. A língua oficial conhecida “Lei de Bases da Topo-
5
Constituição da República de Angola (2010). Luan-
da República de Angola é o portu- da: Imprensa Nacional, p. 11 nímia” segundo a qual, de acordo
guês; 2. O Estado valoriza e promove 6
Assembleia Nacional (2016). Aprova a Lei n.º 17/16 com o seu artigo 7.º: deve-se respei-
de Bases do Sistema de Educação e Ensino. Vide
Diário da República, I Série – N.º 170, Luanda: Im- tar e obedecer às normas da grafia
prensa Nacional, 7 de Outubro de 2016. dos topónimos, e no seu ponto dois,
4
A Resolução n.º 3/87, de Conselho de Ministros: Vide 7
Decreto Presidencial n.º 15/11: Aprova a Política Cultural
estipula que “Os topónimos, nas
Diário da República, I Série – n.º 41, Luanda: Impren- da República de Angola. Vide Diário da República, I Série
sa Nacional, 23 de Maio de 1987. – n.º 6. Luanda: Imprensa Nacional, 11 de Janeiro de 2011. demais línguas de Angola, são es-

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

critos em conformidade com as re- as línguas são a expressão de uma suas posições teóricas e orientado-
gras da grafia da língua correspon- identidade colectiva e de uma ma- ras visava conferir legitimidade as
dente devendo ser certificados pelo neira distinta de apreender e des- Línguas Nacionais – antes Línguas
Instituto das Línguas Nacionais”8. crever a realidade, pelo que devem Indígenas – para se evitar o mesmo
Como se sabe a toponímia diz res- poder beneficiar das condições ne- sentido pejorativo que lhe confe-
peito ao estudo histórico e linguísti- cessárias ao seu desenvolvimento riu Norton de Matos ao proibir
co da origem e evolução dos nomes em todas as funções”. A convenção peremptoriamente o seu uso nas
próprios dos lugares ou a desig- contempla no artigo 10.º a igualda- escolas pelo decreto n.º 77, de 9 de
nações das localidades pelos seus de das línguas em direito, deter- Dezembro de 1921.
nomes. É uma fonte histórica da mina que “Todas as comunidades
ciência onomástica. Um topónimo linguísticas são iguais em direito”. Referências bibliográficas
fornece o tempo histórico, factos, Nota-se a violação desses direitos
pensamento cultural que justificam quando um falante menosprezar a Neto, Agostinho (1979) Sobre a Cul-
o nome atribuído a um determina- língua ou rejeitar um antropónimo tura Nacional – Discurso proferido
do lugar. No caso do nome Bantu em línguas de Angola. na cerimónia da tomada de posse
há que conhecer o significado do A instituição do Dia Internacional do corpo dirigente da União dos
significante, por exemplo Kaxitu da Língua Materna na 30.ª sessão da Escritores Angolanos para o biénio
ou /ka/ xitu (Caxito), Muene Vunon- Conferência Geral da UNESCO, em 1979/1980, em Luanda, a 8 de Janei-
ge (Menongue), preservam uma 1999, tem sido comemorada todos ro: In: MAAN (2022). O Pensamento
história sócio-cultural e o último, os anos a 21 de Fevereiro, em memó- Cultural do Dr. Agostinho Neto. Luanda.
o poder político. “Todas as comu- ria de um grupo de estudantes que, Conselho de Ministros, Resolução
nidades linguísticas têm direito a a 21 de Fevereiro de 1952, na cida- n.º 3/87, Vide em Diário da República,
designarem-se a si próprias na sua de de Daca, capital de Bangladesh, I Série – n.º 41, Luanda: Imprensa
língua. Consequentemente qual- organizou uma campanha para Nacional, 23 de Maio de 1987.
quer tradução para outras línguas incluir o bengalês como uma das Constituição da República de Angola
deve evitar denominações confusas línguas oficiais do então Paquistão. (2010). Luanda: Imprensa Nacional,
e pejorativas”, dispõe a Declaração Em 2023 a data foi debatida sob o Assembleia Nacional (2016). Apro-
Universal dos Direitos Linguísticos da lema “Educação multilingue – uma va a Lei n.º 17/16 de Bases do Sis-
ONU pela Unesco, no artigo 33.º. necessidade para transformar a tema de Educação e Ensino. Vide
A Declaração Universal dos Direitos Educação”, com o objectivo de pro- Diário da República, I Série – N.º
Linguísticos9 da UNESCO, aprovado mover, preservar e proteger todas 170, Luanda: Imprensa Nacional,
na conclusão da Conferência Mun- as línguas faladas pelos distintos 7 de Outubro de 2016.
dial sobre Direitos Linguísticos rea- povos em todo o mundo. Enten- Decreto Presidencial n.º 15/11: Apro-
lizada de 06 a 09 de Junho de 1996, de-se por língua materna como a va a Política Cultural da República
em Barcelona, Espanha, tem sido primeira língua de comunicação da de Angola. Vide Diário da República, I
um instrumento pelo qual a UNES- pessoa, adquirida de forma natural, Série – n.º 6. Luanda: Imprensa Na-
CO incentiva os Estados membros através da interacção com o meio cional, 11 de Janeiro de 2011
a criar políticas em que não haja envolvente, sem intervenção de um Assembleia Nacional (2016). Apro-
discriminação de comunidades lin- professor, em sala de aulas, e sem a va a Lei n.º 14/16 de Bases da To-
guísticas minoritária. Assim, no seu reflexão linguística consciente. ponímia ao nível nacional e local.
artigo 7.º reconhece que “Todas Diante da legislação legitimadora do In: Diário da República, I Série – N.º
uso e protecção jurídica pode-se de- 155. Luanda: Imprensa Nacional,
duzir que as Línguas Nacionais de- 12 de Setembro de 2016.
8
Assembleia Nacional (2016). Aprova a Lei n.º 14/16 vem gozar de dignidade no desem-
de Bases da Toponímia ao nível nacional e local. In: * Mestre em Literaturas em Língua
Diário da República, I Série – N.º 155. Luanda: Im- penho do seu papel na sociedade. O
Portuguesa. Docente universitário.
prensa Nacional, 12 de Setembro de 2016. cidadão é livre por direito em expri-
9
https: // www.academia.edu / 40463926 / Decla-
Investigador no Departamento de
mir-se culturalmente na sua língua.
ra%A7%C3%A3o_universal_direitos_linguisticos; Apoio à Investigação do MAAN.
acessado 17 de Setembro de 2023. Por tal facto Agostinho Neto nas

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Estudos

MULTILINGUISMO E ENSINO
BILINGUE EM ANGOLA:

Problemas e Soluções Por: Maria Helena Miguel*

Resumo 1. Introdução No tocante ao ensino das línguas,


Em qualquer país com uma grande A questão linguística em Angola quer na aprendizagem escolar,
diversidade etnolinguística como An- constituiu, desde os primórdios da quer na idade adulta, entre mui-
gola, a atenção e a assunção de polí- independência, uma preocupação tos outros aspectos, sustento que
ticas linguísticas que garantam a de- dos políticos, embora, em nosso en- a aprendizagem da língua mater-
fesa e a preservação de todas as suas tender, ela não tenha sido assumida na é básica para toda e qualquer
línguas é uma exigência permanente. nem com a premência nem com a outra aprendizagem; que pais e
Caso contrário, poderá sobrevir o ris- dimensão que a situação exigia. encarregados de educação de-
co da despromoção das línguas, com Independentemente das razões vem poder escolher a língua em
redução gradual do número de falan- subjacentes a essa fraca atenção ao que as crianças hão-de ser educa-
tes e um iminente risco de sobrevivên- factor linguístico, a verdade é que, das em países em que há mais do
cia. Um factor com implicações gravo- hoje, a realidade aponta para um que uma língua oficial ou regio-
sas não só na valorização da língua, quadro pouco animador para as nal; que nenhuma criança pode
mas, também, pelo impacto negativo então designadas “línguas nacio- ser privada de educação na lín-
na qualidade de ensino é a situação de nais”, hoje “línguas africanas de gua oficial do Estado.
as crianças, quando entram na escola, Angola”. Quase meio século depois
verem a sua língua materna preteri- da independência, a nossa cons- O problema que abordaremos nes-
da, sendo-lhes ministrado o ensino tatação é que o expectável incen- te artigo incide, essencialmente, na
num idioma que não dominam. É tivo ao plurilinguismo e a defesa necessidade e na urgência da imple-
precisamente esta a situação de An- das línguas africanas redundaram mentação do ensino bilingue, um
gola, com um ensino monolingue em numa realidade que se caracteriza processo que as escolas angolanas,
português, cenário este resulta em pela crescente hegemonia do por- sobretudo as do meio rural há mui-
consequências danosas para o ensino tuguês que, como língua oficial e de to clamam por uma solução. Países
e para a condição das próprias línguas escolaridade, foi assumindo uma com situação idêntica à de Angola
que, sem funcionalidade socialmente multifuncionalidade quase exclusi- (África do Sul, Namíbia, Moçambi-
relevante, vão perdendo prestígio e va, relegando demais línguas ango- que, etc.), alguns com independên-
são relegadas para um plano secun- lanas para um uso que, raramente, cias mais recentes, implementaram
dário. Urge, pois, encetarem-se me- transcende o contexto informal ou já programas de ensino bilingue
didas para reverter este quadro, sob familiar. Corroboramos, com Vasco com resultados que começam a dar
pena de tornar irreversível a situação Graça Moura1, quando afirma que: frutos na perspectiva não só de um
de muitas das línguas africanas de An- ensino inclusivo, como, também, de
gola, para o que uma política linguís- melhoria da qualidade do ensino e
tica coerente e consistente se impõe. de valorização das línguas locais.
Depois de uma análise da situa-
Palavras-chave: multilinguismo, plu- ção linguística de Angola e da (in)
1 in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://
-rilinguismo, políticas linguísticas, existência do ensino bilingue que a
ciberduvidas.iscte-iul.pt/outros/diversidades/
ensino bilingue. multilinguismo/2056 [consultado em 17-07-2023] condição de multilinguismo do país

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

impõe, apresentamos subsídios que political area or political entity como um obstáculo para a mo-
entendemos oportunos para uma (EUROPEAN COMMISSION, bilidade social, com exceção das
política linguística consequente. Ire- 2007, p. 63). línguas de prestígio, como o in-
mos, pois, questionar a política da glês; ou que certos níveis de pro-
língua única no ensino, em Angola, Por conseguinte, o multilinguismo ficiência nas línguas de prestígio
as suas implicações do ponto de vista tem a ver com a coexistência seriam necessários para favorecer
linguístico, da qualidade do ensino de várias línguas numa mesma a mobilidade social dos sujeitos.
e, naturalmente, as repercussões so- comunidade, ambiente ou nação.
cioeconómicas para o país. Angola, Moçambique, Nigéria, O Brasil era um desses países
Zâmbia e tantos outros países que, até há pouco tempo viveu
2. Multilinguismo e plurilinguismo africanos são países multilingues. com o mito do monolinguismo.
‘Multilinguismo’ e ‘plurilinguismo’ O plurilinguismo refere-se às Cavalcanti, citado por Scherer
são, muitas vezes, utilizados como competências de um falante em (2013:88) refere que é importante
sinónimos talvez porque os radicais se comunicar em três ou mais observar que, por volta do ano de
que acompanham o termo “lingue” línguas. Um angolano que tenha, 1500, a população indígena era
têm significados equivalentes: por exemplo, o umbundo como aproximadamente de cinco milhões
‘multi’ provém de ‘multus’ e significa língua materna e que também se de pessoas e as línguas faladas eram
‘múltiplos’, ‘diversos’; ‘pluri’ tem expresse em português, em inglês cerca de 1300 das quais menos de
o mesmo significado: ‘muitos’, e em espanhol é plurilingue. duzentas sobreviveram. Agualusa
‘diversos’. Todavia, linguisticamente, Pode, igualmente, ser designado (2010) confirma essa realidade
representam realidades diferentes. de poliglota. Para ser plurilingue, e realça a política glotofágica do
A clarificação terminológica dos basta que o falante seja capaz de regime colonial:
dois termos foi dada pela Divisão de mobilizar recursos linguísticos
Políticas Linguísticas do Conselho que lhe permitam comunicar com “Deveriam existir cerca de 1200
da Europa, estabelecendo-se assim a interlocutores dessas outras línguas, línguas nacionais indígenas quan-
diferença. Deste modo, a Comissão quer de produção, quer de recepção do os portugueses desembarca-
Europeia2 apresenta o termo de mensagens ou de ambas. ram nas praias deste vastíssimo
“multilinguismo” como um termo Num passado não muito distante, território a que hoje chamamos
abrangente, estando assim definido: o multilinguismo era considerado Brasil. Actualmente, não existirão
uma desvantagem, havendo, mais de 180. Este terrível massa-
Multilingualism is understood inclusive, países que omitiam a cre linguístico terá sido um dos
as the ability of societies, sua realidade multilingue e se maiores crimes cometidos pelos
institutions, groups and assumiam como monolingues. A portugueses, e sobretudo por bra-
individuals to engage, on a perspectiva de Severo (2022:33) sileiros, ao longo de cinco séculos.
regular basis, with more than sobre esta questão confirma essa
one language in their day-to- realidade: Hoje, o Brasil assume-se orgulho-
day lives. […] In addition, the samente como país multilingue e
term multilingualism is used for …ideologias linguísticas reforça- definiu medidas extraordinárias
referring to the co-existence of das pelas instâncias governamen- em prol da promoção de muitas
different language communities tais e institucionais dos estados das suas línguas, ainda que minori-
in one geographical or geo- nacionais incluem a ideia de que tárias. Edleise Mendes (2020) pon-
as sociedades e as pessoas seriam tualiza algumas dessas pertinentes
naturalmente monolingues, sen- medidas em prol do multilinguis-
2
O multilinguismo é um dos objectivos da União do que multilinguismo seria visto mo, considerando-as, e com razão,
Europeia que promove amplamente a diversidade uma das ações de política linguís-
cultural e linguística e as línguas dos países
membros consideradas componentes essenciais tica mais notáveis e inovadoras no
do seu património cultural. A União Europeia apoia
mundo: a cooficialização de línguas
o multilinguismo nos seus programas e no trabalho 3
In Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 48, n. 3, p. 369-379,
que as suas instituições desenvolvem. jul./set. 2013, p. 374. em nível municipal:

