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universidade federal de pelotas

instituto de artes e design


bacharelado em design gráfico

Trabalho de Conclusão de Curso

Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos


As potencialidades da Comunicação de Massa como objeto de
estudo do Design Gráfico

Ana Paula Silva Moura

Pelotas, 2010
Pelotas, 2010

ana paula silva moura

Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos


As potencialidades da Comunicação de Massa como objeto de estudo do
Design Gráfico

Trabalho Acadêmico apresentado ao Insitu-


to de Artes e Design da Universidade Federal
de Pelotas, como requisito parcial à obtenção
do título de Bacharel em Design Gráfico.

Orientadora: Mônica Faria


BANCA EXAMINADORA:

Mônica Faria (orientadora)

_________________________

Guilherme da Rosa (avaliador)

_________________________

Nádia Senna (avaliadora)

_________________________

Ana Paula Margarites (convidada)

_________________________
DEDICATÓRIA

Este trabalho é dedicado a todos aqueles que amam


sua profissão, bem como acreditam na capacidade
de superação do ser humano.
AGRADECIMENTOS

Primeiramente e sempre, a meus pais,


Djanira e José Renato, pelo eterno incentivo, apoio,
carinho e dedicação, e à minha irmã Luísa, por
ser fonte de toda minha inspiração, bem como
pelas ajudas significativas nos momentos mais
difíceis. A meus avós, Noé e Seli, pela força, pelos
enisnamentos de vida e pela fé em mim, todos estes
anos, bem como minha Vó Eli, que aonde estiver sei
que continua me apoiando incondicionalmente.

Um agradecimento especial aos amigos que


construí nesta jornada acadêmica, em especial
a Turma do Abacaxi. Vale destacar ainda,
a “caloura-colega” Ana Dacol, os “irmãos de
orientação” Lívia e Foca, bem como a Fabi, pela
inestimável amizade, bem como sua familia, pelo
acolhimento.

Por fim, um agradecimento a todos os


professores que tive no Instituto de Artes e Design,
pois nada é mais precioso que conhecimento e
comparilhá-lho é algo da maior nobreza. Aos
professores de minha banca, um agradecimento
escpecial: à Margarites por sua contribuição,
à Nádia pelo exemplo como profissional, ao
Guilherme pela dedicação, e a minha orientadora,
Mestre Mônica, pela confiança, paciência e
companheirismo nestes últimos meses.

A força está com vocês, sempre!


EPÍGRAFE

Diga-lhe

Que pelos sonhos de sua juventude

Ele deve ter consideração, quando for homem.

Friedrich Schiller (1759 - 1805)


Lista de Figuras

01 - charge de kayser 24
02 - cartum, por scott mccloud 24
03 - caricatura de chacrinha de ziraldo 24
04 - tira de Snoopy e sua turma 26
05 - tira de Sazae-san 26
06 - exemplos de mangás 29
07 - exemplos de revistas 29
08 - exemplos de akahons 29
09 - exemplo de graphic novel 29
10 - mccloud, sobre a escrita e as imagens egípcias 31
11 - mccloud, sobre hogarth 31
12 - imagens de épinal 33
13 - ilustração de wilhelm busch 33
14 - max e moritz 33
15 - marumaru chimbum 34
16 - hokusai mangá 34
17 - chojugiga 34
18 - yellow kid 36
19 - famille fenoullard 36
20 - the katzenjammer kids 36
21 - togosaku e morubê passeando em toquio 37
22 - chiquinho e benjamin 38
23 - little nemo 38
24 - muff and jeff 40
25 - pafuncio e marocas 40
26 - krazy kat 40

27 - sho-chan 41
28 - wash tubbs 43
29 - tintin 43
30 - tarzan 44
31 - jungle jim 44
32 - flash gordon 44
33 - buck rogers 44
34 - X-9 44
35 - Dick Tracy 44
36 - norakuro 46
37 - os shmoos de Al Capp 46
38 - fantasma 48
39 - mandrake 48
40 - batman 49
41 - superman 49
42 - capitão marvel 49
43 - vilão japones 51
44 - vilão americano 51
45 - capitão américa 51
46 - história da eccomics 57
47 - capa da eccomics 57
48 - pogo 59
49 - mafalda 59
50 - mafalda 59
51 - snoopy 60
52 - snoopy 60
53 - feiffer 60
54 - The Wizard of ID 61
55 - BC 61
56 - pato donald 63

57 - pato donald 63

58 - para ler pato donald 63

59 - astérix 65
60 - phoenix 65
61 - zap comix 66
62 - fritz the cat 66
63 - cavaleiro das trevas, frank miller 68
64 - demolidor, frank miller 68
65 - vendetta, alan moore 69
66 - watchman, alan moore 69
67 - persépolis 71
68 - adolf 71
69 - maus: capa 75
70 - gen: capa 75
71 - maus: metalinguagem 78
72 - maus: metalinguagem 78
73 - maus: intertextualidade 78
74 - maus: gatos 79
75 - maus: cães 79
76 - maus: gato 79
77 - maus: sapo 79
78 - maus: porco 79
79 - maus: metalinguagem 80
80 - maus: referência a walt disney 80
81 - gen: localodade 82
82 - gen: maturidade e efeitos 82
83 - gen: icones 82
84 - gen: sem palavras e coisas japas 83
85 - gen: linhas movimento 83
86 - gen: variedade de designs 84
87 - maus: camara de gás 87
88 - gen: bomba atomica 88
89 - maus: sequela 89
90 - maus: sapateiro 89
91 - gen: bomba 90
92 - gen: corpos derretendo 90
93 - maus: disfarce 92
94 - gen: fanatismo 93
95 - maus: richeau 94
96 - gen: despedida 94
97 - maus: insulto ao judeu 94
98 - gen: apedrejado 94
99 - gen: sr. pak 96
100 - maus: anja 96
101 - maus: tradição 98
102 - maus: herança 99
103 - gen: contra o fanatismo 100
104 - gen: desejo 101
105 - gen: herança 101
106 - ambiente convergente 109

107 - diagrama 109


SUMÁRIO

Introdução 14
Metodologia 15

1. Design e Quadrinhos 17
1.1 Importâncias de se relacionar quadrinhos e design 17
1.2 Comunicação Visual 19
1.3 Relações estruturais 20
1.4 Ligações ao longo da história gráfica 21

2. Quadrinhos 23
2.1 Definições 23
2.1.1 Imagens isoladas 23
2.1.2 Tiras 25
2.1.3 Revistas 27
2.1.4 Livros 28
2.2 Percurso histórico das histórias em quadrinhos 30
2.2.1 Pré História das HQs 30
2.2.2. O Nascimento das Histórias em Quadrinhos 32
2.2.3 Os reflexos de 1929 42
2.2.4 As HQs durante a Segunda Guerra Mundial 47

3. As HQs como crítica social 52


3.1 Teorias e Terminologias 52
3.2 As HQs e a Crítica Social 56

4. Análise 72
4.1 Graphic Novels e Mangás nos topos das prateleiras 73
4.2 Maus e Gen 73
4.3 Análise formal 76
4.4 Análise Narrativa 85
4.5 Identidade Nacional 95

5. Prática 103
5.1 A Cultura da Convergência 103
5.2 Ambiente convergente 104
5.3 Metodologia de construção do ambiente 106
5.3.1 Problema 106
5.3.2 Referência 107
5.3.3 Criação 107
5.3.4 Repercussão 107
5.3.5 Solução 108

Considerações Finais 111


Referencias Bibliográficas 113
Apêndice A 117
Resumo

O presente trabalho visa elucidar as potencialidades das Histórias em Quadrinhos como


fonte de repertório para a construção de crítica social. A importância deste estudo reside no fato de
que o Designer, como profissional da comunicação visual, deve buscar conhecimento não somente
na criação de suas peças, mas na trajetória destas até o público, e na sua recepção. Assim, realiza-se
uma analogia das HQs com o Design Gráfico, descreve-se o percurso histórico dos quadrinhos,
analisa-se as teorias de comunicação da Escola de Frankfurt, bem como dos Estudos Culturais, tudo
isto para a realização de uma análise e uma prática que demonstrem a veemência deste estudo. A
análise de MAUS, de Art Spiegelman, e Gen Pés Descalços, de Keiji Nakazawa serve de alicerce para
elucidar as potencialidades desta mídia, bem como a prática deste trabalho, o site socialcomicart.
com.

Palavras-chave: critica social, design gráfico, histórias em quadrinhos, comunicação visual

Abstract

This work aims to elucidate the potential of comic books as a source of repertoire for the
construction of social criticism. The importance of this study lies in the fact that the designer, a
professional visual communication, should not only seek knowledge in the creation of the parts,
but in the trajectory of this before the public, and the reception. Thus, an analogy of comics
with Graphic Design is created, the historical background of the comic books is described, the
communication theories of the Frankfurt School and Cultural Studies are studied, all for an analysis
and a practice that demonstrate the vehemence of this study. Analysis of MAUS, Art Spiegelman’s
and Barefoot Gen, by Keiji Nakazawa provides a foundation for elucidating the potential of this
medium, and the practice of this work, the site socialcomicart.com.

Keywords: social criticism, graphic design, comic books, visual communication.


Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

Introdução

As histórias em quadrinhos são peças gráficas que se utilizam de imagens e textos para
expressar uma narrativa. Também conhecidas, no ocidente, como Arte Sequencial, Comics (Estados
Unidos), Bandes Dessinées (França), Fumetti (Itália) e como Mangá no Japão. Deve-se levar em
consideração também o aspecto comunicacional dessa forma de expressão, na maioria das vezes
reproduzidas em larga escala e distribuída com fins comerciais, ideológicos e de entretenimento.

A partir desta definição, cria-se uma analogia com a própria descrição de design gráfico,
que diz que essa é a uma área de conhecimento e produção de objetos comunicacionais e de alta
reprodutibilidade, e da mesma forma os quadrinhos se utilizam também de elementos visuais para
compor uma história.

As histórias em quadrinhos podem ser muito mais do que uma forma de leitura e
entretenimento infantil e didático. Existem autores que vêem essa ferramenta como um meio de
expressão de opiniões políticas, de cunho social. São uma forma de cultura, no momento em que
“fornece pontos de apoio imaginários à vida prática, pontos de apoio prático à vida imaginária”
(MORIN, 1990, p.15).

As HQs – Histórias em Quadrinhos – se inserem em um contexto relativamente recente,


por mais que expressões gráficas semelhantes datem de remotas épocas na história da arte. Pretende-
se limitar maiores análises à produção pós Segunda Guerra Mundial, devido a mudanças profundas
ocorridas tanto no lado estético e comunicacional, quanto no conteúdo ideológico.

Após uma reavaliação de conceitos que eclodiram após a Segunda Guerra, vários autores
passam a analisar o papel dos quadrinhos como ferramenta de crítica social válida, ideológica, com
vista na transformação dos paradigmas globais.

Ocorre nesse momento um redescobrimento do uso dos quadrinhos, por seus autores, e
consequentemente, seus leitores. Surgem então no ocidente, quadrinhos de índole introspectiva e
político-sociológica, como Peanuts de Charles M. Schultz, Pogo, de Walt Kelly, BC, de Johnny Hart,
The Wizards of ID, de Parker e Hart. Mafalda de Quino; e no oriente, na reafirmação do patriotismo
japonês, reerguendo-se perante o pós-guerra, renovando-se e reforçando suas tradições e contextos
familiares, como em Sazae-san, de Machiko Hasegawa, AstroBoy e Phoenix, de Tezuka Ossamu, e
Hadashi no Gen, de Keiji Nakazawa.

14
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

Atualmente a importância dos quadrinhos tem repercutido na área da comunicação social, o que
fundamenta ainda mais a importância de se estudar o tema.

Sob esse aspecto, a forma quadrinizada foi e está sendo amplamente usada como forma
de trazer à memória popular a valorização do ser humano. O temário dessas histórias,
saídas das comunidades, envolve temas do dia-a-dia do povo comum, do porquê dos
acontecimento sociais, políticos e econômicos, e ensina a agir em determinadas situações
(LUYTEN, 1985, p. 9).

Necessita-se então, de uma pesquisa de cunho científico sobre o tema. A importância de


sua inserção no campo do design gráfico vem da relação social que esta área tem, no momento
em que participa da construção de repertório visual da sociedade em que se insere. E levando em
consideração, as artes visuais como uma das bases do design gráfico, entende-se a máxima de Júlio
E. Payró, (apud KELLY) que diz que “a arte é o barômetro que anuncia com infalível certeza todas
as tempestades políticas e sociais” (1972, p. 15).

Metodologia
Este é um estudo qualitativo, baseado em pesquisa bibliográfica, e tem, como guia de
interpretação, a Hermenêutica de Profundidade (HP), formulada por John B. Thompson, em
Ideologia e Cultura Moderna. Conforme o autor, a HP “coloca em evidência o fato de que objeto
de análise é uma construção simbólica significativa, que exige uma interpretação” (1995, p. 355).
As fases da HP, além de fornecer maior liberdade ao interpretante (pois não restringe as análises a
parâmetros pré-definidos), estudam os significados das formas simbólicas1 dentro do seu contexto
sócio-histórico. A HP considera que:

O mundo sócio-histórico não é apenas um campo-objeto que está ali para ser observado;
ele é também um campo-sujeito que é construído, em parte, por sujeitos que, no curso
rotineiro de suas vidas quotidianas, estão constantemente preocupados em compreender
a si mesmos e aos outros, e em interpretar as ações, falas e acontecimentos que se dão ao
seu redor (THOMPSON, 1995, p. 358).

Assim, em um estudo como este que visa elucidar as potencialidades das HQs como forma
de construção de crítica social, uma metodologia que considera o objeto de estudo um campo-sujeito
se torna mais coerente.

1. Thompson define que “formas simbólicas são construções significativas, que exigem uma interpretação;
elas são ações, falas, textos que, por serem construções significativas, podem ser compreendidas” (1995, p.
357) [grifo do autor]. No caso deste estudo, as histórias em quadrinhos constituem as formas simbólicas da
hermenêutica.

15
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

A HP se divide em três fases. Em um primeiro momento, realiza-se uma análise sócio-


histórica, “o objetivo da análise sócio-histórica é reconstruir as condições sociais e históricas de produção,
circulação e recepção das formas simbólicas” (THOMPSON, 1995, p. 366) [grifo do autor]. Neste
estudo, essa etapa se constitui nos três primeiros capítulos. No primeiro capítulo, uma importante
analogia entre o design gráfico, (sua história, características), e as HQs é desenvolvida, a fim de
firmar as HQs como importante objeto de estudo gráfico. A seguir, no segundo capítulo, as HQs
são detalhadas, conformes seus modelos (estruturais), e seu percurso histórico até a Segunda Guerra
Mundial. No terceiro capítulo, o assunto central do trabalho, a crítica social através das histórias
em quadrinhos, é abordado, com base em teorias de cultura de massa, indústria cultural e estudos
culturais. Uma contextualização na contemporaneidade é usada para exemplificar o aparecimento
e as conseqüências destas críticas. Assim, as HQs são situadas em contextos espaço-temporais,
definem-se seus campos de interação, analisa-se a estrutura social aonde se inserem e os meios técnicos
de construção de mensagem e transmissão dos quais fazem uso.

“Formas simbólicas são produtos contextualizados e algo mais, pois elas são produtos que,
em virtude de suas características estruturais, têm capacidade, e têm por objetivo, dizer alguma
coisa sobre algo” (THOMPSON, 1995, p. 369) [grifo do autor], assim, justifica-se a segunda etapa
da HP, denominada análise formal ou descritiva, na qual se descreve formalmente o objeto (suas
imagens e palavras) e/ou discursivamente, “(...) a análise das características estruturais e das relações
do discurso”, no qual o autor usa o termo “discurso” para se referir “às instâncias de comunicação
correntemente presentes” (THOMPSON, 1995, p. 371) [grifo do autor]. Posteriormente, esta etapa
se refere ao capítulo quatro, onde uma análise formal e descritiva é realizada, focada nas obras:
Maus, de Art Spigelman e Gen – Pés Descalços, de Keiji Nakazawa.

Na terceira etapa da HP, sintetizam-se as análises posteriores, na chamada interpretação/


reinterpretação, onde “a interpretação implica um movimento novo de pensamento, ela procede por
síntese, por construção criativa de possíveis significados” (THOMPSON, 1995, p. 375) [grifo do
autor]. Ao se realizar as três etapas da HP, o autor diz que “(...) estamos reinterpretando um campo
pré-interpretado; estamos projetando um significado possível, que pode divergir do significado
construído pelos sujeitos que constituem o mundo sócio-histórico” (THOMPSON, 1995, p. 376).
Assim, conforme a HP, a conclusão deste trabalho constitui a terceira etapa da metodologia proposta
por Thompson.

A prática deste estudo, pode se relacionar com a terceira etapa da HP, pois é uma
reinterpretação das etapas anteriores, fornecendo uma solução prática (e coerente com a graduação
a ser obtida) para o problema central da pesquisa: a validade das histórias em quadrinhos como
ferramenta válida de crítica social. Constitui-se de uma mídia interativa, um website no qual além
de um resumo do presente trabalho, constará uma secção para reunir opiniões diversas e sugestões
de leituras, através da rede social Twitter.

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Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

1. Design e Quadrinhos

1.1 Importâncias de se relacionar quadrinhos e design


Pretende-se neste capítulo, situar as histórias em quadrinhos dentro do design gráfico, não
como foco de criação, mas como objeto de estudo comunicacional.

Após a Segunda Guerra, e principalmente nos anos 1960, 1970, eclodiram vários estudos
em cima desse mesmo objeto, mas oriundos das áreas da sociologia, da comunicação, ou da
estética artística e expressiva. A inclusão desse tema dentro do ambiente de design gráfico tem
como objetivo principal, elevar as potencialidades destes objetos como formadores de crítica social.
Cabe ao profissional de design estudar e potencializar esta ferramenta. Nada impede o designer de
assumir essa função criadora, mas este não é o foco deste estudo, principalmente neste momento de
formação teórica.

As analogias aqui utilizadas partem do conteúdo à forma. Isso se dá, em um primeiro


momento (e foco deste estudo), pelas características funcionais e suas repercussões dentro da
sociedade. E, a fim de ilustrar essas semelhanças, faz-se uma relação estética dos elementos visuais e
formas de reprodução, utilizados por ambas.

O design gráfico é claramente definido por Rafael Cardoso da seguinte forma:

A origem mais remota da palavra está no latim designare, verbo que abrange ambos os
sentidos, o de designar e o de desenhar. Percebe-se que, de um ponto de vista etimológico,
o termo já contém nas suas origens uma ambigüidade, uma tensão dinâmica, entre um
aspecto abstrato de conceber/projetar/atribuir e outro concreto de registrar/configurar/
formar. A maioria das definições concorda em que o design opera a junção desses dois
níveis, atribuindo forma material a conceitos intelectuais (2008, p. 20) [grifo meu].

