P R o J e T o Andred

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Quando os últimos convidados saíam do salão, chamamos os mordomos e funcionários para limpar o lugar

das sujeiras da festa. Como não era muito tarde, eu e minhas irmãs ajudamos nossos pais a organizar tudo. O salão
era grande, grande mesmo, devia ter capacidade para umas oitenta ou noventa pessoas. As paredes eram todas cor
de areia, com linhas paralelas em marrom que ligavam os cantos da sala no rodapé e próximo ao teto. Todas as
colunas eram brancas, tinham as mesmas linhas marrons que iam de cima a baixo e com os capitéis dóricos. Toda a
decoração girava em torno do relativamente novo “Art Déco”. E limpar tudo aquilo parecia demorado e cansativo,
mas como tinham muitas pessoas o serviço demorou uns trinta ou quarenta minutos. Feita a nossa parte, deixamos
os funcionários para finalizar. Partimos todos para casa no carro. O motorista, sorridente como sempre nos
recepcionou muito bem e abriu a porta da Limousine para mim e minhas irmãs entrarem. Do outro lado do carro
estava o meu pai que abriu a porta para a minha mãe.

O salão de festas não era muito longe de casa, dez minutinhos e já estávamos no portão. Como mágica o
grande portão abriu e mostrou os caminhos em cascalho rodeados com grama. As várias pequenas lagoas pontuais
brilhavam com o forte luar e cintilavam sempre que eu piscava ou desviava o olhar. A casa toda é inspirada na
arquitetura do Japão feudal. Estacionamos o carro e quando entramos, o piso de madeira rangia um pouco a cada
passo. O som de gafanhotos e sapos é constante, mas agradável e o cheiro é um perfume suave de grama e bambu.
As luzes estavam apagadas, mas o céu era tão iluminado que existia uma sombra tímida impressa no chão escuro ao
meu lado quando eu andava. A casa é grande e tem vários quartos para os funcionários e possíveis hóspedes.
Chegando no meu quarto me deparo com as paredes de madeira, a janela que dá pro terreno, minha cama que
destoa de toda a atmosfera da casa visto que é do modelo ocidental, elevada do chão. A minha mesa com um
trabalho da escola feito pronto para ser entregado e o meu estojo. Já pronta para dormir, prestes a apagar a luz a
senhora minha mãe bate na porta.

- Oi Mistu-chan, posso entrar? Nós precisamos conversar.

Aquele “nós podemos conversar” tão calmo me encheu de medo, senti meu peito apertar e do momento em
que ela perguntou até se aproximar da minha cama passou em minha cabeça todas as coisas ruins que eu havia feito
na escola, na rua, em casa, em todos os lugares e possibilidades possíveis.

- Ah, claro mãe, e-eu tava pronta pra deitar, mas podemos sim. Por favor entre.

- Certo então. Pra falar a verdade, vai ser mais uma história do que uma conversa que nós vamos ter...

Ela puxou a cadeira de bambu da minha escrivaninha e sentou-se ao meu lado.

- Hoje Mitsurikabe, é o seu aniversário de 13 anos. Quando eu tinha a sua idade, seu avô teve a mesma
conversa comigo, e o seu bisavô com o seu avô, e a sua tataravó com o seu bisavô e assim por diante. Essas coisas
que eu vou te contar é passada de geração em geração nem sei há quanto tempo.

Ela respirou fundo, olhou nos meus olhos e continuou:

- A nossa família não é essencialmente japonesa, mas nós também não somos portugueses. Todos nós somos
mestiços. Há muito, muito, muito tempo um kami chamado Shirokutsu abençoou um senhor feudal em Nagazaki. Ele
decidiu isso porque viu que esse daimyo cuidava bem dos seus escravos, ele era justo, misericordioso e bem
sucedido.

Quando ela disse isso eu gradativamente me acalmei porque percebi que ela não estava lá pra brigar comigo.
Impressionantemente, eu não tinha visto, mas ela havia trazido consigo um pergaminho. Com o documento em mãos
ela tirou grosseiramente a tampa e delicadamente deixou o pergaminho deslizar pelas paredes da capa. Então
tampou a capa e enfim abriu o pergaminho.

- Nesse pergaminho aqui na minha mão esta escrito tudo que Shirokutsu disse para o primeiro membro da
família. Diz assim:
- Tu serás grandemente abençoado devido á tua benignidade para com os teus servos. Toda a tua linhagem
será forte como o salmão que sobe as correntezas com persistência e tem êxito nisso, será rápida como o falcão que
caça ardilosamente a sua presa e tem êxito nisso e da mesma forma que as astutas raposas usam da sua inteligência
para sobrepujar-se em relação aos outros animais, assim também teus filhos, os filhos dos teus filhos e os filhos deles
serão. Tua linhagem herdará também um incrível poder, mais forte que todas as forças da natureza. Um único
homem poderá derrotar um exército inteiro tão rápido como se estivesse viajando nas nove camadas do céu.

- Caramba, imagina se uma luz me dissesse isso..., mas espera, como a gente é mestiço entre japoneses e
portugueses? Eu não entendi.

- De fato, eu contei apenas a história dos nossos dons. Nós somos descendentes de portugueses também
porque durante as grandes navegações, o Japão foi colônia de Portugal.

- Cacete, eu não sabia!!!

- Ei olha a boca menina! Você não quer que eu faça igual com a sua irmã ontem né? Hoje ela mal conseguiu
comer na festa de tanto sabão que eu passei ontem.

- Certo, mãe, sinto muito... por favor continue...

- Continuando... O Japão foi colônia de Portugal por mais ou menos duzentos anos, até que um grande
senhor de terras expulsou eles daqui. Como o imperador da época era muito rígido, alguns poucos portugueses se
estabeleceram aqui. Mas um desses portugueses foi justamente o nosso Pai, que se casou com uma japonesa e teve
filhos. E esses filhos tiveram netos e assim por diante.

- Ah tá... entendi agora. Mas, e sobre aquele incrível poder que foi concedido à nossa família? A que o
Shirokutsu estava se referindo?

- Podemos falar disso depois Misturikabe. Eu precisava dizer isso pra ti, mas não posso entrar em maiores
detalhes agora. Você precisa dormir... Olha a hora! Já são quase nove e meia! Depois da escola você tem kung fu,
caratê, ginástica, natação e ainda vai pro reforço escolar. É melhor você ir dormir logo.

- Mas... Diz aí o que é?

Ela olhou pra mim, cruzou os braços e levantando o pergaminho perguntou:

- Se tu tentares bisbilhotar, eu te boto pra correr daqui pra Yamanashi, aí tu sobes e desces o monte Fuji 150
vezes, pode ser assim?!

- Boa noite mãe, durma bem, eu te amo.

- Bom mesmo, também te amo Mitsu-chan, até amanhã.

CAPÍTULO i
“Dois meses e oito dias para o desastre.”

Estava sentada na minha carteira, distraída, eu prestava atenção em algumas formigas que carregavam uma
libélula morta no piso de bambu envernizado. As minhas irmãs, que ocupavam as duas cadeiras à minha esquerda,
também fitavam aqueles insetos no chão. Todo o piso da sala, diferentemente das paredes, era feito de tábuas de
bambu, mas com as cascas preservadas pra dar rigidez e acabamento. Além disso, como o bambu é claro, arejava a
sala toda e deixava ela com um ar muito mais aconchegante e receptivo. Aproveitei que o professor ainda não havia
chegado e comecei a olhar os cantos cheios de teia de aranha da sala. Assim como toda a casa, as suas paredes são
de madeira. Todas bem escuras e vivas. Os raios de sol entravam sem pedir licença pela, ainda fechada, claraboia e
pelas janelas bem abertas. Que não deixavam apenas os raios de sol entrarem violentamente, mas também o
perfume de terra e de grama úmida, cheira tão doce. Úmida por causa do orvalho das manhãs de verão, e por causa
da rápida, mas forte chuva que caíra ontem a noite.

Enquanto engolíamos todos os detalhes da nossa sala de aula vazia, ouvimos passos rápidos através do
assoalho. Imediatamente chamei minhas irmãs. Nós três, agilmente, nos pusemos de pé, e, quase simultaneamente,
ajeitamos o cabelo, pressionando levemente para ele ficar o menos volumoso possível, massageamos as bochechas,
mordemos levemente os lábios para deixá-los mais vermelhos, arrumamos a camisa e a saia própria do uniforme de
verão, além das presilhas na cabeça. Todas nos checamos as vestimentas. Mas antes que pudéssemos pelo menos
fingir que estávamos preparadas entra a professora. Ela puxa a porta de forma repentina. Uma aura e passos pesados
sempre a acompanham. Após abrir a porta, ela analisa de leste a oeste a sala, e com seus olhos pequenos analisa a
nós três de cima a baixo, verificando uniforme, postura, feição e acessórios, que são terminantemente proibidos,
com algumas poucas exceções. Ela caminha até ficar atrás da sua mesa. Imediatamente quando ela põe a bolsa que
ela carrega consigo sobre a mesa nós damos um brado de cumprimento quase simultâneo.

