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Niketche: uma história de

poligamia

1
Paulina Chiziane

2
Niketche possibilita discutir a situação da mulher,
bem como o seu papel em uma sociedade
africana.

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Ainda traz um quadro sobre a representação feminina,
inserida em uma cultura poligâmica e patriarcal, desde os
primórdios até a contemporaneidade.

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A mulher, nesse quadro apresentado por Niketche, deve
cumprir obrigações e atender às expectativas, no que
tange aos papéis sociais, sem maiores questionamentos.

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Essa é a realidade compartilhada pela protagonista Rami,
que narra em primeira pessoa a sua história com a de seu
marido Tony, em Moçambique, durante o pós-guerra.

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Ganha projeção também a temática da
‘sororidade’, ou seja, a união entre as mulheres e
a solidariedade que se faz praticada entre elas.

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A rigor, um princípio basilar do feminismo –
“juntas somos mais fortes”.

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Tal aspecto poderá ser testemunhado
muitas vezes ao longo do texto.

9
Enredo

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No início da obra, a narradora e protagonista Rami
descobre que o seu marido a trai e, por isso, mergulha em
uma investigação com o propósito de descobrir os motivos
que o levaram à prática de tal ação.

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À medida que a verdade é revelada, é possível
perceber que Tony representa toda uma cultura
patriarcal e poligâmica moçambicana.

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Eis o dilema de Rami: assumir a imagem de mulher já
esculpida pela sociedade ou rejeitá-la e construir uma
condição própria e nova.

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Para tanto, é o contato com outra mulheres com
personalidades marcantes que será determinante, no que
diz respeito a uma nova forma de enxergar a sua vida e,
consequentemente, o mundo.

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Vale destacar, ainda, as análises que se
deixam ver a respeito dos padrões sociais.

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Isso porque, no contexto moçambicano que o livro apresenta, a mulher
tem lugar de inferioridade reservado em relação ao homem que, por
sua vez, ocupa espaço privilegiado, é base da família moral e
economicamente, além de ser elemento fundamental para que haja a
procriação.

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Graças a uma confusão, já que o seu filho foi
acusado pela quebra do vidro de um automóvel,
Rami inicia sua saga.

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Na tentativa de resolver o impasse com o dono do
automóvel e com o próprio filho, Rami conscientiza-se de
que o seu marido sempre está ausente.

18
O conflito permite ecoar uma voz coletiva, a
das mulheres.

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Fragmento
Um desfile de mulheres vem ao
meu encontro. Consolam-se. Dona
Rami, as crianças são assim. Elas
falam das crianças e do vidro
partido. E falam também dos
maridos ausentes que nem cuidam
dos filhos.
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Em tom de desabafo, Rami deixa perceber que a falta de
ordem em que vive é provocada justamente pela ausência
contínua da figura masculina.

21
Fragmento
– O Tony é o culpado de tudo isto. Sempre
ausente. Primeiro foi uma noite de ausência,
depois outra e mais outra. Tornou-se hábito.
Ele diz-me que faz turnos à noite. Que
supervisa o trabalho de todos os polícias
pois é quando a noite cai que os ladrões
atacam. Faço de contas que acredito nele.
Mas os passos dos homens são rasto de
caracal, não se escondem.
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Nas primeiras falas de Rami estão postos os índices de sua
desconfiança no que diz respeito à fidelidade de seu marido Tony, mas
as falas das outras mulheres deixam ver uma possível invariante do
comportamento masculino.

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Fragmento
– Não és a única, Rami. O meu marido, por exemplo –
diz uma vizinha –, largou-me faz anos e correu atrás
de uma menininha de catorze anos, para começar
tudo de novo. Um velho que se tornou criança. – O
meu tem aquelas concubinas que conheces, com
filhos e tudo – diz outra. – Pensas que me ralo? Olho
para todas elas. Mulheres cansadas, usadas.
Mulheres belas, mulheres feias. Mulheres novas,
mulheres velhas. Mulheres vencidas na batalha do
amor. Vivas por fora e mortas por dentro, eternas
habitantes das trevas.
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Sobressai um coro de vozes femininas que
entoa um canto próprio e pleno em
sofrimento.

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Rami é consolada por suas vizinhas que, por sua
vez, dividem as suas espantosas histórias de vida:
plenas em dor e sofrimento também.

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Inconsciente ainda, a primeira ação da protagonista é
responsabilizar alguém pela sua tragédia pessoal e, assim,
encontrar os culpados ou as culpadas por tantas ausências
do marido.

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Mais adiante na narrativa, a protagonista passa a
responsabilizar o marido por sua situação de vida, contudo
ao olhar para o espelho se depara também com aquela
que considera responsável pelos infortúnios.

28
Fragmento
Vou ao espelho tentar descobrir o que há de
errado em mim. Vejo olheiras negras no
meu rosto, meu Deus, grandes olheiras!
Tenho andado a chorar muito por estes dias,
choro até demais! Olho bem para a minha
imagem. Com esta máscara de tristeza,
pareço um fantasma, essa aí não sou eu.

