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Feliz Ano Velho

Marcelo Rubens Paiva


Obra autobiográfica de Marcelo Rubens Paiva, que
marcou uma geração de leitores, tornando-
se
referência na literatura brasileira contemporânea. Publicado em 1982, o
relato aborda a trajetória do autor a partir do acidente que o deixou em
uma cadeira de rodas, às vésperas do Natal de 1979. O jovem paulista
de classe média, estudante de Engenharia na Unicamp, com uma vida
bastante intensa, muitas amizades e relações, tem sua existência
transformada de repente durante um passeio com um
grupo de amigos. Marcelo, por brincadeira e sem avaliar
consequências, resolve dar um mergulho num lago de
pouca profundidade “com a pose do Tio Patinhas”.
Veja como começa o livro:
BIIIIIIIN
14 DE DEZEMBRO DE 1979
17 HORAS
SOL EM CONJUNÇÃO COM NETUNO E EM OPOSIÇÃO A VÊNUS
Subi numa pedra e gritei: — Aí, Gregor, vou descobrir o tesouro que você escondeu
aqui embaixo, seu milionário disfarçado.
Pulei com a pose do Tio Patinhas, bati a cabeça no chão e foi aí que ouvi a melodia:
biiiiiiin.
Estava debaixo d’água, não mexia os braços nem as pernas, somente via a água
barrenta e ouvia: biiiiiiin. Acabara toda a loucura, baixou o santo e me deu um estado
total de lucidez: "Estou morrendo afogado.“
Todos começaram a cair na realidade e alguém falou em hospital. Lá chegando,
Marcelo percebeu que sua situação era grave pela forma como foi recebido e pela
preocupação do corpo clínico. Os testes preliminares revelaram que só havia
sensibilidade acima do pescoço.
Do lado de cá dos trilhos
O autor fala de sua origem burguesa, “o lado de cá dos trilhos”, pois do outro lado
estava a periferia.
UTI
Unidade de Terapia Intensiva