- Bom dia yume-sensei!

Apesar de eu gostar muito da nossa professora, ela é extremamente rígida e parece que nunca está feliz. Talvez isso
seja por causa das rugas que ficam do lado da sua boca. Ela é uma mulher, não jovem, mas não idosa. Não sei
quantos anos tem, é medianamente alta e magra, anda sempre de modo elegante. Está sempre cortando suas frases
no meio com “Eto- “pensando nos melhores termos pra nos ensinar.

- Bom dia a todas. Vocês precisam ensaiar mais. Enfim, vamos começar logo. Pode anotar, hoje é dia 3 de
agosto de 1945. Hoje o cronograma diz que teremos aulas de matemática, biologia, história e geografia. Pela tarde eu
ensinarei a vocês química, física, japonês, geografia, além de kung fu, caratê, burajirian jijitsu. Sei que a
Mitsurikabe-san e a Aoikabe-san precisam melhorar no muay thai, mas nós veremos isso amanhã pela parte da
tarde. Lembrem-se de que as provas físicas são semana que vem, espero que vocês estejam se preparando.

Vi aquele tanto de matérias e me senti aliviada, houveram dias que ela nos ensinou muito mais coisas em
bem menos tempo.

Depois de um longo dia de aulas voltamos para casa quase exaustas.

- É, até que eu gostei de hoje, a professora foi bem menos rígida né.

Comentou Aoi-chan.

- Verdade, mas a parte de matemática e física me matou hoje...

Disse a Mido-chan.

- Larga disso Mido-chan, cê que é burra pô.

- Verdade Mitsu-chan

- Parem!! Eu não sou burra não!!

- Imagina se fosse então!

Gargalhadas se espalharam no jardim, agora laranja por causa do pôr do sol. A sala de aula e o Dojô não
ficam longe do saguão principal da casa, mas tem um pequeno prédio construído pra esse propósito. Afinal, foi ali
que foram ensinados maioria dos meus antepassados.

- Eai meninas, foi puxado pra vocês também?


Chegou os meus dois irmãos, que tinham acabado as aulas também.

- Até que hoje a professora deu uma relaxada no caratê, geralmente eu saio de lá com meu peito doendo de
tanta porrada.

Desabafou Mido-chan.

- É, hoje a gente arregaçou o nosso professor no boxe, né não Kiiro-kun?

- Haha! Com certeza, mandamo o véio pro teto hoje!

A conversa prosseguiu por uns seis minutos, quando um dos meninos sugeriu que voltássemos porque eles
estavam com fome. Concordamos e fomos nós cinco brincando, conversando e gargalhando pra casa. Chegando em
casa, meus irmãos foram direto pra cozinha ver as comidas e a senhora minha mãe, nessa ordem, mas eu vi o senhor
meu pai olhando preocupado alguns documentos, papéis e essas coisas. Meu pai é de descendência alemã, mas ele
não é ligado às coisas do exército. Vez ou outra o vejo apertando um telégrafozinho que nós temos encostado em
casa. Já tentei usar, mas quando ele me pegou ele me fez sair de Nagazaki pra Kyoto e voltar correndo. Então eu subi
para o meu quarto para estudar e depois dormir.

No dia seguinte, meus pais disseram para todos os filhos, com exceção de do mais velho, que estavam
planejando uma festa surpresa para o Kiimarou cujo aniversário de dezessete anos estava chegando, faltava uma
semana. Ele sempre gostou de coisas relacionadas às forças armadas, guerras e essas coisas. Apesar de a senhora
minha mãe, não raro, vetava essa vontade dele, meu pai sempre incentivou e comprava todos os brinquedinhos que
ele queria com esse tema. Até hoje nós guardamos todos os exemplares de modelos de aviões usados na primeira
guerra que ele colecionava e cuidava com tanto afinco. Meu outro irmão, Hamadou, mais novo que o Kiimarou, era
mais calminho e menos temperamental, chega a ser estranho o constante bom humor dele. Sempre gostou de
música, desenhos e artes no geral. O senhor meu pai só gostava quando ele pegava o violão e tocava alguns clássicos
japoneses que ele gostava, fora isso era contra ele estudar música e artes. Mas mesmo com essas diferenças de
gostos e talentos, o senhor meu pai ama muito toda a família, sempre colocando mais peso do que ele consegue
carregar sozinho.

Minha mãe sempre fez festas estravagantes para comemorar os nossos aniversários, apesar de eu preferir
uma festa menor só com os amigos próximos, fico feliz que ela goste de usar o dinheiro dela para isso. Até porque
assim eu ganho mais presentes!

Dois dias que passaram rápido como horas. Estávamos todos sentados tomando o desjejum quando chega
uma correspondência. Era o exército convocando meus dois irmãos mais velhos para servirem na guerra. O senhor
meu pai foi convocado, mas por já ter idade avançada, enviou um telegrama dizendo que não tinha condições de
servir, mas também disse que se precisassem, os seus dois filhos estariam a postos para servir e dar glória à Terra do
Sol Nascente. Foi dado três dias para eles se apresentarem ao exército. Passaram as duas últimas noites em casa e
fomos todos à estação de metro onde eles embarcariam.

Eles não eram os únicos. Deviam ter cem, talvez duzentos jovens e adolescentes na estação com os olhos
brilhantes como vários pares de diamantes lunáticos. A grande maioria alegre, cantavam, fumavam, bebiam, se
divertiam antes do inefável prazer de estar na linha de frente do exército. Apesar da fumaça das constantes
locomotivas que chegavam e partiam, minha visão era clara como nunca fora, algumas dezenas de jovens,
contrastando de toda as vibrações emanadas pelos diamantes lunáticos, entristecidos, choravam reunidos em um
canto. Lembro também de chegar um padre para tentar consolar os corações daqueles jovens deprimidos, todos
prestavam atenção nas palavras de esperança e perdão do padre. Enquanto os diamantes lunáticos aguardavam a
locomotiva que os levaria diretamente para a morte. Eram duas e trinta, o planejamento era para que chegassem
duas locomotivas para levar todos os recrutas, a primeira às três e a segunda as três e quarenta. Meus irmãos
embarcariam na segunda. Nos reunimos, nós sete e, apesar da minha família não ligar muito para questões, a
senhora minha mãe mandou que todos a acompanhássemos em uma reza melancólica. Ela rezava com fé para que
talvez Jesus, São João, São Pedro, Maria ou qualquer santo os guardasse para que pudessem voltar outra vez para
casa.

Esses japoneses... Sempre pontuais. Como previsto, o trem chegou três e quatro da tarde. O céu rapidamente
e anomalamente escureceu, como se as nuvens de todas as sete camadas do céu tivessem previamente acordado em
se agregar em cima daquela estação naquele horário. Os diamantes lunáticos fizeram questão de entrar com toda a
volátil animação e entusiasmo e ocuparam logo os três vagões que transbordavam com, além de pessoas, alegria
mórbida. Aqueles jovens lotaram e superlotaram a locomotiva. Depois que estavam todos dentro, o condutor mal
conseguiu fechar as portas, tiveram que tirar alguns de tão empanturrado de jovens estava a locomotiva. Logo ela
partiu, foi a primeira vez que eu ouvi uma locomotiva cantar. Todas as mães, namoradas, esposas e filhas se
concentravam próximo da beira da plataforma. Se despediam com o rosto envolto em lágrimas e pernas fragilizadas.
Esse trem partira às três e vinte. Tinham ainda vinte minutos e setenta soldados. Dessa vez, a maioria estava
deprimida. Alguns ainda esboçavam algum otimismo e, como um vírus, contagiavam alguns poucos outros jovens.
Logo, este, mais pontualmente, a locomotiva parou na estação. Nos despedimos. Os senhores meus pais dos seus
únicos filhos, e eu e minhas irmãs dos nossos irmãos mais velhos. Rápido como o trem chegou, ele partiu.

Voltamos para casa na mesma rua de sempre, mas dessa vez o céu não estava tão colorido. Parecia que
alguém tinha colocado um filtro monocromático que roubara as refrações da luz nas gotas que brincavam de
pega-pega na minha janela. Silêncio, era a única coisa audível no carro. Os sons do motor e do motorista
eventualmente tentando, sem sucesso, levantar o astral chegavam aos meus ouvidos como se eu estivesse em uma
cúpula de vidro. Tudo isso porque eu talvez nunca mais veria meus irmãos.

