Voltaire - Tratado Sobre A Tolerancia - 2

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TRATADO SOBRE

A TOLERÂNCIA
A propósito da morte de Jean Calas

Volta ire

Introdução, notas e bibliografia


RENÉ POMEAU

Tradução
PAULO NEVES

Martins Fontes
São Paulo 2000
O Trrlltlll. Wrw" Toler4ncúz, de Voltaire,
W ,..tiplo em 1762 e teve como origem
o MDMMO cuo Jean Calas. Neste epis6dio
� eacontrou uma va mais a opor­
...id.de pua encetar um novo combate
pela lihenbde. Esta lição de universali­
. � que continua válida ainda em nos-
101 cliaa, � um magnífico testemunho
..._ o iluminiamo. No mundo em que
fttei&Oit doia lku.los depois de Voltaire,
a ani-.enalidade faz da tolerincia um
dcwr.
TRATADO SOBRE
A TOLERÂNCIA
Título origina/, TRAI7É SUR LA 7DLÉRANCE.
Copyright © Flamarion, Paris, 1989, para o aparelho crítico.
Copyright ()Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, 1993, para a presente edição.

l' edição
setembro de /993
21 edição
junho de 2000

Tradução
PAULO NEVES

Tradução do prefklo
Maria Ermantina Galvão
Revisão da tradução
Eduardo Brandão
Revisão .,.,nca
Andrta Stah<l M. da Silva
/vete Batista dos Santos
Produção arM!ca
Geraldo Alves
PqlnaçãoiFotolilos
Studio 3 Duenvolvim<nto Editorial (Ó957-7653)

Dados lnlemadonais de Calolopção na Publicação (CIP)


(Cimara Bl"1lliilelra do Uvro, SP, Brasil)
Voltaire, 1694-1778.
Tratado sobre a tolerância : a propósito da morte de Jean Calas I
Voltaire ; introdução, notas e bibliografia René Pomeau ; cradução
Paulo Neves. - 2. ed. - São Paulo : Martins Fontes, 2000. -
(Clássicos)

Título original: Traité sur la tolérance.


Bibliografia.
ISBN SS-336-1258-3

I. Filosofia francesa 2. Literatura francesa I. Título. 11. Série.

00-1860 CDD-194

lndices para ca"loao sislem,li<:o:


I. Filosofia francesa 194
2. França : Filosofia 194

Todos os direitos para a língua portuguesa reservados à


Limuia Martins Fontes Editora Lida.
Rua Conselheiro Ramalho, 3301340
01325-000 São Paulo SP Brasil
Te/. (11) 239-3677 Fox (11) 3105-6867
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indice

Introdução . .... ..... ...... .. . ...........


. . . . . . . . . .. . . ......
. .. . . �..... . VII
Cronologia . . ................ . ........ . . . . . . ... . . .. . . . . ........... . . . . . .. XXXIII

I. História resumida da morte de Jean Calas . 3


II. Conseqüências do suplício de Jean Calas.. 15
III. Idéia da Reforma do século XVI . .. .......... . . .. 17
IV. Se a tolerância é perigosa, e em que povos
ela é permitida .... ........ ....... . .. ... . .. .... . . . ....... ... 21
V. Como a tolerância p ode ser admitida . .. .. .. . 29
VI. Se a intolerância é de direito natural e de
direito humano............................................. 33
VII. Se a intolerância foi conhecida pelos gre-
gos......... .................................................. 35
VIII. Se os romanos foram tolerantes.................. 39
IX. Acerca dos mártires...................................... 45
X. Acerca do perigo das falsas lendas e acer-
ca da perseguição . , .. .. .. .. .. .... .. .... .. .......... ..
.... 55
XI. Abuso da intolerância . ...... ... �....................
. . . 63
XII. Se a intolerância foi de direito divino no
judaísmo e se foi sempre posta em prática 69
XIII. Extrema tolerância dos judeus.................... 79
XIV. Se a intolerância foi ensinada por Jesus
Cristo .. . . . . . . . . . . . . . ... . ... . . . . . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . . ... . . . . . . . ... 83
XV. Testemunhos contra a intolerância ..... . . . . . ... 91
XVI. Diálogo entre um moribundo e um ho-
mem saudável ... . . ... .. . . . ..... . . . . . . . ..... . . ... . .. . . ... . . . 95
XVII. Carta escrita ao jesuíta Le Tellier, por um
benefi<::iado, em 6 de maio de 1714........... 99
XVIII. Únicos casos em que a intolerância é de
direito humano. . . . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . ... . . . . . . . .. 105
XIX. Relato de uma disputa de controvérsia na
China . . . . . . . . ... . . . . . . . .. . . .. . . . ...... . . . . . . . . . . . ... . ....... . . . . . . 109
XX. Se é útil manter o povo na superstição . . . . . 113
XXI. É preferível a virtude à ciência .. . . . . ... . . . . . . . . . . 117
XXII. Acerca da tolerância universal ... . ... . . . . . ... . .... 121
XXIII. Oração a Deus . . . . ... . . . . . . ... . . . . . . ..... . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
XXIV. Pós-escrito. . . . . . . . . .. . . ... . . ... . . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . . . ... . . . . . 127
XXV. Continuação e conclusão .. .. .... .... .. .. .. .. .. .. .... 133

Artigo posteriormente acrescentado, no qual se


fala da última sentença pronunciada em favor da
família Calas . . . . . ... . . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . . ..... . . . . . . ..... . . .. . . .... . . . 139

Notas ...................................................... : . . . . . . . . ... . . . . . 1 45


Bibliografia............................................................. 179
Introdução

,,

Voltaire não esperou o processo Calas para se preocu­


par com a tolerância. A questão já agitava o meio em que foi
criado: é notório o clima de discussões religiosas e de per­
seguições em que terminou, durante a juventude de Arouet,
o longo reinado de Luís XIV.
Quando da morte do rei, em 12 de setembro de 1715,
as prisões estavam cheias de jansenistas, pessoas muito
honestas, vítimas de sua fidelidade à teologia da "graça
eficaz". Infelizmente, Luís XIV obtivera da corte de Ro­
ma, reticente, a bula Unigenitus. Arouet, por sua família
e círculo de amigos, vira de perto essa última tentativa de
reduzir os partidários de Jansênio, de Arnauld, de Ques­
nel. Depois, com o advento do Regente, abrem-se as pri­
sões, a pressão atenua-se, mas não desaparece. O sécu­
lo inteiro será preenchido pelos esforços do poder para
sufocar ou adormecer um partido religioso, poderoso,
inerradicável. O Tratado sobre a tolerância evoca as fa­
ses de crise desse enfrentamento prolongado. Como sói
acontecer, o conflito religioso permite que tensões de
outra ordem se manifestem. Na capital, o bairro jansenis­
ta por excelência vem a ser o mais miserável: o de Saint­
Médard, povoado de pobres-diabos, de indigentes. Um

VII
_______ Voltaire __________

diácono da paróquia, chamado Pâris, asceta que literal­


mente se matou de tantas privações, é reconhecido por
essa gente pobre como seu semelhante e herói, que con­
denava, com seu exemplo, a religião corrompida dos bair­
ros ricos e da corte. É "canonizado" pelo povo. Ao seu
túmulo afluem multidões, sacudidas de crises histéricas.
São Pâris realiza milagres: as "convulsões" que agitam
seus fiéis passam por curá-los de suas doenças. Tendo a
polícia fechado o cemitério ("Em nome do rei, é proibi­
do a Deus/Fazer milagre neste local"), as "convulsões"
continuam a portas fechadas, nos sótãos. Alguns anos
mais tarde, o caso dos atestados de confissão faz recru­
descer a perseguição. O Tratado sobre a tolerância, no
capítulo dezesseis, refere-se a esse episódio, ainda re­
centíssimo no momento da publicação da obra. O arce­
bispo de Paris, esperando acabar com o jansenismo,
tivera uma idéia que se revelou das mais desastradas. Os
últimos sacramentos só deviam ser administrados aos
agonizantes que pudessem apresentar um atestado de
confissão de um padre que acatasse a bula Unígenitus.
Ora, numerosos fiéis falecem sem poder cumprir o re­
quisito. Resulta daí ser-lhes recusada a sepultura cristã.
Conseqüência mais grave: esses cristãos, não tendo sido
lavados de seus pecados pelo supremo sacramento, cor­
rem o risco da danação eterna. A emoção em Paris se
transforma em rebelião. O Parlamento apodera-se do ca­
so. Agonizantes fazem lavrar, por tabelião, a recusa do
sacramento. Depois disso, o tribunal de justiça processa
os párocos culpados de terem obedecido ao seu arcebis­
po. Luís XV intervém, exila os parlamentares, depois os
chama de volta. Ainda, à véspera de 1 789, o jansenismo
continua bem vivo. Tirará sua desforra ao inspirar larga­
mente a Constituição civil do clero, de 1790.

VIII
---- Tratado sobre a tolerância ----

Quando lemos o Tratado de Voltaire, devemos re­


memorar o ambiente da antiga França, onde o poder se
arrogava mui normalmente o direito de atormentar ho­
mens por suas crenças. Dentre as vítimas, os mais dignos
de pena eram seguramente os protestantes.

* * *

A consciência francesa ficou marcada pela lembran­


ça das guerras religiosas do século XVI, até que "93"
viesse apagar antigos horrores por outros mais recentes.
Voltaire não se enganava ao escolher, por volta de 1720,
para sua Henriade épica, uin herói e um tema que con­
tinuavam a repercutir na opinião contemporânea. Reper­
cussão amplificada ainda pela atualidade da perseguição
antijansenista, bem como pelo que sobreviera aos pro­
testantes.
O fracasso da Revogação do edito de Nantes ficou,
no século XVIII, patentíssimo. Ao assinar o edito de Fon­
tainebleau, em 1 5 de outubro de 1685, Luís XIV pensava
que venceria a resistência dos últimos recalcitrantes. Num
regime autoritário, os relatórios que chegam ao príncipe
infelizmente dizem não o que é, mas o que este deseja·
ouvir. Fazia meses que só se falava ao rei de calvinistas
que aderiam aos magotes à verdadeira religião. Ele não
se interrogava sobre a solidez de conversões, quer com­
pradas pela Comissão de Pellisson (às vezes após escan­
dalosas barganhas), quer extorquidas pelos dragões, cujas
práticas eram todavia conhecidas : pilhagens, roubos,
estupros, brutalidades de toda espécie... A amplitude do
êxodo protestante surpreendeu as autoridades. Muitos,
porém, não conseguiram emigrar. Subsistiram massas

IX
_______ Voltaire ___________

compactas, intactas, em especial nas Cevenas. Luís XIV, no


momento em que devia fazer frente nas fronteiras, com
dificuldade, à Europa coligada, foi também obrigado a
guerrear os camisards, seus súditos protestantes revolto­
sos, no coração do reino.
Depois da morte do rei, teria sido sensato aprender
a lição com o fracasso. Ora, foi a decisão contrária que
se adotou . O duque de Bourbon, primeiro-ministro, faz
o jovem Luís XV declarar que o desígnio do rei da França
continuava a ser o d� extirpar a heresia (1724). As anti­
gas leis voltam a viger: pena capital contra os pastores sur­
preendidos no exercício de seu ministério; quanto aos
protestantes presos em flagrante delito de praticar o cul­
to, galés perpétuas para os homens, prisão perpétua para
as mulheres. Houve empenho na aplicação de um códi­
go tão cruelmente repressivo. Resolvia-se assim, é verda­
de , um difícil problema: recrutar remadores para as gale­
ras do rei. Enviavam-se os camponeses languedocianos
presos pelos guardas nas assembléias do "Deserto" para
remar em Marselha e Toulon: duzentos apenas nos anos
1745 e 1746, segundo Antoine Court. Voltaire, por sua
vez, calcula que, entre 1745 e 1762, oito pastores foram
enforcados por decisão da justiça. Ainda que provações
tão rudes atingissem apenas pequeno número de protes­
tantes, todos, em compensação, eram sujeitos a medidas
discriminatórias muito penosas . Não tinham estado civil.
Seus nascimentos, seus casamentos fora da Igreja não
eram legalmente reconhecidos . Seus filhos eram consi­
derados bastardos, com todas as conseqüências daí de­
correntes , notadamente no que tange à transmissão das
heranças . Por isso, a maior parte dos protestantes se re­
signava a atos puramente formais de catolicidade . Jean

X
______ Tratado sobre a tolerância ________

Calas, por exemplo, fora batizado pelo pároco católico


de seu local de nascimento. Mais tarde, casara-se regu­
larmente na igreja, não em Toulouse, mas numa aldeia
da Ile-de-France, onde o cura da paróquia não levantara
a menor dificuldade para administrar o sacramento. Jean
Calas batizara católicos seus seis filhos . Seus quatro fi­
lhos homens realizaram seus estudos no colégio dos je­
suítas da cidade . Nem por isso deixaram de ser hugue­
notes, com exceção de um. Oficialmente, depois da Re­
vogação, já não existe no reino da França nenhum pro­
testante: somente "católicos novos" . Mas todos sabiam
que esses supostos "católicos novos" que se abstinham
de assistir à missa, de se confessar, de comungar, eram
realmente fiéis da R.P.R. ("religião pretensamente refor­
mada") . Eram tratados como tais. Em particular, eram
excluídos de grande número de profissões, vedadas aos
protestantes. Na verdade, ao longo dos anos, para tornar
possível a vida cotidiana, as autoridades prestavam-se a
acordos . De modo que, graças a apóstolos como Antoine
Court, recomeçara certa vida religiosa na comunidade
reformada. Um sínodo nacional pudera até efetuar-se na
clandestinidade, em 1744. Mas esse despertar inquietava.
O bispo de Agen fizera, por uma carta pública, em 1 75 1 ,
o elogio d a Revogação d o edito d e Nantes, denunciando
paradoxalmente, no calvinismo, "uma religião que con­
sagra os vícios, que permite a licenciosidade" . Um abade
de Caveyrac, em 1758, publicara uma Apologia da Re­
vogação e do massacre de São Bartolomeu; o Tratado de
Voltaire se referirá a essa escandalosa obra. Renasce, no
local, uma tensão entre católicos e protestantes, manifes­
tada, em torno de 1760, por vários processos quase si­
multâneos.

XI
_______ Voltaire __________ _

Em 14 de setembro de 1761, uma patrulha de guar­


das prende perto de Caussade, ao norte de Montauban,
um rapaz de uns vinte anos. Um vagabundo? Não . Ele
declara sua identidade : é o pastor Rochette. Sabe que
sua franqueza vai fazê-lo incorrer na pena de morte . No
dia seguinte, dia de feira em Caussade, os camponeses
huguenotes afluem à cidadezinha . Rebentam tumultos .
Três irmãos, fidalgos fabricantes de vidro, tentam libertar
Rochette. São· presos e chamados a juízo com ele diante
do parlamento de Toulouse. Um protestante de Montau­
ban, Ribotte-Charron, solicita a Voltaire que intervenha .
O grande homem o faz, mas sem muito ardor (tendo ele
próprio rixas com os pastores de Genebra) e, infelizmen­
te, sem resultado. Os quatro huguenotes são condena­
dos à morte. O pastor, de camisa, pés descalços, trazen­
do no pescoço um cartaz, "Ministro da R.P.R. " , é condu­
zido ao suplício com seus companheiros pelas ruas de
Toulouse, apupados pela multidão . Ao pé do cadafalso,
Rochette reza longamente. Exorta seus companheiros.
Sobe ao patíbulo cantando salmos . Os três irmãos abra­
çam-se antes de colocar suas cabeças sobre o cepo. Pois,
sendo fidalgos, têm a honra de ser decapitados.
Essa cena atroz (conhecida por uma carta de Ribotte­
Charron a Rousseau) se passava em 19 de fevereiro de
1 762. Alguns dias antes, começara em Mazamet o pro­
cesso Sirven: a filha de um geômetra-agrimensor, louca,
matara-se atirando-se num poço. Acusam o pai, um pro­
testante, de tê-la assàssinado para impedir sua conversão*.
Alguns dias mais tarde , o protestante Jean Calas será tor-

• Voltaire esperarã o desfecho do processo Calas para encarregar-se da

causa de Sirven e de sua família.

XII
______ Tratado sobre a tolerância ________

turado na roda na mesma praça Saint-Georges de Toulouse


onde haviam sido executados Rochette e os três irmãos .

• • •

Na noite de 13 de outubro de 1761, Jean Calas, co­


merciante de tecidos na Rue des Filatiers, jantara com a
família, em seu modesto apartamento no primeiro andar,
em cima da loja. Recebiam o jovem Gaubert Lavaisse, de
uma família protestante de Toulouse, então fazendo es!
tágio com um armador de Bordeaux; vinha dizer adeus
aos seus antes de partir para São Domingos . À sobreme­
sa, o filho mais velho, Marc-Antoine Calas , levanta-se e
desce; vai, pensam, dar uma volta pela cidade, como
está habituado. Por volta das 9h30min da noite, Gaubert
Lavaisse se despede. O irmão caçula, Pierre Calas, acom­
panha-o na escada, de vela na mão. Tendo chegado ao
corredor do térreo, avistam na loja o corpo de Marc-An­
toine, morto por estrangulamento: o pescoço tem as
marcas de uma corda.
Ante os gritos da família, os vizinhos saem à rua. As
pessoas do bairro se ajuntam. Um boato espalha-se na
mesma hora: Marc-Antoine ia converter-se, como fizera
alguns anos antes seu irmão mais novo, Louis . Para im­
pedi-lo, os Calas, ajudados por Gaubert Lavaisse, agente
de um complô calvinista , com toda evidência, o assassi­
naram. Pouco depois, chega o chefe da polícia, o magis­
trado municipal David de Beaudrigue. A versão da rua
parece-lhe convincente . Cerca de meia-noite, encarcera
na prisão do Capitole todas as pessoas da casa: Jean Ca­
las e sua mulher, seu filho Pierre, Gaubert Lavaisse e,
também, a velha criada católica, Jeanne Viguiere.

XIII
Voltaire ___________

Entrou em ação uma máquina infernal que nada de­


terá mais.
Em 9 de março, o tribunal criminal de Toulouse con­
dena à m orte Jean Calas. No dia seguinte, o condenado
é, pera nte uma multidão reunida, executado pelo suplí­
cio da roda .
Drama da intolerância, por certo. Voltaire tinha toda
razão em escolhê-lo como ponto de partida de sua cam­
panha contra a perseguição religiosa . A família Calas so­
frera as coerções da legislação antiprotestante. Foi esta
que criou as condições do drama. Jean Calas exercia ha­
via uns quarenta anos seu modesto comércio. Em sua
casa exígua, criara seis filhos: quatro filhos , seguidos de
duas filhas•. Com eles morava a velha Jeanne Viguiere, a
seu serviço por um quarto de século, considerada parte
da família . Era , segundo a sentença, católica e muito de­
vota . Seu testemunho é decisivo para inocentar os Calas.
O terceiro filho, Louis, com vinte e cinco anos em
1761, convertera-se cinco anos antes ao catolicismo, sob
a influência de Jeanne Viguiere e do abade Durand. Rom­
pera então com sua família. O bispo, após a abjuração,
obrigara o pai , como exigia a lei , a quitar as dívidas de
Louis e a pagar-lhe uma pensão. Desde então, o rapaz le­
vava uma vida preguiçosa, incapaz de ocupar um empre-

• Rosine, vinte anos, e Nanene, dezenove anos, ausentes em 13 de outu­

bro: como todos os anos, foram ao campo para as vindimas. Os defensores do


crime calvinista pretenderam que os pais as afastaram a fim de executar à von­
tade o assassínio de Marc-Antoine. O mais jovem dos filhos, Donat, também
estã ausente: está como aprendiz em Nimes. - Sobre a família Calas e a docu­
mentação judiciária do drama da Rue des Filatiers, o estudo fundamental é o
de Jean Orsoni, L 'affaire Calas avant Volta ire, tese de doutorado do terceiro
ciclo, Universidade de Paris, Sorbonne, três volumes datilografados de 605
páginas ao todo, trabalho infelizmente não publicado.

XIV
------ Tratado sobre a tolerância ________

go fixo, subsistindo apenas da mesada paterna. Depois


da morte de Marc-Antoine, diziam que também o filho
primogênito ia converter-se, e que esta era a causa do
assassínio.
Marc-Antoine ia completar vinte e nove anos. Auxi­
lia conscienciosamente o pai na loja, substituindo-o com
freqüência, pois Jean Calas, de 63 anos, sente o peso da
idade. Marc-Antoine assumirá logo a direção do negócio.
Mas sonhara algo diferente dessa vida tacanha de comer­
ciante. Culto, amante da literatura (Voltaire o qualifica d�
"homem de letras"*), estuda direito. Gostaria de entrar na
advocacia. Mas esbarra na legislação antiprotestante: é
uma profissão vedada aos "pretensamente reformados".
Terá ele pensado, para afastar o obstáculo, em aderir ao
catolicismo? Tudo prova que se recusou a isso. O inqué­
rito sem dúvida estabeleceu que ele costumava freqüen­
tar os ofícios solenes da Igreja. Era apreciador da bela
música. Um homem de condição tão humilde não tinha
acesso aos concertos da boa sociedade. Não podia satis­
fazer seu gosto senão nas cerimônias abertas a todos nas
igrejas da cidade. Mas não adiantou procurarem o padre
a quem ele se teria aberto sobre suas intenções de abju­
rar: não o encontraram. Em compensação, os inquirido­
res tiveram de registrar o testemunho categórico de Jeanne
Viguiere: ela "jamais soube que ele tivesse alguma dispo­
sição para se converter"**.
Marc-Antoine vivia, portanto, ensimesmado, habitual­
mente taciturno e melancólico. Aos seus mostrou-se as­
sim, durante a refeição de 13 de outubro à noite. Ou tal-

• Tratado sobre a tolerância, p. 4.


•• Citado por Jean Orsoni, L 'a.ffaire Calas avant Voltaire, p. 88. _

XV
_______ Voltaire ___________

vez não tenham prestado atenção nele, ocupados que


estavam com a conversa de Gaubert Lavaisse . Será que,
quando desceu ao térreo, ele se suicidou na loja por en­
forcamento? A resposta dependia da posição do corpo
quando o descobriram. Nesse ponto capital os Calas di­
vergiram, o que agravou a presunção da sua culpabilida­
de. Na noite do dia 13, Pierre, apoiado pelo pai, afirmou
que o corpo estava estendido no chão: primeira versão,
por certo verídica. Tal posição não excluía a tese do sui­
cídio por enforcamento; mas combinava melhor com um
assassínio por estrangulamento. Por isso, os Calas, já no
dia seguinte, mudaram seu depoimento. Teriam encon­
trado Marc-Antoine pendurado numa corda fixada num
rolo de madeira (destinado a enrolar os tecidos), estan­
do o referido rolo equilibrado nas duas folhas entreaber­
tas da porta que fazia a comunicação entre a loja e o de­
pósito. Suicídio acrobático, mas existem alguns assim.
O inquiridor, David de Beaudrigue, não era um Mai­
gret, menos ainda um Sherlock Holmes. Negligenciou
seguir pistas que, talvez , teriam levado à verdade. Marc­
Antoine havia trocado à tarde, por ordem do pai, prata
em luíses de ouro. Não encontraram esses luíses. Que fim
levaram eles? Beaudrigue não formulou a questão. Marc­
Antoine os teria perdido, no jogo ou de outro modo, o
que explicaria o suicídio? Estaria um assassino a moitado
no quintal da casa, espreitando-o para roubá-lo, ou por
outra razão (o inquérito não se interessou pelas amiza­
des femininas desse moço de vinte e oito anos)? Nunca
o saberemos.
Pois o inquérito orientou-se para uma única direção,
que se revelou um impasse: o crime calvinista. Os senti­
mentos de intolerância foram aqui determinantes. Beau-

XVI
------ Tratado sobre a tolerância ________

drigue sente pelos protestantes uma invencível aversão.


Ao seu redor, a cidade manifesta, durante as semanas da
instrução, uma viva hostilidade por essa gente de uma
minoria reprovada. Como se a conversão de Marc-An­
toine fosse um fato estabelecido, a confraria de cogula
dos penitentes brancos apodera-se de seu cadáver, en­
terra-o na igreja de Saint-Étienne, faz em sua honra uma
procissão em que ele é representado por um esqueleto
articulado empoleirado num catafalco. Lançam uma es­
candalosa "monitória": uma advertência aos fiéis lida eíh
todas as igrejas. O texto apresentava como incontestável
o crime calvinista; os ouvintes eram intimados, sob pena
de excomunhão, a dizer tudo quanto sabiam sobre a con­
versão de Marc-Antoine, sobre o assassínio deste pelos
seus por motivo de religião. Recolheram assim apenas
mexericos.
Nem todos os parlamentares do tribunal criminal es­
tavam, por certo, cegados pelo fanatismo. Hesitaram. Ti­
nh am contra os Calas presunções fundamentadas nas
contradições destes quanto à posição do cadáver, na ati­
tude embaraçada do velho comerciante, nem um pouco
preparado para enfrentar tamanha provação ao termo de
uma vida pacata. Mas indícios não bastavam. A pressão
da opinião pública supriu a falta de provas. Faltavam dois
votos de maioria para uma sentença capital. A mudança
de opinião de um juiz no último momento permitiu ob­
tê-los. Entretanto, a sentença de morte ainda trai as in­
certezas do tribunal. Na hipótese do crime calvinista,
cumpria que toda a família fosse coletivamente culpada,
notadamente dada a exigüidade da moradia dos Calas.
Em boa lógica, o promotor requereu para o pai e o ftlho
Pierre a morte pelo suplício da roda, para a mãe a morte

XVII
_______ Voltaire ___________

por enforcamento. A sorte de Gaubert Lavaisse e de


Jeanne Viguiere seria decidida posteriormente. Mas o tri­
bunal não ousou ir tão longe. Condena em 9 de março
de 1762 apenas Jean Calas a ser "quebrado vivo", depois
estrangulado e " atirado numa fogueira ardente" . " Esta úl­
tima pena", especifica a sentença, "é uma reparação à
religião cuja feliz escolha feita pelo filho foi verossimil­
mente a causa de sua morte" (grifo nosso). Assim, Jean
Calas foi condenado a uma morte atroz com base numa
mera "verossimilhança". Fizeram um cálculo: durante a
execução, Jean Calas faria afinal a confissão de seu crime.
O suplício ia trazer a prova, sempre ausente, que justifi­
caria o suplício.
Os juízes não tiveram o que esperavam. Em 10 de
março, o condenado foi, conforme a lei, previamente à
execução, submetido à questão "ordinária" (seus mem­
bros são esticados por talhas), depois à "extraordinária"
(fazem-no ingerir dez moringas de água). Beaudrigue,
ansioso, fica perto dele. Suplica-lhe, para abreviar o tor­
mento, que confesse por fim, no momento de compare­
cer perante Deus, a verdade, ou seja, que matou Marc­
Antoine. Mas Jean Calas não pára de protestar sua ino­
cência. Conduzido ao cadafalso, repete que morre ino­
cente. Deitado na roda, com braços e pernas quebrados
a golpes de barra de ferro, fica lá, com o rosto voltado
para o céu, agonizando durante duas horas, tendo ao
seu lado o padre Bourges. Depois é estrangulado, e seu
corpo queimado. Quando tudo terminou, o promotor cor­
reu ao confessor: "Nosso homem confessou?" Não, não
"confessou" . O padre Bourges testemunha lealmente a
firmeza de alma de Jean Calas.
Os juízes ficam desconcertados. Já não ousam con­
denar os outros acusados, como logicamente deveriam

XVIII
------- Tratado sobre a tolerância _______

fazer. Em 18 de março, pronunciam contra Pierre uma


sentença de banimento e põem os outros réus para "fora
do tribunal"; noutras palavras, absolvem-nos. Era reco­
nhecer implicitamente o erro judiciário .
Não podemos ter dúvida disso hoje. Por culpa de
uma instrução dominada pela prevenção e, por isso, mal
conduzida, estamos até hoje reduzidos à "verossimilhan­
ça". Mas a maior verossimilhança é a favor da inocência
de Jean Calas e dos seus.
A comunidade protestante ficara abalada por tão
horrível desfecho. As minorias perseguidas sabem orga­
nizar-se. Ribotte-Charron, o negociante marselhês Domi­
nique Audibert, seus amigos de Genebra, alertam Voltai­
re. O grande homem, depois de um exame que teria du­
rado três meses, depois de interrogar longamente o mais
jovem dos Calas, Donat, vindo a Ferney, formou uma
"convicção íntima": "o furor da facção e a singularidade
do destino concorreram para assassinar juridicamente na
roda o mais inocente e mais infeliz dos homens, para
dispersar-lhe a família e para reduzi-la à mendicância" (a
Audibert, 9 de julho de 1 762) . Desde então encarrega-se
do caso. Multiplicando as diligências, as intervenções em
Versalhes, acabará obtendo, em 9 de março de 1765, a
reabilitação de Jean Calas.
O Tratado sobre a tolerância, começado em outubro
de 1762, situa-se num momento crucial dessa longa cam­
panha. Uma vantagem decisiva foi obtida, em 7 de mar­
ço de 1763, quando o Conselho do rei autorizou a ape­
lação do julgamento do parlamento de Toulouse. Voltaire
difunde no início de abril o Tratado, impresso em Gene­
bra pelos Cramer. Envia exemplares a Madame de Pompa­
dour, aos ministros de Estado, ao rei da Prússia, a prínci­
pes da Alemanha (carta a Moultou, 3 de abril de 1763). É

XIX
______ Voltaire __________

perante a Europa das luzes que ele advoga a causa dos


Calas, e vai ganhá-la.

• • •

Partindo do "caso", o Tratado amplia as perspecti­


vas . O drama tinha, manifestamente , como primeira ori­
gem, a legislação antiprotestante. Voltaire propõe modi­
ficá-la. Mas procede aqui com extrema prudência, cons­
ciente das poderosas oposições que encontrará. Um de
seus princípios é que "é preciso sempre partir do ponto
em que se está e daquele a que chegaram as nações"•.
Durante seu exílio na Inglaterra, ficara impressionadíssi­
mo com o pluralismo religioso instituído nessa "ilha da
razão" , em contraste com a situação francesa. Existe, tan­
to além-Mancha como aquém, uma Igreja de Estado: na
Inglaterra, a Igreja anglicana, "aquela em que se faz for­
tuna" , escrevia maldosamente (quinta Carta filosófica).
Mas, ao lado dessa Igreja oficial, deixam viver em paz os
dissidentes: quakers, presbiterianos, socinianos. Voltaire
não pede, no Tratado, uma liberdade comparável para os
calvinistas do reino da França. Que concedam aos pro­
testantes apenas uma situação análoga à dos católicos no
Reino Unido (dos quais as Cartasfilosóficas não haviam,
aliás, dito uma só palavra). Sem "templos públicos" , sem
acesso "aos cargos municipais, às funções graduadas".
Mas que lhes restituam o estado civil de que a Revoga­
ção de 1685 lhes despojou: validade dos casamentos, le­
gitimidade dos filhos, direito de herança, "franquia" das
pessoas. Em 1 763, ainda era pedir demais. Nas últimas

• Tratado sobre a tolerância, p. 31.

XX
------ Tratado sobre a tolerância ________

décadas do Antigo Regime, a monarquia francesa parece


atingida por uma impotência para realizar até mesmo as
reformas mais necessárias. O processo Calas teve, decer­
to, uma conseqüência nos fatos. Acabou-se com as exe­
cuções de pastores, com a prisão em massa de hugueno­
tes "no Deserto" para abastecer as galés Mas não se mo­
.

dificou em nada a lei. Podia, portanto, ser a qualquer


momento reativada Foi somente em 1787 que Luís XVI
.

decidiu se a promulgar um edito de tolerância, em favor


-

de seus súditos que não pertenciam à religião católica ·co


texto não especificava se a medida era aplicável também
aos judeus). Vinte e quatro anos depois do Tratado de
Voltaire, o rei adotava-lhe as recomendações. Restituía
aos protestantes o estado civil . Tolerância, portanto, e
nada mais. Estamos, porém, a alguns meses da convoca­
;ão dos estados-gerais. O Edito vai ser rapidamente su­
D era do De fato, a Declaração dos direitos do homem de
.

1789 institui que "todos os cidadãos [. . .] são igualmente


ldmissíveis a todas as funções graduadas, colocações e
�mpregos públicos [. . .] sem outras distinções além daque­
as de suas virtudes e de seus talentos" . Assim termina a
�xclusão dos protestantes, exclusão de há muito inad­
nissível, pois que, em 1777, Luís XVI havia nomeado
:orno principal ministro, e tornado a nomear em 1788,
-lecker, um protestante convicto e até mesmo militante.
l Declaração de 1 789 não afirma explicitamente a liber­

lade do culto público, como pedira o pastor Rabaut


;aint-Étienne, deputado na Assembléia Nacional. O arti­
:o X estipula somente que "ninguém deve ser importu­
tado por suas opiniões, inclusive religiosas, contanto que
ua manifestação não perturbe a ordem pública estabe­
�cida pela lei" . Mas o artigo seguinte, ao afirmar que "a

XXI
______ Voltaire __________

livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um


dos direitos mais preciosos do homem" , implicava uma
liberdade de culto que era, na verdade, daí em diante
praticada sem entraves .
O Tratado de 1763 deveria, por uma evolução nor­
mal, redundar em mais do que mera "tolerância". A argu­
mentação desenvolvida por Voltaire acarretava conse­
qüências que iam muito além dos tímidos pedidos de seu
capítulo cinco. O Tratado sobre a tolerância revelava a
substância de um "Tratado sobre a liberdade de pensar".

• • •

Abordando a questão da tolerância, Voltaire alia-se a


textos clássicos: Locke, Bayle. Retoma-lhes as idéias, mas
se estabelece, com relação a eles, numa perspectiva nova.
Uma nota do capítulo onze remete à "excelente Car­
ta de Locke sobre a tolerância". Obra de forma bem dife­
rente do Tratado. Locke redigiu, em latim, Epístola de to­
lerantia, esse texto compacto, que será traduzido em se­
guida para o inglês e do inglês para o francês. Com toda
evidência, a Epístola se dirige a um público de doutos . O
Tratado de 1 763 visa, ao contrário, ao grande público.
Faz parte de uma estratégia voltairiana que se esforça por
mobilizar a opinião pública .
Daí a divisão em capítulos curtos, entremeados de di­
tos espirituosos e que apelam, no final, para a emoção.
Locke escreve por volta de 1 685-1686, exilado na Holan­
da. Tem como objetivo a situação inglesa sob o reinado
do derradeiro dos Stuart, pouco antes da Revolução de
1 688, que expulsará do trono de um país protestante o
católico intolerante Jaime 11. Portanto, Locke desenvolve

XXII
------ Tratado sobre a tolerância ________

como idéia principal "a distinção entre a comunidade po­


lítica e a sociedade religiosa, a distinção e a separação
radical entre as funções da Igreja e as do Estado"*. Desse
argumento, Voltaire quase que só retém a recusa galica­
na ao poder dos papas de distribuir as coroas e de cole­
tar as anatas (capítulo III) . A separação entre a Igreja e o
Estado na França nunca foi um de seus objetivos. Ad­
voga, ao contrário, uma subordinação da Igreja ao Esta­
do: vê nisso um meio de garantir a tolerância. O apelo
ao Conselho do rei no processo Calas prende-se a essa
política. O Estado não pode desinteressar-se da religião,
pois, "em todos os lugares onde há uma sociedade esta­
belecida, uma religião é necessária". É desejável que seja
uma "religião pura e santa", isenta de superstição e de
fanatismo: "não se deve procurar alimentar de frutos sil­
vestres aqueles que Deus se digna alimentar de pão".
Mas Voltaire - quiçá para espanto de muitos - concede
que, numa população grosseiramente primitiva, as su­
perstições, "desde que não sejam destruidoras", podem
ser justificadas. "O homem sempre necessitou de um
freio. " Por isso era, outrora, "bem mais razoável e útil
adorar aquelas imagens fantásticas da divindade [faunos,
silvanos, náiades, etc.] do que entregar-se ao ateísmo"
(capítulo XX).
Voltaire citou Locke como penhor de uma idéia que
ele extrai de fora do contexto da Epístola: é permitido "a
cada cidadão acreditar apenas em sua razão e pensar o
que essa razão esclarecida ou enganada lhe ditar". For­
mulação que está muito mais próxima de Bayle do que

• Raymond Polin, John Locke, Lettre sur la tolérance, PUF, 1965, introdu­
ção, p. XLVIII.

XXIII
______ voltatre __________

de Locke. Sabe-se como em seu Commentaire pbiloso­


pbique sur cesparoles de]ésus-Cbrist "Contrains-les d 'en­
trer" (1686) , Bayle fundamenta a tolerância numa teolo­
gia da consciência. Expõe que o conhecimento absoluto
da verdade, em matéria metafísica, ultrapassa o alcance
do espírito humano. Logo, basta que tenhamos o senti­
mento interior de seguir a verdade. Em outras palavras,
o que produz o valor de um credo não é seu conteúdo,
mas a fé de que procede. Contra essa fé, a autoridade
. não tem direito algum de empreender o que quer que
seja. Voltaire, por sua vez, bem diferente do crente se­
gundo Bayle, não é muito inclinado ao exame interior ou
ao ensimesmamento. Vê-se no Tratado e em outras obras
que ele tem tendência a reduzir a fé a seus elementos in­
telectuais, e ainda os mais fúteis: os de uma obscura teo­
logia. Cita a procissão do Espírito Santo (na Trindade, o
Espírito Santo procede apenas do Pai ou do Pai e do Fi­
lho, Filioque?); ou ainda a questão de saber se Jesus,
homem e Deus, tinha só uma ou duas vontades (capítu­
lo XI); ou a do Logos. ele foi feito ou gerado? Com toda
a certeza, "seria o auge da loucura pretender levar todos
os homens a pensarem de uma maneira uniforme sobre
a metafísica" (capítulo XXI). Mas, nas guerras de religião
que "ensangüentaram" a terra, os dogmas absconsos foram
algum dia algo mais que um pretexto?
Voltaire não insiste, pois, como Bayle, nos direitos
da "consciência errante". Recorre a critérios mais exterio­
res. O valor supremo para ele é "o bem físico e moral da
sociedade" (capítulo IV). "O interesse das nações" exige
a tolerância, é isso que ele desenvolve através de um
amplo panorama histórico.
O pluralismo religioso da humanidade deve-se ao
fato de que, nessa matéria, "a educação faz tudo", pelo

XXIV
------ Tratado sobre a tolerância ________

menos quase tudo. Bayle já propusera esse apólogo: su­


ponhamos uma cidade metade cristã, metade muçulma­
na; se forem trocados os recém-nascidos entre as famí­
lias das duas religiões, é evidente que o bebê nascido
cristão será muçulmano, e o inverso. Voltaire levara ao
palco uma situação análoga. Sua Za"ire, nascida de pais
cristãos, criada desde o berço no serralha de Orosmane,
é muçulmana . Ela mesma fazia sobre seu caso pessoal
uma declaração de relativismo religioso:

Teria eu sido perto do Ganges escrava dos falsos deuses,


Cristã em Paris, muçulmana neste lugar.

Que nem a prédica nem a força conseguem eliminar


uma religião em proveito da outra, ficou suficientemen­
te demonstrado pelo fracasso da política antijansenista e
antiprotestante de Luís XIV, e o processo Calas acaba de
fornecer a sangrenta ilustração desse fato . Voltaire, no
Tratado de 1 763, amplia o campo de visão. "Saiamos de
nossa pequena esfera e examinemos o resto de nosso
globo" (capítulo IV). Uma vista-d'olhos mundialista faz a
humanidade aparecer como um imenso mosaico de reli­
giões. Desse modo, os vastos impérios, necessariamente
pluriconfessionais, praticam todos a tolerância. Voltaire
os examina. O império otomano tolera os cristãos gregos
e latinos, os captas, os judeus, os guebros, os banianos,
etc. Assim também a Í ndia e a Pérsia. Da mesma forma o
império russo, desde Pedro, o Grande. A China confucia­
na tolera o budismo ("as superstições de Fô"). Se o
imperador, que Voltaire escreve Yung-Ching, expulsou
os jesuítas, foi porque tais jesuítas eram intolerantes. A
Roma imperial acolhia liberalmente os cultos orientais,

XXV
_______ Voltaire ___________

mesmo os mais estranhos ao espírito romano. Mas per­


seguiu os cristãos. Voltaire esforça-se por responder à
objeção: os cristãos eram combatidos não como cristãos,
mas como facciosos, que recusavam celebrar o culto de
Roma e do Império•. E talvez esses mártires cristãos não
tenham sido tão numerosos como pretende a tradição.
Voltaire acrescenta, por fim, uma espécie de argu­
mento ad hominem: os próprios judeus antigos eram to­
lerantes. Sabe-se hoje que o judaísmo arcaico era antes
monolátrico do que monoteísta. Embora a comunidade
judaica se consagrasse apenas ao culto de Javé, reconhe­
cia paralelamente a autêntica qualidade divina dos deu­
ses venerados por Estados, tribos, povos vizinhos e ini­
migos . O povo de Javé chegava a invocar essas divin­
dades rivais, de poderio reconhecido como incontestá­
vel . Voltaire, que leu muito o Antigo Testamento, notou
os vestígios desse estado primitivo das coisas nos textos .
Os juízes no deserto, assinala , adoraram não só o bezer­
ro de ouro (que ele identifica com o deus egípcio Ápis)

mas também Moloch, Renfa, Kium. As infidelidades ao ciu­


mento Deus de Israel nem sempre eram reprimidas. O
próprio Moisés teria sido "obrigado a fechar os olhos à
paixão do povo pelos deuses estrangeiros" (capítulo XII) :
tolerância . . .
Quanto ao judaísmo na época das origens cristãs,
Voltaire salienta que está muito longe de ser um bloco

• O que também adrrútem historiadores modernos: ver Pierre Grimal, Les


erreut-s de la liberté, Paris, Les belles lettres, 1989. Durante a primeira perse­
guição, sob Nero, "os cristãos eram tidos !...] como um grupo de facciosos, ini­
rrúgos, precisamente, da ordem estabelecida, profetizando a derrocada de
Roma".