Partindo do projeto, até a concepção dessas soluções (e sua ligação com os consumidores
desse “produto”), existe uma conexão fortemente comunicacional. Faz-se então, uma relação
filosófica com a obra de Vilém Flusser, (obra esta organizada também por Cardoso), na qual ele
diz:

Aquilo que é visto (o fato, a circunstância) deve ser fixado e se tornar acessível para outros.
Deve ser codificado em símbolos, e esse código deve ser alimentado em uma memória

17
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

(numa parede rupestre, por exemplo); o código existe para ser decifrado por outros. Dito
de outra forma: aquilo que é visto de maneira privada tem de ser publicado, o que é visto
subjetivamente tem de ser intersubjetivo. (2007, p. 164)

Neste conjunto de definições, encontra-se como principal função do designer a “socialização”


da comunicação visual. É fato que o estudo científico de design não pode se limitar à criação e
produção de peças gráficas, mas principalmente à inserção dessas na sociedade, suas repercussões e
potencialidades como meio comunicacional.

Voltando para o foco deste estudo, as histórias em quadrinhos são definidas da seguinte
forma: “(...) um veículo de expressão criativa, uma disciplina distinta, uma forma artística e literária
que lida com a disposição de figuras ou imagens e palavras para narrar uma história ou narrar uma
idéia” (EISNER, 1999, p. 5).

Reforça-se esta definição com Scott McCloud (que a desenvolve a partir da definição de
Eisner): “Imagens pictóricas e outras justapostas em seqüência deliberada destinadas a transmitir
informações e/ou produzir uma resposta do espectador” (2005, p. 09).

Percebem-se então, as semelhanças entre as histórias em quadrinhos e o design gráfico, desde


suas funções (transmissão de mensagens), até o uso de elementos pictóricos e textuais (tipografia,
ilustração, fotografia, colorização, estruturas e conceitos de percurso do olhar). Além disso, intrínseco
a ambos, é a inserção cultural deles, nos meios sociais.

Não cabe neste estudo, “retirar” a arte sequencial do meio artístico, expressivo. Mas no
momento em que essa expressão participa da construção cultural da sociedade em que se insere não
se pode ignorar seu caráter comunicacional construtivo. A ausência de autores que definam, tanto as
HQ’s como ferramenta do design, quanto vice-versa, comprova que estas não “servem” uma à outra,
e sim, se completam. Vale destacar que:

A importância do quadrinho para o design não está apenas no seu sucesso como fenômeno
de comunicação visual, mas também nas transformações que efetuou em termos de
linguagem gráfica. Elementos básicos do repertório semiótico moderno – como balões
para expressar fala e pensamento, as linhas de força para expressar movimento e toda
uma série de signos tipográficos para expressar ações e sons – devem a sua codificação à
penetração do quadrinho no imaginário moderno (CARDOSO, 2008, p. 138).

E da mesma forma, os movimentos artísticos (e de vanguarda) que participaram da história


do design, influenciaram não somente a estética das HQ’s, mas toda a sua estrutura projetual,
criativa, e social. Por exemplo, uma das principais características das HQ’s, o uso dos requadros
ganha uma atenção especial quanto ao seu design, como se pode ver nos ensinamentos de Will
Eisner:

18
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

Tal como no uso dos quadrinhos para expressar a passagem de tempo, o enquadramentos
das imagens que se movem através do espaço realiza a contenção dos pensamentos, idéias,
ações, lugar ou locação. Com isso, o quadrinho tenta lidar com os elementos mais amplos
do diálogo: a capacidade decodificadora cognitiva e perceptiva, assim como a visual. O
artista sequencial “vê” pelo leitor porque é inerente à arte narrativa exigir do espectador
reconhecimento, mais do que análise. A tarefa então é dispor a seqüência dos eventos (ou
figuras) de tal modo que as lacunas da ação sejam preenchidas. (1999, p. 38).

Não é por acaso que existem vários quadrinistas que são reconhecidos também como grandes
profissionais do design. E nem há necessidades de se romper barreiras geográficas, na própria história
brasileira de design temos figuras exponenciais, como Ziraldo e Henfil, que trabalham na indústria
editorial dos anos 1960 de forma a renovar conceitos (CARDOSO, 2008).

1.2 Comunicação visual


A relação de códigos pictóricos com códigos visuais é a grande definição da comunicação
visual “onde quer que se descubram códigos, pode-se deduzir algo sobre a humanidade.” (FLUSSER,
2007, p. 130). E acima de qualquer diferenciação, está o uso da imagem como principal suporte
comunicacional. Eisner afirma que a imagem é o principal agente comunicador nas histórias em
quadrinhos:

A história em quadrinhos lida com dois importantes dispositivos de comunicação,


palavras e imagens. Decerto trata-se de uma separação arbitrária. Mas parece válida, já
que no moderno mundo da comunicação esses dispositivos são tratados separadamente.
Na verdade, eles derivam de uma mesma origem, e no emprego habilidoso das palavras
e imagens encontra-se o potencial expressivo do veículo. [...] A compreensão de uma
imagem requer uma comunidade de experiência. Portanto, para que sua mensagem seja
compreendida, o artista seqüencial deverá ter uma compreensão da experiência de vida
do leitor (1999, p. 13).

Por isso, além de simplesmente relacionar as HQs com o design gráfico pelas suas
definições, este trabalho tem como objetivo focar seus aspectos comunicacionais, buscando sua
potencialidade.

Os quadrinhos influenciam a sociedade, na sua comunicação estruturada para este fim,


e também, por isso, podem ter um poder de persuasão em relação aos seus leitores. [...]
Exatamente por essa influência e capacidade de se comunicar com as massas é que os
quadrinhos podem ser considerados uma forma de cultura (FARIA, 2007, p. 55).

19
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

É valido ressaltar ainda, a importância da imagem na própria formação de identidade do


sujeito contemporâneo. Douglas Kellner fala da importância da imagem atualmente, onde,

[...] a imagem também veio a ocupar posição central na cultura veiculada pela mídia e na
vida cotidiana do período, no sentido de que a imagem, a aparência e os estilos pessoais
foram e tornando cada vez mais importantes na construção da identidade individual
(2001, p. 16).

No terceiro capítulo deste estudo, denominado “Quadrinhos como crítica social”, se


realizará um estudo comunicacional mais aprofundado, refletindo sobre seus aspectos negativos (a
transformação da cultura visual em mercadoria, manipulação e alienação das massas) e seus aspectos
positivos (participações sociológicas na formação da personalidade do ser enquanto indivíduo, e
enquanto parte de uma sociedade).

1.3 Relações estruturais


Por mais que as potencialidades das Histórias em Quadrinhos como objeto de estudo do
design gráfico se relacionem a suas características teóricas, é importante destacar alguns elementos
da composição gráfica de ambos, a fim de se representar visualmente suas semelhanças. Para isto,
foi desenvolvida uma tabela de analogias, na qual a grande relação se faz através de dois aspectos: os
elementos visuais utilizados e as formas de reprodução. Em suma, a estética e a tecnologia.

Os elementos visuais escolhidos se destacam na história do design e nas estruturas das


Histórias em quadrinhos. São eles: tipografia, ilustração, colorização, e estrutura modular.

A tipografia característica das Histórias em quadrinhos se destaca por ser, em sua maioria,
manuscrita e em caixa alta. “A composição tipográfica tem realmente uma espécie de autoridade
inerente, mas tem um efeito “mecânico” que interfere na personalidade da arte feita à mão livre”
(EISNER, 1999, p. 27), por isso a preferência à tipografia manual. Ainda sobre tipografia, Eisner
diz que “O letreiramento, tratado ‘graficamente’ e a serviço da história, funciona como uma
extensão da imagem. (...) fornece um clima emocional, uma ponte narrativa, e a sugestão do som”
(EISNER, 1999, p. 10). No design, a tipografia também apresenta uma função muito maior do
que simplesmente apresentar o texto, torná-lo legível. “A tipografia é uma ferramenta com a qual
o conteúdo ganha forma, a linguagem ganha um corpo físico, e as mensagens ganham um fluxo
social” (LUPTON, 2006, p.8). Vale destacar que as maiorias dos autores referem-se à tipografia das
histórias em quadrinhos como letreiramento.

A representação gráfica é o grande comunicador nesses meios. Nas Histórias em Quadrinhos,


as teorias de Scott McCloud (2005), quando se refere à Mímese, Ícone e Abstração, se completam

20
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

com as teorias de Vidal Gomes (1998), quando este as classifica em Alta e Baixa Ordem Gráfica.
Essas relações são fundamentais para os próprios estudos de análise de imagem.

Por questões tecnológicas (e financeiras), no princípio a cor era usada raramente nas
histórias em quadrinhos, e por muitas terem sua origem nos jornais, grande parte se caracterizou
pelo uso do preto e branco (e às vezes alguma cor de suporte), explorando-se recursos como figura
e fundo, volume, retículas. Muitas vezes, nas primeiras histórias em quadrinhos coloridas (em larga
escala), as cores e os personagens assumiam diferentes cores na mesma história, ou até mesmo se
caracterizavam por cores por simples coincidências, como é o caso de Yellow Kid (Garoto Amarelo),
de Richard Outcault, que ganhou seu nome a partir de um teste de impressão do Jornal New York
World, em 1893 (MOYA, 1977). Com o advento das técnicas digitais de reprodução (e de criação),
as histórias em quadrinhos ganharam verdadeiros artistas em matéria de cores, como é o caso de
Alex Ross, que a cada história cria verdadeiras pinturas realistas. No design gráfico, também houve
toda essa influência das tecnologias disponíveis na disposição das cores, e as técnicas desenvolvidas
influenciaram bastante as HQ’s.

A estrutura modular é uma das maiores características das Histórias em Quadrinhos. Os


requadros evoluíram ao longo da história, assumindo cada vez mais importância, inclusive na
metalinguagem, interação da personagem com o quadrinho e o desenhista (CIRNE, 1971). Muito
similar à estrutura das HQ’s é o sistema de grid, amplamente desenvolvido pelo modernismo, e que
assim como os requadros (e disposições destes) das HQs, sofreu desconstruções ao longo da sua
história (SAMARA, 2007)

A produção gráfica assume também um papel muito importante, afinal, é a reprodução em


grande escala que transforma as HQs e o design gráfico em meios de comunicação visual inseridos
amplamente na sociedade. Em sua maioria, as HQs e as peças gráficas são impressas em offset, mas
há exemplos significativos na xilogravura e na litografia.

1.4 Ligações ao longo da história gráfica


O design gráfico e as HQs têm a mesma origem: a criação da imprensa e as histórias
ilustradas que se derivaram após. “(...) foi com a descoberta da impressão, por Gutemberg, que tudo
se precipitou, o grande salto foi dado. Os livros começaram a divulgar a escrita e foram ilustrados”
(MOYA, 1977, p.34).

Mas o design gráfico e as HQs surgem “oficialmente” somente a partir do desenvolvimento


das novas técnicas de reprodução e a inserção da comunicação visual na sociedade moderna oriunda
da revolução industrial no século XIX. Há exemplos anteriores a esta época, de ambas as expressões,
principalmente na história da arte, mas é com a renovação cultural dessa virada de século que ambas
se potencializam, se consolidam, ganham as características presentes até hoje. Walter Benjamin,

21
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

em seu ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, diz que a litografia, a técnica
de impressão planográfica desenvolvida nessa época, “permitiu às artes gráficas pela primeira vez
colocar no mercado suas produções não somente em massa, como já acontecia antes, mas também
sob a forma de criações sempre novas” e completa, dizendo que a comunicação visual “começou a
situar-se no mesmo nível que a palavra oral” (1994, p. 167).

Se antes da segunda guerra, as HQ’s e o design gráfico se relacionavam somente por


utilizarem os meios de reprodução como principal semelhança, com a reforma cultural que se
abateu no pós-guerra, ambas compartilharam dos mesmos ideais, como por exemplo, na chamada
“contracultura”:

É fato que os anos sessenta trouxeram novas atitudes e novas formas de comportamento,
passando pela idéia da formação de uma contracultura (termo cunhado na época) que
colocasse em questão os valores da cultura vigente.[...] Basta pensar nos desenhos de
Robert Crumb, o genial criador de ícones, como Fritz, the Cat e Mr. Natural, e virtual
criador do quadrinho underground como forma de resistência cultural. A desconfiança
dos circuitos de contracultura com relação a tudo que tinha do meio corporativo, e dos
poderes constituídos, explica em parte a dificuldade que existiu durante muitos anos de
aceitação desse tipo de trabalho pelo campo do design (CARDOSO, 2008, p. 199-202).

Assim, aparece então uma relação contemporânea muito forte, relacionando todas as formas
de comunicação visual, fazendo com que cada vez mais analogias apareçam. Flusser ressalta que hoje
em dia,

[...] os novos meios, da maneira como funcionam hoje, transformam as imagens em


verdadeiros modelos de comportamento e fazem dos homens meros objetos. Mas os meios
podem funcionar de maneiras diferente, a fim de transformar as imagens em portadoras e
os homens em designers de significados (2007, p. 159).

Isso vai de encontro à importância de se revelar as potencialidades das HQs como forma
de comunicação de massa, pois se percebe a responsabilidade que a comunicação visual exerce
atualmente. Como principal foco deste estudo, necessita-se então de um estudo pormenorizado das
Histórias em Quadrinhos, suas definições, especificidades e percurso histórico.

22
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

2. Quadrinhos

2.1 Definições
Desde que os primeiros estudos sobre as HQs começaram a ganhar destaque no meio
acadêmico, perceberam-se vários modelos da arte sequencial, influenciados tanto pelas evoluções
estéticas, tecnológicas e mercadológicas, como também pelos contextos históricos em que se
situavam (ocidente ou oriente).

Antes de se criar um retrospecto sobre essa mídia, é necessário definir quais são estes modelos.
Essa “divisão” será feita em relação à estrutura do meio, partindo das imagens isoladas, passando
pelas tiras e revistas, até os romances gráficos e edições compiladas.

2.1.1 Imagens isoladas

No momento em que a ilustração assume um papel comunicacional, principalmente de


sátira (seja ao cotidiano, seja à sociedade), ela cria uma conexão muito forte com as HQs. Por não
apresentarem narrativa seqüenciada, muitos autores não classificam essas imagens isoladas como
tal, mas a importância delas se destaca, quando percebemos as suas influências, tanto na gênese das
HQs, quanto no conteúdo e na forma.

No ocidente, essas imagens isoladas assumem três formas significativas: a caricatura, o


cartum e a charge (Figuras 01, 02 e 03).

A caricatura e o cartum são mais relacionados à estética utilizada para se retratar algo. Podem
ser utilizados tanto isoladamente quanto durante uma narrativa. Luiz Antônio Cagnin define a
caricatura: “sua técnica consiste em carregar (do italiano caricare, donde caricato>caricatura),
os traços mais evidentes de uma pessoa, exagerá-los, ou simplesmente mostrá-los quando já são
suficientemente notórios. A caricatura evidencia o caráter descritivo da imagem” (1965, p. 186).

Já o cartum é a simplificação das formas, visando uma maior identificação do leitor. Em um


capítulo de seu livro Desvendando os Quadrinhos, Scott McCloud desenvolve uma teoria sobre as
representações visuais, e diz que:

23
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

01

03

02
Acima, na figura 01, charge de Kayser. Abaixo à esquerda na figura
02, citação de Scott McCloud, e à direita na figura 03, caricatura de
Chacrinha, arte de Ziraldo.

01: Disponível em <http://blogdokayser.blogspot.com/> acesso em: 20 de dez. 2009 02 e 03: CAGNIN, Antônio Luiz. Os Quadrinhos.
São Paulo: Ática, 1975

24
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

Quando você olha para uma foto ou desenho realista de um rosto você vê isso como o rosto
de outra pessoa. Contudo, quando entra no mundo do cartum, você vê a si mesmo. [...]
Através do realismo tradicional, o desenhista de quadrinhos pode representar o mundo
externo, e, através do cartum, o mundo interno (2005, p. 36-41) [grifos do autor].

Visando o conteúdo e não a forma, a charge (termo francês, significa “carga”) tem como
principal característica seu cunho social, criticando através da sátira o contexto político em que
se insere. Faz uso tanto da caricatura quanto do cartum. É importante situar a charge em perfeita
sintonia com o contexto, pois assim a associação do leitor será maior: “(...) a leitura associativa é
importantíssima, pois contextos bem definidos integram a decodificação” (CAGNIN, 1975, p.
190).

O mangá japonês também teve influência de imagens isoladas. A ironia através da gravura foi
bastante popular a partir do século XVIII, “o material impresso e mais barato e acessível ao público,
e provavelmente mais próximo ao espírito do mangá, eram as gravuras Ukiyo-e” (GRAVETT, 2006,
p. 22).

Mesmo não sendo seqüenciadas, Luyten destaca que “na essência tinham muito a ver com
as histórias em quadrinhos: eram cheias de vida, atuais, divertidas, baratas e entretinham (2000, p.
98). Destaca-se também o Toba-ê, um livro de cartuns considerado pelos japoneses o mais antigo
do mundo (data de 1702).

E, como veremos mais adiante, no século XIX a força da caricatura ocidental foi significativa
para a formação de uma crítica social japonesa.

2.1.2 Tiras

As tiras foram as primeiras formas seqüenciadas de HQs a assumir grande relevância. Os


leitores, encantados com os personagens das páginas dominicais (sunday page in color), queriam ler
diariamente suas histórias.

Graças à escassez de espaço e à popularidade de personagens que o leitor pode encontrar


todo dia no jornal nasceu o formato clássico das tiras, da piada desdobrada em três
tempos, ou três quadros. O desafio narrativo, no seu caso pioneiro, é a concisão. Todas as
primeiras tiras diárias são de humor, e quanto mais óbvio melhor. O leitor tinha que rir
alto e passar para a outra tira (PATATI, BRAGA, 2006, p. 24).

Caracterizadas pela linearidade, as tiras visavam à concisão de uma situação, para causar
diversas reações do leitor (como veremos no percurso histórico mais adiante).

Por se desenvolverem no sentido da leitura, as tiras assumiram um formato peculiar no Japão,

25
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

04

Acima, na figura 04, tira de Snoopy e sua turma,


de Schulz Á esquerda na figura 05, Tira de Sazae-
san, de Machiko Hasegawa.
05

04: SCHULZ, Charles. Snoopy e sua turma. Porto Alegre: L&PM, 2009 05: GRAVETT, Paul. Mangá: como o Japão reinventou os
quadrinhos. Traduzido por Ederli Fortunato. São Paulo: Conrad, 2006.

26
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

onde foram fortemente influenciadas pelas “strips” ocidentais. “Nos últimos anos do século XIX,
os artistas japoneses começaram a responder à descoberta das tiras de múltiplos quadros européia
e norte-americanas (GRAVETT, 2006, p. 25). As tiras japonesas são verticais (conforme a leitura
oriental) e compostas de quatro quadros (figuras 04 e 05).

2.1.3 Revistas

Com o desenvolvimento de certas narrativas, sejam das páginas dominicais, sejam das
tiras, surgiu a necessidade de um espaço exclusivo para as HQs. Essas revistas se caracterizam por
aprofundar a história, mas ainda mantendo seu aspecto seriado. E a estética da página dominical,
berço dos quadrinhos norte-americanos, teve grande importância nesse processo:

Ali se estabeleceram as características mais reconhecíveis das HQs. Isto se deve às páginas
dominicais dos jornais, onde havia espaço e impressão em cores. Foi questão de tempo
para que as histórias em continuação, ou seriados, nascessem (PATATI, BRAGA, 2006,
p. 24).