Chegando em casa, minha mãe sugeriu que fôssemos à uma província no extremo norte nipônico. Lá ocorre
um festival no início de agosto, termina no dia sete de agosto, mas ela sugeriu que ficássemos até o dia dez.
Costumávamos ir todos juntos, nós sete. Ela disse que seria bom para todos nós, e que nos ajudaria a desestressar.
No dia seguinte saímos de trem ainda de madrugada e chegamos lá na alvorada do dia sete. O Matsuri foi divertido,
comemos, compramos lembrancinhas. Comprei até uma miniatura do Miyamoto Musashi, grande samurai medieval,
pra dar pro meu irmão mais velho... Se eu o ver novamente... Enfim, passou o festival, mas nós permanecemos em
Aomori.

Toda a viagem estava divertida, visitamos as praias quase paradisíacas da província e aproveitamos ao
máximo tantas outras atividades. O jeito com que aquele lugar me trazia a nostalgia de estar com a família inteira...
Lembro-me de uma vez que éramos todos crianças. Estávamos brincando com uma bolinha de vôlei, meus pais não
tiravam o olho da gente com medo de atingir alguém e levar essa pessoa desprovida de sorte para o hospital. A areia
naquela manhã de verão estava geladinha, mas a brisa quente obrigava os banhistas a continuarem na água. Teve um
momento no qual a bola caiu muito fundo na praia e a maré estava vazando e, na única hora que meus pais
decidiram pra piscar e flertar entre si, lá vai Kiimarou nadando pro fundo da água. Com a maré puxando ainda mais
pra dentro. Quando meus pais saíram de Nárnia e viram uma criança de 6 anos, mas não uma criança qualquer, o
filho mais velho deles entrando em uma parte onde nem os surfistas estavam indo, continuaram em Nárnia. Kiimarou
pegou a bola e voltou nadando como se nada tivesse acontecido. Uns salva vidas da guarda costeira ali da praia
chegaram a brigar com os meus pais, alegando irresponsabilidade, mas o meu pai, macaco velho com anos de praia,
convenceu o guarda de que não tinha acontecido nada demais e que estava todo mundo bem. Uma das várias
lembranças minhas de quando éramos crianças.

Passaram mais dois dias e o planejado era voltarmos para casa na tarde do dia seguinte. Visitamos alguns
parques bem cedo em Aomori durante a manhã, passamos no mercado de peixes e garantimos um polvo grande
recém pescado bem fresco. Mais ou menos dez e meia a senhora minha mãe começou o preparo do polvo. Lavou,
tirou o cérebro e os outros órgãos, cortou os temperos e fez o molho. Nessa hora, o senhor meu pai lia um livro sobre
a geomorfologia do Japão, ele ama esse tipo de coisa. Minhas irmãs aproveitavam pra fazer exercício. Elas alternam a
personalidade das duas entre super esportiva e garotinha mimada muito rapidamente. O fato de elas serem gêmeas
deixa essas mudanças ainda mais assustadoras. Já eu apreciava a brisa gostosa com o violão do meu irmão mais
velho deitada em uma rede na sombra. Hamadou era o mais diferente entre nós. Tudo o que ele sabia sobre música
ele tinha escrito em um caderninho. Inclusive várias músicas cifradas, tablaturas de acordes, tudo. Acho que tinha até
uma música que eu nunca vi com a assinatura dele. Será que era dele aquela canção? O nome era Ageshio no Uta.
Se eu fosse adulto, eu seria triste. Se eu estivesse sozinho, eu te abraçaria.

Se eu fosse criança, eu seria feliz. Se eu estivese com um amigo, seria bom.

Se eu fosse velho, eu pensaria nas coisas que Se eu estivesse contigo, pararia o tempo para
me cercam. não ter pressssa.

Se eu fosse neutro, faria mais. Quando eu era novo, eu era ingênuo.

Se eu fosse mau, faria menos. Quando eu for mais velho, estaria sábio.

Se eu fosse bom, aprenderia com os meus Quando eu for mais sábio, conversaria mais
erros. vezes com o sENHOR.

Se eu estivesse em um parque, respiraria. Se eu estivesse em um parque, respiraria.

Se eu estivesse em um cemitério, me Se eu estivesse em um cemitério, pensaria.


afundaria.
Se eu estivesse no mar, deixaria a maré me
Se eu estivesse no mar, seria ainda melhor a levar.
sua companhia.

Tinha uma pequena partitura com a melodia dos versos. Todas essas fofurinhas escritas tem a cara dele
mesmo.

Um pouco mais tarde, a senhora minha mãe chamou todos para almoçar. Não costumávamos ouvir rádio na
hora do almoço, mas o meu pai decidiu colocar para ouvirmos. Minhas irmãs, depois de todo aquele exercício,
decidiram tomar banho antes de almoçar, até porque estava fazendo muito calor. Deixei o violão e o caderninho
encostados na parede e me dirigi à cozinha. A senhora minha mãe ligou o ventilador de teto e minhas irmãs
chegaram. Com todos à mesa, o senhor meu pai conduziu a oração em agradecimento pelo alimento. Feito isso,
levantou-se e ligou o rádio que fica encostado na cozinha. Dificilmente nós o usamos, preferimos comer ouvindo
apenas o doce e agradável bater de hashi no prato e o aconchegante, mas repulsivo som de mastigação. Mas o
senhor meu pai decidiu ligá-lo e sintonizá-lo em um canal local da minha terra natal.

Exatamente às onze da manhã começamos o almoço, como de praxe. Estavam todos sentados à mesa
comendo um maravilhoso cozido de polvo temperado. A luz do sol entrava pela única claraboia situada no teto da
sala de jantar. Ela iluminava e garantia que o alimento, devidamente distribuído em pequenos potes de porcelana, se
mantivesse aquecido por um pouco mais de tempo que o habitual. Alguns minutos depois as notícias locais da hora
do almoço de Nagasaki são interrompidas por intoleráveis, ressoantes e estridentes gritos e de repente um silêncio
manchado com um chiado infinito que expressava puro horror. O senhor meu pai, se levanta, e assim como todos na
mesa, aterrorizado, muda a estação do rádio. As palavras que saíram da boca têxtil do rádio eram claras. Claras como
a explosão que devastara Nagasaki, a minha terra natal.
CAPÍTULO ii
Um avião americano passara sobre Nagazaki e soltara uma bomba nuclear. A mesma simpática voz que
anunciava o inferno dizia que Hiroshima havia sido bombardeada três dias antes. A cidade inteira e outras províncias
tinham sido obliteradas do mapa. O senhor meu pai nos abandonou à mesa e deu um salto da mesa e correu
diretamente para aquela salinha onde ele ficava horas trancado. Vi pela sombra projetada na cortina da porta que ele
estava usando o bendito telégrafo, pelo visto ele realmente funcionava.

- Meu Deus! A nossa casa... Meus pais... Os criados... Tudo isso....

Pranteava senhora minha mãe em alta voz. Minhas irmãs saíram do modo super atléticas e abraçaram e
choraram junto da minha mãe. Eu fiquei apenas sem reação e vi todas aquelas coisas acontecendo ao mesmo tempo.
O senhor meu pai batia tão forte no telégrafo que parecia que ele gritava em código morse, e minhas irmãs
desesperadas choravam no colo da minha mãe. Tudo ao mesmo tempo. Eu saí correndo com meu coração ardendo
em direção á praia que não ficava muito longe. Passei pelas ruas, estranhamente desertas, correndo e desse jeito
cheguei à praia. Ofegante, cansada da corrida, caí de joelhos soluçando, segurando pra não chorar, segurando pra ser
forte. Olhei pra cima e vi um céu azul com toques de cor-de-areia. Logo essa visão embaçara. A primeira lágrima caíra
e escorria pelo meu rosto. Depois desta, outra veio e uma puxava a outra, até virar uma reação em cadeira em que as
lágrimas não paravam de sair. Olhei pra aquela praia, e a água salgada que ia indefinidamente até o horizonte parecia
ser gerada e precipitada a partir dos meus próprios olhos. Meu rosto se contorceu de maneira que eu já não
controlava a posição dos meus lábios. Não tinha ninguém na praia pra ver como eu estava, e mesmo que houvesse
nada mudaria. Uns berros animalescos se passavam nas minhas pregas vocais acompanhados de respirações
atomicamente rápidas que atropelavam saliva misturada com lágrima. Depois de algum tempo naquele sol
escaldante, olhei para o horizonte e comecei a lembrar dos meus amigos da vizinhança, dos meus professores, dos
criados e até de um garoto que eu gostava que morava perto da minha casa. Mas eu não conseguia lembrar o nome
dele. O peso de ter perdido o meu lugar, as minhas coisas e a minha casa impediam com que eu sequer pensasse.