XXVI
------ Tratado sobre a tolerância ________

homogêneo. Os judeus contemporâneos de Jesus se di­


videm entre várias seitas: fariseus, saduceus, essênios, em
desacordo sobre dogmas essenciais e mais diferentes
entre si do que são os protestantes dos católicos. Contu­
do, conseguem coabitar. Assim, Voltaire se diz espanta­
do de encontrar entre os judeu s "a maior tolerância em
meio aos horrores mais bárbaros" (capítulo XIII).
Jesus Cristo teria vindo pôr fim a essa paz religiosa?
Voltaire, depois de Bayle, é levado a examinar o Obriga­
"

os a entrar" (Contraíns-les d'entrer), invocado para justi­


ficar a perseguição. É conhecida a parábola de Lucas,
XIV. Um pai de família preparou uma grande ceia, mas
nenhum dos convidados compareceu. Para substituí-los,
ele manda buscar cegos e mancos. Como sobram ainda
lugares vazios, envia um empregado: "Sai pelos caminhos
e atalhos e obriga todos a entrar. " Deve-se compreender
que o empregado brutalizou os novos convidados e que,
a seu exemplo, os dragões de Luís XIV apenas aplicaram
um preceito evangélico? Voltaire observa que um só cria­
do não podia obrigar pela força tanta gente. "Obriga-os a
entrar" só pode evidentemente significar "rogai, suplicai,
instai, obtende". "Qual a relação, vos pergunto, dessa sú­
plica e dessa ceia com a perseguição?" Jesus pregou "a
doçura, a paciência, a indulgência". Ele mesmo foi vítima
da intolerância do sinédrio. Se quereis vos assemelhar a
"

Jesus Cristo" , conclui Voltaire, "sede mártires e não car­


rascos" (capítulo XIV) .

• • •

O fato de a filosofia da história de Voltaire abrir-se


para uma visão religiosa fica mais evidente, do que em

XXVII
_______ Voltaire ___________

qualquer outra parte, nas últimas páginas do Tratado so­


bre a tolerância. Pode-se lamentar que tenha achado
bom acrescentar após o vigésimo terceiro capítulo mais
três capítulos de "post-scriptum" , para levar em conside­
ração o estado presente da polêmica e os progressos do
processo Calas. Na realidade, o Tratado culmina e con­
clui com a impressionante "Prece a Deus" : "Já não é aos
homens que me dirijo, é a Ti, Deus de todos os seres, de
todos os mundos e de todos os tempos . " Tal "prece" , di­
rigida ao "Ser supremo", não é única na obra de Voltaire .
Um de seus primeiros textos, a Epftre à Uranie (Epístola
a Urânia) (ou Le pour et /e contre), é também uma "prece
a Deus". Bem como os versos que concluem a profissão
de fé em quatro partes de La /oi naturelle:

Ó Deus que não reconhecemos, ó Deus que tudo


anuncia . . .

Essas eloqüentes declarações são provavelmente uma


das raras expressões assumidas, em Voltaire, por certo
sentimento religioso. Qualquer um que as aceita sem pre­
venção não pode deixar de ficar comovido com seu tom.
É impossível não lhes reconhecer a sinceridade. Na "pre­
ce a Deus" final se revela a evidência da qual procede o
alegado de Voltaire em defesa da tolerância. Com o "Deus
de todos os seres, de todos os mundos e de todos os
tempos" são confrontadas "fracas criaturas perdidas na
imensidão e imperceptíveis ao resto do universo" : os
"átomos chamados homens". Esses insetos produziram,
ao mesmo tempo que suas "linguagens insuficientes" , seus
"costumes ridículos", suas "leis imperfeitas", suas "opi­
niões insensatas", as religiões em cujo nome se dilace-

XXVIII
______ Tratado sobre a tolerância ________

ram. Quanto mais Voltaire exalta o Ser dos seres, mais


rebaixa-lhes as crenças irracionais, que tende a reduzir
ao nível de práticas derrisórias : "círios em pleno meio­
dia", batinas de pano branco ou mantos de lã negra, jar­
gão antigo ou novo, hábitos tingidos de vermelho ou de
roxo. Seria loucura para os homens degolarem-se por
tais misérias .
Com vistas a esse ftnal, foram colocadas indicações
nos capítulos anteriores, às quais correspondem temas
abundantemente desenvolvidos por Voltaire no resto de
sua obra. Por exemplo, a alusão à "adoração simples de
um único Deus", esse "culto dos descendentes de Noé" ,
ou seja, d a humanidade primitiva. Voltaire preza a idéia
de que o teísmo foi a primeira religião dos homens e se
conservou na China de Confúcio (capítulo IV). A religião
pura degenerou noutros lugares em superstição e em
fanatismo, que produziram a intolerância . Mas um pou­
co em toda parte encontram-se vestígios das origens: "os
antigos povos civilizados [. . .] reconheciam todos um Deus
supremo", ainda que, deploravelmente, associassem-lhe
"uma quantidade prodigiosa de divindades inferiores" (ca­
pítulo IV). Os romanos, mormente, reconheciam esse Deus
supremo (capítulo IX). Voltaire acalenta a esperança de
que a humanidade voltará à religião natural de seus pri­
mórdios . É a isso que tende o esforço de tolerância. Não
vão as formigas, perdidas na imensidão cósmica, dizer
consigo, cada uma de seu lado, "o meu formigueiro é o
único que é caro a Deus, todos os outros lhe são odiosos
por toda a eternidade" . Voltaire prega: "Digo-vos que é
preciso olhar todos os homens como nossos irmãos. -
Como! meu irmão, o turco? meu irmão, o chinês? o judeu?
o siamês? - Sim, sem dúvida, não somos todos ftlhos do

XXIX
_______ Voltaire ___________

mesmo pai e criaturas do mesmo Deus?" O que termina


na invocação da "Prece a Deus":
Possam todos os homens
lembrar-se de que são irmãos!

• • •

Que pensar hoje dessa filosofia da tolerância? Dirão


que Voltaire dava provas de demasiado otimismo. "Os
costumes se abrandaram" , nestes cinqüenta anos, cons­
tatava ele . Abrandaram-se, certamente, no seio de uma
elite européia, mas bastante estrita: muitos acontecimen­
tos posteriores mostrarão que o movimento era menos
extenso e menos profundo do que se julgava . Não se
pode ler sem um aperto no coração a página em que ele
anuncia que a "Irlanda povoada e enriquecida não verá
mais" católicos e protestantes matarem-se uns aos outros
(capítulo IV) . Será mesmo indubitável que a multiplici­
dade das seitas as enfraquece, por um efeito quase me­
cânico? Não vemos ainda algumas que, instaladas em
número de quatro ou cinco num mesmo território, se
combatem, de armas à mão, com um ardor que sua plu­
ralidade não diminui?
O otimismo do Iluminismo se estribava numa filoso­
fia da história que já não parece aceitável. Nossa antro­
pologia já não é a de Voltaire, tampouco a de Rousseau .
Quem se atreveria a afirmar que os pequenos grupos ori­
ginais de Homo erectus ou de Homo habilis adoravam o
Ser supremo sem a sombra de uma idéia supersticiosa?
Quem pode esperar que a humanidade do futuro, liber­
ta dos fantasmas do irracional e dos furores do fanatis­
mo, comungará no culto puro do Ser dos seres, conforme

XXX
------ Tratado sobre a tolerância ________

o voto de Voltaire? A disparidade das culturas subsiste, e


estas , justapostas e pouco assimiláveis entre si, não con­
duzem, mais do que à reconciliação, ao "choque dos
mundos" , para repetir a expressão com que Alain Pey­
refitte define o início do contato da Europa com a China
no século XVIII*?
Contudo, tanto no universo atual como no Século
das Luzes , delineia-se uma evolução em sentido inverso .
Não é de espantar que Voltaire, nas Cartas filosóficas,
designe como um dos lugares privilegiados da tolerância
a Bolsa de Londres ( Carta VI). Ora, quanto progrediu
desde então a internacionalização dos intercâmbios! A
rapidez, a facilidade das comunicações de um extremo a
outro do planeta, a interdependência entre todas as par­
tes deste não cessa de acentuar a mundialização de nos­
sa civilização. Impõe-se, por esse fato, uma ética que pres­
creve aceitar, na terra inteira, o estrangeiro em sua alte­
ridade . Aqueles que ainda pretendem encerrar-se em seu
campo fechado, eriçados contra os outros, macerando
em seu próprio fanatismo, condenam-se a si mesmos .
O movimento ascendente do Tratado chega a enfa­
tizar uma fórmula, inscrita no título do vigésimo segun­
do capítulo : "Acerca da tolerância universal . " Ressaltare­
mos o epíteto. No mundo em que vivemos, dois séculos
depois de Voltaire, a universalidade faz da tolerância um
dever.
RENÉ POMEAU

• Alain Peyrefitte, L 'empire immobile ou /e cboc des mondes, Paris,


Fayard, 1989.

XXXI
Cronologia

1 572. 24 de agosto: Noite de São Bartolomeu. Por ordem


do rei Carlos IX, encorajado por sua mãe Catarina
de Médicis, massacre dos protestantes em Paris e
nas províncias.
1 598. 13 de abril: Henrique IV põe fim às guerras de re­
ligião pelo edito de Nantes. A liberdade de culto é
garantida aos protestantes sob certas condições.
1 685. 18 de outubro: revogação do edito de Nantes por
Luís XIV. A religião reformada é proibida no reino
da França. Os protestantes convertidos à força são
tidos como "novos católicos" .
1 694. Voltaire, d e nome François-Marie Arouet, nasce
em Paris.
1 702 . Guerra de Sucessão da Espanha.
1704. Voltaire inicia estudos no colégio dos jesuítas Louis­
le-Grand.
Derrota dos exércitos franceses em Hochstedt.
1 706. O príncipe Eugênio e Marlborough apoderam-se
de Lille.
1702-1710. Revolta dos camisards, camponeses protestantes
das Cevenas.
1710- 171 2. O convento dos religiosos cistercienses de Port
Royal des Champs (vale de Chevreuse), reduto do

XXXIII
______ Voltaire __________

jansenismo, é destruído por ordem de Luís XIV. Os


soldados devastam o cemitério. Cenas escandalosas .
1 7 1 3. Estada de Voltaire em Haia como secretário do
embaixador da França .
8 de setembro: Luís XIV obtém do papa Clemente
XI a bula ou constituição Unígenítus que condena
o jansenismo.
Paz de Utrecht.
1 7 1 5 . Morte de Luís XIV; o duque de Orléans, regente,
assume o poder.
1717. Voltaire é encerrado durante onze meses na Bas­
tilha .
1 7 1 8 . Ele alcança seu primeiro grande sucesso com
Oedípe, tragédia.
1 7 1 9 . Inflação: o "sistema" de Law.
1 7 20 . Voltaire visita lorde Bolingbroke, no castelo de la
Source, perto de Orléans .
1 72 1 . Em Londres, Robert Walpole torna-se primeiro-mi­
nistro; ocupará o cargo até 1742.
1 722. Voltaire faz uma viagem à Holanda: admira a tole­
rância e a prosperidade comercial desse país.
1 723. Publica La Ligue, primeira versão de La Henriade,
poema épico sobre as guerras de religião e Henri­
que IV.
1 7 26. 4 de fevereiro: é espancado por ordem do cavalei­
ro de Rohan.
17 de abril: preso na Bastilha.
5 de maio: embarque para Londres.
O cardeal Fleury governa a França; conservará o
poder até sua morte (1743) .
1 727 . Janeiro: Voltaire é apresentado ao rei da Inglater­
ra, Jorge I .

XXXIV
------- Tratado sobre a tolerâncta -------

Dezembro: publica dois opúsculos em inglês: Essay


on Civil War.Ç, Essay on Epic Poetry.
1728. Publica em Londres, por subscrição, La Hen riade ,

dedicada à rainha da Inglaterra.


Novembro: retoma à França.
O abade Prévost converte-se ao protestantismo e
refugia-se em Londres.
1729. Montesquieu na Inglaterra.
1730. 1 5 de março: morte da grande atriz Adrienne Le­
couvreur. Tendo o clero recusado a sepultura, o
corpo é lançado à lixeira. Voltaire indigna-se con­
tra isso no poema La mort de Mademoiselle Le­
couvreur.
Agitação jansenista : convulsões sobre o túmulo do
diácono Pâris.
1 73 1 . Voltaire publica L 'bistoire de Cbarles XII, iniciada
em Londres .
1 732 . Agosto: sucesso triunfal de Zai're, tragédia de Vol­
taire dedicada ao mercador inglês Falkener.
1 733. Janeiro: Voltaire publica Le temple du goút [O tem­
plo do gosto] .
Junho: ligação com Madame du Châtelet.
Julho: acrescenta às Lettres pbilosopbiques [Cartas fi­
losóficas] o texto Remarques sur Pascal [Notas so­
bre Pascal] .
1 73 4 . As Cartas filosóficas são divulgadas em Paris.
Voltaire refugia-se em Cirey, na Champanha, no
castelo de Madame du Châtelet.
Montesquieu: Considérations sur les Romains.
1 73 5 . Voltaire obtém a permissão de voltar a Paris.
1 736. Le mondain [0 mundano] : Voltaire refugia-se du­
rante algumas semanas na Holanda.

XXXV
______ Voltaire __________

1 737. Publica os Éléments de la pbilosopbie de Newton.


1 738. Temporada em Cirey.
1 740 . Subida ao trono de Maria Teresa da Áustria .
Subida ao trono de Frederico 11, rei da Prússia, que
invade a Silésia.
Voltaire encontra Frederico 11, pela primeira vez,
em eleves .
1 741 . Guerra de Sucessão da Áustria.
1 742 . Mabomet, tragédia de Voltaire, é proibida em Paris .
1 743. Voltaire faz representar Mérope, tragédia.
Realiza uma missão secreta em Berlim.
Morte de Fleury. Entrada dos irmãos d'Angerson
no ministério.
1 745 . Luís XV alcança a vitória de Fontenoy e toma Ma­
clame de Pompadour como favorita.
Voltaire é nomeado historiógrafo do rei.
1 746 . É eleito para a Academia Francesa.
1 747 . Encontra dificuldades na corte Zadig.
.

1 748 . Em Nancy, Lunéville, Commercy, freqüenta a corte


de Stanislas , sogro de Luís XV.
Paz de Aix-la-Chapelle.
Montesquieu: L 'esprit des /ois.
1 749. Morte de Madame du Châtelet.
1 750 . Nomeado secretário particular de Frederico 11, Vol­
taire parte para Berlim.
Rousseau: Discours sur les sciences et les arts.
1 75 1 . Voltaire publica Le siecle de Louis XIV.
Publicação do tomo I da Encyclopédie.
1752. Contra o cinismo filosófico de La Mettrie (e de Fre­
derico II) Voltaire compõe La /oi naturelle, poema
inicialmente intitulado La religion naturelle.
1 753 . Rompe com Frederico II.

XXXVI
------- Tratado sobre a tolerância _______

Luís XV proíbe-lhe aproximar-se de Paris; passa


uma temporada na Alsácia.
1 755 . Instala-se em Délices, nos arredores de Genebra.
Morte de Montesquieu .
Rousseau : Discours sur !'origine de l'ínegalíté.
1756. Voltaire publica Essaí sur les moeurs et l'esprit des
natíons [Ensaio sobre os costumes e o espírito das
nações] .
Início da Guerra dos Sete Anos .
1757. Desastre do exército francês em Rossbach.
Perseguições contra os fllósofos: a publicação da
Encyclopédíe é interrompida.
1758. Voltaire adquire o castelo de Ferney, em território
francês, na fronteira com a Suíça.
O duque de Choiseul é nomeado para o ministério.
1 759. Voltaire publica Candide.
176 1 . O parlamento de Paris inicia o processo que cul­
minará com a supressão dos jesuítas.
Rousseau : La Nouvelle Héloi"se.
13 de outubro: Marc-Antoine Calas , após um jantar
em família, é encontrado morto na loja de tecidos
da Rue des Filatiers, em Toulouse .
1762. 19 de fevereiro: execução em Toulouse do pastor
Rochette e três nobres protestantes.
9 de março: o parlamento de Toulouse condena à
morte Jean Calas . Ele é executado no dia seguinte .
Por volta de 20 de março, em Ferney, Voltaire é
informado por Dominique Audibert.
9 de junho: após a publicação do Contrat social e
do Émile, Rousseau é condenado pelo parlamento
de Paris por ter escrito a Profession defoi du vicai­
re Savoyard. Ameaçado de prisão, é obrigado a fu­
gir para a Suíça . Mas Genebra e Berna condenam
igualmente a Profession defoi.

XXXVII
______ Voltaire __________

7 de julho: A Monseigneur /e chancelier, assinado


por Donat Calas, mas redigido por Voltaire.
Agosto: Voltaire publica Histoire d'Elisabeth Canning
et de Jean Calas.
Mémoire pour Anne-Rose Cabibel (a viúva de Jean
Calas), pelo advogado Mariette.
Mémoire à consulter, por Élie de Beaumont.
Mémoire pour Donat, Pierre et Louis Calas, por
Loyseau de Mauléon.
1 763. Janeiro: Réflexions pour dame Anne-Rose Cabibel,
por Mariette.
10 de fevereiro: o tratado de Paris põe fim à Guer­
ra dos Sete Anos.
7 de março: o Conselho do rei autoriza o recurso
contra o julgamento de Toulouse.
Abril: a impressão do Traité sur la tolérance pel os
Cramer é concluída. A difusão do livro na França,
onde é p roibido , enfrenta dificuldades.
1 764. Fevereiro : intervenções de Voltaire em favor dos
galerianos huguenotes.
5 de maio: o parlamento de Toulouse condena a
família Sirven.
Junho: primeira edição do Dictionnaire pbiloso­
phique portatif.
1 765. 9 de março: reabilitação de Jean Calas.
1766. 12 de julho: o cavaleiro de La Barre, de 1 9 anos de
idade, condenado por sacrilégio, é decapitado.
Luís XV recusara seu indulto. O Dictionnaire phi­
losopbique é queimado sobre seu corpo.
Voltaire refugia-se por algum tempo na Suíça e pu­
blica La relation de la mort du cbevalier de La Barre.

XXXVIII
------- Tratado sobre a tolerância ______
_

1767. Voltaire publica L 'ingénu [O ingênuo].


1 770. Queda de Choiseul.
1 771 . O novo parlamento de Toulouse ("Parlamento Mau-
peou") pronuncia a absolvição definitiva de Sirven.
1 774. Subida ao trono de Luís XVI. Ministério de Turgot.
1778. Retorno de Voltaire a Paris: apoteose e morte.
1787. 19 de novembro: Luís XVI assina o edito de Tole-
rância que restitui aos protestantes seus direitos
civis.
1789. Agosto: a Assembléia Nacional vota a Declaração
dos direitos do homem e do cidadão.
1790. 1 2 de julho: a Assembléia Nacional adota a Cons­
tituição civil do clero.
1791 . 1 1 de julho: transferência das cinzas de Voltaire
para o Panthéon.
180 1 . 1 5 de julho: Bonaparte, primeiro cônsul, conclui
com o papa Pio VII a Concordata que restabelece
na França a paz religiosa.
1905. 9 de dezembro: lei de separação da Igreja e do Es­
tado.
1948. 1 0 de dezembro: a Assembléia da ONU em Paris
adota a Declaração internacional dos direitos do
homem, cujo artigo XVIII declara que "qualquer
pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de
consciência e de religião" .

XXXIX
TRATADO SOBRE
A TOLERÂNCIA

A PROP Ó SITO DA MORTE


DE JEAN CALAS
CAPÍTULO I

História resumida da morte


de Jean Calns

O assassínio de Calas, cometido em Toulouse com o


gládio da justiça, a 9 de março de 1 762, é um dos mais sin­
gulares acontecimentos que merecem a atenção de nossa
época e da posteridade. Esquece-se facilmente a quantida­
de de mortos em batalhas sem conta, não somente por tra­
tar-se da fatalidade da guerra, mas porque os que morrem
pela sorte das armas podiam também dar a morte a seus
inimigos, e não morreram sem se defender. Lá onde o peri­
go e a vantagem são iguais, o espanto cessa, e a própria
piedade diminui; mas, se um pai de família inocente é en­
tregue às mãos do erro, da paixão, ou do fanatismo; se o
acusado só tem como defesa sua virtude; se os árbitros de
sua vida, ao decapitarem-no, apenas correm o risco de se
enganar; se podem matar impunemente através de uma
sentença, então o clamor público se levanta, cada um teme
por si próprio, percebe-se que ninguém está seguro de sua
vida diante de um tribunal erigido para zelar pela vida dos
cidadãos, e todas as vozes se juntam para pedir vingança.
Tratava-se, nesse estranho caso, de religião, de suicí­
dio, de parricídio; tratava-se de saber se um pai e uma
mãe haviam estrangulado seu filho para agradar a Deus,
se um irmão havia estrangulado seu irmão, se um amigo

3
_______ Voltaire ___________

havia estrangulado seu amigo, e se os juízes deviam ser


censurados por terem feito morrer no suplício da roda
um pai inocente, ou por haverem poupado uma mãe, um
irmão, um amigo culpados.
Jean Calas, de 68 anos de idade*, exercia a profissão
de negociante em Toulouse há mais de quarenta anos e
era reconhecido por todos que com ele viveram como
um bom pai. Era protestante, assim como sua mulher e
todos os seus filhos, com exceção de um, que havia ab­
jurado a heresia e a quem o pai concedia uma pequena
pensão. Jean Calas parecia tão afastado desse absurdo fa­
natismo que rompe todos os vínculos da sociedade, que
aprovou a conversão de seu filho Louis e mantinha em
sua casa, há trinta anos, uma dedicada empregada cató­
lica que ajudara a criar todos os seus filhos.
Um dos filhos de Jean, chamado Marc-Antoine, era
um homem de letras: diziam-no um espírito inquieto, som­
brio e violento. Esse jovem, não conseguindo nem entrar
no comércio, ao qual não se ajustava, nem ser aceito
como advogado, porque exigiam certificados de catolici­
dade que ele não pôde obter, decidiu acabar com sua
vida e fez pressentir esse propósito a um de seus amigos;
firmou-se em sua resolução através da leitura de tudo o
que até então se escrevera sobre o suicídio.
Certa vez, enfim, tendo perdido seu dinheiro no jo­
go, decidiu naquele mesmo dia executar seu propósito.
Um amigo seu e da família, chamado Lavaisse, jovem de
19 anos, conhecido pela candura e delicadeza de seus
hábitos, filho de um advogado célebre de Toulouse, ha­
via chegado de Bordéus na véspera1; casualmente jantou

• Jean Calas nasceu em 1 698 e morreu em 1762, portanto aos 64 anos.


Trata-se aqui, sem dúvida, de um equívoco de Voltaire . (N. do E.)

4
------ Tratado sobre a tolerância ________

na casa dos Calas. O pai, a mãe, Marc-Antoine, o filho


mais velho, e Pierre, o segundo, jantaram juntos. Após o
jantar retiraram-se para uma pequena sala. Marc-Antoine
desapareceu; enfim, quando o jovem Lavaisse quis par­
tir, Pierre Calas e ele, tendo descido a escada, encontra­
ram no térreo, junto à loja, Marc-Antoine de camisolão,
enforcado numa porta, e sua roupa dobrada sobre o bal­
cão; seu camisolão estava em perfeito estado; os cabelos
continuavam bem penteados; não havia no corpo ne­
nhum ferimento, nenhum machucado2•
Damos aqui todos os detalhes apresentados pelos
advogados; não descreveremos a dor e o desespero do
pai e da mãe; seus gritos foram ouvidos pelos vizinhos.
Lava i sse e Pierre Calas , fora de si, correram a procurar
cirurgiões e a Justiça.
Enquanto cumpriam esse dever, enquanto o pai e a
mãe estavam aos soluços e em lágrimas, o povo de Tou­
louse junta-se em torno da casa. Esse povo é supersti­
cioso e violento; vê como monstros seus irmãos que
não são da mesma religião que ele. Foi em Toulouse que
agradeceram solenemente a Deus pela morte de Hen­
rique I I I e que juraram decapitar o primeiro que falasse
em reconhecer o grande, o bom Henrique IV. Esta cida­
de soleniza ainda todos os anos3, por meio de uma pro­
cissão e fogos de festa, o dia em que massacrou quatro
mil cidadãos heréticos, dois séculos atrás. Em vão seis
decisões do conselho proibiram essa odiosa festa, os to­
losanos sempre a celebraram como o faziam com os jogos
florais* .

• Referência a u m concurso poético anual, com esse nome, existente em


Toulouse desde 1 32 3 , inicialmente com o intuito de manter as tradições do sul
da França . (N. do T.)

5
_______ Voltaire ___________

Algum fanático da populaça gritou que Jean Calas ha­


via enforcado seu próprio filho Marc-Antoine. Esse grito,
repetido, logo tornou-se unânime; outros acrescentaram
que o morto pretendia fazer abjuração no dia seguinte; que
sua família e o jovem Lavaisse o haviam estrangulado por
ódio contra a religião católica. Um momento depois, nin­
guém duvidava mais; toda a cidade foi persuadida de que
é um imperativo religioso entre os protestantes que um pai
e uma mãe devem assassinar seu filho tão logo ele queira
converter-se.
Uma vez excitados, os espíritos não mais se detêm.
Imaginou-se que os protestantes do Languedoc haviam
se reunido na véspera; que haviam escolhido, em delibe­
ração conjunta, um carrasco da seita; que a escolha recaí­
ra sobre o jovem Lavaisse; que esse jovem, em vinte e
quatro horas, recebera a notícia de sua eleição e chegara
de Bordéus para ajudar Jean Calas , sua mulher e seu filho
Pierre, a estrangularem um amigo, um filho, um irmão.
O senhor David, magistrado de Toulouse, excitado
por esses rumores e querendo valorizar-se por uma ação
imediata, fez um processo contrário às normas. A família
Calas, a empregada católica e Lavaisse foram postos na
prisão.
Publicou-se uma citação eclesiástica não menos vi­
ciosa que o processo. Foram mais longe: Marc-Antoine
Calas morrera calvinista e, se atentara contra a própria
vida, devia ser arrastado na lama; inumaram-no com a
maior pompa na igreja Saint- Étienne, apesar do pároco,
que protestou contra essa profanação4 •

. Há, no Languedoc, quatro confrarias de penitentes,


a branca, a azul, a cinza e a negra . Seus membros vestem
um longo capuz, com uma máscara de pano provida de

6
------ Tratado sobre a tolerância ________

dois buracos para deixar a visão livre; tentaram fazer com


que o senhor duque de Fitz-James, comandante da pro­
víncia, entrasse na corporação, e este recusou. Os con­
frades brancos prestaram a Marc-Antoine Calas um servi­
ço solene, como a um mártir. Jamais uma Igreja celebrou
a festa de um mártir verdadeiro com maior pompa; mas
essa pompa foi terrível . Elevaram acima de um magnífi­
co catafalco um esqueleto que faziam mover e que re­
presentava Marc-Antoine Calas, tendo numa das mãos
uma palma e na outra a pena com que devia assinar a
abjuração da heresia, e que escrevia, na verdade, a sen­
tença de morte de seu pai.
Ao infeliz que atentara contra si, só faltava mesmo a
canonização. Todo o mundo o via como um santo; alguns
o invocavam, outros iam rezar junto ao seu túmulo, ou­
tros pediam-lhe milagres, outros relatavam os que havia
feito. Um monge arrancou-lhe alguns dentes para ter re­
líquias duráveis. Uma devota, um pouco surda, disse que
escutara o som dos sinos. Um padre apoplético foi cura­
do após ter tomado o vomitório. Prepararam-se relató­
rios sobre esses prodígios. O autor do presente relato
possui um testemunho de que um jovem de Toulouse
ficou louco por ter rezado várias noites junto ao túmulo
do novo santo e não ter podido obter um milagre que
implorava.
Alguns magistrados eram da confraria dos penitentes
brancos. A partir desse momento a morte de Jean Calas
pareceu irreversível.
O que preparou seu suplício foi, sobretudo, a proxi­
midade dessa festa singular que os tolosanos celebram
todos os anos em memória de um massacre de quatro
mil huguenotes. 1 762 era o ano do bicentenário5. Prepa-

7
_______ Voltaire __________

rava-se na cidade o aparato dessa solenidade, o que ati­


çava ainda mais a imaginação exaltada do povo; dizia-se
publicamente que o cadafalso sobre o qual seriam supli­
ciados os Calas seria o maior ornamento da festa; dizia­
se que a própria Providência trazia essas vítimas para se­
rem sacrificadas à nossa santa religião. Vinte pessoas ou­
viram tais discursos, e outros mais violentos ainda. E isso
em nossos dias! E isso num tempo em que a filosofia fez
tantos progressos! E isso quando cem academias escre­
vem para inspirar a suavidade dos costumes! Parece que
o fanatismo, indignado com os recentes êxitos da razão,
debate-se com maior furor a seus pés.
Treze juízes reuniram-se diariamente para concluir o
processo Não tinham, não podiam ter nen hu ma prova
.

contra a família; mas a religião enganada fazia as vezes


de prova. Seis juízes persistiram por muito tempo em
condenar Jean Calas, seu filho e Lavaisse ao suplício da
roda, e a mulher de Jean Calas à fogueira. Sete outros,
mais moderados, queriam ao menos que se averiguasse .
Os debates foram reiterados e longos. Um dos juízes6,
convencido da inocência dos acusados e da impossibili­
dade do crime, falou vivamente a favor deles; opôs o ze­
lo da humanidade ao zelo da severidade; tornou-se o
defensor público dos Calas em todas as casas de Toulou­
se, onde os clamores contínuos da religião equivocada
exigiam o sangue desses infortunados. Um outro juiz,
conhecido por sua violência7, falava na cidade com tanta
exaltação contra os Calas quanto o primeiro se empe­
nhava em defendê-los. Enfim, a grita foi tão grande que
ambos foram obrigados a julgar-se incompetentes, reti­
rando-se do caso.
Mas , por estranha infelicidade, o juiz favorável aos
Calas teve a delicadeza de persistir em seu afastamento,

8
______ Tratado sobre a tolerància ________

enquanto o outro voltou para dar seu voto contra aque­


les que não devia julgar: esse voto é que determinou a
condenação ao suplício da roda, pois foram apenas oito
votos contra cinco, havendo um dos seis juízes contrá­
rios, ao final, após muitas contestações, passado para o
partido mais severo.
Creio que, quando se trata de um parricídio e de lan­
çar um pai de família ao suplício mais terrível, o julga­
mento deveria ser unânime, porque as provas de um
crime tão inusitadOS deveriam ser de uma evidência sen­
sível a todo o mundo: a menor dúvida em semelhante
caso deve ser suficiente para fazer tremer um juiz pres­
tes a assinar uma sentença de morte. A fraqueza de nos­
sa razão e a insuficiência de nossas leis se fazem sentir
diariamente; mas em que ocasião percebe-se melhor sua
miséria do que quando a preponderância de uma única
voz condena ao suplício um cidadão? Eram necessárias,
em Atenas, cinqüenta vozes além da metade para ousar­
se pronunciar uma sentença de morte. Que resulta disso?
O que sabemos muito inutilmente, isto é, que os gregos
eram mais sábios e mais humanos do que nós.
Parecia impossível que Jean Calas, velho de 68 anos,
tendo há muito tempo as pernas inchadas e fracas, tives­
se estrangulado sozinho e enforcado um filho de 28 anos,
que tinha uma força acima do comum; era absolutamen­
te necessário que tivesse sido auxiliado nessa execução
por sua mulher, por seu filho Pierre Calas, por Lavaisse e
pela empregada. Eles não haviam se separado um só
momento na noite dessa fatal aventura. Mas tal suposi­
ção era tão absurda quanto a outra: pois como é que uma
dedicada empregada católica teria podido suportar que
huguenotes assassinassem um jovem criado por ela, a

9
_______ Voltaire ___________

fim de puni-lo por amar a religião dessa mesma empre­


gada? Como é que Lavaisse teria vindo expressamente
de Bordéus para estrangular seu amigo, de quem ignora­
va a suposta conversão? Como é que uma mãe afetuosa
teria atacado seu filho? Como é que todos juntos teriam
podido estrangular um jovem tão robusto quanto eles to­
dos, sem um combate longo e violento, sem gritos terrí­
veis que teriam alertado a vizinhança, sem golpes reite­
rados, sem ferimentos, sem roupas rasgadas?
Era evidente que, se o parricídio pudesse ter sido
cometido, todos os acusados eram igualmente culpados,
por não se haverem separado em nenhum momento;
era evidente que não se haviam separado; era evidente
que o pai não podia ser o único culpado; não obstante
a sentença condenou apenas esse pai a expirar no suplí­
cio da roda.
O motivo da sentença era tão inconcebível quanto o
resto. Os juízes favoráveis ao suplício de Jean Calas per­
suadiram os outros de que esse velho fraco não poderia
resistir aos tormentos e de que confessaria, sob os gol­
pes do carrasco, seu crime e o de seus cúmplices. Fica­
ram perplexos, quando Q velho, ao morrer na roda, cla­
mou a Deus em testemunho de sua inocência e conju­
rou-o a perdoar seus juízes.
Estes foram obrigados a pronunciar uma segunda
sentença, contraditória com a primeira, ordenando a sol­
tura da mãe, de seu filho Pierre, do jovem Lavaisse e da
empregada . Mas, tendo um dos conselheiros notado que
essa sentença desmentia a outra, que elas se condena­
vam mutuamente e que, como os acusados sempre esti­
veram juntos no momento do suposto parricídio, a or­
dem de soltura dos sobreviventes provava cabalmente a

10
____ Tratado sobre a tolerância ________

inocência do pai de família executado, decidiram então


banir Pierre Calas, seu filho. Esse banimento parecia tão
inconseqüente , tão absurdo quanto o resto, pois Pierre
Calas era ou culpado ou inocente do parricídio; se fosse
culpado, devia ser submetido ao suplício como seu pai;
se fosse inocente, não tinha cabimento bani-lo. Mas os
juízes, assustados com o suplício do pai e a comovedo­
ra piedade com que morrera, imaginaram salvar sua
honra dando a entender que perdoavam o filho, como se
perdoar não fosse uma nova prevaricação; e acreditaram
que o banimento desse jovem pobre e sem apoio, não
tendo conseqüências, não era uma grande injustiça, de­
pois daquela que haviam tido a infelicidade de cometer.
Começaram ameaçando Pierre Calas, no cárcere, de
que teria a mesma sorte de seu pai, se não abjurasse sua
religião. É o que este jovem9 atesta por juramento .
Pierre Calas, ao sair da cidade, encontrou um abade
convertedor que o fez voltar a Toulouse; encerraram-no
num convento de dominicanos e lá foi constrangido a
cumprir todas as funções da catolicidade. Era em parte o
que queriam, era o preço do sangue de seu pai; e a reli­
gião, que acreditaram vingar, parecia satisfeita.
As filhas foram retiradas da mãe e encerradas tam­
bém num convento. Essa mulher, quase regada com o
sangue de seu marido, tendo amparado nos braços seu
filho primogênito morto, vendo o outro banido, privada
de suas filhas, despojada de todos os bens, estava só no
mundo, sem pão, sem esperança e sucumbindo ao peso
de sua infelicidade. Algumas pessoas, tendo examinado
com ponderação todas as circunstâncias dessa horrível
aventura, ficaram tão chocadas que instaram a senhora
Calas, retirada na solidão, a ousar pedir justiça ao pé do

11
_______ Voltaire ___________

trono. Ela não podia, então, sustentar-se, extinguia-se;


além disso, tendo nascido inglesa, transplantada a uma
província da França desde a juventude, o simples nome
da cidade de Paris a assustava. Supunha que a capital do
reino devia ser ainda mais bárbara que a do Languedoc.
Mas o dever de vingar a memória de seu marido acabou
prevalecendo sobre sua fraqueza. Ela chegou a Paris
quase morta. Ficou espantada de ali encontrar acolhida,
amparos e lágrimas10•
Em Paris a razão prevalece sobre o fanatismo, por
maior que este seja, ao passo que, na província, o fana­
tismo quase sempre prevalece sobre a razão.
O sr. de Beaumont, célebre advogado do parlamen­
to de Paris, assumiu inicialmente sua defesa e redigiu um
parecer que foi assinado por quinze advogados1 1 • O sr.
Loiseau, não menos eloqüente, compôs um memorial'2
em favor da família. O sr. Mariette, advogado no conse­
lho, elaborou um requerimento jurídico13 que levava a
convicção a todos os espíritos.
Esses três generosos defensores das leis e da inocên­
cia destinaram à viúva o lucro das edições de seus arra­
zoados14. Paris e a Europa inteira encheram-se de pieda­
de e exigiram justiça com essa mulher infortunada . A sen­
tença foi pronunciada pelo público bem antes que
pudesse ser assinada pelo conselho.
A piedade penetrou até no ministério, apesar do
contínuo caudal de questões15, que geralmente exclui a
piedade , e apesar do hábito de ver infelizes, que pode
endurecer ainda mais o coração. Devolveram-se as fi­
lhas à mãe . As três foram vistas, cobertas de luto e ba­
nhadas de lágrimas, suscitando lágrimas também em seus
juízes.

12
______ Tratado sobre a tolerância ________

No entanto essa família teve ainda alguns inimigos,


pois se tratava de religião. Várias pessoas, que na França
são chamadas devotas16, disseram abertamente que era
preferível deixar supliciar um velho calvinista inocente
do que expor oito conselheiros do Languedoc a admiti­
rem que haviam se enganado. Serviram-se inclusive des­
ta expressão: "Há mais magistrados do que Calas" ; e dela
inferiam que a família Calas devia ser imolada em honra
à magistratura. Não se imaginava que a honra dos juízes
consiste, como a dos outros homens , em reparar sua&
faltas. Na França não se acredita que o papa, assistido
por seus cardeais, seja infalível: poder-se-ia, do mesmo
modo, crer que oito juízes de Toulouse não o são. As
pessoas sensatas e desinteressadas di z ia m que a s en ten
­

ça de Toulouse seria anulada em toda a Europa, ainda


que considerações particulares impedissem que fosse
anulada no conselho.
Tal era o estado dessa espantosa aventura, quando
ela fez surgir em pessoas imparciais, mas sensíveis, o pro­
pósito de apresentar ao público algumas reflexões sobre
a tolerância, sobre a indulgência, sobre a comiseração,
que o abade Houteville chama de dogma monstruosd7,
em seu discurso empolado e errôneo sobre fatos, e que
a razão chama de apanágio da natureza .
Ou os juízes de Toulouse, arrastados pelo fanatismo
da populaça, fizeram supliciar um pai de família inocen­
te , o que é inédito; ou esse pai de família e sua mulher
estrangularam seu filho primogênito, ajudados nesse par­
ricídio por um outro filho e um amigo, o que é antinatu­
ral . Num caso ou no outro , o abuso da religião mais sa­
grada produziu um grande crime. É, portanto, do interes­
se do gênero humano examinar se a religião deve ser
caridosa ou bárbara .

13
CAPÍTULO 11

Conseqüências do suplício
de Jean Calas

Se os penitentes brancos foram a causa do suplício


de um inocente, da ruína total de uma família, de sua dis­
persão e do opróbrio que só deveria associar-se à injus­
tiça, mas que está associado ao suplício; se a precipita­
ção dos penitentes brancos em celebrar como um santo
aquele que, segundo nossos costumes bárbaros, deveria
ter sido arrastado na lama, levou ao suplício um pai de
família virtuoso; essa infelicidade deve certamente torná­
los penitentes de fato para o resto de suas vidas; eles e
os juízes devem chorar, mas não com uma longa túnica
branca e uma máscara que ocultaria suas lágrimas.
Todas as confrarias merecem respeito: elas são edifi­
cantes. Todavia, por maior que seja o bem que possam
fazer ao Estado, igualar-se-á esse bem ao terrível mal que
causaram? Elas parecem instituídas pelo zelo . que, no
Languedoc, anima os católicos contra aqueles a que cha­
mamos huguenotes. Dir-se-ia que fizeram voto de odiar
seus irmãos, pois temos religião de sobra para odiar e
perseguir, e pouca para amar e socorrer. E o que seria,
se tais confrarias fossem governadas por fanáticos, como
o foram outrora algumas congregações de artesãos e de
senhores 18, nas quais convertia-se em arte e sistema o

15
_______ Voltaire __________

hábito de ter visões, como diz um de nossos mais sábios


e eloqüentes magistrados? O que seria, se nas confrarias
se estabelecessem essas câmaras escuras, chamadas câ­
maras de meditação, onde eram pintados diabos arma­
dos de chifres e garras, abismos de chamas, cruzes e pu­
nhais, com o santo nome de Jesus acima do quadro? Que
espetáculo para olhos já fascinados e para imaginações
tão inflamadas quanto submissas a seus diretores!
Houve épocas, sabe-se bem, em que as confrarias fo­
ram perigosas. Os jraticelli, os flagelantes, causaram pro­
blemas. A Liga começou por tais associações. Por que
distinguirem-se assim dos outros cidadãos? Acreditavam­
se mais perfeitos? Isso já é um insulto ao resto da nação.
Queriam que todos os cristãos entrassem na confraria?
Seria um belo espetáculo a Europa de capuz e máscara,
com dois pequenos orifícios redondos diante dos olhos!
Pensam de boa-fé que Deus prefere essa vestimenta ridí­
cula a um gibão? Tem mais: essa vestimenta é um unifor­
me de controversistas, que adverte os adversários a se po­
rem de guarda; é capaz de excitar uma espécie de guer­
ra civil nos espíritos e resultaria talvez em funestos ex­
cessos, se o rei e seus ministros não fossem tão pruden­
tes quanto os fanáticos são insensatos.
Sabe-se bem quanto isso custou desde que os cris­
tãos disputam sobre o dogma: o sangue correu , seja nos
cadafalsos, seja nas batalhas, do século IV aos nossos
dias. Limitemo-nos aqui às guerras e aos horrores que as
querelas da Reforma suscitaram e vejamos qual foi sua
origem na França. Talvez um quadro resumido e fiel de
tantas calamidades abra os olhos de algumas pessoas pou­
co instruídas e sensibilize os corações bem-feitos.

16
CAPÍTULO III

Idéia da Reforma do século XVI

Quando, no renascimento das letras, os espíritos co­


meçaram a iluminar-se, houve queixa geral contra os
abusos; todo o mundo reconhece que essa queixa era
legítima.
O papa Alexandre VI havia comprado publicamente a
tiara, e seus cinco bastardos compartilhavam as vantagens.
Seu filho, o cardeal duque de Borgia, fez perecer, em man­
comunação com o papa, seu pai, os Vitelli, os Urbino, os
Gravina, os Oliveretto e cem outros senhores, para arreba­
tar seus domínios. Júlio 11, animado pelo mesmo espírito,
excomungou Luís XII, deu seu reino ao primeiro ocupan­
te e, ele próprio vestindo capacete e couraça, pôs a ferro e
fogo uma parte da Itália. Leão X, para pagar seus prazeres,
traficou com indulgências como se fossem gêneros alimen­
tícios num mercado público. Os que se insurgiram contra
tantos atos de banditismo não cometiam, pelo menos,
nenhum erro na moral. Vejamos se o cometiam contra nós
na política.
Diziam que, não tendo Jesus Cristo jamais exigido
anatas19 nem reservas, nem vendido dispensas para este
mundo e indulgências para o outro, podiam eximir-se de
p agar a um príncipe estrangeiro o preço de todas essas

17
_______ Voltaire ___________

coisas. Ainda que as anatas, os processos no tribunal de


Roma e as dispensas que subsistem ainda hoje nos cus­
tassem apenas quinhentos mil francos por ano, é claro
que já pagamos desde Francisco I, em duzentos e cin­
qüenta anos, cento e vinte e cinco milhões; e, conside­
rando os diferentes preços do marco de prata, essa soma
representa cerca de duzentos e cinqüenta milhões, atual­
mente. Pode-se, portanto, convir, sem blasfêmia, que os
heréticos, ao proporem a abolição desses impostos sin­
gulares que haverão de espantar a posteridade , não fa­
ziam com isso um grande mal ao reino, sendo antes bons
calculadores do que maus súditos. Acrescentemos que
eles eram os únicos que sabiam a língua grega e conhe­
ciam a Antiguidade. Não dissimulemos que , apesar de
seus erros, devemos-lhes o desenvolvimento do espírito
humano, por muito tempo enterrado na mais espessa
barbárie.
Entretanto, como negavam o purgatório, do qual não
se deve duvidar e que, aliás, muito beneficiava os mon­
ges; como não reverenciavam relíquias que devem ser re­
verenciadas, mas que proporcionavam benefícios ainda
maiores; enfim, como atacavam dogmas muito respeita­
dos20, a primeira resposta que lhes deram foi jogá-los na
fogueira. O rei, que os protegia e financiava na Alemanha,
marchou em Paris à frente de uma procissão, após a qual
foram executados vários desses infelizes. E eis qual foi
essa execução: eram suspensos na ponta de um compri­
do poste que oscilava sobre uma árvore; acendia-se uma
grande fogueira, sobre a qual o poste era abaixado e er­
guido alternadamente; assim experimentavam aos pou­
cos os tormentos da morte, até expirarem através do mais
longo e terrível suplício que a barbárie jamais inventou.