A revista de quadrinhos assume as seguintes características no ocidente: costumam focar


em um único personagem, com páginas coloridas, e número de páginas reduzido, cerca de 20, 30
páginas (proporcional aos custos de produção). Atualmente costumam ser quinzenais ou mensais
(figura 07).

No Japão, com o passar dos tempos, as revistas em quadrinhos assumiram uma importância
relevante, sendo equivalente a 40% de todo o material impresso do país, e se consolidando cada vez
mais como a grande forma de leitura popular japonesa (GRAVETT, 2006) (figura 06). Esse mesmo
autor as descreve da seguinte forma:

Já no caso das revistas de mangá japonesas, ou mangashi, o que parece motivar o consumo
são as histórias – muitas histórias, de seis a mais de 20, dependendo do total de páginas
da edição. [...] Com exceção da capa, feita para chamar a atenção, a cor no interior da
revista fica restrita a um suplemento ou encarte, que dá início à tira de abertura e à quatro
ou oito páginas em outro local, muitas vezes usadas apenas para anúncios. Uma segunda
cor, geralmente laranja, pode ser usada para iluminar a feição de um protagonista. Outras
tonalidades, como azul, roxo ou papel em tons pastéis também aparecem com certa
freqüência. Todo o resto é em preto e branco (2006, p. 17).

Vale destacar que essas são publicadas semanalmente, em revistas para públicos específicos,
“na sua base, podemos dizer que há seis públicos (...). O infantil, jovem adulto e maduro, tanto
pensado para homens como para mulheres” (PATATI, BRAGA, 2006, p.223).

27
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

2.1.4 Livros

Comumente, quando as revistas formam uma história completa, edições de luxo,


encadernadas, são postas à venda. São destinadas tanto à colecionadores quanto à leitores que
não acompanhavam a história na revista. Esse é um hábito comum a ambos os pólos: no oriente,
compilando todas as histórias mais populares, e o ocidente, com um caráter mais nostálgico. Nos
Estados Unidos, uma nova forma de contar histórias foi desenvolvida nas últimas décadas.

Will Eisner foi um quadrinista ímpar quanto ao desenvolvimento da narrativa sequencial.


A partir de seu trabalho único, ele desenvolveu uma nova forma de publicar as HQs, as chamadas
grahic novels (romances gráficos) (figura 09). Esses romances se caracterizam por constituir uma
história completa, e em formatos de publicações similares aos livros. Sem contenções relativas às
economias de espaço, as graphic novels são:

[...] um híbrido entre o suplemento dominical dos quadrinhos e dos gibis. De um lado,
um número de páginas significativamente maior que o dos suplementos dominicais; e de
outro, a liberdade, ou melhor, a obrigação de falar com um público nitidamente maior
(PATATI, BRAGA, 2006, p.86).

Curioso notar que no Japão, com o mangá moderno, esse processo foi, de certa forma,
inverso. Existia um formato de livro muito popular no Japão pós-guerra, os akahon (figura 08).
Nesse formato, as histórias mais longas (e posteriormente mais “adultas”), se popularizaram.

Eram chamados de akahon, ou “livros vermelhos”, por causa da enorme quantidade de


tinta vermelha presente em suas capas berrantes. [...] Para mantê-los baratos, o formato
era geralmente do tamanho de um cartão postal ou ainda menor, com as páginas internas
impressas em papel de baixa qualidade. Com preço variando entre 10 e 50 ienes, 90 no
máximo (25 centavos de dólar) [...] (GRAVETT, 2006, p. 32-42).

Se Eisner foi único na reformulação das HQs ocidentais, veremos ao longo da história do
mangá, que Osamu Tezuka foi o grande nome ao longo de toda a formação dessa mídia no Japão.
Os próprios akahon, que formam um dos berços do mangá moderno, já destacavam em 1947 (na
história Shin-Takarajima, “A Nova Ilha do Tesouro”), as técnicas excepcionais de Tezuka.

Existem ainda outros formatos significativos de HQs, como os manuais de instruções e


storyboards, que não serão detalhados por não se inserirem no que Eisner (1999) chama de quadrinhos
como entretenimento, sendo utilizados puramente para aprendizagem e planejamento.

28
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

06 07

09
Acima, nas figura 06 e 07, exemplos de edições
de Mangás e HQs ocidentais (respectivamente).
Á esquerda (figura 08), capas de akahons, e acima
(figura 09), capa da graphic novel Persépolis.

08
06: disponível em <http://www.sanaeishida.com/weblog/images/ribon1.jpg> acesso em: 20 de dez. 2009 07: disponível em <http://images.
quebarato.com.br/photos/big/9/D/23A39D_2.jpg> acesso em: 20 de dez. 2009 08: GRAVETT, Paul. Mangá: como o Japão reinventou os
quadrinhos. São Paulo: Conrad, 2006. 09: Foto Fabiana Biazotto
29
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

2.2 Percurso histórico das histórias em quadrinhos


2.2.1 Pré história das HQs

Já foi dito que a gênese das HQs vem da revolução industrial, da grande distribuição da
mídia impressa. Porém, para se delinear um percurso histórico das HQs deve-se voltar para bem
antes desse momento. Devemos trilhar um caminho, partindo desde as pinturas das cavernas
paleolíticas. Nesse retorno aos tempos primitivos, além das pinturas rupestres, merecem destaques
as pinturas egípcias bem como a Coluna de Trajano. Muitos relacionam os hieróglifos às HQs,
porém, McCloud faz uma importante correção, quando afirma que “o descendente dos hieróglifos
é a palavra escrita, não os quadrinhos” (2005, p.13) [grifo do autor] (figura 10). Mas isso não
exclui a arte egípcia do percurso, é nas figuras que acompanhavam os hieróglifos que constavam os
primórdios da arte sequencial.

A tapeçaria de Bayeux, na França, também merece destaque, bem como a Tábua de Protat,
de 1370. A primeira descreve através de imagens sequenciais a conquista normanda da Inglaterra; a
segunda utiliza um recurso denominado filactério, uma espécie de antepassado do balão, indicando
a fala de um centurião romano durante a crucificação. Jacques Marny conclui que neles estão
“os dois componentes principais da banda desenhada” “a sucessão de seqüências da tapeçaria de
Bayeux” e o “’filactério’ da Tábua de Protat” (1970, p. 34).

Já no oriente, a caricatura ganha destaque. Luyten (2000, p. 91) descreve um evento, no


qual, em 1935, em uma manutenção em templos budistas, se descobrem “desenhos profanos”
originários do século VII. Depois, nos séculos XI e XII, surgem os Ê-Makimonos, considerados o
berço do quadrinho japonês. “(...) eram desenhos pintados sobre um grande rolo e contavam uma
história, cujos temas iam aparecendo gradativamente à medida que ia sendo desenrolado” (p.92).
Um desses rolos se destacou, o chamado Chojugiga (figura 17). “O artista e sacerdote Toba (1053
– 1140) ironizava sutilmente os religiosos, transformando-os em coelhos, macacos, raposas e sapo.
Além disso, desenhava também infames concursos de peidos” (GRAVETT, 2006, P.22).

Nos séculos XVIII e XIX, as histórias ilustradas japonesas se desenvolveram junto com o
próprio país. “Além do teatro popular, como o Kabuki e o Bunraku, aos poucos passou-se a produzir
séries de gravuras mostrando aspectos da vida cotidiana e livros de histórias ilustradas” (LUYTEN,
2000, p. 97).

Ocorre então, em 1950, o grande marco comunicacional da história, a “invenção” da


imprensa por Gutemberg. Como visto anteriormente, esse acontecimento deu origem, tanto às
HQs, quanto ao design gráfico, pois possibilitou que todos os livros, antes disponíveis somente
às elites (através dos manuscritos), se disseminassem a todas as classes. Essas publicações traziam a
necessidade da ilustração, e assim, se desenvolveram as primeiras narrativas visuais.

30
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

10

11 Acima, constatações de Scott McCloud, na figura 10 dobre a relação das obras


egípcias com os quadrinhos, e na figura 11 sobre a obra de William Hogarth.

10 e 11: MCCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. São Paulo: M. Books, 2005.

31
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

Um artista que se destacou no desenvolvimento da ilustração dessa época foi William


Hogarth, com O progresso de uma prostituta, em 1731. “Apesar de ter poucos quadros, essas figuras
contam uma história rica em detalhes e motivada por fortes preocupações sociais” (MCCLOUD,
2005, p. 16) (figura 11).

Na Europa, várias revistas com cunho social ganharam destaque, e com a significativa
importância da ilustração, sobretudo no século XIX, entre elas La Caricature, em 1930, “jornal
satírico ilustrado por Daumier, Decamps, Monnier e Gavarni” (MOYA, 1977, p. 32). Ainda
figuram Charles Dickens, Pellerin (Images d’Épinal) (figura 12) e Wilhelm Busch (figuras 13 e 14),
que “cria os primeiros personagens célebres das ilustrações em continuação: a obra-prima Max und
Moritz” (MOYA, 1977, p. 35).

A narrativa sequencial teve um cuidado especial por parte de Rodolphe Töpffer. Ele alcançou
um equilíbrio harmônico entre a imagem e o texto, sendo considerado um precursor do quadrinho,
décadas antes do Yellow Kid e seu camisolão.

Coincidentemente, pouco antes, em 1814, oriundo do ukiyo-ê, Katsushita Hokusai (1760 –


1849), formulou, de fato, o termo japonês referente às HQs, o mangá. Por mais que Osamu Tezuka
seja considerado o pai do mangá moderno, Hokusai foi o pioneiro dessa narrativa, “(...) Hokusai
Manga (figura 16) é um espelho daquele tempo e do próprio gênio singular do autor, que soube
captar e ilustrar a vida como um todo” (LUYTEN, 2000, p. 98).

Com a abertura comercial do Japão, em 1853, uma enxurrada de influências ocidentais


invadiu o Japão. Vindo das revistas ilustradas européias, podemos destacar um Gaijin (estrangeiro,
em japonês): o inglês Charles Wirgman (1835 – 1891). Editou, em 1862, a revista Japan Punch,
colocando no dia-a-dia dos japoneses as charges políticas.

A caricatura assume então, um papel marcante na cultura da crítica social japonesa. Luyten
destaca a importância disso, pois com essa influência direta da caricatura européia “houve a fusão de
uma longa tradição com a inovação, desaguando no nascimento das histórias em quadrinhos como
veículo de comunicação (2000, p. 102). Baseando-se nas caricaturas da Japan Punch, os japoneses
criam as suas, “essas exóticas imagens de estilo ocidental forma gradualmente influenciando os artistas
japoneses, que começaram a criar coragem para atacar a corrupção de seus líderes” (GRAVETT,
2006, p. 25). As influências da Japan Punch fazem com que, em 1877, seja criada a primeira revista
japonesa ilustrada de humor, a Marumaru Shimbum (figura 15).

2.2.2. O Nascimento das histórias em quadrinhos

Considera-se a primeira história em quadrinhos Yellow Kid, de Richard Outcault, publicada


pela primeira vez em 1895 (figura 18). Devido a uma inovação do autor: o uso do balão para
distinguir as falas dos personagens. Deve-se relevar também, uma série sobre uma família francesa,

32
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

12

14

Acima, na figura 12, Imagem de Épinal,


de Pellerin. Nas figuras 13 e 14 a obra
de Wilhelm Bush, (no detalhe acima,
Max e Moritz).
13

12: disponível em <http://lambiek.net/artists/z/zutna.htm> acesso em: 20 de dez. 2009. 13 e 14: disponível em <http://schulzlibrary.files.
wordpress.com> acesso em: 20 de dez. 2009.

33
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

15

16 17

Acima, na imagem 15, caricaturas da Marumaru Chimbum. Abaixo à esquerda (figura


16), Hokusai Mangá, e à direita (figura 17), o Chojugiga.

15 e 17: LUYTEN, Sonia Bibe. Mangá: o poder dos quadrinhos japoneses. 2. ed. São Paulo: Hedra, 2000. 16: http://sebastian-corn.tapirul.
net

34
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

La Famille Fenouillard, de Christophe (pseudônimo de Georges Colomb) de 1889 (figura 19). Por
não possuir balões, não é considerada a primeira história, mas traz consigo uma narrativa envolvente,
e assim como Yellow Kid, também traz uma sátira à vida cotidiana e da sociedade.

Mesmo com diferenças em relação aos veículos de comunicação (a guerra dos jornais norte-
americanos em contraponto com as revistas infantis européias), os quadrinhos, em seus primórdios,
tinham como principal tema o humor. “A primeira função das histórias (...) é fazer rir. Foi este
humor – humor facilmente acessível a todas as classes sociais – que assegurou sua difusão” (MARNY,
1970, p. 38).

Em 1896, Rudolph Dirks cria Os Sobrinhos do Capitão (The Katzenjammer Kids). “Dirks
inventou e desenvolveu um dos paradigmas do gênero: o conflito” (PATATI, BRAGA, 2006, p.23),
fazendo com que uma legião de garotos mal-educados, (existentes desde Max und Moritz, de Busch)
eclodissem verdadeiras guerras com seus responsáveis, trazendo o confronto “adulto x criança”, para
a arte sequencial (figura 20). Ainda na temática sobre garotos, após Yellow Kid, Outcault cria Buster
Brown, em 1902, aonde Outcault refinou a técnica do balão.

No Japão, em 1902, baseando-se nas influências européias, Rakuten Kitazawa, significativo


caricaturista político, criou a primeira história nipônica seriada e com personagens regulares,
“Togosaky to Mokube no Tokyo Kembutsu (Togosaku e Morubê Passeando em Tóquio) (figura 21). Era
publicada num suplemento dominical colorido, ‘Jiji Manga’, bem ao estilo dos publicados por
Pulitzer nos Estados Unidos” (LUYTEN, 2000, p.104), ainda sem a presença marcante dos balões.
Assim como a família de Christophe, Kitazawa criou uma história com personagens provincianos
fascinados pelas grandes cidades. Cabe ainda a Kitazawa o mérito pela publicação da Japan Puck,
em 1905.

“Mesmo quando as tiras americanas de jornal estavam na infância, havia artistas dispostos
a desafiar o status quo e explorar o grande potencial intocado dos quadrinhos” (MCCLOUD,
2006, p. 15) [grifos do autor]. Em 1905, o mundo conhece Little Nemo in Slumberland, de Winsor
McCay. Oriundo da animação (lembrando que esta se origina praticamente junto com os quadrinhos
e o cinema), McCay traz toda a efervescência da modernidade, a dinâmica do movimento, para os
quadrinhos (figura 23). McCay também trouxe um aspecto surreal aos quadrinhos, até então nunca
explorados, “Little Nemo é o protótipo da narrativa onírica desenvolvida em ambientes estranhos
que fazem de McCay um dos precursores do surrealismo” (MARNY, 1970, p.72).

Então, em 1905, é publicada no Brasil a revista O Tico-Tico. É interessante ver que


personagens, como Buster Brown, aqui rebatizado (e redesenhado) como Chiquinho, chegam menos
de uma década depois do sucesso de Yellow Kid nos Estados Unidos. Essa revista foi de extrema
importância no meio editorial, pois trazia ilustradores como J. Carlos, importante na própria
história do design brasileiro (figura 22).

Três anos mais tarde, revistas como L’Epatant, na França e Corrieri dei Picolli, na Itália,

35
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

18 19

20

Acima, à esquerda (figura 18), Yellow Kid de Outcault; à direita (figura 19), La Famille
Fenouillard, de Christophe. Na figura 20, The Kazenjammer Kids, de Dirks.

18: BRAGA, Flávio; PATATI, Carlos. Almanaque dos Quadrinhos: 100 anos de uma mídia popular. São Paulo: Ediouro, 2006. 19: disponível
em <http://www.bibliotheque.toulouse.fr> acesso em: 20 de dez. 2009. 20: disponível em <http://www.barnaclepress.com> acesso em:
20 de dez. 2009.

36
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

21
Acima (figura 21), página de Tagosaku e Morubê
Passeando em Tóquio.

21: disponivel em <http://upload.wikimedia.org> acesso em: 20 de dez. 2009.

37
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

22

Acima, (figura 22), Chester Brown, rebatizado


Chiquinho na edição brasileira (Tico Tico), e seu
amigo Benjamin, Á esquerda (figura 23), uma
página “surrealista” de Little Nemo, de McCay.
23

22: disponível em <http://br.monografias.com/trabalhos903/monteiro-lobato/Image3520.gif> acesso em: 20 de dez. 2009. 23: BRAGA,


Flávio; PATATI, Carlos. Almanaque dos Quadrinhos: 100 anos de uma mídia popular. São Paulo: Ediouro, 2006.

38
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

começaram a surgir, publicando histórias como as dos maldosos Croquignol, Ribouldingue e


Filochard, os Pieds Nickelés. Marny diz que “com eles atingiu-se definitivamente o público jovem
das classes populares. Ele reconhece-se (...), sobretudo, na demolição sistemática de qualquer
autoridade ‘respeitável’” (1970, p. 42-3).

Em 1907 surge Mutt e Jeff, de Fischer, como a primeira história em formato de tira (figura
24). Como já dito anteriormente, esse formato se caracterizava por ser diário, não mais semanal, e
restrito a três quadros, “Eram comentários acerca da fauna humana que gravita em torno do turfe.
(...) Mostravam o caráter patético do jogo, e exercitavam uma espécie de autocrítica” (PATATI,
BRAGA, 2006, p. 23).

O cotidiano burguês é criticado ao ápice em Bringing up Father (Pafúncio e Marocas, no


Brasil), de George McManus. Em 1913 ele critica ferozmente o matriarcado norte-americano que
se consolidou após a Primeira Guerra Mundial; “Foi a que primeiro estabeleceu a família como
teatro de operações de uma sátira social acabada” (PATATI, BRAGA, 2006, p. 27) (figura 25).

Além das famílias, do cotidiano burguês e das crianças encrenqueiras, em 1911, George
Herriman cria uma série singular, Krazy Kat (figura 26). No meio de um triângulo amoroso entre
animais de diferentes espécies, humor e fantasia se juntam em uma narrativa surrealista. Outro que
merece destaque, surgiria em 1920, Félix, the Cat, de Pat Sullivan, fazendo estrondoso sucesso nas
animações mudas da época (perdendo espaço para Disney, em 1928). Completando o trio felino
está o gato de Polly and Her alls, de Cliff Sterrett “A série versava sobre o tema da família e de seu
animal de estimação” (PATATI, BRAGA, 2006, p. 30).

No oriente, os japoneses continuavam a receber a influência dos quadrinhos ocidentais,


porém, adaptando cada vez mais à sua cultura. “O relativo isolamento cultural sempre permitiu
ser mais seletivo às influências estrangeiras e depois adaptá-las ao seu próprio gosto” (SCHODT
apud LUYTEN, 2000, p. 106). Em 1923, duas histórias foram significativas. Após o terremoto
deste mesmo ano, Yutaka Aso, do jornal Achi, desenvolve Nonki na Tosan (Papai Despreocupado)
“(...) para levantar a moral dos sobreviventes. Essa série, muito parecida com Pafúncio e Marocas, foi
considerada um grande alento à população para continuar a luta diária” (LUYTEN, 2000, p. 106).
Vale destacar também Sho-Chan no Boken (o Gorro de Sho-Chan), uma história que, conforme Ono
e Tezuka (apud LUYTEN, 2000, p. 111) “é o equivalente japonês de Little Nemo in Slumberland,
de Winsor MacCay: Sho-chan e seu amigo esquilo salvam uma bela princesa, que, colhendo flores
na floresta, é atacada por um monstro, nem homem nem animal” (figura 27).