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Estudos

“…no país, convivem, além do gestual portuguesa (LGP) como uma de falantes do português, em Ango-
português, as línguas indígenas, [as das três línguas oficiais de Portugal. la, era irrisório. As línguas africanas
línguas] de imigração e a LIBRAS A nível mundial, adveio a valorização eram línguas maternas da esmaga-
(Língua Brasileira de Sinais). Essa e a defesa do multilinguismo e a dora maioria dos angolanos. Mas,
grande diversidade linguística preocupação de preservação das apesar de as línguas mais faladas
traz consigo muitos desafios, tanto línguas. De acordo com o Ethnologue: serem as africanas, nenhuma tinha
no plano educacional, quanto Languages of the World4, considerado o uma representatividade maioritá-
no das políticas linguísticas maior inventário de línguas, existem à ria em termos do número de falan-
que são criadas para garantir volta de 7 200 línguas no mundo5, cerca tes, como se verifica nos dados que
a manutenção e a preservação de 40% das quais estão ameaçadas José Redinha apresenta em 1973.
das línguas minoritárias que e correm o risco de extinção. Esta
coexistem no mesmo território. preocupação levou a que, a 16 de
(…) Em 2020, ao lado do Maio de 2007, a Assembleia Geral
português e da LIBRAS, línguas das Nações Unidas mobilizasse os
oficiais em âmbito nacional, já são Estados-membros para promoverem
10 línguas indígenas cooficiais, a preservação e protecção de todas
em 8 municípios brasileiros, as línguas do mundo, tendo o ano
segundo dados do IPOL1. (…). de 2008 sido proclamado Ano
Já as línguas de imigração, são Internacional das Línguas, com vista
4 cooficiais, em 26 municípios a promover a unidade na diversidade
(…) Esses são exemplos de como e a compreensão internacional,
as comunidades são capazes através do multilinguismo e do
de lutar pelos seus direitos multiculturalismo.
linguísticos e, com isso, criarem
novos modos de ordenamento 3. Multilinguismo e política lin-
jurídico para as suas línguas. guística do Estado angolano
Em primeiro lugar, importa cla-
Outro exemplo de país antes mono- rificar o conceito de “política lin-
lingue e que agora despertou para guística”. Edleise Mendes (2020)
a existência de outra língua no seu refere que podemos compreender
território é Portugal: até 1999, o política linguística como as distintas
português era a única língua oficial acções e decisões tomadas sobre as
neste país. A partir desse ano, reco- línguas e a sua relação com a socie-
nheceu-se a existência do mirandês dade, determinando os seus nomes,
como língua cooficial de âmbito os seus modos de circulação, a sua
regional que no dizer do Prof. Dr. difusão e preservação, assim como
Ricardo Salomão, Vice-Coordena- que línguas devem ser ensinadas,
dor do MPLNM do Departamento para quem e em que contextos,
de Humanidades da Universidade entre outros aspectos. Com efei-
Aberta de Lisboa, citado por Wess to, línguas são questões de Estado.
(2015:93), o mirandês não é língua Antes da independência, o número
oficial, pois, para isso, todos os docu-
mentos oficiais teriam de ser, igual-
mente escritos nessa língua, e os cida-
4
http://www.ethnologue.com/
dãos poderiam dirigir-se a qualquer 5
O Site reconhece que o número de língua está
serviço também nessa língua, o que em constante mudança, porque as línguas estão
em fluxo, são organismos dinâmicos, usados por
não acontece. A par do portugês e do
comunidades com vidas moldadas por um mundo
mirandês, há quem inclua a língua em rápidas mudanças.

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

UNITA e FNLA _ assinaram os


Gráfico nº 1: Falantes das línguas africanas de Angola Acordos do Alvor6.
mais faladas antes da Independência Todavia, os três movimentos
envolveram-se em confrontos
armados, e cada um tentava, a todo
o custo, proclamar a independência,
unilateralmente. Embora os
três se pautassem pela defesa da
unidade nacional, cada um estava
associado a um determinado grupo
Vendas etnolinguístico e, por conseguinte,
detinha como principal zona de
influência, no território nacional,
regiões que coincidiam com as três
8% línguas mais faladas em Angola: a
UNITA, à língua umbundo, com
37% de falantes angolanos: o MPLA,
à língua kimbundo, com 25%, e a
FNLA, ao kicongo, com15%.
J. Redinha (1973)

Zonas de influência dos movimentos


de libertação, em 1975

Ao proclamar-se a independência, tor de grande diversidade linguís-


uma das grandes decisões que tica, desde a promulgação da nova FNLA
deveria estar previamente definida constituição, em 1997, reconheceu a 15%
seria a da língua oficial da nova importância das línguas africanas e, MPLA
Nação. Barbosa da Silva (2011:69) nessa perspectiva, estabeleceu onze 25%
aponta as razões que subjazem à delas como línguas oficiais. UNITA
necessidade de definição da língua Em Angola, o umbundo era, antes 37%
oficial do novo Estado: da independência, a língua com
maior representatividade (37% de
Después de la independencia era falantes), mas, mesmo que detives-
sumamente necesario crear, forjar se a maioria, a nosso ver, teria sido
una identidad nacional por enci- impossível a opção por uma políti- Na perspectiva de opção por uma
ma de la identidad étnica, capaz ca endoglótica, isto é, a decisão de política linguística endoglótica,
de mantener al nuevo país unido. optar por uma língua africana como portanto, escolha de uma língua
(…) Las elites africanas pronto se língua oficial.. Tal como a maioria africana para língua oficial, a lógica
dieron cuenta de que la lengua dos países africanos, com grande seria optar pela língua com maioria
sería una forma para lograr eso diversidade étnica, sem nenhuma de falantes que, neste caso, seria o
(…) y también de que la nueva língua maioritária, Angola optou umbundo. Todavia, três óbices se
nación debería ser construida bajo por uma política exoglótica, ou seja,
la imagen de una lengua oficial. a manutenção da língua do antigo
colonizador, portanto, de origem 6 Acordo assinado entre Portugal e os presidentes
Alguns países africanos, definiram, europeia, como única língua oficial. dos três movimentos, em que se reconheceu o direito
de Angola à independência, a ser proclamada a 11
previamente, a(s) sua(s) língua(s) ofi- Por que essa opção? Em 1975, os de Novembro de 1975, sendo os três movimentos
os legítimos representantes do povo angolano. Foi
cial(is). Por exemplo, a África do Sul, três movimentos que lutaram pela
assumido, por todos o compromisso de um governo
país que, tal como Angola, é deten- independência de Angola _ MPLA, de transição até à realização de eleições, em Outubro.

59
Estudos

opunham a esta opção: primeiro, Banza (2014, pág. 32), a opção 1978, transformado em Instituto
porque não era maioritária, pois pelo português como língua oficial de Línguas Nacionais, em 1985,
era falada por pouco mais de um de Angola, colocando o interesse a aprovação dos alfabetos das seis
terço da população; segundo, a sua nacional à frente de qualquer principais línguas nacionais, a Leis
localização territorial (Huambo, preconceito nacionalista foi, neste de Bases do Sistema de Educação,
Bié, Benguela, Cuanza-Sul, sentido, um primeiro e decisivo acto entre outras medidas que, todavia,
Huíla). Fora destas, nas demais de política linguística. Portanto, a não tiveram impacto na melhoria
províncias, num total de doze, grande diversidade étnica ditou a e desenvolvimentos das línguas
falavam-se outras línguas; por fim, opção por uma política exoglótica angolanas. O saldo é que, décadas
não acreditamos que, se a questão em Angola, assim estabelecida: após a independência, como
linguística tivesse sido considerada a língua portuguesa ficou como adiante veremos, registam-se
como um elemento a ter em conta língua oficial e as línguas africanas consequências pouco animadoras,
e se tomasse a decisão de, na angolanas ganharam a designação especialmente a nível da educação,
altura da independência, indicar de ‘línguas nacionais’ sem que, mas, também, das línguas africanas
a língua africana para assumir o todavia, lhe fosse atribuída as chamadas línguas nacionais.
estatuto de língua oficial, qualquer nenhuma função oficial. O escritor Agualusa (2010)
um dos movimentos optasse por Uma das razões que Barbosa da Silva reconhece, e com toda a razão,
outra que não a língua da sua (2010) aponta, do ponto de vista que as nossas línguas de origem
zona de influência: o MPLA, político, para a opção pela língua de africana não beneficiaram muito
pelo kimbundo, a UNITA pelo origem europeia como oficial: com a independência. De facto,
umbundo e a FNLA, pelo kikongo. Evitaría problemas causados por a língua portuguesa tornou-
Mas, esta opção comprometeria una posible elección de una lengua se hegemónica e sobrepôs-se às
seriamente a pretensa unidade africana como oficial del país, demais línguas angolanas, dada a
nacional constituindo um factor de impidiendo la valorización y la sua plurifuncionalidade (uso na
acirramento das potenciais divisões ascensión de un grupo étnico contra administração, veículo de ensino e
tribais; poderiam assumir uma los demás. Por lo tanto, fue elegida língua da imprensa, etc.). Correia
política linguística mesoglótica, la lengua de los colonizadores, pues (2020) define os procedimentos dos
adopção de duas línguas, uma es considerada neutral. países multilingues:
africana e a uma europeia, num O português como língua oficial ‘O crescimento da língua
processo de cooficialização. Mas o foi uma opção neutra, garantindo portuguesa não pode ser feito à
efeito seria o mesmo. Em todo o a unidade nacional do território, custa das demais línguas faladas
caso, não cremos que, na luta pela além de ser a única língua que nesses países, mas em parceria
proclamação da independência, as permitia à nova nação a sua com elas, florescendo todas em
questões linguísticas constituíssem projecção e relacionamento conjunto, respeitando-se assim a
preocupações ou prioridades de internacionais fundamentais ao seu identidade e as especificidades dos
cada um dos três movimentos, desenvolvimento. Esta foi, aliás, a vários povos que falam português
focados em ganhar a guerra e opção de vinte e sete dos cinquenta e trazendo mais cor, inteligência e
ter o domínio da capital para, aí, e quatro países do continente sabedoria a todos nós. Se há crítica
proclamarem a independência de africano: a política exoglótica, para que se possa fazer às autoridades
forma unilateral. salvaguardar a unidade nacional. dos países de língua portuguesa,
Ao proclamar-se a independência, Se, nos anos que se seguiram ela é precisamente a ausência de
assumiu-se o português como à independência tivessem sido uma reflexão que tenha em conta
língua oficial. Embora esse estatuto tomadas medidas pertinentes para não só a língua que nos une, mas
não estivesse plasmado na primeira gerir a situação de multilinguismo também o multilinguismo que nos
Constituição, o facto de o discurso em Angola, a situação seria torna diversos.’
de proclamação ter sido proferido diferente. Foram encetadas Na situação linguística de Angola
nesta língua legitimou-lhe esse algumas acções como a criação do a língua portuguesa sobrepôs-se
papel de língua oficial. Segundo Instituto Nacional de Línguas, em às demais línguas angolanas as

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conjunto, respeitando-se assim a identidade e as especificidades dos vários po-
vos que falam português e trazendo mais cor, inteligência e sabedoria a todos
nós. Se há crítica que se possa fazer às autoridades dos países de língua portu-
MEMORIAL
guesa, ela | InvestIgação
é precisamente , arte edeCultura
a ausência | AnO
uma reflexão queIItenha
- nºem4 •conta
DEz.não
2023
só a língua que nos une, mas também o multilinguismo que nos torna diver-
sos.'
Na situação linguística de Angola a língua portuguesa sobrepôs-se às demais línguas an-
golanas as quais, sem funcionalidade oficial, se restringem à comunicação familiar, informal,
com efeitos preocupantes. Se compararmos as estatísticas de falantes que Redinha apresentava
nos anos setenta e as do Censo de 2014, a tendência aponta para um decréscimo inquietante no
quais, sem funcionalidade oficial, número Gráfico
de falantescomparativo da percentagem
das línguas africanas em Angola.de falantes das quatro
se restringem à comunicação línguas mais faladas em Angola
Gráfico comparativo da percentagem de falantes das quatro línguas mais faladas em Angola
familiar, informal, com efeitos
0.37
preocupantes. Se compararmos as
estatísticas de falantes que Redinha
apresentava nos anos setenta e 0.25 1973 2014
0.23
as do Censo de 2014, a tendência
aponta para um decréscimo 0.15
inquietante no número de falantes
das línguas africanas em Angola. 0.08 0.08 0.08
0.07
A língua portuguesa é, hoje, a língua
mais falada e com maior abrangência
Umbundo Kimbundu Kicongo Cokue
territorial nacional. E, se, nos anos
A língua portuguesa é, hoje, a língua mais falada e com maior abrangência territorial na-
setenta, o número de falantes de
cional. E, se, nos anos setenta, o número de falantes de português era insignificante, em 2014,
português era insignificante, em das demais línguas angolanas. Em ternacionais com programas
os números apontam para uma mudança excepcional da situação, com a língua portuguesa a de-
2014, os números apontam para Moçambique, o escritor Mia Couto7 em língua portuguesa;
ter uma vantagem astronómica e as demais línguas angolanas a perderem terreno.
uma mudança excepcional da considera que “O paradoxo é que o • A literatura, quase exclusiva-
situação, com a língua portuguesa cimento da identidade moçambica- mente produzida em portu-
a deter uma vantagem astronómica na é a língua portuguesa”. guês;
e as demais línguas angolanas a Concretamente, em Angola, a ex- • Em certa medida, a música, por
perderem terreno. pansão do português viveu-se após acaso o domínio muito forte de
Para João Melo (2020) ‘Angola não a independência, com a guerra civil uso das línguas africanas.
possui uma política objectiva e afir- que provocou o êxodo de muita po- O escritor angolano Agualusa, em
mativa em relação à língua portu- pulação rural para as cidades, espe- 2010, já alertava para o facto de:
guesa ‹ e ‹ ausência dessa política ob- cialmente Luanda. Essa população, Um quarto de século após a
jectiva e afirmativa relativamente ao falante de diversas línguas, viu-se independência, esse número cresceu
português está na contramão, entre- obrigada a aprender o português de forma impressionante, devendo o
tanto, da sua expansão.’ Com efeito, para se relacionar entre si e com português ser hoje a segunda língua 8

os números, em termos de falantes a população urbana. Terminada a materna mais falada em Angola, logo
da língua portuguesa, em 2014, são guerra civil, voltaram para as suas depois do umbundo. Tal fenómeno,
extraordinários: em geral, 71,15% regiões de origem já com uma nova ainda pouco estudado, parece-me
dos angolanos falam português; no língua: o português. verdadeiramente espantoso. Pela
meio urbano, são 85% e, no meio ru- Resumidamente, os factores primeira vez uma língua de origem
ral, 49%. Estes números justificam, potencia(ra)m a expansão e a europeia conseguiu enraizar-se em
plenamente, o paradoxo histórico hegemonia da língua portuguesa África, tornando-se numa língua
da língua portuguesa a que alguns em Angola foram: africana, num espaço de tempo
autores aludem. Se não, vejamos: • A afluência de populações ru- muitíssimo curto e por acção dos
as autoridades coloniais institucio- rais para as cidades durante o próprios filhos do país. Haverá muitas
nalizaram o português como única conflito armado; explicações para este fenómeno e,
língua oficial, mas nos considerados • A extensão da estrutura admi- seria interessante se conseguíssemos
quinhentos anos de colonização, a nistrativa por todo o país; discutir algumas. Creio que entre
sua política glotofágica colonial teve • A massificação do ensino; elas está o facto de o português
um efeito incipiente comparativa- • Os media, sobretudo a televi- ter transitado, do regime colonial
mente com o que sucedeu depois são, com canais nacionais e in- para o novo regime de Angola
da independência em que o portu- independente, como língua de poder.
guês se estendeu mais, e foi em tor- Vemos, pois, a importância da im-
no dele que se consolidou o espírito plementação de políticas linguísticas
7
Numa entrevista, no programa “Fumaça”, em 25 de
de unidade nacional em prejuízo Julho de 2019 para, por um lado, revalorizarem as