18
------ Tratado sobre a tolerância ________

Pouco tempo antes da morte de Francisco I, alguns


membros do parlamento da Provença , animados por
eclesiásticos contra os habitantes de Mérindol e Ca­
brieres, solicitaram ao rei tropas para apoiar a execu­
ção de dezenove pessoas da região, por eles condena­
das ; seis mil acabaram sendo mortas , sem perdoar o se­
xo, a velhice ou a infância ; trinta burgos foram reduzi­
dos a cinzas. Esses povos, até então desconhecidos, eram
culpados, certamente , de terem nascido valdenses; era
sua única iniqüidade . Haviam-se estabelecido há tre"
zentos anos em desertos e montanhas que tornaram
férteis por um trabalho inacreditável. Sua vida pastoril
e tranqüila relembrava a inocência atribuída às primei­
ras idades do mundo . As cidades vizinhas só eram co­
nhecidas deles pelo tráfico dos frutos que iam vender,
ignoravam os processos e a guerra . Eles não se defen­
deram: foram chacinados como animais fugitivos mor­
tos num cercado21 •
Após a morte de Francisco I, príncipe não obstante
mais conhecido por suas galanterias e seus infortúnios
do que por suas crueldades, o suplício de mil heréticos,
sobretudo o do conselheiro do parlamento Dubourg, e,
finalmente, o massacre de Vassy, armaram os persegui­
dos, cuja seita havia se multiplicado ao clarão das foguei­
ras e sob o ferro dos carrascos. A raiva sucedeu à paciên­
cia. Eles imitaram as crueldades de seus inimigos: nove
guerras civis encheram a França de mortandade; uma
paz mais funesta do que a guerra produziu a Noite de
São Bartolomeu, da qual não havia nenhum exemplo
nos anais do crime.
A Liga assassinou Henrique III e Henrique IV, pelas
mãos de um frade dominicano e de um monstro que ha-

19
_______ Voltaire ___________

via sido frade bernardo22• Há pessoas que pretendem


que a humanidade, a indulgência e a liberdade de cons­
ciência são coisas horríveis; mas, em boa-fé, teriam elas
produzido calamidades comparáveis?

20
CAPÍTULO IV

Se a tolerância é perigosa, e em
que povos ela é permitida

Alguns disseram que, se usássemos de uma indul­


gência paternal para com nossos irmãos errantes que re­
zam a Deus em mau francês, estaríamos pondo-lhes ar­
mas nas mãos; que veríamos novas batalhas de Jarnac,
de Moncontour, de Coutras, de Dreux, de Saint-Denis,
etc. Ignoro isso, porque não sou profeta; mas parece-me
que não é raciocinar conseqüentemente afirmar: "Esses
homens insurgiram-se quando lhes fiz o mal; portanto se
insurgirão quando lhes fizer o bem. "
Eu ousaria tomar a liberdade de convidar os que
estão à testa do governo e os destinados aos grandes
postos a examinarem com ponderação se devemos de
fato temer que a doçura produza as mesmas revoltas que
a crueldade faz nascer; se o que aconteceu em certas cir­
cunstâncias deve acontecer em outras; se os tempos, a
opinião, os costumes são sempre os mesmos .
Os huguenotes, certamente, deixaram-se tomar pelo
fanatismo e manchar de sangue como nós; mas a gera­
ção presente é tão bárbara quanto seus pais? O tempo, a
razão que faz tantos progressos, os bons livros, a man­
suetude da sociedade não penetraram nos que condu­
zem o espírito desses povos? E não percebemos que

21
_______ Voltaire ___________

quase toda a Europa mudou de face de uns cinqüenta


anos para cá?
Por toda a parte o governo se fortaleceu , enquanto
os costumes abrandaram. Aliás, o policiamento geral, sus­
tentado por exércitos numerosos sempre existentes, não
permite temer o retorno daqueles tempos anárquicos em
que camponeses calvinistas combatiam camponeses ca­
tólicos arregimentados às pressas entre o plantio e as co­
lheitas.
Outros tempos, outros cuidados. Seria absurdo dizi­
mar hoje a Sorbonne por ter requerido outrora que a Don­
zela de Orléans fosse queimada; por não ter reconheci­
do a Henrique III o direito de reinar, por ter excomunga­
do, proscrito , o grande Henrique IV. Certamente não se
irá investigar outras corporações do reino, que comete­
ram os mesmos excessos naqueles tempos de frenesi:
isso seria não apenas injusto, mas tão insensato como
purgar todos os habitantes de Marselha porque tiveram a
peste em 1 720.
Acaso iremos saquear Roma, como fizeram as tropas
de Carlos V, porque Sisto V, em 1 585 , concedeu nove
anos de indulgência a todos os franceses que pegassem
em armas contra seu soberano? Não é suficiente impedir
Roma de entregar-se a excessos semelhantes?
O furor que inspiram o espírito dogmático e o abuso
da religião cristã mal compreendida derramou sangue,
produziu desastres tanto na Alemanha, na Inglaterra e
mesmo na Holanda, como na França. Hoje, no entanto,
a diferença das religiões não causa nenhum problema nes­
ses Estados; o judeu , o católico, o grego, o luterano, o
calvinista , o anabatista, o sociniano, o menonita, o morá­
via e tantos outros vivem como irmãos nesses países e
contribuem igualmente para o bem da sociedade.

22
------ Tratado sobre a tolerância ________

Na Holanda, não mais se teme que as disputas de


um Gomar23 sobre a predestinação façam rolar a cabeça
do grande pensionista * . Não se teme mais, em Londres,
que as querelas dos presbiterianos e dos episcopais, en­
volvendo uma liturgia e uma sobrepeliz, espalhem o san­
gue de um rei sobre um cadafalso24• A Irlanda povoada e
enriquecida não verá mais seus cidadãos católicos sacri­
ficarem a Deus durante dois meses os cidadãos protes­
tantes, enterrarem-nos vivos, suspenderem as mães em
forcas, prendendo as filhas ao pescoço delas e verem'­
nas expirar juntas; abrirem o ventre das mulheres grávi­
das, retirarem os fetos e darem-nos de comer aos porcos
e aos cães; colocarem um punhal na mão dos prisionei­
ros garroteados e conduzirem seus braços ao ventre de
suas mulheres, de seus pais, de suas mães, de suas filhas,
imaginando, assim, tornarem-nos mutuamente parricidas
e condenarem-nos à danação ao mesmo passo em que
os exterminavam todos. É o que relata Rapin-Thoiras,
oficial na Irlanda , quase contemporâneo; é o que relatam
todos os anais, todas as histórias da Inglaterra e o que
por certo jamais será imitado. A filosofia, a mera filoso­
fia, essa irmã da religião, desarmou mãos que a supers­
tição por muito tempo havia ensangüentado; e o espíri­
to humano, ao despertar de sua embriaguez, espantou­
se com os excessos a que o fanatismo o havia levado.
Nós mesmos, na França, temos uma província opu­
lenta em que o luteranismo prevalece sobre o catolicismo.
A universidade da Alsácia está em mãos dos luteranos;
eles ocupam uma parte dos cargos municipais; jamais a

• Nome dado ao representante da assembléia e do conselho de Estado


da H o l a nda com funções comparáveis às de primeiro-ministro. (N. do T.)

23
_______ Voltaire __________

menor querela religiosa perturbou o repouso dessa pro­


víncia desde que ela pertence a nossos reis. Por quê? É que
lá não se perseguiu ninguém25• Buscai não perturbar os
corações, e todos os corações estarão a vosso dispor.
Não digo que todos os que não são da religião do
príncipe devam ter acesso aos postos e às honras dos
que são da religião dominante. Na Inglaterra, os católi­
cos, vistos como adeptos do partido do pretendente, não
podem aspirar aos cargos; pagam inclusive imposto do­
brado; mas, afora isso, gozam de todos os direitos dos
cidadãos.
Suspeitaram-se alguns bispos franceses de pensar
não ser de sua honra nem de seu interesse ter calvinistas
em sua diocese; seria esse o maior obstáculo à tolerân­
cia. Não posso acreditar. O corpo dos bispos, na França,
é composto de pessoas de qualidade que pensam e
agem com uma nobreza digna de seu nascimento; são
caridosos e generosos, é uma justiça que devemos fazer­
lhes. Devem pensar que seus diocesanos fugitivos não
se converterão, nos países estrangeiros, e que , voltando
para junto de seus pastores, poderiam ser esclarecidos
por suas instruções e tocados por seus exemplos; have­
ria honra em convertê-los, o temporal não sairia perden­
do e, quanto maior o número de cidadãos, tanto mais as
terras dos prelados renderiam.
Um bispo de Varmie, na Polônia, tinha um anabatis­
ta como feitor e um sociniano como coletor de impostos.
Propuseram-lhe expulsar e perseguir um, porque não
acreditava na consubstancialidade, e o outro, porque só
batizava seus filhos aos quinze anos; o bispo respondeu
que eles seriam eternamente condenados no outro mun­
do, mas que, neste, eram-lhe muito necessários.

24
---- Tratado sobre a tolerância ________

Saiamos de nossa pequena esfera e examinemos o


resto de nosso globo. O Grande Senhor governa em paz
vinte povos de diferentes religiões; duzentos mil gregos
vivem com segurança em Constantinopla; o próprio
mufti [intérprete da lei muçulmana] nomeia e apresenta
ao imperador o patriarca grego; tolera-se aí um patriarca
latino. O sultão nomeia bispos latinos para algumas ilhas
da Grécia26, servindo-se da seguinte fórmula: "Ordeno­
lhe que vá residir como bispo na ilha de Quios, segundo
seu antigo costume e suas vãs cerimônias. " Esse império
está repleto de jacobitas, nestorianos, monotelistas; há
coptas, cristãos de São João, judeus, guebros, banianos.
Os anais turcos não fazem menção de nenhuma revolta
provocada por alguma dessas religiões.
Ide à Í ndia, à Pérsia, à Tartária, e vereis a mesma to­
lerância e a mesma tranqüilidade . Pedro, o Grande, favo­
receu todos os cultos em seu vasto império; o comércio
e a agricultura ganharam com isso, e o corpo político
nunca foi prejudicado.
O governo da China jamais adotou, desde mais de
quatro mil anos que é conhecido, senão o culto dos noá­
chidas27, a adoração simples de um único Deus; no en­
tanto, tolera as superstições de Fõ28 e uma quantidade de
bonzos que seria perigosa, se a sabedoria dos tribunais
não os houvesse sempre contido.
É verdade que o grande imperador Yung-Ching, tal­
vez o mais sábio e magnânimo que houve na China, ex­
pulsou os jesuítas; mas não porque fosse intolerante, e
sim porque os jesuítas, ao contrário, o eram. Eles mesmos
relatam, em suas Cartas curiosas29, as palavras que lhes
disse esse bom príncipe: "Sei que vossa religião é intole­
rante; sei o que fizestes nas Manilas e no Japão; vós

25
_______ Voltaire __________

enganastes meu pai, não espereis enganar-me também. "


Lede todo o discurso que ele houve por bem fazer-lhes
e encontrareis o mais sábio e o mais clemente dos ho­
mens . Podia ele, com efeito, acolher físicos da Europa
que, a pretexto de mostrar termômetros e eolipilas à cor­
te, já haviam incitado à revolta um príncipe real? E que
teria dito esse imperador se houvesse lido nossas histó­
rias, se conhecesse nossos tempos da Liga e da conspi­
ração dos barris de pólvora30?
Para ele, era suficiente estar informado das querelas
indecentes dos jesuítas, dominicanos, capuchinhos, pa­
dres seculares, enviados da outra ponta do mundo a seus
Estados: vinham pregar a verdade e anatematizavam-se
uns aos outros . O impera do r portanto, não fez mais do
,

que mandar de volta perturbadores estrangeiros . Mas


com que bondade os mandou de volta! Que cuidados
paternos dispensou-lhes para a viagem e para impedir
que os insultassem no caminho! O próprio banimento
deles foi um exemplo de tolerância e de humanidade.
Os japoneses3' eram os mais tolerantes de todos os
homens. Doze religiões pacíficas haviam se estabelecido
em seu império; os jesuítas vieram completar a décima
terceira, mas, logo, não querendo tolerar as outras, sabe­
mos o que resultou : uma guerra civil, não menos terrível
que a da Liga, assolou o país. A religião cristã foi, enfim,
afogada em ondas de sangue; os japoneses fecharam seu
império ao resto do mundo e passaram a nos ver como
animais ferozes, semelhantes àqueles que os ingleses ex­
purgaram de sua ilha . Em vão o ministro Colbert, sentin­
do a necessidade que tínhamos dos japoneses, os quais
não têm necessidade nenhuma de nós, tentou estabele­
cer um comércio com seu império: eles mostraram-se
inflexíveis.

26
______ Tratado sobre a tolerância ------

Assim, portanto, nosso continente inteiro prova-nos


que não se deve anunciar nem exercer a intolerância.
Voltai os olhos para o outro hemisfério, vede a Caro­
lina, da qual o sábio Locke foi o legislador: bastam sete
pais de família para estabelecer um culto público apro­
vado por lei; essa liberdade não fez nascer nenhuma
desordem. Deus nos livre de citar esse exemplo para ins­
tar a França a imitá-lo! Só o relatamos para mostrar que
o maior excesso até onde pode chegar a tolerância não
foi seguido da mais leve dissensão. Mas o que é muito
útil e muito bom numa colônia nascente não é conve­
niente num antigo reino.
Que diremos, então, dos primitivos, chamados qua­
kers por derrisão e que, com costumes talvez ridículos,
foram tão virtuosos e ensinaram inutilmente a paz ao
resto dos homens? Na Pensilvânia, eles são em número
de cem mil; a discórdia, a controvérsia são ignoradas na
pátria feliz que construíram para si e o simples nome de
sua cidade de Filadélfia3\ a lembrar-lhes a todo instante
que os homens são irmãos, é o exemplo e a vergonha
dos povos que ainda não conhecem a tolerância.
Enfim, essa tolerância jamais suscitou guerra civil,
enquanto a intolerância cobriu a terra de chacinas. Que se
julgue, pois, entre essas duas rivais, entre a mãe que quer
que matem seu filho e a mãe que o cede para que ele viva33!
Não falo aqui senão do interesse das naçôes; e respei­
tando, como devo, a teologia, considero neste artigo ape­
nas o bem físico e moral da sociedade. Imploro todo lei­
tor imparcial a pesar essas verdades, retificá-las e desen­
volvê-las. Leitores atentos, que se comunicam com seus
pensamentos, vão sempre mais longe que o autor34•

27
CAPÍTULO V

Como a tolerância pode


ser admitida

Ouso supor que um ministro esclarecido e magnâni­


mo, um prelado humano e sensato, um príncipe que sa­
be que seu interesse consiste no maior número de súdi­
tos, e sua glória na felicidade deles, dignar-se-á lançar os
olhos sobre este escrito informe e defeituoso: suprem-no
suas próprias luzes; ele diz a si mesmo: que risco corre­
ria eu em ver a terra cultivada e melhorada por mais mãos
laboriosas, os tributos aumentados, o Estado florescendo
mais?
A Alemanha seria um deserto coberto pelas ossadas
de católicos, evangélicos, reformados, anabatistas mor­
tos uns pelos outros, se a paz de Vestefália não tivesse
proporcionado enfim a liberdade de consciência.
Temos judeus em Bordéus, em Metz, na Alsácia35;
temos luteranos, molinistas, jansenistas - não podemos
tolerar e admitir calvinistas mais ou menos nas mesmas
condições que os católicos são tolerados em Londres?
Quanto mais seitas houver, tanto menos perigosa cada
uma será; a multiplicidade as enfraquece; todas são re­
primidas por justas leis que proíbem as assembléias tu­
multuosas, as injúrias, as sedições e que estão sempre
em vigor pela força coativa.

29
_______ Voltaire ___________

Sabemos que vários chefes de família, que fizeram


grandes fortunas em países estrangeiros, estão dispostos
a retornar à sua pátria; não pedem senão a proteção da
lei natural, a validade de seus casamentos, a certidão re­
conhecida de seus filhos, o direito de herdar dos pais, a
franquia de suas pessoas; nada de templos públicos,
nada de direito aos cargos municipais , às dignidades - os
católicos não os têm em Londres nem em vários outros
países. Não se trata mais de dar privilégios imensos, áreas
de segurança a uma facção, mas de deixar viver um povo
pacífico, de abrandar editos talvez necessários outrora,
mas que já não o são. Não cabe a nós indicar ao minis­
tério o que ele pode fazer; basta implorá-lo em favor dos
infortunados.
Quantos meios de torná-los úteis e de impedir que
jamais sejam perigosos! A prudência do ministério e do
conselho, apoiada pela força, encontrará com facilidade
esses meios, que tantas outras nações empregam de
maneira exitosa.
Há fanáticos ainda na populaça calvinista; mas é
certo que os há em maior número na populaça convul­
sionária. A escória dos insensatos de Saint-Médard con­
tou muito pouco na nação; a dos profetas calvinistas,
quase nada36• O grande meio de diminuir o número de
maníacos, se restarem, é submeter essa doença do espí­
rito ao regime da razão, que esclarece lenta, mas infali­
velmente, os homens. Essa razão é suave, humana , ins­
pira a indulgência, abafa a discórdia, fortalece a virtude,
torna agradável a obediência às leis, mais ainda do que
a força é capaz . E não se há de levar em conta o ridícu­
lo hoje associado ao entusiasmo pelas pessoas de bem?
Esse ridículo é uma poderosa barreira contra as extrava-

30
------ Tratado sobre a tolerância ------

gâncias de todos os sectários. Os tempos passados são


como se j amais tivessem existido. É preciso sempre par­
tir do ponto em que se está e daquele a que chegaram
as nações.
Houve um tempo em que se julgou necessário emi­
tir decretos contra os que ensinavam uma doutrina con­
trária às categorias de Aristóteles, ao horror do vazio, às
qüididades e ao universal por parte da coisa. Temos na
Europa mais de cem volumes de jurisprudência sobre a
feitiçaria e sobre a maneira de distinguir os falsos feiticéi­
ros dos verdadeiros. A excomunhão dos gafanhotos e
dos insetos nocivos às colheitas esteve muito em moda e
ainda subsiste em vários rituais. A moda passou ; Aristó­
teles, os feiticeiros e os gafanhotos foram deixados em
paz. Os exemplos dessas graves demências, outrora tão
importantes, são inumeráveis. De tempos em tempos
surgem outros; mas, quando fizeram seu efeito, quando
se está farto deles, desaparecem. Se alguém ousasse hoje
ser carpocratiano, ou eutiquesiano, ou monotelista, mo­
nofisista, nestoriano, maniqueu, etc. , o que aconteceria?
Ririam dele, como de um homem vestido à antiga, com
um colarinho de pregas e um gibão.
A nação começava a entreabrir os olhos quando os
jesuítas Le Tellier e Doucin fabricaram a bula Unigenitus,
que enviaram a Roma. Acreditaram estar ainda naqueles
tempos de ignorância em que os povos adotavam sem
exame as asserções mais absurdas . Ousaram proscrever
esta proposição, que é de uma verdade universal em to­
dos os casos e em todos os tempos: "O temor de uma
excomunhão injusta não deve impedir de cumprir seu
dever. " Era proscrever a razão, as liberdades da Igreja ga­
licana, e o fundamento da moral; era dizer aos homens:

31
_______ Voltaire __________

Deus vos ordena jamais cumprir vosso dever, contanto


que temais a injustiça. Jamais o senso comum foi ferido
tão acintosamente. Os consultores de Roma não presta­
ram atenção nisso. Persuadiu-se o tribunal de Roma que
essa bula era necessária e que a nação a desejava; foi as­
sinada, selada e enviada. Sabemos os desdobramentos;
certamente, se os tivessem previsto, teriam mitigado a
bula. As querelas foram acirradas; a prudência e a bon­
dade do rei finalmente as apaziguaram.
O mesmo ocorre numa grande parte dos pontos que
dividem os protestantes e nós: há alguns que não têm a
menor conseqüência; há outros mais graves, mas sobre
os quais o furor da disputa arrefeceu de tal maneira que
os próprios protestantes não pregam hoje a controvérsia
em nenhuma de suas igrejas.
É, portanto, esse tempo de fastio, de saciedade, ou
melhor, de razão, que podemos perceber como uma épo­
ca e uma garantia da tranqüilidade pública. A controvér­
sia é uma doença epidêmica a ponto de extinguir-se, e
essa peste, da qual nos curamos, não requer mais do que
um regime suave . Enfim, o interesse do Estado é que fi­
lhos expatriados retornem com modéstia à casa de seu
pai: a humanidade o exige, a razão o aconselha e a polí­
tica não se pode assustar com isso.

32
CAPÍTULO VI

Se a intolerância é de direito
natural e de direito humano

O direito natural é aquele que a natureza indica a


todos os homens. Educastes vosso filho, ele vos deve
respeito como a seu pai, reconhecimento como a seu
benfeitor. Tendes direito aos frutos da terra que cultivas­
tes com vossas mãos . Fizestes e recebestes uma promes­
sa, ela deve ser cumprida.
Em todos os casos, o direito humano só pode se fun­
dar nesse direito de natureza; e o grande princípio, o
princípio universal de ambos, é, em toda a terra: "Não
faças o que não gostarias que te fizessem. " Ora, não se
percebe como, de acordo com esse princípio, um ho­
mem poderia dizer a outro: "Acredita no que acredito e
no que não podes acreditar, ou morrerás . " É o que dizem
em Portugal, na Espanha, em Goa. Atualmente limitam­
se a dizer, em alguns países: "Crê , ou te abomino; crê, ou
te farei todo o mal que puder; monstro, não tens minha
religião, logo não tens religião alguma: cumpre que sejas
odiado por teus vizinhos, tua cidade, tua província. "
S e fosse d e direito humano conduzir-se dessa forma,
caberia então que o japonês detestasse o chinês, o qual
execraria o siamês; este perseguiria os gancares, que cai­
riam sobre os habitantes do Indo; o mongol arrancaria o

33
_______ Voltaire ___________

coração do primeiro malabar que encontrasse; o malabar


poderia degolar o persa , que poderia massacrar o turco
- e todos juntos se lançariam sobre os cristãos, que por
muito tempo devoraram-se uns aos outros.
O direito da intolerância é, pois, absurdo e bárbaro;
é o direito dos tigres, e bem mais horrível, pois os tigres
só atacam para comer, enquanto nós exterminamo-nos
por parágrafos.

34
CAPÍTULO VII

Se a intolerância foi conhecida


pelos gregos

Todos os povos de cuja história temos algum conhe­


cimento consideraram suas diferentes religiões como pon­
tos de união entre eles: tratava-se de uma associação do
gênero humano. Havia uma espécie de direito de hospi­
talidade entre os deuses como entre os homens . Um es­
trangeiro, chegando a u m a cidade começava por adorar
,

os deuses locais. Não se deixava de venerar nem mesmo os


deuses do inimigo. Os troianos dirigiam preces aos deu­
ses que combatiam pelos gregos.
Alexandre foi consultar nos desertos da Líbia o deus
Amon, ao qual os gregos deram o nome de Zeus, e os la­
tinos de Júpiter, embora ambos tivessem seus próprios Jú­
piter e Zeus. Quando uma cidade era cercada, fazia-se um
sacrifício aos deuses da cidade para torná-los favoráveis.
Assim, no meio da guerra, a religião reunia os homens e
abrandava, às vezes, seus furores, ainda que eventualmen­
te lhes inspirasse ações desumanas e horríveis.
Posso estar enganado, mas parece-me que, de todos
os antigos povos civilizados, nenhum impediu a liberdade
de pensar. Todos tinham uma religião; mas creio que pro­
cediam com os homens da mesma forma que com os
deuses: reconheciam todos um Deus supremo, mas asso-

35
_______ Voltaire __________

davam-lhe uma quantidade prodigiosa de divindades in­


feriores; tinham apenas um culto, mas permitiam grande
quantidade de sistemas particulares .
Os gregos, por exemplo, por mais religiosos que fos­
sem, achavam bom que os epicuristas negassem a Pro­
vidência e a existência da alma. Não falo das outras sei­
tas, que feriam as idéias saudáveis que se deve ter do Ser
criador e que eram todas toleradas.
Sócrates, que mais se aproximou do conhecimento
do Criador, sofreu punição por isso, dizem, e morreu
mártir da Divindade; foi o único que os gregos fizeram
morrer por suas opiniões. Se esta foi, de fato, a causa de
sua condenação, não cabem honras à intolerância, já
que se puniu apenas o único a glorificar Deus, enquan­
to honravam-se os que davam da Divindade as noções
mais indignas. Os inimigos da tolerância não devem, em
minha opinião, prevalecer-se do exemplo odioso dos juí­
zes de Sócrates.
É evidente, aliás, que Sócrates foi vítima de um par­
tido furioso animado contra ele. Fizera-se inimigo irre­
conciliável dos sofistas, oradores, poetas, que ensinavam
nas escolas, e mesmo de todos os preceptores encarre­
gados dos filhos da elite . E le próprio confessa, em seu
discurso relatado por Platão37, que ia de casa em casa
provar a esses preceptores que não passavam de igno­
rantes. Tal conduta não era digna daquele que um orá­
culo havia declarado o mais sábio dos homens. Lança­
ram-se contra ele um sacerdote e um conselheiro dos
Quinhentos, que o acusaram; confesso que não sei pre­
cisamente de quê, vejo apenas algo vago em sua Apolo­
gia; atribui-se-lhe, de maneira geral, a acusação de inspi­
rar aos jovens máximas contra a religião e o governo. É
assim que procedem diariamente os caluniadores no mun-

36
------ Tratado sobre a tolerância ________

do; mas um tribunal requer fatos comprovados, pontos


de acusação precisos e circunstanciados: é o que o pro­
cesso de Sócrates não nos fornece; sabemos apenas que
ele chegou a ter duzentos e vinte votos a seu favor. O tri­
bunal dos Quinhentos possuía portanto duzentos e vinte
filósofos. É muito; duvido que fossem encontrados alhu­
res. A maioria, enfim, decidiu pela cicuta; mas considere­
mos que os atenienses , caindo em si, abominaram os
acusadores e os juízes; que Melito, o principal autor da
sentença, foi condenado à morte por essa injustiça; q\.Ie
os outros foram banidos e que se ergueu um templo a
Sócrates. Jamais a filosofia foi tão bem vingada nem tão
honrada . O exemplo de Sócrates é, no fundo, o mais ter­
rível argumento que se possa citar contra a intolerância.
Os atenienses tinham um altar dedicado aos deuses es­
trangeiros, aos deuses que não podiam conhecer. Há uma
prova mais forte não apenas de indulgência para com
todas as nações, mas também de respeito por seus cultos?
Um homem fino, que não é inimigo da razão, nem
da literatura, nem da probidade, nem da pátria, justifi­
cando recentemente a Noite de São Bartolomeu, cita a
guerra dos fócios, chamada guerra sagrada, como se
essa guerra tivesse sido provocada pelo culto, pelo dog­
ma, por argumentos de teologia: tratava-se de saber a
quem pertenceria um território, é a questão de todas as
guerras. Feixes de trigo não são um símbolo de crença;
jamais uma cidade grega combateu por opiniões. Aliás, o
que pretende esse homem modesto e suave? Quer que
façamos uma guerra sagrada38?

37
CAPÍTULO VIII

Se os romanos foram tolerantes

Entre os antigos romanos, desde Rômulo até os tem­


pos em que os cristãos disputaram com os sacerdotes do
Império, não encontreis um único homem perseguido
por suas opiniões. Cícero duvidou de tudo, Lucrécio ne­
gou tudo, e não lhes fizeram a menor censura . A licença
foi inclusive tão longe que Plínio, o Naturalista, começou
seu livro negando a Deus e dizendo que há só um: o sol.
Cícero diz, ao falar dos infernos: "Non est anus tam ex­
cors quae credat; não há sequer velho imbecil que acre­
dite neles39." Diz Juvenal: "Nec pueri credunt (sátira II,
verso 1 52); nem as crianças acreditam. " Cantava-se no
teatro de Roma:

Post morlem nibil est, ipsaque mors nibil.


(Sêneca, As Troianas, coro ao final do segundo ato.)

Não há nada após a morte, a própria morte é nada.


Abominemos essas máximas e , quando muito, per­
doemos um povo que os evangelhos não iluminam. Elas
são falsas, são ímpias. Mas concluamos que os romanos
eram muito tolerantes, já que elas não provocaram jamais
o menor murmúrio.

39
_______ Voltaire __________

O grande princípio do senado e do povo romano


era: "Deorum offensae diis curae; compete apenas aos
deuses cuidar das ofensas feitas aos deuses. " Esse povo­
rei não sonhava senão em conquistar, governar e civili­
zar o universo. Foram nossos legisladores, assim como
nossos vencedores; e jamais César, que nos deu grilhões,
leis e jogos, quis forçar-nos a abandonar nossos druidas
por ele, embora sendo o grande pontífice de uma nação
nossa soberana.
Os romanos não professavam todos os cultos, não
davam a todos a sanção pública; mas permitiram todos.
Não tiveram nenhum objeto material de culto sob Numa,
nem simulacros, nem estátuas; em seguida ergueram-nos
aos deuses majorum gentium, que os gregos lhes fize­
ram conhecer. A lei das doze tábuas, Deos peregrinos ne
co/unto, limitou-se a só conceder o culto público às di­
vindades superiores aprovadas pelo senado. Í sis teve um
templo em Roma, até que Tibério o demoliu, quando os
sacerdotes desse templo, corrompidos pelo dinheiro de
Mundus, fizeram-no deitar no templo, sob o nome do
deus Anúbis, com uma mulher chamada Paulina. É ver­
dade que ]osefo é o único a relatar essa história; não era
contemporâneo, era crédulo e costumava exagerar. É
pouco provável que, numa época tão esclarecida como
a de Tibério, uma dama da primeira classe tivesse sido
tão imbecil para acreditar nos favores do deus Anúbis .
Mas, verdadeira ou falsa essa anedota, o certo é que
a superstição egípcia havia erguido um templo em Roma
com o consentimento público. Os judeus comerciavam
nessa cidade desde o tempo da guerra púnica; passaram
a ter sinagogas a partir de Augusto e as conservaram qua­
se sempre, assim como na Roma moderna. Há exemplo

40
------ Tratado sobre a tolerância ------

maior de que a tolerância era vista pelos romanos como


a lei mais sagrada do direito dos povos?
Dizem-nos que, tão logo os cristãos apareceram, fo­
ram perseguidos por esses mesmos romanos que não
perseguiam ninguém. Parece-me evidente que esse fato
é completamente falso; tomo por prova o próprio São
Paulo. Os Atos dos Apóstolos nos mostram que40, tendo
São Paulo sido acusado pelos judeus de querer destruir a
lei mosaica em nome de Jesus Cristo, São Tiago propôs
a São Paulo que raspasse a cabeça e fosse purificar-se nu
templo com quatro judeus, "e saberão todos que não é
verdade o que se diz a teu respeito; e que, pelo contrá­
rio, andas também, tu mesmo, guardando a lei".
Paulo, cristão, foi portanto cumprir todas as cerimô­
nias judaicas durante sete dias; mas os sete dias não ha­
viam ainda transcorrido quando judeus da Ásia o reco­
nheceram e, vendo que havia entrado no templo, não
apenas com judeus, mas com gentios, acusaram-no de
profanação. Paulo foi preso, levado ante o governador
Félix e, em seguida, enviado ao tribunal de Festo. Os
judeus em coro exigiram sua morte; Festo respondeu­
lhes" : "Não é costume dos romanos condenar quem quer
que seja, sem que o acusado tenha presentes os seus
acusadores e possa defender-se da acusação . "
Tais palavras são ainda mais notáveis nesse magis­
trado romano, pois ele aparentemente não teve nenhu­
ma consideração por São Paulo, sentiu por ele apenas
desprezo; enganado pelas falsas luzes de sua razão, to­
mou-o por louco; diz ao próprio São Paulo que era insa­
no42: Multae te litterae ad insaniam convertunt. Portanto,
Festo só escutou a eqüidade da lei romana ao dar sua
proteção a um desconhecido que não podia estimar.

41
_______ Voltaire __________

Eis o próprio Espírito Santo a declarar que os roma­


nos não eram perseguidores e que eram justos. Não fo­
ram os romanos que se insurgiram contra São Paulo,
foram os judeus. São Tiago, irmão de Jesus, foi apedre­
jado por ordem de um judeu saduceu, e não de um ro­
mano. Foram somente judeus que apedrejaram Santo Es­
têvão43; e, quando São Paulo vestia a capa dos executo­
res44, certamente não agia como cidadão romano.
Os primeiros cristãos por certo não tinham questões
com os romanos; tinham como inimigos apenas os ju­
deus, dos quais começavam a separar-se. Sabemos o
ódio implacável que todos os sectários sentem pelos que
abandonam sua seita. Provavelmente houve tumulto nas
sinagogas de Roma . Suetônio diz, na Vida de Cláudio
(cap. XXV): judaeos, impulsore Christo assidue tumul­
tantes, Roma expulit. Ele se enganava, ao dizer que fora
por instigação de Cristo: não podia estar a par dos deta­
lhes de um povo tão desprezado em Roma como era o
povo judeu; mas não se enganava sobre a ocasião des­
sas querelas. Suetônio escrevia sob Adriano, no segundo
século; os cristãos ainda não se distinguiam dos judeus
aos olhos dos romanos. A passagem de Suetônio faz ver
que os romanos, longe de oprimir os primeiros cristãos,
reprimiam então os judeus que os perseguiam. Queriam
que a sinagoga de Roma tivesse para com seus irmãos
separados a mesma indulgência que o senado tinha para
com ela, e os judeus expulsos voltaram logo em seguida;
obtiveram até honrarias, apesar das leis que delas os
excluíam. É o que nos dizem Díon Cássio e Ulpiano45•
Será possível que , após a destruição de Jerusalém, os im­
peradores tivessem prodigalizado dignidades aos judeus
e perseguido, entregue aos carrascos e às feras, cristãos
que eram vistos como uma seita dos judeus?

42
------ Tratado sobre a tolerância ________

Nero, dizem, os perseguiu. Tácito nos conta que fo­


ra m acusados do incêndio de Roma e que os entregaram
ao furor do povo. Tratava-se, em tal acusação, da crença
dos cristãos? Certamente que não. Diremos que os chine­
ses mortos pelos holandeses, há alguns anos, nos arre­
dores de Batávia, foram imolados à religião? Por mais
que queiramos nos enganar, é impossível atribuir à into­
lerância o desastre acontecido sob Nero a alguns infortu­
nados semijudeus e semicristãos46.

43
CAPÍTULO IX

Acerca dos mártires

Posteriormente houve mártires cristãos. É bem difícil


saber com precisão por que razões esses mártires foram
condenados; mas ouso pensar que, sob os primeiros Cé­
sares , nenhum o foi simplesmente por sua religião. To­
das eram toleradas ; como poderiam visar e perseguir ho­
mens obscuros, que tinham um culto particular, num tem­
po em que todos os outros eram permitidos?
Os Tito, os Trajano, os Antoni no , os Décio não eram
bárbaros: como imaginar que teriam privado somente os
cristãos de uma liberdade que a terra inteira usufruía?
Teriam ousado acusar apenas os cristãos de ter mistérios
secretos, enquanto os mistérios de Í sis , Mitra, da deusa
da Síria, todos estranhos ao culto romano, eram permiti­
dos sem contradição? Cumpre que a perseguição tenha
tido outras causas e que os ódios particulares, sustenta­
dos pela razão de Estado, tenham derramado o sangue
dos cristãos .
Por exemplo, quando São Lourenço recusa ao pre­
feito de Roma, Cornelius Secularis, o dinheiro dos cris­
tãos que tinha em sua guarda, é natural que o prefeito e
o governador ficassem irritados; eles não sabiam que São
Lourenço havia distribuído esse dinheiro aos pobres e

45
______ _ Voltaire __________

que fizera uma obra caritativa e santa; julgaram-no um


rebelde, e o fizeram perecer'7•
Consideremos o martírio de São Polieuto. Te-lo-ão
condenado apenas por sua religião? Ele vai ao templo,
onde rendem-se aos deuses ações de graças pela vitória
do imperador Décio; ali insulta os sacrificadores, derru­
ba e quebra os altares e as estátuas: em que país do mun­
do perdoariam semelhante atentado? O cristão que ras­
gou publicamente o edito do imperador Diocleciano e
que atraiu sobre seus irmãos a grande perseguição nos
dois últimos anos do reinado desse soberano não tinha
um zelo conforme a sabedoria e sentiu-se muito infeliz
por ser a causa do desastre de seu partido. Esse zelo irre­
fletido, que irrompeu com freqüência e foi inclusive con­
denado por vários padres da Igreja , provavelmente cons­
tituiu a origem de todas as perseguições .
Certamente não comparo os primeiros sacramentá­
rios aos primeiros cristãos: não coloco o erro ao lado da
verdade. Mas Farei, predecessor de João Calvino, fez em
Arles a mesma coisa que São Polieuto havia feito na Ar­
mênia. Levavam pelas ruas a estátua de Santo Antônio, o
eremita, em procissão ; Farei lança-se com alguns dos
seus sobre os monges que levavam Santo Antônio, agri­
de-os, dispersa-os e atira a estátua de Santo Antônio no
rio. Ele merecia a morte, que não recebeu, porque teve
tempo de fugir. Se tivesse se contentado em gritar a esses
monges que não acreditava que um corvo tivesse trazido
a metade de um pão a Santo Antônio eremita , nem que
este tivesse conversado com centauros e sátiros, teria me­
recido uma forte reprimenda, porque perturbava a or­
dem; mas se, à noite, após a procissão, houvesse exami­
nado pacificamente a história do corvo, dos centauros e
dos sátiros, nada teriam a lhe censurar.