Fechando esse período, destaca-se o aparecimento de Mickey Mouse, de Walt Disney, em


1928 (nos quadrinhos, em 1930). Sendo uma adaptação das suas histórias em animação, o Mickey
dos quadrinhos tem um caráter muito mais infantil e comercial, sendo que o reino de Walt Disney
só atinge seu ápice narrativo nesta mídia, anos mais tarde, com os patos de Carl Barks a partir dos
anos 40.

39
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

24

26

25

Acima (figura 24), tira de Mutt e Jeff de Fischer. Abaixo à esquerda


(figura 25), trecho de Pafúncio e Marocas de George McManus, e a
direita (figura 26), Krazy Kat de Herriman.

24: MOYA, Álvaro de Shazam! São Paulo: Perspectiva, 1977. 25: BRAGA, Flávio; PATATI, Carlos. Almanaque dos Quadrinhos: 100 anos
de uma mídia popular. São Paulo: Ediouro, 2006. 26: disponível <http://www2.iath.virginia.edu/crocker/kov.gif> acesso em: 20 de dez.
2009.

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Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

27
Acima (figura 27), trecho de Sho-Chan no
Boken (O gorro de Sho-Chan).

27: disponível em <http://www.comic.de/manga/mangamuseum/shochan.jpg> acesso em: 20 de dez. 2009.

41
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

2.2.3 Os reflexos de 1929

Já na década de 1920, com o mundo sentindo os efeitos da 1ª Guerra e daquela que viria a
ser uma das maiores crises da história, a situação econômica no mundo começa a decair, e, do mesmo
modo, o interesse por histórias puramente cômicas. “Tais temas já haviam sido bastante explorados,
e os ventos políticos das sociedades ocidentais se tornavam mais conservadores, tornando pouco
saudável para os autores a crítica constante da família e da vida cotidiana” (PATATI, BRAGA, 2006,
p. 33).

Primeiramente, dois repórteres aparecem, viajando ao redor do mundo, e levando consigo


a imaginação dos leitores “mais interessado em olhar para longe do que para próximo de si mesmo”
(PATATI, BRAGA, 2006, p. 34). O primeiro deles é criado pelo americano Roy Crane, na série
Wash Tubbs, lançada em 1924 (figura 28). Crane diferencia a sua série das demais, por trazer de
forma pioneira a aventura aos quadrinhos. Desenvolve as histórias através de “ganchos”, evoluindo
a narrativa. Também inovou ao “trazer uma medida de pesquisa e de realismo para suas narrativas
de aventura” (PATATI, BRAGA, 2006, p. 37). Em 1929, o belga Hergé também cria um repórter
aventureiro, Tintin, com cenários cuidadosamente pesquisados, porém, ainda com uma temática
humorista, da qual o autor fazia questão de manter (figura 29).

Em 29 de outubro de 1929, Nova York entra em colapso, com o chamado crack da bolsa.
Esse evento vem de encontro às novas narrativas que foram desenvolvidas nessa época, história
de aventura, aonde o leitor esquecia os problemas do cotidiano, fugindo ao espaço, à selva, ao
passado, e até mesmo perdendo-se nas histórias policiais. As tiras não serviam somente à distração
dos leitores, era a forma de escapar da crise. Supriam uma necessidade de forma barata, e por isso, as
revistas de aventura atingiram, na década de 30, suas maiores tiragens, marcando assim a chamada
“era de ouro” das HQs.

Ainda em 1929, duas histórias já figuravam nos jornais, ambas vindas de outros meios.
Tarzan, o rei das Selvas (figura 30), vinha de uma série de romances homônimos, escritos por
Edgar Rice Burroughs e o herói espacial Buck Rogers, vinha dos folhetins de ficção científica (figura
33), popularmente conhecidos como pulps. Em 1931 Chester Gould cria um detetive peculiar,
Dick Trace (figura 35). Cria um novo modelo de histórias policiais “(...) figura que determinaria a
personagem realista do detetive marginal, particular, semipolicial, de toda a literatura do gênero,
tirando-a do ranço sherlockiano de Conan Doyle” (MOYA, 1977, p. 42) [grifo do autor].

Em 1933 a King Features Syndicate (um dos “sindicatos”, órgãos destinados a administrar e
distribuir os quadrinhos nessa época), realiza um concurso para competir com estas três histórias.
Surge então, ganhando as três categorias, Alex Raymond (figuras 31, 32 e 34), “com Flash Gordon
(para concorrer com Rogers), Jungle Jim (vs. Tarzan) e Bill, o agente secreto X-9 (anti-Tracy)” (MOYA,
1977, p. 43-4). Raymond se consagrou não somente por seus desenhos, mas por sua criatividade

42
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

28

Acima (figura 28), detalhes de Wash


Tubbs. Na figura 29, um trecho de
Tintin.
29

28: BRAGA, Flávio; PATATI, Carlos. Almanaque dos Quadrinhos: 100 anos de uma mídia popular. São Paulo: Ediouro, 2006. 29: disponível
<http://www.rci.rutgers.edu/~jbass/courses/402/images/tintin_panels_big.jpg> acesso em: 20 de dez. 2009.

43
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

30 31

32 33

34 35
Acima (figuras 30 e 31), Tarzan e Jingle Jim, (figuras 32 e 33), Flash Gordon e Buck
Rogers, e (figuras 34 e 35) X-9 e Dick Tracy.
30: BRAGA, Flávio; PATATI, Carlos. Almanaque dos Quadrinhos: 100 anos de uma mídia popular. São Paulo: Ediouro, 2006. 31: http://
www.newkadia.com/Covers/32: http://www.keefestudios.com 33: http://screenrant.com/ 34: http://quadrideko.blogspot.com 35: http://
goodcomics.comicbookresources.com/. Todos com acesso em: 20 de dez. 2009.

44
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

ilimitada. Com Flash Gordon foi, inclusive, designado pela NASA a contribuir com desenhos para
navegação espacial.

Era “o fim do raciocínio, o início da ação” (MOYA, 1977, p. 42). A década de 30 foi aonde
os principais personagens da cultura de massa apareceram, “motivo da idéia de massificação e visão
cosmopolita dos heróis e sua mitologia, suas figuras fetichistas em ícones gráficos” (MOYA, 1977,
p. 43). A crítica não era mais tão necessária.

Assim como os americanos, os japoneses também recorreram ao escapismo para esquecer


as dificuldades econômicas que assolavam o país. Para contrapor as aventuras americanas, Luyten
destaca três histórias: Bonen Dankichi (Dankichi, o aventureiro), de Keizo Shimada; Kasei Tanken
(Expedição a Marte), criada por Nobuo Oshiro, e Norakuro, de Suiho Tagawa.

Dessa forma, a triologia de aventura em moldes japoneses é mais ou menos semelhante à


que se deu no Ocidente: a representação da fuga para as selvas [Tarzan x Bonen Dankichi];
para o futuro [Flash Gordon x Kasei Tanken] e para o passado e/ou nacionalismo [Príncipe
Valente x Norakuro] (LUYTEN, 2000, p. 114).

Bonen Dankichi era um garoto que se tornava dominante de uma ilha do Pacífico,
enfrentando com “espírito japonês” os problemas de se administrar uma Ilha selvagem; Kasei Tanken
era uma história de ficção científica, gênero que só se tornaria efetivamente popular após a guerra;
e Norakuro (figura 36), uma história de um cãozinho, que merece uma atenção especial por refletir
o espírito nacionalista dos japoneses, “com um status de ícone similar ao do Gato Félix e Mickey
Mouse.” (GRAVETT, 2006, p.26). Valores morais como o patriotismo, a força, a coragem, eram
exaltados nesses quadrinhos, promovidos pelo militarismo japonês.

Retornando aos Estados Unidos, em 1934, Al Capp lança a família Yokum (conhecida no
Brasil como Família Buscapé). Ferdinando, um estereótipo do caipira atlético e ingênuo, descobre
um vale cheio de Shmoos, um pequeno animal que supria todas as necessidades dos seres humanos
(dão ovos, leite, morrem de felicidade quando alguém os olha com fome, proporcionando uma
deliciosa carne e se reproduzem o tempo inteiro). Porém, esses pequenos seres despertam a fúria
daqueles que vendem os produtos que os Shmoos propiciam gratuitamente, e então uma grande
matança é realizada na cidade (figura 37). “O Shmoo, símbolo de alimentação gratuita, despertou
polêmica em todo o mundo” (MOYA, 1977, p. 51). O autor é “acusado pelos republicanos de ter
feito uma história usando o shmoo como símbolo do socialismo futuro” (MOYA, 1977, p. 56). É
a grande crítica das histórias em quadrinhos em uma época onde as aventuras reinavam absolutas.

Antes da Segunda Guerra, surge um gênero, derivado das aventuras, e que se destacaria até
os dias de hoje, como o grande símbolo da mitologia das HQs, os Super-Heróis.

O Escritor Lee Falk tem uma participação muito importante, pois são dele os dois personagens

45
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

36

37
Acima (figura 36), Norakuro e o esírito do miliarismo japonês. na
Figura 37, o massacre dos Schmos de Al Capp.

36: GRAVETT, Paul. Mangá: como o Japão reinventou os quadrinhos. São Paulo: Conrad, 2006. 37: MOYA, Álvaro de Shazam! São
Paulo: Perspectiva, 1977.

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Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

que, pela primeira vez na mídia gráfica, abordariam a questão dos poderes sobrenaturais. Mandrake
(figura 39, criado em 11 de junho de 1934) era um mago que tinha poderes hipnóticos, e o Fantasma
(figura 38, de 1936), tinha a imortalidade a seu favor (que nada mais era do que um “cargo”, passado
de geração em geração). Mas o que vale destacar é que, esses personagens trouxeram em seus trajes
o grande elemento de impacto iconográfico dos quadrinhos.

O leitor foi levado a compreender quem era o herói não só na primeira página, como
no primeiro quadro. Empresários e criadores se deram conta de que, mesmo no registro
“realista” da imagem do quadrinho de aventura de jornal, personagens visualmente
demarcados de modo chamativo se fixavam mais imediatamente na memória do leitor. O
colante roxo do Fantasma, seu mundialmente anel da caveira ou a cartola de Mandrake
são ícones (PATATI, BRAGA, 2006, p. 58).

Em 1938 surge aquele que seria o marco inicial definitivo do gênero, o Superman (figura 41).
Por ser um personagem tão poderoso (beirando a ingenuidade), seus autores tiveram dificuldades em
publicá-lo, “contudo, terá sido essa mesma “imaturidade” que caiu na veia do público: o personagem
foi um imediato sucesso de vendas” (PATATI, BRAGA, 2006, p. 67). Em 1940, o Capitão Marvel
(figura 42) surge em contrapartida, baseando-se na magia, ao contrário do “científico” Superman.
Merece destaque ainda o surgimento de Batman, em 1938, vindo dos romances policiais (figura
40).

Além da questão de identificação visual dos super-heróis (com suas capas e colantes), estes
se diferenciavam das HQs de aventura pela superficialidade das relações humanas em que estavam
contidos. Os heróis de aventura se envolviam de forma mais sutil em suas aventuras, não de forma
violenta, com uma ação desenfreada, como foi o caso dos primeiros super-heróis. Essa característica
foi amplamente usada como base para uma verdadeira “panfletagem” ideológica que ocorreu ao
longo da Segunda Guerra Mundial.

2.2.4 As HQs durante a Segunda Guerra Mundial

As histórias em quadrinhos foram usadas pela primeira vez, abertamente, como ferramenta
social, durante a Segunda Guerra. Os heróis das aventuras, o grande sucesso da época, entravam
em combate, para trazer aos americanos a segurança da vitória. Flash Gordon retorna a Terra, Terry
(de Terry e os Piratas, de Milton Caniff) se alista na Força Aérea Americana, Tarzan persegue espiões
alemães na selva africana. “Os heróis que faziam a guerra em planetas longínquos mobilizam-se
voluntariamente para participarem no esforço de sua pátria” (MARNY, 1970, p. 151).

Surge, em 1941, o Capitão América (figura 45), alter ego de um patriota americano, Steve
Roger, que deseja servir à pátria, mas por ser considerado inapto às trincheiras acaba sendo voluntário
em um experimento. “O Capitão América era um panfleto. E havia um imenso público para essa

47
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

38

Acima (figura 38) Fantasma, e ao lado


(Figura 39), Mandrake, ambos do
escritor Lee Falk.
39

38 e 39: MOYA, Álvaro de Shazam! São Paulo: Perspectiva, 1977.

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Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

41

42
40

Batman e Robin (figura 40). Acima ao lado, a primeira


aparição de Superman (figura 41), e Capitão Marvel (figura
42).

40: MOYA, Álvaro de Shazam! São Paulo: Perspectiva, 1977. 41 e 42: BRAGA, Flávio; PATATI, Carlos. Almanaque dos Quadrinhos: 100
anos de uma mídia popular. São Paulo: Ediouro, 2006.

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Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

fórmula. Leitores que pouco depois se alistariam e combateriam numa guerra mundial” (PATATI,
BRAGA, 2006, p. 81).

Os estereótipos surgem de ambos os pólos, retratados sempre nos vilões de cada extremo.
Na América, já comumente representados por etnias “exóticas”, o “mau” era retratado claramente
como o retrato dos alemães e japoneses (figura 43).

A fisionomia oriental sempre trazia conotações sobre o perigo amarelo. Os vilões


eram reconhecidos pelas atitudes ambíguas e pelas expressões dissimuladas do rosto,
normalmente desenhados com feições de raposa. Os alemães vistos pelos aliados eram
retratados com traços grosseiros, acompanhados de movimentos rituais, brutalidade de
comportamento e espírito de rapina (LUYTEN, 2000, p. 120).

E Luyten complementa a descrição dos vilões por parte dos japoneses “(...) eram traçados
proporcionalmente mais altos, gordos, com grandes narizes e rosto meio animalesco de quem come
carne” (p. 120) (figura 44).

No Japão, já dominado pelo forte militarismo dos anos 30, os artistas eram proibidos de
retratar qualquer tipo de quadrinho fora dos padrões pré-estabelecidos:

Os artistas que não tinham sido banidos do trabalho encontravam-se numa dessas três
áreas: produzindo quadrinho de cunho familiar, que eram totalmente inofensivos, ou
promoviam solidariedade nacional; desenhando painéis ilustrações que difamavam o
inimigo nas revistas ou outro meio de comunicação; trabalhando para o governo ou
serviço militar, criando propaganda a ser usada contra as tropas de oposição (LUYTEN,
2000, p. 117-8).

Com o fim da guerra, os personagens norte-americanos começam a refletir mais e agir


menos, carregados por um sentimento mundial de reavaliação de valores.

Já no lado derrotado, os japoneses sofrem com a forte repressão da ocupação norte-americana,


“isso levou as autoridades americanas a atacar qualquer coisa que lembrasse o espírito guerreiro
japonês ou os valores de obediência cega e auto-sacrifício do bushido” (GRAVETT, 2006, p. 58).

Destaca-se no pós-guerra, a personagem Sazae-san, da desenhista Machiko Hasegawa. Mãe


de uma família burguesa, que perde tudo durante a guerra, ela resolve os problemas do cotidiano
com doses de humor, reforçando o tema familiar.

Somente décadas mais tarde, a Segunda Guerra poderá ser explorada como tema de reflexão, como
nas obras de Keiji Nakazawa (Gen pés descalços, em 1972) e Osamu Tezuka (Adolf, 1983).

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Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

43 44

Acima, estereótipos do vilão para os


americanos (figura 43) e para os japoneses
(figura 44). Ao lado, o Capião América
esmurrando Adolf Hitler (figura 45).
45

43 e 44: LUYTEN, Sonia Bibe. Mangá: o poder dos quadrinhos japoneses. 2. ed. São Paulo: Hedra, 2000. 45: BRAGA, Flávio; PATATI,
Carlos. Almanaque dos Quadrinhos: 100 anos de uma mídia popular. São Paulo: Ediouro, 2006.

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Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

3. As HQs como crítica social

3.1 Teorias e terminologias


Antes de exemplificar o uso das HQs como forma de crítica social, é necessária uma definição
de termos, como comunicação de massa e indústria cultural. Ambos os termos se originam em
estudos relacionados às teorias de comunicação, que vêm de encontro às novas realidades sociais e
econômicas derivadas da Revolução Industrial do fim do século XIX.

Ao se desligar de sua cultura local, o indivíduo que se desloca às grandes cidades para trabalhar
necessita de um novo vínculo cultural, e aí as críticas se fortalecem (como maior exemplo as teorias
de Marx, Nietzsche e Freud). Além dessa ruptura do laço cultural, outro fator se origina do próprio
modo de produção das indústrias. As funções se especificam, e surge então uma segregação, que dá
origem à individualização do ser. Durkheim (apud Ferreira, 2001), em Da divisão do trabalho social,
afirma que essa individualização enfraqueceu a noção do indivíduo como parte do corpo social,
levando-os a chamada anomia (perda de objetivos e, conseqüentemente, identidade). A identidade,
na modernidade2, sofre a sua maior transformação. Stuart Hall explica que,

As transformações associadas à modernidade libertam o indivíduo de seus apoios estáveis


nas tradições e nas estruturas. Antes se acreditava que essas eram divinamente estabelecidas;
não estavam sujeitas, portanto, a mudanças fundamentais. O status, a classificação e a
posição de uma pessoa na “grande cadeia do ser” – a ordem secular e divina das coisas –
predominavam sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse um indivíduo soberano
[2000, p. 25].

Na modernidade, o número de novas identidades que o individuo pode assumir, associadas a


um novo contexto econômico e social, faz com que essa estrutura “fixa” da identidade pré-moderna
se modifique,

A experiência da modernité é a experiência da novidade, do novo sempre mutável, da


inovação e da transitoriedade (Frisby; 1985). A identidade de um indivíduo pode tornar-

2. Neste trabalho, a modernidade é vista conforme Douglas Kellner, “uma época de mudanças e
inovações rápidas, com a negação do velho e a criação do novo, como um processo ligado ao capitalismo
industrial, às revoluções democráticas, à urbanização e à diferenciação social e cultural” (2001, p. 295). Desta
forma, o conceito de “pré-moderno” se refere ao período anterior e, conforme visto posteriormente neste
estudo, o conceito de Kellner para a pós-modernidade também será adotado.

52
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

se superada, supérflua ou deixar de ser socialmente válida. Ele pode então passar pela
experiência da anomia, condição de extrema alienação em que o mundo deixa de ser a sua
casa [KELLNER, 2001, p. 297].