Então, determinado momento as lágrimas diminuíram a cadência de seu imbatível ataque e permitiram com
que eu olhasse mais uma vez para o céu. As nuvens, que nunca foram reconhecidas pela sua velocidade, pareciam
ainda mais estáticas naquela infinidade azul. Um frio aconchegante destoava, aconchegava e refrescava o meu corpo
exposto àquele sol escaldante e se espalhava de dentro da minha cabeça e percorria meu tronco, meus braços,
minhas pernas até chegar às extremidades do meu corpo. Desci os meus olhos e observei as ondas na praia, todas
elas pareciam estar... Lentas. Demoravam mais para se formar e para se quebrar, a espuma que se formava quando
ela se levantava também demorava mais para ser gerada e para ser destruída com a falta de agitação. Assustada,
olhei em volta e observei um albatroz que lentamente batia as asas e estava ainda mais estagnado no ar como nunca
parecera estar. Voltei a minha visão para os meus pés e para as singelas ondas que os beijavam. Conseguia perceber
cada pequeno detalhe da água colidindo nos dedos dos meus pés e posteriormente encobrido as minhas unhas
ligeiramente rosadas. Nada naquela visão parecia ser real. Foram tantos detalhes que sempre nos passam
despercebidos. Eventualmente, acordei para a vida real e as coisas voltaram a acontecer em sua velocidade habitual.
As ondas voltaram com aquele ímpeto de formar-se e logo desfazer-se. Voltei meus olhos para o céu e as nuvens, que
nunca foram reconhecidas pela sua velocidade, moviam-se mais rápido do que alguns instantes antes. Olhei à minha
volta e tudo estava normal, como se nada houvesse acontecido.

Voltei para casa sem pressa, pensando no que havia acontecido. Conforme eu ia atravessando as ruas e
passando pelas quadras. Eu sentia o fardo e a tristeza congelante aumentar gradativamente conforme eu me
aproximava do meu lar. À porta essas sensações carregadas me faziam sentir verdadeiro frio que saía da minha nuca
e percorria toda a minha coluna em cadeia. Cheguei em casa e os senhores meus pais me receberam preocupados
porque já era meio dia. Disse onde estava, mas não disse o que tinha acontecido. Depois de algum tempo cada um se
isolou, foi buscar o que fazer. A senhora minha mãe fez oitocentos tipos de chá, misturou todos e ofereceu-os a todos
na casa. Pela primeira vez eu vi as minhas irmãs mais novas separadas, estavam deitadas cada uma em uma cama
olhando para o nada e ouvindo o tempo passar sem saber o que fazer. O senhor meu pai deitou-se também.
Aproveitou um cochilo para, assim como todos, digerir tudo o que tinha acontecido. Voltei-me àquelas anotações do
Hamadou sem intenção de aprender, mas só para meditar um pouco sobre o que havia acontecido, tanto com a
minha casa quanto àquilo na praia. Folheava, observava concentrada a forma dos acordes e lia algumas músicas
cifradas até ser interrompida pela senhora minha mãe que me oferecera um chá de... Folha de limão, bambu, raiz de
eucalipto, hortelã e outras coisas que ela nem se atreveu a falar. Aceitei e na verdade estava uma delícia. Aquele
amálgama de folhas gerou um chá gostoso, nada enjoativo e super relaxante.

Dois dias depois ouvimos batidas na porta. Desci do meu quarto e olhei pela lente da porta. Era um homem
alto, magro e muito branco vestido em um terno preto, o que era estranho visto que fazia um sol absurdamente
escaldante e eu mal me aguentava sem um ventilador em cima de mim. Tinha os cabelos demasiadamente claros e
muito lisos e um sorriso robótico na face. Pensei em atender ele, mas chamei o senhor meu pai para fazê-lo.
Chegando à porta o misterioso homem se apresentou.

- Boa tarde Sampaio-san, me chamo Noah Becker e eu trago uma mensagem diretamente de Berlim, enviada
por Hamadou Sampaio.

Ao ouvir o nome do meu irmão mais velho, o senhor meu pai abriu um sorriso que, sem exageros, ia de
orelha a orelha e logo disfarçou.

- Ah sim, claro, claro. Por que você não entra pra me dizer a mensagem? Aceita um chá pra molhar a
garganta, soldado?

- Seria uma honra Sampaio-san.

O senhor meu pai sinalizou para que eu fosse fazer um chá na cozinha. Logo me retirei da sala e fui fazer o
que tinha de ser feito. Tão logo eu consegui o chá, me apressei para serví-los, até porque eu também queria saber
sobre meu irmão. Então eu me sentei ao lado do senhor meu pai e prestei atenção no mensageiro.

- Como eu disse antes, sou enviado direto de Hamadou Sampaio e vim de Berlim. O mundo inteiro soube dos
infelizes desastres causados pelos países aliados aos Estados Unidos que ocorreram aqui em terras japonesas há
alguns dias. Sinceramente, se o senhor me permite dizer, eu odeio esses americanos.

- Sou obrigado a concordar, soldado, esses americanos me dão nos nervos. Se um aparecesse aqui na minha
frente agora… - Disse ele serrando os punhos e com tom de voz pesaroso.

- Sim. Eu vim fazer uma proposta. O excelente governo alemão fez vários abrigos e missões de resgates para
os japoneses sobreviventes dos bombardeiros. Eu vim trazer suas filhas para esses abrigos.

- Mas, como você pode ver, nós temos um teto pra morar, soldado. Não há razão pra eu liberar elas pra ir pra
Europa.

- O senhor tem um bom ponto, mas o Hamadou solicitou a presença das suas filhas. Especialmente, a sua
filha mais velha, a Mitsurikabe Sampaio.

- Ao ouvir isso, meu pai deixou sair um "Hum" reflexivo com acordes de curiosidade e um aroma de dúvida
latente a ser respondida.

- Por que soldado? Meu filho sabe que nós tínhamos mais de uma casa fora nossa de Nagazaki. Não faz
sentido ele querer elas pra essas bandas, e ainda mais, só a mais velha.

- Mas pai, por favor, nos libere. Eu quero muito ver o Hamadou, nem que seja só eu.

Um silêncio repleto de pensamentos é interrompido pelo som do Becker bebericando o quente chá.
- Veja bem Becker-san, não posso te responder agora. É uma proposta bastante radical e nós precisamos
considerar.

- Entendo perfeitamente Sampaio-san, prevendo isso, o senhor Hamadou me deu quarenta e oito horas para
entregar a resposta.

- Meu garoto… me conhece tão bem.

- Nesse caso, voltarei depois de amanhã e desejo passar a resposta para Hamadou o quanto antes.

Já quase no fim do dia, depois de uma longa conversa na qual a senhora minha mãe veio a participar
bastante, o Becker voltou para não sei onde. Minha mãe pôs a janta, dessa vez sem ligar o rádio na sala de jantar, e
aproveitamos para conversar sobre a proposta de Hamadou. Minha mãe não gostou muito da ideia de eu ir à
Alemanha com as minhas irmãs, mas ela sempre foi muito submissa ao senhor meu pai e preferiu deixar a palavra
final com ele. Já era tarde, o costume seria ir dormir para a escola… Eu ainda não havia engolido o fato da minha
Casa ter sido obliterada por inteiro. E naquela noite, com essa tão importante decisão de o meu ir ou não à
Alemanha, não pude evitar de ficar triste e lamentar, afinal, o que viria depois da minha viagem à Alemanha? Todas
essas dúvidas simplesmente lotaram a minha cabeça de tal forma que naquela noite eu dormi chorando com a
pressão.

Na manhã seguinte acordei com o travesseiro super gelado por causa das minhas lágrimas e por causa da
frígida manhã de outono com toques de melancolia. Passamos o dia acertando sobre a minha possível ida. Becker
enquanto estava aqui fez questão de enfatizar como chegaríamos na Alemanha. A princípio, sairíamos do Japão e
pousaríamos no litoral sul coreano. Dali, cruzaríamos a China de trem, e da mesma forma atravessaríamos a União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas e depois de passar pela Europa oriental, chegaria finalmente em Berlim, onde
residia Hamadou. Tudo isso custeado pelo meu irmão mesmo. Naquela mesma mesa de café, minhas irmãs se
pronunciaram e disseram que queriam ir também, mas os senhores meus pais disseram na hora que não e que só eu
iria. Com aquela certeza e firmeza na resposta deles chegou a fazer eu me sentir importante. Aproveitei o resto do
dia para arrumar as minhas malas, afinal eu teria que levar bastante coisa. A viagem é estrondosamente longa, é
quase ir pro outro lado do mundo… Se bem que ir pro outro lado do mundo, de fato, seria mais rápido.