61
Estudos

línguas africanas e, por outro lado, o falante abdica da sua língua ma- ensino precoce de línguas na escola.
adoptar para a língua portuguesa terna a favor de uma língua adicio- Em todo o mundo, a maior parte
medidas que garantam seu ensino/ nal com mais prestígio); das pessoas fala pelo menos duas
aprendizagem eficaz. · o bilinguismo aditivo, criado por línguas. O multilinguismo tem
O multilinguismo tem ganho terre- Lambert em 1974, é a condição vantagem não só a nível profissional
no na educação em todo o mundo, em que o falante não renuncia à como social e neurológico. O
sendo cada vez mais comum en- sua língua materna, no entanto, mundo globalizado e de grande
contrar alunos cuja língua materna posiciona-se numa perspectiva mobilidade exige pessoas poliglotas
não é a sua língua de instrução. Em monoglótica, uma vez que as duas que se exprimam em várias línguas.
muitos países, Angola incluída, há línguas não interagem entre si; Em termos de políticas linguísticas,
escolas que oferecem um ensino · o bilinguismo dinâmico proposto o compromisso da UNESCO para a
numa língua estrangeira e, conco- por García (2009) é aquele em que educação inclui, desde 1999, a con-
mitantemente, ensinam a língua o falante é, efectivamente, bilingue. sideração de uma “educação multi-
oficial local ou nacional. Trazemos esta classificação para lingue”, com o uso de pelo menos
Se, por um lado, o multilinguismo compreendermos as razões por três línguas na educação:
tem a ver com uma maior mobili- que, num passado recente, ao in- • a língua materna;
dade das populações, por outro, vestigarem-se os falantes bilíngues, • uma língua regional ou nacional;
deve-se também à necessidade na primeira metade do século XX, • uma língua internacional.
crescente de educar cidadãos que havia teorias que consideraram
se entendam em mais do que uma o bilinguismo uma desvantagem 2.2. Bilinguismo escolar
língua e ao facto de o inglês se ter para as crianças em relação às que Tal como o conceito de bilinguismo,
transformado em língua franca. apenas aprendiam uma língua. Jus- também o de educação bilíngue
tificava-se que, mantendo as duas envolve várias dimensões. Pressupõe
4. Bilinguismo e bilinguismo escolar línguas, as crianças podiam con- conceitos distintos em países e
2.1. Bilinguismo fundi-las, a sua inteligência seria contextos diferenciados considerando
Bilinguismo pode ser definido menos desenvolvida, teriam menos questões étnicas, questões que têm a
como o domínio de duas línguas autoestima, apresentar comporta- ver com os educadores e legisladores
por um falante. A palavra ‘bilingue’ mentos desviantes, desenvolver du- e, ainda, factores sócio-políticos.
tem várias definições, dependen- pla personalidade, etc. Isso desen- Pesquisas mostram que a educação
do da fonte, há uma resposta dis- corajava muitos pais de usar a sua na língua materna é um fator-
tinta. Autores há que consideram língua materna com os filhos. chave para a inclusão e eficiência de
que, para ser bilingue, basta que Seria interessante desenvolver um uma aprendizagem de qualidade,
o falante possua habilidades de es- estudo sobre o caso de Angola, pois aumenta a velocidade de
cuta, fala, leitura e escrita nas duas para justificar a redução do núme- aprendizagem e compreensão
línguas, mas outros só consideram ro de falantes das línguas africanas além de melhorar os resultados
bilíngues os que possuem domínio que parece assentar no caso de bi- de aprendizagem e o desempenho
completo da língua. Outros auto- linguismo subtractivo da parte dos académico, para além de ajudar a
res defendem que a proficiência pais que, não só abdicam das sua preservar a riqueza do património
em duas línguas é o único critério línguas nativas, como não as ensi- cultural e tradicional que está
que define o bilinguismo. Neste nam aos seus filhos. Este constitui incorporado em todas as línguas
trabalho, ater-nos-emos ao conceito o processo mais marcante do des- em todo o mundo.
de que bilinguismo é a situação de prestígio de uma língua. Como referimos, não há unanimi-
uma pessoa que é capaz de manejar Hoje, está provado que as crianças dade entre os autores, sobre o que
dois códigos linguísticos distintos. bilingues apresentavam resultados considera ensino bilingue. Mackey
Relativamente ao bilinguismo, con- melhores do que as monolíngues (1972), citado por Megale (2005:7),
sidera-se a existência de, entre ou- em testes de inteligência verbal alerta para as variadas situações em
tros, três tipos: e não verbal. Por isso se tem que se considera ensino bilingue,
· o bilinguismo subtractivo (em que implementado, cada vez mais, o dando os seguintes casos:

62
MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

Escolas no Reino Unido nas quais ensino em Angola, que incidiu nas facilmente, em conflito cultural
metade das matérias escolares é seguintes vertentes: porque o estudo exclusivo de
ensinada em inglês são denominadas 1. Um país multilingue com uma uma língua supõe uma referência
escolas bilíngues. Escolas no Canadá única língua de escolaridade, permanente a uma escala de
em que todas as matérias são o português, que, embora com valores extralinguísticos de
ensinadas em inglês para crianças cobertura nacional, não era/é do ordem cultural e moral.
franco-canadenses são denominadas domínio de muitas crianças ao
bilíngues. Escolas na União Soviética ingressarem na escola, facto que não 2. O ensino do português como
em que todas as matérias exceto o favorece a inclusão, pelo contrário, língua materna quando, para a
Russo são ensinadas em inglês são provoca a exclusão, para além do grande parte das crianças angolanas,
escolas bilíngues, assim como escolas impacto negativo na preservação o português é língua segunda;
nas quais algumas matérias são das línguas africanas, no nosso 3. O distanciamento entre a língua
ensinadas em georgiano e o restante caso. Joseph Poth, especialista falada e a norma exigida (padrão
em russo. Escolas nos Estados em didáctica de línguas junto do europeu) no ensino do português
Unidos nas quais o inglês é ensinado Instituto Nacional de Educação da que, muitas vezes, nem os próprios
como segunda língua são chamadas República Centro Africana, citado professores dominam;
escolas bilíngues, assim como escolas por Zau (2018) refere que: O inevitável impacto negativo destas
paroquiais e até mesmo escolas opções foram/são os elevados índices
étnicas de final de semana. Na medida em que a língua de reprovações e de abandono
Perante esta profusão de situações, materna, na qual até então se escolar, para além da reconhecida
da nossa parte, vamos assumir o exprimiu e se afirmou, corre baixa de qualidade do ensino. Por
bilinguismo escolar como o caso o risco de ser brutamente conseguinte, é incontornável que se
em que, numa escola, a oferta rejeitada. Esta língua, embora invista rapidamente no processo de
formativa se processa ora numa rica em valores profundos e em inclusão das línguas maternas das
língua ora noutra, de acordo com meios de expressão, passa a ter, crianças.
a condição linguística do aluno ou aos olhos da criança, um valor Se é certo que não há políticas lin-
com a sua preferência. social inferior ao da língua de guístas consequentes em Angola,
O bilinguismo escolar é uma das importação, pelo simples facto de podemos destacar que a lei angola-
alavancas para melhorar a qualida- só esta última ser julgada digna na estabelece direitos que, na práti-
de da educação. Quando, em 1977, de ser ensinada e estudada. O ca, não são cumpridos. Ressaltamos
o Presidente Agostinho Neto refe- conflito linguístico degenera, as seguintes:
riu que o uso exclusivo do portu-
guês não resolveria os nossos pro-
blemas de ensino e que, tanto no
Ensino Primário, como, provavel-
mente no Médio, seria preciso uti-
lizar as nossas línguas, já visionava
o modelo de educação bilingue, um
enfoque incontornável num país
multilingue e multicultural como
Angola. Para as comunidades com
este perfil, a UNESCO considera
que o melhor processo para ensi-
nar as crianças é através da sua lín-
gua materna no ensino primário.
Desde 1977, as políticas linguísticas
angolanas conduziram a um desa-
juste metodológico nocivo para o

63
Estudos

• Ninguém pode ser prejudicado, reconhecesse a necessidade de de língua como veículo de ensino.
privilegiado, privado de qualquer inclusão das línguas africanas como O projecto arrancou em 2007, mas
direito ou isento de qualquer de- matéria e como línguas de ensino. estagnou na sua fase piloto. Em
ver em razão da sua (…) língua. Chicumba (2019:63) esclarece que: 2014, Narciso dos Santos, então
Art. 23º da Constituição da Depois da independência política em Secretário de Estado para a For-
República de Angola. Ora, em 1975, a Reforma Educativa realizada mação e o Ensino Técnico Profis-
nosso entender, as crianças que em 1977 procurava materializar sional do Ministério da Educação
entram na escolar e não do- a vontade das comunidades de Angola8, referiu que estava em
minam a língua que serve de linguísticas de verem as suas línguas execução o Projecto-piloto de uti-
veículo de ensino, estão a ser maternas introduzidas no Sistema lização das línguas nacionais como
prejudicadas, ao ser-lhes ne- Nacional de Educação e Ensino. vectores de saber e como discipli-
gado um ensino na sua língua; As mudanças que foram então na de estudo. Em 2009, previa-se
• o ponto dois Artigo 80.º da realizadas permitiram a alteração proceder à extensão do programa
Constituição, sobre a Infância, do programa que tinha o português a nível nacional, mas a indisponibi-
define que as políticas públicas no como a única língua de ensino. lidade de material didáctico invia-
domínio da família, da educação Desta forma começava a desenhar- bilizou o processo.
e da saúde devem salvaguardar o se o modelo de educação bilingue, A implementação do projecto da
princípio do superior interesse da programa ideal para um país de perfil inserção das línguas africanas no
criança, como forma de garantir o multilingue e multicultural (…). ensino, por enquanto ficou apenas
seu pleno desenvolvimento físico, Se, na Reforma Educativa de 1977, reservado para as universidades,
psíquico e cultural. Este é outro as- se pensou em introduzir as línguas onde já há até mestrados em
pecto em que o Estado falha. As africanas no ensino, todavia, o facto línguas nacionais.
políticas públicas no domínio da de não estarem padronizadas nem
educação são definidas, porém, terem sistematização gramatical 3. Algumas soluções para a situação
os resultados, como é do conhe- inviabilizou o processo de ensino linguística de Angola
cimento geral, são muito precá- em línguas nacionais que começou Miguel (2022:142) refere que uma
rios, como atesta a baixa qualida- nos subsistemas de alfabetização política linguística consequente
de do ensino, a todos os níveis; e de ensino de adultos, com implica o conhecimento profundo e
• Por seu lado, o Art. 87.º (Pa- resultados positivos. actualizado da realidade linguística
trimónio Histórico, Cultural e Entretanto, o recorrente insucesso do país. Nessa perspectiva, aponta
Artístico) estabelece que os cida- escolar em Angola, em grande as medidas abaixo que a mesma
dãos e as comunidades têm direito ao parte devido ao ensino monolíngue, autora já indicara, nomeadamente:
respeito, à valorização e à preserva- conduziu à adopção do “Projeto de 1. Realização de uma ampla pesqui-
ção da sua identidade cultural, lin- Ensino Bilingue” fundado na Lei sa demolinguística;
guística e artística. Pelo caminho 13/2001, da LBSE. Foram definidas 2. Elaboração do Inventário Naci-
que as línguas africanas seguem, as zonas de experimentação (Cuanza onal da Diversidade Linguística
é evidente que também esta lei Norte, Mbanza Congo, Saurimo, de Angola;
está a ser ignorada. Menongue, Njiva, cidade do Huambo 3. Aposta na formação de professores
e Lubango). O projecto incluia: de língua portuguesa língua ma-
2.1. As línguas de e no ensino em • 105 professores; terna e português língua segunda
Angola • 5 250 alunos; bem como professores das diver-
Após a independência, nas várias • 21 escolas de áreas rural, periurbana sas línguas africanas;
reformas de ensino, a questão e urbana. 4. Incremento de medidas resolutas
linguística nunca foi tratada à O modelo adoptado, consistiu para resgatar as línguas africanas
dimensão da sua importância. na inserção das línguas africa-
Ao longo dos anos, o português nas como unidades curriculares,
8 Conferência Internacional do CIEP, sobre “O
manteve-se como única língua embora previsse, numa fase mais sucesso da educação em África: o desafio das
de escolaridade, embora se adiantada, passar para a inclusão línguas”, Março de 2014.

64
MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

de Angola e implementação do cional, sendo o francês ou inglês, abandono escolar, resultando a ex-
multilinguismo, o que pressupõe como já é habitual. clusão social das comunidades;
a atribuição de funcionalidade a Por conseguinte, inserção de lín- 3. A deficiência dos sistemas educati-
essas línguas africanas, processo guas africanas na grelha curricular vos e a escassez de profissionais capa-
esse que implicará: do ensino, para além das línguas citados, por exemplo, professores nas
• A co-oficialização regional de estrangeiras, como sempre existiu. escolas que falem mais de uma língua
línguas africanas de Angola; ou a variedade da comunidade.
• A instauração do ensino bi/ Conclusões Em síntese, urge definir políticas
multilingue: escolas fariam oferta Analisada a situação das línguas de linguísticas assertivas que concorram
de ensino em língua da sua ensino em Angola, a não adopção de não só para melhorar a oferta
zona de localização. As crianças políticas linguísticas consequentes e formativa, garantindo que a escola
que optassem por uma língua os efeitos perversos dessa falta de prepare cidadãos qualificados para
africana como língua de ensino, decisões sobre a situação linguística actuarem nesta nova sociedade,
teriam o português como unidade de Angola, concluímos o seguinte: como também para incrementar a
curricular. A partir da quinta classe 1. A heterogeneidade linguística está (re)valorização das línguas africanas,
o ensino seguiria em português reconhecida pelo poder legislativo, po- tornando-as formalmente funcionais.
e a língua africana continuaria rém, a implementação e os resultados
como unidade curricular. Em reais só acontecerão com investimen- Referências bibliográficas
termos concretos, na aplicação das tos e infraestruturas disponíveis e isso Agualusa, José, (2010) A língua por-
orientações da UNESCO, o ensino requer tempo. As políticas linguísticas tuguesa em Angola. Língua materna
angolano poderia prever: em Angola não têm favorecido a in- vs. língua madrasta. Uma proposta de
· O recurso à língua local como veí- clusão e a justiça social de crianças que paz, https://ciberduvidas.iscte-iul.
culo e/ou como matéria de ensino; têm línguas africanas como maternas. pt/artigos/rubricas/idioma/a-lin-
· O recurso à língua oficial, neste 2. A educação monolíngue de An- gua-portuguesa-em-angola-lingua-
caso o português, como veículo e/ gola tem incidência negativa no en- -materna-vs-lingua-madrasta-uma-
ou como matéria de ensino; sino: baixa qualidade do ensino, os -proposta-de-paz/2231 [consultado
· O ensino de uma língua interna- índices de reprovações elevados, o em 18-07-2023].