Assim, temos dois pontos de vista nessa nova sociedade: por um lado, o indivíduo “perdido”,
no meio de várias identidades, beirando a alienação, e de outro, o Le Bon chama de multidões:

[...] a multidão é uma identidade onde todos os indivíduos estão submetidos a uma
alma coletiva, pois ela tem sua própria natureza. [...] absorve o indivíduo numa forma de
contaminação mental, e tal contaminação é impulsionada pelas características hereditárias,
populares, e raciais que compõem uma espécie de “alma coletiva” desta multidão ou massa
(apud Ferreira, 2001, p. 105-6).

Essa massa absorve o indivíduo, moldando-o conforme seus valores (o chamado homem-
massa por Ortega y Gasset) e é através da cultura desenvolvida a partir dessa “alma coletiva” que se
preenche a necessidade de ligação cultural do mesmo.

Por cultura, Morin define como “(...) um corpo complexo de normas, símbolos, mitos
e imagens que penetram o indivíduo em sua intimidade, estruturam os instintos, orientam as
emoções” (1990, p. 15).

Até o século XIX, fazia-se uma distinção entre cultura erudita e cultura popular, sendo a
primeira restrita às classes dominantes (tanto na sua concepção quanto na apreciação), e a segunda
relacionada mais às questões folclóricas. Já com a renovação cultural que se desenvolveu no fim
do século XIX, surge cultura de massa3, caracterizada por levar a informação a todas as classes,
através dos meios de comunicação vigentes (partindo dos jornais, potencializando-se com a TV,
renovando-se com a internet), Por ser acessível a todos, a cultura de massa nivela seu conteúdo, por
isso, muitos a classificam como uma cultura “mediocre”, no uso literal do termo:

A cultura de massa é média, em sua inspiração, e seu objetivo, porque ela é a cultura do
denominador comum entre as idades, os sexos, as classes, o povos, porque ela está ligada a
seu meio natural de formação, a sociedade na qual se desenvolve uma humanidade média,
de níveis de vida médios, de tipo de vida médio (MORIN, 1990, p.51).

3. Conforme Kellner, Raymond Williams e a chamada Escola de Birmingham (Centre for Contemporary
Cultural Studies – CCCS) foram os primeiros a rejeitar este termo, afirmando que o termo “tende a ser elitista,
criando uma oposição binária entre alto e baixo, oposição essa que despreza ‘as massas’ e sua cultura. (...)
também é monolítico e homogêneo, portanto neutraliza contradições culturais e dissolve práticas e grupos
oposicionistas num conceito neutro de ‘massa’” (2001, p. 50).

53
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

Como veremos adiante, as teorias críticas da comunicação de massa desenvolveram um


termo, a indústria cultural (cunhado por Adorno e Horkheimer, oriundos da Escola de Frankfurt,
em Dialética do Esclarecimento, de 1947). Essa indústria, assim como todas, desenvolve um produto
a ser comercializado, neste caso a cultura, difundida através dos meios de comunicação já citados.
Para estes críticos, resta somente ao ser humano se deixar levar por essa cultura, ser influenciado
por esses meios sem reagir. A indústria cultural reforça a supremacia da sociedade “caracterizando
uma atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural” (FERREIRA, 2001, p.
108). É interessante perceber que estes teóricos defendem o indivíduo, como vítima de todo esse
processo, mas ao mesmo tempo o condena, subestimando as suas capacidades de interpretação das
informações.

O mérito da Escola de Frankfurt está na integração do estudo da comunicação e da


cultura à teoria critica da sociedade, assim “tornou-se importante parte de uma teoria da sociedade
contemporânea, uma vez que a cultura e a comunicação estavam desempenhando papel cada vez
mais significativo” (KELLNER, 2001, p. 47).

Vale a pena destacar um autor, também vindo da Escola de Frankfurt, Hans Magnus
Enzensberger, que apresenta uma visão otimista desse processo. Conforme Guareschi (1981) e
Santaella (1990), as críticas à ideologia burguesa e à sociedade capitalista eram tão extremas, usando
a comunicação de massa como motivo, que o verdadeiro potencial dessa mídia era esquecido. “Os
novos meios, ao menos potencialmente, poderão democratizar a cultura, retirá-la das mãos de
uma minoria privilegiada de intelectuais burgueses” (GUARESCHI, 1981, p. 16). E Enzensberger
complementa: “com uma só grande exceção, a de Walter Benjamin (e, à sua imagem, a de Bertolt
Brecht), nenhum marxista entendeu a indústria de consciência e só viu nela seu aspecto burguês e
capitalista, sem dar-se conta de suas possibilidades socialistas” (apud SANTAELLA, 1990, p. 84).

Lembrando que Benjamin foi o primeiro teórico a ver os meios de comunicação de massa
não pelo seu lado consumista, mas pelos seus reflexos de reprodução4. E Brecht, criticava a sociedade
capitalista incentivando o posicionamento político dos indivíduos.

Portanto, a indústria cultural, inserida na comunicação de massa, tem um aspecto bastante


capitalista, que ao longo dos anos, com as reformulações das teorias e os novos contextos sociais
(lembrando que a teoria crítica data da década de 30) foi sendo redefinida, visando suas potencialidades
e não suas conseqüências. O melhor exemplo disso se dá através dos Estudos Culturais,

Os estudos culturais britânicos surgiram nos anos 1960 como um projeto de abordagem

4. Conforme Kellner, “(...) Walter Benjamin ressaltara a importância dos estudos de recepção já nos
anos 1930” (2001, p. 55), Henry Jenkins ainda complementa: “(...) a capacidade de produzir e circular imagens
em massa causaria um impacto democrático profundo” (2008, p. 289). Isso tudo faz com que Benjamin tenha,
de certa forma, previsto a importância da participação dos “consumidores” no processo comunicacional. Na
fundamentação teórica da parte prática deste trabalho veremos como essa participação é uma das molas
propulsoras na reformulação da cultura midiática contemporânea.

54
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

da cultura a partir de perspectivas críticas e multidisciplinaridade, que foi instituído pelo


Birmingham Centre for Contemporary Culture Studies e outros [KELLNER, 2001, p.
47].

Esses estudos analisam os objetos em seus contextos políticos e sociais, de modo a mostrar
“como a cultura oferecia ao mesmo tempo forças de dominação e recursos para a resistência e a luta”
(KELLNER, 2001, p. 55), dessa forma, a recepção das mensagens veiculadas através da cultura de
massa, não era tida como um processo de submissão, uma verticalização da informação conforme
argumentavam (limitadamente) os Frankfurtianos. “É preciso fazer a distinção entre a codificação
e a descodificação das produções da mídia, reconhecendo que um público ativo freqüentemente
produz seus próprios significados e usos para os produtos da indústria cultural” [KELLNER, 2001,
p. 45].

Da mesma forma que Frankfurt, os Estudos Culturais também apresentam limitações, que
Kellner afirma ser a marginalização da chamada cultura superior,

Deixaram de tratar do modernismo ou de outras formas de cultura superior, e, desse


modo, deixaram de ver o potencial de contestação e subversão, assim como a ideologia,
de obras que alguns de seus expoentes deixaram de lado por considerarem cultura elitista
[KELLNER, 2001, p. 50].

Assim, Kellner conclui que “parece melhor considerar a força e os efeitos conservadores e
oposicionistas de todas as formas de cultura” (2001, p.50). Os Estudos Culturais e as teorias que
derivam da Escola de Frankfurt se completam, formando assim uma base sólida para a estruturação
de teorias críticas da comunicação, na contemporaneidade.

As HQs, dentro desse contexto, são caracterizadas como produto da indústria cultural,
sofrendo as mesmas críticas de sustentação de ideais capitalistas, com o fortalecimento dos valores da
sociedade burguesa e a manipulação do consumidor. E da mesma forma, muitos autores criticaram
somente seus aspectos negativos. É necessária então, uma contextualização dos quadrinhos, em um
momento pós-moderno (pois é quando os quadrinhos se destacam como objeto de estudo e meio
de comunicação de massa), para que então se evidenciem suas potencialidades.

[...] somente um conhecimento científico da realidade social objetiva (e dizemos isto


entendendo que a ciência também abriga modelos ideológicos de conhecimento), seguido
de uma depuração na prática social, pode ser empregado como critério para verificar
a quantidade de ideologia ou verdade de um produto cultural (DORMFAN, JOFRÉ,
1978, p. 163).

55
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

3.2 As HQs e a crítica social


A já citada escola de Frankfurt, com base no marxismo, criticava a sociedade moderna, por
preencher os seus momentos de lazer apenas com o consumo dos produtos oriundos da Indústria
Cultural. Os quadrinhos, como já visto no percurso histórico, se relacionaram diretamente com
os contextos sociais, políticos e econômicos em que se situavam, antes e durante a 2ª Guerra.
Preencheram o lazer dos consumidores com o humor, fugiram das conseqüências da 1ª Guerra
Mundial, da crise econômica de 1929 e do militarismo japonês em 30, através das aventuras,
formaram opiniões e moldaram estereótipos maniqueístas na guerra. E assim, cumpriram seu papel
como fruto da indústria cultural, conforme as críticas frankfurtianas.

Um grande exemplo disso é a indústria dos quadrinhos que se solidificou após o sucesso dos
super-heróis. As histórias seguiam um modo de produção fordista5, passando por vários profissionais
especializados, que muitas vezes sequer tinham seus nomes citados, ficando os méritos da produção
aos criadores dos personagens e/ou as editoras. Esse modelo já existia na “linha de montagem” de
Walt Disney, que conforme veremos, anos mais tarde foi uma das “molas” propulsoras à crítica
política sobre os quadrinhos como cultura de massa. Mesmo trazendo certa redundância aos
conteúdos das histórias, Moacy Cirne afirma que

As estórias em quadrinhos procuram “ocultar” sua verdadeira ideologia através de fórmulas


temáticas muitas vezes simples ou simplistas, fazendo da redundância (a repetição em séria
imposta pela engrenagem operacional da cultura de massa) o lugar de sua representação
[1982, p. 11].

Porém, se avaliarmos pelos aspectos positivos, esses produtos renovaram a linguagem visual,
formando repertório em seus leitores. Este repertório é a base para uma formação de crítica, e na
contemporaneidade tem vital participação na formação da identidade dos indivíduos. O sucesso
das histórias em quadrinhos, como forma de entretenimento, podia sim, ter aspectos ideológicos,
idealizando como o homem moderno deveria ser. Porém, é uma mídia que nasce da ironia, na
sátira às sociedades em que se insere. Nessa contradição pode-se até se esboçar uma conclusão, na
qual a indústria cultural do início do século XX não soube usufruir (e talvez não quisesse) das reais
potencialidades dessa mídia, banalizando seu uso, massificando seus conteúdos.

Após a guerra, houve nos Estados Unidos um novo sucesso de vendas nas histórias de
quadrinhos, a EC Comics, presidida por William Gaines (sucessor de seu pai, Maxwell Gaines).
Conforme as figura 46 e 47, a editora era especializada em histórias de crimes e terror, que se
popularizaram nos pós-guerra, com narrativas sensacionalistas e narrativas mais direcionadas ao
público adulto. Porém, um psiquiatra chamado Frederick Wertham, em seu livro Seduction of the

5. Modo de produção idealizado por Henry Ford, no qual cada funcionário realiza uma função específica,
padronizando a produção, tornando-a mais eficiente.

56
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

46

À esquerda na figura 46, capa de uma


edição da EC Comics. Acima, na figura
47, trecho de uma história de ficção
científica publicada pela editora.
47

46 e 47: BRAGA, Flávio; PATATI, Carlos. Almanaque dos Quadrinhos: 100 anos de uma mídia popular. São Paulo: Ediouro, 2006.

57
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

Innocent (de 1956, mas que desde 1948 já fazia ataques à arte sequencial), a criticou de tal forma
que a indústria dos quadrinhos se viu obrigada a criar um código de ética rígido, para não falir.

As revistas policiais e de terror eram o que mais vendia, e o oportuno moralista dos
formadores de opinião da época as atacou. Terá sido porque não só Gaines não tinha
medo de mostrar sangue e sugerir sexo? Ou também porque seus monstros incluíam
a Ku Klux Klan e a Máfia? Seus quadrinhos policiais rotineiramente denunciavam a
corrupção da polícia. E na ficção científica foi Wally Wood quem primeiro desenhou essa
coisa inesperada, difícil de engolir: um astronauta negro. As publicações da EC foram
praticamente proibidas nos tribunais a partir de seus títulos, e muitos gibis, queimados
em praça pública. O puritanismo vigente tornou ofensivo dar um título que incluísse
as palavras “horror”, “terror”, “crime” e diversas no mesmo gênero (PATATI, BRAGA,
2006, p. 97).

O código de ética norte-americano (que repercutiu em todo o mundo), conciliado com o


momento pós-guerra, reforçou a necessidade de uma reformulação nos conteúdos das HQs. Assim,
a primeira geração que viria a reformular as HQs se caracterizaria pelo humor e pela filosofia,
usando as figuras infantis, como a própria criança e os animais.

Um exemplo da utilização da figura dos animais como personagens, foi Walt Kelly, com sua
obra Pogo, em 1949, “[...] foi o primeiro a abordar as grandes questões morais, sociais e políticas de
sua época [...] contribuindo assim para a reabilitação das histórias em quadrinhos” (COUPERIE,
1970, p. 109), figura 48. A Turma do Charlie Brown, de Schulz e Mafalda, de Quino, trazem a
figura da criança, questionando a si mesma e as comunidades aonde se inserem, fazendo com que
por detrás de uma estética teatral do imaginário infantil se construam críticas sociais, figuras 49 a
52. Vale destacar a sátira de BC, de Johnny Hart, com personagens pré-históricos filosofando sobre
o “futuro”, Wizard of ID, que ironiza os problemas de um rei egocêntrico, na maioria das vezes
humilhando-o (figuras 54 e 55), e Jules Feiffer, que usa de uma narrativa mais sombria, com uma
ironia mais complexa, sobre o cotidiano de homens e mulheres contemporâneos (figura 53). Assim,
além de uma renovação, estes autores recusam a tendência de que a cultura de massa é um alienante,
e reforçam seus compromissos com a sociedade:

Ao se valer dos mecanismos da cultura de massa, o quadrinheiro, a rigor, compromete-


se política e socialmente com o tempo histórico que marca a sua existência enquanto
ser concreto no interior das classes sociais, assim como se compromete ao recusar esses
mesmos mecanismos. De uma forma (dentro da cultura de massa) ou de outra (à sua
margem) o artista de quadrinhos só tem um compromisso: com a realidade. (...) mesmo
como sonho e fantasia, o quadrinho existe econômica, ideológica e politicamente
[CIRNE, 1982, p. 23].

Dentro da estética infantil surge, em 1971, aquela que seria a primeira obra de crítica

58
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

48

49

Acima, na figura 48, Pogo, de Walt


Kelly. À esquerda nas figura 49 e 50,
Mafalda, de Quino.
50

48: disponível em <http://www.theglitteringeye.com/images/Pogo2.jpg> acesso em: 20 de dez. 2009. 49 e 50: dsponível em <http://
www.mafalda.theblog.com.br/inicial.html> acesso em: 20 de dez. 2009.

59
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

51

52

À esquerda, na figura 53,


história de Jules Feiffer. Acima,
nas figuras 51 e 52, Snoopy e
sua turma, de Schulz.
53

51 e 52: SCHULZ, Charles. Snoopy e sua turma. Porto Alegre: L&PM, 2009 53: MOYA, Álvaro de Shazam! São Paulo: Perspectiva, 1977.

60
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

54

55
Acima, na figura 54, The Wizard of ID, e na
figura 55, BC, ambas de Johnny Hart.

54 e 55: COUPERIE, Pierre et al. Histórias em Quadrinhos e Comunicação de Massa. São Paulo, MASP, 1970.

61
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

política aos quadrinhos, Para Ler Pato Donald, de Ariel Dorfman e Armand Mattelart (figura 58).
Aquelas teorias marxistas, junto com a teoria crítica de Frankfurt, inseridas em um contexto de
Golpe Militar, com Salvador Allende no Chile (levantando a bandeira do socialismo), fizeram com
que uma crítica ao imperialismo norte-americano fosse construída. É claro que as HQs de Pato
Donald e sua turma, largamente difundidas nesta época, não passariam despercebidas. As narrativas
de Disney são sentenciadas por conter mensagens subliminares, fortalecendo o “colonialismo” sobre
os países do terceiro mundo.

Está historicamente provado que os países dependentes foram mantidos nesta condição
pela divisão internacional do trabalho, que os condena a limitar todo desenvolvimento
que pudesse dar-lhes independência econômica. Disney expulsa o setor secundário e seu
mundo, de acordo com os desejos utópicos da classe dominante de seu país. Mas ao fazê-
lo, cria um mundo que é uma paródia do mundo do subdesenvolvimento. (...) Disney
constrói sua fantasia imitando subconscientemente o modo por que o sistema capitalista
mundial construiu a realidade, e tal como a deseja continuar armando [DORFMAN,
MATELLART, 1980, p. 131].

Através da constatação de inexistência do parentesco direto, que retira qualquer autoridade


(e responsabilidade) patriarcal de Donald sobre os sobrinhos, bem como questão de relacionamentos
sexuais, cria-se uma analogia a inexistência de qualquer tipo de produção no mundo Disney:

A simetria entre a falta de produção biológica direta e a falta de produção econômica


não pode ser casual e deve ser entendida como uma estrutura paralela única que obedece
à eliminação deste mundo do proletariado, o verdadeiro gerador dos objetos ou, nas
palavras de Gramsci, o elemento viril da história, da luta de classes e do antagonismo
de interesses. É o mundo que sempre sonharam, acumular a riqueza sem enfrentar seu
resultado: o proletariado [DORFMAN, MATELLART, 1980, p. 77].

Para Dorfman e Mattelart, Disney também reduz o poder da mulher à “tradicional sedução”
Assim, a mulher “não pode chegar mais longe, porque então abandonaria seu papel doméstico e
passivo” (1980, p. 35). Aquelas que recusam este papel são estereotipadas, “por estar aliadas com
as potências obscuras e maléficas”, como a Madame Min e a Maga Patológica (DORFMAN,
MATTELART, 1980, p. 35).

Os autores também afirmam que Disney faz uso do imaginário infantil para incentivar
desde a tenra idade, a fuga das dificuldades dos adultos, aonde,

O seu mundo habitual é o do trabalho, aparentemente sem fantasia, e o mundo da revista


é o do ócio, repleto de imaginação. A criança divide-se de novo entre matéria e espírito,
expulsando o imaginário do mundo real que a rodeia. Quando se justifica este tipo de

62
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

56

57

Acima, nas figuras 56 e 57, um dos exemplos


de colonialismo reproduzido no livro Para
Ler Pato Donald, abaixo, a reprodução da
mesma cena em uma edição epecial de 1999,
na revisa do Pato Donald. Ao lado, na figura
58, reprodução da capa do livro de Dorfman e
Mattelart, na sua edição brasileira.
58
56, 57 e 58: disponíveis em <http://www.gardenal.org/marcadiabo/materias35.htm> acesso em: 20 de dez. 2009.

63
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

revistas com a “imaginação transbordante” do pequeno, argumentando que a criança foge


naturalmente ao imediato, o que se faz de verdade é injetar no leitor infantil a necessidade
de escapismo do homem contemporâneo, que necessita sonhar com mundos extra-
sociais e deformadamente inocentes na prostração de um mundo que ele vê sem saída
[DORFMAN, MATELLART, 1980, p. 96-7].