46
______ Tratado sobre a tolerância ________

O quê! os romanos teriam suportado que o infame


Antínoo fosse colocado entre os deuses secundários e
teriam trucidado, entregue às feras, todos aqueles que
eram acusados apenas de adorar pacificamente um justo?
O quê! teriam reconhecido um Deus supremo48, um
Deus soberano, senhor de todos os deuses secundários,
o que é atestado pela fórmula Deus optímus maxímus, e
teriam perseguido os que adoravam um Deus único?
Não é verossímil que alguma vez tenha havido uma
inquisição contra os cristãos sob os imperadores, isto e,
que tenham vindo interrogá-los sobre suas crenças. So­
bre essa questão, nem judeus, nem sírios, nem egípcios,
nem bardos, nem druidas, nem filósofos foram jamais
perturbados. Os mártires, portanto, foram os que se re­
belaram contra os falsos deuses. Era muito ajuizado e
muito piedoso não crer nesses deuses; mas se, não con­
tentes de adorar um Deus em espírito e em verdade, ma­
nifestaram-se violentamente contra o culto estabelecido,
por mais absurdo que pudesse ser, somos forçados a re­
conhecer que eles próprios eram intolerantes.
Tertuliano, em sua Apologética, admite49 que os cris­
tãos eram vistos como rebeldes. A acusação era injusta,
mas provava que não era apenas a religião dos cristãos
que excitava o zelo dos magistrados. Diz Tertuliano50 que
os cristãos recusavam-se a ornar suas portas com ramos
de louro nos festejos públicos pelas vitórias dos impera­
dores: podia-se facilmente tomar essa atitude condená­
vel por um crime de lesa-majestade .
A primeira severidade jurídica exercida contra os
cristãos foi a de Domiciano; mas limitou-se a um exílio
que não durou um ano: "Facile coeptum repressit, resti­
tu tis etiam quos relegaverat", diz Tertuliano (cap. V). Lac-

47
_______ Voltaire ___________

tâncio, cujo estilo é tão arrebatado, admite que, de Do­


miciano a Décio, a Igreja foi tranqüila e florescente51 • Es­
sa longa paz, diz ele, foi interrompida quando esse exe­
crável animal Décio oprimiu a Igreja: "Exstitit enim post
annos plurimos exsecrabile animal Decius, qui vexaret
Ecclesiam" (Apol. , cap. IV).
Não queremos discutir aqui a opinião do erudito
Dodwell sobre o pequeno número de mártires; mas se os
romanos tivessem perseguido tanto a religião cristã, se o
senado tivesse feito morrer tantos inocentes por suplí­
cios inusitados , se tivessem mergulhado cristãos no óleo
fervente, se tivessem exposto jovens nuas às feras no cir­
co, como teriam deixado em paz todos os primeiros bis­
pos de Roma? Santo Irineu conta como mártir entre esses
bispos apenas Telésforo, no ano 1 39 da era vulgar, e não
há nenhuma prova de que esse Telésforo tenha sido con­
denado à morte. Zeferino governou o rebanho de Roma
durante dezoito anos e morreu pacificamente no ano 2 1 9 .
É verdade que, nos antigos martirológios, colocam-se
quase todos os primeiros papas; mas a palavra martírio
era tomada então apenas em sua verdadeira significação:
martírio queria dizer testemunho, e não suplício.
É difícil combinar esse furor de perseguição com a
liberdade que tiveram os cristãos de realizar cinqüenta e
seis concílios que os escritores eclesiásticos contam nos
três primeiros séculos.
Houve perseguições; mas se tivessem sido tão vio­
lentas como dizem, certamente Tertuliano, que escreveu
com tanta força contra o culto estabelecido, não teria mor­
rido em seu leito. Sabe-se bem que os imperadores não
leram sua Apologética; que um texto obscuro, escrito na
África , não chega até os encarregados do governo do

48
______ Tratado sobre a tolerância ________

mundo; mas devia ser conhecido por pessoas próximas


ao procônsul da África, devia atrair muito ódio ao autor.
Tertuliano, porém, não sofreu o martírio.
Orígenes ensinou publicamente em Alexandria e não
foi condenado à morte. Esse mesmo Orígenes, que fala­
va com tanta liberdade aos pagãos e aos cristãos, anun­
ciando Jesus a uns, negando um Deus em três pessoas
aos outros, declara expressamente, em seu terceiro livro
contra Celso, "que houve muito poucos mártires, e só de
tempos em tempos. No entanto, diz ele , os cristãos nadà
negligenciam para que sua religião seja abraçada por
todo o mundo; percorrem as cidades, os povoados, as
aldeias" .
É certo que essas missôes contínuas podiam ser fa­
cilmente acusadas de sedição pelos sacerdotes inimigos.
No entanto, elas são toleradas, apesar do povo egípcio,
sempre turbulento, sedicioso e covarde; povo que havia
linchado um romano por ter matado um gato, povo des­
prezível em qualquer circunstância, não obstante o que
digam dele os admiradores das pirâmides52•
Quem haveria de incitar mais contra si os sacerdo­
tes e o governo do que São Gregório Taumaturgo, dis­
cípulo de Orígenes? Gregório vira durante a noite um
velho enviado por Deus, acompanhado de uma mulher
resplandescente de luz: essa mulher era a Virgem Santa,
e o velho, São João Evangelista. São João ditou-lhe uma
mensagem que São Gregório foi pregar. Indo à Neoce­
saréia , passou por um templo onde faziam oráculos e
onde a chuva o obrigou a passar a noite; ali fez vários
sinais da cruz. No dia seguinte, o sacrificador do templo
espantou-se de que os demônios, que lhe respondiam
antes, não mais quisessem transmitir oráculos. Chamou-

49
_______ Voltaire __________

os. Os diabos vieram dizer-lhe que não viriam mais; co­


municaram-lhe que não podiam mais habitar o templo,
porque Gregório nele havia passado a noite e fizera si­
nais da cruz.
O sacrificador mandou prender Gregório, que lhe
respondeu: "Posso expulsar os demônios de onde quiser
e fazê-los entrar onde me agradar. - Então faça-os voltar
ao meu templo" , diz o sacrifica dor. Gregório rasgou um
pedaço de um papiro que tinha na mão e nele traçou
estas palavras : "Gregório a Satã: Eu te ordeno que voltes
a este templo. " Puseram esse bilhete no altar. Os demô­
nios obedeceram e, naquele dia, transmitiram seus orá­
culos como de costume; após o quê, cessaram, confor­
me nos é dito.
É São Gregório de Nissa que relata esses fatos da
vida de São Gregório Taumaturgo. Os sacerdotes dos ído­
los certamente deviam odiar Gregório e, na sua ceguei­
ra, denunciá-lo ao magistrado; contudo, seu maior inimi­
go não esboçou nenhuma perseguição.
Conta-se na história de São Cipriano que ele foi o
primeiro bispo de Cartago condenado à morte. O martí­
rio de São Cipriano é do ano 258 de nossa era; portanto,
durante um longo tempo nenhum bispo de Cartago foi
imolado por causa de sua religião. A história não nos diz
que calúnias foram lançadas contra São Cipriano, que
inimigos tinha, por que o procônsul da África irritou-se
contra ele . São Cipriano escreve a Cornélio, bispo de Ro­
ma: "Uma comoção popular irrompeu há pouco em Car­
tago e por duas vezes gritaram que eu devia ser jogado
aos leões. "
É bem provável que os arrebatamentos do povo fe­
roz de Cartago tenham sido a causa da morte de Cipria-

50
---- Tratado sobre a tolerância ________

no; e é óbvio que não foi o imperador Galo que o con­


denou de tão longe por sua religião, uma vez que deixa­
va em paz Cornélio, que vivia sob seus olhos.
Tantas causas secretas se misturam com freqüência à
causa aparente, tantos motivos desconhecidos servem
para perseguir um homem, que é impossível identificar
nos séculos posteriores a origem oculta dos infortúnios
dos homens mais importantes e, com mais forte razão, a
do suplício de um indivíduo que só podia ser conhecido
por aqueles de seu partido.
Observe-se que São Gregório Taumaturgo e São Dio­
nísio, bispo de Alexandria, que não foram supliciados,
viviam na mesma época de São Cipriano. Por que, sendo
tão conhecidos ao menos quanto o bispo de Cartago,
foram deixados em paz? E por que São Cipriano foi en­
tregue ao suplício? Isso acaso não parece indicar que um
sucumbiu a inimigos pessoais e poderosos, à calúnia, ao
pretexto da razão de Estado, que amiúde junta-se à reli­
gião, enquanto os outros tiveram a felicidade de escapar
à maldade dos homens?
É pouco provável que a simples acusação de cristia­
nismo tenha feito perecer Santo Inácio na época do cle­
mente e justo Trajano, já que permitiram aos cristãos
acompanhá-lo e consolá-lo quando o conduziram a Ro­
ma53. Houve freqüentes sedições em Antioquia, cidade
sempre turbulenta, onde Inácio era bispo secreto dos cris­
tãos. Talvez essas sedições, malignamente imputadas aos
cristãos inocentes, tenham chamado a atenção do gover­
no, que se enganou, como aconteceu muitas vezes.
São Simeão, por exemplo, foi acusado perante Sapor
de ser espião dos romanos. A história de seu martírio
conta que o rei Sapor propôs-lhe adorar o Sol; mas sabe-

51
_______ Vo/taire ___________

se que os persas não prestavam culto ao Sol: considera­


vam-no um emblema do bom princípio, de Oromase, ou
Orosmade, do Deus criador que reconheciam.
Por mais tolerante que se possa ser, é impossível
deixar de sentir alguma indignação contra esses decla­
madores que acusam Diocleciano de haver perseguido
os cristãos assim que subiu ao trono. Confiemos em Eu­
sébio de Cesaréia: seu testemunho não pode ser recusa­
do; o favorito, o panegirista de Constantino, o inimigo
violento dos imperadores precedentes, deve ser acredi­
tado quando os justifica. Eis suas palavras54: "Os impera­
dores deram por muito tempo aos cristãos grandes sinais
de benevolência; confiaram-lhes províncias; vários cris­
tãos moraram no palácio; inclusive cristãs foram despo­
sadas. Diocleciano tomou por esposa Prisca, cuja filha
foi mulher de Maximiano Galera, etc . "
Que esse testemunho decisivo nos ensine , pois, a
não mais caluniar. Convém considerar se a perseguição
provocada por Galera, após dezenove anos de um reina­
do de clemência e de benefícios, não deve sua origem a
alguma intriga que desconhecemos.
Que se perceba o quanto a fábula da legião tebana
ou tebéia , massacrada, ao que se diz, apenas por moti­
vos de religião, é uma fábula absurda. É ridículo que ti­
vessem feito vir essa legião da Ásia por causa do grande
São Bernardo; é impossível que a tivessem chamado
para apaziguar uma sedição na Gália, um ano depois
que essa sedição fora reprimida; não é menos impossível
que tenham massacrado seis mil homens da infantaria e
setecentos cavaleiros numa passagem em que duzentos
homens poderiam deter um exército inteiro. O relato des­
sa suposta carnificina começa por uma impostura eviden-

52
------ Tratado sobre a tolerância ------

te: "Enquanto a terra gemia sob a tirania de Diocleciano,


o céu se povoava de mártires. " Ora, essa aventura, como
foi dito, teria acontecido em 286, quando Diocleciano
mais favorecia os cristãos e quando o Império Romano
foi o mais ditoso. Enfim, o que deveria poupar toda essa
discussão é que nunca houve legião tebana: os romanos
eram demasiado orgulhosos e sensatos para formar uma
legião de egípcios que só serviam em Roma como escra­
vos, Verna Canopi; é como se tivessem tido uma legião
judaica. Temos os nomes das trinta e duas legiões que
compunham as principais forças do Império Romano; o
da legião tebana seguramente não consta. Classifique­
mos, pois, essa fábula juntamente com os versos acrósti­
cos das sibilas que prediziam os milagres de Jesus Cristo
e com tantas outras suposições que um falso zelo difun­
diu para abusar da credulidade.

53
CAPÍTULO X

Acerca do perigo das falsas lendas


e acerca da perseguição

A mentira por muito tempo iludiu os homens; está


na hora de conhecer o pouco de verdade que se pode
identificar nessas nuvens de fábulas que cobrem a histó­
ria romana desde Tácito e Suetônio, e que quase sempre
envolveram os anais das outras nações antigas .
Como se pode acreditar, por exemplo, que os roma­
nos, esse povo grave e severo de quem conservamos as
leis, tenham condenado virgens cristãs, moças de caráter,
à prostituição? É conhecer muito mal a austera dignida­
de de nossos legisladores, que puniam tão severamente
as fraquezas das vestais . Os Atos Sinceros de Ruinart rela­
tam essas torpezas . Mas deve-se crer nos Atos de Ruinart
como nos Atos dos Apóstolos? Esses Atos Sinceros dizem,
segundo Bollandus, que havia na cidade de Ancira sete
virgens cristãs, de cerca de 70 anos cada uma, que o go­
vernador Teodecto condenou a passar pelas mãos dos
jovens da cidade; mas tendo essas virgens sido poupa­
das, como é de se supor, ele as obrigou a servirem com­
pletamente nuas aos mistérios de Diana, aos quais po­
rém jamais se assistiu a não ser com um véu. São Teodato,
que na verdade era taberneira, sem por isso ser menos
fervoroso, pediu ardentemente a Deus para que fiz ess e

55
_______ Voltaire __________

morrer essas santas filhas, temendo que sucumbissem à


tentação. Deus lhe atendeu: o governador mandou que
fossem atiradas num lago com uma pedra no pescoço.
Logo elas apareceram a Teodato e rogaram-lhe não dei­
xar que seus corpos fossem comidos pelos peixes; estas
foram suas próprias palavras.
O santo taberneira e seus amigos foram durante a
noite à beira do lago vigiado por soldados; uma tocha
celeste marchou sempre à frente deles e, quando chega­
ram no lugar onde estavam os guardas, um cavaleiro ce­
Jeste, armado dos pés à cabeça, perseguiu esses guardas
com a lança na mão. São Teodato retirou do lago os cor­
pos das virgens. Foi levado perante o governador, e o
cavaleiro celeste não impediu que lhe cortassem a cabe­
ça . Não cessamos de repetir que veneramos os verdadei­
ros mártires, mas que é difícil acreditar nessa história de
Bollandus e de Ruinart.
Será preciso contar aqui a história do jovem São Ro­
mano? Lançaram-no na fogueira, diz Eusébio, e judeus
que estavam presentes insultaram Jesus Cristo qu e deixa­
va queimar seus confessores, quando Deus havia tirado
Sidrach, Misach e Abdênago da fornalha ardente55• Mal
os judeus acabaram de falar, eis que São Romano sai
triunfante da fogueira. O imperador ordenou que o per­
doassem e disse ao juiz que não queria complicações
com Deus. Estranhas palavras para Diocleciano! O juiz,
apesar da indulgência do imperador, ordenou que cor­
tassem a língua de São Romano e, embora tivesse carras­
cos, mandou que a operação fosse feita por um médico.
O jovem Romano, nascido gago, falou com loquacidade
assim que teve a língua cortada. O médico foi repreendi­
do e , para mostrar que a operação fora feita segundo as

56
------ Tratado sobre a tolerância ________

normas, pegou um transeunte e cortou-lhe o mesmo tan­


to de língua que havia cortado de São Romano, o que
fez o transeunte morrer na hora; pois, acrescenta sabia­
mente o autor, a anatomia nos ensina que um homem
sem língua não poderia viver. Em verdade, se Eusébio
escreveu semelhantes asneiras, se não foram acrescenta­
das a seus escritos, que confiabílidade pode ter sua His­
tória?
O martírio de Santa Felicidade e de seus sete filhos,
condenados à morte, segundo se diz, pelo sábio e piedo­
so Antonino, é-nos apresentado sem se indicar o autor
do relato.
É bem provável que algum autor mais zeloso que
verdadeiro tenha querido imitar a história dos Macabeus.
É assim que começa o relato: "Santa Felicidade era roma­
na, vivia sob o reinado de Antonino. " Tais palavras dei­
xam claro que o autor não era contemporâneo de Santa
Felicidade. Diz que o pretor a julgou em seu tribunal no
campo de Marte; mas o prefeito de Roma tinha seu tribu­
nal no Capitólio, e não no campo de Marte, que, após ter
servido para os comícios, servia então para desfiles de sol­
dados, corridas e jogos militares. Somente isso já denota
a falsificação.
É dito ainda que , após o julgamento, o imperador
confiou a diferentes juízes a tarefa de fazer executar a sen­
tença, o que é inteiramente contrário a todas as formali­
dades daqueles e de todos os tempos.
Há também um Santo Hipólito, que se supõe ter sido
arrastado por cavalos, como Hipólíto, filho de Teseu.
Esse suplício jamais foi conhecido dos antigos romanos,
e a mera semelhança do nome levou a inventar-se essa
lenda.

57
_______ Voltaire ___________

Observe-se ainda que, nos relatos dos martírios, com­


postos unicamente pelos próprios cristãos, vemos sem­
pre uma multidão de cristãos vir livremente à prisão do
condenado, acompanhá-lo ao suplício, recolher seu san­
gue , enterrar seu corpo, fazer milagres com as relíquias.
Se tivessem perseguido apenas a religião, não teriam
imolado esses cristãos declarados que assistiam a seus ir­
mãos condenados e que eram acusados de fazer encan­
tamentos com os restos dos corpos martirizados? Não os
teriam tratado como tratamos os valdenses, os albigen­
ses, os hussitas, as diferentes seitas dos protestantes? Nós
os degolamos, os queimamos em massa, sem distinção
de idade nem de sexo. Acaso existe, nos relatos compro­
vados das perseguições antigas, um único traço que se
aproxime da Noite de São Bartolomeu e dos massacres
da Irlanda? Há um único só que se assemelhe à festa
anual ainda celebrada em Toulouse, festa cruel, festa que
deveria ser abolida para sempre, na qual um povo intei­
ro agradece a Deus em procissão e felicita-se por ter mas­
sacrado, há duzentos anos56, quatro mil de seus concida­
dãos?
Digo-o com horror, mas com verdade: nós, cristãos,
é que fomos perseguidores, carrascos, assassinos! E de
quem? De nossos irmãos . Nós é que destruímos cidades,
com o crucifixo ou a Bíblia na mão, e não cessamos de
derramar sangue e de acender fogueiras, desde os tem­
pos de Constantino até os furores dos canibais que habi­
tavam as Cevenas, furores que, graças a Deus, não mais
subsistem hoje.
Ainda enviamos, por vezes, ao patíbulo pobres coi­
tados do Poitou, do Vivarais, de Valence , de Montauban.
Enforcamos, desde 1745 , oito dos chamados predicantes

58
____ Tratado sobre a tolerância ________

ou ministros do Evangelho, cujo único crime foi ter ora­


do a Deus pelo rei em patoá e ter dado uma gota de vi­
nho e um pedaço de pão levedado a alguns camponeses
imbecis. Nada se sabe disso em Paris, onde o prazer é a
única coisa importante, onde se ignora tudo o que se pas­
sa na província e no estrangeiro. Tais processos fazem-se
em uma hora, mais depressa do que um desertor é julga­
do. Se o rei tivesse conhecimento deles, perdoaria.
Em nenhum país protestante os padres católicos são
tratados desse modo. Há mais de cem padres católicos
na Inglaterra e na Irlanda; são conhecidos, deixaram-nos
viver tranqüilos na última guerra57•
Seremos sempre os últimos a abraçar as opiniões
sensatas das outras nações? Elas se corrigiram; e nós, quan­
do nos corrigiremos? Foram precisos sessenta anos para
que adotássemos o que Newton havia demonstrado58;
mal começamos a ousar salvar a vida de nossos filhos
pela inoculação59• Faz muito pouco tempo que pratica­
mos os verdadeiros princípios da agricultura, quando co­
meçaremos a praticar os verdadeiros princípios da hu­
manidade? E com que cara podemos censurar os pagãos
por terem feito mártires, quando temos sido culpados da
mesma crueldade nas mesmas circunstâncias?
Admitamos que os romanos tenham feito morrer
uma multidão de cristãos apenas por causa de sua reli­
gião: nesse caso, os romanos foram muito condenáveis.
Gostaríamos de cometer a mesma injustiça? E quando os
censuramos por ter perseguido, gostaríamos de ser per­
seguidores?
Se aparecesse alguém bastante desprovido de boa­
fé, ou bastante fanático, para perguntar-me aqui: Por que

59
_______ Voltaire __________

vindes denunciar nossos erros e nossas faltas? Por que


destruir nossos falsos milagres e nossas falsas lendas?
Elas são o alimento da piedade de várias pessoas. Há er­
ros necessários. Não arranqueis do corpo uma úlcera ar­
raigada que arrastaria consigo a destruição do corpo; eis
o que eu lhe responderia:
Todos esses falsos milagres com os quais abalais a fé
que devemos aos verdadeiros, todas essas lendas absur­
das que acrescentais às verdades do Evangelho extin­
guem a religião nos corações; muitas pessoas que que­
rem instruir-se, e que não têm tempo de fazê-lo suficien­
temente, dizem: Os mestres de minha religião me enga­
naram, portanto não há religião; mais vale lançar-me nos
braços da natureza do que nos do erro; prefiro depender
da lei natural do que das invenções dos homens. Outros
têm a infelicidade de ir ainda mais longe: vêem que a im­
postura lhes pôs um freio, e não querem sequer o freio
da verdade, inclinam-se para o ateísmo, tornam-se de­
pravados porque outros foram velhacos e cruéis.
Eis aí certamente as conseqüências de todas as frau­
des piedosas e de todas as superstições. Os homens em
geral só raciocinam pela metade; é um péssimo argu­
mento afirmar: Voragine, o autor da Lenda dourada, e o
jesuíta Ribadaneira, compilador da Flor dos santos, só dis­
seram tolices, logo, não existe Deus; os católicos liquida­
ram um certo número de huguenotes, e os huguenotes,
por sua vez, assassinaram um certo número de católicos,
logo, não existe Deus; serviram-se da confissão, da co­
munhão, e de todos os sacramentos, para cometer os cri­
mes mais horríveis, logo, não existe Deus. Eu concluiria
afirmando o contrário: logo, existe um Deus que, após
esta vida passageira, na qual o desconhecemos tanto, e

60
------ Tratado sobre a tolerância ________

cometemos tantos crimes em seu nome, dignar-se-á a


consolar-nos de tão horríveis infortúnios: pois, conside­
rando as guerras de religião, os quarenta cismas dos
p apas, quase todos sangrentos; as imposturas, quase to­
das funestas; os ódios irreconciliáveis acesos pelas dife­
rentes opiniões; considerando todos os males que o fal­
so zelo produziu, os homens há muito têm tido o seu in­
ferno nesta vida.

61
CAPÍTULO XI

Abuso da intolerância

Mas como! Cada cidadão só deverá acreditar em sua


razão e pensar o que essa razão esclarecida ou engana­
da lhe ditar? Exatamente60, contanto que ele não pertur­
be a ordem, pois não depende do homem acreditar ou
não acreditar, mas depende dele respeitar os costumes
de sua pá tria E se dissésseis que é um crime não crer na
.

religião dominante, vós mesmos acusaríeis os primeiros


cristãos vossos pais e justificaríeis a que les que acusais de
os ter entregue aos suplícios.
Respondeis que a diferença é grande, que todas as
re ligiõ es são obras dos homens e que apenas a Igreja ca­
tólica, apostólica e romana é obra de Deus. Mas, em boa­
fé, deverá nossa religião, por ser divina, reinar pelo ódio,
pelos furores, pelo exílio, pelo açambarcamento de bens,
as prisões, as torturas, os crimes, e pelas ações de graças
prestadas a Deus por esses crimes? Quanto mais divina a
religião cristã, tanto menos compete ao homem coman­
dá-la; se Deus a fez, Deus irá sustentá-la s em vós. Sabeis
que a intolerância só produ z hipócritas ou rebeldes. Que
péssima alternativa! Enfim, gostaríeis que fosse mantida
por carrascos a religião de um Deus que carrascos fize­
ram perecer e que pregou tão-só a d oç u ra e a paciência?

63
_______ Voltaire ___________

Rogo-vos que vejatS as consequencias terríveis do


direito da intolerância . Se fosse permitido despojar de
seus bens, lançar no cárcere, matar um cidadão que, em
certo grau de latitude, não professasse a religião estabe­
lecida, que exceção eximiria os mandatários do Estado
das mesmas penas? A religião une igualmente o monar­
ca e os mendigos. Assim, mais de cinqüenta doutores ou
monges afirmaram este horror monstruoso: que era per­
mitido depor e matar os soberanos que não pensassem
como a Igreja dominante. E os parlamentos do reino não
cessaram de proscrever essas abomináveis decisões de
abomináveis teólogos61•
O sangue de Henrique, o Grande, ainda não secara
quando o parlamento de Paris aprovou um decreto que
estabelecia a independência da coroa como uma lei fun­
damental. O cardeal Duperron, que devia a púrpura a
Henrique, o Grande, insurgiu-se, nos estados-gerais de
1614, contra o decreto do parlamento, e mandou supri­
mi-lo. Todos os jornais da época relatam os termos que
Duperron utilizou em seu discurso: "Se um príncipe se
fizesse ariano, seríamos obrigados a depô-lo. "
Seguramente não, senhor cardeal. Queremos preci­
samente adotar vossa suposição quimérica de que um de
nossos reis, tendo lido a história dos concílios e dos pa­
dres da Igreja, impressionado, aliás, pelas palavras Meu
pai é maior do que eu62, tomando-as ao pé da letra e osci­
lando entre o concílio de Nicéia e o de Constantinopla, se
declarasse a favor de Eusébio de Nicomédia: mesmo assim
eu obedeceria a meu rei, não me julgaria menos compe­
lido pelo juramento que lhe fiz; e se ousásseis erguer-vos
contra ele, e eu fosse um de vossos juízes , vos declararia
criminoso de lesa-majestade.

64
------ Tratado sobre a tolerância ________

Duperron levou mais longe a disputa, e eu a abre­


vio. Aqui não é o lugar de aprofundar essas quimeras re­
voltantes. Limitar-me-ei a dizer, com todos os cidadãos,
que não é porque Henrique IV fora sagrado em Chartres
que lhe devíamos obediência, mas porque o direito in­
contestável de nascimento dava a coroa a esse príncipe,
que a merecia por sua coragem e por sua bondade .
Seja, pois, permitido afirmar que todo cidadão deve
herdar, pelo mesmo direito, bens de seu pai, e que não
se pense que ele mereça ser privado disso e arrastado à
forca, por ser da opinião de Ratram contra Paschase
Ratbert, e de Bérenger contra Duns Escoto.
Sabe-se que nem todos os nossos dogmas foram cla­
ramente explicados e universalmente aceitos em nossa
Igreja . Não havendo Jesus Cristo nos dito como procedia
o Espírito Santo, a Igreja latina por muito tempo acredi­
tou, com a grega, que procedia apenas do Pai: por fim
acrescentou que procedia também do Filho. Pergunto se,
após essa decisão, um cidadão que se apegasse ao sím­
bolo da véspera teria sido digno de morte. A crueldade,
a injustiça seriam menores em punir hoje aquele que
pensasse como se pensava outrora? Era-se culpado, no
tempo de Honório I, por acreditar que Jesus não tinha
duas vontades?
Não faz muito tempo que a imaculada conceição foi
estabelecida; os dominicanos ainda não crêem nela. Em
que momento os dominicanos começarão a merecer cas­
tigos neste mundo e no outro?
Se devemos aprender com alguém como nos condu­
zir em nossas disputas intermináveis, é certamente com
os apóstolos e os evangelistas. Havia motivos para pro­
vocar um cisma violento entre São Paulo e São Pedro.

65
_______ Voltaire __________

Paulo diz expressamente em sua Epístola aos Gálatas63


que resistiu a Pedro porque este era repreensível, por­
que usava de dissimulação assim como Barnabé, porque
ambos comiam com os gentios antes da chegada de Tia­
go e em seguida retiraram-se secretamente, e separaram­
se dos gentios com receio de ofender os circuncisos.
Acrescenta Paulo: "Quando, porém, vi que não proce­
diam corretamente segundo a verdade do Evangelho, dis­
se a Cefas [Pedro] na presença de todos: Se, sendo tu ju­
deu, vives como gentio, e não como judeu, por que obri­
gas os gentios a viverem como judeus?"
Esse era um tema de querela violenta. Tratava-se de
saber se os novos cristãos se judaizariam ou não. O pró­
prio São Paulo, nessa época, foi oferecer sacrifícios no
templo de Jerusalém. Sabe-se que os quinze primeiros
bispos de Jerusalém foram judeus circuncisos, que ob­
servavam o sabá e abstinham-se das carnes proibidas.
Um bispo espanhol ou português que se fizesse circun­
cidar e que observasse o sabá, seria queimado num auto­
de-fé. No entanto, a paz não foi perturbada, por causa
dessa questão fundamental, nem entre os apóstolos, nem
entre os primeiros cristãos.
Se os evangelistas se assemelhassem aos escritores
modernos, teriam um campo bem vasto para combater
uns aos outros. São Mateus64 conta vinte e oito gerações
de Davi a Jesus ; São Lucas65 conta quarenta e uma, e es­
sas gerações são absolutamente diferentes. Contudo , não
se vê nenhuma dissensão surgir entre os discípulos so­
bre essas contradições aparentes, muito bem conciliadas
por vários padres da Igreja . A caridade não foi ferida, a
paz foi conservada. Que lição maior para tolerar-nos em
nossas disputas e sermos humildes em tudo o que não
entendemos!

66
------ Tratado sobre a tolerância ________

São Paulo, em sua Epístola a alguns judeus de Roma


convertidos ao cristianismo, dedica todo o final do ter­
ceiro capítulo a dizer que só a fé glorifica e que as obras
não justificam ninguém. São Tiago, ao contrário, em sua
Epístola às doze tribos dispersas por toda a terra, capítu­
lo 11 , não cessa de dizer que é impossível ser salvo sem
as obras. Aí está o que separou duas grandes comunhões
entre nós66, mas o que não dividiu os apóstolos.
Se a perseguição contra aqueles com quem disputa­
mos fosse uma ação santa, cumpre admitir que o que
matasse o maior número de heréticos seria o maior santo
do paraíso. Que figura faria um homem que tivesse se
contentado em despojar seus irmãos e em jogá-los no
cárcere, perto de outro, mais zeloso, que teria massacra­
do centenas deles na Noite de São Bartolomeu? Eis aqui
a prova .
O sucessor de São Pedro e seu consistório não po­
dem errar; eles aprovaram, celebraram, consagraram a
ação da Noite de São Bartolomeu; logo, esta ação era
muito santa; logo, de dois assassinos iguais em piedade,
o que tivesse estripado vinte e quatro mulheres hugue­
notes grávidas deve ser glorificado em dobro em relação
ao que só tivesse estripado doze. Pela mesma razão, os
fanáticos das Cevenas deviam pensar que seriam glorifi­
cados na proporção do número de padres, religiosos e
mulheres católicas que tivessem liquidado. Estranhos tí­
tulos, esses, para a glória eterna.

67
CAPÍTULO XII

Se a intolerância foi de direito


divino no judaísmo e se
foi sempre posta em prática

Chamam direito divino, creio eu, os preceitos que


foram dados pelo pró prio Deus. Ele quis que os judeus
comessem um cordeiro cozido com alfaces67 e que os co­
mensais o fizessem de pé, com um bastão na mão68, em
comemoração do Phasé69; ordenou que a consagração
do sumo sacerdote se fizesse pondo sangue7° em sua
orelha direita, em sua mão direita e em seu pé direito,
costumes extraordinários para nós, mas não para a Anti­
guidade; quis que sacrificassem o bode Hazazel pelas
iniqüidades do povo7\ proibiu que se alimentassem72 de
peixes sem escamas , porcos, lebres, ouriços, corujas, ga­
viões, etc.
Instituiu as festas, as cerimônias. Todas essas coisas,
que pareciam arbitrárias às outras nações e submetidas
ao direito positivo, ao costume, tornavam-se, ao serem
ordenadas pelo próprio Deus, um direito divino para os
judeus, assim como tudo o que Jesus Cristo, filho de
Maria, filho de Deus, nos ordenou é de direito divino
para nós.
Não nos preocupemos aqui em saber por que Deus
impôs uma lei nova em substituição à que havia dado a
Moisés e por que havia ordenado a Moisés mais coisas

69
_______ Voltaire ___________

do que ao patriarca Abraão, e mais a Abraão do que a


Noé73. Parece que ele tem por bem adaptar-se às épocas
e à população do gênero humano: é uma gradação pa­
terna. Mas tais abismos são demasiado profundos para
nossa débil compreensão. Atenhamo-nos aos limites de
nosso tema; vejamos em primeiro lugar o que era a into­
lerância entre os judeus.
É verdade que, no Êxodo, nos Números, no Levítico,
no Deuteronômio, há leis muito severas sobre o culto, e
castigos mais severos ainda. Vários comentadores têm
dificuldade de conciliar as palavras de Moisés com as
passagens de Jeremias e Amós, e com o célebre discurso
de Santo Estêvão, relatado nos Atos dos Apóstolos. Amós
diz74 que os judeus, no deserto, sempre adoraram Mola­
que, Renfã e Quium. Jeremias diz expressamente75 que
Deus não pediu nenhum sacrifício a seus pais quando
saíram do Egito. Santo Estêvão, em seu discurso aos ju­
deus, exprime-se assim: "Mas Deus se afastou e os entre­
gou ao culto da milícia celestiaF6 ó casa de Israel, por­
. . .

ventura me oferecestes vítimas e sacrifícios no deserto


pe lo espaço de quarenta anos, e acaso não levantastes o
tabernáculo de Moloque e a estrela do deus Renfã, figu­
ras que fizestes para as adorar?"
Do culto de tantos deuses estrangeiros, outros críti­
cos inferem que esses deuses foram tolerados por Moi­
sés e citam como prova as seguintes palavras do Deu­
teronômio 77: " Não procedereis em nada segundo esta­
mos fazendo aqui, cada qual o que bem parece aos seus
olhos. "78
Apóiam sua opinião no fato de não ser mencionado
nenhum ato religioso do povo no deserto: nenhuma ce­
lebração da Páscoa, nem de Pentecostes, nenhuma men-

70
---- Tratado sobre a tolerância ----

ção à festa dos tabernáculos, nenhuma oração pública


estabelecida; enfim, a circuncisão, sinal da aliança de Deus
com Abraão, não foi praticada.
Também citam a seu favor a história de josué . Esse
conquistador diz aos judeus79: "Escolhei hoje a quem sir­
vais: se aos deuses a quem serviram vossos pais, que es­
tavam dalém do Eufrates, ou aos deuses dos amorreus,
e m cuja terra habitais. " O povo responde: "Não, antes
serviremos ao Senhor. " josué replicou: "Deitai, pois, ago­
ra, fora os deuses estranhos que há no meio de vós� "
Portanto eles tinham incontestavelmente outros deuses
além de Adonai no tempo de Moisés.
É inútil refutar aqui os críticos para os quais o Pen­
tateuco não foi escrito por Moisés. Tudo já foi dito há
tempos sobre essa questão e, ainda que uma pequena
parte dos livros de Moisés tivesse sido escrita no tempo
dos juízes ou dos pontífices, eles não seriam menos ins­
pirados e menos divinos .
Basta, parece-me, estar provado pela Sagrada Escri­
tura que , apesar da extraordinária punição que atraíram
devido ao culto de Ápis, os judeus conservaram por
muito tempo uma completa liberdade. É possível até que
o massacre de vinte e três mil homens provocado por
Moisés por causa do bezerro erigido por seu irmão, o te­
nha feito compreender que nada se ganhava com o ri­
gor, obrigando-o a fechar os olhos sobre a paixão do
povo pelos deuses estrangeiros.
O próprio Moisés80 parece em seguida transgredir a
lei que ditou. Proibiu todo simulacro, não obstante erigiu
uma serpente de bronze . A mesma exceção à lei verifica­
se depois no templo de Salomão: esse príncipe manda
esculpir81 doze bois que sustentam a grande nave do

71
_______ Voltaire __________

templo; querubins são colocados na arca; têm uma cabe­


ça de águia e outra de bezerro; e foi aparentemente essa
cabeça de bezerro mal-feita, encontrada no templo por
soldados romanos, que fez pensar por muito tempo que
os judeus adoravam um asno.
Em vão o culto dos deuses estrangeiros foi proibido.
Salomão é pacificamente idólatra. Jeroboão, a quem Deus
concedeu dez partes do reino82, manda erigir dois bezer­
ros de ouro e reina por vinte e dois anos, reunindo em
sua pessoa as dignidades de monarca e pontífice. O pe­
queno reino de Judá ergue, sob Roboão83, altares e está­
tuas a deuses estrangeiros. O santo rei Asa não destrói os
altos84• O grande sacerdote Urias erige no templo, em
lugar do altar dos holocaustos, um altar do rei da Síria85•
Não se vê, em uma palavra, nenhuma coerção sobre a
religião. Sei que a maior parte dos reis judeus extermina­
ram-se, assassinaram-se uns aos outros; mas isso foi sem­
pre por causa de seus interesses, e não de suas crenças.
É verdade que, entre os profetas86, houve aqueles
que invocaram o céu em sua vingança: Elias fez descer o
fogo celeste para consumir os sacerdotes de Baal; Eliseu
mandou vir ursas87 para devorarem quarenta e duas crian­
ças que o haviam chamado de careca. Mas são milagres
raros, e fatos que seria um pouco duro querer imitar.
Objetam-nos, ainda, que o povo judeu foi muito
ignorante e muito bárbaro. É dito88 que , na guerra contra
os madianitas89, Moisés ordenou que fossem mortas to­
das as crianças do sexo masculino e todas as mães, e que
os despojos fossem partilhados. Os vencedores encon­
traram no campo90 675 mil ovelhas, 72 mil bois, 61 mil
burros e 32 mil meninas; fizeram a partilha e mataram o
resto. Vários comentadores afirmam inclusive que trinta

72
____ Tratado sobre a tolerância ----

e duas meninas foram imoladas ao Senhor: Cesserunt in


partem Domini triginta duae animae.91
Na verdade, os judeus imolavam homens à divinda­
de. Testemunham-no os sacrifícios de Jefté92 e do rei
Agag93, cortado em pedaços pelo sacerdote Samuel. O
próprio Ezequiel promete-lhes94, para encorajá-los, que
comerão carne humana: "Vós vos fartareis de cavalos e de
cavaleiros; bebereis o sangue dos príncipes." Vários co­
mentadores aplicam dois versículos dessa profecia aos
próprios judeus, e os demais aos animais carnívoros. Não
se encontra, em toda a história desse povo, nenhum tra­
ço de generosidade, de magnanimidade, de beneficên­
cia; mas sempre escapam, na nuvem dessa barbárie tão
longa e tão terrível, raios de uma tolerância universal.
]efté, inspirado por Deus, e que lhe imolou sua filha, diz
aos amonitas95: "Não é certo que aquilo que Camas, teu
deus, te dá, consideras como tua possessão? Assim pos­
suiremos nós o território de todos quantos o Senhor nos­
so Deus expulsou de diante de nós . " Essa declaração é
precisa: pode levar muito longe; mas, ao menos, é uma
prova evidente de que Deus tolerava Camas. Pois a Sa­
grada Escritura não diz: julgais ter direito sobre as terras
que dizeis vos terem sido dadas pelo deus Camas. Mas
diz, positivamente: "Tendes direito, tibi jure debentur", o
que é o verdadeiro sentido das palavras hebraicas otho
thirasch.
A história de Mica e do levita, relatada nos capítulos
XVII e XVIII do livro dos Juízes, é também uma prova
incontestável da tolerância e da maior liberdade admiti­
da então entre os judeus. A mãe de Mica, esposa muito
rica de Efraim, havia perdido mil e cem peças de prata;
seu filho lhas devolveu; ela consagrou essa prata ao

73
_______ Voltaire ___________

Senhor e mandou fazer ídolos com ela; construiu uma


pequena capela . Um levita encarregou-se do serviço da
capela, mediante dez peças de prata, uma túnica, um
manto por ano e sua alimentação. E Mica disse consigo
mesmo96: "Sei agora que o Senhor me fará bem, por­
quanto tenho um levita por sacerdote. "
Nesse ínterim, seiscentos homens da tribo de Dã,
que buscavam apoderar-se de alguma aldeia da região e
nela estabelecer-se, mas não tendo sacerdote levita con­
sigo e necessitando de um para que Deus favorecesse
sua empresa, foram à casa de Mica e tomaram seu éfode,
seus ídolos e seu levita, apesar dos protestos desse sa­
cerdote e apesar dos gritos de Mica e sua mãe. Foram,
então, com segurança atacar a aldeia chamada Laís e ali
espalharam fogo e sangue por tudo, como era seu costu­
me. Deram o nome de Dã a Laís, em memória de sua vi­
tória; colocaram o ídolo de Mica num altar. E, o que mais
chama a atenção, Jônatas, neto de Moisés, foi o grande
sacerdote desse templo, onde era adorado o Deus de
Israel e o ídolo de Mica.
Após a morte de Gedeão, os hebreus adoraram Baal­
Berite durante cerca de vinte anos e renunciaram ao cul­
to de Adonai, sem que nenhum chefe, nenhum juiz, ne­
nhum sacerdote clamasse por vingança . Seu crime era
grande, reconheço-o; mas se mesmo essa idolatria foi
tolerada, como devem tê-lo sido as diferenças no verda­
deiro culto!
Alguns dão como prova de intolerância que o pró­
prio Senhor, tendo permitido que sua arca fosse tomada
pelos filisteus num combate, puniu estes últimos apenas
com uma doença secreta parecida com hemorróidas, der­
rubando a estátua de Dagon e enviando grande quanti-

74
---- Tratado sobre a tolerância ________

dade de ratos a seus campos; mas, quando os filisteus,


para abrandar sua cólera, devolveram a arca puxada por
duas vacas que nutriam seus bezerros e ofereceram a
Deus cinco ratos de ouro e cinco asnos de ouro, o Se­
nhor fez morrer setenta anciãos de Israel e cinqüenta mil
homens do povo por terem olhado a arca. Respondemos
que o castigo do Senhor não incide sobre uma crença,
sobre uma diferença no culto, nem sobre uma idolatria.
Se o Senhor tivesse querido punir a idolatria, teria
feito perecer todos os filisteus que ousaram tomar sua
arca e que adoravam Dagon; mas fez perecer cinqüenta
mil e setenta homens de seu povo, unicamente porque
haviam olhado a arca, que não deviam olhar. Assim, as
leis, os costumes dessa época, a economia judaica dife­
rem de tudo o que conhecemos; assim, também, os ca­
minhos inescrutáveis de Deus encontram-se acima dos
nossos. "O rigor exercido contra esse grande número de
homens , diz o judicioso dom Calmet, só parecerá exces­
sivo aos que não compreenderam até que ponto Deus
queria ser temido e respeitado entre seu povo e que jul­
gam os propósitos e os desígnios de Deus apenas segun­
do as fracas luzes de sua razão. "
Portanto, Deus não pune um culto estrangeiro, mas
uma profanação do seu , uma curiosidade indiscreta, uma
desobediência, talvez até um espírito de revolta. Perce­
be-se bem que tais castigos só competem a Deus na teo­
cracia judaica . Nunca é demais repetir que esses tempos
e costumes não têm nenhuma relação com os nossos.
Enfim, quando, nos séculos posteriores, Naamã, o
idólatra, pergunta a Eliseu se teria permissão de seguir
seu rei97 no templo de Rimon e ali adorar com ele, esse
mesmo Eliseu , que havia feito as crianças serem devora­
das pelas ursas, não lhe responde: Vai em paz?

75
Voltaire __________

Há mais ainda: o Senhor ordenou a Jeremias que pu­


sesse cordas no pescoço , cabrestos98 e cangas , e os
enviasse aos reizinhos, ou melchim, de Moabe, Amom,
Edom, Tiro e Sidom; e Jeremias transmitiu-lhes estas pa­
lavras do Senhor: "Agora eu entregarei todas estas terras
ao poder de Nabucodonosor, rei de Babilônia, meu ser­
vo. "99 Eis aí um rei idólatra declarado servidor de Deus e
seu favorito.
O mesmo Jeremias, que o melk ou régulo judeu Se­
decias havia mandado encarcerar, tendo obtido deste o
perdão, aconselha-o, da parte de Deus, a entregar-se ao
rei da Babilônia100: "Se te renderes voluntariamente aos
príncipes do rei de Babilônia, então viverá tua alma . "
Deus, portanto, toma enfim o partido de u m rei idólatra;
entrega-lhe a arca, cuja mera visão havia custado a vida
de cinqüenta mil e setenta judeus; entrega-lhe o Taber­
náculo e o resto do templo, cuja construção havia custa­
do cento e oito mil talentos de ouro, um milhão e dezes­
sete mil talentos de prata e dez mil dracmas de ouro, dei­
xados por Davi e seus ministros para a construção da
casa do Senhor; o que, sem contar os denários emprega­
dos por Salomão, eleva a quantia a aproximadamente
dezenove bilhões e sessenta e dois milhões nos valores
da época. Idolatria nenhuma foi melhor recompensada.
Sei que essa conta é exagerada, que houve provavel­
mente erro de copista; mas reduzi a soma pela metade,
à quarta parte, à oitava inclusive, ela ainda vos espanta­
rá . Não menos surpreendentes são as riquezas que He­
ródoto diz ter visto no templo de Éfeso. Mas, enfim, os
tesouros não são nada aos olhos de Deus, e o nome de
seu servidor, dado a Nabucodonosor, é o verdadeiro te­
souro inestimável.

76
------ Tratado sobre a tolerância ________

Deus101 não favorece menos Kir, Koresch, ou Kosroes,


que nós chamamos Ciro; chama-o seu cristo, seu ungido,
embora ele não fosse ungido, segundo a significação co­
mum dessa palavra, e seguisse a religião de Zoroastro;
chama-o seu pastor, embora fosse usurpador aos olhos
dos homens. Não há, em toda a Sagrada Escritura, um si­
nal maior de predileção.
Lemos em Malaquias102 que "desde o nascente do sol
até ao poente é grande entre as nações o meu nome [de
Deus] ; e em todo lugar lhe é queimado incenso e trazi­
das ofertas puras" . Deus preocupa-se tanto com os nini­
vitas idólatras como com os judeus; ele os ameaça, e os
perdoa. Melquisedeque, que não era judeu, foi sacrifi­
cante de Deus. Balaão, idólatra, era profeta. A Escritura
nos ensina, portanto, que Deus não somente tolerava
todos os outros povos, como tinha por eles um cuidado
paterno. E nós ousamos ser intolerantes!