65
Estudos

66
MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

Banza, Ana Paula (2014), O portu-


guês em Angola: uma questão de polí-
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Severo, Cristine Gorski, (2019), Megale, Antonieta Heyden (2005) um país “monolíngue”, in Cadernos
Políticas linguísticas em Angola: sobre Bilinguismo e educação bilíngue – do CEOM - Ano 27, n. 40 - Histó-
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in Políticas linguísticas em Angola de Estudos da Linguagem – ReVEL. min,+1951-6612-1-CE.pdf, [con-
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multilinguismo na educação e na socie- Educação bilíngue: uma breve discussão, três antigas colónias portuguesas (Ango-
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Correia, Margarita, (2020), Do res- Aplicada, v. 9, n.1, p. 118-140, 2010. passado e presente, Dissertação de Mes-
peito pelo multilinguismo: Falhas e Melo, João (2015), Angola, país mul- trado em Português como Língua
inconsistências da lista das línguas tilingue. In Jornal de Angola, 15 de Não-Materna na área de Políticas de
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iscte-iul.pt/artigos/rubricas/idioma/ topolítica e ensino bilingue em Angola: questão linguística em Angola, in
do-respeito-pelo-multilinguismo/ subsídios para uma política linguística Ciberdúvidas da Língua Portugue-
4166 [consultado em 22-07-2023]. consequente, in IPSIS VERBIS nº 1. sa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/
Gaspar, Sofia Isabel Neves Fernan- Nhampoca, Ezra Alberto Chambal outros/diversidades/linguas-africa-
des (2015), A Língua Portuguesa em (2015), Ensino Bilingue em Moçambi- nas-no-ensino-e-seu-estatuto-politi-
Angola: contributos para uma meto- que: introdução e percursos. co/3712 [consultado em 25-07-2023]
dologia como língua segunda, Disser-
tação de Mestrado em Ensino do * Maria Helena Ramos Pereira dos Santos Miguel é natural da Gabela, Kuanza-Sul.
Português como língua segunda e Foi directora do Instituto Médio Normal e do Pré-Universitário no Bié, onde começou a
estrangeira. sua carreira como professora de Português.
Em Luanda, leccionou no INE Garcia Neto e, depois de se licenciar em Língua Portuguesa,
Gorski, Cristine Severo e Nhampo-
no ISCED-Luanda, com uma parte da formação curricular feita na Universidade do Mi-
ca, Ezra (2022), Políticas linguísticas nho, Portugal, foi docente nessa mesma Instituição (ISCED) de Luanda, durante dois anos.
educacionais em contextos multilingues Em 1999, ingressou na Universidade Católica de Angola, onde se mantém até à data.
africanos, in Revista Letras, Curiti- Em 2009, concluiu o Mestrado em Ensino da Língua Portuguesa, na Universidade Agostinho Neto.
Possui várias obras didácticas publicadas, artigos e um livro de contos.
ba, ufpr, n. 105, pp. 29-44, jan./jun. Desde 2013, é Vice-Reitora para Área Académica da Universidade Católica de Angola,
2022 (versão electrónica). cargo que ocupa até à data, acumulando com as funções de docente.
Lopes, Ângela Filipe e Castro Pinto, Foi mentora e co-fundadora da Cátedra de Língua Portuguesa na Universidade Católica
de Angola, onde é Investigadora efectiva.
Maria da Graça L., (2017), Do Ensi-
É doutoranda em Didáctica do Português, Multilinguismo e Educação para a Cidadania
no bilingue em Moçambique: elementos Global, nas Universidade Nova de Lisboa e Universidade Aberta.
em jogo na sua implementação e desen-

67
Acção Cultural
• EVENTOS CIENTÍFICOS
• PUBLICAÇÕES
• EXPOSIÇÕES
• LEITURA
• MÚSICA
• INICIAÇÃO ÀS ARTES,
FORMAÇÃO ARTÍSTICA
E PROMOÇÃO DO
CONHECIMENTO
Acção Cultural - Eventos Científicos

COLÓQUIO LÍNGUAS DE ANGOLA,


IDENTIDADE E SOBERANIA

“A questão das línguas de Angola é e Soberania”, iniciativa que O Colóquio teve como principais
uma problemática que vem sendo pretendeu obter contribuições úteis objectivos:
discutida por todos os estratos da para que as instituições de direito i) Reafirmar o interesse sobre a im-
sociedade angolana em distintos possam encarar as possíveis soluções portância de se manterem vivas as
espaços e plataformas, o que a propósito das que se levantam. Na línguas angolanas em paralelo com
desde logo revela a preocupação ocasião, o excelentíssimo Director a língua oficial portuguesa;
e o interesse de todos acerca de do Instituto Nacional de Línguas ii) Propor aos órgãos de direito re-
tal tema e reflecte preocupação Nacionais, Doutor José Domingos ver a toponímia no sentido de re-
quanto à aplicação do pensamento Pedro, em representação de Sua por a sua grafia etimológica e que
da política linguística de Angola Excelência Sr. Ministro da Cultura possam os topónimos ser veiculadas
legado pelo primeiro Presidente de e Turismo, no discurso que marcou com o seu significado cultural;
Angola, o Dr. António Agostinho a sessão de abertura do Colóquio iii) Solucionar o conflito existente na
Neto. Nesse sentido, às portas da reconheceu que o evento se realizava grafação de substantivos de acordo
celebração do Dia de África, aos 24 na perspectiva do “mais alargado com os fonemas convencionados no
de Maio de 2023, numa iniciativa possível debate de ideias..., sem alfabeto das línguas nacionais;
do Memorial Dr. António Agostinho quaisquer preconceitos de carácter iv) Influenciar estudiosos para
Neto, realizou-se no seu auditório artístico ou linguístico”, tal e qual a publicação de livros, como
o Colóquio subordinado ao Tema: ensinou o Presidente Dr. António dicionários, gramáticas e manuais
“Línguas de Angola, Identidade Agostinho Neto. conversacionais que permitam o
aprendizado das línguas nacionais;
V) Reflectir sobre o pensamento de
política linguística formulado pelo
Dr. António Agostinho Neto;
vi) Reflectir sobre a realidade
linguística actual no país e os
desafios que apresenta.
O Colóquio “LÍNGUAS DE AN-
GOLA IDENTIDADE E SOBERA-
NIA”, contou com a participação
de 230 participantes designada-
mente, representantes dos diversos
ministérios cuja acção se relaciona
também com o tema analisado,
responsáveis de órgãos do Estado,
académicos, investigadores, escrito-
res, forças de ordem e segurança,
associações de estudantes e de cul-
tura, artes e da literatura Angolana.
Durante o Colóquio estruturado
em dois painéis, tendo como mode-

70
MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

rador o Dr. Benjamim Fernando,


foram apresentadas as comunica-
ções “Antropologia Linguística de
Angola”, tendo como orador o Dr.
Virgílio Coelho , “Língua Materna
ou Nativa”, tendo como orador
o Dr Albano Cufuna , “Línguas
Vivas, Línguas Mortas e Línguas
Bloqueadas - Reflexões sobre a
Questão Linguística em Angola e
mais além”, tendo como oradora
a Dra. Maria da Conceição Neto,
“Historiografia e (Des)Valoriza-
ção das línguas de Angola”, tendo
como orador o Dr. Peres Sasuku, “A
Valorização da Lexicultura dos An-
tropónimos em Língua Angolana”
tendo como oradora a Dra Ana Pita
Grós Martins da Silva, “Conflito
Linguístico na Forma de Grafar os
Topónimos e Antropónimos à Luz constatar nas distintas comunicações. ou o multilinguismo que caracteriza
do Mosaico Linguístico Angolano”, O Colóquio analisou os aspectos a maioria das sociedade negro-afri-
tendo como orador o Dr. Narciso que se reputam essenciais no uso canas não constitue barreira algu-
Homem, “As Línguas Olunhaneca, da língua portuguesa e vincou a ma na elaboração de uma política
Herero e Oshihambo - Um Olhar soberania de Angola em usar os fo- linguística, pelo que a sociedade e
Sobre a Experiência do Seu Ensi- nemas pré-nasais das palavras que o Estado devem redobrar esforços
no e Aprendizagem nos Últimos emigram das línguas nacionais para para que haja investimentos para a
5 anos nas Províncias da Huíla, o português sem os quais tais pala- investigação, elaboração de gramá-
Namibe e Cunene”, tendo como vras pendem todo o seu sentido e ticas, dicionários e manuais conver-
orador o Dr. Ovídio Pahula, “Pro- veem o seu significado adulterado sacionais em línguas nacionais. As
blemática do Ensino em Contexto (Ex: Ngola e gola; Mfumu e fumo; línguas nacionais estão a perder pu-
de Multilinguismo em Angola: Pro- Mvila e Vila…). O mesmo se coloca jança o que é preocupante. A urba-
blemas e Soluções”, tendo como quanto ao uso do k e do c. Ex: Maka nização, o êxodo das populações ru-
oradora a Dra. Maria Helena Mi- e maca; Kota e cota… Estes são al- rais para as cidades, onde têm que
guel, “As Ditas Línguas Nacionais”, guns exemplos bem conhecidos pe- aprender o português, a industriali-
tendo como orador o Dr. Pedro los falantes das Línguas Nacionais e zação e a grande comunicação social
Ângelo da Costa Pereira e, final- investigadores da linguística bantu. nacional e internacional, toda feita
mente, o tema “Línguas de Angola: O Colóquio enalteceu o importante em português, levam ao enfraqueci-
Dúvidas e Dilemas “, tendo como papel das Línguas Nacionais como mento das línguas. Um dos grandes
orador o Dr. António Fonseca. veículo da cultura e identidade e problemas não é a falta de medica-
Nas suas conclusões o colóquio “Lín- soberania na construção da ango- mentos, nem a falta de médicos ou
guas de Angola, Identidade e Sobe- lanidade de Cabinda ao Cunene, hospitais e de juízes, etc ... mas a
rania” demonstrou que o pensamen- bem como para o desenvolvimento falta de comunicação e conhecimen-
to do Dr. António Agostinho Neto de Angola - um país plurilinguístico to das línguas e cultura nacionais.
sobre a política linguística de Angola e multicultural entrançadas e espe- No final do evento, foram produzi-
não se reflecte apenas à época, mas lham uma Nação, pois, perder uma das as seguintes Conclusões e Reco-
continua a ser uma prioridade de so- língua é perder um povo e a sua mendações remetidas às instituições
berania de Angola como foi possível cultura. A multiplicidade de línguas, de direito:

71
Acção Cultural - Eventos Científicos

Conclusões conversacionais em línguas nacionais.


As línguas nacionais estão a perder
O Colóquio “Línguas de Angola, pujança o que é preocupante.
Identidade e Soberania” demons- A urbanização, o êxodo das popula-
-trou que o pensamento do Dr. An- ções para as cidades, onde têm que
tónio Agostinho Neto sobre a po- aprender o português, a industria-
lítica linguística de Angola não se lização e a grande comu-nicação
enquadra apenas na época em que social nacional e internacional, toda
foi formulado, mantém-se actual e feita em português, levam ao enfra-
continua a ser uma prioridade de so- quecimento das línguas.
berania de Angola, tal como se cons- Um dos grandes problemas não é a
tatou nas distintas comunicações. falta de medicamentos, nem a falta de para o efeito, quer a nível do
O Colóquio analisou os aspectos médicos ou hospitais e de juízes, etc. ... magistério primário, quer a nível
que se reputam essenciais no uso mas a falta de comunicação e conheci- dos institutos médios de educação,
da língua portuguesa e vincou a mento das línguas e cultura nacional. quer ao nível das instituições do
soberania de Angola em usar os ensino superior;
fonemas pré-nasais das palavras Recomendações 5. Rever a Constituição da República
que emigram das línguas nacionais de Angola e acrescentar dis-
para o português sem os quais tais Línguas de Angola, Identidade e posições que deixem claro, de
palavras perdem todo o seu sentido Soberania constitui uma importante forma específica, a importância e
e veêm o seu significado adulterado fonte de conhecimento sobre a utilidade ou funcionalidade das
(Exemplos: Ngola e gola; Mfumu e história e cultura de Angola. Por línguas nacionais.
fumo; Mvila e Vila; …). O mesmo essa razão, recomenda-se: 6. Alterar a redacção da alínea n) do
se coloca quanto ao uso do K e do artigo 21.º da Constituição da Re-
C. Exemplos: (Maka e maca; Kota e 1. Criar condições para que as pública de Angola na expressão
cota; …). Estes são alguns exemplos línguas nacionais sejam ensinadas “línguas angolanas de origem afri-
conhecidos pelos falantes das nas escolas, promovendo assim os cana...’’ para “línguas nacionais”.
Línguas Nacionais e investigadores valores matriciais da angolanidade 7. De acordo com as necessidades dos
da linguística bantu. e favorecendo o processo de respectivos contextos, introduzir
O Colóquio enalteceu o importante ensino e aprendizagem. um subsistema de ensino primário
papel das Línguas Nacionais como 2. Promover a toponímia angolana em línguas nacionais que permita
veículo da cultura e identidade e pela sua correcta grafia para conferir preparação no aproveita-
soberania na construção da ango-la- salvaguardar os valores e mento escolar e evite desistências
nidade de Cabinda ao Cunene, bem memórias histórico-culturais e ou abandono por falta de domínio
como para o desenvolvimento de An- identitárias em obediência à Lei da língua portuguesa;
gola que é um país plurilin-guístico de Bases da Toponímia; 8. Considerar que a Academia e
e multicultural e perder uma língua 3. Atribuir um orçamento para a eventos científicos como coló-
seria perder a cultura que ela veicula. investigação em ciências sociais quios desta dimensão e importân-
A multiplicidade de línguas, ou e em humanidades de modo a cia devem ser fontes autorizadas
o multilinguismo que caracteriza que as línguas nacionais possam a discutir e a servir de charneira
a maioria das sociedades negro- progredir em paralelo com a para a monitorização da Política
africanas não constitui barreira língua portuguesa; Linguística Nacional;
alguma na elaboração de uma 4. Aprovar programas para o ensino
política linguística, pelo que a so- das Línguas Nacionais encarando Memorial Dr. António Agostinho Neto,
ciedade e o Estado devem redobrar a utilização de monitores para em Luanda, 24 de Maio de 2023.
esforços para que haja investimentos o ensino de tais línguas, e
para a investigação, elaboração de promovendo a formação de A Comissão Científica do Colóquio Lín-
gramáticas, dicionários, manuais professores com competências guas de Angola, Identidade e Soberania.