Esse estudo, por mais extremista que seja (há quem chame de Seduction of the Innocent
da esquerda), dá um novo rumo aos estudos sociais relacionados aos quadrinhos. A questão do
imperialismo norte-americano se faz presente nas histórias Disney, bem como na indústria de super-
heróis, mas devem-se levar em consideração as reais intenções dos autores por trás das obras.

Ainda surgem mais dois personagens ligados à estética infantil, porém com outro caráter, o da
renovação dos valores patrióticos. São eles Astérix, na França, de Albert Uderzo e René Goscinny,
lutando sempre contra a conquista da Gália pelos romanos (que muitos autores relacionam à
resistência ao imperialismo norte-americano) (figura 59); e no Japão, o fenômeno Osamu Tezuka
após moldar os padrões do mangá moderno (em trabalhos como Kimba, o Leão Branco e Astro Boy),
cria Phoenix, em 1954, o maior desafio de sua carreira (figura 60). A ave, caracterizada por renascer
das cinzas, traz consigo uma simbologia de renovação, representando o próprio Japão:

[...] o governo de ocupação militar norte-americana estava entregando o poder aos japoneses,
depois de uma completa reforma agrária, uma nova constituição e as perspectivas de um
reerguimento econômico [...] Tezuka Ossamu continuou até sua morte com Phoenix, que
dizia ser o trabalho de sua vida (LUYTEN, 2000, p. 128).

A importância dessas figuras ligadas às suas nações assume uma importância maior ainda
no que diz respeito à formação de identidades nacionais. Conforme Stuart Hall, “(...) as culturas
nacionais em que nascemos se constituem em uma das principais fontes de identidade cultural”
(2000, p. 47). Posteriormente, na análise realizada neste estudo, esta questão será retomada.

A contracultura também marca presença na reformulação das HQs. Após o fechamento


da EC Comics, Gaines aposta em uma nova revista, a MAD. Uma revista que através do humor,
criticava a própria cultura de massa, através dos seus maiores ícones,

Sua verve, seu senso de sátira, sua acurada reconstituição de tipos, os detalhes, a mítica, o
fetiche das roupas, tudo com esmerado desenho caricatural – em imediato reconhecimento
de quem se tratava, - começaram a criticar principalmente os filmes famosos, as histórias
em quadrinhos, os programas de TV e a publicidade. [...] Os chavões da cultura de massa
americana sempre estavam presentes, sob qualquer pretexto (MOYA, 1972, p. 76).

O movimento underground tem como principal personagem Robert Crumb. O princípio de

64
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

59

Acima, na figura 59, trecho de


Astérix nos Jogos Olímpicos
de Uderzo e Goscinny. Ao
lado, na figura 60, Phoenix, de
Osamu Tezuka.

60
59: GOSCINNY, René E UDERZO, Alberto. Astérix e os Jogos Olímpicos. Lisboa: Meribérica, [s.d.] 60: LUYTEN, Sonia Bibe. Mangá: o
poder dos quadrinhos japoneses. 2. ed. São Paulo: Hedra, 2000.
65
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

61

Acima, na figura 61, História publicada na


Zap Comix Ao lado, na figura 62, Fritz the
Cat, de R Crumb.
62

61: MOYA, Álvaro de Shazam! São Paulo: Perspectiva, 1977. 62: disponível em <http://bedlammagazine.com/archives/200906> acesso
em: 20 de dez. 2009.

66
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

que as HQs são somente destinadas às crianças começa a perder forças significativamente. Criador
de Fritz, the Cat (figura 62), Crumb e todos os autores da Zap Comix (figura 61) usam de temas
“pesados” para causar impacto na indústria cultural. Aqui, as potencialidades da mídia são levadas
ao máximo, com diferentes estilos de histórias, sempre pelo lado obscuro, “cutucando” a moral e
os bons costumes, rompendo com o código de ética. A linguagem se renova, e serve como bandeira
para uma reformulação do conceito de liberdade de expressão. Lembrando que em 1968, ano da
primeira tiragem da Zap Comics, é o grande ano dos movimentos estudantis, das críticas à Guerra
do Vietnã, das manifestações culturais da juventude. A renovação se dá em todos os setores, e aquele
indivíduo moldado pelos valores da cultura de massa, que pela visão de Adorno não tinha reação, o
homem-massa de Ortega y Gasset, atinge o ápice da sua reação.

As influências sociais das HQs começam, também, a ser estudadas pelo viés do mito dos
super-heróis. Do ícone, necessário em um período de incertezas, em que tem origem, até o símbolo
da massificação das HQs, através das grandes editoras norte-americanas. A temática dos super-heróis
traz como principal característica a identificação direta do consumidor com o herói e a projeção
do mito. Porém, com o passar dos anos, essa figura perfeita perde forças, e uma humanização do
herói se faz necessária. Eco (1964), afirma que o personagem dos mitos é previsível, ao passo que o
personagem dos romances é mais humanizado, passível de erros, imprevisível. Por isso, os super-
heróis começam a mostrar valores mais humanos.

Com a criação dos X-Men por Stan Lee, em 1963, a questão do preconceito é abordada,
os mutantes, seres geneticamente evoluídos, são vistos como ameaça. A partir disso, vários heróis
começam a apresentar aspectos mais frágeis, mais imprevisíveis. O grande sucesso do Homem
Aranha vem da identificação do jovem leitor de HQs com o herói, esse um estereótipo do próprio
leitor. Assim as histórias vão se desenvolvendo até que dois autores surgem, nos anos 80.

Frank Miller e Alan Moore fizeram render o máximo do potencial expressivo das HQs
(PATATI, BRAGA, 2006). Com narrativas e formatos ligados diretamente aos romances gráficos
de Eisner, ambos reformulam o conceito do herói. Miller redescobre a estética noir de Will Eisner,
e traz muito da dinâmica dos mangás para a indústria norte-americana. Reformula dois importantes
heróis, o Demolidor (1979) (figura 64), da Marvel, e Batman, esse último totalmente reformulado,
em Cavaleiro das Trevas (1987) (figura 63). Moore, em conjunto com Dave Gibbons, cria Wachman
(1986). O mundo dos super-heróis recebe sua maior crítica, através de um herói maquiavélico
(Ozymandias) e mostrando todos os aspectos psicológicos dos personagens (figura 66). Moore ainda
criou V for Vendetta (1982), aonde o protagonista é um terrorista, enfrentando um regime fascista
em uma Inglaterra futurista (figura 65).

A maior temática das HQs começa a criticar a sociedade em que se insere. Na


contemporaneidade, o que se espera não são mais histórias que impedem o homem de pensar sobre
si mesmo, um mecanismo de defesa da burguesia (conforme DORFMAN e JOFRÉ, 1978), ou
uma mídia que torna o consumidor incapaz de interpretar o que lê (ECO, 1964), ao contrário, o

67
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

63

Acima, na figura 63, reação


do Coringa, em Cavaleiro
das Trevas, ao descobrir o
retorno de Batman através do
noticiário. Ao lado, na figura
64, o Demolidor, o homem
sem medo, ambos retratados
por Frank Miller
64

63: disponível em <http://www.adherents.com/lit/comics/Joker.html> acesso em: 20 de dez. 2009. 64: disponível <http://lambiek.net/
artists/m/miller.htm> acesso em: 20 de dez. 2009.

68
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

65

66 Acima, na figura 65, o funeral de V, de V de Vendetta, desenhado por


David Lloyd. Abaixo (figura 66), trecho de Watchman, desenhado por
Dave Gibbons, ambas histórias escritas por Alan Moore.

65: MOORE, Alan e LLOYD, David. V de Vingança. São Paulo: Panini, 2006. 66: GIBBONS, Dave e MOORE, Alan. Watchman. São
Paulo: Panini, 2009.

69
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

que se espera é uma visão crítica da mensagem, em função do repertório do leitor.

Vale ainda destacar, como forma de crítica social, as histórias com caráter documental/
biográfico. Em 1992, Maus: A Survivor’s Tale, de Art Spiegelman, autor experimentalista, vindo do
movimento underground, recebe o maior prêmio do jornalismo, o Pulitzer. Essa obra, publicada
em 1986 e analisada neste trabalho, é um marco do poder literário das HQs. O interessante é que
nesta mesma década são lançados os já citados relatos Adolf (figura 68, este mais ficcional, mas
ambientado na realidade da 2ª Guerra) e Gen Pés Descalços, no Japão.

Patati e Braga afirmam que “foi de um novo encontro de sensibilidade cosmopolitas que
se desenhou a face dos quadrinhos que, como novidade, abrem o século XXI: a autobiografia e a
reportagem” (2006, p. 176). Uma obra que pode ser um exemplo bem sucedido disso é Persépolis,
de Marjani Satrapi (figura 67), uma autobiografia ambientada na realidade do Irã. Sua repercussão
valeu uma adaptação, que concorreu ao Oscar de Melhor filme de animação em 2007, tornando-
se um exemplo de como globalização pode questionar até mesmo uma identidade nacional tão
“fechada” como a iraniana. Conforme teoriza Stuart Hall

(...) parece então que a globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades
centradas e “fechadas” de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as
identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação,
e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos
fixas, unificadas ou trans-históricas [2000, p. 87].

Assim, as teorias relacionadas à comunicação de massa caminham no sentido de utilização


das potencialidades dessa mídia. As influências do repertório cultural que as histórias em quadrinhos
oferecem têm significativas participações na construção da crítica social e na identidade de seus
leitores.

Os meios de comunicação de massa são ferramentas com reais possibilidades de mudanças


sociais, através da conexão entre todos os indivíduos, num aspecto global. Morin (1990) diz
que “[...] a indústria cultural não produz apenas clichês ou monstros. A indústria do Estado e o
capitalismo privado não esterilizam toda a criação” (p. 49). Somente um regime totalitário pode
inibir, e em curtos períodos, a expressão cultural da sociedade. Então, segundo as teorias aqui
discutidas, podemos inferir que o fanatismo, as idéias extremistas, os conceitos unilaterais levam
ao fundamentalismo, ao totalitarismo, e por isso a importância em se avaliar todos os aspectos de
uma mídia. Assim, revelando todos os aspectos, se percebem as potencialidades, e se inibe um uso
inadequado, “um pensamento capaz de não se fechar no local e no particular, mas de conceber os
conjuntos, estaria apto a favorecer o senso da responsabilidade e da cidadania” (MORIN, 2008,
p.97). E uma ferramenta como as HQs, com as potencialidades de uma mídia gráfica elevadas ao
extremo, são sim, um instrumento de construção de crítica social.

70
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

67

Acima, na figura 67,trecho de


Persépolis, de Marjani Satrapi.
Ao lado na figura 68, os
“Adolfs” , de Ossamu Tezuka.
68

67: SATRAPI, Marjani. Persépolis. São Paulo, Cia. Das Letras, 2008. 68: disponivel em <http://dailyhitler.blogspot.com/2009/03/adolf-by-
osamu-tezuka.html> acesso em: 20 de dez. 2009.

71
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

4. Análise

4.1 Graphic Novels e Mangás nos topos das prateleiras


Nos últimos anos, os mangás e as graphic novels vêm ganhando espaço e público em um
mercado por muitos anos monopolizado pelas HQs de super-heróis e histórias infantis. Porém,
no princípio, tanto as histórias em quadrinhos japonesas quanto os romances gráficos, não foram
recebidos amplamente pelo mercado de quadrinhos ocidental.

O mangá, fortemente ligado à cultura japonesa, traz, desde se sua estrutura (sentido de
leitura, ângulos e efeitos de movimento, estética dos personagens) até suas narrativas (lendas
nacionais, costumes e hábitos japoneses), uma linguagem diferente da comumente difundida no
ocidente. Alia-se a isso o fator de que o mercado interno de quadrinhos japonês não produz o
mangá visando uma possível exportação:

Ao contrário dos caros aparelhos de som e computadores japoneses, os mangás nunca foram
concebidos para ser vendidos no exterior. (...) porque um editor japonês iria se preocupar
com isso quando o mercado externo de quadrinhos é tão pequeno em comparação com o
enorme mercado interno japonês, que parece estar em contínua expansão? (GRAVETT,
2006, p. 156).

Por uma maior facilidade de adaptação à cultura ocidental, o desenho animado japonês
(anime) ganhou força bem antes dos quadrinhos japoneses. Assim, a geração que acompanhava esses
desenhos e seriados (tokusatusu, seriados de heróis com ênfase nos efeitos especiais, como Kamen
Rider, Ultramen e Jiraiya) começou a se interessar pelo mangá, e conforme essa geração ganhava
maturidade, o “estilo mangá” tornou-se popular.

Scott McCloud (2008) afirma que os quadrinhos alternativos e as graphic novels tiveram
maior receptividade ao mangá. Assim como o quadrinho japonês, muitos dos romances gráficos
também tiveram dificuldades no início de suas jornadas. Conforme McCloud, “muitos sucessos
do movimento graphic novel se originaram das cenas alternativas e da pequena imprensa” (2008,
p. 246) [grifo do autor]. Cabe destacar ainda o forte vínculo deste estilo com o movimento
underground, sendo muitos dos principais nomes das graphic novels autobiográficas, antigos autores,

72
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

como R. Crumb e Art Spiegelman6.

Ambos os estilos se destacam, não somente por ser um diferencial na estática indústria cultural
de HQs infantis ou de super-heróis, mas por possibilitarem um nível de identificação maior
com os leitores. As graphic novels de cunho autobiográfico, “conseguem muito maior intimidade
e compromisso com o leitor que muitos de seus antecessores mais espetaculosos, em função da
maturidade de seus textos e da concisão de seus traços” (PATATI, BRAGA, 2006, p. 176).

E em um capítulo chamado Desvendando os Mangás (em Desenhando Quadrinhos, 2008)


McCloud afirma que o grande diferencial dos mangás em relação às HQs tradicionais é a questão
da identificação e do sentimento de participação possibilitados aos leitores.

Isso tudo faz com que estes estilos, em seus conteúdos, encontrem-se com a meta idealizada
por Moacy Cirne (1982), que diz que “o discurso quadrinizado deve ser entendido (...) como uma
prática social que se relaciona com o processo histórico e o projeto político de uma dada sociedade”
(p. 18). Mesmo não tratando diretamente de posicionamento político ou críticas a determinados
sistemas, estas HQs sempre contextualizam suas narrativas na realidade. Mesmo as graphic novels
e mangás mais fantasiosos apresentam questões polêmicas, e buscam no repertório do leitor, um
certo nível de “participação”. McCloud ainda destaca a importante mudança de “público” que estes
estilos proporcionaram às HQs. Referindo-se à MAUS, de Art Spiegelman, ele afirma que,

(...) em 1992, o leitor americano já viu que um estilo simples não significa uma história
simples. O ideal platônico do cartum parece omitir a ambigüidade e caracterização
complexa que são marcas registradas da literatura moderna, tornando-o adequado só
pra crianças. Contudo, elementos simples podem se combinar de maneiras complexas
(MCCLOUD, 2005, p. 45) [grifos do autor].

Mangás e graphic novels estão reformulando uma estrutura que se manteve passiva durante a
maior parte do século XX, e esta análise tem como objetivo mostrar que obras como MAUS e Gen –
Pés Descalços podem servir de referência para um fortalecimento das HQs como fonte de identidade
e construção de crítica social.

4.2 Maus e Gen


Esta análise abrange duas obras de estilos e culturas diferentes, Hadashi no Gen (Gen –
Pés Descalços) de Keiji Nakazawa (figura 70) e MAUS: A Survivor’s Tale (MAUS: a história de
um sobrevivente) de Art Spiegelman (figura 69). As narrativas de ambos retratam o drama de

6 Mesmo não sendo ligado ao movimento underground, Will Eisner (que cunhou o termo graphic novel,
confome visto no capítulo 2 deste trabalho), também teve participação fundamental neste processo, a começar
com sua obra Um Contrato com Deus, de 1978.

73
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

sobreviventes da Segunda Guerra Mundial. A fim de mostrar uma realidade ampla, este estudo
analisa através de analogias e peculiaridades estes dois pontos de vistas: Gen, sobrevivente dos
bombardeios de aliados a Hiroshima e Maus, a história de um judeu polonês que sobrevive ao
holocausto do eixo.

Gen – Pés Descalços foi publicado pela primeira vez em 1972, na revista Weekley Shonen
Jump, uma das principais revistas de quadrinhos japonesas. No Brasil, a Conrad Editora lançou 4
volumes, sendo o primeiro volume – Uma história de Hiroshima – a obra analisada neste estudo.
Apresenta 284 páginas e, conforme o padrão dos mangás, a história é em preto e branco. Pelo
fato de ter sido um dos primeiros mangás a ser traduzido, apresenta ordem de leitura ocidental
(“espelhando” as imagens). Na conclusão desta análise veremos a repercussão da internacionalização
desta obra.

Nakazawa já era um autor de sucesso no Japão, com mangás de ficção científica e esportes
quando, após a cremação de sua mãe, (que junto com o autor foram os únicos sobreviventes da
família à bomba atômica de Hiroshima, em 1945) decidiu mostrar ao mundo o drama que passou.
Conforme Paul Gravett, Nakazawa

(...) foi forçado a confrontar o tema da bomba após a morte de sua mãe. “Geralmente os
ossos resistem à cremação, mas o césio radioativo havia devorado os ossos da minha mãe
e eles se transformaram e cinza. Eu senti como se minha mãe estivesse me dizendo para
contar a verdade sobre a bomba às pessoas de todo o mundo”. (...) Nakazawa transcreveu
não só suas experiências com o horrendo resultado imediato da bomba mas também a
oposição de sua família ao ultranacionalismo durante a guerra e suas privações durante o
período de ocupação americana. Ele odiava os EUA por terem jogado bomba, mas estava
ainda mais furioso com a falta de prestação de contas por parte dos líderes do Japão, do
Imperador Hiroito, que havia levado seus pais à guerra, à ruína. (GRAVETT, 2006, p.
61).

O autor, com o apoio de seus editores, cria a história de uma família de Hiroshima que passa
por muitas situações que o próprio Nakazawa viveu, projetando-se no personagem Gen:

A palavra japonesa gen (pronuncia-se “guen”) significa “raiz” ou “fonte”. Como Nakazawa
explicou: “Batizei meu personagem principal de Gen na esperança de que ele se tornasse
uma raiz ou fonte de força para uma nova geração de pessoas – uma que possa caminhar
descalça sobre o solo calcinado de Hiroshima, sentir a terra sob os pés e ter a força de dizer
não às armas nucleares” (GRAVETT, 2006, p. 69).

Maus, diferente de Gen, não usa do artifício ficcional para desenvolver a narrativa. Nesta
obra, Spiegelman, um conhecido autor underground, reconhecido pelo caráter experimental de
suas obras, usa a metalinguagem e a intertextualidade para contar a história de seu pai, Vladek

74
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

69

Acima, na figura 69,Capa da edição


brasileira de Maus. Ao lado, figura
70, capa da edição brasileira de
Gen - Volume 1.
70

69: SPIEGELMAN, Art. Maus. São Paulo, Cia das Letras, 2005. 70: NAKAZAWA, Keiji. Gen – Pés Descalços. São Paulo, Conrad: 1999.