77
CAPÍTULO XIII

Extrema tolerância dos judeus

Portanto, sob Moisés, sob os juízes, sob os reis, ve­


mos sempre exemplos de tolerância. Há muitos outros103:
Moisés diz várias vezes que "Deus pune os pais nos fi­
lhos até a quarta geração" ; essa ameaça era necessária a
um povo a quem Deus não havia revelado a imortalida­
de da alma, nem os castigos e recompensas numa outra
vida . Essas verdades não lhe foram anunciadas nem no
Decálogo, nem em alguma lei do Levítico e do Deu­
teronômio. Eram os dogmas dos persas, dos babilônios,
dos gregos, dos cretenses; mas não constituíam de modo
algum a religião dos judeus. Moisés não diz: "Honra teu
pai e tua mãe, se queres ir ao céu", mas: "Honra a teu pai
e a tua mãe . . . para que se prolonguem os teus dias . "104
Ele só os ameaça com males corporais105, com a sarna se­
ca, a sarna purulenta, úlceras malignas nos joelhos e na
barriga da perna, com serem expostos às infidelidades
de suas mulheres, tomarem empréstimo a juros dos es­
trangeiros e não poderem emprestar a juros; com morre­
rem de fome e serem obrigados a comer seus filhos; mas
em lugar nenhum lhes diz que suas almas imortais sofre­
rão tormentos após a morte, ou gozarão da felicidade .
Deus, que conduzia pessoalmente seu povo, punia-o e

79
_______ Voltaire __________

recompensava-o imediatamente após suas boas ou más


ações. Tudo era temporal, e esta é uma verdade que War­
burton usa indevidamente para provar que a lei dos ju­
deus era divina106, porque, sendo o próprio Deus seu rei,
fazendo justiça imediatamente após a transgressão ou a
obediência, não havia necessidade de lhes revelar uma
doutrina que reservava para o momento em que não go­
vernasse mais seu povo. Os que, por ignorância, preten­
dem que Moisés ensinava a imortalidade da alma, reti­
ram do Novo Testamento uma de suas maiores vanta­
gens sobre o Antigo. Está escrito que a lei de Moisés
anunciava apenas castigos corporais até a quarta gera­
ção. No entanto, apesar do enunciado preciso dessa lei,
apesar da declaração expressa de Deus de que puniria
até a quarta geração, Ezequiel anuncia exatamente o
contrário aos judeus e lhes diz107 que o filho não carrega­
rá a iniqüidade de seu pai; chega até a fazer Deus dizer
que lhes havia dadoHJ8 "estatutos que não eram bons" 109•
Mesmo assim, o livro de Ezequiel foi incluído no câ­
none dos autores inspirados por Deus. É verdade que a
sinagoga não permitia sua leitura antes da idade de trin­
ta anos, como nos informa São Jerônimo; mas era por
receio de que a juventude abusasse das descrições muito
ingênuas da libertinagem das duas irmãs Oolá e Oolibá,
que se encontram nos capítulos XVI e XXIII. Em uma pa­
lavra, seu livro foi sempre aceito, apesar da contradição
formal com Moisés.
Enfim110, quando a imortalidade da alma foi um dog­
ma aceito, o que provavelmente começara já no tempo
do cativeiro da Babilônia, a seita dos saduceus continuou
acreditando que não havia castigos nem recompensas
após a morte e que a faculdade de sentir e de pensar

80
------ Tratado sobre a tolerância ----
--

perecia conosco, como a força ativa, a capacidade de an­


dar e de digerir. Eles negavam a existência dos anjos. Di­
vergiam muito mais dos outros judeus do que os protes­
tantes divergem dos católicos; não obstante, permanece­
ram na comunidade de seus irmãos. Houve inclusive su­
mos sacerdotes de sua seita.
Os fariseus acreditavam na fatalidadem e na metem­
psicose112. Os essênios pensavam que as almas dos justos
iam para as ilhas afortunadas113 e as dos maus, para uma
espécie de Tártaro. Não faziam sacrifícios; reuniam-se
entre si numa sinagoga particular. Em uma palavra, se
quisermos examinar mais de perto o judaísmo, ficaremos
espantados de encontrar a maior tolerância em meio aos
horrores mais bárbaros. É uma contradição, é verdade;
mas quase todos os povos foram governados por contra­
dições. Feliz aquela que produz costumes suaves quan­
do se tem leis de sangue!

81
CAPÍTULO XIV

Se a intolerância foi ensinada


por Jesus Cristo

Vejamos agora se Jesus Cristo estabeleceu leis san­


guinárias, se ordenou a intolerância, se mandou cons­
truir os cárceres da Inquisição, se instituiu os carrascos
dos autos-de-fé.
Há, se não me engano, poucas passagens nos Evan­
gelhos a partir das quais o espírito perseguidor pudesse
inferir que a into lerâ n ci a a coerção, são legítimas . Uma
,

é a parábola em que o reino dos céus é comparado a um


rei que chama os convidados às bodas de seu filho;
manda-lhes dizer através de seus servidores114: "Os meus
bois e cevados já foram abatidos, e tudo está pronto; vin­
de para as bodas . " Uns, sem se importarem com o con­
vite, saem para suas casas de campo, outros para seus
negócios; alguns ultrajam os servidores do rei, e os ma­
tam. O rei envia seus exércitos contra esses assassinos e
destrói sua cidade; ordena que seus servidores saiam pe­
las estradas a convidar ao banquete todos os que encon­
trarem. Um desses, estando à mesa sem a veste nupcial,
é manietado e lançado nas trevas exteriores.
Como essa alegoria refere-se apenas ao reino dos
céus, é evidente que não autoriza a nenhum homem o
direito de manietar e jogar no cá rcere o vizinho que teria

83
_______ Voltaire __________

vindo comer em sua casa sem a veste nupcial adequada,


e não conheço na história príncipe nenhum que tenha
mandado enforcar um cortesão por tal motivo. Tampou­
co há que temer, quando o imperador, após matar seus
cevados, envia seus pajens aos príncipes do império con­
vidando-os a cear, que esses príncipes matem os pajens.
O convite ao banquete significa a pregação da salvação;
o assassinato dos enviados do rei simboliza a persegui­
ção contra os que pregam a sabedoria e a virtude.
A outra 115 parábola é a de um homem que convida
seus amigos para uma grande ceia e, estando tudo pre­
parado, manda seu servo chamá-los . Um desculpa-se di­
zendo que comprou uma terra e que precisa vê-la: essa
desculpa não parece justificada, pois não é à noite que
se vai inspecionar sua terra; outro diz que comprou
cinco juntas de bois e que deve experimentá-las; um ter­
ceiro responde que acaba de se casar e seguramente sua
desculpa é admissível. O pai de família, irado, manda vir
a seu banquete os cegos e os aleijados, e, vendo que ain­
da sobram lugares, diz a seu criado116: " Sai pelos cami­
nhos e atalhos, e obriga todos a entrar. "
É verdade que não é dito expressamente que esta
parábola seja um símbolo do reino dos .céus . Abusaram
demais destas palavras: o briga-os a entrar. Mas é evi­
dente que um só criado não pode obrigar à força quem
ele encontra para vir cear na casa de seu senhor, e, ade­
mais, convivas assim forçados não tornariam a ceia mui­
to agradável. Obriga-os a entrar não quer dizer outra
coisa, segundo os comentadores mais autorizados, se­
não: roga, suplica, insiste , esforça-te ao máximo. Qual a
relação, vos pergunto, dessa súplica e dessa ceia com a
perseguição?

84
------ Tratado sobre a tolerância ________

Tomando as coisas ao pé da letra, seria preciso ser


cego, aleijado e conduzido à força, para estar no seio da
Igreja? Jesus diz na mesma parábola1 17: "Não convides os
teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem
vizinhos ricos. " E por acaso alguma vez se inferiu daí
que não se devesse de fato jantar com seus parentes e
amigos tão logo tenham um pouco de fortuna?
Jesus Cristo, após a parábola do banquete, diz118: "Se
alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e
mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda sua própria
vida, não pode ser meu discípulo . . . Qual de vós, preten­
dendo construir uma torre, não se assenta primeiro para
calcular a despesa?" Há alguém no mundo tão desnatu­
rado para concluir que se deve odiar seu pai e sua mãe?
E não é fácil compreender que tais palavras significam:
Não oscilai entre mim e tuas afeições mais caras?
Citam a passagem de São Mateus119: "E se recusar
também ouvir a Igreja, considera-o como gentio e publi­
cano . " Isso não diz absolutamente que se deva perseguir
os pagãos e os coletores de impostos do rei: eles são
amaldiçoados, é verdade, mas não entregues ao braço
secular. Longe de retirar desses coletores de impostos
qualquer prerrogativa de cidadão, foram-lhes dados os
maiores privilégios; é a única profissão condenada na
Escritura, e a mais favorecida pelos governos. Portanto,
por que não teríamos por nossos irmãos errantes uma
indulgência equivalente à consideração prodigalizada a
nossos irmãos coletores de impostos?
Uma outra passagem de que se abusou grosseira­
mente é a de São Mateus120 e de São Marcos121, onde é dito
que Jesus, tendo fome de manhã, aproximou-se de uma
figueira na qual encontrou apenas folhas, pois não era

85
_______ Voltaire __________

época dos figos: ele amaldiçoa a figueira, que seca em


seguida.
São dadas várias explicações diferentes desse mila­
gre; mas há uma só que possa autorizar a perseguição?
Uma figueira não pôde dar figos no começo de março e
foi tornada seca: será uma razão para fazer secar nossos
irmãos de dor em todas as épocas do ano? Respeitemos
na Escritura tudo o que pode fazer surgir dificuldades em
nossos espíritos curiosos e vãos, mas não abusemos dis­
so para sermos duros e implacáveis.
O espírito perseguidor, que abusa de tudo, busca ain­
da sua justificativa na expulsão dos mercadores do tem­
plo e na legião de demônios enviada do corpo de um
possuído ao corpo de dois mil animais imundos. Mas
quem não vê que esses dois exemplos são apenas uma
justiça feita pelo próprio Deus a uma contravenção da
lei? Era uma falta de respeito à casa do Senhor transfor­
mar seu adro numa loja de mercadores. Em vão o siné­
drio e os sacerdotes permitiam esse comércio para a co­
modidade dos sacrifícios: o Deus a quem sacrificavam
podia certamente, embora oculto sob a figura humana,
destruir essa profanação; podia do mesmo modo punir
aqueles que introduziam no país rebanhos inteiros proi­
bidos por uma lei que ele próprio havia estabelecido.
Tais exemplos nada têm a ver com perseguições relativas
ao dogma . O espírito de intolerância deve estar apoiado
em razões muito más, já que por toda parte busca os
menores pretextos.
Praticamente o restante das palavras e ações de Je­
sus Cristo prega a doçura, a paciência, a indulgência. É o
pai de família que acolhe o filho pródigo122; é o operário
que vem na última hora 123 e que é pago como os demais;

86
______ Tratado sobre a tolerância ________

é o samaritano caridoso12\ o próprio Jesus justifica seus


discípulos por não jejuarem125; perdoa a pecadora126; con­
tenta-se em recomendar fidelidade à mulher adúltera127;
condescende inclusive à inocente alegria dos convivas
das bodas de Caná128 que, estando já afogueados de vi­
nho, pedem ainda mais: consente em fazer um milagre
em favor deles, transformando água em vinho.
Não se enfurece sequer contra Judas, que deve traí­
lo; ordena a Pedro jamais servir-se da espada129; repreen­
de130 os filhos de Zebedeu que , a exemplo de Elias, que­
riam fazer descer o fogo do céu sobre uma cidade que
não quisera acolhê-lo.
Enfim, morre vítima da inveja. Se ousarmos compa­
rar o sagrado com o profano, e um Deus com um ho­
mem, sua morte, humanamente falando, tem muita se­
melhança com a de Sócrates. O filósofo grego perece
pelo ódio dos sofistas, dos sacerdotes e dos mandatários
do povo: o legislador dos cristãos sucumbe sob o ódio
dos escribas, dos fariseus e dos sacerdotes. Sócrates po­
dia evitar a morte, e não o quis; Jesus Cristo ofereceu-se
voluntariamente . O filósofo grego não apenas perdoou
seus caluniadores e seus juízes iníquos, como pediu-lhes
que tratassem seus filhos da mesma forma, se estes fos­
sem um dia suficientemente felizes para merecer seu ódio
como ele; o legislador dos cristãos, infinitamente supe­
rior, pediu a seu pai que perdoasse seus inimigos131.
Se Jesus Cristo pareceu temer a morte, se a angústia
que sentiu foi tão extrema que chegou a suar sangue132,
o que é o sintoma mais violento e mais raro, foi porque
dignou-se aceitar toda a fraqueza do corpo humano, que
havia assumido. Seu corpo tremia e sua alma era inaba­
lável; ele nos ensinava que a verdadeira força, a verda-

87
_______ Voltaire ___________

deira grandeza consistem em suportar males sob os quais


nossa natureza sucumbe. Há uma extrema coragem em
dirigir-se à morte temendo-a.
Sócrates havia chamado os sofistas de ignorantes e
acusara-os de que tinham má-fé; Jesus, usando de seus
direitos divinos, chamou os escribas133 e os fariseus de hi­
pócritas, insensatos, cegos, maldosos, serpentes, raça de
víboras .
Sócrates não foi acusado d e querer fundar uma nova
seita; também não acusaram Jesus Cristo de ter querido
introduzir uma 1 34 • É dito que os príncipes dos sacerdotes
e todo o conselho buscavam um falso testemunho con­
tra Jesus para fazê-lo perecer.
Ora, se buscavam um falso testemunho, logo não o
censuravam de haver pregado publicamente contra a
lei. De fato, Jesus submeteu-se à lei de Moisés desde sua
infância até sua morte. Circuncidaram-no no oitavo dia,
como todas as outras crianças. Se, depois, foi batizado
no Jordão, tratava-se de uma cerimônia consagrada en­
tre os judeus, como entre todos os povos do Oriente.
Todas as máculas legais limpavam-se pelo batismo. Era
assim a consagração dos sacerdotes: mergulhavam-nos
na água na festa de expiação solene, batizavam-se os
prosélitos.
Jesus observou todos os pontos da lei: festejou todos
os dias de sabá; absteve-se das carnes proibidas; celebrou
todas as festas e, inclusive, antes de sua morte, havia
celebrado a Páscoa; não o acusaram de nenhuma opinião
nova, nem de haver observado algum rito estranho. Nas­
cido israelita, viveu constantemente como israelita.
Duas testemunhas que se apresentaram o acusaram
de haver dito135 que poderia "destruir o santuário de Deus

88
---- Tratado sobre a tolerância ----

e reedificá-lo em três dias" . Tal discurso era incompreen­


sível para os judeus materialistas; mas não era uma acu­
sação de querer fundar uma nova seita.
O sumo sacerdote o interrogou e disse-lhe136: "Eu te
conjuro pelo Deus vivo que nos diga se és o Cristo, o
Filho de Deus . " Não nos informam o que o sumo sacer­
dote entendia por filho de Deus. Algumas vezes essa ex­
pressão era utilizada para designar um justo137, assim
como empregavam-se as palavras filho de Belial para sig­
nificar um homem mau. Os judeus grosseiros não tinham
a menor idéia do mistério sagrado de um filho de Deus,
ele próprio Deus, descendo à terra.
Jesus responde-lhe138: "Tu o disseste; entretanto, eu
vos declaro que desde agora vereis o Filho do homem
assentado à direita do Todo-Poderoso, e vindo sobre as
nuvens do céu."
Essa resposta foi considerada uma blasfêmia pelo
sinédrio irritado. Como este não tinha o direito de justi­
çar, Jesus foi levado ao governador romano da província
e acusado caluniosamente de ser um perturbador da or­
dem pública, que dizia não ser preciso pagar o tributo a
César e que , além do mais, se dizia rei dos judeus. É da
maior evidência, portanto, que foi acusado de um crime
de Estado.
O governador Pilatos, sabendo que ele era galileu,
primeiro o enviou a Herodes, tetrarca da Galiléia. Hero­
des julgou impossível que Jesus pudesse aspirar a ser
chefe de partido e pretender a realeza; tratou-o com des­
prezo e mandou-o de volta a Pilatos, que teve a indigna
fraqueza de condená-lo para apaziguar o tumulto excita­
do contra si próprio, tanto mais que já havia enfrentado
uma revolta dos judeus, pelo que nos conta Josefo . Pila-

89
_______ Voltaire ___________

tos não teve a mesma generosidade manifestada depois


pelo governador Festo139•
Pergunto, agora, se é a tolerância ou a intolerância
que é de direito divino? Se quereis vos assemelhar a Je­
sus Cristo, sede mártires e não carrascos.

90
CAPÍTULO XV

Testemunhos contra a intolerância

É um sacrilégio tirar, em matéria de religião, a liber­


dade aos homens, impedir que escolham uma divinda­
de: nenhum homem, nenhum deus gostaria de um servi­
ço forçado . (Tertuliano, Apologética, cap . XXIV.)
Se usassem de violência para a defesa da fé, os bis­
pos se oporiam a ela. (Santo Hilário, liv. 1.)
A religião forçada não é mais religião; é preciso per­
suadir, e não coagir. A religião não se impõe . (Lactâncio,
liv. III .)
É uma execrável heresia querer atrair pela força, à
base de pancadas e encarceramento, os que não pude­
ram ser convencidos pela razão. (Santo Atanásio, liv. 1.)
Nada é mais contrário à religião do que a coerção.
(São Justino, mártir, liv. V.)
Haveremos de perseguir aqueles que Deus tolera?,
indaga Santo Agostinho, antes que sua querela com os
donatistas o tornasse demasiado severo.
Que nenhuma violência seja praticada contra os ju­
deus. (Quarto concílio de Toledo, qüinquagésimo-sexto
cânone.)
Aconselhai, e não forçai. ( Carta de São Bernardo.)
Não pretendemos destruir os erros pel a violência.
(Discurso do clero da França a Luís XIII.)

91
______ Voltaire __________

Sempre desaprovamos as vias de rigor. (Assembléia


do clero, 1 1 de agosto de 1 560 .)
Sabemos que .a fé se persuade e não se impõe. (Flé­
chier, bispo de Nímes, carta 19.)
Não devemos sequer empregar termos insultantes.
(Bispo Du Bellai, núma Instrução pastoral.)
Lembrai-vos que as doenças da alma não se curam
pela coerção e pela violência. (Cardeal Le Camus, Instru­
ção pastoral de 1 688.)
A cobrança forçada de uma religião é uma prova
evidente de que o espírito que a conduz é um espírito
inimigo da verdade. (Dirois, doutor da Sorbonne, liv. VI ,
cap. iv.)
A violência é capaz de gerar hipócritas; não se per­
suade quando por toda parte se fazem ressoar ameaças.
(Tillemont, História eclesiástica, tomo VI.)
Pareceu-nos conforme à eqüidade e à correta razão
seguir o exemplo da antiga Igreja , que jamais usou de
violência para estabelecer e expandir a religião. (Adver­
tência do parlamento de Paris a Henrique I!.)
A experiência nos ensina que a violência é mais ca­
paz de irritar do que de curar um mal que tem sua raiz
no espírito, etc. (De Thou, Epístola dedicatória a Henri­
que /V)
A fé não se incute a golpes de espada. (Cerisiers, So­
bre os reinados de Henrique IV e Luís XIII)
É um zelo bárbaro pretender plantar a religião nos
corações, como se a persuasão pudesse ser o efeito da
coerção. (Boulainvilliers, Estado da França.)
Com a religião ocorre o mesmo que com o amor: a
imposição nada consegue, a coerção muito menos; não há
nada mais independente do que amar e crer. (Amelot de la
Houssaie, a propósito das Cartas do cardeal d'Ossat.)

92
______ Tratado sobre a tolerância ________

Se o céu vos amou o bastante para vos fazer ver a ver­


dade, ele vos proporcionou uma grande graça; mas cabe
aos fllhos que têm a herança do pai odiar os que não a
tiveram? (Montesquieu, O espírito das leis, liv. )O(V140.)
Poderíamos fazer um livro enorme, composto ape­
nas de semelhantes passagens. Nossas histórias, nossos
discursos, nossos sermões, nossas publicações de moral,
nossos catecismos, respiram todos, ensinam todos atual­
mente esse dever sagrado de indulgência. Por qual fata­
lidade, por qual inconseqüência desmentiríamos na prá­
tica uma teoria que anunciamos todos os dias? Quando
nossos atos desmentem nossa moral, é que acreditamos
haver alguma vantagem em fazer o contrário do que en­
sinamos; mas certamente não há vantagem alguma em
perseguir os que não são de nossa opinião e em fazer­
nos odiar por isso. Há, portanto, mais uma vez, absurdo
na intolerância. Mas, dirão, os que têm interesse em ator­
mentar as consciências não são absurdos. É a esses que
se destina o capítulo seguinte.

93
CAPÍTULO XVI

Diálogo entre um moribundo


e um homem saudável

Um cidadão estava agonizando numa cidade da pro­


víncia; um homem em bom estado de saúde veio insul­
tá-lo em seus últimos momentos, dizendo-lhe:

O bárbaro

Miserável! pensa como eu imediatamente: assina es­


te papel, confessa que cinco proposições encontram-se
num livro que nem tu nem eu jamais lemosw; admite já
a opinião de Lanfranc contra Bérenger, de Santo Tomás
contra São Boaventura ; adota o segundo concílio de
Nicéia contra o concílio de Frankfurt; explica-me agora
mesmo de que maneira estas palavras: "Meu pai é maior
do que eu"142 significam expressamente : "Sou tão grande
quanto ele . "

O moribundo

Mal escuto o que me dizes; a s ameaças que me fazes


che gam confusamente aos meus ouvidos, perturbam mi­
nha alma, tornam minha morte medonha. Pelo amor de
Deus, tem piedade de mim.

9S
_______ Voltaire __________

O bárbaro

Piedade! não posso tê-la se não fores da minha opi­


nião em tudo.

O moribundo

Ai! percebe que nestes últimos momentos todos os


meus sentidos estão abalados, todas as portas do meu
entendimento fechadas, minhas idéias fogem, meu pen­
samento extingue-se. Tenho condições de discutir?

O bárbaro

Pois bem, se não podes crer o que quero, diz que


crês, e isso me basta.

O moribundo

Como posso perjurar para te agradar? Em breve esta­


rei diante de Deus, que pune o perjúrio.

O bárbaro

Não importa; terás o prazer de ser enterrado num


cemitério, e tua mulher, teus filhos, terão do que viver.
Morre como hipócrita; a hipocrisia é algo bom: é, como
dizem, uma homenagem que o vício presta à virtude143•
Um pouco de hipocrisia, meu amigo, o que isso custa?

96
______ Tratado sobre a tolerância ________

O moribundo

Ai! desprezas a Deus ou não o reconheces, já que me


pedes uma mentira na hora da morte, tu que em breve
serás julgado por ele e responderás por essa mentira.

O bárbaro

O que dizes, insolente! Que não reconheço Deus?

O moribundo

Perdão, meu irmão, receio que não o conheças. Aque­


le que eu adoro reanima neste momento minhas forças
para dizer-te com uma voz moribunda que, se acreditas
em Deus, deves ter caridade para comigo. Ele me deu
minha mulher e meus filhos, não faças com que morram
de miséria. Quanto ao meu corpo, faz dele o que quise­
res: entrego-o a ti. Mas crê em Deus, eu te suplico.

O bárbaro

Faz, sem discutir, o que te disse. Estou te mandando!

O moribundo

E que interesse tens em me atormentar tanto?

O bárbaro

Como! que interesse? Se tiver tua assinatura, ela me


valerá um bom canonicato.

97
_______ voltaire ___________

O moribundo

Ah! meu irmão, eis meu último momento; peço a


Deus, ao morrer, que ele te toque e te converta.

O barbaro

O diabo carregue o impertinente, que não assinou!


Vou assinar por ele e falsificar sua letra144•

A carta a seguir é uma confirmação da mesma moral.

98
CAPÍTULO XVII

Carta escrita ao jesuita


Le TeUier, por um beneficiado,
em 6 de maio de 1 714 145

Meu reverendo padre,

Obedeço às ordens que recebi de Vossa Reverência


para apresentar-lhe os meios mais convenientes de livrar
Jesus e sua Companhia de seus inimigos. Creio que não
restam mais de quinhentos mil huguenotes no reino, al­
guns dizem um milhão, outros um milhão e quinhentos
mil. Mas, seja qual for o número, eis aqui minha opinião,
que submeto humildemente à vossa, como é meu dever.
1 Q É fácil pegar num só dia todos os pastores protes­
tantes e enforcá-los juntos numa mesma praça, não so­
mente para a edificação pública, mas pela beleza do es­
p etáculo.
2Q Eu mandaria assassinar em seus leitos todos os pais
e mães, porque se os matássemos nas ruas isso poderia
causar algum tumulto; vários inclusive poderiam esca­
par, o que deve ser evitado acima de tudo. Essa execu­
ção é um corolário necessário de nossos princípios; pois,
se devemos matar um herege, como tantos grandes teó­
l ogos o provam, é evidente que devemos matar todos.
3Q Após a execução, eu faria todas as jovens serem
desposadas por bons católicos, visto que não convém

99
_______ Voltaire __________

despovoar demasiadamente o Estado depois da última


guerra; mas em relação aos rapazes de 14 e 1 5 anos, já
imbuídos de maus princípios, que não podemos vanglo­
riar-nos de destruir, minha opinião é que todos devem
ser castrados, a fim de que essa corja não mais se repro­
duza. Quanto aos garotos menores, serão educados em
vossos colégios e açoitados até que saibam de cor as obras
de Sanchez e de Molina.
4º Penso, a menos que esteja enganado, que o mes­
mo deve ser feito a todos os luteranos da Alsácia, visto
que, no ano de 1 704, notei duas velhas daquela região
que riam no dia da batalha de Hochstedt.
5º A questão dos jansenistas parecerá talvez um pou­
co mais embaraçosa. Calculo que são uns seis milhões
pelo menos; mas um espírito como o vosso não se deve
assustar com isso. Incluo entre os jansenistas todos os
parlamentos, que tão indignamente apóiam as liberda­
des da Igreja galicana. Cabe à Vossa Reverência examinar,
com vossa costumeira prudência, os meios de submeter
esses espíritos indesejáveis. A conspiração dos barris de
pólvora, na Inglaterra, não teve o sucesso desejado, por­
que um dos conjurados teve a indiscrição de querer sal­
var a vida de um amigo; mas, como não tendes amigo,
não há que temer tal inconveniente: vos será muito fácil
fazer explodir todos os parlamentos do reino com a in­
venção do monge Schwartz, chamada pu/vis pyrius146•
Calculo que serão precisos, um a ci ona n d o o outro, trin­
ta e seis barris de pólvora para cada parlamento, logo,
multiplicando doze parlamentos147 por trinta e seis barris,
isso perfaz apenas quatrocentos e trinta e dois barris, que,
a cem escudos a peça, compõem a soma de cento e vin­
te e nove mil e seiscentas libras: é uma bagatela para o
reverendo padre geral.

100
------ Tratado sobre a tolerância ------

Uma vez destruídos os parlamentos, dareis seus car­


gos aos membros de vossa congregação, que estão per­
feitamente a par das leis do reino.
6Q Será fácil envenenar o cardeal de Noailles, que é
um homem simples e não desconfia de nada.
Vossa Reverência empregará os mesmos meios de
conversão junto a alguns bispos renitentes; seus bispa­
dos passarão para as mãos dos jesuítas, mediante uma
carta do papa. Sendo, então, todos os bispos do partido
da boa causa e todos os párocos habilmente escolhidos
pelos bispos, eis o que sugiro ao bom arbítrio de Vossa
Reverência.
7Q Como dizem que os jansenistas comungam pelo
menos na Páscoa, não seria difícil salpicar as hóstias com
a droga utilizada para fazer justiça ao imperador Henri­
que VII. Um crítico me dirá talvez que se correria o risco,
nessa operação, de envenenar também os molinistas . A
objeção é forte; mas não há projeto que não tenha in­
convenientes, não há sistema que não cause danos sob
algum aspecto. Se nos detivéssemos diante dessas pe­
quenas dificuldades, jamais conseguiríamos nada. E, aliás,
como se trata de buscar o maior bem possível, não con­
vém escandalizar-se se esse grande bem arrasta consigo
algumas más conseqüências, que não merecem conside­
ração alguma .
Nada ternos a nos censurar. Está demonstrado que
todos os pretensos reformados, todos os jansenistas, es­
tão prometidos ao inferno; assim, não fazemos mais que
apressar o momento em que devem tomar posse.
Não é menos claro que o paraíso pertence de di­
reito aos molinistas; logo, fazendo-os perecer inadverti­
damente e sem nenhuma má intenção, aceleramos sua

101
_______ Voltaire __________

alegria. Em ambos os casos, somos ministros da Provi­


dência.
Quanto àqueles que poderiam ficar um pouco as­
sombrados com o número, Vossa Paternidade poderá ex­
plicar-lhes que, desde os dias florescentes da Igreja até
1 707, isto é, em cerca de catorze séculos, a teologia pro­
vocou o massacre de mais de cinqüenta milhões de ho­
mens; e não proponho enforcar, degolar, ou envenenar
senão uns seis milhões e quinhentos mil.
Poderão ainda contrapor, talvez, que minha conta
não é justa e que violo a regra de três; pois, dirão, se
em catorze séculos só pereceram cinqüenta milhões de
homens por distinções, dilemas e antilemas teológicos,
isso representa apenas trinta e cinco mil e setecentas e
catorze pessoas por ano, logo, eu mato seis milhões,
quatrocentas e sessenta e quatro mil e duzentas e oiten­
ta pessoas a mais na fração correspondente ao presen­
te ano.
Mas, em verdade, essa contenda é bastante pueril;
pode-se mesmo dizer que é ímpia, pois não percebem,
por meu procedimento, que salvo a vida de todos os
católicos até o fim do mundo? Jamais se faria nada, se se
quisesse responder a todas as críticas. Sou, com um pro­
fundo respeito a Vossa Paternidade,
seu mui humilde, devoto e benigno R . . . 148
(natural de Angoulême , prefeito da Congregação)

Esse projeto não pôde ser executado porque o pa­


dre Le Tellier viu nele algumas dificuldades e porque Sua
Paternidade foi exilada no ano seguinte. Mas, como é
preciso examinar os prós e os contras, vejamos em que
casos se poderia legitimamente seguir em parte as idéias

102
____ Tratado sobre a tolerância ________

do correspondente do padre Le Tellier. Parece que seria


difícil executar o projeto em todos os pontos; mas con­
vém examinar em que ocasiões deve-se aplicar o suplí­
cio da roda ou da forca, ou condenar às galés pessoas
que não são da nossa opinião. Esse é o objeto do próxi­
mo artigo.

1 03
CAPÍTULO XVIII

Únicos casos em que a intolerância


é de direito humano

Para que um governo não tenha o direito de punir os


erros dos ho mens , é necessário que esses erros não sejam
crimes; eles só são crimes quando pe rtu rbam a socieda­
de ; perturbam a sociedade a partir do momento em que
ins pira m o fanatismo. Cumpre, pois, que os homens co­
mecem por não ser fanáticos para merec e r a tolerância .
Se alguns jovens jesuítas, sabendo que a Igreja os
reprovou com horror, que os jansenistas são condenados
por uma bula e que, portanto, os jansenistas são reprova­
dos, decidem queimar uma casa dos padres do Oratório
porque Quesnel , teólogo dessa congregação , era janse­
nista, é cl aro que será necessário punir esses jesuítas.
Do mesmo modo, se eles divulgaram máximas cen­
suráveis, se sua instituição é contrária às leis do reino,
não há como não dissolver sua companhia e abolir os je­
suítas para fazer deles cidadãos, o que, no fundo, é u m
mal imaginário e um bem real para eles. Pois onde está
o mal de vestir um hábito curto em vez de uma batina, e
de ser livre ao invés de ser escravo? Nos períodos de
paz, regimentos inteiros são reformados sem queixas; por
que os jesuítas fazem tamanha gritaria quando os refor­
mamos para obter a paz?

105
_______ Voltaire ___________

Se os franciscanos, tomados de um santo zelo pela


Virgem Maria, forem demolir a Igreja dos dominicanos,
que pensam que Maria nasceu no pecado original, sere­
mos obrigados a tratar os franciscanos mais ou menos
como os jesuítas.
O mesmo diremos dos luteranos e dos calvinistas.
Não importa que digam: Seguimos os movimentos de
nossa consciência; é preferível obedecer a Deus do que
aos homens149; somos o verdadeiro rebanho, devemos
exterminar os lobos . Nesse caso, é evidente que são eles
próprios os lobos.
Um dos mais espantosos exemplos de fanatismo foi
uma pequena seita na Dinamarca, cujo princípio era o
melhor do mundo150. Esses crentes queriam obter a salva­
ção eterna de seus irmãos; mas as conseqüências desse
princípio eram singulares . Eles sabiam que todos os re­
cém-nascidos que morrem sem batismo são condenados
e que os que têm a felicidade de morrer imediatamente
após receberem o batismo gozam da gló ria eterna . Saíam,
pois, a estrangular os meninos e meninas recém-batiza­
dos que encontrassem. Certamente, era fazer-lhes o maior
bem possível: a uma só vez eram preservados do peca­
do, das misérias desta vida e do inferno, e enviados infa­
livelmente ao céu . Mas essas pessoas caridosas não con­
sideravam que não é permitido fazer um pequeno mal
tendo em vista um grande bem; que não tinham nenhum
direito sobre a vida dessas criancinhas; que a maior parte
dos pais e mães são suficientemente materialistas para
preferirem ter junto deles seus filhos e filhas do que vê­
los estrangulados para ir ao paraíso , e que , em uma pala­
vra, o magistrado deve punir o homicídio, ainda que fei­
to com boa intenção.

1 06
------ Tratado sobre a tolerância ------

Os judeus aparentemente teriam mais do que nin­


guém o direito de nos roubar e nos matar, pois, emb ora
haja centenas de exemplos de tolerância no Antigo Tes­
tamento, há também alguns casos e algumas leis de
rigor. Deus ordenou-lhes às vezes matar os idólatras, e
não poupar senão as jovens núbeis; eles nos consideram
idólatras e, embora hoje os toleremos, poderiam, de fato,
se dominassem, deixar no mundo apenas nossas filhas.
Teriam sobretudo a obrigação indispensável de as­
sassinar todos os turcos, não resta a menor dúvida. Pois
os turcos possuem o país dos eteus, jebuseus, a morreus ,

jerseneus, heveus, araceus, cineus, hamateus , samarita­


nos, e todos esses povos foram votados ao anátema;
s u a s terras, que tinham mais de vinte e cinco léguas de
comprimento, foram dadas aos judeus por vários pactos
consecutivos; estes devem retomar o qu e é seu e que foi
usurpado pelos turcos maometanos há ma i s de mil anos.
Se o s judeus pensassem deste modo hoje é claro
,

que não haveria outra resposta a dar-lhes senão mandá­


los às galés.
Estes são praticamente os únicos casos em que a in­
tolerância parece ra z o á ve l
.

1 07
CAPÍTULO XIX

Relato de uma disputa


de controvérsia na China

Nos primeiros anos do reinado do grande imperador


Kang-hi, um mandarim da cidade de Cantão ouviu de sua
casa uma grande gritaria vinda da casa vizinha . Mandou
averiguar se matavam alguém; disseram-lhe que era o
capelão da companhia dinamarquesa, um capelão da Ba­
távia e um jesuíta que discutiam; o mandarim chamou os
três à sua presença, mandou servir-lhes chá e doces, e
perguntou-lhes qual o motivo da discussão.
O jesuíta respondeu-lhe que era muito doloroso
para ele, que sempre tinha razão, ter de lidar com gente
que sempre estava errada; que a princípio havia argu­
mentado com a maior calma, mas que no final perdera a
paciência.
O mandarim fez-lhes ver, com toda a discrição pos­
sível, o quanto a polidez é necessária na disputa, disse­
lhes que na China jamais se irritavam e perguntou-lhes
do que se tratava.
Respondeu-lhe o jesuíta: "Excelência, faço-vos juiz
da questão; estes dois senhores recusam-se a submeter­
se às decisões do concílio de Tremo.
- Isso me e spanta - fez o mandarim. E voltando-se
para os dois refratários: "Parece-me que deveríeis respei-

109
_______ Voltaire ___________

tar as opiniões de uma grande assembléia . Não sei o que


vem a ser o concílio de Trento; mas várias pessoas são
sempre mais instruídas do que uma só. Ninguém deve
acreditar que sabe mais do que os outros e que a razão
só habita em sua cabeça . É assim que ensina nosso gran­
de Confúcio . E se acreditais em mim, fareis muito bem
em confiar na autoridade do concílio de Trento. "
O dinamarquês tomou então a palavra e disse: "Vos­
sa Exc elência fala com a maior sabedoria. Respeitamos
as grandes assembléias como é nosso dever; assim, esta­
mos inteiramente de acordo com várias assembléias rea­
lizadas antes da de Trento. "
- Oh! s e é assim - tornou o mandarim - , peço-vos
perdão, poderíeis ter razão. Sois, portanto, da mesma
opinião vós e vosso colega holandês, contra esse pobre
,

jes u íta?
- Em absoluto - respo ndeu o holandês . - Este
homem tem opiniões quase tão extravagantes quanto as
desse jesuíta, que procura aqui ser gentil convosco . Não
há como concordar com eles.
- Não vos entendo - disse o mandarim. - Não sois
todos os três cristãos? Não viestes todos os três ensinar o
cristianismo em nosso império? E não deveis por conse­
guinte ter os mesmos dogmas?
- Vede, Excelência - falou o jesuíta . - Esses dois aí
são inimigos mortais, e ambos disputam contra mim; é
evidente que ambos estão errados, e que a razão está
apenas do meu l ado.
- Isso não é tão evidente - asseverou o mandarim. -
Poderia perfeitamente ocorrer que estivésse is todos os
três errados; eu teria curiosidade de vos ouvir um após o
outro.

1 10
------ Tratado sobre a tolerâ ncia ------

O jesuíta fez então um longo discurso, durante o


qual o dinamarquês e o holandês davam de ombros; o
mandarim não compreendeu nada. Foi a vez de o dina­
marquês falar; seus adversários olharam-no com pieda­
de, e o mandarim continuou sem compreender. O holan­
dês teve a mesma sorte. Enfim falaram os três juntos, dis­
seram-se grosseiras injúrias . O honesto mandarim com
muita dificuldade conseguiu apaziguá-los e disse-lhes:
" Se quereis que tolerem aqui vossa doutrina, começai
por não serem intolerantes nem intoleráveis. "
Ao sair d a audiência, o jesuíta encontrou u m missio­
nário dominicano; disse-lhe que h a via ganho s u a causa ,
assegurando que a verdade triunfava sempre. O domini­
cano respondeu: "Se eu estivesse lá, não a te ríei s ganho;
eu vos teria persuadido de mentira e idolatria. " A quere­
la esquentou ; o dominicano e o jesuíta agarraram-se
pelos cabelos. O mandarim, informado do escândalo,
mandou os dois para a prisão. Um d e seus ministros per­
gu nto u lhe : "Quanto tempo Vossa Excelência quer que
-

eles fiq u em detidos? - Até q ue e s tej a m de acordo, res ­


pondeu o mandarim. - Ah! , fez o ministro, então ficarão
na prisão p elo resto da vida . - Pois bem, re p l icou o man­
darim, até que se perdoem. - Eles jamais se perdoarão,
d is s e o outro; eu os conheço. - P o i s então, concluiu o
m anda r im , até que finjam perdoar-se . "

111
CAPÍTULO XX

Se é útil manter o povo


na superstição

Tal é a fraqueza do gênero humano e tal sua petver­


sidade, que, para ele, certamente é preferível ser subju­
gado por todas as superstições possíveis, contanto que
não sejam mortíferas, do que viver sem religião. O ho­
mem sempre teve necessidade de um freio e, ainda que
fosse ridículo fazer sacrifícios aos faunos, aos silvanos, às
náiades, era bem mais útil e razoável adorar essas ima­
gens fantásticas da divindade do que entregar-se ao ateís­
mo. Um ateu argumentador, violento e poderoso seria
um flagelo tão funesto quanto um supersticioso sangui­
nário.
Quando os homens não têm noções corretas da di­
vindade, as idéias falsas as substituem, assim como nos
tempos difíceis trafica-se com moeda ruim, quando não
se tem a boa. O pagão deixava de cometer um crime, com
medo de ser punido pelos falsos deuses; o malabar teme
ser punido por seu pagode. Onde quer que haja uma
sociedade estabelecida, uma religião é necessária: as leis
protegem contra os crimes conhecidos , e a religião, con­
tra os crimes secretos.
Mas, quando os homens abraçam uma religião pura
e santa, a superstição torna-se não apenas inútil como

1 13
_______ Voltaire __________

muito perigosa . Não se deve querer alimentar com bolo­


tas aqueles que Deus digna-se alimentar com pão.
A superstição é, em relação à religião, o que a astro­
logia é em relação à astronomia, a filha muito insensata
de uma mãe muito sensata. Essas duas filhas subjugaram
por muito tempo a terra inteira.
Quando, em nossos séculos de barbárie, havia ape­
nas dois senhores feudais que tinham em sua casa um
Novo Testamento, podia ser perdoável apresentar fábu­
las ao vulgo, isto é, a esses senhores feudais, a suas mu­
lheres imbecis e aos brutos, seus vassalos; faziam-nos
acreditar que São Cristóvão havia levado o Menino Jesus
de uma margem do rio à outra; alimentavam-nos com
histórias de feiticeiros e possuídos; eles imaginavam fa­
cilmente que São Genou curava a gota e que Santa Clara
curava os olhos enfermos. As crianças acreditavam no lo­
bisomem, e os adultos, no cordão de São Francisco. O
número de relíquias e{a incontável.
A ferrugem de tantas superstições subsistiu ainda al­
gum tempo entre os povos, mesmo depois de a religião
ter sido finalmente depurada. Sabe-se que , quando o
bispo Noailles mandou retirar e lançar no fogo a supos­
ta relíquia do umbigo santo de Jesus Cristo, toda a cidade
de Châlons moveu-lhe um processo; mas ele teve cora­
gem e devoção, e acabou convencendo os habitantes da
região de que era possível adorar Jesus Cristo em espíri­
to e em verdade, sem ter seu umbigo numa igreja .
O s chamados jansenistas contribuíram bastante para
desenraizar insensivelmente no espírito da nação a maior
parte das falsas idéias que desonravam a religião cristã .
Deixou-se de acreditar que bastava recitar a oração dos
trinta dias à Virgem Maria para obter tudo o que se que­
ria e para pecar impunemente .