72
MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

Ciclo de Conferências

N
o âmbito da celebração - Conferência “Da Transatlanticidade: -guística e Identidade Cultural” na
do Centenário do Dr. An- notas sobre a economia simbólica Universidade Jean Piaget;
tónio Agostinho Neto e a estruturante dos campos literários Subtema2: “Por uma Crítica da Ra-
convite do Memorial Dr. António angolano e brasileiro” na Faculdade zão Moderna: Literatura, Urba-ni-
Agostinho Neto deslocou-se ao pais de Humanidades da Universidade dade e ruralidade na Escola Supe-
o Professor Doutor Anelito de Oli- António Agostinho Neto; -rior Pedagógica do Bengo”.
veira, da Universidade Federal de - Mesa Redonda com o tema “Agos- Anelito de Oliveira é Doutor em
Minas Gerais, do Brasil, para em tinho Neto e a Poética do Múltiplo” Literatura Brasileira pela USP e
parceria com diferentes instituições no Memorial Dr. António Agosti- Doutor em Teoria Literária pela
de ensino e associações literárias, nho Neto; Unicamp. O mesmo possui diversos
desenvolver um leque de activida- - Conferencia: “A Política Colonialista graus académicos, e experiências
des dentre as quais as seguintes: dos Signos Verbais: sobre o funda- na área da Literatura. Dedicado a
- Seminário sobre teoria, história e mento ideológico da língua oficial projectos no âmbito cultural, mediá-
estudos literários, no Memorial Dr. português e seu lugar na dinâmica ticos e educacionais é pesquisador,
António Agostinho Neto e na União de dominação” no Centro Cultural jornalista, escritor, editor e profes-
dos Escritores Angolanos; Dr. António Agostinho Neto - Catete; sor. Tem inúmeros livros publicados
- Palestras sobre Agostinho Neto: - Apresentação crítica da literatura em diversos géneros, vem realizan-
“Os Homens Negro e Ignorantes;” Brasileira “O que é, por que é, como do um trabalho intenso na área da
“Agostinho Neto e poética da é”, com: literatura e actualmente está ligado
solidariedade Africana” no Memorial Subtema1: “Quem tem medo do a estudos relacionados a literatu-
Dr. António Agostinho Neto; Multilinguismo? Hegemonia lin- ra africana de língua portuguesa.

Conferência
“A RAIZ DO PAN-AFRICANISMO”

O
MAAN realizou no dia 14 ra aficcionado pelo Pan-africanismo.
de Setembro no seu au- A conferência visou promover um
ditório, a conferência de debate sociológico, político e cultu-
acesso livre “A Raíz do Pan-Africa- ral, entre as instituições do Estado,
nismo: História, Processo Evoluti- investigadores, críticos, académicos,
vo e Papel Actual”. e sociedade em geral sobre a origem
A conferência contou com preleções do Pan-africanismo e o contributo
da Professora Denise Schacht mem- da insigne figura do Dr. António
bro da Liga Pan-africana com o tema Agostinho Neto aos ideais Pan-afri-
Retrospectiva histórica e evolutiva canistas, legado através das suas
do Pan-africanismo; do Professor obras literárias e discursos políticos,
Petelo Nginamau Ne-Tava PHD Professor Elie Konté PHD em Ciên- sobretudo no que diz respeito à li-
em Literatura Africana com o tema cias Politicas com o tema Perspectiva bertação do continente africano dos
Perspectiva Analítica do Pan-africa- do Status de África. A moderação impérios coloniais e à valorização da
nismo e ainda com a participação do coube ao Arquitecto Kahina Ferrei- dignidade e cultura africana.

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Acção Cultural - Publicações

OBRA POÉTICA
COMPLETA / FAAN

A
12 de Abril o MAAN lançou e moderação do Dr. Cornélio Caley;
a edição nº3 da revista Me- a apresentação foi repartida por
morial e no mesmo evento a três escritores, tendo os livros que
FAAN Fundação António Agostinho compõem a obra, sido apresentados,
Neto apresentou a reedição da o “Sagrada Esperança” pelo Escritor
obra POETICA COMPLETA, de Conceição Cristóvão, “Renúncia
Agostinho Neto. O evento contou Impossível” pelo Professor Araújo
com a intervenção da Sra. D. Maria dos Anjos e o livro “Amanhecer” pelo
Eugénia Neto, Presidente da FAAN Professor António Quino.

LÉXICO DA LUTA DE
LIBERTAÇÃO NACIONAL

M
beto Traça achou neces- tos dos camaradas do seu partido, o
-sário um léxico, um dicio- MPLA, como também de outros par-
-nário que contivesse tu- tidos angolanos “rivais” e dos partidos
-do, ou pelo menos o maior número e movimentos que lutaram, um pou-
de acontecimentos, factos e actores di- co por todo o mundo, pela e para as
rectos, indirectos ou casuais que vive- respectivas e diversas independências.
ram e combateram contra a ocupação E como refere neste seu trabalho,
colonial portuguesa no contexto en- muitos, de entre nós, já vão sen-
volvente de confrontação ideológica do poucos os que ainda guardam,
mundial e o seu corolário, a “guerra”. no recôndito das suas lembranças,
Para escrever o Léxico da Luta de Li- o que a idade longeva lhes permi-
bertação Nacional, Mbeto recorreu às te transcrever com a fiabilidade ne-
memórias, escritas ou verbais, de mui- -cessária e historicamente credível.
Livros do Autor

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

DE BOAVENTURA CARDOSO
Obra literária “Maio, Mês de
Maria” lançada no MAAN

Com chancela da Mayamba Edi- terário angolano, razão pela qual Vigília” (romance, 2012); “Mar-
tora, em Luanda, Maio de 2023, decidiu reunir condições para que gens e Travessias” (romance, 2021).
o romance “Maio, Mês de Maria”, apreciadores do género narrativo Os aspectos sociais, religião e reli-
de Boaventura Cardoso, que conta ficcional no modo romance pos- giosidade sincrética enformam te-
com 371 páginas, prefaciado por sam fruir e apreciar esta sua obra. máticas núcleares da obra ficcional
Luandino Vieira, e capa de Luia- O ficcionista angolano Boaventu- “Maio, Mês de Maria”, de Boaven-
na Cardoso, foi lançado no Memo- ra Cardoso é membro Fundador tura Cardoso cujo título é uma es-
rial Dr. António Agostinho Neto da Academia Angolana de Letras tética de linguagem pela aliteração
(17/05/2023) diante de uma pre- e da União dos Escritores Ango- repetida do fonema /m/ bilabial re-
sença considerável de participan- lanos, autor dos livros “Dizanga corrente também em “Mãe Materno
tes. A obra romanesca foi publica- dya e Muenhu” (conto, 1977); “O Mar” parece estar aí fechado algum
do pela primeira vez em Portugal Fogo da Fala” (conto, 1980); “A enigma narrativo por se desvendar.
pela Campo das Letras, em Julho Morte do Velho Kipacaça” (conto, A religiosidade configura-se num
de 1997, no Porto; 26 anos depois, 1987); “O Signo do Fogo” (roman- cronotopo angolano, onde as prá-
o autor constatou estar esgotada a ce, 1992); “Maio, Mês de Maria” ticas mágicas e religiosas são parte
edição e o livro não ter circulado (romance, 1997); “Mãe Materno do dia-a-dia na vida das persona-
consideravelmente no mercado li- Mar” (romance, 2011); “Noites de gens a religião, a magia, a feitiçaria

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Acção Cultural - Publicações

e superstição têm fronteiras ténues fábula ou lenda, ou apenas pudico filosófico actual sobre a falência
entre si. Para o africano Bantu, na enunciar do imaginário popular do discurso hegemónico do
sua cosmologia, a “morte não é ver- para a brutal repressão, surda- pensamento da modernidade”4.
dadeiramente a negação da vida, cega-e-muda, que acelerava a A tentativa com êxito de pintura da
mas uma simples mutação, na sua desagregação individual, social e realidade social na ficção alicerçada
cultura a morte é um outro ser”, nacional” (in Prefácio, 1997). no sincretismo mágico e religioso, a
exclarece o autor para acentuar No entender de António Fonseca crença dos espíritos encarnarem-se
que “o homem africano em geral é (2023), quando proferia palavras em animais para efeitos de desgra-
crente por vocação, porque tem do de boas-vindas2 na cerimónia de ças por uma boa parte de angola-
universo uma visão espiritualista e lançamento a obra cumpre com nos é o que se pode sentir a vibrar
mística, ele vive entre dois mundos, os “desígnios teóricos literários e no leitor como o Catorze. Essas si-
o visível e o invisível, em que Deus culturais formulados pelo nosso tuações recorrentes tem sido resol-
é sempre a causa primeira”. Daqui patrono, o Dr. António Agostinho vidas pela intervenção de profetas
reside a importância dos antepassa- Neto, durante o seu discurso sobre com poderes especiais, a dicotomia
dos na sociedade tradicional. a Cultura Nacional em relação à sociedade e o mundo invisível é
Para além disso a criação de Boaven- renovação temática que os escritores uma matéria da ficção da realidade
tura Cardoso expõe factos premoni- deveriam introduzir na sua produção para a realidade da ficção. Kand-
tórios correspondentes à vida social literária, dados os novos factores jimbo aponta as práticas com base
além do mundo possível1, em que históricos inseridos na realidade em crenças da religiosidade mais
a liberdade é cerceada em regimes angolana e constituídos pela frequentes nas sociedades chama-
democráticos e direito como ocorre Independência e pela Liberdade”3. das da tradição: “Por outro lado,
no Bairro do Balão, onde cães fero- Na mesma linha converge incide sobre a dinâmica das chama-
zes, famintos e sanguinários, são au- Kandjimbo (2013)ao reconhecer das sociedades da tradição em que
tores do desaparecimento de muitos que a efabulação em referência os ritos e as cerimónias servem para
jovens por idealizarem a liberdade “introduz na literatura angolana completar o curso regular das coi-
como nova era que se pretendia no um novo tema ou, dito por outras sas na vida dos homens, não sendo
mundo do real ficcional. palavras, arrasta consigo um novo esta definitivamente irreversível,
Segundo Luandino Vieira, escritor modo de abordar o tema do tempo na medida em que os antepassados
angolano, a síntese da isotopia no imaginário angolano articulado mortos convivem com os vivos5”.
na qual circunda o imaginário ao sagrado e à religião, englobando José Luís Mendonça, a quem cou-
de projecção de Maio, Mês de a teologia. É uma reflexão realizada be apresentar a obra por um den-
Maria “é um romance de clima, no plano da ficção literária que se so texto ensaístico6 através da qual
de mistério e forças inominadas, inscreve perfeitamente no debate identifica duas telas estruturantes,
pelo medo se revelando e
actuando. Ardilosamente, o autor
vai aplainando uma moldura de
1
Mundo possível refere-se ao próprio mundo narrativo, construção semiótica espe-
cífica cuja existència é meramente textual (…) e pode coincidir com a do mundo
realismo e fantasmagoria para real ou mundo empírico. In: Reis, Carlos; Lopes, Ana Cristina M. (2011). Diccioná-
esse quadro difuso da exacerbada rio de Narratologia, 7.ª edição. Coimbra: Almedina, pp. 244-246.
religiosidade sincrética do povo 2
Fonseca, António. “Palavras de Boas-vindas ao lançamento da obra Maio, Mês de
Maria, de Boaventura Cardoso”, MAAN, 17 de Maio de 2023, p. 1.
luandense – de panteísmo e
animismo, de espiritismo, de
3
Neto, Agostinho (2009). “…Ainda o Meu Sonho…” (Discursos sobre a Cultura
Nacional), Luanda: Ministério da Cultura.
cristianismo – em sua face mais 4
Kandjimbo, Luís (2013). Idiogramas de Ngandji – Ensaio de Leitura e Paráfrases,
visível e (ainda) permitida: os 2.ª edição. Luanda: Triângulo Arte, pp. 278-279.
idolátricos cultos católicos. Desse 5
Idem, Kandjimbo, Luís (2013), pp. 278-279.
modo tentando recuperar, resgatar 6
“Epopeia sobre crueldade do Estado pós-colonial”. In Kesongo – O Emissário do
valores que, naquele furacão Soberano: https://kesongo.com/maio-mes-maria 20 de Maio de 2023.
pudessem fazer face aos cães – essa 7
Les Civilisations noires, 1966, Jacques Maquet (in Tata Kavinajé, texto online).
metáfora, ou hipérbole, parábola,

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

insere o romance de Boaventu- pensamento estava a pensar mano os cães aludem à repressão censória
ra Cardoso na corrente literária Samuel é arma da nossa querida que leva à prisão um elevado
especificamente africana de “rea- patroa que está querer falar falar número de jovens, cerca de três
lismo feiticista” a partir da leitura qualquer coisa, as falas dos mortos, mil, que «liam muitos livros que
comparada das obras “Uanga”, de mano, que eu acho mesmo, mano não eram bons para a cabeça».
Óscar Ribas e “De um Comba”, de Samuel tudo está acontecer porque Os cães representando a função
Manuel Rui, dentre outros, inte- ainda não cumprimos com a nossa policial em determinada situação,
grando-a na categoria de literatura tradição, que Lusala perguntou são personagens de uma parábola:
de resistência pós-colonialidade le- saber qual tradição, e Catorze deu a parábola do desaparecimento de
gada pelas gerações do Movimen- logo a resposta dele, haka, mano!, os jovens em contexto revolucionário
to da Mensagem e da Guerrilha. nossos costume, mano! é por caso é a típico do século XX, acusados de
“Aliás, toda a boa literatura é litera- falecida Dona Zefa que está chateada revisionismo doutrinário. É caos,
tura de resistência”, afirma o autor porque ainda não lhe fizemos o das manifestações às perseguições,
da “Chuva Novembrina” que não komba conforme manda a nossa que faz apelo à teologia católica da
deixou de transcrever os episódios tradição, mano, estou te falar mano salvação, através da evocação da
que dão conta de crenças aos kim- Samuel, é melhor falares no patrão Virgem Maria e de Nossa Senhora
bandas que “faziam da desgraça esses problema da terra, temos de de Fátima. Tal acontece, por
das pessoas a bendita graça deles”; fazer o komba para a arma da defunta exemplo, quando «Cães começaram
de outros personagens zoomórficos dormir descansada” (pp. 124-126). estavam se transformar em homens
como o mocho, cães ferozes famin- A linguagem descuidada demonstra sozinhos; aleijados reaprendiam
tos, cabra Tulumba personificadas e como o autor confere o hibridismo novos passos; feridos se estabelecia;
portadores de poderes místicos re- linguístico popular e culto, a grávidas parindo gargalhavam
presentando o bem e o mal. onomatopeia do “dizer” do alegrias renovadas»”.
De acordo com Jacques Maquet7 mocho ao alcance dos ouvidos das Para Mendonça a barbaridade
(apud Mendonça, 2023) alguns personagens associam-na a revelação assassina no Bairro do Balão terá
Bantu, não são poucos, crêem que da necessidade de resolução da sido o propósito de o escritor
“todos os seres (espíritos dos ances- intriga em falta: realizar o komba, Boaventura Cardoso escrever
trais, pessoas vivas, animais e plan- velório na casa do morto, onde se “Maio, Mês de Maria”. Se assim for o
tas) são sempre entendidas como come, bebe e dança. Os guardiões romance é um arquivo de memórias
força e não como entidades estáti- da tradição do clã reunidos tratam de um passado recente na história
cas. Esta concepção da existência implicações do fórum espiritual moderna angolana pós-colonial. O
rege todo o domínio da acção hu- para que a alma do difunto traga milagre fatimítico é uma catarse,
mana. Busca-se a intervenção dos sorte na vida dos viventes. uma expurgação das almas viventes
adivinhos e dos sacerdotes (que têm O grande incidente virá a ter enlutadas por seus ente queridos
o poder de captar e dirigir as forças lugar no Bairro do Balão onde desaparecidos e aprisionadas em
que escapam às pessoas comuns) o envolvimento das autoridades defesa da liberdade de pensamento
porque eles conhecem as palavras do Estado representadas pela e atente-se que neste cruzamento de
que reforçam a vida”. metaforização de uma matilha análise e interpretação do romance
O cantar ou chorar do mocho, de cães ferozes e sanguinários levou António Fonseca a reconhecer
ave de rapina nocturna, simboliza que abateram a vida de muitos que “obra que ora é lançada se
desgraça durante a noite de viagem jovens que defendiam a liberdade constitua como uma referência
por estrada de Ndala Kaxibo para de pensamento. Aqui se pode nos estudos do campo das Ciências
Luanda, que importa resolver ver Boaventura Cardoso na Sociais e Humanidades, e possa
“aquele sacana do mocho que nos veste de um vate a anunciar proporcionar às novas gerações
pareceu naquela noite na estrada acontecimentos futuros do século outras facetas de abordagem sobre o
está outra vez vir aqui nos chatear, XXI se concordarmos com a lupa nosso país e a sua história”.
kru, kru, kru, kru, kru, kru, com as de Mendonça e de Kandjimbu.
ameaças dele, mano, por isso no meu Este último infere que “O cão ou Marcelo Sebastião