75
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

Spiegelman, prisioneiro dos campos de concentração nazistas. A edição analisada foi a publicada
pela Cia. Das Letras, em 2005, compilando os dois volumes originalmente publicados entre 1986
e 1991, tem 296 páginas, também publicada em preto e branco. Conforme Patati e Braga,

É um romance em quadrinhos sobre o extermínio de judeus na 2ª Guerra Mundial e


também sobre as difíceis relações entre pai e filho quando o primeiro sobreviveu a um
genocídio de cujas proporções o segundo só fica completamente informado junto com o
leitor (2006, p. 223).

Spiegelman teve uma forte influência de Nakazawa, sendo o autor do prefácio do primeiro
volume, aonde reafirma o potencial das HQs como meio para narrar uma autobiografia,

Os quadrinhos são um meio de expressão de conteúdo muito concentrado, transmitindo


informações em poucas palavras e imagens-código simplificadas. Parece-me que esse
é o modo como o cérebro humano formula pensamentos e lembranças. Pensamos
em desenhos. Os quadrinhos têm demonstrado sua habilidade em contar histórias de
aventuras e ação ou humor, mas a pequena escala das imagens e a franqueza desse meio,
que em algo em comum com a escrita, permitem aos quadrinhos um tipo de intimidade
que também os torna surpreendentemente adequados a autobiografias (SPIEGELMAN
apud NAKAZAWA, 1999, prefácio).

Gen e Maus usam o cenário da Segunda Guerra como pano de fundo para evidenciar
situações de total perda de humanidade das sociedades envolvidas (preconceitos étnicos, fanatismos,
regimes totalitários, individualismo), ao mesmo tempo enaltecendo a capacidade de superação do
ser humano, a força da estrutura familiar e dos valores nela estabelecidos, passando assim, uma
mensagem humanística.

De acordo com a Hermenêutica de Profundidade (HP) de Thompson, citada na metodologia


deste estudo, após uma breve contextualização sócio-histórica específica das obras citadas, uma
análise formal, seguida de uma análise narrativa serão realizadas. Como análise formal, as estratégias
narrativas utilizadas pelos autores (metalinguagem, intertextualidade, ficção, drama, realismo) bem
como a representação dos personagens, que será examinada conforme as teorias de Scott McCloud.
Após, na análise narrativa, alguns momentos de destaque de ambas as obras serão observados,
buscando-se singularidades e analogias entre as obras.

4.3 Análise formal


Conforme McCloud (2005), Art Spiegelman é definido como “quadrinista explorador”.

76
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

Em grande pare de suas obras, o quadrinista explora diferentes “formas” de se estruturar uma
narrativa.

Escolhendo a forma, ele estaria se tornando um explorador. Sua meta: descobrir tudo
sobre a forma artística. E sua arte não teria falta de idéias ou de propósito. Sua arte
simplesmente se tornaria seu propósito e as idéias surgiriam para lhe dar substância. Os
criadores que seguem esse caminho são pioneiros e revolucionários – desejam sacudir
as coisas, mudar a maneira das pessoas pensarem, questionar as leis fundamentais que
governam sua arte (MCCLOUD, 2005, p. 179).

Por mais que o conteúdo de Maus seja tão substancial quando a forma adotada por
Spiegelman para contar a história, percebe-se a questão da experimentação do autor, oriundo da
contracultura. A metalinguagem é um recurso amplamente usado nas obras literárias, e até mesmo
nas HQs (conforma analisa Moacy Cirne, 1971). Nos quadrinhos, ocorre quando os personagens
interagem com os recursos visuais (requadros, balões), ou falam sobre si mesmos, desenhando-se,
interagem com o quadrinista ou o leitor. Spiegelman usa deste artifício quando retrata a si mesmo
elaborando (ao entrevistar o pai) e desenhando Maus (figuras 71, 72 e 79). Isso reforça o realismo
da obra, proporcionando uma maior identificação por parte do leitor. Já a intertextualidade ocorre
quando uma obra cita outra (figura 73). O melhor exemplo em Maus é quando o pai de Spiegelman
descobre uma antiga HQ do filho, Prisioneiro do Planeta Inferno, no qual ele retrata de forma
expressionista o suicídio da mãe.

Na estética dos personagens percebemos uma forma sutil de crítica, ao representá-los através
da figura de animais “humanizados”. Maus, em alemão, significa ratos, um animal frágil e submisso
que (conforme a política anti-semita nazista) eram vistos como pragas. O predador natural do rato é
o gato, que ilustra os oficiais alemães (figuras 76 e 74). Ainda são representados os americanos como
cães, (figura 75, imagem de oposição direta ao gato, conforme o senso comum, o que remete à idéia
de representação estereotipada usada nas HQs produzidas durante a Segunda Guerra, elevando seu
grau de maniqueísmo), os poloneses como porcos (figura 78), os franceses como sapos (figura 77),
entre outros.

Não obstante, Spiegelman usa uma simplicidade muito grande no número de expressões
faciais destes personagens. Conforme visto no Capítulo 2 deste estudo (e conforme teoriza McCloud
em 2005 e 2008), a simplificação da forma possibilita uma maior carga de identificação do leitor com
a obra. McCloud percebe que “alguns personagens de quadrinhos possuem senão um apanhado de
expressões básicas” (2008, p. 100), e afirma que o leitor “preenche” as lacunas emocionalmente “(...)
os leitores podem até ‘ver’ expressões que não estão lá, com base somente na história e no texto ao
redor” (2008, p. 100) [grifos do autor]. E neste caso, esta simplificação também serve para dar um
tom de equilíbrio à obra, já que a história e até mesmo o próprio traço do autor, são “carregados”.

Ao mesmo tempo em que o leitor se identifica com a história através da simplificação dos

77
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

71

72

Acima, na figura 71, Art Spiegelman


falando de seu próprio trabalho, bem
como na conversa com seu pai na
figura 72. Ao lado (figura 73), exemplo
de intertextualidade, ao ler Prisioneiro
do Planeta Inferno.
73

71, 72 e 73: SPIEGELMAN, Art. Maus. São Paulo, Cia das Letras, 2005.

78
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

74

75 76

77

Acima, figura 74: prisioneiro judeu que


dizia ser alemão; figura 75, soldados
americanos logo após a liberdade dos
prisioneiros de Auschwiz; figura 76, um
oficial nazista; figura 77, um prisioneiro
de guerra francês e figura 78 os
poloneses a favor de Hitler.

78

74, 75, 76, 77 e 78: SPIEGELMAN, Art. Maus. São Paulo, Cia das Letras, 2005.

79
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

79

80
Acima, figura 79, Spiegelman esboçando a própria
esposa; FIgura 80, referência irônica a Wal Disney

79 e 80: SPIEGELMAN, Art. Maus. São Paulo, Cia das Letras, 2005.

80
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

personagens, a iconografia desenvolvida pro Spiegelman fortalece a identidade dos personagens.


Seus “ratos” se tornam tão simbolicamente estruturados quanto a já enraizada suástica nazista. O
leitor sequer lembra que outro rato que conseguiu o status de ícone visual foi o divertido e correto
Mickey Mouse de Walt Disney (figura 80).

Nakazawa usa da ficção para simular no personagem Gen, a sua própria história, para
potencializar o aspecto dramático da obra. Talvez ele tenha utilizado este recurso pelo fato de ter
somente seis anos de idade quando passou pelo genocídio da bomba atômica, o que certa forma
anula qualquer relato totalmente verídico.

Assim como McCloud (2008) denomina Spiegelman como um quadrinista explorador,


define Nakazawa como um “quadrinista técnico”7.

(...) sua arte vira uma ferramenta. E a força dessa arte vai depender da força das idéias
dentro dela. Agora “narrar a história” (ou, no caso, “passar a mensagem”) assume a
prioridade sobre a invenção. Todavia, narrar uma história da forma mais eficaz possível
requer uma cerda dose de invenção. Este é o caminho dos grandes narradores, criadores
que têm algo a dizer através dos quadrinhos e dedicam suas energias pra controlar esse
meio, aprimorando a habilidade de transmitir mensagens de modo eficaz (2005, p. 179-
80).

O próprio Spiegelman em seu prefácio para a obra Gen Pés Descalços diz que “Sua técnica é
um tanto sem-graça, até mesmo modesta (...), mas consegue o efeito desejado (...) e desenvolve um
truque mágico essencial de toda boa arte narrativa: os personagens ganham vida e respiram vida”
(1999). Porém, Nakazawa sustenta a força da linguagem visual de sua obra nas próprias qualidades
do quadrinho japonês. McCloud (2008, p. 216) elabora um diagrama com oito técnicas narrativas
que se destacam no mangá:

• personagens icônicos, a simplificação da imagem, fazendo com que a figura careca (ou de
boné) de Gen seja facilmente reconhecida e leve a uma identificação do leitor com o personagem
(figura 83);

• senso de localidade, As pontes e os prédios do centro de Hiroshima (a cúpula Genbaku) são

7. Essas “categorias” são a base da metodologia desenvolva por McCloud em Desvendando os


Quadrinhos, 2005, mas não são necessariamente definições. O próprio autor diz que “felizmente, essa opção
não precisa ser permanente” e exemplifica como o próprio autor de Maus: “Quanto mais um artista se dedica
a um desses pontos focais, mais dramática pode ser a mudança no trabalho. A obra experimental de Art
Spiegelman, nos anos 70 e 80, deixou todos boquiabertos com o estilo ‘relatório’ de sua obra biográfica ‘Maus’”
(MCCLOUD, 2005, p.181).

81
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

81

82

Acima, figura 81, O censo de localidade, o centro


de Hiroshima e a Cúpula Genbaku. Na figura 82,
a maturidade do tema atraáves da representação
das pessoas derretendo após a bomba, com como
os efeitos emocionais expressivos na composição do
fundo. Ao lado (figura 83) os personagens icônicos da
família de Gen.
83

81, 82 e 83: NAKAZAWA, Keiji. Gen – Pés Descalços. São Paulo, Conrad: 1999.

82
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

84

Acima, figura 84, As imagens sem palavras, a


constante presença do sol; também a presença das
cantigas populares, bem como a culinária japonesa.
Ao lado na figura 85, as linhas de dinamismo.
85

84 e 85: NAKAZAWA, Keiji. Gen – Pés Descalços. São Paulo, Conrad: 1999.

83
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

86

Acima, figura 86, a variedade de design de


personagens, desde os cisudos militares, até as
frágeis mulheres e as cartunescas crianças.

86: NAKAZAWA, Keiji. Gen – Pés Descalços. São Paulo, Conrad: 1999.

84
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

detalhadamente reproduzidos, ambientando o leitor (figura 81);

• quadrinhos sem palavra, o que McCloud (2005) chama de transição aspecto para aspecto,
quadrinhos que mostram pequenas partes de toda uma cena, remetendo à atenção oriental aos
detalhes, percebe-se isso claramente quando Nakazawa mostra o Sol8 nascente Japonês (figura 84);

• movimento subjetivo, as famosas linhas de movimento dos mangás, presentes desde as


seqüências mais corriqueiras da história, quando os irmãos brigam, fogem das surras do pai, até os
ataques aéreos (figura 85);

• a maturidade genérica, o desafio de Nakazawa ao expor de forma realista as seqüelas da


bomba atômica, como corpos derretendo ou pegando fogo, em um mangá publicado em uma
revista para público jovem (figura 82);

• design de personagens, a variação dos arquétipos presentes na narrativa, mulheres frágeis,


homens realistas e crianças mais simplificadas, icônicas (figura 86);

• pequenos detalhes do mundo real, as próprias roupas, casas, tradicionais da cultura japonesa,
bem como a postura dentro de casa, os hábitos na hora das refeições, e até mesmo as cantigas
populares que Gen e seu irmão cantam o tempo todo (figura 84);

• efeitos emocionais expressivos, a mudança da ambientação após a bomba, “com fundos


expressionistas”, conforme McCloud (2008, p. 216).

Assim, Nakazawa e Spiegelman, compartilhando de fatores estéticos como a simplificação


das formas e a detalhada ambientação de seus personagens icônicos, criam o ambiente ideal para o
desenvolvimento de narrativas verídicas, tornando estas obras mais do que relatos histórias, e sim,
singulares histórias de vida.

4.4 Análise narrativa


Para um leitor desavisado, Maus e Gen podem não ter nenhuma relação, a não ser a época
em que se desenvolvem. Maus destaca, o cotidiano de um prisioneiro em um campo de concentração
em Auschwitz, bem como todo o trajeto de sua fuga dos nazistas antes de sua captura. Gen destaca a
catástrofe da bomba atômica, e suas conseqüências para o povo de Hiroshima. Porém, é nos maiores

8. Spiegelman fala em seu prefácio para Gen que:

O simbolismo evidente é característico dos quadrinhos japoneses; para Nakazawa


isso toma a forma de um Sol reaparecendo sem piedade, brilhando implacavelmente
ao longo das páginas. É o que marca a passagem do tempo, o que dá a vida, a
bandeira do Japão, a lembrança da bomba com o calor de mil sóis e o instrumento
que dá ritmo à história de Gen (apud NAKAZAWA, 1999).

85
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

genocídios da história da humanidade que se descobre a principal conexão de ambas as narrativas,


a capacidade de superação do ser humano.

Os campos de concentração de Auschwitz, na Polônia, foram o destino da maioria dos judeus


presos durante o regime nazista. Por questões puramente anti-semitas, os judeus eram condenados
às câmaras de gás (figura 87, uma forma de assassinato em massa), isto quando não morriam de
inanição ou doenças dentro destas prisões. Theodor Adorno, ligado à Escola de Frankfurt (e já
citado neste estudo), era judeu, e após a Guerra publicou o texto “Educação após Auschwitz”9. Ele
relata que, em Auschwitz, “milhões de pessoas inocentes – e só o simples fato de citar números já é
humanamente indigno, (...) – foram assassinadas de uma maneira planejada” (ADORNO, 1995, p.
120).

Na segunda parte de Maus, Spiegelman retrata o dia-a-dia de seu pai, Vladek, no campo de
concentração, bem como seus eventuais encontros com a mãe de Spiegelman, Anja (também em
Auschwitz, na ala feminina). Vladek sempre foi cuidadoso com sua higiene, trabalhou em várias
profissões (funileiro, sapateiro, peão), e guardava tudo o que achasse ser útil, além de racionar a
comida que ganhava (figura 90). Estratégias deste tipo fizeram com que ele sobrevivesse no campo
de concentração, já que somente os mais fracos eram enviados às câmaras de gás. Além disso,
na metalinguagem de Spiegelman, ao aparecer entrevistando seu pai anos depois, percebe-se nas
atitudes do velho Vladek os resquícios de Auschwitz (figura 89).

Adorno também condena a bomba atômica: “(...) a invenção da bomba atômica, capaz de
matar centenas de milhares literalmente de um só golpe, insere-se no mesmo nexo histórico que o
genocídio” de Auschwitz (1995, p. 120). No dia 6 de agosto de 1945, às 8h15min, o Boeing B29,
batizado Enola Gay, em homenagem à mãe do piloto, lança sobre Hiroshima a fatídica bomba
atômica. Centenas de milhares de japoneses morreram na hora, mas outras centenas de milhares
sofreram com as seqüelas do ataque durante anos (figura 88).

Após um alarme falso de bombardeio, Gen e sua família seguem com suas rotinas, sendo
que o protagonista se dirige à escola na hora da queda da bomba. “43 segundos mais tarde, 550
metros acima de Hiroshima, a bomba atômica explodiu com uma luz branca e quente, foi como se
um milhão de lâmpadas tivessem explodido de uma só vez...” (NAKAZAWA, 1996, p. 250) (figura
91). Protegido por um muro, Gen não é atingido pelo calor e sua pele não derrete, porém, a casa
de sua família desaba e pega fogo, sobrevivendo somente sua mãe. No caminho, Gen encontra
pessoas com a pele derretendo, um cavalo em chamas, e grita “as pessoas parecem monstros! O que
aconteceu?” (p. 254) (figura 92). É na ingenuidade do protagonista que o drama do povo japonês
atinge o ápice de sua dramaticidade.

Para Theodor Adorno, “o genocídio tem suas raízes naquela ressurreição do nacionalismo

9. ADORNO, Theodor. EDUCAÇÂO E EMANCIPAÇÂO. Traduzido por Wolfgang Leo Maar. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1995.

86
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

87 Acima, na figura 87, as Câmaras de Gás de Auschwitz,


descritas por Vladek Spiegelman.

87: SPIEGELMAN, Art. Maus. São Paulo, Cia das Letras, 2005.

87
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

88
Acima, na figura 88, o boeing B29, Enola Gay,
carregado com a bomba atômica.

88: NAKAZAWA, Keiji. Gen – Pés Descalços. São Paulo, Conrad: 1999.

88
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

89

90
Acima, na figura 89, as sequelas de Auschwitz, no velho Vladek. Na figura
90 os detalhes de sua fase como sapateiro na prisão.

89 e 90 SPIEGELMAN, Art. Maus. São Paulo, Cia das Letras, 2005.

89
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

91

Acima, na figura 91, o momento do lançamento da bomba. Ao


lado (figura 92) as consequências instantâneas da mesma.
92

91 e 92: NAKAZAWA, Keiji. Gen – Pés Descalços. São Paulo, Conrad: 1999.

90
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

agressor que vicejou em muitos países a partir do fim do século XIX” (1995, p. 120). Isso se
relaciona diretamente ao fanatismo instaurado pelos regimes totalitários do eixo nazista. Momentos
de exaltação aos seus governantes, preconceito com diferentes etnias/opiniões, divisão da estrutura
familiar, perseguições se tornam recorrentes nos cotidianos destes sobreviventes, seja em Maus ou em
Gen. Espera-se a qualquer momento que a figura do maior vilão da Segunda Guerra, Adolf Hitler,
ou até mesmo do Imperador Hiroito, responsável pela associação do Japão ao eixo nazista. Porém,
o grande vilão presente em ambas as narrativas é a própria sociedade submissa a estes regimes.

Vladek Spiegelman, antes de ser capturado, se “disfarça” de polonês diversas vezes, e destaca-
se a eficiência do recurso iconográfico das máscaras de porco para mostrar quando o judeu está
“disfarçado” (figura 93). Assim, quando um grupo de crianças grita “judeu, judeu” ele se dirige
aos pais destas, com sua máscara de polonês, e grita bem alto “Heil, Hitler!”. Assim, os poloneses
o cumprimentam, percebendo-se a influência do fanatismo anti-semita nas crianças. Conforme
Vladek “os mães dizia (sic): ‘cuidado! Um judeu vai vir pra te comer!’ Assim elas ensinam para os
filhos”.

Em Gen, o exemplo de fanatismo vem da sociedade que não reconhece a supremacia bélica
norte-americana, enaltecendo a honra do país através de seus soldados Kamikazes (pilotos suicidas).
Um dos irmãos de Gen, Akira vai para o campo de evacuação com seus colegas de classe, aonde
trabalha no campo como todos. Ao achar uma batata, e castigado pela fome, ele e um amigo a
consomem escondidos de seu tutor, que ao descobrir os castiga e grita (figura 94): “Pensem nos
soldados nos campos de batalha bebendo água lamacenta e mastigando grama, mas combatendo o
inimigo! E então, estão com fome? Não estão envergonhados? Vocês, as crianças do imperador!”