No outro dia, exatamente no mesmo horário ouvi a campainha tocar, olhei através da lente da porta e era
aquele sujeito alto, magro, extremamente branco com os cabelos demasiadamente claros e lisos e cujos olhos claros
funcionavam quase como refletores. Chamei meus pais e nós o atendemos.

- Bom dia Sampaio-sama. Como foram os últimos dois dias ?

- Foram bons, soldado. Por favor, entre para tomar um chá, Becker-san, está delicioso. Entre enquanto ainda
está quente.

- Já que o senhor insiste, que escolha tenho eu?

- O senhor meu pai escancarou a porta e abriu espaço para que ele entrasse. Ele tirou os sapatos, deixou-os
no vão e entrou balançando aquelas longas e finas pernas e se pôs ainda em pé em frente ao sofá. Quando o senhor
meu pai voltou à sala, logo se sentou e da mesma forma fez Becker. Tão logo ele pôs o pé no assoalho de madeira, a
senhora minha mãe apressou-se para buscar o chá, previamente feito. Pôs os yunomi na mesa e serviu todos os seis.

- Vocês já se decidiram quanto à ida das três irmãs à Berlim?

- Já Becker-san, mas não vão as três, vai apenas a Mitsurikabe.

- A viagem vai ser segura não é, Becker-san?

Indagou a senhora minha mãe, a pergunta havia ecoado de forma gentil e suave, mas ela pôs seu tronco à
frente, como quem está muito concentrado em uma aula ou algo assim. Os olhos com que ela encarava o Becker
estavam pra estapeá-lo de tanta emoção. Sujeita ou não ao senhor meu pai, ela ainda é a minha mãe e eu a
filha dela.

- Sim, Sampaio-san, absolutamente. Protegerei a sua filha como se fosse a minha própria.

A resposta, em tom brando, dele acalmou o coração da senhora minha mãe de tal modo que ela deixou
escapar um baixinho suspiro de alívio e permitiu com que o ímpeto que estapear o Becker com os olhos dela fosse
plenamente mitigado.

- Se você permitir, a minha filha vai terminar alguns preparativos e em TRINTA MINUTOS – Fez questão de
falar mais alto para enfatizar - ela estará pronta para ir. Certo, Mitsurikabe?

- Sim, senhor meu pai.

Subi as escadas e pus as últimas coisas. Escova e pasta de dente, perfume, loções e alguns outros cosméticos
e acessórios. Em quinze minutos eu estava pronta com três malas no total.

Onze e meia da manhã saímos de casa em direção ao aeroporto. Lá embarcamos no voo de código TDSOTM e
partimos em direção à região sul da Coreia, onde pegamos um último avião em direção à um aeroporto no leste
chinês. Tudo isso levou quase duas semanas. A partir desse ponto, pegaríamos um trem para o sudeste chinês onde
encontraríamos a carona para cruzar toda a China de carro. Desse modo fizemos. Pegamos o trem e durante o
caminho para a cidade portuária de Ningbo passamos por lindas paisagens de florestas. O Noah não era o melhor
falante de japonês então aproveitei pra exibir os meus conhecimentos biogeográficos e ensinar nomes das estruturas
de plantas e terrenos em japonês. Todas as florestas, as nuvens, até o ar cheirava diferente. Em alguns momentos foi
nos foi servido chá verde. O resultado disso foi uma viagem relaxante e revigorante. Chegando à estação de trem em
Ningbo descemos do trem e Noah sugeriu que passássemos a noite lá. Nós dois éramos poliglotas, então a língua foi
o último dos obstáculos. Conseguimos uma diária em um pequeno apartamento com dois quartos sendo um deles
uma suíte para passar a noite. Tinha cozinha, sala de estar, sala de jantar e toda a decoração misturava os conceitos
de decoração de interiores e chineses. O Noah apesar de ser alguém a princípio assustador ou robótico se mostrou
bastante humano durante toda a viagem e a estadia. Sempre me tratou super bem, me elogiava e tirava algumas
graças eventualmente. Saímos para almoçar e ele me levou em um restaurante chinês que ele já conhecia.
Contou-me que ele já tinha sido enviado em missões na China, por isso ele conhecia bastante. Quando perguntava
que tipo de missões ele já participara, ele mudava de assunto e percebi uma mania. Sempre que eu perguntava sobre
o passado dele, ele tinha um tique em que ele piscava e projetava sua cabeça pra frente em um movimento rápido.
Então preferi não indagar mais sobre isso. O restaurante era bem simples. Na verdade, era uma tenda bem grande.
Lembrou-me aqueles circos europeus, uma grande tenda eneagonal com uma pilastra de ferro no centro para
segurar a estrutura. Só que esta, a lona que cobria as nossas cabeças era vermelho vinho, não era tão grande quanto
a de um circo, de fato. Cabia só meia dúzia de mesas e algumas cadeiras. Ele pediu o almoço e tão logo almoçamos,
fomos direto para o hotel relaxar.

Passou o dia e, em algum momento, o sol se pôs e permitiu com que a lua estreasse seu papel como
antagonista. A lua, bem mais cheia que de costume, induzia o sal do mar a sair do seu reino demasiadamente úmido
e a vaguear no reino superior de modo que o ar estava salobro. Da lua emanava uma luz retraída que projetava uma
sombra no assoalho claro tão tímida quanto ela. De uma hora pra outra, o ar que tinha notas de sal passou a exalar
repugnante aroma ferruginoso. No apartamento, existia um corredor fino que dava para uma janela. Meu quarto
ficava próximo dessa janela de modo com que eu conseguia ouvir as folhas das copas das árvores dançando
macabramente e roçando no vidro dela. No começo do corredor, ficava o quarto de Noah.

Senti um frio na espinha e meu coração palpitava dizendo, com o ritmo das suas batidas, perigo, perigo.
Alguma coisa espiritual, mental, física ou extradimensional não me deixava dormir, apesar da avançada hora. O céu
encobriu a lua com suas malévolas nuvens e meu quarto escureceu. Abri meus olhos e olhei ao redor. Era como se o
demônio da escuridão enviado diretamente do mais fundo nível do inferno estivesse ali impedindo a penetração de
qualquer feixe de luz nos meus olhos. Olho ao redor, meus olhos se acostumavam pouco a pouco com a escuridão e
eu já conseguia ver alguns poucos detalhes soltos que não formavam imagens distorcidas de nada. Um gélido vento
bate na janela e apartam aquelas benditas nuvens e eu avisto na janela da porta do quarto uma coisa. Era uma coisa
toda preta. A janela do quarto não era baixa, mas mostrava apenas seus ombros, trapézio e pescoço, todos
demasiadamente esticados e delgados.

Vi aquilo lentamente abaixando a cabeça e me encarando com olhos pequenos e brancos que refletiam a
tímida luz da lua. Logo, as benditas nuvens voltaram a vestir a, até então, despida lua em um véu macabro. Aquilo,
antes que eu pudesse reagir, sumira com a escuridão. Assustada, mas curiosa, mantive os olhos arregalados, vidrados
na janela e o corpo rígido, pronto para lutar ou correr. Ouço uma respiração que sussurrava próxima à mim, mas
meus olhos permaneceram atentos à maldita janela me dara aquela visão infernal. De repente, a coisa maldita
perturba o canto do meu quarto e arranca em minha direção. Tem alguma coisa nas mãos dela que, tal qual aqueles
olhos, reflete o luar e enche meu coração de horror. Ainda assustada, atordoada com a monocromia ambulante de
preto em minha frente lanço as cobertas as quais cobriam meu ainda quente corpo por cima daquilo. Com o tempo
ganho, corri para acender as luzes e ver de uma vez por todas o que era.