29
A tristeza e o cansaço pairam sobre Rami, no entanto,
ainda assim, ela consegue encontrar forças para se ver
como uma mulher bela novamente.

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Nesse sentido, a protagonista por
alguns instantes fica em paz.

31
Adiante na história, tem-se um diálogo em que Rami
confessa não ter recebido educação suficiente no que
tange ao desenvolvimento do amor-próprio, de amar-se
e/ou respeitar-se.

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Ao invés disso, Rami aprendeu que a mulher deve ser
submissa, obediente e, sempre, estar em segundo plano,
na condição de coadjuvante de sua própria vida.

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Não obstante e aos poucos, a protagonista recupera a
confiança em si, por meio do exercício de se olhar diante
do espelho e, também, por reativar a sua voz ao dialogar
consigo mesma, tornando-se agente de sua própria vida.

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Ainda assim, Rami permanece à caça de culpados
que, a rigor, serão consideradas as amantes de
seu marido Tony.

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Em primeiro momento, as demais amantes de Tony são
entendidas como sendo inimigas que precisam ser
aniquiladas para o retorno da paz ao casamento.

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Fragmento
Penso muito nessa tal Julieta ou Juliana. Mulher
bonita, ouvi dizer. Tem com o meu Tony muitos
filhos, não sei quantos. É um segundo lar, sólido e
fixo. Na minha mente correm ideias macabras. De
repente, apetece-me ferver um pote de óleo e
derramar na cara dessa Julieta ou Juliana, para
eliminá-la do meu caminho. Apetece-me andar à
pancadaria com uma peixeira. Rezo. Rezo com
todo o fervor para que essa mulher morra e vá
para o inferno. Mas ela não morre e nem o
romance acaba.
37
No encontro inicial entre as adversárias,
Rami e Ju agridem-se física e verbalmente.

38
Contudo, com os ânimos mais calmos iniciam uma
diálogo sincero em que compartilham dos mesmos
sofrimentos.

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Ju não vê o amante Tony há vários meses, além disso diz
que o homem é muito agressivo e não ajuda
financeiramente no sustento da casa e dos filhos.

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Rami conscientiza-se de que a situação de
Ju é muito pior do que a sua.

41
Isso porque o casamento ampara por sua formalidade,
enquanto a amante, por ser a “outra” é rechaçada pela
sociedade e não pode ser protegida, bem como os seus
filhos, pela justiça.

42
Agravando a situação, Ju afirma que Tony
ainda possui uma terceira amante.

43
E, no contexto moçambicano, a nova
personagem feminina é diferente.

44
Enquanto Rami e Ju são do sul, a terceira mulher, Lu, é do
norte, local em que a poligamia é praticada comumente,
direcionando, assim, a narrativa para um entrave cultural.

45
Bem como aconteceu com Ju, Rami vai à casa de
Lu e as duas também trocam insultos, agridem-se
fisicamente e chegam à delegacia pelo ocorrido.

46
Mais uma vez, Rami dialoga e conhece
a difícil vida da adversária.

47
A essa altura, a narrativa intensifica a crítica sobre a condição da
mulher independente de sua origem e cultura, ou seja, ser colocada
em segundo plano, com única função de atender aos desejos e
vontades dos homens sejam eles pais, esposos ou amantes.

48
Rami ainda descobrirá outras diferentes amantes
de Tony, mas iguais no que diz respeito à
fragilidade e condições precárias de vida.

49
Progressivamente, a protagonista cria vínculos com as
quatro amantes de Tony, conhece suas histórias e
necessidades, formando uma grande família.

50
Por outro lado, Rami vem coletando
opiniões de outras mulheres sobre a
poligamia.

51
Rami opta por assumir socialmente um relacionamento
poligâmico, crendo ser o melhor para si e para as outras
mulheres, no que toca à garantia de alguns direitos.

52
Adiante na narrativa, as amantes, posterior a uma longa
conversa com Rami, tomam coletivamente a decisão de
tornar pública a relação poligâmica com Tony.

53
No entanto, para se chegar a esse ponto, muitos
sentimentos escondidos são trazidos à tona, bem como
lágrimas e incertezas.

54
Conscientizam-se também de que as mulheres foram
silenciadas por muito tempo, mas gradativamente veem o
horizonte de um novo mundo despontar.

55
E, dessa forma, a disputa sai de cena
para dar lugar à cooperação.

56
A ação que Rami mobiliza um primeiro passo
importante, embora não se constitua como uma
virada de mesa no que tange ao patriarcado.

57
O que se expõem é a defesa de mínimos direitos, mas que
dão margem a algo maior e promissor – uma revolução na
vida das mulheres – operada, a rigor, por elas próprias.

58
Consciente que as amantes de Tony vivem em dificuldades
financeiras, Rami estimula-as a conquistarem a
independência econômica e, dessa forma, recuperarem a
autoestima.

59
Outro ponto a ser destacado se encontra no fato do
encorajamento que as amantes recebem de Rami para
procurar Tony em sua casa e reivindicarem participação na
criação dos filhos e ajuda nos momentos de dificuldades.