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Acção Cultural - Publicações

Elucubrações
As Minhas

As Minhas Elucubraçôes, é o título Lisboa, no fim dos anos cinquenta, Argélia. Aí tivemos a oportunidade
da obra de Mário Afonso d’Almeida na Casa dos Estudantes do de trabalhar juntos durante dois
- Kasesa, editada sob chancela da Império, eu um miúdo de menos anos, nas lides do MPLA.
Whereangola Editora e lançada no de vinte anos e o Manjoca com Já no início dos anos setenta
MAAN com apresentação de Mbeto quase trinta, já com muita vida voltámos a encontrar-nos na
Traça, a 19 de Maio de 2023. vivida: foi capataz de obra em Frente Leste, depois de ele ter
No acto de lançamento, prestigiado Luanda, aspirante administrativo estado na Coreia do Norte a fazer
por ilustres figuras das letras artes, na Canata, no Lobito e, naquele preparação militar, integrado num
por familiares e amigos e por momento, já médico formado. grupo de quadros do Movimento.
“companheiros de caminhada”, a Soube depois que tinha aberto, A seguir o encontro foi no VC, que
propósito do livro e do seu autor, integrado na Fuga dos Cem, em quer dizer Vitória é Certa, campo
disse Mbeto Traça: 1961, e só nos voltámos a encontrar de passagem e base logística do
“(…) Para começar, deixem-me dizer na Argélia, no fim dos anos sessenta, MPLA nos arredores de Lusaka,
que convivo com as elucubrações ele a trabalhar como médico no onde as nossas casas eram a escassos
do Kasesa há muitos anos; elas Hospital Universitário de Argel, e cinco metros uma da outra. O
já existem há bastante tempo, eu o Representante do MPLA na Kasesa já estava com a Shany, Ana
e é por essa razão que tenho o
grande prazer de estar agora aqui
a apresentá-Ias, todas juntas, neste
espesso, bonito e elegante livro.
Acho que foi uma excelente ideia
reuni-las em livro, depois de terem
sido publicadas, quase todas, no
Novo Jornal. O leitor poderá lê-
las, agora, de trás para a frente
e de frente para trás ou escolher
a que quiser ler e, através delas,
conhecer o seu autor e mesmo o
seu percurso de vida.
Da leitura das crónicas pode-se
vislumbrar uma história de vida
que poderia, com muita facilidade,
gerar um romance biográfico visto
que, para tal, estamos certos, aqui
não falta engenho e arte. Será o
próximo livro? Quem sabe?
Sigo este meu conterrâneo há
muitos anos. Não no Instagram
ou no Facebooh, mas ao longo
das nossas vidas. Começámos por
nos cruzar muito fugazmente em

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

Maria Carreira, mas eu não sabia em várias elucubras do Manjoca, estado de calamidade proclamados,
se era casado ou só amigado. Mas em particular naquela que eu já e sobretudo com a paranóia, ou
o cunhado dele, o Iko, já o tivera lera impressa em letra miudinha melhor, a panparanóia instalada na
avisado que na família Carreira (corpo 9 ou 10?) cobrindo umas senda que se instalara na Europa e
não se amiga, casa-se. quatro páginas, intitulada Os no mundo. Não é um negacionista
Em 1980, ambos majores, frequen- mulatos, os fronteira perdida e os mas tem opinião bem formada
támos, durante quatro meses, o Curso brancos do MPLA. Faz um recuo sobre o modo de combater a
de Oficiais Superiores, no Huambo, aos tempos da colonização, fala dos pandemia. Rema sozinho contra
e depois foi a convivência no seio pombeiros e da D. Ana Joaquina, a maré, expondo e explicando
das gloriosas FAPLA, nos tempos passa pela fundação do MPLA, os seus argumentos e deixando
da República Popular de Angola. pela luta de libertação nacional e os seus conselhos para quem os
Hoje ainda, em determinada desemboca no Lundoji quando, quiser aceitar. Hoje, depois do
quinta-feira de cada mês, estarnos na Conferência Inter-Regional tempo passado e porque, como
juntos no nosso almoço dos kotas. de Militantes, Agostinho Neto dizia Vinícius, não há nada como
O Kasesa, nestas suas elucubrações, definiu: “E angolano quem nasceu o tempo para passar, podemos ver
aborda questões políticas do início em Angola!”, e pôs fim à tese onde ele tinha razão. É bom não
do período da luta armada de defendida por alguns, segundo a esquecer que antes de ser ancião,
libertação nacional, algumas das qual os mestiços e brancos, mesmo já era médico.
quais desconhecidas de muitas tendo participado na luta de Estas Elucubrações não seriam as
pessoas, e que poderão ajudar a libertação nacional, teriam de se do Kasesa se não espraiassem de
encontrar respostas para muitas submeter ao processo de solicitação modo aberto na política. Integra-
perguntas. Faz uma incursão pelos da nacionalidade angolana. do no MPLA há mais de seis déca-
acontecimentos que antecederam a Demonstra a imbecilidade do das, antigo combatente, ministro
Crise de 1963, quando se fez sentir racismo, que muitas das vezes no primeiro Governo da vida da
a campanha racista fomentada não é senão uma manifestação de
pela UPA contra o MPLA, com o oportunismo, e afirma: “O vosso
apoio incondicional do governo DNA, o meu e o de mais de sete mil
congolês, e contra o CVAAR, milhões de habitantes que vivemos
organização que se apresentava no globo terrestre, é idêntico não
como autónoma e da qual o tem cor”! Eu acrescentaria mesmo,
Kasesa fez parte, que era a ponta parafraseando José Carlos Ary
de lança mais eficaz do MPLA dos Santos, num poema dedicado
no contacto com as populações a Agostinho Neto: “Camarada
refugiadas no Congo-Léopoldville. Presidente! Negros e brancos,
Aborda a decisão do afastamento quando estão na frente, só têm
dos mestiços do Comité Director, uma cor que é o vermelho”.
tomada em 1962, Decisão Táctica, Um assunto que foi tema de
Consequências Estratégicas. várias elucubrações do Kasesa foi
Fala do papel de Viriato da Cruz, a Covid-19. Kasesa não esconde,
o autor do Manifesto do Amplo desde o declarar da pandemia, o
Movimento Popular de Libertação de seu desacordo como foi encarada
Angola, que está na base da fundação e tratada a mesma, tanto no
do MPLA, e dos seus encontros País como no estrangeiro, e
com essa incontornável figura do avança as razões pelas quais a
nacionalismo angolano e da direcção nossa população não seria tão
dos primeiros anos de luta. Lamenta severamente atingida, insurge-
o seu fim trágico, na China. se contra o estado de emergência
O tema do racismo faz-se sentir (será que estamos em guerra?) e o

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Acção Cultural - Publicações

RPA e sempre militante activo, tem alguns, à sua meninice, como


uma posição bem definida para a Viagem à Gabela, em 1941, e
cada questão em que está envolvi- [faits divoers dos tempos da luta
do o País, a sociedade e o MPLA. E na Frente Leste, assim como a sua
faz passar tudo pelo crivo: a longa participação na governação, que
governação de José Eduardo dos durou vinte e dois meses.
Santos, a dança das cadeiras, o culto Kasesa homenageou as filhas alheias
da personalidade, etc. Essas ideias que, por amor, nos acompanharam
que defende podem não ser con- para e na luta. Com um carinho-
sensuais mas são as suas, expostas so beijo e um kandandu apertado.
e defendidas com convicção. São Efectivamente, houve mulheres de
avançadas com clareza, para quem países africanos, europeus e ameri-
as quiser conhecer, e não cochicha- canos que participaram na luta, não
das na penumbra e de modo velado. só acompanhando os seus compa-
Têm destinatários bem definidos, nheiros mas também pela conver-
independentemente do cargo de- gência de ideais. Bem deviam ter
sempenhado ou posição ocupada. merecido a homenagem do País que
Nalgumas crónicas, apresentadas ajudaram a fazer emergir.
como Fiapos da memória, o autor Meu caro Kasesa: este trabalho,
vai vasculhar nos labirintos da que foste pacientemente fazendo
memória factos que remontam, ao longo dos anos, e que hoje

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

vem à tona em forma de livro, vai


certamente deleitar muita gente,
e sobretudo os teus leitores que
aguardam por novas elucubrações.
É bem possível que também não
agrade a alguns, mas ele tem
igualmente uma faceta didáctica
que há que aproveitar, fruto elas
tuas observações pelos lugares por
onde passaste, que nos sugerem
comparações com o que vivemos
no País e traz ao conhecimento de
uns e ao reavivar da memória de
outros, episódios da nossa História
recente, que há quem queira deixar
hoje desvalorizar e fazer cair no
esquecimento. Eu vou aproveitar
para ler as que ainda eventualmente
não tenha lido, talvez reler algumas,
e dizer-te: não pares de elucubrar,
meu caro Manjoca!.”

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Acção Cultural - Publicações

LANÇAMENTO DO LIVRO DE
KUMUENHO DA ROSA (2023):
50 Entrevistas: Ditos e Reditos em Papel e Tinta

Lançamento do livro de Kumuenho termos geográficos se estendem característica vantajosa, pois a coloca
da Rosa (2023), 50 Entrevistas: ditos pelo mapa-mundi, isto é, temos per- disponível para um investigador de
e reditos em papel e tinta, Luanda, sonalidades de dimensão nacional, qualquer área das ciências sociais e
Edição do Autor. africana e mundial; em termos pro- humanas, e também para um mero
O jornalista Kumuenho da Rosa fissionais e sociais, são do mundo da interessado nas “coisas de Angola”.
apresentou no Memorial Dr. política, da academia, da economia Em resumo, está para servir qual-
António Agostinho Neto (MAAN) e negócios e dos serviços de defesa quer leitor, pois ao assumir Angola
no passado dia 2 de agosto de 2023, e segurança, ou seja, de vários qua- como lugar-comum das memórias
a sua obra intitulada “50 entrevistas: drantes. No entanto, as 50 entrevis- individuais dos entrevistados, entra
ditos e reditos em papel e tinta”. tas têm como pano de fundo Angola no espaço da memória colectiva,
Ao acto assistiram amigos, familiares nas suas várias dimensões: história, na acepção formulada por Maurice
e distintas personalidades das letras e cultura, economia, política interna Halbwachs, consequentemente en-
da cultura angolana, teve a apresen- e externa, segurança, entre outras. tra no âmbito da História de Angola.
tação da obra feita pelo prestigiado Esse lugar-comum da obra e a va- Celebração como espaço de me-
historiador João da Cunha Louren- riedade de perfis dos entrevistados, mória. De acordo com a “Nota do
ço que na sua elocução se debruçou permite que ela seja de abrangência Autor”, um dos principais propósi-
sobre quatro aspectos da mesma: vasta quer em termos de público tos do livro é o de “homenagear os
Angola, lugar-comum. Na condi- como de utilidade, já que, em nosso meus 25 anos de e no jornalismo”.
ção de leitor, ao repassarmos os 49 entender, não podemos indicar um Esse objectivo remete-nos para o
entrevistados, verificamos que em leitor e uma finalidade tipos, uma campo da “rememoração / cele-

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

bração”, que mais do que evoca-


ção simbólica do passado histórico,
pretende sinalizar o devir, tal como
defendem os especialistas na relação “Fazer Jornalismo inscreve-se
entre memória e História. Esses “25 também na nobre missão
anos de e no jornalismo” recordam
pessoas, lugares, factos e contextos
de registar factos que
que ultrapassam a dimensão indivi- ficam para a história.”
dual da “auto-homenagem”, e se si-
tuam numa dimensão colectiva como
resultado das suas naturezas públicas
e sociais presentes neles. Segundo
Paul Ricouer, a celebração, enquanto
elemento da memória, “integra o ter-
ritório do historiador”, o que significa,
que o presente exercício do autor, se-
gue essa linha, facto que vale a pena
ressaltar pela sua escassez na classe
jornalística, já que na nossa sociedade
ela (a celebração) é mais comum para
as personalidades e factos dos forúns
políticos e religiosos. Assim se explica
que em 2022, não houve nenhum
acto de celebração dos 40 anos do iní-
cio da publicação do “mítico” Jornal
Desportivo Militar, ou que em 2023,
ano do bicentenário do jornalista e
revolucionário José de Fontes Pereira
e do centenário do jornal A Província ela situa-se no campo da História de é que nenhum deles aparece na
de Angola, até ao momento, não se te- Oral (de vida e temática) que en- condição de profissional da área,
nha realizado qualquer palestra, coló- tendi como o processo de “gravar uma curiosidade que nos chamou
quio ou outra actividade relaciondas memórias” e de “reconstruir ma- a atenção porque o livro rememora
com essas datas. pas sociais” tem a entrevista como “25 anos de e no jornalismo” de Ku-
História oral em duplo sentido. No o elemento chave para o alcance muênho da Rosa.
prefácio, Filomeno Manaças assina- dos seus objectivos. Ditos e reditos O historiador terminou destacando
la que “fazer Jornalismo inscreve-se em papel e tinta é um exercício de que o livro é um desafio para os de-
também na nobre missão de registar História oral temática pelo conjunto mais membros da classe jornalística,
factos que ficam para a história”, já de entrevistas que reúne em torno afirmando que, não são muitos os li-
no posfácio, Paula Simons destaca do tema “Angola”, mas é também vros escritos por jornalistas nessa con-
como um dos méritos da obra o de História oral de vida porque foi dição, mas sim na de escritores, juristas
“nos recordar que a entrevista jor- concebida para narrar a experiên- ou outras áreas. Independentemente
nalística se converte ‘facilmente’ em cia do autor. Assim, entrevistados das razões de ordem financeira entre
documento histórico”. A experiên- e entrevistador são sujeitos activos outras, é necessário que os profissio-
cia de realizar estudos de História na apresentação das suas vivências. nais da área deixem os seus vestígios
de Angola com o suporte arquivis- Um desafio à classe jornalística. para que possam servir de fontes
tíco da imprensa, permite-nos subs- Apesar de entre os 50 entrevistados, para a compreensão da História do
crever essas posições sobre o valor existirem pessoas com passagens Jornalismo Angolano, em particular,
da obra, e também de defender que pela comunicação social, a realida- e da História de Angola, em geral.