1 14
______ Tratado sobre a tolerâ ncia ------

Enfim a burguesia começou a suspeitar que não era


Santa Genoveva quem trazia ou parava a chuva, mas que
o próprio Deus dispunha dos elementos. Os monges fica­
ram espantados de que seus santos não fizessem mais
milagres; e, se os escritores da Vida de São Francisco Xa­
vier voltassem ao mundo, não ousariam escrever que este
santo ressuscitou nove mortos151, que foi visto ao mesmo
tempo no mar e em terra, e que, tendo seu crucifixo caí­
do no mar, um caranguejo o veio trazer-lhe de volta.
O mesmo aconteceu com as excomunhões. Nossos
historiadores nos dizem que, quando o rei Roberto foi
excomungado pelo papa Gregório V, por ter desposado
sua comadre, a princesa Berta, seus criados lançavam
pelas janelas as carnes que haviam servido ao rei e que
a rainha Berta deu à luz um ganso, em punição desse ca­
samento incestuoso. É improvável hoje que os mordo­
mos de um rei da França excomungado lançassem seu
jantar pela janela e que a rainha trouxesse ao mundo um
gansinho em semelhante caso.
Se persistem alguns convulsionários em alguma es­
quina de arrabalde152, trata-se de uma pediculose que só
afeta a mais vil populaça. A cada dia a razão penetra na
França , tanto nas lojas dos comerciantes como nas man­
sões dos senhores. Cumpre, pois, cultivar os frutos des­
sa razão, tanto mais por ser impossível impedi-los de
nascer. Não se pode governar a França , depois de ela ter
sido esclarecida pelos Pascal, os Nicole os Arnauld, os
,

Bossuet, os Descartes, os Gassendi, os Bayle, os Fonte­


nelle, etc . , como a governavam no tempo dos Garasse e
dos Menot.
Se os mestres de erros, refiro-me aos grandes, por
tanto tempo pagos e honrados para embrutecer a espé-

115
_______ Voltaire ___________

cie humana, ordenassem hoje que o grão deve apodre­


cer para germinar153; que a terra está imóvel sobre seus
fundamentos, que ela não gira ao redor do Sol; que as
marés não são um efeito natural da gravitação, que o arco­
íris não é formado pela refração e a reflexão dos raios lu­
minosos, etc . , e se se baseassem em passagens mal com­
preendidas da Sagrada Escritura para fundamentar suas
ordens, como seriam vistos por todos os homens instruí­
dos? O termo animais seria demasiado forte? E se esses
sábios mestres empregassem a força e a perseguição para
fazer reinar sua ignorância insolente, o termo animais
ferozes seria descabido?
Quanto mais as superstições dos monges forem des­
prezadas, tanto mais os bispos serão respeitados e os pa­
dres considerados; estes fazem apenas o bem, enquanto
as superstições monacais ul� montanas causam muito
mal. Mas, de todas as superstições, a mais perigosa não
é a de odiar o próximo por suas opiniões? E não é evi­
dente que seria ainda mais sensato adorar o santo umbi­
go, o santo prepúcio, o leite e o manto da Virgem Maria,
do que detestar e perseguir seu irmão?

1 16
CAPÍTULO XXI

É preferível a virtude à ciência

Quanto menos dogmas, menos disputas; e quanto me­


nos disputas, menos infelicidades. Se isso não for verda­
de, estou errado.
A religião é instituída para nos tornar felizes nesta e
na outra vida . O que é preciso para ser feliz na vida futu­
ra? Ser justo.
Para ser feliz nesta, dentro do que permite a miséria
de nossa natureza, o que é preciso? Ser indulgente.
Seria o cúmulo da loucura pretender fazer todos os
homens pensarem de uma maneira uniforme sobre a me­
tafísica . Seria bem mais fácil subjugar o universo inteiro
pelas armas do que subjugar todos os espíritos de uma
única cidade .
Euclides conseguiu sem dificuldade persuadir todos
os homens sobre as verdades da geometria. Por quê? Por­
que não há uma só que não seja um corolário evidente
deste pequeno axioma: dois e dois são quatro. Não se dá
exatamente a mesma coisa na mistura da metafísica com
a teologia .
Quando o bispo Alexandre e o padre Arios, ou Arius,
começaram a discutir sobre a maneira como o Lagos era
uma emanação do Pai, o imperador Constantino escre-

1 17
_______ Voltaire ___________

veu-lhes estas palavras inspiradas em Eusébio e em Só­


crates : " Sois uns grandes tolos em discutir sobre coisas
que não p odeis entender. "
Se as duas partes tivessem sido bastante sensatas para
admitir que o imperador tinha razão, o mundo cristão não
teria se ensangüentado durante trezentos anos.
Com efeito, que pode haver de mais tolo e mais ter­
rível do que dizer aos homens: "Meus amigos , não basta
sermos súditos fiéis, filhos submissos, pais amorosos , vi­
zinhos equitativos, praticar todas as virtudes, cultivar a
amizade, evitar a ingratidão, adorar Jesus Cristo em paz .
Cumpre ainda saber como fomos engendrados por toda
a eternidade e, se não souberdes distinguir o omousíon
na hipóstase, afirmamos que havereis de arder no fogo
e tern o ; e, e n q u a n t o não chega esse momento , co m eç a
­

remos por vos degolar?"


Se t iv essem aprese fi\ado uma tal resolução a um Ar­
quimedes a um Posidônio, a um Vanão, a um Catão, a um
,

Cícero, o que eles teriam respondido?


Constantino não perseverou em sua resolução de im­
por silêncio aos dois antagonistas . Podia ter chamado es ­

ses campeões do ergoti s mo a seu palácio; podia ter-lhes


perguntado com que autoridade perturbavam o mundo:
"Acaso possuís os títulos da família divina? Que vos im­
porta se o Lagos é produzido ou engendrado, contanto
que lhe sejamos fiéis, contanto que preguemos uma boa
moral e a pra tiqu emos dentro do possível? Cometi mui­
tas faltas em minha vida, e vós também; sois ambiciosos,
e eu também; o império custou-me patifarias e cruelda­
des; assassinei quase todos os meus próximos ; arrepen­
do-me disso: quero expiar meus crimes tornando o im­
pério ro mano tranqüilo Não me impeçais de fazer o úni-
.

1 18
______ Tratado sobre a tolerâ ncia ________

co bem capaz de apagar minhas antigas barbáries; aju­


dai-me a acabar meus dias em paz . " Talvez não obtives­
se nada dos contendores; talvez fosse convidado a presi­
dir um concílio com a longa túnica vermelha, com a ca­
beça coberta de pedrarias.
Eis, no entanto, o que abriu a porta a todos os flage­
los que vieram da Á sia inundar o Ocidente. De cada ver­
sículo contestado brotou uma fúria a rmada de um sofis­
ma e de um punhal, que tornou os homens insensatos e
cruéis. Os hunos, os hérulos, os godos e os vândalps,
que surgiram depois, fizeram infinitamente menos mal, e
o maior que fizeram foi finalmente prestarem-se eles
também a essas disputas fatais.

1 19
CAPÍTULO XXII

Acerca da tolerância universal

Não é preciso uma grande arte, uma eloqüên c ia mui­


to rebuscada, para provar que os cristãos devem tolerar­
se uns aos outros. Vou mais longe: afirmo que é preciso
considerar todos os homens como nossos irmãos. O quê!
O tu rco meu i rmã o? O chinês? O judeu? O siamês? Sim,
,

certamente; porventura não somos todos filhos do mes­


mo Pai e criaturas do mesmo Deus?
Mas esses povos nos desprezam; mas eles nos tra­
tam de idólatras! Pois bem, eu lhes direi que estão erra­
dos! Penso que poderia ao menos surpreender a orgu­
lhosa obstinação de um imã ou de um monge budista , se
lhes fal a s se mais ou menos assim:
"Este pequeno globo, que não é mais do que um
ponto, gira no espaço como tantos outros gl o bos ; esta­
mos p erdidos nessa imensidão. O homem, com cerca de
um metro e sessenta de altura, é seguramente algo pe­
queno na criação. Um desses seres imperceptíveis diz a
algun s de seus vizinhos, na Arábia ou na Cafraria: Es­
cutem-me, pois o Deus de todos esses mundos me falou:
há nove c entos milhões de pequenas formigas como nós
sobre a terra , mas apenas o meu formigueiro é bem-visto
por Deus; todos os outros lhe causam horror desde toda

121
_______ Volta ire __________

a eternidade; meu formigueiro será o único afortunado,


e todos os outros serão desafortunados . "
Eles me agarrariam então e me perguntariam quem
foi o louco que disse essa besteira. Eu seria obrigado a
responder-lhes : "Foram vocês mesmos . " Procuraria em
seguida acalmá-los, mas seria bem difícil.
Depois falaria aos cristãos e ousaria dizer, por exem­
plo, a um dominicano inquisidor em nome da fé: "Meu
irmão, sabeis que cada província da Itália tem seu lin­
guajar e que não se fala em Veneza e em Bérgamo como
em Florença. A Academia da Crusca fixou a língua; seu
dicionário é uma norma que deve ser respeitada , e a Gra­
mática de Buonmattei um guia infalível a ser seguido;
mas julgais que o cônsul da Academia e, na sua ausên­
cia , Buonmattei, poderiam em sã consciência mandar cor­
tar a língua de todos os venezianos e bergamascos que
persistissem no seu patoá?"
O inquisidor me responde: "Há uma grande diferen­
ça . Trata-se aqui da salvação de vossa alma; é para o vos­
so bem que o diretório da Inquisição ordena que vos
prendam por denúncia de uma única pessoa, ainda que
ela seja irilllm e e já condenada pela Justiça; que não te­
nhais advogado para vos defender; que o nome de vosso
acusador nem sequer vos seja conhecido; que o inquisi­
dor vos prometa perdão e, em seguida, vos condene;
que ele vos submeta a cinco torturas diferentes e que ,
depois, sejais chicoteado, o u mandado à s galés, o u quei­
mado em cerimônia154. O padre Ivonet, o doutor Cucha­
lon, Zanchinus, Campegius, Roias, Felynus, Gomarus , Dia­
barus e Gemelinus155 são claros nesse ponto e essa pie­
dosa prática não pode sofrer contradição. "
Eu tomaria a liberdade de responder-lhe: "Meu ir­
mão, talvez tenhais razão; estou convencido do bem que

122
______ Tratado sobre a tolerância ________

quereis me fazer; mas eu não poderia ser salvo sem tudo


isso?"
É verdade que esses horrores absurdos não man­
cham todos os dias a face da terra; mas foram freqüen­
tes, e com eles facilmente se faria um volume bem mais
grosso do que os evangelhos que os reprovam. Não só é
cruel perseguir nesta curta vida os que não pensam
como nós, como também suponho ser ousado demais
pronunciar sua condenação eterna. Parece-me que não
compete a átomos de um momento, tais como somos,
antecipar as decisões do Criador. Estou longe de comba­
ter esta sentença: "Fora da Igreja não há salvação . " Res­
peito-a, assim como tudo o que ela ensina , mas, em ver­
dade, conhecemos todos os caminhos de Deus e a ex­
tensão de sua misericórdia? Não é lícito confiar nele
tanto quanto temê-lo? Não nos basta ser fiéis à Igreja? Se­
rá preciso que cada indivíduo usurpe os direitos da Di­
vindade e decida por sua conta a sorte eterna de todos
os homens?
Quando vestimos luto por um rei da Suécia, da Di­
namarca, da Inglaterra ou da Prússia, dizemos que vesti­
mos luto por um réprobo que arde eternamente no infer­
no? Há na Europa quarenta milhões de h abi ta n te s que
não pertencem à Igreja de Roma; diremos a cada um de­
les: "Senhor, como estais infalivelmente condenado, não
quero comer, nem negociar, nem conversar convosco?"
Qual o embaixador da França que , estando presente
à audiência do Grande Senhor, dir-se-á no fundo de seu
coração: Sua Alteza arderá infalivelmente no inferno por
toda a eternidade, por ter-se submetido à circuncisão? Se
acreditasse realmente que o Grande Senhor é inimigo
mortal de Deus e objeto de sua vingança, acaso poderia

1 23
_______ Volta ire ___________

falar-lhe? Deveria ser enviado até ele? Com que homem


poderíamos negociar, que dever da vida civil podería­
mos jamais cumprir, se de fato estivéssemos convencidos
da idéia de que conversamos com um réprobo?
Ó partidários de um Deus clemente! Se tivésseis um
coração cruel; se, adorando aquele cuja única lei consis­
tia nestas palavras : "Amai a Deus e a vosso próximo"156,
tivésseis sobrecarregado essa lei pura e santa de sofismas
e disputas incompreensíveis; se tivésseis semeado a dis­
córdia, ora por causa de uma palavra, ora por causa de
uma simples letra do alfabeto; se considerásseis merece­
dora de castigos eternos a omissão de algumas palavras,
de algumas cerimônias que tantos outros povos não
podiam conhecer, eu vos diria, derramando lágrimas so­
bre o gênero humano: "Transportai-vos comigo ao dia
em que todos os homens serão julgados e em que Deus
dará a cada um conforme suas obras . "
"Vejo todos os mortos dos séculos passados e do nos­
so comparecerem à sua presença. Acreditais realmente
q u e nosso Criador e nos s o Pai dirá ao sábio e virtuoso
Confúcio, ao legislador Sólon, a Pitágoras, a Zaleuco, a
Sócrates, a Platão, aos divinos Antonino, ao bom Traja­
no, a Ti� , às maravilhas do gênero humano, a Epicteto
e a tantos outros, modelos dos homens: Ide, monstros,
sofrer castigos infinitos em intensidade e duração; que
vosso suplício seja eterno como eu! E vós, meus bem­
amados Jean Châtel, Ravaillac, Damiens, Cartouche, etc . ,
que morrestes com a s fórmulas prescritas, partilhai para
sempre à minha direita meu impéri o e minha felicidade?"
Recuais de horror a essas palavras e, depois que elas
me escaparam, nada mais tenho a vos dizer.

1 24
CAPÍTULO XXIII

Oração a Deus

Não é mais aos homens que me dirijo, é a ti, Deus


de todos os seres, de todos os mundos e de todos os
tempos. Se é permitido a frágeis criaturas perdidas na
imensidão e imperceptíveis ao resto do universo, ousar
te pedir alguma coisa, a ti que tudo criaste , a ti cujos de­
cretos são imutáveis e eternos, digna-te olhar com pieda­
de os erros decorrentes de nossa natureza. Que esses er­
ros não venham a ser nossas calamidades. Não nos deste
um coração para nos odiarmos e mãos parà nos matar­
mos . Faz com que nos ajudemos mutuamente a suponar
o fardo de uma vida difícil e passag�ira; que as peque­
nas diferenças entre as roupas que cobrem nossos corpos
diminutos, entre nossas linguagens insuficientes, entre
nossos costumes ridículos, entre nossas leis imperfeitas,
entre nossas opiniões insensatas, entre nossas condições
tão desproporcionadas a nossos olhos e tão iguais dian­
te de ti; que todas essas pequenas nuances que distin­
guem os átomos chamados homens não sejam sinais de
ódio e perseguição; que os que acendem velas em pleno
meio-dia para te celebrar suponem os que se contentam
com a luz de teu sol; que os que cobrem suas vestes com
linho branco para dizer que devemos te amar não detes-

125
_______ Voltaire ___________

tem os que dizem a mesma coisa sob um manto de lã ne­


gra; que seja igual te adorar num jargão formado de uma
antiga Hngua, ou num jargão mais n ovo; que aqueles
cuja roupa é tingida de vermelho ou de violeta, que do­
minam sobre uma pequena porção de um montículo da
lama deste mundo e que possuem alguns fragmentos ar­
redondados de certo metal usufruam sem orgulho o que
chamam de grandeza e riqueza, e que os outros não os
invejem, pois sabes que não há nessas vaidades nem o
que invejar, nem do que se orgulhar.
Possam todos os homens lembrar-se de que são ir­
mãos! Que abominem a tirania exercida sobre as almas,
assim como exe cram o banditismo que toma pela força
o fruto do trabalho e da indústria pacífica! Se os flagelos
da guerra são inevitáveis, não nos odiemos, não nos di­
laceremos uns aos outros em te m pos de paz e empre­
guemos o instante de nossa existência para abençoar
igualmente em mil línguas diversas, do Sião à C a lifórnia,

tua bondade que nos deu esse instante.

1 26
CAPÍTULO XXIV

Pós-escrito

Enquanto trabalhávamos nesta obra , com o único


propósito de tornar os homens mais compassivos e mais
doces, um outro homem escrevia com um propósito in­
teiramente contrário, pois cada um tem sua opinião . Es­
se homem imprimia um pequeno código de persegui­
ção, intitulado A concordância da religião e da h u ma ­
nidade157 (é uma falha d o impressor: leia-se da desuman i­
dade) .
O autor desse santo libelo apóia-se em Santo Agos­
tinho, o qual, após ter pregado a doçura , acabou pregan­
do a perseguição, visto que era então o mais forte e que
mudava freqüentemente de opinião. Cita também o bis­
po de Meaux, Bossuet, que perseguiu o célebre Fénelon,
arcebispo de Cambrai, culpado de ter escrito que Deus
merece ser amado por si mesmo.
Bossuet era eloqüente, admito; o bispo de Hipona,
às vezes inconseqüente, era mais diserto que os outros
africanos, admito-o também; mas tomarei a liberdade de
dizer ao autor desse santo libelo, com Armando, em Les
femmes savantes * :

• A s sabichonas, Moliere .

127
_______ Voltaire __________

Quand sur une personne on prétend se régler,


C'est par les beaux côtés qu 'il lui jaut ressembler.

Quando por alguém nos queremos pautar,


É o seu lado bom que convém imitar.
(Ato I , cena 1 .)

Direi ao bispo de Hipona: Eminência, mudastes de


idéia, concedei-me o direito de ater-me à vossa primeira
opinião; em verdade, considero-a melhor.
Direi ao bispo de Meaux: Eminência, sois um grande
homem; julgo-vos tão sábio, pelo menos, quanto Santo
Agostinho, e muito mais eloqüente; mas por que ator­
mentar tanto vosso confrade, que era tão eloqüente quan­
to vós num outro gênero e era mais amável?
O autor do santo libelo sobre a desumanidade não é
nem um Bossuet, nem um Agostinho. Parece-me o tipo
capaz de ser um excelente inquisidor; gostaria que esti­
vesse em Goa encabeçando esse belo tribunal . Além dis­
so, é homem de Estado e demonstra grandes princípios
de política. "Se houver entre vós, diz ele, muitos hetero­
doxos, tratai-os com deferência, persuadi-os; se não fo­
rem mais que um pequeno número, empregai a forca e
as galés, e estareis agindo bem" ; é o que ele aconselha
nas páginas s9 e 90.
Graças a Deus sou bom católico, não preciso temer
o que os huguenotes chamam de martírio; mas se esse
homem algum dia for primeiro-ministro, como parece pre­
tender em seu libelo, aviso que parto para a Inglaterra
no dia em que tiver suas cartas patentes.
Enquanto isso, posso apenas agradecer à Providên­
cia por permitir que gente de sua espécie seja sempre

1 28
______ Tratado sobre a tolerâ ncia ------

má argumentadora. Ele chega a citar Bayle entre os par­


tidários da intolerância . Isso é razoável e correto; e do
fato de Bayle admitir que os revoltosos e os larápios de­
vam ser punidos, nosso homem conclui que devemos
perseguir a ferro e fogo gente pacífica e de boa-fé .
Quase todo o seu livro é uma imitação d a Apologia
da Noite de São Bartolomeu158 • É o mesmo apologista ou
seu eco. Num ou noutro caso, cumpre esperar que nem
o mestre, nem o discípulo venham a governar o Estado.
Mas, se isso acontecer, apresento-lhes desde já este
arrazoado, a propósito de duas linhas da página 93 do
santo libelo:
"Caberá sacrificar à felicidade da vigésima parte da
nação a felicidade da nação inteira?"
Supondo-se, com efeito, que haja vinte católicos ro­
manos na França contra um huguenote, não pretendo
que o huguenote coma os vinte católicos; mas por que
esses vinte católicos haveriam de comer o huguenote e
por que impedir esse huguenote de casar? Não há bis­
pos , abades, monges que têm terras no Dauphiné , no
Gévaudan, nos arredores de Agde, de Carcassone? Esses
bispos, abades e monges não possuem colonos que têm
a infelicidade de não crer na transubstanciação? Não é
do interesse dos bispos, dos abades, dos monges e do
público que esses colonos tenham famílias numerosas?
Somente àqueles que comungarem de uma única forma
será permitido ter filhos? Em verdade isso não é justo
nem conveniente.
"A revogação do edito de Nantes não produziu tan­
tos inconvenientes quanto lhe atribuem" , diz o autor.
Se de fato lhe atribuem mais do que produziu, exa­
geram, e o erro de quase todos os historiadores é exage-

1 29
_______ Voltaire __________

rar; mas é também o erro de todos os controversistas re­


duzir a nada o mal que lhes censuram. Não creiamos nem
nos doutores de Paris, nem nos pregadores de Amsterdam.
Tomemos por juiz o conde d'Avaux, embaixador na
Holanda de 1 685 a 1 688. Ele diz, na página 1 8 1 , tomo
V1s9, que um único homem propusera descobrir mais de
vinte milhões que os perseguidos faziam sair da França .
Luís XIV responde ao conde d'Avaux: "As notícias que
recebo diariamente de um número infinito de conver­
sões não me deixam mais duvidar de que os mais obsti­
nados seguirão o exemplo dos outros. "
Vê-se, por essa carta de Luís XIV, que ele era muito
crédulo sobre a extensão de seu poder. Diziam-lhe todas
as manhãs: Majestade, sois o maior rei do universo; todo
o universo se vangloriará de pensar como vós assim que
tiverdes falado. Pelisson, que enriquecera no cargo de
primeiro funcionário das finanças; Pelisson, que passara
três anos na Bastilha como cúmplice de Fouquet; Pelis­
son, que de calvinista tornara-se diácono e beneficiado,
que mandava imprimir orações para a missa e versos ga­
lantes para damas, que obtivera o cargo de ecônomo e de
convertedor; Pelisson, dizia eu, trazia a cada três meses
uma grande lista de abjurações a sete ou oito escudos
cada, e fazia seu rei acreditar que , na hora que quisesse,
converteria tociç>s os turcos ao mesmo preço. Revezavam­
se para enganá-lo. Podia Luís XIV resistir à sedução?
No entanto , o mesmo conde d'Avaux notifica ao rei
que certo Vincent emprega mais de quinhentos operá­
rios perto de Angoulême e que sua saída causará prejuí­
zos (tomo V, página 1 94).
O mesmo d'Avaux fala de dois regimentos que o prín­
cipe de Orange já mandou os oficiais franceses refugia-

1 30
______ Tratado sobre a tolerância ________

dos recrutarem , fala de marujos que desertaram de três


navios para servirem nos do príncipe de Orange. Além
desses dois regimentos, o príncipe de Orange forma ain­
da uma companhia de cadetes refugiados, comandados
por dois capitães (página 240) . O embaixador escreve
ainda, em 9 de maio de 1 686, ao sr. de Seignelai, "que não
pode lhe dissimular o dó de ver as manufaturas da Fran­
ça estabelecerem-se na Holanda, de onde não sairão
jamais" .
Juntai a esses testemunhos os de todos os inten�n­
tes do reino em 1 699 e considerai se a revogação do
edito de Nantes não produziu mais mal do que bem,
apesar da opinião do respeitável autor de A concordân­
cia da religião e da desumanidade.
Um marechal da França conhecido por seu espírito
superior dizia há alguns anos: "Não sei se a dragonada
foi necessária; mas é necessário que não se repita. "
Confesso que julguei ir um pouco longe demais, ao
tornar pública a carta do correspondente do padre Le
Tellier, na qual o membro da congregação propõe uma
operação com barris de pólvora160• Dizia-me a mim mes­
mo: Não me acreditarão, julgarão esta carta uma peça
forjada. Meus escrúpulos felizmente dissiparam-se quan­
do li em A concordância da religião e da desumanida­
de, página 1 49, estas doces palavras:
"A extinção total dos protestantes não debilitaria mais
a França do que uma sangria o faria com um doente bem
constituído . "
Esse cristão compassivo, que disse h á pouco que os
protestantes compõem a vigésima parte da nação, quer,
portanto, espalhar o sangue dessa vigésima parte e con­
sidera essa operação apenas como uma sangria na omo­
plata! Deus nos preserve com ele dos três vigésimos!

131
Voltaire ___________

Pois, se esse homem honrado propõe matar a vigé­


sima parte da nação, por que o amigo do padre Le Tellier
não teria proposto explodir, enforcar e envenenar a terça
parte? Portanto, é bem provável que a carta ao padre Le
Tellier tenha sido realmente escrita .
O santo autor irá finalmente concluir que a intole­
rância é algo excelente, "porque não foi, diz ele, expres­
samente condenada por Jesus Cristo" . Mas Jesus Cristo
tampouco condenou os que ateariam fogo nos quatro
cantos de Paris; é uma razão para canonizar os incendiá­
rios? Assim, pois , quando a natureza faz ouvir de um lado
sua voz doce e benfazeja, o fanatismo, esse inimigo da
natureza, solta uivos; e quando a paz apresenta-se aos
homens, a intolerância forja suas armas. ó vós, árbitro
das nações, que destes a paz à Europa, decidi entre o
espírito pacífico e o espírito assassino!

1 3Z
CAPÍTULO XXV

Continuação e conclusão

Tomamos conhecimento de que, em 7 de março de


1763, perante o conselho de Estado reunido em Versa­
lhes, na presença dos ministros e sob a presidência do
chanceler, o sr. de Crosne, promotor de justiça, reapre­
sentou o caso dos Calas com a imparcialidade de um
juiz, a exatidão de um homem perfeitamente instruído, a
eloqüência simples e verdadeira de um orador do Esta­
do, a única que convém numa tal assembléia. Uma quan­
tidade enorme de pessoas de todas as classes aguardava
na galeria do castelo a decisão do conselho. Logo anun­
ciaram ao rei que todas as vozes, sem exceção, haviam
ordenado que o parlamento de Toulouse enviasse ao
conselho todas as peças do processo e os motivos de sua
sentença que fizera Jean Calas morrer no suplício da
roda. Sua Majestade aprovou a decisão do conselho.
Portanto, há humanidade e justiça entre os homens
e, principalmente, no conselho de um rei amado e digno
de sê-lo. O caso de uma infortunada família de obscuros
cidadãos ocupou Sua Majestade, seus ministros, o chan­
celer e todo o conselho, e foi discutido com a mesma
atenção dedicada às maiores questões da guerra e da paz.
O amor pela eqüidade, o interesse pelo gênero humano
_______ Voltaire ___________

conduziram todos os juízes. Graças sejam dadas ao Deus


da clemência, o único a inspirar a eqüidade e todas as
virtudes!
Atestamos que jamais conhecemos esse infortunado
Calas que oito juízes de Toulouse fizeram perecer com
base nos mais frágeis indícios, contra as ordens de nos­
sos reis e contra as leis de todas as nações; nem seu filho
Marc-Antoine, cuja estranha morte lançou esses oito juí­
zes no erro; nem a mãe, tão respeitável quanto infeliz;
nem suas inocentes filhas, que percorreram com ela du­
zentas léguas para deporem aos pés do trono seu infor­
túnio e sua virtude.
Deus sabe que fomos movidos apenas por um espí­
rito de justiça, de verdade e de paz, quando escrevemos
o que pensamos da tolerância, a propósito de Jean Calas,
que o espírito de intolerância fez morrer.
Não julgamos ofender os oito juízes de Toulouse ao
dizer que eles se enganaram, assim como todo o conse­
lho presumiu; ao contrário, abrimos-lhes um caminho
para se justificarem perante a Europa inteira . Esse cami­
nho é reconhecer que indícios equívocos e os gritos de
uma multidão insensata os desviaram da justiça, pedir
perdão à viúva e reparar, tanto quanto possível, a ruína
inteira de uma família inocente, juntando-se àqueles que
a amparam na sua aflição. Esses juízes fizeram o pai mor­
rer injustamente ; cabe a eles substituir o pai junto aos
filhos, supondo-se que os órfãos queiram aceitar uma pe­
quena prova de'u m justo arrependimento. Cabe aos juí­
zes oferecê-la, e à família aceitar ou não.
Compete sobretudo ao senhor David , magistrado de
Toulouse, se foi o primeiro perseguidor da inocência, dar
o exemplo do arrependimento. Ele insultou um pai de

1 34
______ Tratado sobre a tolerância ________

família agonizante no cadafalso. Essa crueldade é bas­


tante inédita; mas já que Deus perdoa, os homens devem
também perdoar quem repara suas injustiças.

Escreveram-me do Languedoc esta carta de 20 de


fevereiro de 1763.
"(. . . ) Vossa obra sobre a tolerância me parece reple­
ta de humanidade e de verdade; mas receio que faça mais
mal do que bem à família Calas. Poderá magoar os oito
juízes que opinaram pelo suplício; eles pedirão ao parla­
mento que vosso livro seja queimado, e os fanáticos
(pois sempre os há) responderão com gritos de furor à
voz da razão, etc . "
Eis minha resposta:
"Os oito juízes de Toulouse podem mandar queimar
meu livro, se ele é bom ; não há nada mais fácil ; também
queimaram as Cartas provinciais, que certamente valiam
bem mais; cada um pode queimar em sua casa os livros
e papéis que desejar.
Minha obra não pode fazer nem bem nem mal aos
Calas, que não conheço. O conselho do rei, imparcial e
firme , julga segundo as leis, segundo a eqüidade , com
base em peças e processos judiciais, e não num texto
que não é jurídico e cujo fundo é absolutamente alheio
ao caso em questão.
Por mais que se imprimam in-fólios a favor ou con­
tra os oito juízes de Toulouse e a favor ou contra a tole­
rância, nem o conselho, nem um tribunal qualquer con­
siderará esses livros como peças do processo.
Esse texto sobre a tolerância é uma petição que a
humanidade apresenta muito humildemente ao poder e
à prudência . Semeio um grão que algum dia poderá pro-

1 35
_______ Voltaire ___________

duzir uma grande colheita. Esperemos tudo do tempo,


da bondade do rei, da sabedoria de seus ministros e do
espírito de razão que começa a espalhar por toda parte
sua luz .
A natureza diz a todos o s homens: Fiz todos vós nas­
cerem fracos e ignorantes, para vegetarem alguns minu­
tos na terra e adubarem-na com vossos cadáveres. Já que
sois fracos, auxiliai-vos; já que sois ignorantes, instruí­
vos e tolerai-vos. Ainda que fôsseis todos da mesma opi­
nião, o que certamente jamais acontecerá , ainda que só
houvesse um único homem com opinião contrária, de­
veríeis perdoá-lo, pois sou eu que o faço pensar como
ele pensa. Eu vos dei braços para cultivar a terra e um
pequeno lume de razão para vos guiar; pus em vossos
corações um germe de compaixão para que uns ajudem
os outros a suportar a vida . Não sufoqueis esse germe,
não o corrompais, compreendei que ele é divino e não
troqueis a voz da natureza pelos miseráveis furores da
escola.
Sou eu apenas que vos une, sem que o saibais, por
vossas necessidades mútuas, mesmo em meio a vossas
guerras cruéis tão levianamente empreendidas, palco eter­
no das faltas, dos riscos e das infelicidades. Sou eu ape­
nas que, numa nação, detém as conseqüências funestas
da divisão interminável entre a nobreza e a magistratura,
entre esses dois corpos e o do clero, e também entre o
burguês e o agricultor. Todos ignoram os limites de seus
direitos; mas contra sua vontade acabam por escutar,
com o tenpo, minha voz que fala a seu coração. Apenas
;
eu conservo a eqüidade nos tribunais, onde, sem mim,
tudo seria entregue à indecisão e aos caprichos, em meio
a um amontoado confuso de leis feitas geralmente ao

1 36
____ Tratado sobre a tolerância ________

acaso e por uma necessidade passageira, diferentes de


província a província, de cidade a cidade e quase sem­
pre contraditórias entre si numa mesma localidade. Só eu
posso inspirar a justiça, quando as leis inspiram apenas
a chicana. Aquele que me escuta julga sempre bem; e
aquele que busca somente conciliar opiniões que se
contradizem acaba por se perder.
Com minhas mãos plantei os alicerces de um pré­
dio imenso; ele era sólido e simples, todos os homens
nele podiam entrar com segurança; quiseram acrescentar
os ornamentos mais bizarros, mais grosseiros e mais inú­
teis; e o prédio começa a desmoronar por todos os la­
dos; os homens pegam as pedras e as atiram uns contra
os outros; grito-lhes: Parai, afastai esses escombros fu­
nestos que são vossa obra e habitai comigo em paz no
prédio inabalável que é o meu161 . "

1 37
Artigo posteriormente acrescentado,
no qual se fala da última
sentença pronunciada em favor
da família Calas

De 7 de março de 1 763 até o julgamento definitivo,


passaram-se mais dois anos: tanto é fácil ao fanatismo
arrancar a vida à inocência, como é difícil à razão resti­
tuir-lhe a justiça. Foi preciso suportar demoras inevitáveis,
necessariamente ligadas às formalidades . Quanto menos
essas formalidades foram observadas na condenação de
Calas, tanto mais deviam sê-lo rigorosamente pelo con­
selho de Estado. Um ano inteiro não é suficiente para
forçar o parlamento de Toulouse a fazer chegar ao con­
selho toda a documentação, para examiná-la, para rela­
tar o processo. O sr. de Crosne foi mais uma vez encar­
regado desse trabalho penoso. Uma assembléia de cerca
de oitenta juízes anulou a sentença de Toulouse e orde­
nou a revisão completa do processo.
Outras questões importantes ocupavam, então, qua­
se todos os tribunais do reino. Expulsavam-se os jesuítas;
aboliam sua sociedade na França : eles haviam sido into­
lerantes e perseguidores, foram perseguidos por sua vez.
A extravagância dos bilhetes de confissão, dos quais
supunha-se serem os autores secretos e dos quais eram
publicamente partidários, já havia despertado o ódio da
nação contra eles. Uma bancarrota imensa de um de seus

1 39
_______ Voltaire ___________

missionários16\ bancarrota tida em parte como fraudu­


lenta, acabou por arruiná-los . As simples palavras missio­
nários e bancarroteiros, pouco adequadas para estarem
juntas, incitaram em todos os espíritos a decisão de sua
condenação. Enfim, as ruínas de Port-Royal e as ossadas
de tantos homens célebres insultados por eles em suas
sepulturas e exumados no começo do século por ordens
que apenas os jesuítas haviam ditado levantaram-se to­
das contra sua autoridade finda. Pode-se ver a história de
sua proscrição no excelente livro intitulado Sur la des­
truction des jésuites en France163, obra imparcial , porque
de um filósofo , escrita com a fineza e a eloqüência de
um Pascal e , sobretudo , com uma superioridade de luzes
que não é ofuscada, como em Pascal, por preconceitos
que às vezes seduziram grandes homens.
Essa grande questão, na qual alguns partidários dos
jesuítas diziam que a religião era ultrajada e em que o
maior número a considerava vingada, fez com que , du­
rante vários meses, o público perdesse de vista o proces­
so Calas; mas, tendo o rei atribuído ao tribunal chamado
das questões do palácio o j ulgamento definitivo, o mes­
mo público , que adora passar de uma cena a outra, es­
queceu os jesuítas, e os Calas prenderam toda a sua
atenção.
A câmara das questões do palácio é uma corte sobe­
rana composta de promotores de justiça, para julgar os
processos entre os funcionários da corte e as causas que
o fel lhes envia. Não se podia ter escolhido um tribunal
mais instruído sobre o assunto: eram precisamente os
mesmos magistrados que haviam julgado duas vezes as
preliminares da revisão e que estavam perfeitamente in­
formados quanto ao fundo e à forma. A viúva de Jean

1 40
------ Tratado sobre a tolerância ________

Calas, seu filho e o jovem Lavaisse voltaram à prisão . Fi­


zeram vir do interior do Languedoc aquela velha empre­
gada católica que em instante algum abandonara seus
patrões e sua patroa, num momento em que se supu­
nha, contra toda a verossimilhança, que haviam estran­
gulado o jovem Marc-Antoine. Deliberou-se enfim com
base nas mesmas peças que haviam servido para conde­
nar Jean Calas ao suplício da roda e seu filho Pierre ao
banimento.
Foi então que surgiu uma nova memória do c:do­
qüente sr. de Beaumont164, e outra do jovem Lavaisse, tão
injustamente implicado nesse processo criminal pelos
juízes de Toulouse, que, por cúmulo de contradição, não
o haviam declarado absolvido . Esse jovem fez pessoal­
mente uma exposição que todos consideraram tão boa
quanto a do sr. de Beaumont. Tinha a dupla vantagem
de falar a seu favor e a favor de uma família com quem
partilhara os grilhões. Dependera apenas dele destruir
seus amigos e sair da prisão de Toulouse: bastaria ter
dito que se afastara dos Calas por um momento, aquele
em que se supunha que o pai e a mãe haviam assassina­
do seu filho. Ameaçaram-no com o suplício; a tortura e
a morte haviam se apresentado a seus olhos; uma pala­
vra poderia devolver-lhe a liberdade, mas ele preferiu ex­
por-se ao suplício do que pronunciar essa palavra, que
teria sido uma mentira . Narrou esses detalhes em sua ex­
posição, com uma candura tão nobre, tão simples , tão
distante de qualquer ostentação, que sensibilizou aque­
les que desejava apenas convencer e fez-se admirar sem
pretender a reputação.
Seu pai, famoso advogado, não teve participação ne­
nhuma nessa apresentação; viu-se, de repente, igualado
pelo filho, que jamais cursara a advocacia .

141
_____ Voltaire ___________

Enquanto isso, pessoas da maior consideração vi­


nham em grande número à prisão onde a senhora Calas
e suas filhas estavam encerradas. Comoviam-se com elas
até às lágrimas . A humanidade, a generosidade, prodiga­
lizavam-lhes amparos. O que chamam de caridade não
lhes dava nenhum. A caridade, aliás geralmente tão mes­
quinha e insultante, é o quinhão dos devotos, e os devo­
tos ainda se opunham aos Calas .
Chegou o dia (9 de março de 1765) em que a ino­
cência triunfou plenamente . Tendo o sr. Baquencourt
apresentado todo o processo, inclusive em suas menores
circunstâncias, os juízes por unanimidade declararam a
família inocente, julgada de forma iníqua e abusiva pelo
parlamento de Toulouse. Reabilitaram a memória do pai.
Autorizaram a família a recorrer a quem de direito para
responsabilizar seus juízes e para reparar as despesas,
perdas e danos que os magistrados tolosanos deveriam
suprir por conta própria .
Foi uma grande festa em Paris; as pessoas reuniam­
se nas praças públicas , nos passeios; todos queriam ver
essa família tão infortunada e tão bem justificada; os juí­
zes eram aplaudidos, cumulados de sentimentos de gra­
tidão. O que torna esse espetáculo ainda mais comoven­
te é que aquele dia, 9 de março, era o mesmo em que
Calas perecera pelo mais cruel suplício (três anos antes) .
Os senhores promotores de justiça haviam prestado
à família Calas uma justiça completa, e nisto não fizeram
mais do que seu dever. Há um outro dever, o da benefi­
cência , mais raramente cumprido pelos tribunais, que
parecem julgar-se destinados a serem apenas eqüitativos .
Os promotores de justiça decidiram que escreveriam em
conjunto à Sua Majestade para rogar-lhe reparar por suas

142
______ Tratado sobre a tolerância ________

dádivas a ruína da família. A carta foi escrita. O rei res­


pondeu mandando entregar trinta e seis mil libras à mãe
e aos filhos; e, dessas trinta e seis mil libras, três mil para
a virtuosa empregada que defendera constantemente a
verdade ao defender seus patrões .
O rei, por essa bondade, mereceu, como por tantos
outros atos, o cognome que o amor da nação lhe outor­
gou165. Possa esse exemplo servir para inspirar aos ho­
mens a tolerância, sem a qual o fanatismo devastaria a
terra, ou pelo menos a afligiria sempre! Sabemos que se
trata, aqui, de apenas uma única família e que o furor
das seitas fez perecer milhares; mas, hoje que uma som­
bra de paz deixa repousar todas as sociedades cristãs,
após séculos de carnificina, é nesse tempo de tranqüili­
dade que o infortúnio dos Calas deve causar maior im­
pressão, algo como o trovão irrompendo na serenidade
de um belo dia. Esses casos são raros , mas acontecem, e
são o efeito dessa triste superstição que leva as almas fra­
cas a imputarem crimes a todo aquele que não pensa
como elas.

1 43
Notas

1 . 12 de outubro de 1761 . (Nota de Voltaire.)