60
O que realmente ocorre na continuidade da
narrativa e causa grande descontentamento no
polígamo.

61
Ainda Rami coopera, até mesmo emprestando dinheiro,
para que as amantes de Tony iniciem a abertura dos
próprios negócios, ou seja, mulheres que passam a
empreender.

62
Vê-se assim a força feminina, quando
a rivalidade é colocada à margem.

63
Repousa como uma ideia geral para o livro a de que as mulheres
necessitam apoiarem-se umas nas outras, objetivando a ampliação de
sua força frente ao que as oprimem, o homem, quando se deixa a
rivalidade à margem.

64
Cumpre salientar que o percurso de Rami, até o
presente momento da narrativa, já deixa ver o
poder revolucionário da sororidade.

65
A rigor, o livro não é sobre um homem e suas cinco
amantes, mas sim sobre cinco mulheres que conseguiram
graças à união se desvencilhar de dois regimes opressores
(a poligamia e o patriarcado).

66
À vida de Rami ainda está reservada grande reviravolta,
pois à sua porta é anunciado o pedido de divórcio da parte
de Tony.

67
No entanto, Rami se nega a assinar o documento e é
advertida e ameaçada pelo advogado do marido, uma vez
que o divórcio litigioso reserva grandes problemas.

68
Segundo o advogado, Rami não foi capaz de
segurar o marido e, ainda pior, o estaria
ofendendo.

69
Enfurecida, Rami agride pela primeira vez um
homem e sente-se completamente dominada pelo
prazer de sua ação.

70
Seguindo com a reflexão sobre ações femininas, a protagonista
conscientiza-se como sendo absurda a prática de tatuagens e
prolongamento da genitália feminina somente para agradar aos
homens.

71
Mais à frente na obra, Rami recebe a notícia inesperada de
que seu marido morreu e, uma vez mais, recai a culpa
sobre ela, agora acusada de usar magia para matar Tony.

72
Na condição de viúva, Rami tem os cabelos raspados,
passa a usar obrigatoriamente roupa preta e não possui
mais direitos na própria casa e, absurdamente, do próprio
corpo.

73
Não obstante, há uma desconfiança no ar,
já que a causa morte de Tony é incerta.

74
Durante o velório, Rami percebe que é ausente uma
cicatriz atrás da orelha direita do marido, isso porque foi
ela mesma que a causou com uma garrafada dada em
Tony, o que o levou a fazer uma cirurgia.

75
Por outro lado, inicia-se um processo
de disputa pelos bens de Tony.

76
A seguir, Eva, dizendo-se amiga de Tony, confirma
o que Rami desconfiava, isto é, Tony não morreu,
mas sim estava de férias em Paris.

77
No fim do velório, todos os bens são levados da casa de
Rami, que também deve deixá-la ao término de trinta dias
de prazo.

78
Inicia-se a purificação em Rami, por
meio de seu cunhado Levy.

79
Tony regressa alguns dias depois e diz estar
arrependido, mormente ao ver a casa vazia.

80
Contudo, o real incômodo do marido
ressuscitado se dá quando descobre que
sua esposa recebeu a purificação.

81
As demais ex-viúvas exigem que Rami
tenha o seu posto de esposa restituído.

82
Ainda, é exigido que Tony assuma
Eva, casando com ela.

83
Na parte final da narrativa, sabe-se que as mulheres de
Tony, agora, são independentes financeiramente e, muitas
delas, ou o traem, ou o abandonaram.

84
E Rami, sádica e vingativamente, anuncia a Tony
que está gravida, mas que o pai da criança é
Levy.

85
Personagens

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Eva
A doutora, estudada, diretora de
empresa, chefe de homens no
trabalho, tem carro próprio, integrada
ao meio urbano, não dependente
financeiramente de Tony, mulata,
amaldiçoada na cultura moçambicana
e abandonada pelo marido por ser
estéril.
87
Julieta

Uma das várias amantes de


Tony, estudante e advinda da
região do Sul.

88
Levy

Irmão de Tony, responsável por


realizar a ‘kutchinga’ na
protagonista e, supostamente, o
pai do filho que ela está
esperando.

89
Luísa

Outra das várias amantes de


Tony, originária da Zambézia,
região de onde os homens
migram e não retornam, por
isso os que sobram são
divididos entre as mulheres.
90
Mauá Salue

Outra das várias amantes de


Tony, é macua, outro povo do
Norte, de origem monogâmica,
transformado em poligâmico
pela influência muçulmana.

91
Rami

Narradora, personagem e
protagonista, esposa traída,
promotora da sororidade,
“sofreu” a kutchinga.

92
Saly

Outra das várias amantes de


Tony, é maconde, outro povo do
Norte, de Cabo Delgado.
Segundo uma lenda, esse povo
é descendente de uma
escultura feminina que adquiriu
vida. 93
Tony

Marido de Rami, traidor,


mentiroso, polígamo,
comandante da polícia.

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