83
Acção Cultural - Publicações

DE PALMIRA TJIPILICA,
O ESTATUTO DO INDIGENATO

A propósito do livro o Estatuto do adversários, e virtudes prosseguidas referências a algumas das circuns-
Indigenato, escreveu Adriano Mo- pelos programas que adoptam. tâncias que rodearam o percurso, e
reira no prefácio ao mesmo: Este livro, aparecido em oportuni- abrindo caminhos ao problema, que
“(…) O presente trabalho aparece -dade marcada por conflitualidades, mundialmente desafia os estudiosos,
numa data em que o tema da não apenas políticas mas também que é o da autenticidade: isto é, a re-
escravatura volta a receber um culturais, está marcado pelo rigor lação entre a formulação normativa e
interesse não apenas científico, mas académico da investigação, está vin- a realidade que persiste e consegue
também ideológico, originando uma -culada pelo eixo dominante que é a impedir que retrate o legislado. E esta
bibliografia que podemos talvez experiência portuguesa com impecá- é a principal contribuição que emer-
dividir em dois grupos: o primeiro, vel averiguação da evolução do nor- ge da longa, minuciosa e bem estru-
que procura apreender a evolução mativismo jurídico, com oportunas turada reconstrução da evolução do
da escravatura, que vigorou em siste-ma que, juridicamente por um
todas a latitudes, até às Declarações lado, e socialmente por caminho di-
de Direitos Humanos, que na ferenciado daquele, estruturou a re-
modernidade tiveram principal lação colonial a que a Carta da ONU
expressão na Declaração de Direitos pretendeu dar um ponto final. (…)”.
que acompanhou a proclamação
de independência dos EUA, na
Declaração de Direitos da Revolução
Francesa, na Declaração de Direitos
da ONU; a segunda, que alimenta
o conflito ideológico das formas
de regime político em confronto,
especialmente marcada por valora-
ções partidárias que tendem
para alinhar, cada uma, erros e
injustiças do passado e presente dos

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

DE AIDA PEGADO,
PEDRO DE CASTRO
VAN-DÚNEM “LOY”
UM PERCURSO SINGULAR
Um dos objectivos desta obra visa
relembrar a pessoa que foi Pedro
de Castro dos Santos Van - Dúnem
“Loy”, recordar a sua trajectória
como homem e dirigente político
e destacar o seu contributo para
a edificação do país. Ao tomar
consciência das injustiças do mundo
e do colonialismo, procurou lutar
sempre por uma Angola melhor,
uma Angola desenvolvida e, acima de
tudo, uma Angola independente de
influências externas e uma sociedade
equilibrada do ponto de vista social. neos, mas não só, com retratos ema- do país, mas foi esse desempenho que
O livro retrata parte da história de nados dos seus universos pessoal, permitiu que as suas ideias visionárias
Pedro de Castro dos Santos Van - político e profissional. permanecessem. Passados cerca 40
Dúnem “Loy”, outrora jovem re- A obra vem relatar a vida de “Loy”, anos Loy faleceu a 23.09.1977, ainda
volucionário e mais tarde dirigente que se revelou curta, intensa e algo conseguimos vislumbrar e reconhecer
abnegado, amado por muitos, mas controversa. De Catete para o Futun- a sua importância rumo a uma Ango-
conhecido por poucos, narrada na go, “Loy” desempenhou vários cargos la desenvolvida e auto-suficiente do
perspectiva dos seus contemporâ- políticos nos períodos mais adversos ponto de vista económico.

85
Acção Cultural - Exposições

“DIÁRIO DE UM EXÍLIO
SEM REGRESSO”
de Deolinda Rodrigues
O Memorial Dr. António Agostinho Nzila, em 2003, e Mayamba Edito- para trabalho e consulta, foi possível
Neto (MAAN) tem a honra de ser o ra, em 2017, o MAAN não colocou à montar a exposição “Diário de Um
fiel depositário do Diário Manuscri- disposição pública tais manuscritos Exílio sem Regresso”, de Deolinda
to da nacionalista angolana Deolin- originais devido ao mau estado de Rodrigues, exposição documental
da Rodrigues cuja guarda, atribuída conservação dos mesmos que de- que retrata memórias e textos lite-
ao MAAN, ocorreu a 14 de Setem- saconselhava o seu manuseio, pelo rários baseados no referido diário
bro de 2017, no seu auditório, com que parte dos manuscritos com um da nacionalista, que está patente ao
uma grande afluência de familiares total de 136 fólios1 tiveram de passar público no MAAN. A temática dos
e distintas entidades das letras e da por uma Intervenção de Conserva- conteúdos desta exposição inscre-
cultura angolana para testemunhar ção e Restauro nos laboratórios do vem-se nos domínios da Clandesti-
tão prestigiosa cerimónia. Arquivo Nacional Torre do Tombo nidade nacionalista, Colonialismo,
Numa altura em que havia a ne- (ANTT), em 2019, Lisboa, Portu- Política, Religião (Cristianismo),
cessidade de os estudiosos e inves- gal. A intervenção de conservação Família, a condição da Mulher,
tigadores do campo das Ciências e restauro abrangeu a totalidade Guerrilha, Gastronomia, Canções
Sociais e das Humanidades terem de 7 conjuntos incluindo peças do e Liberdade. Os pesquisadores e o
acesso aos manuscritos dos quais cancioneiro angolano (ausentes do público, de um modo geral, pode-
resultaram as publicações da 1.ª e livro publicado). Criadas as condi- rão compulsar o documento diário
2.ª Edições do livro “Diário de Um ções de manuseamento do Diário manuscrito em formato digital no
Exílio Sem Regresso”, pela Editora Manuscrito e feitas cópias digitais Centro de Documentação e Infor-
mação do Memorial.
Deolinda Rodrigues Francisco de
Almeida, nasceu em Catete, região
de Icolo e Bengo, aos 10 de Feverei-
ro de 1939, sendo filha de um casal
de professores primários, e a tercei-
ra de cinco irmãos.
Deolinda, apelidada de Mãe da Re-vo-
lução, também conhecida pelo nome
de guerra “Langidila”, foi defensora
dos direitos humanos, militante na-
cionalista e guerrilheira da luta de
libertação nacional de An-gola. Foi
também escritora, poetisa, tradutora-
-intérprete e radialista. Foi membro
1
Gorgojo, Lucía Martínez (2019). Relatório Técnico: Intervenção de Conservação do Movimento Popular de Liberta-
e Restauro nos documentos de Deolinda Rodrigues, Diário de um Exílio sem ção de Angola (MPLA), e co-funda-
Regresso, Pertencentes ao Memorial António Agostinho Neto (MAAN), Angola.
Lisboa: Arquivo Nacional Torre do Tombo. dora da sua secção feminina, a Orga-
nização da Mulher Angolana (OMA).

86
MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

Exposição sobre as
Línguas Nacionais
No âmbito das suas competências Para complementar o aprendizado na descrição científica, procurando
e atribuições que consistem em no colóquio e entendimento evitar várias transcrições paralelas.
preservar, perpetuar, investigar sobre as línguas nacionais, sua Procuramos com esta exibição
e divulgar a Vida e a Obra do Dr. uniformização, garantia para a sua promover a inserção das línguas
António Agostinho Neto, como líder preservação e promoção, o Memorial maternas e ou nacionais no seio
da Luta de Libertação Nacional, exibiu no acto uma mostra do Diário da nossa sociedade, moderniza-
Fundador da Nação, Estadista, da República que aprova a título las e também promover o seu
Homem de Cultura e Humanista, o experimental pela resolução nº3/87, desenvolvimento.
MAAN realizou no dia 24 de Maio de 23 de Maio de 1987, do Conselho Na ocasião esteve ainda patente
do ano corrente no seu auditório, de Ministros, os alfabetos de 6 uma exposição de literatura “So-
o Colóquio “Línguas de Angola, línguas nacionais, nomeadamente bre e em Línguas Nacionais” que
Identidade e Soberania”. os alfabetos das línguas Kikoongo, contou com a participação do
O colóquio realizado, além de Kimbumbu, Cokwe, Umbundu, MAAN, Editora Mayamba, Irmãs
celebrar o Dia de África, visou Mbunda e Oxikwanyama e as Paulinas, INIC e FAAN onde fo-
responder a uma problemática respectivas regras de transcrição. ram expostas obras sobre as Lín-
que vem sendo discutida por todos Entre outros factos o diploma guas Nacionais (contos provérbios,
os estratos da sociedade angolana em exibição estabelece formas de dicionários etc, etc) e escritas nas
em distintos espaços e plataformas. escritas normalizadas e baseadas diversas Línguas Nacionais.

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Acção Cultural - Leitura

OFERTA DE LIVROS A BIBLIOTECAS

“Os livros são árvores com sonhos


escritos na sua seiva”…
Com esta frase de profundo signi- a Direcção do MAAN organizou e CEI, não só no desenvolvimento e
ficado e alcance, o escritor José Luís preparou a sua distribuição. Estabe- aprofundamento das ideias políticas
Mendonça iniciou a sua intervenção lecido que foi o critério de distribui- de liberdade e anti colonialismo,
na palestra sobre o papel da CEI ção (Bibliotecas Públicas, Bibliotecas mas também no estudo histórico,
(Casa dos Estudantes do Imperio) a Comunitárias, Centros de grande antropológico e da literatura dos
quando da entrega de “bibliotecas” afluência de leitores, etc), assu- estudantes da CEI. Por lá passaram
com livros de autores angolanos. miu-se que tão importante como a Agostinho Neto, Mário Pinto de
Tudo começou quando, num con- oferta da biblioteca, seria também Andrade, Viriato da Cruz, Amílcar
tacto com Luandino Vieira, a fim importante que os professores (ou Cabral, Marcelino dos Santos, Alda
de o convidar a estar presente nas futuros professores) tivessem acesso do Espírito Santo, e tantos outros.
actividades para as comemorações a estes livros a fim de que, conhe- As bibliotecas então oferecidas,
do centenário de Agostinho Neto, cendo-os os pudessem fazer chegar eram compostas por livros de
a Porta Treze Editora, através dos e indicar aos seus alunos, tendo sido Arnaldo dos Santos, Mário António
Mestres Arnaldo Santos e Luandino priorizadas as instituições de forma- Fernandes de Oliveira, Viriato da
Vieira, propós fazer a oferta de ção de professores, como os IMNE, Cruz, Manuel Rui Monteiro, Antero
cerca de 100 bibliotecas, com o Escolas do Magistério e Bibliotecas de Abreu entre outros.
objectivo de serem distribuídas Universitárias. Ao terminar a sua intervenção, José
gratuitamente a fim de incentivar No dia 21 de Dezembro de 2022, Luís Mendonça, depois de relembrar o
a leitura e o conhecimento de antecedido de uma palestra pro-fe- autor português António Torrado que
escritores Nacionais. rida, como já referido, por José Luís escreveu “os livros existem para serem
Aceite a oferta, e depois dos procedi- Mendonça, procedeu-se à distribui- lidos” disse que “os livros são árvores
mentos necessários para o seu trans- ção das bibliotecas. com sonhos escritos na sua seiva.
porte de Portugal para Angola e o Antes, o palestrante debruçou-se Deixemo-nos levar por esses sonhos,
respectivo desembaraço aduaneiro, sobre o papel preponderante da abrindo um livro todos os dias”.

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

C e n t r o d e Fo r m a ç ã o
MUSICAL E ARTES
CÉNICAS DE CAXITO

N
a sequência da oferta de publicações a várias bibliotecas comuni-
tárias e de instituições de formação, o MAAN no âmbito da sua
missão, procedeu a oferta de 354 livros para o enriquecimento
do acervo da biblioteca do Centro de Formação Musical e Artes Cénicas de
Caxito, província do Bengo, em acto que culminou com a palestra, proferida
pelo Dr. Óscar Oramas Olivas, primeiro Embaixador de Cuba em Angola.
Durante o evento, decorreu ainda a apresentação e a pré-venda da obra
“Agostinho Neto: um homem excepcional do seu tempo” de autoria do
Embaixador Óscar Oramas Olivas. A ocasião serviu igualmente para os in-
tegrantes da caravana do Memorial Dr. António Agostinho Neto visitarem
o Memorial dos Heróis da Pátria.

89
Acção Cultural - Leitura e Música

A hora do conto
“A Hora do Conto” é um dos
programas mais emblemáticos que o
Memorial oferece ao público infantil,
de escolas e outras instituições
que nos visitam. O programa, que
acontece duas vezes por semana,
procura incentivar o gosto pela
leitura e pela escrita partindo
da narração de contos de vários
autores, com realce para os autores
da literatura infantil angolana,
bem como, por vezes, recorrendo
a textos da literatura oral.
Com a ajuda da linguagem corporal,
o narrador fala das personagens e
procura envolver o público presente
com a mensagem contida na
narrativa, sobretudo, a lição moral e
social implícita na mesma. Trepadeira que Queria Ver o Céu As estórias relatadas em “A Hora do
De Maio a Julho de 2023 “A Hora Azul”, de Maria Eugénia Neto. Conto”, de forma interactiva, dão
do Conto” trabalhou com as obras O conto é um dos mais tradicionais à criança a liberdade de relacionar
“Jimbo”, de Basílio Chindombe; “O géneros literários e também, por as suas experiências e as dos outros
Aniversário do Rei Leão”, de Zulinni isso mesmo, o usado em “A Hora com aquilo que ouve, como também
Bumba; “A Esfregona Dançarina”, do Conto”, para lá de oferecer a exteriorizar a sua interpretação e
de Cremilda de Lima; “A Escola e vantagem de ser curto e poder opinião sobre a mensagem ético-
a Dona Lata”, de Maria João e “A abordar vários temas e perspectivas. moral da estória ouvida.

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

Música - Concertos Intimistas


O
Conceito desta iniciativa dos artistas com um público Project, Wilmar Nakeni, Parson,
de Concertos intimistas abrangente, apreciador de música Jordânia Cunha, Johnny Master
no Memorial é baseado erudita em espaço intimista, único, e Bevy Jackson. Muitos outros
numa composição musical escrita, sereno e de realce para a sociedade nomes ainda virão para o palco do
para um ou mais instrumentos onde paira no ar a mágica de artistas auditório do Memorial Dr. António
solistas, cujo acompanhamento clássicos e novos talentos angolanos. Agostinho Neto. Em 2023 tivemos até
pode ser feito por uma orquestra, No ano corrente apresentaram-se á presente data 767 participações do
um pianista ou banda musical. no MAAN Jay Lourenzo, Glória público, que corresponde em média
Momentos ímpares de aproximação da Lu, Luís Sebastian, África Jazz 95 participantes em cada concerto.

FESTIVAL INTERNACIONAL DE CACIMBO


DE MÚSICA CLÁSSICA COM A ASSOCIAÇÃO
CULTURAL GRÉMIO DAS ARTES PARA ARTHA

U
m concerto intimista com Cacimbo de Música Clássica. Este violino Raimundo Salungo, violino
o pianista “ Alexey Shaki- concerto contou com a participação Benildo Jaime, Quarteto de Cordas
tko”, em parceiria com de artistas nacionais e internacio- “Art & Fusion” composto por pri-
a Associação Cultural Grémio das nais, convidados de grande gabari- meiro violino Frank Abreu, segun-
Artes para Artha, foi realizado nos to tais como: o tenor com renome do violino Claúdia Hernandez, viola
dias 2, 3 e 4 de Junho, no átrio Emanuel Mendes, soprano Marília Gonçalves da Silva, e violoncelo com
(Saguão) do MAAN, para apresen- Alberto, barítono Armando Zim- Enrique Cupull e como convidados
tação do Festival Internacional de bungana, violoncelo Gabriel Botchi, o pianista Mulumba Kassongo Joel.