Houve o clique do interruptor e ouve-se luz, com aquilo ainda se debatendo, avistei uma vassoura de bambu
no canto mais próximo ao meu. Logo a saquei, separei o cabo das cerdas e me pus preparada. As Cobertas
aquietaram-se e fizeram um pouco de silêncio. Quando notei, me aproximava lentamente, em passos curtos,
privilegiando o silêncio. Como se a coisa estivesse aguardando essa minha movimentação, ela lança as cobertas para
cima e avança novamente. Dessa vez, pude visualizar o que era. Noah vestia um traje todo preto que o cobria até
embaixo do nariz. Os olhos denunciaram. Ele vinha em minha direção com... Sais! Ele tinha um Sai em cada mão e,
com um dos braços anomalamente esticado, tentou me estocar. Distraí-me com os olhos azuis envoltos em preto e
quando notei, a lâmina estava perto, perto demais pra desviar. Por puro reflexo os músculos do meu abdômen foram
totalmente contraídos, mas eu senti uma dor aguda e fria no meu pescoço. O Sai me atingira de raspão. Pus a mão
em cima do corte. A adrenalina entrava na minha corrente sanguínea e já exalava por todos os meus poros e quase
me tirara o raciocínio do que eu faria a partir dali. Com a outra mão, simulei uma estocada usando o cabo de
vassoura. O atingira em cheio no rosto. Aproveitando o atordoamento, me voltei para a sua costa e fiz questão de
mirar e acertar, mais forte dessa vez, na nuca. Ele soltou um suspiro de perda de consciência e assim o fez.

Ele caiu no chão – Será que ele morreu? – penso comigo mesma e, ainda naquele passo assimilado nos
treinamentos da infância, me aproximo denovo. Encarei detalhadamente o corpo desfalecido de Noah e percebi
enfim que, afinal de contas, era o Noah! Minha mente entra em como se fosse uma guerra civil, quando a ficha do
tamanho de uma bomba nuclear cai, e que cada aspecto de como eu enxergava o Noah e a minha vida entraram em
conflito mortal. Essa guerra explode e não me deixa pensar no o que fazer. Eventualmente foi assinado o armistício
de paz na minha cabeça e eu pude raciocinar. Já próxima do corpo, encosto meu ouvido no chão a fim de ouvir
respiração e batimentos cardíacos. – Nossa. Ainda bem, ele tá vivo. Quer dizer... – penso comigo mesma novamente.
Puxo então o corpo, não tão desfalecido de Noah, e o amarro na cama com alguns pedaços de corda. Depois de
amarrar os braços e pernas dele, percebi que estava bem parecido com aquelas poses de revistas adultas. Uma vez
uma amiga da escola tinha levado uma dessas pra sala de aula, ela levou suspensão e uma séria conversa com os
pais. Não sei se o fiz por vergonha da pose constrangedora e um tanto exibicionista na qual eu tinha posto ele ou por
uma decisão lógica de dificultar a respiração dele comprimindo o seu peito com o próprio peso, decidi amarrá-lo do
mesmo jeito, porém de bruços, com as costas para cima.

Era uma e meia da manhã e fui investigar o quarto dele, tentando descobrir alguma razão que poderia ter
levado ele a atentar contra a minha vida. – Ele deve ser um impostor. Talvez meu irmão tenha enviado um telegrama
e esse maníaco tenha interceptado a mensagem e tentado me matar... – pensei, buscando a razão para tal. Abri a
mala preta fosca de viagem dele. Não era nada grande, devia ter um quinto do tamanho das minhas malas. Fiz
questão de revirar todos os compartimentos da mala dele. Olhei cada centímetro daquilo. Embaixo das roupas,
dentro de compartimentos e até no interior dos bolsos das calças, onde, achei coisas que preferia manter-me na
ignorância da falta de ciência sobre essas coisas. Percebi que a mala tinha um fundo falso em tecido. Quando o abri,
encontrei uma carteira. Ela era de couro alemão, toda preta, brilhosa. Meu pai tem uma coleção de carteiras de
couro importadas de várias partes do mundo. Áustria, Holanda, China, Coreia, União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas e, inclusive, da Alemanha. Reconheci na hora. Antes que eu pudesse abri-la e sanar de uma vez por todas
as minhas dúvidas sobre quem era esse homem e algo sobre o meu irmão, ouvi um barulho no quarto no qual o
Noah estava. Apanhei o mesmo cabo de vassoura que eu o tinha nocauteado antes, guardei a carteira no bolso da
camisa e fui alerta em direção ao quarto.

Apanhei novamente o cabo de vassoura, tirei as sandálias para fazer menos barulho e para localizá-lo com as
vibrações do chão, caso não estivesse na cama, saí do quarto de Noah em direção ao meu quarto. Chegando lá, me
deparo com a porta entreaberta.

– Estranho... Pensei ter deixado ela completamente aberta. Talvez tenha sido o vento – Dizia a minha mente
tentando, sem sucesso, me consolar. Encarei pelo vidro da porta e não vi Noah na cama. Segurei mais fortemente o
cabo de vassoura, respirei fundo e abri a porta. Entrei no quarto e varri o ambiente de olhares, atento-me para a
cama, último lugar onde ele estara, e vi dois dos quarto pedaços de corda. Meu corpo tencionou de cima a baixo sua
totalidade quando de repente, surge uma sufocadora pressão em meu pescoço. Assustada, tive o reflexo de soltar o
cabo de vassoura e segurar a corda, tentando impedir com que ela me sufocasse mais.

- CADÊ O TEU CABO DE VASSOURA AGORA HEIN ?! EU NÃO GASTEI QUINZE ANOS DA MINHA VIDA
TREINANDO NA PORRA DO TIBET PRA PERDER PRA UMA CRIANÇA DE DEZESSEIS ANOS, AINDA MAIS UMA MULHER!
– Gritou ele com crescente força no meu pescoço.

- quem é... você? – Perguntei quase sem voz e consciência. –SOU NOAH BECKER, JÁ ESQUECEU, MADAME? O
TEU IRMÃO ME ENVIOU PRA TE MA... – Antes que ele pudesse ousar a possibilidade de talvez porventura sequer
tentar terminar essa maldita frase, senti a pressão no meu pescoço aliviar totalmente. Um suave e agudo assobio
precedeu a minha queda no chão, estava tonta do sufocamento, mas consegui olhar pra trás pra ver o que tinha
acontecido. A cabeça de Noah fora atravessada de ponta a ponta por uma agulha, parecia um marshmallow em um
espetinho de metal. Antes que eu pudesse enfim descansar perdendo a consciência, um par de brilhantes me
chamou atenção do lado de fora da janela. Olhei novamente para Noah, dessa vez, com os olhos esbugalhados fora
da órbita do crânio e sangue no chão, que corria e se aproximava cada vez mais de mim. Ouvi alguém bater na janela
e abri-la, mas não vi quem...
CAPÍTULO iii
Pássaros cantavam, flores desabrochavam e o tímido sol acabara de mostrar a sua cara depois de trocar de
lugar com a lua. Em dias com sensações assim, eu estaria assistindo às aulas com as minhas irmãs. Perto de mim
senti o som de madeira crepitando e ouvi o calor em meio a uma manhã fria, era tão atrativo que eu me arrastei em
direção ao fogo.

- Bom dia, Bela Adormecida.

- Bom dia. – Disse ainda bocejando. - Quem é essa?

- Não sei, mas você dormiu bem? Fiz questão de arranjar uma coberta pra você.

- Ah sim, muito obrigada. Muito bonita essa camiseta por sinal. O que é isso na fogueira?

- São dois Faisões que eu cacei. Quer um?

Esse foi o diálogo suficiente para o meu cérebro acordar –depois do meu corpo- e perceber que eu não
conhecia aquele garoto sorridente de óculos redondos.

- Pera aí, quem é você?

- Meu nome é Guang Li, prazer em te conhecer. E vossa beldade, como se chama?

- Não interessa pra quem sem explicação nenhuma me tira de modo suspeito de onde eu estava e me trás
para uma selva enquanto eu estava inconsciente.

- Mas eu te salvei.

- Que? – Indaguei depois de uma pausa de pensamentos.

- Sim, você não lembra? Aquele Homem, você ia acabar morrendo sufocada naquela hora.

Aquela frase destravou alguma coisa na minha mente de modo que eu me lembrei do que tinha acontecido
na noite anterior com Noah.

- Pera aí... Você m-matou o Noah? – Perguntei ao Guang inconscientemente me afastando aos poucos.

- Sim, eu atirei nele um Senbon. Acertei em cheio né? – Perguntou ele com aquele sorriso de orelha a orelha.
A naturalidade com a qual ele falou aquilo... Não era normal. Ninguém assassina outra pessoa e se gaba disso, pelo
menos, não uma pessoa de bem. Aproveitei pra usar as duas agulhas com as quais eu prendo o cabelo. Ninguém
salva alguém matando outra pessoa e fica tranquilo, pelo menos, não uma pessoa de bem.

- É, até que acertou mesmo, mas... Você não sentiu remorso de... Literalmente assassinar, acabar com a vida
de alguém?! – Perguntei em tom de voz exaltada. Eu não conseguia conceber alguém que mata e não se sente
culpado.