Ao acordar, o narrador se vê ligado a uma série de aparelhos. Então lembrou o


acidente. Ficou sabendo que fora operado. Começa a receber o atendimento dos
simpáticos enfermeiros (refeição, banho, etc.) e está curioso para entender o seu
estado clínico.
“Finalmente chegou minha mãe; a primeira reação que tive foi a de sentir vergonha
pela cagada que havia feito: me atirar num lago de meio metro, bêbado.
— Você quebrou a quinta vértebra cervical e comprimiu a medula.”
Através das visitas, surgem lembranças do narrador, permitindo ao leitor descobrir
lentamente seu passado. Marcelo estuda Engenharia Agrícola em Campinas e, como
sua família é de São Paulo, vive em uma república com outros estudantes e amigos.
Começa a ler (leem para ele) o recém lançado “O que é isso, Companheiro?”, de
Fernando Gabeira, obra que faz parte da literatura-depoimento que surge a partir da
Abertura Política. O ano termina e Marcelo pensa nos projetos que todos fazem a cada
início de ano e conclui que, se não puder voltar a andar, dará um jeito de se matar
(“Feliz Ano Velho, adeus Ano-Novo”).
Hospital Paraíso, São Paulo
Marcelo é transferido de Campinas para um hospital de São Paulo
(“Chique pra burro”). E havia boas novas: ia colocar um colete de ferro para poder
sentar e, além disso, alimentar-se com comida, sem caninhos.
Em um flashback para a infância, Marcelo traz recordações de seu pai. No início do
anos 70, moravam no Rio (Leblon) e seu pai estava mais caseiro, pois não havia o que
fazer politicamente (ele fora deputado cassado do PTB), então sobrava tempo para a
família e para Marcelo. Em seguida, há o relato do desaparecimento do pai, em janeiro
de 1971. “Passei anos da minha vida sem saber se tinha ainda um pai ou não”.
Emoção no hospital com a chegada do colete para o pescoço. O médico é recebido sob
aplausos. Era preciso erguer a cama aos poucos. Nas primeiras vezes, Marcelo
desmaiava. Agora havia outro fisioterapeuta, o Osório, que tinha um estilo mais
objetivo, mais incisivo.
No início dos anos 80, intensificam-se novas articulações políticas, em vista do cenário
recente: abertura e anistia. Velhos políticos e exilados haviam retornado ao Brasil.
Marcelo recebe um telegrama de Leonel Brizola sobre uma possível visita. Lembrou
que seu pai fora da turma de Jango, do PTB. Brizola acabou não podendo ir, mas foi
sua esposa. Nessa época, Marcelo já era filiado ao recém criado PT.
Os dias de feriado foram de muito bate-papo com amigos
que não gostam de Carnaval. Surgem recordações do grupo
musical que Marcelo e os amigos Cassy, Bira, Otaviano e Matheus criaram na
faculdade. Pensaram em vários nomes: Conjunto Conjuntinho, Os Bitols, Os Bostas (foi
o que ficou). Fizeram tanto sucesso no campus que forma convidados até para fazer
show em Limeira. Mais adiante, chegaram a participar de um festival da TV Cultura,
inclusive se classificando entre os finalistas.
De volta ao quarto, após quase três meses, sua cama já pode ser
inclinada trinta graus, permitindo que ele olhe pela janela as
árvores, os pássaros, o sol...
Em seguida, lembranças das eleições (indiretas ainda) de 1978:
“Na faculdade, em 78, a gente ouvia falar num tal de Lula, líder sindical
em São Bernardo do Campo, que saía quase todos os dias no Jornal
Nacional. O governo e seu porta-voz, a Globo, usavam o tal de Lula pra
mostrar os novos caminhos de um sindicalismo moderado e não nas
mãos comunistas de antes de 64. O barbudo soava como fruto da
redemocratização do Geisel, que a sociedade estava se organizando
livremente e que já, já, o país virava uma democracia.”
“A Libelu chamava o Lula de pelego, mas a verdade é que, pra mim
e pra maioria dos estudantes, ele era uma grande
incógnita. (...)”
Seguem comentários do narrador (que se filiou ao PT) também em relação à
política estudantil, na qual estava fortemente envolvido (DCE-Unicamp, UEE-SP,
UNE).
“Sofri o acidente, e, ao lado do Hospital Paraíso, no Colégio Sion, foi feito o
encontro de fundação do Partido dos Trabalhadores. E o meu quarto estava se
tornando ponto de encontro dos amigos do Marcelo que participavam do
encontro do partido. (...) Orgulho-me de ser um dos primeiros filiados do PT e
um dia ainda direi pros meus filhos:
— Tá vendo, sabia que isso ia dar certo...”
De volta ao presente, Marcelo senta-se com setenta graus de inclinação. Chega
a cadeira de rodas e, pela primeira vez em meses, o narrador vai dar um
passeio. Examinado pelo médico, finalmente recebe alta. Marcelo vai para
casa.
Apartamento

Foi contratada uma enfermeira para Marcelo. Era uma “alemãzona”,


Stella, “um brutamontes com ombros de nadadora russa”. Osório, o fisioterapeuta,
viria três vezes por semana. Durante o dia, lia, olhava TV e dava passeios pelo
apartamento. No final da tarde, chegavam os amigos e a sala ficava cheia. Com o
fim das férias, os amigos de Campinas tiveram de voltar pra faculdade.
Depois de algum tempo, Marcelo não suportava mais a enfermeira e a mandou
embora. Para o lugar dela foi contratado “um neguinho mirradinho, uma cara de
malandro”. Como ele era corintiano e festeiro, imediatamente houve identificação
entre paciente e enfermeiro. Também é contratada uma Terapeuta Ocupacional,
que mostra a Marcelo como ser mais independente, apesar das limitações. Em
outubro de 1980, Marcelo vai ao BBB, uma instituição de reabilitação para
deficientes físicos. Lá conhece pessoas em situação semelhante e, em meio a
conversas e conselhos, começa a encarar seu problema de outra forma. Assim
falou um dos pacientes do BBB:
“— O negócio é o seguinte: o passado aconteceu, foi bom, mas não volta mais.
Agora a gente tá noutra. Você está na beira de uma escada e tem muitos degraus
pra subir. Cada degrau é uma tremenda vitória que tem que ser muito
comemorada. Olhar pra trás não adianta. Aconteceu.”

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