91
Acção Cultural - Iniciação às Artes, Formação Artística e
Promoção do Conhecimento

Formação Artística
De acordo com a sua vocação cultu- festações ele natureza equivalente, ALLIANCE FRANÇAISE 13 de Julho
ral e de promoção do conhecimen- a par de acções próprias, o MAAN Masterclass de Direcção de Orques-
to, cumprindo as suas atribuições acolheu vários actos do domínio das tra com o pianista e chefe de orques-
de criação de programas visando a artes e da cultura, dentre os quais tra David Greilsammer de França
aproximação e participação da co- alguns realizados em parceria com para elementos de música clássica
munidade, através de eventos, cursos missões diplomáticas acreditadas no orquestras ou individuais para vá-
e palestras no domínio das artes e das país e com entidades de reconheci- rios instrumentos clássicos com
ciências humanas e sociais; criação dos créditos. Neste sentido, foram base solida de formação clássica.
de programas dirigidos às crianças realizados eventos com a Embaixa- David Greilsammer sempre foi
e jovens, de modo a cultivar neles o da da República da Alemanha, com apaixonado por inovação e por
hábito para as artes e cultura; desen- a Embaixada da República da Itália criar projectos musicais novos, eclé-
volvimento de acções de cooperação e com a Embaixada da República ticos e audaciosos. Ao longo da sua
com outras entidades afins ou de na- Bolivariana da Venezuela. Foram vida, seu objectivo foi levar a música
tureza similar, promoção do conheci- de igual modo realizados eventos em clássica a um público mais amplo e
mento e da formação artística através parceria com o Goethe Institut, com jovem, tornando-a mais acessível e
da organização de eventos culturais a Alliance Française de Luanda, com aberta. Ele também colaborou com
e científicos, e a realização de confe- o Grémio das Artes ARTHA e com a muitos artistas de jazz, rock e world
rências, colóquios, debates ou mani- Yellen Academia de Música e Artes. music. Seguindo sua missão de abrir
a música clássica para novos públi-
cos, criou também uma variedade
de projectos reunindo música clássi-
ca com dança, teatro e artes visuais.

GOETHE INSTITUTE 15 de Julho


Com base no maior pilar de inter-
câmbio cultural a Embaixada da
Alemanha em Luanda em parce-
ria com o Goethe-Institut Ango-
la e apoio do Memorial Dr. Antó-
nio Agostinho Neto realizou-se o
workshop de piano, proporcionan-
do interacção entre o artista alemão
Benjamim Schaefer e os participan-
tes. Este evento foi uma iniciativa
Masterclass de piano e workshop
sobre jazz para músicos e orques-
tras locais com técnicas de piano,
composição e improvisação.
Benjamin Schaefer (nascido em
1981) estudou piano jazz e com-
posição no HFMT Cologne com
Frank Wunsch, Hans Lüdemann,

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

Iniciação
John Taylor e Joachim Ullrich. Foi Laboratório de Artes 10/7 – 11/8
membro da State Jazz Orchestra No âmbito da sua programação

às Artes
da Renânia do Norte-Vestfália e da Cultural, e com o propósito
Federal Jazz Orchestra (BuJazzO). de cultivar nas crianças e
As turnês o levaram a 27 países jovens o hábito para as artes e
em 4 continentes. Tocou centenas cultura, bem como promover a
de concertos em clubes e festivais, MAAN / YELLEN - ACADEMIA formação artística, aproximação
muitos deles com os seus pró- DE MÚSICA E ARTES e participação da comunidade o
prios projectos Benjamin Schaefer O Memorial Dr. António Agostinho Memorial Dr. António Agostinho
Trio (2004-14), Expressway Sket- Neto no âmbito do apoio a novos Neto, realizou o Projecto
ches (2008-21), Quiet Fire (2014- talentos e experiências musicais na Laboratório de Artes, nas suas
19), Hive Mind (2018-19), Stone infância, que aceleraram o desenvol- oficinas, onde foram ministradas
Flowers (2020-) e Solo (2022-). vimento do cérebro, em especial nas aulas de música, artes plásticas e
Em 2011, Benjamin foi premia- áreas neurológicas que dizem respei- teatro. A realização deste projecto
do com a Bolsa Horst e Gretl Will to à aquisição da linguagem e das suas surgiu no âmbito dos objectivos do
para Jazz e Música Improvisada habilidades de leitura estabeleceu um MAAN, de continuar a perpetuar,
da Cidade de Colónia. Em 2019 acordo com a YELLEN - ACADEMIA divulgar e investigar a vida e obra
recebeu o Prémio Nova Composi- DE MUSICA E ARTES e o Maestro do Dr. António Agostinho Neto.
ção Alemã. Além disso, ele recebeu Félix da Costa para em parceria pro- Neste sentido a figura do Dr.
inúmeras bolsas públicas e priva- mover aulas periódicas de violino, gui- António Agostinho Neto teve a
das para produções de álbuns e tarra, canto, dança (ballet e tradicio- abordagem em diferentes aulas e
comissões de composição. nal) e teoria musical para crianças de sob diversos ângulos.
Além de seu trabalho artístico, várias idades contribuindo assim para Como objectivos traçados para a
Benjamin Schaefer trabalha como missão da academia Yellen de mudar realização deste projecto foram
professor de piano jazz no HFMT a história e criar o artista perfeito e es- fixados os seguintes:
Cologne desde 2009 e foi membro pectacular, que o mundo precisa para - Proporcionar técnicas que
do conselho da União Alemã de festejar, com canções, melodia, dança, sejam adequadas à faixa etária de
Jazz de 2013 a 2022. disciplina, excelência e muito rigor. cada grupo, proporcionando o
desenvolvimento da criatividade;
Formar para a cidadania através
das belas artes;
- Dar a oportunidade aos
participantes de se reverem na
história de Angola de forma
especial e profunda e de, no final,
demostrarem os conhecimentos
adquiridos durante a sua
participação no projecto.
Esta edição contou com dezoito (18)
participantes com idades compreen-
didas entre os sete (7) e os catorze
(14) anos, e a participação de qua-
tro professores (4). Estas formações
foram ministradas em duas tur-
mas, nos períodos 8h:00 – 11h:00
e 13h:00 – 16h:00, tendo tido início
no dia 10 de Julho e fim no dia 11
de Agosto do corrente ano.

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Acção Cultural - Iniciação às Artes, Formação Artística e
Promoção do Conhecimento

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

PROMOÇÃO DO CONHECIMENTO
Intercâmbio Cultural entre o Memorial
Dr. António Agostinho Neto e a Embaixada da Itália
em Angola resultou no programa Italo Calvino/2023

O Memorial Dr. António Agostinho Luanda e de distintos grupos de tação da peça no Auditório do Maan,
Neto e a Embaixada da República teatro de Luanda que ajudaram a onde houve ainda um cocktail de re-
Italiana em Angola apresentaram desenvolver a escrita, propondo cepção oferecido pelo Sr. Embaixador
o programa cultural Italo Calvi- referências de contexto angolano, Cristiano Gallo e um breve concerto
no/2023, que visou homenagear sendo uma das formas que uniu musical Ango-Italia com a cantora
o centenário do escritor italiano, duas culturas diversas através deste lírica internacional italiana, Carla
Italo Calvino, e uma intensa acção intercâmbio. Regina e a soprano Melvi Lumbun-
de formação teatral e montagem O referido programa foi realizado gululo, acompanhada pelo reperto-
do espectáculo: Melhor É Viver pela “Ponte Tra Culture” Società rísta Max de Jesus; dia 18 de Junho
nas Árvores, baseado na obra de- Cooperativa (Itália) di Gianluca apresentação da peça no Maan, dia
signada o Barão nas Árvores (Il Barbadori e o Atelier D’Artes Lu- 20 de Junho, a terceira e última apre-
Barone Rampante), idealizado e cengomono, que incluiu Master- sentação da peça no Elinga Teatro.
dirigido pelo director e pedagogo Classe sobre: O Teatro como ins- Durante as sessões de apresenta-
internacional, Gianluca Barbadori, trumento de investigação humana ção do espectáculo, contou com a
trabalhado no imaginário contem- e antropológica. presença de membros do governo
porâneo, envolvendo um grupo de O ciclo intensivo de formação tea- angolano e distintos membros do
ex-estudantes do Ceart – Insituto tral foi realizado de 29 de Maio a 16 corpo diplomático acreditado em
Politécnico de Artes, FAART- Fa- de Junho; dia 14 de Junho a Master Angola, artistas, pesquisadores, pro-
culdade de Artes da Universidade Classe; dia 17 de Junho pré-apresen- fessores, jornalistas e estudantes.

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Acção Cultural - Iniciação às Artes, Formação Artística e
Promoção do Conhecimento

Sobre a peça “Melhor é viver nas no e das condições sociais da época feiçoamento da leitura e das téc-
Árvores” e o ciclo intensivo de for- retratada pelo livro, em meados do nicas de interpretação, fisicidade,
mação teatral século XVIII, período em que hou- movimento e expressão. Gianluca
ve mudanças paradigmáticas em Barbadori, destacou a importância
Melhor é viver nas árvores é uma várias áreas do saber e que o autor dos projectos de teatro no país, que
peça teatral inspirada na obra insere em sua ficção com um tom aumentaram em número e encoraja
literária ‘‘Il Barone Rampante’’ , em bastante sarcástico, porém com um a continuidade de desenvolvimento
português - ‘‘O Barão nas árvores’’ leve humor reflexivo característi- dum teatro comunitário, cujo objec-
do célebre escritor italiano Italo co e inconfundível como em todas tivo passa por gerar debate nas co-
Calvino. Uma adaptação e direcção as suas obras. Segundo Gianluca munidades sobre os principais pro-
de Gianluca Barbadori, no ano em Barbadori, a adaptação do texto O blemas que os afectam, reconheceu
que se comemora o centenário do Barão nas Árvores, serviu para espe- o grande talento dos jovens angola-
nascimento do letrado italiano. lhar as características e importância nos, embora uns falte atitude, maior
Il barone rampante (O Barão nas das árvores, para mostrar uma nova nível de exigência e mudança de
árvores) publicado em 1957 na Itá- perspectiva de vida para a socieda- comportamento com os compromis-
lia, narra a história de Cosme, filho de, mostrar o nível de coerência e sos profissionais. As artes, alertou,
primogénito de um barão que em atitude de um rapaz que assume um tem princípios que precisam ser res-
15 de julho de 1767 sobe nas árvo- padrão de vida sem medir as con- peitados se quisermos atingir o pro-
res e não quer descer mais. A histó- sequências do seu posicionamen- fissionalismo. Acrescentou ainda, a
ria é contada pelo irmão de Cosme, to perante a família e a sociedade. necessidade de se criar condições
Biágio, que relata as peripécias de As danças, os jogos e brincadeiras para a formação profissional no sec-
se viver nas árvores e as aventuras tradicionais e as canções ancestrais tor artístico de forma permanente e
do irmão. Trata-se de uma história angolanas deram outra força de consistente no país. Os aspectos cul-
bastante quixotesca contada com contexto proposto para um teatro turais de angola são muito fortes e
uma torrente de inúmeras sensa- mais próximo à realidade angolana. os artistas têm muito potencial para
ções que só Calvino consegue des- A formação foi de facto intensiva oferecer para o mundo e dar a co-
pertar. Além disso, suscita uma série e permitiu despertar aos actores, nhecer a diversidade da cultura dos
de reflexões sobre a condição huma- estudantes, a importância do aper- africanos com toda a originalidade.

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MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

LABORATÓRIO
DE ARTES
Memorial Dr. António Agostinho Neto

Teatro
Oficinas

Artes plásticas
Cerâmica
Música

10 de julho - 11 de agosto
Manhã:
Manhã: 08h00-11h00
08h00-11h00
Tarde:
Tarde: 13h00
13h00 -- 16h00
16h00

Inscrições Abertas

Informações: 928 130 903

Destinatários: 7 aos 14 anos

Inscriçõesabertas
Inscrições abertas aa partir
partirdede1 1dede
Julho.
Julho
Para Inscrição é necessário 1 fotografia, fotocópia do B.I. ou da Cédula
Parae inscrição
o pagamentoé do
necessário
valor de 251mil
fotografia,
Kwanzas por fotocópia
oficina
do B.I ou cédula e o pagamento do valor de 25 mil kwanzas por oficina
97
Livro de Honra
Livro de Honra

Sua Majestade o Rei Felipe VI


MANIFESTOU-SE HONRADO POR
CONHECER A DETERMINAÇÃO DE
AGOSTINHO NETO
Suas majestades o rei Felipe VI e a
rainha Letizia Ortiz de Espanha, de-
positaram uma coroa de flores no
Sarcófogo do Dr. António Agostinho
Neto e observaram um minuto de si-
lêncio em honra ao “Pai da Pátria an-
golana”, como está escrito no Livro
de Honra assinado na ocasião.
Depois de visitarem demoradamente
o Memorial e assinarem o Livro de
Honra, sua majestade o Rei Felipe VI
manifestou-se honrado por conhe-
cer a determinação de Agostinho
Neto para uma Angola libertada
e independente, tendo exortado a
direcção do Memorial a preservar e a
divulgar o pensamento humanista do
poeta da Sagrada Esperança.

100
MEMORIAL | InvestIgação, arte e Cultura | AnO II - nº 4 • DEz. 2023

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Capa do Processo de
Querela. Disponível para
consulta no MAAN.
Documentos
Documentos

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Documentos

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Documentos

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Documentos

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Documentos

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Documentos

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Recordando Agostinho Neto

Pau de imbondo te chamou


um poeta
lírico
que escreve
com as mãos
submersas na terra

Onde
tuas raízes?

Recordo: os homens
dançavam
na tua morte
como que
totalmente abandonados
à dor

Não o desejarias
mas o espanto
dominou-nos
De tanto te esperar
o povo
jamais saberá
porque partiste

João Melo
*In Poemas Angolanos (1989)

Foto de: Fernando Couto (Buca)

117
O Espaço para
o seu Evento

| SALAS DE AULA
| AUDITÓRIO
| ÁTRIO
| EQUIPAMENTO
AUDIOVISUAL E OUTROS

Telef.: (+244) 222 653 900


E-mail: visitas@maan.co.ao
Horários | visitas | marcações
De segunda a sexta-feira | 09h:00 às 15h:00
Sábados e feriados | 09h:00 às 13h:00
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E-mail: memorial.aan@gmail.com

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Facilidades para visitantes portadores de deficiência física


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Biblioteca/Videoteca
Aberto ao público de Segunda a Sexta-feira,
das 9h00 às 15h00

Centro de Documentação e Informação


Aberto ao público de Segunda a Sexta-feira,
das 9h00 às 15h00

Teleporto
Aberto ao público de Segunda a Sexta-feira,
das 9h00 às 15h00

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