- Bom... Eu sou de uma família simples do campo e... Nós caçamos pra sobreviver, sabe? A guerra civil nos
forçou a sair da cidade grande... Agora vivemos assim. Acho que faz parte do Yin Yang... Por um lado, todos nós
somos alfabetizados e cultos, nunca nos faltou nada, meu pai sabe caçar e ele ensinou a mim e aos meus irmãos.
Mas pelo outro, tivemos de sair do nosso lar pra viver na mesma vila dos meus avós.

Essas palavras, de fato, mexeram comigo. Não pude deixar de me compadecer dele, era praticamente a
minha história. Mas essa história de caçador não desceu bem.
Comecei com silêncio, meus olhos saíram de chão e foram em direção aos olhos dele. Suas roupas eram bem
simples, não chamavam atenção, como devia ser. Parecia ter a minha idade, mas era bastante forte. Mais forte pelo
menos que o Hamadou. Quando olhei para os olhos dele, os poucos pontos de luz que passavam pela copa das
árvores refletiam nos olhos dele de modo que os pequenos olhos pretos do Guang brilhavam e resplandeciam ainda
mais o sorriso singelo dele.

- Você basicamente descreveu a minha história, sabia...? – Disse cabisbaixa, não necessariamente de tristeza
enquanto me aproximava devagarinho.

- Sinto muito então... Não queria te deixar triste.

- Não, não, imagina... Aproposito me desculpa. Meu nome é Mitsurikabe Sampaio, muito prazer em te
conhecer. – Me apresentei retribuindo o sorriso.

- Mitsurikabe-chan... Que nome lindo o seu sabia? Mas, não conheço o Sampaio. De onde ele é?

- É português na verdade...

A conversa durou bastante. Deu tempo dos Faisões esfriarem. Apesar de sem sal, estavam muito bem
temperados, desossados e sem os tendões. Ele nem tocou no assunto, mas teve o cuidado de tirar todas as partes
desagradáveis dos pássaros. Comemos os Faisões assados e continuamos a conversar por mais uma ou uma hora e
meia. Quando ele olhou pra cima e viu que já estava tarde. Determinado momento ele perguntou se eu tinha pra
onde voltar e eu respondi tristemente que não. Ele então me convidou para conhecer a família dele e almoçar lá.
Ajudou-me a levantar, pegou as coisas, apagou a fogueira, e fomos. Ele fez questão de carregar absolutamente tudo,
mesmo eu me dispondo a ajudar.

- Então, Guang, sem querer duvidar de você nem nada, mas pra onde você tá me levando?

- Ah sim, de fato. Foi indelicadíssimo da minha parte. A gente tá indo para o meu vilarejo. Já tá chegando a
hora do almoço e eu queria te convidar pra almoçar com a minha família.

O jeito com o qual ele falou me pareceu sincero, mas fui prestando atenção em tudo na floresta com medo
de ter uma armadilha ou algo assim. Estava preparada para absolutamente tudo, lutar, fugir... Apesar de, de fato, a
presença de ele ser super alegre e atraente, diga-se de passagem, estava desconfiada de algum ataque surpresa ou
armadilha. O caminho para a casa dele não demorou muito, mas não foi rápido. Durante o caminho fomos
conversando e o Guang é um garoto super divertido, simpático, impressionantemente inteligente e educado. Nunca
tinha visto alguém tão educado e cavalheiro quanto ele. Teve até uma hora que ele parou a caminhada e pediu para
eu ficar esperando um pouco. Encostei-me a uma árvore qualquer e depois de algum pouco tempo ele volta ofegante
com um buquezinho de várias flores. Não pareciam flores de mato, eram flores grandes, viçosas e bonitas. Depois de
recuperar o ar, me entregou dizendo que eu era mais flor mais bonita dentre todas as outras da China. Apesar de
baratos e simples os elogios que ele dizia para mim, eram todos sinceros e fofos.

Depois de passar pela mata mais densa, entramos em um vilarejo. Casas pequenas, simples, mas
ornamentadas. Todas enfeitadas com plantas e vasos artesanais que eram postos no superior das colunas da casa,
porque as plantas eram plantas trepadeiras que, com o passar do tempo se prendiam nas paredes e davam um visual
único à visão geral do vilarejo.

- Então aqui fica a sua casa, Guang? – Perguntei e além de analisar a arquitetura única, meus olhos varriam o
chão e atentavam-se para as pessoas do vilarejo. Elas viviam cada uma a sua vida em comunidade, nem perceberam
a minha presença, ou era o que elas queriam que eu achasse. – Quem foi o arquiteto que planejou as casas dessa
vila? Quero um autógrafo dele.

Ele soltou uma risada rápida mas verdadeira e respondeu:

- É, você tem razão, quando cheguei aqui também fiquei impressionado com a cultura da vila.
- Então você não é daqui..?

- É... não exatamente. Como eu disse antes, a guerra civil fez com que nós precisássemos sair da cidade
grande.

- Entendi...

No caminho para a casa dele, percebi que cada casa tinha os vasos ornamentais diferentes. Tinha uma casa
que o vaso era esférico, outra era cônico, em outra tinha a forma da ponta de uma lança, outra tinha a forma normal,
mas com entalhes característicos que indicavam, suponho eu, com o que aquela família trabalhava. Alguns vasos
tinham entalhes circulares e repetitivos, em outros eram linhas paralelas, variava de casa para casa. A coluna dos
cantos das casas acompanhava o entalhe dos vasos, de modo que a casa inteira ficava uniforme e harmoniosa. Nunca
tinha visto algo desse jeito.

A casa dele era igual a das outras casas do vilarejo, seus vasos tinham formato de um cilindro delgado e
pontudo na ponta de baixo, mas ainda largo o suficiente para comportar a planta e o seu substrato. Este sustentava
uma planta madura e crescida que descia e encobria grande parte da parede de toras de madeira descascada e barro
da casa. Pelas dez e meia chegamos à casa dele. Ele entrou primeiro e pediu para eu esperar do lado de fora
novamente. Passou-se algum tempo de puro silêncio por parte da família dele, até que ele me convida, denovo
ofegante, para dentro. Ele abriu a porta pra mim, e, ao passar por ela, me deparo com o interior inteiro baseado nas
casas chinesas, iguaizinhas as japonesas. Tinha um carpete de fibra de erva no chão que se estendia até onde meus
olhos conseguiam chegar. As mobílias, como de costume, super baixas, sem cadeiras, apenas almofadas de tecido no
chão para se sentar.

- Bem vinda à minha casa. A minha família tá lá dentro, por favor, me dê a honra de te apresentar a minha
casa. – Ao terminar, ele curvou seu tronco levemente a frente e estendeu a sua mão direita para mim, ato
tipicamente europeu, diga-se de passagem.

- Muito obrigada!

Além da sala de estar, que também era de jantar, ele me mostrou a cozinha e o quarto dele. Chegando lá,
pensei ter visto um livro todo preto, bastante grosso, mas ele me chamou antes que eu pudesse olhar com mais
atenção. Voltamos à sala, sentamos um do lado do outro e continuamos a conversar, quando apareceu a mãe dele e
se apresentou pra mim com um par de yunomi.

- Boa tarde. Meu filho já falou bastante de você, qual é o seu nome?

- Boa tarde senhora...?

- Ah sim, eu me chamo Jiimu Guang, muito prazer.

- Boa tarde Jiimu-san, muito prazer, muito obrigada pela hospitalidade.

- Ah, não se preocupe, nós adoramos receber hóspedes novos. - Disse ela sorrindo enquanto se ajoelhava
em frente a nós.

- Hóspedes...?

- Sim, Guang me disse que você não tinha pra onde voltar, não é?

- De fato... A senhora tem razão. Guang já falou de tudo não é? – Guang olha para a mãe dele com aqueles
olhos brilhosos e pergunta:

- Mãe, a senhora se importaria se ela dormisse aqui, pelo menos hoje né? – Ele olha pra mim e seus olhos
dizem “Por favor, diz sim, por favor, diz sim, por favor, diga sim!!!!”. Volto os meus olhos para a mãe dele, ela põe os
yunomi que esfumaçavam em nossa frente e emanavam o aroma característico de chá verde. Antes que a mãe dele
responda eu intervi:

- Não acho que seria uma boa ideia eu dormir aqui... Eu posso tentar arranjar outro lugar ou voltar pra minha
casa.

- Mas onde é a sua casa lindinha? – Perguntou a mãe de Guang. – É no... Japão... – Respondi em decrescente
tom de voz.

- Nesse caso eu não vejo problema pelo menos hoje, ou até você conseguir transporte de volta.

Ele comemora como uma criança comemora quando ganha um presente de aniversário, não pude deixar de
achar fofo e abrir um sorriso de canto de lábio.