2. Não lhe encontraram, após o tra nsporte do cadáver à câmara
municipal , senão um pequeno arranhão na ponta do nariz , e uma
pequena mancha no peito, causada por algum descuido no transpor­
te do corpo. (Nota de Voltaire.)
3. Em realidade , essa procissão ocorria não em 10 de março
como supunha Voltaire, mas em 17 de maio, em memória à vitória
obtida pelos católicos sobre os protestantes em maio de 1 56 2 . (M.) ­
Designamos por (B.) uma nota de Beuchot, Oeuvres de Voltaire, 1 829-
1834, e por (M.) uma nota de Moland, Oeuvres completes de Voltaire,
1 877-1885 .
4. O pároco de Saint-É tienne não protestou de modo algum e
disputou inclusive o direito de inumação com o pároco de Taur, na
circunscrição do qual encontrava-se a câmara municipal. (M.)
5. Veja-se a nota 3. (M.)
6. Lasalle. (M.)
7. Laborde. (M.)
8. Conheço apenas dois exemplos, na história, de pais acusados
de terem assassinado seus filhos por causa da religião.
O primeiro é o do pai de Santa Bárbara . Ele mandara construir
duas j anelas em sua sala de banhos; Bárbara , em sua ausência, cons­
truiu uma terceira em honra da Santíssima Trindade; com a ponta do
dedo, ela fez o sinal da cruz sobre colunas de mármore e ess e sinal
gravou-se profundamente nas colunas . Seu pai , furioso , investiu con­
tra ela de espada na mão ; mas Bárbara fugiu através de uma monta­
nha que se abriu para si. O pai deu a volta à montanha e alcançou a

1 45
_______ Voltaire _____________

filha; ela foi chicoteada completamente nua, mas Deus cobriu-a com
uma nuvem branca; seu pai, enfim, conou-lhe a cabeça. Eis o que re­
lata a Flor dos santos.
O segundo exemplo é o do príncipe Hermenegildo. Revoltou-se
contra o rei, seu pai, enfrentou-o numa batalha em 584 , foi vencido
e mono por um oficial: fizeram dele um mánir, porque seu pai era
ariano . (Nota de Voltaire.)
9. Um dominicano veio até meu cárcere e me ameaçou com o
mesmo tipo de mone se eu não abjurasse. É o que atesto perante
Deus. 23 de julho de 1 762 . PIERRE CALAS . (Nota de Voltaire.)
1 0 . Ela foi acolhida em casa dos senhores Dufour e Mallet, ban­
queiros, e depois por d'Argental e Damilaville. (M .)
1 1 . Mémoíre à consulter, et Consultation pour la dame Anne­
Rose Cabibel, veuve Calas, et pour ses enfants, 23 aout 1 762. (M.)
12. Mémoire pour Donat, Píerre et Louis Calas. (M .)
13. Mémoire pour dame Anne-Rose Cabibel, veuve du sieurjean
Calas, L. et L . -D. Calas, leursfils, et A n ne-Rose et Anne Calas, leursfil­
Ies, demandeurs en cassation d 'un arrêt du parlament de Toulouse,
du 9 mars 1 762. (M.)
14. Eles foram imitados em várias cidades e a senhora Calas per­
deu a vantagem dessa generosidade. (Nota de Voltaire.)
1 5 . Choiseul ocupava-se, então, em fazer a paz com a Ingla­
terra . (M.)
16. Devoto vem da palavra latina devotus. Os devoti da antiga
Roma eram os que se dedicavam à salvação da república: eram os
Curtius, os Decius. (Nota de Voltaire.)
1 7 . Alusão à obra apologética do abade Houtteville, La religion
chrétienne prouvée par les faits, Paris, 1 7 2 2 .
18. Ou seja, conselheiros do parlamento. (M .)
19 . As anatas eram a taxa que pagavam à Santa Sé os detentores
de um benefício eclesiástico. Foram abolidas pela Assembléia Cons­
tituinte em 1 789.
20. Eles reiteravam a opinião de Bérenger sobre a Eucaristia;
negavam que um corpo pudesse estar em cem mil lugares diferentes,
mesmo com a onipotência divina; negavam que os atributos pudes­
sem subsistir sem sujeito; acreditavam que era absolutamente impos­
sível que o que é pão e vinho para os olhos, o paladar e o estômago,
desaparecesse de uma hora para outra; sustentavam todos esses erros,

146
_______ Tratado sobre a tolerância -------

condenados outrora em Bérenger. Baseavam-se em várias passagens


dos primeiros pa d res da Igreja, sobretudo de São justino, que diz
expressamente em seu diálogo contra Trífon: A oblação da farinha
"

pura . . . é a figura da eucaristia que Jesus Cristo nos ordena fazer em


memória de sua Paixão." (Página 1 19, Edit. Londinensis, 1719, in-8".)
Lembravam tudo o que se dissera nos primeiros séculos contra
o culto das relíquias; citavam estas palavras de Vigilantius : "É neces­
sário que respeiteis ou mesmo adoreis uma vil poeira? As almas dos
mártires animam ainda suas cinzas? Os costumes dos idólatras intro­
duziram-se na Igreja; começam a acender tochas em pleno meio-dia.
Durante nossa vida podemos rezar uns pelos outros, mas, após a
morte, de que servem essas preces?"
Mas não diziam o quanto São jerônimo se insurgira contra essas
palavras de Vigilantius . Enfim, queriam fazer tudo voltar aos tempos
apostólicos, sem admitir que, tendo a Igreja se ampliado e fortaleci­
do, fora também necessário ampliar e fortalecer sua disciplina : con­
denavam as riquezas, que pareciam não obstante necessárias para
sustentar a majestade do culto. (Nota de Voltaire.)
2 1 . O verídico e respeitável magistrado De Thou fala assim des­
ses homens tão inocentes e tão infortunados: "Homines esse qui tre­
centis circiter abhinc annis asperum et incultum solum vectigale a
dominis acceperint, quod ímprobo labore et assíduo cultu frugum
ferax et aptum pecori reddiderint; patientissimos eos laboris et ine­
diae, a litibus abhorrentes, erga egenos munificos, tributa principi et
sua jura dominis sedulo et summa fide pendere; Dei cultum assiduis
precibus et morum innocentia prae se ferre, caeterum raro divorum
templa adire, nisi si quando ad vicina suis finibus oppida mercandi
aut negotiorum causa divertant; quo si quandoque pedem inferant,
non Dei divorumque statuis advolvi, nec cereos eis aut donoria ulla
ponere; non sacerdotes ab eis rogari ut pro se aut propinquorum
manibus rem divinam faciant: non cruce frontem insignire uti aliorum
moris est; cum coelum intonat, non se Justralit aqua aspergere, sed
sublatis in coelum oculis Dei opem implorare; non religionis ergo
peregre profíciscí, non per vias ante cruciam simulacra caput aperire;
sacra alio rito et populare língua celebrare; non denique pontifici aut
episcopis honorem deferre, sed quosdam e suo numero delectos pro
antistitibus et doctoribus habere . Haec uti Franciscum relata VI id.
feb. , anni, etc . " (THUANI , Hist., liv. VI.)

147
_______ Vo/taire _____________

Madame de Cental, a quem pertencia uma parte das terras de­


vastadas e sobre as quais só se viam os cadáveres de seus habitantes,
pediu justiça ao rei Henrique II, que a enviou ao parlamento de Paris .
O procurador-geral da Provença, chamado Guérin, principal autor
dos massacres, foi o único condenado à morte. De Thou diz que
arcou sozinho com a pena dos outros culpados, quod aulicorum fa­
vore destitueretur, porque não tinha amigos na corte. (Nota de Vol­
taire.)
22. Ravaillac não havia sido frade bernardo. (M.)
23. François Gomar era um teólogo protesta n te ; sustentou, con­
tra Arminius, seu colega, que Deus destinara desde toda a eternidade
a maior parte dos homens ao fogo eterno. Esse dogma infernal foi
apoiado, como era de esperar, pela perseguição . O grande pensio­
nista Barneveldt, que era do partido contrário a Gomar, teve a cabe­
ça cortada aos 72 anos, no dia 13 de maio de 1 6 1 9 , "por haver con­
tristado ao máximo possível a Igreja de Deus". (Nota de Voltaire.)
24. Um pregador, na apologia da revogação do edito de Nantes,
diz, ao falar da Inglaterra: "Uma falsa religião devia produzir necessa­
riamente semelhantes frutos; restava um por amadurecer e esses insu­
lares o recolhem: é o desprezo das nações. " Cumpre reconhecer que
o autor escolhe bem mal a ocasião de dizer que os ingleses são des­
prezíveis e desprezados pela terra inteira. Quando uma nação de­
monstra sua bravura e sua generosidade, quando é vitoriosa nos qua­
tro cantos do mundo, parece-me não ser lícito afirmar que ela é des­
prezível e desprezada. É num capítulo sobre a intolerância que se
encontra essa singular passagem; os que pregam a intolerância mere­
cem escrever assim. Esse abominável livro, que parece feito pelo
louco de Verberie, é de um homem sem vocação; pois, que religioso
escreveria deste modo? O furor é levado até a justificar a Noite de São
Bartolomeu . Chegamos a pensar que semelhante obra, repleta de tão
terríveis paradoxos, deveria ser lida por todo o mundo, ao menos por
sua singularidade; no entanto ela é pouco conhecida. (Nota de Vol­
taire.) - O pregador objeto dessa nota é o abade de Caveyrac, que,
na-página 362 de sua Apologia de Luís XIV quanto à revogação do
edito de Nantes, com uma dissertação sobre a jornada de São Bar­
tolomeu, 1758, escreveu de fato a frase citada por Voltaire. Os france­
ses, na Guerra dos Sete Anos, sofreram derrotas nos quatro cantos do
mundo. (M. ) - Segundo Voltaire, o "louco de Verberie" era um pobre

1 48
------- Tratado sobre a tolerância _________

coitado, de espírito perturbado, "que durante uma refeição num mos­


teiro proferiu palavras insensatas e foi enforcado, em vez de ser exor­
cizado e purificado" . (Dictionnaire philosophique, "Suplícios".)
2 5 . A província da Alsácia foi anexada ao reino da França após
a promulgação do edito de Nantes. O edito não era ali aplicado e ,
portanto, jamais foi "revogado" . Além disso, o rei tinha a preocupa­
ção de não perder para a Alemanha vizinha seus aliados protestantes.
Assim, a perseguição poupou os luteranos da Alsácia.
26. Veja-se Rycaut. (Nota de Voltaire.) Rycaut é o autor de uma
-

História da situação atual da Igreja grega, 1 696.


27 . Os descendentes de Noé, ou noáchidas, eram tidos como
praticantes de uma religião natural primitiva, anterior a toda Revela­
ção, que teria se conservado na China.
28. O budismo, sendo Fô o nome chinês de Buda.
29 . As Cartas edificantes e curiosas, periódico dos jesuítas, pu­
blicavam (após censura) as cartas dos missionários da sociedade . Elas
são, na Europa do século XVIII, a principal fonte de informação
sobre a China.
30. Voltaire relata no capítulo 1 79 do Essai sur les moeurs (Ensaio
sobre os costumes] a conspiração dos barris de pólvora contra o rei
da Inglaterra (1605). Católicos fanáticos, descontentes com Jaime I,
decidiram matar, num único atentado, o rei, a família real e todos os
pares do reino. Trinta e seis toneladas de pólvora foram dispostas sob
a sala do parlamento onde Jaime I devia fazer uso da palavra. Mas a
máquina infernal foi descoberta a tempo.
3 1 . Vejam-se Kempfer e todos os relatos do Japão. (Nota de
Voltaire.)
32. As duas palavras gregas que deram origem a esse nome sig­
nificam amigo e irmão. (M.)
33. Alusão ao julgamento de Salomão. (M.)
34. O sr. de La Bourdonnaie, intendente de Rouen, diz que a
manufatura de chapéus caiu em Caudebec e em Neuchâtel por causa
da evasão dos refugiados. O sr. Foucaut, intendente de Caen, diz que
o comércio em geral diminuiu pela metade. O sr. de Maupeou, inten­
dente de Poitiers, diz que a manufatura de droguete acabou . O sr. de
Bezons, intendente de Bordéus, queixa-se de que o comércio de
Clérac e de Nérac praticamente não existe mais. O sr. de Miroménil,
intendente de Touraine, diz que o comércio de Tours foi reduzido em

149
_______ Voltaire _____________

dez milhões por ano; e tudo isto por causa da perseguição . (Vejam­
se os relatórios dos intendentes, em 1698.) Leve-se em conta sobretu­
do o número de oficiais de terra e mar, e marinheiros, que foram obri­
gados a ir servir contra a França, geralmente com uma funesta vanta­
gem, e vejam se a intolerância não causou mal nenhum ao Estado.
Não se tem aqui a temeridade de propor idéias a ministros cujo
gênio e opiniões abalizadas são bem conhecidos e cujo coração é tão
nobre quanto seu nascimento. Eles perceberão muito bem que o res­
tabelecimento da marinha demanda alguma indulgência para com os
habitantes das nossas costas. (Nota de Voltaire.) Os dois ministros
-

elogiados por Voltaire são o duque de Choiseul-Stainville e seu pri­


mo, o duque de Praslin. (M.)
35 . Voltaire não menciona os judeus de Avignon e do condado
Venaissin. Esses territórios, pertencentes ao papa, não faziam parte
do reino da França antes da Revolução.
36. Por volta de 1730, em Paris, no cemitério Saint-Médard, o
túmulo do diácono Pâris, muito popular no pequeno grupo jansenis­
ta, era palco de manifestações histéricas: as "convulsões" . Os "profe­
tas calvinistas": os da revolta dos protestantes.
37. Voltaire supõe que a Apologia de Sócrates, de Platão, consti­
tua o discurso realmente pronunciado diante dos juízes.
38. Este homem é o abade de Malvaux, que publicou , em 1762,
L 'accord de la religion et de l 'humanité sur l'intolérance, obra que é
comentada no pós-escrito (cap. XXIV do Tratado sobre a tolerância),
e que fez repercutir sobre o autor uma parte da justa indignação que
seu predecessor, o abade de Caveyrac, havia despertado, ao fazer-se
apologista da Noite de São Bartolomeu. É a este último que alguns
atribuem a autoria de L 'accord, etc. Segui a opinião de Hébrail . (B.)
39. Eis o texto de Cícero: "Quaeve anus tam excors inveniri po­
test, quae illa , quae quondam credebantur, apud inferos portenta
extimescat". (De natura deorum, liv. 11, cap. ii.) (M.)
40. Capítulos XXI e XXIV. (Nota de Voltaire.)
4 1 . Atos, capítulo XXV, v. 1 6 . (Nota de Voltaire.)
42. Atos, capítulo XXVI , v. 24 (Nota de Voltaire.)
43. Embora os judeus não tivessem o direito de fazer j ustiça des­
de que Arquelau fora relegado entre os alóbrogos e a Judéia era go­
vernada como província do império, os romanos freqüentemente fe­
chavam os olhos quando os judeus exerciam o julgamento do zelo,

1 50
------- Tratado sobre a tolerância _________

ou seja, quando, numa sublevação repentina , lapidavam por zelo


aqueles que julgavam ter blasfemado. (Nota de Voltaire.)
44. Atos, cap. VII, v . 57. (M.)
45. Ulpianus, Digest. , liv. I , tit. ii. "Eis qui judaicam superstitio­
nem sequuntur honores adipisci permiserunt, etc . " (Nota de Voltaire.)
46. Tácito diz (Annales, XV, 44): " Quos per flagitia invisos vul­
gus christianos appellabat. "
Era pouco provável que o nome "cristão" fosse já conhecido em
Roma. Tácito escrevia sob Vespasiano e sob Domiciano; falava dos
cristãos como falavam a respeito deles em sua época. Eu ousaria di­
adio humani generis convicti poderiam perfeita­
zer que as palavras
acusados de serem odiados Pelo
mente significar, no estilo de Tácito,
gênero humano, tanto quanto acusados de odiar o gênero humano.
Com efeito, o que faziam em Roma esses primeiros missionários?
Procuravam ganhar algumas almas, ensinavam-lhes a moral mais pura;
não se insurgiam contra nenhum poder; a humildade de seu coração
era tão extrema como a de suas posses e de sua situação; mal eram
conhecidos; mal haviam se separado dos outros judeus. De que manei­
ra o gênero humano, que os ignorava, podia odiá-los? E de que ma­
neira podiam ser acusados de detestar o gênero humano?
Quando Londres foi incendiada , acusaram os católicos; mas isso
foi depois das guerras de religião, foi depois da conspiração dos bar­
ris de pólvora, na qual vários católicos, indignos de sê-lo , haviam se
envolvido.
Os primeiros cristãos do tempo de Nero seguramente não se
encontravam na mesma situação . É muito difícil penetrar nas trevas
da história. Tácito não dá nenhuma razão da suspeita levantada de
que o próprio Nero quis reduzir Roma a cinzas. Teríamos bem mais
razões para suspeitar de Carlos li de ter incendiado Londres: o san­
gue do rei, seu pai, executado num cadafalso aos olhos do povo que
pedia sua morte, podia ao menos servir de escusa a Carlos l i . Mas
Nero não tinha escusa, nem pretexto, nem interesse . Esses rumores
insensatos podem ser, em qualquer lugar, o quinhão do povo: sabe­
mos de alguns , tão dementes e injustos , espalhados nos dias de hoj e .
Tácito , q u e conhece t ã o b e m o caráter d o s governantes, devia
conhecer o do povo , sempre vão, sempre exagerado em suas opi­
niões violentas e passageiras, incapaz de perceber alguma coisa e
capaz de tudo afirmar, de tudo crer e de tudo esquecer.

151
------- Voltaíre _____________

Fílon (De Virtutibus, et Legatione ad Caium) diz que "Sejano os


perseguiu sob Tibério, mas que, após a morte de Sejano, o impera­
dor os restabeleceu em todos os seus direitos . " Tinham o direito à ci­
dadania romana , embora desprezados pelos cidadãos romanos , par­
ticipavam das distribuições de trigo; e, mesmo quando a distribuição
era feita num dia de sabá , adiavam a deles para um outro dia, prova­
velmente em consideração às quantias em dinheiro que haviam dado
ao Estado , pois em todo lugar eles compraram a tolerância e em
pouco tempo foram ressarcidos do que ela havia custado.
Essa passagem de Fílon explica perfeitamente a de Tácito, que
diz que quatro mil judeus ou egípcios foram enviados à Sardenha e
que , se a intempérie do clima os fizesse perecer, seria uma perda
leve, vi/e damnum (Annales, li, 85).
Acrescentarei a essa nota que Fílon vê Tibério como um gover­
nante sábio e justo. Presumo que só era justo na medida em que essa
justiça correspondia a seus interesses ; mas o bem que Fílon diz dele
me faz duvidar um pouco dos horrores que Tácito e Suetônio lhe atri­
buem. Não me parece verossímil que um velho doente, de 70 anos ,
tenha se retirado à ilha de Capri para ali entregar-se a orgias requin­
tadas , que mal são naturais e que eram inclusive desconhecidas da
juventude mais desenfreada de Roma; nem Tácito nem Suetônio
conheceram esse imperador; eles recolhiam com prazer os boatos
populares . Otávio , Tibério e seus sucessores foram odiados, porque
reinavam sobre um povo que devia ser livre . Os historiadores com­
praziam-se em difamá-los, e acreditava-se na palavra desses historia­
dores porque , então, não havia anais, jornais da época, documentos;
assim, os historiadores não citam ninguém; era impossível contradi­
zê-los ; difamavam quem queriam e decidiam a seu bel-prazer o jul­
gamento da posteridade. Cabe ao leitor sensato perceber até que
ponto deve-se desconfiar da veracidade desses historiadores , qual o
crédito que merecem fatos públicos atestados por autores sérios , nas­
cidos numa nação esclarecida, e quais os limites que devemos impor
à credulidade em anedotas que esses mesmos autores relatam sem a
menor prova . (Nota de Voltaire.)
47. Evidentemente, respeitamos tudo o que a Igreja torna respei­
tável; invocamos os santos mártires, mas , mesmo reverenciando São
Lourenço, podemos duvidar que São Sisto lhe tenha dito : Você me
seguirá dentro de três dias, que nesse curto intervalo de tempo o pre-

152
_______ Tratado sobre a tolerância -------

feito de Roma lhe tenha exigido o dinheiro dos cristãos; que o diáco­
no Lourenço tenha tido tempo de reunir todos os pobres da cidade;
que tenha ido até o prefeito para levá-lo ao lugar onde estavam esses
pobres; que lhe tenham aberto um processo e feito um interrogató­
rio; que o prefeito tenha encomendado a um ferreiro uma grelha bas­
tante grande para assar um homem; que o primeiro magistrado de
Roma tenha assistido pessoalmente a esse estranho suplício; que São
Lourenço, nessa grelha, lhe tenha dito: "Estou bastante assado de um
lado, podes me virar do outro se queres me comer. " Essa grelha não
faz muito o gênero dos romanos . E como se explica que nenhum au­
tor pagão tenha falado dessas aventuras? (Nota de Voltaire.)
48. Basta abrir Virgílio para ver que os romanos reconheciam
um deus supremo, soberano de todos os seres celestes .

. . . 0! qui res hominunque deumque


Aeternis regis imperiis, et fulmine terres.
(Eneida, I, 233-34.)

O pater, o hominum divumque aeterna potestas, etc.


(Eneida , X, 18.)

Horácio exprime-se bem mais enfaticamente :

Unde nil majus generatur ipso,


Nec viget quidquam simile, aut secundum .
(Lib. I , od. xii, 17-18.)

Não se cantava outra coisa, senão a unidade de Deus nos misté­


rios em que quase todos os romanos eram iniciados. Veja-se o belo
hino de Orfeu ; leia-se a carta de Máximo de Madaurus a Santo Agos­
tinho, na qual diz que "somente imbecis poderiam não reconhecer
um Deus soberano" . Mesmo sendo pagão, Longino escreve ao mes­
mo Agostinho que Deus "é único, incompreensível, inefável " ; o pró­
prio Lactâncio, que não pode ser acusado de demasiado indulgente,
admite, em seu livro V (Divin. Jnstítut., c. 111), que "os romanos sub­
metem todos os deuses ao Deus supremo; i/los subjicit et mancipat
Deo". Mesmo Tertuliano, em sua Apologética (c. XXIV), afirma que todo
o Império reconhecia um deus senhor do mundo, cuja potência e

1 53
_______ Voltaire _____________

majestade são infinitas, principem mundi, perfectae potentiae et


majestatis. Sobretudo em Platão, o mestre de Cícero na filosofia, lê­
se que "há um só Deus; cumpre adorá-lo, amá-lo e procurar asseme­
lhar-se a ele pela santidade e pela justiça " . Epicteto na prisão, Marco
Antônio no trono, dizem a mesma coisa em várias passagens . (Nota
de Voltaire.)
49. Capítulo XXXI X . (Nota de Voltaire.)
50. Capítulo XXXV. (Nota de Voltaire.)
5 1 . Capítulo III. (Nota de Voltaire.)
5 2 . Essa asserção deve ser provada. É preciso convir que, desde
que a história sucedeu à fábula, os egípcios são vistos apenas como
um povo covarde e supersticioso. Cambises apodera-se do Egito me­
diante uma única batalha; Alexandre lhe dita leis sem experimentar
um só combate, não encontrando uma cidade que ouse resistir a um
assédio; os Ptolomeus o subjugam sem resistência; César e Augusto o
fazem também facilmente; Ornar ocupa todo o Egito numa única cam­
panha; os mamelucos, povo da Cólquida e dos arredores do monte
Cáucaso, são seus senhores após Ornar; são eles, e não os egípcios,
que derrotam o exército de São Luís e fazem esse rei prisioneiro. En­
fim, tendo os mamelucos se tornado egípcios, ou seja , indolentes, co­
vardes, relapsos e volúveis, como os habitantes naturais desse clima,
em pouco tempo caem sob o jugo de Selim I, que manda enforcar
seu sultão e anexa essa província ao império dos turcos, até que ou­
tros bárbaros apoderem-se dela um dia.
Heródoto relata que, nos tempos fabulosos, um rei egípcio cha­
mado Sesóstris saiu de seu país com o propósito formal de conquistar
o universo. Percebe-se que tal propósito só é digno de um Picrochole
[personagem do Gargântua de Rabelais] ou de dom Quixote, sem con­
tar que o nome Sesóstris não é egípcio, pode-se colocar esse aconteci­
mento, bem como todos os fatos anteriores, na conta das Mil e uma
noites. Nada é mais comum entre os povos conquistados do que reci­
tar fábulas sobre sua antiga grandeza, do mesmo modo que, em certas
regiões, certas famílias miseráveis se fazem descender de antigos sobe­
ranos. Os sacerdotes do Egito contaram a Heródoto que esse rei cha­
mado Sesóstris fora subjugar a Cólquida: é como se disséssemos que
um rei da França partiu de Touraine para subjugar a Noruega.
Por mais que repitam todas essas histórias em milhares e milha­
res de volumes, elas não se tornam mais verossímeis . É bem mais

1 54
---- Tratado sobre a tolerância ----

natural que os habitantes robustos e ferozes do Cáucaso, os cólqui­


das e os citas, que vieram tantas vezes devastar a Ásia, tenham pene­
trado no Egito; e se os sacerdotes de Colcos adotaram a moda da cir­
cuncisão, isso não é uma prova de que tenham sido subjugados pelos
egípcios. Diodoro de Sicília conta que todos os reis vencidos por
Sesóstris vinham anualmente de seus reinos distantes pagar-lhe os tri­
butos e que Sesóstris servia-se deles como de cavalos atrelados à sua
carruagem para levá-lo ao templo. Essas histórias de Gargântua sào
todos os dias fielmente copiadas . Obviamente, os reis eram muito
bondosos para virem de tão longe servir de cavalos .
Quanto às pirâmides e outras antiguidades, não provam ou�ra
coisa senão o orgulho e o mau gosto dos príncipes do Egito, bem
como a escravidão de um povo imbecil , empregando seus braços, que
eram seu único bem, para satisfazer a grosseira ostentação de seus
senhores. O governo desse povo, mesmo nos períodos mais enalteci­
dos, parece absurdo e tirânico; dizem que todas as terras pertenciam
aos monarcas. E competia a tais escravos conquistar o mundo!
A profunda ciência dos sacerdotes egípcios é também uma das
coisas mais ridículas da história antiga , isto é, da fábula. Gente que
afirmava que, num período de onze mil anos, o sol havia surgido
duas vezes no poente e se posto duas vezes no nascente, recomeçan­
do seu curso, estava certamente muito abaixo do autor do Almana­
que de Liege. A religião desses sacerdotes, que governavam o Estado,
não se comparava sequer à dos povos selvagens da América . Sabe-se
que adoravam crocodilos, macacos, gatos, cebolas; talvez, hoje, em
toda a terra, só o culto do grande lama seja tão absurdo.
Suas artes não valem muito mais que sua religião: não há uma
única estátua egípcia que seja suportável, e tudo o que tiveram de
bom foi feito em Alexandria, sob os Ptolomeus e os Césares, por ar­
tistas da Grécia. Precisaram de um grego para aprender geometria .
O ilustre Bossuet extasia-se com o mérito egípcio, em seu Dis­
cours sur l'Histoire universelle dirigido ao filho de Luís XIV. O discur­
so é capaz de deslumbrar um jovem príncipe; mas satisfaz muito pou­
co os estudiosos: trata-se de uma declamação eloqüente, mas um his­
toriador deve ser mais filósofo do que orador. De resto, essa reflexão
sobre os egípcios é dada apenas como uma conjetura. Que outro no­
me pode dar-se a tudo o que se diz da Antiguidade? (Nota de Vol­
taire.)

155
_______ Vo/taire _____________

53 . Não se contesta a morte de Santo Inácio. Mas ao ler o relato


de seu martírio, um homem de bom senso não sentirá algumas dúvi­
das surgirem em seu espírito? O autor desconhecido desse relato diz
que "Trajano julgou que faltaria algo à sua glória se não submetesse
a seu império o deus dos cristãos" . Que idéia! Acaso Trajano era um
homem que quisesse triunfar dos deuses? Quando Inácio apareceu
diante do imperador, este lhe disse : "Quem és tu , espírito impuro?" É
pouco provável que um imperador falasse a um prisioneiro e que ele
próprio o condenasse; não é assim que os soberanos costumam agir.
Se Trajano mandou vir Inácio à sua presença, não podia ter-lhe per­
guntado: Quem és tu? Ele o sabia perfeitamente . E a expressão espí­
rito impuro poderia ter sido pronunciada por um homem como Tra­
jano? Nào se percebe que é uma expressão de exorcista, que um cris­
tão põe na boca de um imperador? Será este, santa ingenuidade, o
estilo de Trajano?
Pode-se conceber que Inácio lhe tenha respondido chamar-se
Teóforo, porque trazia Jesus em seu coração, e que Trajano tivesse
dissertado com ele acerca de Jesus Cristo? Fazem Trajano dizer, ao
final da conversação: "Ordenamos que Inácio, que se glorifica de tra­
zer em si o crucificado, seja acorrentado, etc . " Um sofista inimigo dos
cristãos podia chamar Jesus Cristo de crucificado; mas é pouco prová­
vel que, ao declarar a sentença, empregasse esse termo. O suplício da
cruz era tão comum entre os romanos que era impossível, no estilo
das leis, designar por crucificado o objeto do culto dos cristãos; e não
é assim que as leis e os imperadores pronunciam seus julgamentos.
A seguir fazem Santo Inácio escrever uma longa carta aos cris­
tãos de Roma : "Eu vos escrevo - diz ele - completamente acorrenta­
do. " Por certo, se lhe foi permitido escrever aos cristãos de Roma,
estes não eram procurados; Trajano, portanto, não tinha o propósito
de submeter o Deus deles a seu império; caso contrário, se esses cris­
t ã os estivessem sob o flagel o da persegui ção, Inácio cometia uma
grande imprudência ao escrever-lhes : significava expor-lhes, entre­
gar-lhes, significava tornar-se seu delator.
Penso que os que redigiram esses atos deviam dar mais atenção
às verossimilhanças e às conveniências. O martírio de São Policarpo
faz surgir mais dúvidas. É dito que uma voz gritou do alto do céu :
Coragem, Policarpo!, que os cristãos a ouviram, mas os outros não. É
dito que, quando amarraram Policarpo no poste e a fogueira ardeu

1 56
_____ Tratado sobre a tolerância _________

em chamas, essas chamas afastaram-se dele e formaram um arco-íris


acima de sua cabeça; que uma pomba surgiu desse arco-íris; que o
santo, respeitado pelo fogo, exalou uma fragrância aromática que
perfumou todo o ambiente; mas aquele de quem o fogo não ousava
aproximar-se não pôde resistir ao golpe da espada. É preciso reco­
nhecer que devemos perdoar os que vêem nessas histórias mais pie­
dade do que verdade . (Nota de Voltaire.)
54. Histoire ecclésiastique, liv . VI I I . (Nota de Voltaire.)
55. Daniel, capítulo III . (M.)
56 . Veja-se nota 3, retro.
57. A Guerra dos Sete Anos, terminada pelo tratado de 10 de
fevere iro de 1 763 . (M .)
58. A grande lei da atração. (M.)
59. O parlamento de Paris havia, em 8 de junho de 1763, apro­
vado um decreto contra a inoculação. (M.)
60. Veja-se a excelente carta de Locke sobre a tolerância. (Nota
de Voltaire.)
61 . O jesuíta Busembaum, comentado pelo jesuíta Lacroix, diz
que "é permitido matar um príncipe excomungado pelo papa, em
qualquer país onde se encontre esse príncipe, porque o universo per­
tence ao papa , e a quele que aceita essa incumbência faz uma obra
caridosa" . Foi essa proposição, inventada nos manicômios do infer­
no, que mais mobilizou a França contra os jesuítas. Mais do q u e nun­
ca, reprovaram-lhes então esse dogma, por eles ensinado tantas ve­
zes e tantas vezes negado. Acreditaram just i fi c a r- s e mostrando apro­
ximadamente as mesmas decisões em Santo Tomás e em vários domi­
nicanos (leiam, se puderem, a Carta de um homem do mundo a um
teólogo, sobre Santo Tomás, é uma brochura de jesuíta, de 1762). Com
efeito, Santo Tomás de Aquino, doutor angélico, intérprete da von ta de
divina (são seus títulos), afirma que um príncipe apóstata perde seu
direito à coroa e que não se deve mais obedecer-lhe; que a Igreja
pode puni-lo com a morte (livro II, part. 2 , quest. 1 2); que o impera­
dor Juliano foi tolerado apenas porque era o mais forte (livro 11, part.
2, quest. 1 2); que é l egíti m o matar todo herético (l ivro li, part. 2 ,
quest. 1 1 e 1 2); que o s que libertam o povo d e um príncipe que go­
verna tiranicamente são muito louváveis, etc . , etc . Respeita-se muito
o anjo da escola; mas se, na época de Jacques Clément, seu confra­
de, e do bernardo Ravaillac, ele viesse s u ste ntar na França tais propo­
sições, de que maneira teriam tratado o anjo da escola?

1 57
_______ Voltaire _____________

Cumpre reconhecer que Jean Gerson, chanceler da Universida­


de, foi ainda mais longe que Santo Tomás, e o franciscano Jean Petit,
infinitamente mais longe ainda. Vários franciscanos sustentaram as
horríveis teses de Jean Petit. É preciso dizer que essa doutrina diabó­
lica do regicídio advém unicamente da idéia maluca partilhada há
muito tempo por quase todos os monges, segundo a qual o papa é
um Deus na terra, podendo dispor à vontade do trono e da vida dos
reis. Nesse ponto estamos muito abaixo dos tártaros que crêem no
grande lama imortal; este entrega-lhes sua cadeira de retrete; eles fa­
zem secar essas relíquias, guardam-nas em relicário e as beijam devo­
tamente. De minha parte, confesso que preferiria, para o bem da paz,
levar no pescoço tais relíquias do que acreditar que o papa tenha o
menor direito sobre o temporal dos reis, ou mesmo sobre o meu, em
que circunstância for. (Nota de Voltaire.)
6 2 . João, XIV, 28. (M. )
6 3 . li , 1 4 . (M.)
64. I , 1 7 . (M .)
6 5 . III, 23-3 1 . (M. )
66 . Católicos e protestantes. (M. )
67 . Êxodo, XI I , 8. (M.)
68. Ibid. , II. (M .)
69. Pascha, a Páscoa, festa anual dos judeus, em memória de
sua saída do Egito. (M. )
7 0 . Levítico, XIII , 2 3 . (M. )
7 1 . Ibid., XVI, 2 2 . (M.)
72. Deuteronômio, cap. XIV. (Nota de Voltaire.)
73 . Dentro de nossa idéia de fazer sobre esta obra algumas notas
úteis, assinalaremos aqui q u e é dito ter feito Deus uma aliança com
Noé e com todos os animais . No entanto, ele permite a Noé comer de
tudo o que tenha vida e movimenta; excetua apenas o sangue, do
qual não permite que se alimentem. Deus acrescenta ( Gênesis, IX, 5)
"que se vingará de todos os animais que derramaram o sangue do
homem" .
Pode-se inferir dessas passagens e de várias outras o que toda a
Antiguidade sempre pensou até os nossos dias e o que todos os
homens sensatos pensam: que os animais têm algum conhecimento.
Deus não faz um pacto com as árvores nem com as pedras, que não
têm sentimento; mas faz com os animais, que ele houve por bem

1 58
______ Tratado sobre a tolerância ------

dotar de um sentimento não raro mais delicado que o nosso e de


algumas idéias necessariamente associadas a esse sentimento. Por
isso ele não quer a barbárie de nos alimentarmos do sangue desses
animais, porque o sangue é a fonte da vida e, conseqüentemente, do
sentimento. Prive-se um animal de seu sangue e todos os seus órgãos
ficam sem ação. É, pois, com muita razão que a Escritura diz em vá­
rias passagens que a alma, isto é, o que era chamado de alma sensi­
tiva, está no sangue; e essa idéia tão natural foi a de todos os povos.
É sobre essa idéia que se fundou a comiseração que devemos
ter pa ra com os animais. Dos sete preceitos dos noáchidas, adotados
pelos judeus, há um que proíbe comer o membro de um animal em
vida. Esse preceito prova que os homens tiveram a crueldade de mu­
tilar os animais para comer seus membros e que os deixavam viver
para se alimentar sucessivamente das partes de seu corpo. Esse cos­
tume subsistiu, com efeito, entre alguns povos bárbaros, como vemos
pelos sacrifícios da ilha de Quios, a Baco Omadios, o comedor de
carne crua. Deus, ao permitir que os animais nos sirvam de comida ,
recomenda portanto humanidade para com eles. É preciso convir que
há barbárie em fazê-los sofrer; certamente só o costume é capaz de
diminuir em nós o horror natural de degolar um animal que nutrimos
com as nossas mãos. Sempre houve povos que tiveram um grande
escrúpulo disso. Esse escrúpulo subsiste ainda em quase toda a Í ndia;
toda a seita de Pitágoras, na Itália e na Grécia, sempre se absteve de
comer carne. Porfírio, em seu livro da Abstinência, censura um discí­
pulo por ter abandonado sua seita apenas para entregar-se a seu ape­
tite bárbaro.
É preciso, penso eu , ter renunciado à luz natural, para ousar
afirmar que os animais sào somente máquinas. Há uma contradição
manifesta em admitir que Deus deu aos animais todos os órgãos do
sentimento e em sustentar que não lhes deu sentimento.
Parece-me também que é preciso não ter jamais observado os
animais para não distinguir neles as diferentes vozes da necessidade,
da alegria, do temor, do amor, da cólera e de todos os seus afetos; se­
ria muito estranho que exprimissem tão bem o que não sentem.
Essa nota pode fornecer muitas reflexões aos espíritos sabedo­
res do poder e da bondade do Criador, que se digna conceder a vida,
o sentimento, as idéias, a memória, aos seres que ele próprio organi­
zou com sua mão onipotente . Não sabemos nem como esses órgãos

1 59
_______ Voltaire _____________

se formaram, nem como se desenvolveram, nem como se recebe a


vida, nem por que leis os sentimentos, as idéias, a memória, a vonta­
de ligam-se a essa vida; e nessa profunda e eterna ignorância , ineren­
te à nossa natureza, não cessamos de discutir, perseguimo-nos uns
aos outros, como os touros que se batem com seus chifres sem saber
por que e como têm chifres. (Nota de Voltaire.)
74. Amós, V, 26 . (Nota de Voltaire.)
75. jeremias, VII , 22. (Nota de Voltaire.)
76. Atos, VII , 42-43. (Nota de Voltaire.)
77. Deuteronômio, XII, 8. (Nota de Voltaire.)
78. Vários escritores concluíram temerariamente dessa passagem
que o capítulo concernente ao bezerro de ouro (que não é senão o
deus Ápis) foi acrescentado aos livros de Moisés, bem como vários
outros capítulos .
Aben-Hezra foi o primeiro que julgou demonstrar que o Penta­
teuco fora redigido no tempo dos reis . Wollaston, Collins, Tindal,
Shaftesbury, Bolingbroke e muitos outros alegaram que a arte de gra­
var os pensamentos na pedra polida, na argila, no chumbo ou na ma­
deira era , então, a única maneira de escrever; dizem que, no tempo
de Moisés , os caldeus e os egípcios não escreviam de outro modo;
que, portanto, só podiam gravar de forma muito abreviada, e em hie­
róglifos, a substância das coisas que queriam transmitir à posteridade,
e não histórias detalhadas; que não era possível gravar livros volumo­
sos num deserto onde se mudava freqüentemente de lugar, onde não
havia ninguém que pudesse produzir roupas, nem cortá-las, nem
sequer consertar as sandálias, e onde Deus foi obrigado a fazer um
milagre de quarenta anos (Deuteronômio, VIII, 5) para conservar as
roupas e os calçados de seu povo. Dizem que não é verossímil que
houvesse tantos gravadores de caracteres, quando faltavam os ofícios
mais necessários e nem mesmo se podia fazer pão; e, se lhes dizem
que as colunas do tabernáculo eram de bronze e os capitéis de prata
maciça , respondem que a ordem pode ter sido dada no deserto, mas
que só foi executada em épocas mais favoráveis.
Não conseguem conceber que esse povo pobre tenha exigido
um bezerro de ouro maciço (Êxodo, XXXI I , 1) para adorá-lo ao pé da
mesma montanha em que Deus falava a Moisés, em meio a raios e
relâmpagos que o povo avistava (Êxodo, XIX, 1 8- 1 9) e ao som da
trombeta celeste que ouvia. Espantam-se de que exatamente na véspe-

1 60
______ Tratado sobre a tolerâ ncia ------

ra do dia em que Moisés desceu da montanha , todo esse povo tenha


se dirigido ao irmão de Moisés para obter o bezerro de ouro maciço.
Como pôde Aarão fundi-lo num só dia (Êxodo, XXXI I , 4)? E como
Moisés o reduziu a pó em seguida (Êxodo, XXXI I , 20)? Dizem ser
impossível a qualquer artista fazer em menos de três meses uma está­
tua de ouro, e que, para reduzi-la a pó, a arte da química mais erudi­
ta não é suficiente. Assim, tanto a prevaricação de Aarão como a ope­
ração de Moisés teriam sido milagres.
A humanidade, a bondade de coração, que os enganam, os im­
pedem de acreditar que Moisés tenha ma ndado matar vinte e três mil
pessoas (Êxodo, XXXI I, 28) para expiar esse pecado; não concebem
que vinte e três mil homens tenham se deixado deste modo mas � a­
crar por levitas, a menos que se trate de um terceiro milagre. Enfim,
acham estranho que Aarão, de todos o mais culpado, tenha sido re­
co m pen sado do crime que causou tão terrível punição aos de m a is
(Êxodo, XXXI II, 19; e Levítico, VIII, 2), tornando-se grande sacerdote,
enquanto os cadáveres ensangüentados de vinte e três mil de seus
irmãos eram empilhados ao pé do altar onde foi oferecer sacrifícios.
Levantam os mesmos problemas em relação aos vinte e quatro
mil israelitas massacrados por ordem de Moisés (Números, XXV, 9),
para expiar a falta de um só que fora surpreendido com uma jovem
madianita. Vêem-se tantos reis judeus, sobretudo Salomão, esposar
impunemente estrangeiras, que esses críticos não conseguem admitir
que a união com uma madianita fosse tão grande crime : Rute era moa­
bita, embora sua família fosse originária de Belém; a Sagrada Escritura
designa sempre Rute, a moabita; no entanto, ela foi ter ao leito de
Boaz a conselho de sua mãe; dele recebeu seis alqueires de cevada, o
desposou em seguida e foi a avó de Davi. Raabe era não apenas es­
trangeira , mas uma mulher pública; a Vulgata não lhe dá outro título
senão o de meretrix (josué, VI, 17); ela esposou Salmom, príncipe de
Judá; e é ainda desse Salmom que Davi descende. Consideram inclu­
sive Raabe como a fig ura da Igreja cristã: é a opinião de vários padres,
e sobretudo de Orígenes em sua sétima homilia sobre Josué .
Betsabé, mulher d e Urias, d a qual Davi teve Salomão, era etéia.
Se remontarmos mais acima, o patriarca Judá esposou uma mulher
cananéia; seus filhos tiveram por mulher Tamar, da raça de Aram.
Essa mulher, com quem Judá cometeu , sem saber, um incesto, não
era da raça de Israel .

161
_______ Voltaire _____________

Assim, nosso Senhor Jesus Cristo dignou-se encarnar entre os


judeus uma família com cinco estrangeiras em sua árvore genealógi­
ca , para fazer ver que a s nações estrangeiras teriam parte na sua
herança .
O rabino Aben-Hezra foi, como disse, o primeiro a ousar afirmar
que o Pentateuco fora redigido muito tempo depois de Moisés. Ele
baseia-se em várias passagens. "O cananeu ( Gênesis, IX, 6) estava
então nesse país. A montanha de Moriá (/! Paralip., III, 1 ) , chamada
a montanha de Deus. O leito de Og, r ei de Bazan, s e vê ainda em
Rabat, e ele denominou toda essa região de Bazan aldeias de Jair, até
hoje. Jamais se viu , em Israel, profeta como Moisés. São estes os reis
que reinaram em Edom ( Gênesis, XXXVI , 3 1 ) antes que algum reinas­
se sobre Israel." Aben-Hezra afirma que essas passagens, em que se
fala de coisas acontecidas depois de Moisés, não podem ser de Moi­
sés. Objetam-lhe que tais passagens são notas acrescentadas muito
tempo depois pelos copistas.
Newton, cujo nome aliás só merece ser pronunciado com res­
peito, mas que pode ter-se enganado por ser homem, atribui, na
introdução a seus comentários sobre Daniel e São João, os livros de
Moisés, Josué e dos Juízes a autores sagrados muito posteriores: ba­
seia-se no capítulo XXXVI do Gênesis, em quatro capítulos dos Juízes,
XVII, XVIII, XIX, XXI ; em Samuel, cap. VIII; nas Crônicas, cap. 11; no
livro de Rute, cap. IV. Com efeito, se no cap. XXXVI do Gênesis se
fala dos reis, se eles são mencionados no livro dos Juízes, se no livro
de Rute há referência a Davi, tudo leva a crer que esses livros foram
escritos no tempo dos reis. É também a opinião de alguns teólogos,
a começar pe lo famoso Leclerc. Mas essa opinião tem apenas um

pequeno número de adeptos cuja curiosidade sonda tais abismos.