- Daqui a pouco o almoço estará pronto. Aliás, Guang, por favor, compre alguns temperos na loja do senhor
Xiangliao e traga um saquinho de hung-liu.

Ele concorda e me chama para irmos. Chegando lá, reparei no vaso da casa. Ele tinha forma de trapézio
invertido com entalhes de galhos de arbustos. Certamente de plantas de especiarias. A fronte da loja cheira
fortemente a Almíscar o qual soca a minha cara com força. Não pude conter, meu rosto se contorceu, minhas
sobrancelhas franziram-se e um forte espirro ecoou por entre as prateleiras cheias de plantas vivas em vasos, galhos
semissecos pendurados, vasos de barro cheios de especiarias. O vento entrava por uma longa passagem de ar que se
estendia por toda parede do lugar e espalhava os aromas característicos. Como o meu nariz havia sido irritado, decidi
ficar do lado de fora esperando. Pude observar que era quase meio dia e as nuvens no céu começavam a
proliferar-se, quase como se o céu estivesse sendo eutrofizado por elas. Um vento gelado e cheio de gotas de água
atravessou o vilarejo e me obrigou a buscar abrigo. Tão logo Guang comprou o hung-liu sai da loja, voltamos aonde
saímos.

Chegando lá, a mãe dele usou a especiaria na carne e comemos. Depois do almoço, a chuva de verão
convidou todos a um merecido cochilo pós almoço, cada um foi para seu respectivo quarto. Decidi acompanhar
Guang ficando no quarto onde ele, seu irmão e irmã dormiam. Puxei uma almofada qualquer e sentei-me em um dos
cantos do quarto. Fiquei de lado em relação a uma grande janela e alguns respingos de chuva invadiam o quarto sem
qualquer principio de privacidade e pudor. Quando me encostei na parede com meus olhos já pesarosos, decidi
cruzar os braços em busca de uma posição mais confortável, mas antes que eu pudesse saber para que eu buscava a
posição mais confortável eu senti uma coisa dura no bolso da minha camisa.

Imediatamente meus olhos acordaram e meu corpo todo abriu. – Meu Deus, a carteira do Noah!! – Gritei
para o mundo inteiro ouvir no interior da minha mente. Logo ansiosa apanhei a maldita carteira autêntica alemã e a
abri. Nela tinham alguns Yuans, Yienes e Papiermarks. Uns documentos com a cara dele. Sinceramente, ainda bem
que o Noah morreu, achei mais 2 preservativos na carteira dele, na mala eu tinha visto mais 5. Vai ver ele tava
planejando algo comigo ou algo assim. Fuçando e explorando todas as fendas finalmente achei. Uma foto preta e
branca daquele rosto comprido com um sorriso tão macabro quanto todas as possíveis intenções dele comigo, era a
identidade do governo dele. Lá dizia o nome completo, nome dos pais, data de nascimento, e no fundo a marca
d’água de uma suástica vermelha e branca. Estava carimbada com a grande preta e branca fênix nazista. – Não pode
ser... Ele tava falando a verdade... Ele é um contratado do governo nazista... – Pensei em choque. – Mas espera... Se o
Noah dizia a verdade dizendo que tinha a missão de me assassinar, então aquele negócio de ser enviado pelo meu
irmão deve ser verdade também...- Minhas pernas ficaram fracas e meus braços trêmulos. A falta de ar momentânea
me levou a me levantar e lentamente andar em direção à janela aberta. Fechei a carteira e a pus no mesmo bolso de
onde a tirei. À janela, respirei profundamente buscando, além de ar fresco e frio, alguma resposta na minha
perturbada mente. – Porque meu próprio irmão ia querer fazer isso comigo...?- Meu cérebro pregava peças em mim.
Não fazia sentido. Nada ali fazia sentido. Por que eu estava ali refletindo? Uma guerra mundial começou. Por que eu
não estava em casa estudando? Que casa? Ela foi obliterada do mundo junto de Nagazaki e todas as famílias de lá.
Por que aquele homem quase me matou? Por que ele foi enviado pelo... Meu irmão... A chuva intensificou a
cadência de tiros e molhou-me por completo. Quando notei, minha roupa estava toda molhada. Forçando-me a sair
de frente da janela e encarar a realidade. Sentara no mesmo canto, agora, molhava o chão com a água da chuva que
escorria da minha roupa e o salgava com lágrimas lotadas de tormento. – Pra que chorar? Não faz sentido. Só não
faça barulho pra não acordar o Guang e os irmãos dele.- Se passava em minha mente, e dessa vez ela estava certa.
Encolhi-me naquele canto enquanto se passava uma tempestade de pensamentos na minha mente.

Determinado momento senti uma presença confortavelmente quente me abraçar. Os soluços de choro
passaram e eu a abracei de volta ainda cega por lágrimas. Quando as escamas caíram dos meus olhos eu vi o cabelo
todo amassado do Guang.

- Está tudo bem? – Guang perguntou. O tom de voz grave e baixa dele fez com que um arrepio saísse da
minha nuca e se espalhasse pro resto do meu corpo. O respondi acenando a minha cabeça negativamente.

- Ei. – Disse soluçando. – Me solta, eu tô toda molhada, você vai se molhar também.

- Todo dia chove e a casa molha, e nem por isso nós abandonamos ela. Por que nós não vamos à algum lugar
onde você possa fazer mais barulho sem acordar o pessoal. Aquele pequenininho ali, se tu acorda ele durante a
soneca pós almoço ele quebra teus dentes.

Um amálgama de risada e soluço de choro escapou e eu concordei com fraca voz.

Chegando na sala, ele puxou duas almofadas para sentarmos e ele pediu que eu esperasse ali. Assim o fiz.
Olhei para a porta e vi um céu quase limpo e ensolarado. Enquanto apreciava a vista de um casal de passarinhos em
um dos vasos da casa vizinha. Sinto o cheiro de chá verde e dou uma longa inspiração e expiração. Meu coração se
acalma e apesar do meu nariz abastado de muco, as lágrimas sessam. Guang se aproxima com uma bandeja e dois
yunomi cheios de chá esfumaçante. Ele senta-se ao meu lado e me dá um dos yunomi alertando sorrindo sobre a
temperatura elevada deles.

- Então...- Disse ele como quem aguarda um forte não – Aconteceu alguma coisa? –

- Sim... Descobri algumas coisas sobre meu irmão...

- Quer falar sobre isso?

- Na verdade não...

- Sem problemas, você não é obrigada a nada. Mas, você quer ouvir uma história minha?

Assoprei o chá, dei um gole e concordei.

- Pois bem... Eu tinha um amigo chamado Abel Liang. O pai dele era judeu e a mãe chinesa. O pai dele
conheceu a mãe dele em uma missão de evangelismo judaico. Veio ele e uma equipe de outros judeus para a China.
– Ele deu um gole no chá, molhou muito lindamente os lábios, diga-se de passagem, e continuou:

- Quando criança, antes da guerra civil, nós costumávamos brincar muito. Crescemos juntos. Estudamos
juntos, comíamos juntos, fazíamos tudo juntos. Ele era praticamente meu irmão. Mas quando a guerra estourou, a
família dele voltou para a Alemanha. Mas ele deixou um presente pra mim. Um livro muito especial e grande pra
religião dele, todo preto. – Dei outra golada e lembrei-me daquele livro que eu vi no quarto do Guang quando
cheguei. - Por um tempo nós trocamos cartas. Elas levavam mais de três meses para chegar lá, aí ele escrevia a
resposta e eram mais três meses de espera. Então, eram seis meses entre cada carta. Trocamos algumas, mas de uma
hora pra outra ele parou de me responder. Foi aquele maldito governo antissemita alemão.

Meu olhar para o Guang passou de atenção para raiva, eu cresci e o olhei nos olhos.

- Do que você tá falando?! O Hitler trouxe muita riqueza pros alemães, falta um líder assim na China, no
Japão, nos Estados Unidos, em todo lugar!
- Ah... Então você é nazista também? Não te culpo. Infelizmente o meio japonês tem bastante influência de
lá.

- E você apoia os americanos é Guang?!

- Calma, Mitsurikabe... Vou dizer uma verdade apenas. O governo nazista é antissemita.

- Claro que não é!

- Calma... Me escuta. Lá, eles pegam os judeus e os levam pra horríveis campos de concentração. Lá eles
servem muito pior do que objetos. As mulheres são estupradas por 5, 6 homens de uma vez, é o chamado Joy
Division. As crianças são mortas por quê sim, os homens trabalham até morrerem de sede e fome.

Zarabatana japonesa à fukibari

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