Essa curiosidade, por certo, não faz parte dos deveres do homem.
Quando os sábios e os ignorantes, os príncipes e os pastores apresen­
tarem-se após esta curta vida perante o senhor da eternidade , todos
desejarão ser justos, humanos, compassivos, generosos; ninguém se
vangloriará de ter sabido precisamente em que a no o Pentateuco foi
escrito e de ter decifrado o texto de notas que os escribas costuma­
vam tomar. Deus não nos perguntará se fomos a favor dos massore­
tes contra o Ta/mude, se alguma vez tomamos um caph por um beth,
um yod por um vaü, um daleth por um res; com toda a certeza, ele
nos julgará por nossas ações, e não pela compreensão da língua

162
------- Tratado sobre a tolerância -------

hebraica. Atemo-nos firmemente à decisão da Igreja, conforme o de­


ver razoável de um fiel .
Encerramos esta nota com uma passagem importante do Levíti­
co, livro composto após a adoração do bezerro de ouro. Ele ordena os
judeus a não mais adorar os lanosos, "os bodes, com os quais inclusi­
ve praticaram abominações infames". Não se sabe se esse estranho
culto vinha do Egito, pátria da superstição e do sortilégio; mas acredi­
ta-se que o costume de nossos supostos feiticeiros de adorar um bode
no sabá e de com ele entregar-se a infâmias inconcebíveis, cuja idéia

causa horror, proveio dos antigos judeus. Com efeito, foram eles que
ensinaram, numa parte da Europa, a feitiçaria. Que povo! Tão estranha
infâmia parecia merecer um castigo comparável ao ocasionado peio
bezerro de ouro; no entanto, o legislador contenta-se em fazer-lhe
uma simples defesa. Relatamos aqui esse fato apenas para fazer
conhecer a nação j uda ica : nela, a bestialidade devia ser comu m , por
ser a única nação conhecida na qual as leis foram forçadas a proibir
um crime jamais suspeitado alhures por algum legislador.
É de supor que nas fadigas e na penúria que os judeus expe­
rimentaram nos desertos de Farã, Oreb e Cades-Barné, a espécie fe­
minina , mais frágil que a outra, tenha sucumbido. É provável, de fato,
que os j u deu s carecessem de mulheres , já que sempre lhes foi orde­
nado, quando se apoderavam de uma cidade ou aldeia, seja à esquer­
da, seja à direita do lago Asfaltite, matar todos, exceto as jovens
núbeis.
Os árabes que habitam ainda uma parte desses desertos estipu­
lam sempre, nos tratados que fazem com as caravanas, que lhes
É possível que os rapazes, nessa região terrível,
darão jovens núbeis .
levassem a depravação da natureza até acasalarem-se com cabras,
como é dito de alguns pastores da Calábria.
Resta saber se esses acasalamentos produziram monstros e se há
algum fundamento nos antigos contos de sátiros, faunos, centauros e
minotauros; a história o afirma, mas a física não nos esclareceu ainda
sobre esse assunto monstruoso . (Nota de Voltaire.)
79. Josué, cap. XXIV, v. 1 5 ss. (Nota de Voltaire. )
80. Números, cap. XXI , v. 9. (Nota de Voltaire.)
8 1 . //. Paralip., cap. IV. (M.)
82. 11. Reis, XII , 28. (M.) [Corresponde a I Reis.]
83. Ibid. , 31. (M.)

163
--------�-- Volta ire ___�-�----�--

84. Reis, liv. III, cap . XV, v. 14 [corresponde a I Reisl; ibid. , cap.
XXII, v . 44. (Nota de Voltaire.)
85 . Reis, liv. IV, cap . XVI . (ld.) [li Reis]
86. Ibid., liv. III [/ Reis] , cap. XVIII, v. 38 e 40; ibid. , liv. IV, cap.
II, v. 24. (Id.)
87 . IV Reis [/I Reis] , II, 24. (M.)
88 . Números, cap. XXXI . (Nota de Voltaire.)
89 . Mádian não fazia parte da terra prometida. Era um pequeno
cantão da Iduméia, na Arábia Pétrea; começa ao norte no curso do rio
Arnon e vai até o Zared , em meio aos rochedos e na margem orien­
tal do lago Asfaltite. Essa região é hoje habitada por uma pequena
horda de árabes; deve ter cerca de oito léguas de comprimento e um
pouco menos de largura . (Jd.)
90. Números, XXXI 32 ss. (M .)
,

91. Números, XXXI 40. (M.)


,

92. É certo pelo texto ( juízes, XI , 39) que Jefté imolou sua filha .
"Deus não aprova esses sacrifícios, diz dom Calmet em sua Disserta­
ção sobre o juramento dejefté; mas quando foram oferecidos, ele quer
que os executem, ainda que para punir aqueles que os faziam, ou
para reprimir a leviandade com que seriam feitos se não temessem a
execução." Santo Agostinho e quase todos os padres condenam a
ação de Jefté. É verdade que a Escritura (juízes, XI, 29) diz que elefoi
tomado pelo espírito de Deus, e São Paulo, em sua Epístola aos hebreus,
cap. XI, v. 32, faz o elogio de Jefté; equipara-o a Samuel e Davi.
São Jerônimo, em sua epístola a Juliano, diz : "Jefté imolou sua
filha ao Senhor, e é por isso que o apóstolo o inclui entre os santos. "
Eis aí, de u m lado e de outro, julgamentos sobre os quais não nos é
permitido acrescentar o nosso; deve-se temer inclusive ter uma opi­
nião. (Nota de Voltaire.)
93 . Pode-se considerar a morte do rei Agag como um verdadei­
ro sacrifício. Saul havia feito esse rei dos amalecitas prisioneiro de
guerra e aceitara negociar com ele; mas o sacerdote Samuel ordenou­
lhe nada poupar; disse-lhe com estas palavras (1. Sam uel, XV, 3):
"Nada lhe poupes, porém matarás homem e mulher, meninos e crian­
ças de peito. "
"E Samuel despedaçou a Agague perante o Senhor em Gilgal . "
" O zelo que animava o profeta" , diz dom Calmet, "pôs-lhe a espa­
da na mão nessa ocasião para vingar a glória do Senhor e para humi­
lhar Saul . "

164
------- Tratado sobre a tolerância _________

Vemos, nessa fatal aventura, uma devoção, um sacerdote, uma


vítima: tratava-se, pois, de um sacrifício.
Todos os povos cuja história conhecemos sacrificaram homens
à D ivindade, exceto os chineses. Plutarco (Quest. rom . LXXXI I) conta
que os próprios romanos fizeram imolações na época da república.
Nos Comentários de César (De bello gall., I , xxiv), lemos que os
germanos imolaram os reféns que ele lhes devolvera após sua vitória .
Observei alhures que essa violação do direito das pessoas para
com os reféns de César, e essas vítimas humanas imoladas, para cúmu­
lo do horror, pela mão de mulheres, desmente um pouco o panegíri­
co que Tácito faz dos germanos, em seu tratado De moribus germa­
norum. Parece que, nesse tratado, Tácito preocupa-se mais em fa zer
a sátira dos romanos do que o elogio dos germanos, que ele não co­
nhecia .
Diga-se de passagem que Tácito gostava mais da sátira do que
da verdade. Ele quer tornar tudo odioso, inclusive as ações indiferen­
tes, e sua malignidade nos agrada quase tanto quanto seu estilo por­
que gostamos da maledicência e do engenho.
Voltemos às vítimas humanas. Nossos antepassados as imolavam
da mesma forma que os germanos: é o último grau da estupidez de
nossa natureza abandonada a si mesma e é um dos frutos da fragili­
dade de nosso julgamento. Dizemos: Cumpre oferecer a Deus o que
temos de mais precioso e de mais belo; o que temos de mais precio­
so são nossos filhos; logo, cumpre escolher os mais belos e os mais
jovens para sacrificá-los à Divindade.
Fílon diz que, na terra de Canaã, imolavam-se às vezes crianças,
antes que Deus ordenasse a Abraão sacrificar-lhe seu filho único,
!saque, para provar sua fé.
Sanchoniathon, citado por Eusébio, conta que os fenícios sacri­
ficavam, nas situações de maior perigo, o mais querido de todos os
seus filhos, e que Ilus imolou seu filho Jehud mais ou menos na
época em que Deus pôs à p ro va a fé de Abraão. É difícil penetrar nas
trevas dessa antiguidade; mas não resta dúvida de que esses horríveis
sacrifícios eram praticados quase por toda parte; os povos só os
abandonaram à medida que se civilizaram: a civilidade traz a huma­
nidade . (Nota de Voltaíre.)
94. XXXIX , 20, 1 8 . (M .)
9 5 . juízes, cap . XI , v. 24. (Nota de Voltaire .)

165
_______ Voltaire _____________

96. juízes, cap. :XVU, último versículo. (Nota de Voltaire.)


97. Reis, liv. IV [li. Reis], cap. V, v. 18 e 19. (Nota de Voltaire.)
98. Os que estão pouco a par dos costumes da Antiguidade e
que só julgam segundo o que vêem a seu redor podem ficar espan­
tados com essas singularidades; mas é preciso pensar que, então, no
Egito e numa grande parte da Ásia, a maior parte das coisas exprimia­
se por figuras, hieróglifos, sinais, modelos.
Os profetas, que eram chamados videntes entre os egípcios e os
judeus, não apenas se exprimiam em alegorias, como também repre­
sentavam por sinais os acontecimentos que anunciavam. Assim, Isaías,
o primeiro dos quatro grandes profetas judeus, pega um rolo (cap.
VIII) e escreve: " Shas bas, toma depressa os despojos"; depois apro­
xima-se da profetisa. Ela dá à luz um menino que ele chama de
Maher-chalal-shas-bas: é uma figura dos males que os povos do Egito
e da Assíria farão aos judeus.
Esse profeta diz (VII, 15, 1 6 , 18, 20) : " Ele comerá manteiga e mel
quando souber desprezar o mal e escolher o bem. Na verdade, antes
que este menino saiba desprezar o mal e escolher o bem, será desam­
parada a terra, ante cujos dois reis tu tremes de medo . . . Porque há de
acontecer que naquele dia assobiará o Senhor às moscas que há no
extremo dos rios do Egito, e às abelhas que andam na terra da Assíria . . .
Naquele dia rapar-te-á o Senhor com uma navalha alugada doutro
lado do rio , a saber, por meio da Assíria, a cabeça e os cabelos das ver­
gonhas, e tirará também a barba . "
Essa profecia das abelhas , d a barba e dos cabelos das vergonhas
raspados, só pode ser entendida por aqueles que sabem que era cos­
tume chamar os enxames com o som da flauta ou de algum outro ins­
trumento campestre; que a maior afronta que se podia fazer a um
homem era cortar-lhe a barba; que se chamava de cabelos das vergo­
nhas o pêlo do púbis; que esse pêlo só era raspado nas doenças
imundas, como a lepra. Todas essas figuras estranhas ao nosso estilo
não significam senão que o Senhor, dentro de alguns anos, libertará
seu povo da opressão.
O mesmo Isaías (cap. XX) marcha completamente nu, para assi­
nalar que o rei da Assíria levará uma multidão de cativos do Egito e
da Etiópia, que não terão com que cobrir sua nudez.
Ezequiel (cap. IV e seguinte) come o volume de pergaminho que
lhe é apresentado; em seguida cobre seu pào de excrementos e per-

1 66
------ Tratado sobre a tolerância ------

manece deitado sobre seu lado esquerdo trezentos e noventa dias, e


sobre seu lado direito quarenta dias, para dar a entender que os
judeus não terão pão e para indicar quantos anos haveria de durar o
cativeiro. Prende-se com correntes, que representam as do povo;
corta seus cabelos e sua barba e os divide em três partes: o primeiro
terço designa os que devem perecer na cidade; o segundo, os que
serão mortos fora das muralhas; o terceiro, os que serão levados à
Babilônia.
O profeta Oséias (cap. III) une-se a uma mulher adúltera, que ele
adquire por quinze peças de prata e um saco e meio de cevada: "Tu
esperarás por mim muitos dias, diz-lhe Oséias; não te prostituirás,
nem serás de outro homem; assim também esperarei por ti . Porque
os filhos de Israel ficarão por muitos dias sem rei, sem príncipe, sem
sacrifício, sem coluna, sem estola sacerdotal ou ídolos do lar. " Em
uma palavra, os nabis, os profetas, os videntes, quase nunca predi­
zem sem representar por um sinal a coisa predita .
Jeremias, portanto, não faz senão seguir o costume ao amarrar­
se com cordas e colocar cabrestos e jugos nas costas , para significar
a escravidão daqueles aos quais envia esses modelos. Se prestarmos
bem atenção, esses tempos são como os de um mundo antigo, que
em tudo difere do novo: a vida civil, as leis, a maneira de fazer a
guerra, as cerimônias da religião, tudo é absolutamente diferente.
Basta abrir Homero e o primeiro livro de Heródoto para nos conven­
cermos de que não temos nenhuma semelhança com os povos da alta
Antiguidade e de que devemos desconfiar de nosso julgamento quan­
do buscamos comparar seus costumes com os nossos .
A própria natureza não era o que é hoje. Os magos tinham sobre
ela um poder que não têm mais: encantavam serpentes, evocavam os
mortos, etc . Deus enviava sonhos, e homens os explicavam. O dom
da profecia era comum. Viam-se metamorfoses como as de Nabuco­
donosor transformado em boi, da mulher de Ló em estátua de sal, de
cinco cidades num lago betuminoso.
Havia espécies de homens que não mais existem. A raça dos gi­
gantes Refaím, Enim, Nefilim, Enacim, desapareceu . Santo Agostinho,
no livro V da Cidade de Deus, diz ter visto o dente de u m antigo
gigante cem vezes maior que os nossos molares. Ezequiel (XXVII , 1 1)
fala dos pigmeus gamaditas, da altura de um côvado, que combatiam
no cerco de Tiro. E em quase tudo isto os autores sagrados estão de

167
_______ Volta ire _____________

acordo com os profanos. As doenças e os remédios não eram os mes­


mos de nossos dias: os possessos eram curados com a raiz barad, en­
gastada num anel que lhes punham sob o nariz.
Enfim, todo esse mundo antigo era tão diferente do nosso, que
dele não se pode tirar nenhuma regra de conduta; e se, nessa Anti­
guidade recuada, os homens se perseguiram e oprimiram sucessiva­
mente a propósito de seu culto, não deveríamos imitar essa cruelda­
de sob a lei da misericórdia . (Nota de Voltaire.)
99. jeremias, cap. XXVII , v. 6. (Nota de Voltaire.)
1 00. jeremias, cap. XXVII I , v. 1 7 . (Nota de Voltaire.)
1 0 1 . Isaías, cap. XLIV e XLV. (Nota de Voltaire.)
1 0 2 . I, V. 1 1 . (M .)
103. Êxodo, cap . XX , v . 5 . (Nota de Voltaire.)
104. Deuteronômio, V, v. 16. (M . )
1 0 5 . Deuteronômio, XXVIII . (Nota de Voltaire.)
106. Há uma única passagem nas leis de Moisés da qual se pode­
ria concluir que ele conhecia a opinião reinante entre os egípcios, de
que a alma não morre com o corpo; essa passagem é mu ito impor­
tante, e se encontra no capítulo XVIII do Deuteronômio: "Não se
achará entre ti quem faça passar pelo fogo o seu filho ou a sua filha,
nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro;
nem encantador, nem necromante, nem mágico, nem quem consulte
os mortos. "
Essa passagem parece indicar que, s e evocavam a s almas dos
mortos, tal sortilégio supunha a permanência das almas. Pode ser
também que os magos de que fala Moisés, sendo apenas trapaceiros,
não tivessem uma idéia clara do sortilégio que julgavam operar. Eles
faziam crer que forçavam os mortos a falar, que os repunham, por sua
magia , na situação em que esses corpos tinham estado em vida , sem
examinar ao menos se era possível inferir ou não de suas operações
ridículas o dogma da imortalidade da alma. Os feiticeiros jamais
foram filósofos, sempre foram charlatães que representavam diante
de imbecis.
Pode-se observar ainda que é bastante estranho a palavra Píton
encontrar-se no Deuteronômio, muito tempo antes que essa palavra
grega pudesse ser conhecida pelos hebreus: assim, Píton não tem
nenhuma tradução exata na língua hebraica.
Essa língua tem dificuldades insuperáveis: é uma mistura de fe­
nício, egípcio, sírio e árabe; e essa mistura encontra-se hoje muito ai-

1 68
_____ Tratado sobre a tolerância -----

terada. O hebraico sempre teve apenas dois modos para os verbos, o


presente e o futuro: é preciso adivinhar os outros modos pelo senti­
do. Vogais diferentes eram com freqüência expressas pelos mesmos
caracteres; ou, então, não se expressavam as vogais, e os inventores
dos pontos só fizeram aumentar a dificuldade. Cada advérbio tem
vinte significados diferentes. A mesma palavra é tomada em sentidos
contrários.
Acrescente-se a isso a secura e a pobreza da linguagem: os ju­
deus, privados das artes, não podiam exprimir o que ignoravam . Em
uma palavra, o hebraico está para o grego assim como a linguagem
de um camponês para a de um acadêmico. (Nota de Voltaire.) Vol­
taire tem em vista o livro do teólogo inglês W. Warburton, The divine
legation of Moses demonstrated.
1 07 . Ezequiel, cap. XVIII, v. 20. (Nota de Voltaire.)
1 08 . Ibid., cap. XX, v. 25. (Nota de Voltaire.)
1 09 . A opinião de Ezequiel prevaleceu enfim na sinagoga; mas
houve judeus que, acreditando nos castigos eternos, acreditavam
também que Deus perseguia nos filhos as iniqüidades dos pais; hoje
eles são punidos para além da qüinquagésima geração e têm ainda a
temer os castigos eternos. Pergunta-se de que maneira os descenden­
tes dos judeus, que não eram cúmplices da morte de Jesus Cristo, os
que, estando em Jerusalém, não participaram dela e os que se espa­
lharam pelo resto da terra podem ser temporalmente punidos em
seus filhos, tão inocentes quanto seus pais. Essa punição temporal,
ou, antes, essa maneira de existir diferente de outros povos e de pra­
ticar o comércio sem ter pátria, pode não ser vista como um castigo
em comparação com as penas eternas que eles atraem sobre si por
sua incredulidade e que são capazes de evitar através de uma conver­
são sincera . (Nota de Voltaire.)
1 10. Os que quiseram encontrar no Pentateuco a doutrina do
inferno e do paraíso, tais como os concebemos, equivocaram-se es­
tranhamente. Seu erro baseou-se apenas numa vã disputa de pala­
vras; tendo a Vulgata traduzido o termo hebraico sheol, fossa, pelo la­
tino infernum, inferno, serviram-se desse equívoco para fazer crer que
os antigos h ebreus tinham a noção de Hades e de Tártaro dos gre­
gos, que outras nações conheceram antes sob nomes diferentes .
É dito no capítulo XVI dos Números (3 1 -33) que a terra abriu
sua boca sob as tendas de Coré, Datã e Abirã, que os devorou com

1 69
_______ Voltaire _____________

suas tendas e seus bens, e que eles foram precipitados vivos na mo­
rada dos mortos. Certamente esse lugar não se refere às almas des­
ses três hebreus, nem aos tormentos do inferno, nem a uma punição
eterna.
É estranho que, no Dictionnaire encyclopédique, no termo IN­
FERNO, seja dito que os antigos hebreus reconheceram sua realida­
de. Se fosse assim, haveria uma contradição insustentável no Penta­
teuco. Como se explicaria que Moisés tivesse falado numa passagem
isolada e única dos castigos após a morte e que deles não tivesse fala­
do em suas leis? Cita-se o trigésimo segundo capítulo do Deutero­
nômio (versículos 2 1 -24), mas de maneira truncada; ei-lo aqui na ín­
tegra: "Provocaram-me com aquilo que não era Deus, e irritaram-me
com sua vaidade; também eu os provocarei naquilo que não é um
povo, e os irritarei com uma nação insensata . Porque se acendeu o
fogo de minha cólera, e ele arderá até ao fundo da terra; devorará a
terra com seus produtos e abrasará os fundamentos das montanhas;
e acumularei sobre eles os males, e empregarei contra eles minhas
flechas; serão consumidos pela fome, as aves os atacarão com bica­
das dolorosas; mandarei sobre eles os dentes das feras e das serpen­
tes que se arrastam com furor sobre a terra . " •
Acaso existe alguma relação entre essas expressões e a idéia das
punições infernais tais como as concebemos? Parece antes que essas
palavras só tenham sido mencionadas para tornar evidente que nosso
inferno era ignorado pelos antigos judeus.
O autor desse artigo no Dictionnaire encyclopédique cita ainda
a passagem de Jó, no capítulo XXIV ( 1 5- 1 9) . "Aguardam o crepúscu­
lo os olhos do adúltero; este diz consigo: Ninguém me reconhecerá ;
e cobre o rosto. Nas trevas minam as casas, de dia se conservam en­
cerrados, nada querem com a luz. Pois a manhã para todos eles é
como sombra de morte; mas os terrores da noite lhes são familiares.
Vós dizeis: Os perversos são levados rapidamente na superfície das
águas; maldita é a porção dos tais na terra; já não andam pelo cami­
nho das vinhas . A secura e o calor desfazem as águas da neve; assim
faz a sepultura dos que pecaram." Ou então: "O túmulo dissipou os

• Esta citação é traduzida de Voltaire. A tradução de João Ferreira de Al­


meida , aqui empregada, apresenta diferenças. Notadamente, diz "ao mais pro­
fundo do inferno " , onde está "ao fundo da terra" . (N . do T.)

170
------ Tratado sobre a tolerâ ncia __________

que pecam" ; ou ainda, segundo a versão dos Setenta, "Seu pecado foi
trazido à memória".
Cito as passagens inteiras, e literalmente, sem o quê é sempre
impossível formar-se a respeito delas uma idéia verdadeira .
Existe aí, eu vos pergunto, a menor palavra a partir da qual se
possa concluir que Moisés ensinou aos judeus a doutrina clara e sim­
ples dos castigos e recompensas após a morte?
O livro de ]ó não tem relação com as leis de Moisés. Ademais, é
muito provável que ]ó não fosse judeu: é a opinião de São Jerônimo
em suas questões hebraicas sobre o Gênesis. A palavra Satanás, que
está em ]ó (I, 1 , 6, 1 2) , não era conhecida dos judeus, e jamais apa­
rece no Pentateuco. Os judeus só ficaram sabendo desse nome 'na
Caldéia, assim como os nomes Gabriel e Rafael , desconhecidos antes
de sua escravidão na Babilônia. Portanto Jó é muito mal citado a esse
respeito.
Cita-se ainda o último capítulo de Isaías (23, 24): "E de uma lua
nova à outra, e de um sábado a outro, virá toda a carne a adorar
perante mim, diz o Senhor. Eles sairão, e verão os cadáveres dos ho­
mens que prevaricaram contra mim; porque o seu verme nunca mor­
rerá, nem o seu fogo se apagará; e eles serão um horror para toda a
carne . "
Certamente, s e são expostos à visão dos passantes e comidos
pelos vermes, isso não quer dizer que Moisés ensinou aos judeus o
dogma da imortalidade da alma; e as palavras O fogo não se apagará
não significam que cadáveres expostos à visão do povo sofram as
penas eternas do inferno.
Como se pode citar uma passagem de Isaías para provar que os
judeus do tempo de Moisés receberam o dogma da imortalidade da
alma? Isaías profetizava, segundo o cálculo hebraico, no ano 3380 do
mundo. Moisés viveu por volta do ano 2500; transcorreram oito sécu­
los entre um e outro. É um insulto ao senso comum, ou uma simples
brincadeira, abusar assim da permissão de citar e pretender provar
que um autor sustentou tal opinião através de uma passagem de um
autor vindo oitocentos anos depois e não falou dessa opinião. É indu­
bitável que a imortalidade da alma, os castigos e as recompensas
após a morte são anunciados, reconhecidos, constatados no Novo
Testamento, e é indubitável que não se encontram em nenhum lugar
do Pentateuco; e isto é o que o grande Arnauld diz claramente e com
vigor em sua apologia de Port-Royal .

171
_______ Voltaire __________ ___

Os judeus, acreditando depois na imortalidade da alma, não


foram esclarecidos sobre sua es p iritualidade; pensaram, como qu a se
todas as outras nações, que a alma é algo de solto, aéreo, uma subs­
tância leve, que conservava alguma semelhança com o corpo que h a­
via animado; é o que ch a m am de sombras, os manes dos corpos. Essa
opinião foi a de vários padres da Igreja . Tertuliano, em seu capítulo
XXII de Acerca da alma, exp rim e se assim: "Definimus animam Dei
-

flatu natam, immortalem, c orp oral em effi giatam, substantia simpli­


,

c em - Definimos a alma nascida do sopro de Deus, imortal, corpo­


.

ral, figurada, simples em sua substância. "


Santo Irineu diz, em seu livro I I , cap . XXXIV : "Incorporales sunt
animae quantum ad comparationem mortalium corporum. - As almas
são incorpóreas em comparação com os corpos mortais . " Ele acres­
centa que "Jesus Cristo ensinou que as almas conservam as imagens do
corpo - caracterem corporum in quo ado ptantu r etc . " Ao que se saiba,
,

Jesu s Cristo jamais ensinou essa dou trina, e é difícil adivinhar o sentido
de Santo Ir ineu
.

Santo Hilário é mais formal e mais posit ivo em seu comentário sobre
Santo Mate u s . Atribui cla ramen te uma substância corporal à alma : "Corpo­
re a m naturae suae substantiam sortiuntur."
Santo Ambrósio, acerca de Abraão , livro II, cap . VIII, afirma que não
há na da de separado da matéria, a não ser a substância da Santíssima
Trindade.
esses homens respeitáveis de fazerem má filo­
Poder-se-ia censurar
sofia ; mas no fundo, sua teologia fosse ba stan te correta,
é de supor que,
uma vez que, não conhecendo a natureza incompreensível da alma , asse­
guravam-na imortal e a queriam cristã .
Sabemos que a alma é espi ritual mas não sabe mos em absoluto o
,

que vem a ser o espírito. Conhecemos muito i mp erfe ita mente a ma téria ,
e nos é impossível ter uma idéia clara do que não é matéria. Muito pouco
informados sobre o q ue afeta nossos sent id os nada p odemos conhecer
,

por nós mesmos acerca do que está além dos sentidos. Transpor­
tamos algumas palavras de no s s a linguagem comum aos abismos da
metafísica e da teologia , para termos uma vaga idéia das coisas que
não podemos conceber nem exprimir; procuramos nos apoiar nessas
palavras, para sustentar, se possível , nosso frágil entendimento nes­
sas regiões ignoradas.
Assim, utilizamo-nos da palavra espírito, que corresponde a so­
pro e vento, para exprimir algo que não é matéria; e dessas pa lavra s

1 72
---- Tratado sobre a tolerância ----

sopro, vento, espírito, remetendo-nos involuntariamente à idéia de


uma substância s ol ta e leve, nós ainda tiram os o que podemos, para
chegar a conceber a espiritualidade pura . Mas não chegamos jamais
a uma noção distinta; não sabemos sequer o que dizemos ao pronun­
ciarmos a palavra substância; significa, literalmente, o que está abai­
xo e, por isso mesmo, nos adverte que é incompreensível: pois o que
vem a ser, de fato, o que está abaixo? O conhecimento dos segredos
de Deus não está destinado a esta vida. Mergulhados em trevas pro­
fundas, batem-nos uns contra os outros e atingimo-nos ao acaso em
meio a essa noite, sem saber precisamente por que combatemos.
Se quisermos refletir atentamente sobre tudo isso, não haverá
homem razoável que não conclua que devemos ter indulgência para
com as opiniões dos outros, e reconhecer seu direito .
Todas essas observações não são alheias ao fundo da questão,
que consiste em saber se os homens devem se tolerar; pois, se elas
provam o quanto houve de enganos de parte a parte em todos os
tempos, provam também que os homens precisaram, em todos os tem­
pos, tratar-se com indulgência. (Nota de Voltaire.)
1 1 1 . O dogma da fatalidade é antigo e universal; encontra-se a
todo momento em Homero. Júpiter queria salvar a vida de seu filho
Sarpédon; mas o destino o condenou à morte e Júpiter teve de obe­
decer. Entre os filósofos , o destino era, ou o encadeamento necessá­
rio das causas e dos efeitos necessariamente produzidos pela nature­
za, ou esse mesmo encadeamento ordenado pela Providência, o que
é bem mais razoável . Todo o sistema da fatalidade está contido nesta
frase de Sêneca (epístola CVII) : Ducunt volentem fata, nolentem tra­
hunt [Os fatos guiam a quem se deixa levar, arrastam a quem resiste] .
Sempre se esteve de acordo com que Deus governava o univer­
so por leis eternas, universais, imutáveis. Essa verdade foi a origem
de todas as disputas ininteligíveis sobre a liberdade, porque jamais se
definiu a liberdade, até surgir o sábio Locke. Este demonstrou que a
liberdade é o poder de agir. Deus concede esse poder; e o homem,
agindo livremente segundo as ordens eternas de Deus, é uma das
rodas da grande máquina do mundo. Toda a Antiguidade discutiu so­
bre a liberdade ; mas até os nossos dias ninguém foi perseguido por
isso. Que horror absurdo terem aprisionado, exilado, por causa dessa
disputa, um Arnauld, um Sacy, um Nicole e tantos outros que foram
a luz da França! (Nota de Voltaire.)

1 73
------- Voltaire _____________

1 1 2 . O romance teológico da metempsicose vem da Í ndia, da


qual recebemos muitas outras fábulas sem que geralmente o saiba­
mos. Esse dogma é explicado no admirável décimo quinto livro das
Metamorfoses de Ovídio. Foi aceito em quase toda a terra e sempre
foi combatido; mas não sabemos de nenhum sacerdote da Antigui­
dade que alguma vez tenha dado uma ordem de prisão a um discípu­
lo de Pitágoras. (Nota de Voltaire.)
1 1 3. Nem os antigos judeus, nem os egípcios, nem seus contem­
porãneos gregos acreditavam que a alma do homem fosse para o céu
após a morte. Os judeus pensavam que a Lua e o Sol estavam a algu­
mas léguas acima de nós, no mesmo círculo, e que o firmamento era
uma abóbada espessa e sólida que sustentava o peso das águas, que
escapavam por algumas aberturas. O palácio dos deuses, entre os
antigos gregos, encontrava-se no monte Olimpo. A morada dos heróis
após a morte situava-se, no tempo de Homero, numa ilha além do
oceano, e era esta a opinião dos essênios.
Desde Homero, atribuíram-se planetas aos deuses, mas para os
homens não havia mais razão de colocar um deus na Lua do que para
os habitantes da Lua de colocar um deus no planeta Terra. )uno e Í ris
não tiveram outros palácios, a não ser as nuvens; lá não havia onde
repousar o pé. Entre os sabeus, cada deus tinha sua estrela; mas sen­
do uma estrela um sol, não há como habitá-la, a menos que se tenha
a natureza d o fogo. Portanto é uma questão bastante inútil perguntar
o que os antigos pensavam do céu . A melhor resposta é que não pen­
savam. (Nota de Voltaire.)
1 1 4. São Mateus, cap. XXII, v. 4. (Nota de Voltaire.)
1 1 5 . São Lucas, cap. XIV. (Nota de Voltaire.)
1 1 6. Versículo 23. (M.)
1 1 7 . Lucas, XIV, 1 2 . (M.)
1 18 . São Lucas, cap. XIV, v. 26 e ss. (Nota de Voltaire.)
1 1 9. São Mateus, cap. XVIII, v. 1 7 . (Nota de Voltaire.)
1 20. Mateus, XI, 19. (M. )
1 2 1 . Marcos, XI, 1 3 . (M.)
122. Lucas, XV. (M. )
1 23. Mateus, XX . ( M.)
1 24. Lucas, X. ( M . )
1 2 5 . Mateus, IX, 1 5 . (M . )
1 26. Lucas, VII, 4 8 . (M.)

1 74
_______ Tratado sobre a tolerância _________

1 27 . João, VIII, 1 1 . (M .)
1 28. João, II, 9. (M.)
1 29 . Mateus, XXVI , 52; João, XVIII, 1 1 . (M.)
130. Lucas, IX, 55. (M.)
1 3 1 . Lucas, XXIII, 34. (M.)
132. Lucas, XXII, 44. (M.)
1 33. São Mateus, cap. XXIII. (Nota de Voltaire.)
1 34. Jbid., cap. XXVI, v. 59. (Nota de Voltaire.)
1 3 5 . Mateus, cap. XXVI, v. 6 1 . (Nota de Voltaire.)
1 36. Mateus, cap. XXVI, v. 63. (M. )
1 3 7 . Era d e fato muito difícil aos judeus, para não dizer impos­
sível, compreender, sem uma revelação particular, esse mistério ine­
fável da encarnação do Filho de Deus, do próprio Deus. O Gênesis
(cap. VI) chama filhos de Deus os filhos dos homens poderosos; do
mesmo modo, os grandes cedros, nos salmos (LXXIX , 1 1) , são cha­
mados cedros de Deus. Samuel (I. Reis, XVI , 1 5) diz que um terror de
Deus tomou conta do povo, ou seja, um grande terror; um grande
vento, um vento de Deus; a doença de Sau l , melancolia de Deus. No
entanto, parece que os judeus entenderam literalmente que Jesus se
disse filho de Deus no sentido próprio; mas, se consideraram essas
palavras uma blasfêmia, talvez seja uma prova a mais de sua ignorân­
cia a respeito do mistério da encarnação e de Deus, filho de Deus,
enviado à terra para a salvação dos homens. (Nota de Voltaire.)
1 38. Mateus, XXVI, 64. (M.)
1 39 . Acta apost. , XXV, 16. (M. )
140. Capítulo 1 3 , "Admoestação mui respeitosa aos Inquisidores
da Espanha e Portugal" .
1 4 1 . E m 1 653, o papa havia condenado n o Augustinus d e Jan­
senius cinco proposições. Os jansenistas opuseram uma longa resis­
tência, baseando-se no fato de que elas não aparecem literalmente no
Augustínus.
1 42 . João, XIV, 28. (M.)
143. La Rochefoucauld, máxima 223 .
144. Quando escrevíamos assim, em 1 762, a ordem dos jesuítas
não havia sido abolida na França. Se eles tivessem sido injustiçados,
o autor certamente os teria respeitado. Mas que se saiba para sempre
que foram perseguidos apenas porque haviam sido perseguidores; e

175
_______ Voltaire _____________

que seu exemplo faça tremer aqueles que , sendo mais intolerantes
que os jesuítas, gostariam de oprimir um dia os concidadãos que não
abraçassem suas opiniões duras e absurdas. (Nota de Voltaire.) Essa
nota foi acrescentada em 1 77 1 . (M.)
145. O padre Le Tellier foi o confessor de Luís XIV ao final de sua
vida. Acusavam-no de haver inspirado a política intolerante do rei.
146. A pólvora de canhão. (M. )
147. Em 1 7 1 4 , ano em que Voltaire supõe ter sido escrita a carta
que forma esse capítulo, só existiam na França doze parlamentos. (M.)
1 48. Essa inicial é a do nome de Ravaillac; é o próprio Voltaire
que o informa em seu A vis au public sur les parricides imputés aux
Calas e aux Sirven [Esclarecimento ao público sobre os parricídios
imputados aos Calas e aos Sirven] . (M. )
149. Act., v . 2 9 . (M . )
1 50. Voltaire fala também dessa seita, sem dar s e u nome, num
adendo ao artigo "Batismo" do Dictionnaire philosophique ( 1 767) e
no capítulo 42 de Dieu et les hom mes (1 769) .
1 5 1 . Voltaire refere-se a oito crianças ressuscitadas, em seu ver­
bete sobre São Francisco Xavier do Dictionnaire philosophique. (M .)
1 52 . O arrabalde Saint-Marceau , no bairro que conserva ainda
hoje esse nome, um dos bairros mais miseráveis de Paris no século
XVIII, onde se encontravam o cemitério de Saint-Médard e o túmulo
do diácono Pâris, local de reunião dos "convulsionários" jansenistas.
Uma pediculose é uma doença "na qual se forma um grande núme­
ro de piolhos" (Littré).
1 5 3 . I. Cor. , XV, 36. (M.)
1 54 . Veja-se o excelente livro intitulado Le manuel de l 'Inquisi­
tion. (Nota de Voltaire.) O livro que Voltaire recomenda aqui, com
-

razão, é Le manuel des inquisiteurs à l 'usage des Inquisitions d 'Es­


pagne et de Portugal, ou Abrégé de l'ouvrage intitulé Directorium
inquisitorum, composé, vers 1358, par Nicolas Eymerie, etc . , 1 762 , in-
1 2 ; o autor do Manual é o abade Morellet. (B.)
155. É de acordo com a obra do abade Morellet, citada na nota
precedente, que redijo os nomes Cuchalon, Roias e Felynus (em vez
de Chucalon, Royas e Telinus que se lêem em outras edições). Os
nomes Gomarus, Diabarus e Geme/i n us me parecem também altera­
dos; procurei-os em vão, não somente na obra de Morellet, mas ainda
em vários bibliógrafos nacionais e profissionais; em vez de Gomarus,

176
------- Tratado sobre a tolerância -------

Gemelinus, talvez devêssemos ler Gomez e Geminianus, mas não


posso explicar Diabarus. (B.)
1 56. Lucas, X, 27. (M.)
1 5 7 . O abade Malvaux. Veja-se a nota 38. (M.)
1 58. Do abade de Caveyrac.
1 59. Négociations en Hollande, 6 vol . , 1752-53. (M.)
1 60. Veja-se acima, capítulo XVII . (M. )
161 . Aqui termina o Traité de la toléra nce na edição d e 1 7 6 3 ; o
artigo que segue foi acrescentado, em 1765, na impressão que faz
parte do segundo tomo de Nouveaux mélanges. (M.)
1 62. O arcebispo de Paris, Christophe de Beaumont, imitado por
alguns bispos de província, decidiu recusar os últimos sacramentos
aos agonizantes que não apresentassem um bilhete de confissão assi­
nado por um padre não jansenista; a conseqüência era que o defun­
to não o btinha a sepultura cristã. Disso resultou uma forte agitação
popular, apoiada pelo parlamento de Paris. Luís XV só conseguirá pôr
fim a ela, mediante um compromisso, em 1 757. - O padre La Valette,
missionário jesuíta nas Antilhas, havia se lançado, sem o conhecimen­
to dos superiores, em vastas operações comerciais . Foi à bancarrota,
arrastando em sua ruína banqueiros de Marselha . A Companhia recu­
sou-se a reembolsar os credores do padre La Valette e preferiu levar
o caso ao parlamento de Paris, muito hostil aos jesuítas . As medidas
tomadas pelo parlamento culminaram na supressão da Companhia
de Jesus na França ( 1 7 64) e em seu banimento (1767).
1 63 . Por d'Aiembert, 1 765 , in- 1 2 ; 1 767, in- 1 2 ; e nas Obras deste
autor. (M .)
164. Mémoire à consulter et Consultation pour les enfants du
défuntj. Calas, marcband à Toulouse. Deliberado em Paris, em 22 de
janeiro de 1 765 . Assinado: Lambon, Mallard, d'Outremont, Mariette,
Gerbier, Legouvé, Loyseau de Mauléon, É lie de Beaumont. (M.)
165. Em 1 744, os exércitos ingleses e austríacos invadiam a
Lore n a e a Alsácia. Luís XV assumiu pessoalmente o comando do
exército. Chegando a Metz, cai gravemente enfermo. Teme-se por sua
vida . Esse acontecimento suscitou em todo o reino uma emoção in­
tensa . O povo afluía às igrejas para pedir a Deus a cura do rei . Foi
então que Luís XV recebeu o cognome de Bem-Amado.

1 77
Bibliografia

1 . Outros textos de Voltaire sobre a tolerância:

La Hem'iade (1728), em Oeuvres completes, The Volta ire Foundation,


O:xford 1970, t. li, em particular cantos li (a Noite de São Bar­
,

tolomeu) e V (assassinato de Henrique III).


Zafre, tragédia ( 1 732), em Oeuvres completes, The Voltaire Foun­
dation, O:xford, 1988, t. VIII .
Lettres pbilosopbiques (1734), ed . Lanson, nova tiragem, Paris, Didier,
1 964, 2 vol.
Mabomet, tragédia (1741), em 1béâtre do XVIII' siecle, t. I, p. p. J.
Truchet, Bibliotheque de la Pléaide, 1972.
La !oi naturelle (1752), em Oeuvres completes, ed. L. Moland, Paris,
Garnier, 1 877, t. IX.
Textos de Voltaire em favor dos Calas (1762) em Oeuvres completes,
ed. L. Moland, 1879, t. XXIV, pp. 365-4 1 1 .
Dictionnaire pbilosopbique (1764-1765), art. "Tolérance" , Paris, GF,
1 964.
Relation de la mort du cbevalier de La Barre ( 1766) , em Oeuvres com­
pletes, ed. L. Moland, 1879, t. XXV, pp. 503-16.
Avis au public sur les parricides imputés aux Calas et aux Siroen (1766),
em Oeuvres completes, ed. L. Moland, 1879, t. XXV, pp. 517-37.
Questions sur l'Encyclopédie, art. "Tolérance " 0 772), em Oeuvres
completes, ed. L. Moland, 1879, t. XX.
Le cri du sang innocent (1775), a Luís XVI , por uma revisão do pro­
cesso La Barre, em Oeuvres completes, ed. L. Moland, 1879, t. XXIX,
pp. 375-89.

1 79
______ Voltaire ____________

Voltaire, L 'affaire Calas, prefácio de ]. Van den Henvel, Paris, Folio,


1 975 (textos de Voltaire sobre os casos Calas, Sirven, Lally, La Barre).

2. Sobre o caso Calas:

BIEN (David D .), Tbe Calas A.ffair, Princeton, 1960.


CHOSSAIGNE (Marc), L 'affaire Calas, Paris, Perrin, 1 929.
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POMEAU (René), "Nouveau regard sur le dossier Calas " , Europe,
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POMEAU (René), "Voltaire et Rousseau devant l'affaire Calas", em Vol­
taire, Rousseau et la toleránce, Amsterdam, Maison Descartes, 1 980.

3. Sobre a questão da tolerância:

BAYLE (Pierre), Oeuvres diverses, p. p. Alain Niderst, Paris, "Les clas­


siques du peuple" , 1 97 1 .
BAYLE (Pierre), Ce que c 'est que la France toute catholique, Paris,
Vrin, 1 973, ed. por E. Labrousse com a colaboração de H. Himel­
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LOCKE ( John), Lettre sur la tolérance, texto latino e tradução france­
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Número especial da Revue de la Société d 'h istoire du protestantisme


français: atas do colóquio sobre o segundo centenário do Edito
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La tolérance, république de l'esprit, atas do colóquio "Liberté des
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bro de 1987 , Paris, "Les Bergers et les Mages" , 1988.
POMEAU (René) , La religion de Voltaire, Paris, Nizet, 1969.
POMEAU (René), "Une idée neuve au XVIII• siecle, la tolérance", na
Revue de la Societé d 'histoire du protestantisme français, acima.
POMEAU (René), "Voltaire et la tolérance" , em La tolérance, républi­
que de l 'esprit, acima.

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