O preconceito por serem de diferentes religiões ou com opiniões diferentes às da sociedade,


também se faz presente. Vladek constantemente apanha, sob os “insultos” de judeu (figura 97). A
família de Gen é apedrejada o tempo todo por discordar da guerra (figura 98). A família Spiegelman
se dissolve fugindo da guerra, poucos sobrevivem, inclusive sendo a morte do primeiro filho de
Vladek, Richeau – que morre bem antes de Art nascer – um dos momentos mais dramáticos da
narrativa (figura 95). A despedida do pai de Gen ao irmão mais velho, Koji, já dentro do trem a
caminho da guerra, também é um dos ápices da história de Nakazawa (figura 96).

Conforme Adorno, as sociedades destas nações, historicamente dominadas por políticas


monárquicas ou totalitárias, “ainda não se encontravam psicologicamente preparadas para a
autodeterminação” (1995, p. 123), viviam no que ele chama de “heteronomia, um tornar-se
dependente de mandamentos, de normas que não são assumidas pela razão própria do indivíduo”
(1995, p. 124). Assim, as próprias identidades destes povos eram destruídas, “junto com sua
identidade e seu potencial de resistência, as pessoas também perdem suas qualidades”. Conforme
constata Adorno, as sociedades envolvidas nestes processos foram, através de sua submissão, as
principais vilãs destes genocídios. “(...) as pessoas que executam as tarefas agem em contradição com
seus próprios interesses imediatos, são assassinas de si mesmas na medida em que assassinam os

91
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

93
Acima, na figura 93, Vladek se “disfarçando” de polonês.

93 SPIEGELMAN, Art. Maus. São Paulo, Cia das Letras, 2005.

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Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

94
Acima, na figura 94, exemplo de fanatismo dos professores japoneses.

94: NAKAZAWA, Keiji. Gen – Pés Descalços. São Paulo, Conrad: 1999.

93
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

95

96

97 98
Figura 95, episódio da morte de Richeau; figura 96, a
despedida de Koji; figura 97, o anti-semitismo dos nazistas, e
figura 98, Gen sendo apedrejado.

95 e 97: SPIEGELMAN, Art. Maus. São Paulo, Cia das Letras, 2005. 96 e 98: NAKAZAWA, Keiji. Gen – Pés Descalços. São Paulo,
Conrad:

94
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

outros” (BENJAMIN apud ADORNO, 1994, p. 137) [grifo do autor].

Porém, nem Nakazawa nem Spiegelman, como já citado, tinham objetivo de identificar os
responsáveis por estes crimes. O objetivo era mostrar a superação, a capacidade de sobrevivência do
ser humano (e seus valores) a esta situação.

Spiegelman mostra isto de uma forma mais pessimista, evidenciando em episódios de


traição, delação, troca de interesses, o perigo que existe quando os indivíduos esquecem os valores
coletivos, ao mesmo tempo em que mostra que o amor à sua esposa (e à sua própria vida), serve de
incentivo à Vladek para sobreviver ao Holocausto (figura 100).

Já o trabalho de Nakazawa, conforme o próprio Spiegelman, “é humano e humanístico,


demonstrando e enfatizando a necessidade de empatia entre os homens se quisermos sobreviver a
um outro século”. Gen, de forma mais positiva, mostra pequenos gestos de solidariedade, vindos
do vizinho coreano Sr. Pak (figura 99), ou do Senhor que entrega um peixe para Gen alimentar
sua mãe, grávida e desnutrida. Além disso, a união familiar é a base da constituição dos valores
do protagonista, fortalecendo-se no fim, quando Gen fica responsável por sua mãe e irmã recém-
nascida.

Por mais que Theodor Adorno apresente uma visão pessimista deste processo de reflexão
sobre estes genocídios, estas obras proporcionam às novas gerações uma renovação de conceitos.

É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos,
é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem
novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral
acerca desses mecanismos (ADORNO, 1994, p. 121).

4.5 Identidade nacional


Stuart Hall (2000) em seu livro, Identidade Cultural na Pós-Modernidade, cita a importância
da cultura nacional na formação da identidade dos indivíduos. Para Hall, “as pessoas não são apenas
cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da idéia da nação tal como representada em sua
cultura nacional” (2000, p. 49). A própria idéia de nação depende dos seus habitantes, a partir da
cultura que se desenvolve nessa “comunidade simbólica”,

As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos
nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são
contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens
que dela são construídas (HALL, 2000, p. 51) [grifo do autor].

95
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

99

Acima, na figura 99, o coreano sr. Pak em


solidariedade com os vizinhos, ao lado
(figura 100) Vladek e sua esposa anja no
seu reencontro em Auschwitz.
100

99: NAKAZAWA, Keiji. Gen – Pés Descalços. São Paulo, Conrad: 1999.100: SPIEGELMAN, Art. Maus. São Paulo, Cia das Letras, 2005.

96
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

Hall ainda formula que são três os principais fatores na constituição de uma cultura nacional:
“as memórias do passado; o desejo por viver em conjunto; a perpetuação da herança” (2000, p. 58).
Tanto em Maus quanto em Gen, percebe-se a presença destes três fatores.

A comunidade judaica apresenta uma peculiaridade em relação às demais, sua milenar


busca pela “Terra Prometida”. Após a Segunda Guerra, foi criado o Estado de Israel, conforme a
Wikipédia10, uma “república democrática parlamentar” situada no Oriente Médio, e que devido a
seus conflitos territoriais segue até hoje envolvida em uma guerra civil e religiosa com seus vizinhos
Palestinos. Apesar disso, a cultura judaica mantém-se forte, reforçando essa comunidade como uma
“nação”. Gellner, (apud HALL, 2000), diz que “para uma dada sociedade, ela tem que ser uma
atmosfera na qual podem todos respirar, falar e produzir; ela tem que ser, assim, a mesma cultura”
(p. 59). As experiências narradas por Vladek Spiegelman servem de alicerce para a constituição de
uma memória em relação à nação judaica, reforçando sua identidade como tal. Exemplo disso ocorre
quando, em sua primeira prisão (quando era soldado polonês) Vladek se apega à visão de seu avô, que
diz que a liberdade viria em uma importante data comemorativa judaica, o que acaba acontecendo
(figura 101). Já o desejo por viver em conjunto não é tão evidenciado, porém percebem-se ao longo
da jornada de Vladek as conseqüências da falta deste conjunto, nas já citadas passagens de traição,
evidenciado na própria sequência de abertura da obra sua mensagem pessimista. Pode-se inclusive,
concluir que estes ensinamentos de Vladek já constituem a perpetuação da herança (figura 102).

Não diferente, Gen também demonstra estes três aspectos durante a narrativa. O povo
japonês tem como característica o forte nacionalismo, enaltecendo costumes e valores passados de
geração em geração. Além disso, o próprio episódio das bombas atômicas constitui um importante
capítulo na memória da nação japonesa. Através de um narrador-observador (por que não dizer o
próprio Keiji Nakazawa), as informações que o ingênuo Gen sequer imagina são fornecidas ao leitor,
evidenciando a dramaticidade do evento (figura 103). O desejo por viver em conjunto evidencia-se
quando o pai de Gen o responsabiliza para cuidar das vidas da mãe e a irmã recém nascida (figura
104). Isto serve de base para o fortalecimento do personagem, que resgata a mãe e ainda realiza
o parto da irmã, no meio da destruição causada pela queda da bomba. A perpetuação da herança
fica evidenciada quando a mãe de Gen segura a recém nascida no colo e mostra a ela o cenário
apocalíptico que se estabelece em Hiroshima (figura 105), gritando “quando crescer, nunca deve
deixar isso acontecer novamente” (NAKAZAWA, 1999, p. 284).

Douglas Kellner (2001) afirma que “um diagnóstico crítico também analisa o modo como
a cultura da mídia provê recursos para a formação de identidades e promove políticas reacionárias
ou progressistas” (2001, p. 15). Nem reacionárias ou progressistas, mas sim humanistas, estas duas
obras constituem uma importante fonte de construção de crítica social para as gerações posteriores à
Guerra. Kellner, ao analisar a construção da identidade contemporânea, afirma que “nas sociedades
de consumo e de predomínio da mídia, surgidas depois da Segunda Guerra Mundial, a identidade

10. ISRAEL. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Israel> Acesso em: 20 de dez. 2009

97
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

101
Acima, na figura 101, os valores judeus de Vladek Spiegelman,
bem como o desejo da liberdade.

101: SPIEGELMAN, Art. Maus. São Paulo, Cia das Letras, 2005.

98
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

102
Acima, na figura 102, a transmissão de herança para seu filho
“Artie” Spiegelman.

102: SPIEGELMAN, Art. Maus. São Paulo, Cia das Letras, 2005.

99
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

103
Acima, na figura 103, o posicionamento do pai de Gen frente
ao exagerado patriotismo japonês.

103: NAKAZAWA, Keiji. Gen – Pés Descalços. São Paulo, Conrad: 1999.

100
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

104

Acima, na figura 104, o desejo do pai de Gen que este cuide


de sua imãe e irmã. Ao lado (figura 105), a mãe de Gen
mostrando o mundo à recém nascida, um sentimento de
herança.
105

104 e 105: NAKAZAWA, Keiji. Gen – Pés Descalços. São Paulo, Conrad: 1999.

101
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

tem sido cada vez mais veiculada ao modo de ser, à produção de uma imagem, à aparência pessoal”
(KELLNER, 2001, p. 297).

Em contrapartida a esta tendência, obras como Maus e Gen encaminham seus leitores à uma
percepção coletiva, mostrando a importância da autonomia dos povos perante regimes totalitários.
Além disso, as mensagens anti-guerra que estas obras transmitem, se fortalecem na globalização.

Como argumenta Anthony McGrew (1992), a “globalização” se refere àqueles processos,


atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando
comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo,
em realidade e em experiência, mais interconectado (HALL, 2000, p. 67-8).

Evidenciam-se exemplos disso no próprio processo pioneiro de tradução de Gen Pés


Descalços. Conforme Paul Gravett, “a poderosa mensagem anti-bélica (...) motivou um grupo de
ativistas voluntários em Tóquio e San Francisco a publicá-lo em inglês em 1978” (2006, p. 158).
Além disso, Gen abriu as portas do Ocidente para o próprio quadrinho japonês.

A premiação de Maus com o Prêmio Pulitzer, o principal prêmio “reservado para a literatura
dita séria” (PATATI, BRAGA, 2006, p. 223), serviu de base para o fortalecimento do gênero
autobiográfico das graphic novels de todo o mundo (exemplo disto, a já citada Persépolis, de Marjani
Satrapi). O caráter revolucionário destas obras, dentro de seus estilos, reformula não somente os
conteúdos abordados nas narrativas, mas na própria estrutura das HQs.

A continuidade e a historicidade da identidade são questionadas pela imediatez e pela


intensidade das confrontações culturais globais. (...) Esses processos constituem a
segunda e a terceira conseqüências possíveis da globalização, anteriormente referidas – a
possibilidade de que a globalização possa levar a um fortalecimento de identidades locais
ou à produção de novas identidades (HALL, 2000, p. 84).

Essa participação positiva no processo de globalização, bem como nas construções de


identidades individuais e/ou coletivas, fortalece a relação do meio de comunicação de massa que
são as Histórias em Quadrinhos, em relação às suas potencialidades como fonte de construção de
crítica social. Maus – a história de um sobrevivente, bem como Gen Pés Descalços, formam juntas,
a base de um processo de reformulação do uso desta mídia de forma ativa na sociedade do século
XXI, bem com para as futuras gerações.

102
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

5. Prática

5.1 A cultura da convergência


O livro A Cultura da Convergência (2008), de Henry Jenkins, teoriza sobre evolução da
Comunicação de Massa. Exemplifica através de temas recentes (Star Wars, The Sims, Harry Potter,
bem como o próprio processo de eleição presidencial dos Estados Unidos, em 2004), a importância
da crescente participação dos “consumidores” das mídias, e a repercussão disso,

Por convergência refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplos suportes


midiáticos, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento
migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em
busca das experiências de entretenimento que desejam (...) a convergência representa uma
transformação cultural, à medida que consumidores são incentivados a procurar novas
informações e fazer conexões em meio a conteúdos midiáticos dispersos (JENKINS,
2008, p. 27-8).

Contrariando e complementando antigas teorias críticas da comunicação, Jenkins afirma


que essa “transformação cultural” consolida a participação dos receptores como importante parte
no processo comunicacional, acabando com a “verticalização” indicada pela Escola de Frankfurt.

A expressão cultura participativa contrasta com noções mais antigas sobre a passividade dos
espectadores dos meios de comunicação. Em vez de falar sobre produtores e consumidores
de mídia como ocupantes de papéis separados, podemos agora considerá-los como
participantes interagindo de acordo com um novo conjunto de regras, que nenhum de
nós entende por completo (JENKINS, 2008, p. 28).

Essa cultura participativa não isola produtores e consumidores, ou autores e público,


conforma já teorizava em1955, Walter Bejamin (já visto neste estudo, um dos poucos a acreditar
no potencial da comunicação de massa como ferramenta democrática). “(...) a diferença essencial
entre o autor e público está a ponto de desaparecer. Ela se transforma numa diferença funcional
e contingente. A cada instante, o leitor está pronto a converter-se num escritor” (1994, p. 184).
Jenkins ainda realiza uma importante analogia deste processo coletivo com o conceito de inteligência
coletiva e comunidades de conhecimento de Pierre Lévy,

103
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

Para Lévy, o poder de participar de comunidades de conhecimento coexiste com o poder


que o Estado-nação exerce sobre os cidadãos e o poder que as corporações, dentro do
capitalismo, exercem sobre trabalhadores e consumidores. Para Lévy, em seu momento
mais utópico, esse poder emergente de participar serve como um vigoroso corretivo às
tradicionais fontes de poder, embora elas também procurem usá-lo para seus próprios fins
(JENKINS, 2008, p. 313).

Ao usar essas informações conforme bem entender, os consumidores reformulam a própria


estrutura comunicacional, levando a famigerada cultura de massa a um novo patamar,

Os novos avanços da mídia horizontal controlada pelo usuário, que permite ao usuário
emendar, reformatar, armazenar, copiar e enviar a outros e comentar o fluxo de idéias, não
excluem a comunicação de massa. Muito pelo contrário, eles complementam os meios de
comunicação de massa (NEUMAN apud JENKINS, 2008, p. 181)

Esta horizontalidade, este “poder” do consumidor, possibilita uma renovação, inclusive nos
processos políticos da sociedade. Conforme a obra de arte do século XIX ganhava uma função
política ao desligar-se de sua aura, de sua autenticidade (BENJAMIN, 1994), o entretenimento
popular oriundo da cultura de massa também assume um importante papel social.

(...) as crianças consideram a linguagem política estranha e não envolvente, comparada à


proximidade oferecida pelo entretenimento popular; a notícia apresenta o mundo como
algo hermeticamente fechado, longe de suas vidas cotidianas. (...) crianças e jovens sentem-
se impotentes em suas vidas cotidianas e, dessa forma, têm dificuldade de imaginar como
poderiam exercer poder de forma politicamente significativa (JENKINS, 2008, p. 294).

O simples posicionamento crítico já serve de alicerce para a base de um conhecimento


político e social, sendo o entretenimento, hoje em dia, uma fonte significativa neste processo. Ao
equivaler-se aos próprios produtores da cultura de massa na escala comunicacional, os consumidores
consolidam seu espaço na construção da cultura em que vivem.

5.2 Ambiente convergente


Com base neste posicionamento dos consumidores, este trabalho visa elaborar um ambiente
digital convergente, no qual o posicionamento dos consumidores de histórias em quadrinhos será
apresentado, bem como o conteúdo deste estudo.

104
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

Por ambiente digital convergente, entende-se um espaço aonde um número ilimitado de


pessoas pode acessar, bem como um numero ilimitado de pessoas participam direta/indiretamente.
Um espaço mediador entre os consumidores interessados tanto neste trabalho, quanto nas próprias
histórias em quadrinhos.

A escolha deste ambiente como trabalho prático deste estudo se fundamenta no fato deste
priorizar a construção de crítica social através de um meio de comunicação, não através de um
conteúdo específico.

Para uma definição de meios de comunicação, recorremos à historiadora Lisa Gitelman,


que oferece um modelo de mídia que trabalha em dois níveis: no primeiro, um meio
é uma tecnologia que permite a comunicação; no segundo, um meio é um conjunto
de “protocolos” associados ou práticas sociais e culturais que crescem em torno dessa
tecnologia. Sistemas de distribuição são apenas e simplesmente tecnologias; meios de
comunicação são também sistemas culturais (JENKINS, 2008, p. 39).

O “sistema de distribuição” no qual se baseia este ambiente visa encontrar-se com o objetivo
da convergência cultural de Jenkins, constituindo uma mudança de padrões, “um deslocamento de
conteúdo midiático específico em direção a um conteúdo que flui por vários canais, em direção a
uma elevada interdependência dos sistemas de comunicação” (2008, p. 310).

Esse deslocamento ocorre com a participação dos consumidores no ambiente digital.


Uma diferenciação entre interatividade e participação é constatada pelo autor ao definir que “a
interatividade refere-se ao modo como as novas tecnologias foram planejadas para responder ao
feedback do consumidor (...). A participação, por outro lado, é moldada pelos protocolos culturais
e sociais (JENKINS, 2008, p. 182-3).

Alguns destes participantes identificam-se como fãs das Histórias em Quadrinhos, assumindo
assim, um posicionamento ativa de sua participação, o fã é “aquele que se recusa a simplesmente
aceitar o que recebe, insistindo no direito de se tornar um participante pleno” (JENKINS, 2008, p.
181). Não há parâmetros nesta participação, já o autor ressalta que

Comunidades de conhecimento formam-se em torno de interesses intelectuais mútuos;


seus membros trabalham juntos para forjar novos conhecimentos, muitas vezes em
domínios em que não há especialistas tradicionais; a busca e a avaliação de conhecimento
são relações ao mesmo tempo solidárias e antagônicas (JENKINS, 2008, p. 46).

É interessante perceber, também, que politicamente, a produção de “paródias” na internet


se afirma como principal produto da crítica social de muitos destes consumidores. Pode-se,
inclusive, perceber uma forte analogia disto com a própria história da crítica política nas histórias

105
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

em quadrinhos,

Ativistas, fãs e parodistas de todos os tipos estão utilizando o software de edição de imagens
Photoshop para manipular imagens e fazer um manifesto político. Tais imagens podem
ser vistas com o equivalente alternativo das charges políticas – a tentativa de sintetizar
assuntos do momento numa imagem poderosa (...) as imagens (ou, mais precisamente, a
combinação de imagens e texto) podem representar um conjunto de recursos retóricos tão
importante quanto textos (JENKINS, 2008, p. 286-8).

E assim, espera-se que o conteúdo da participação dos consumidores neste ambiente


digital convergente, ultrapasse a simples divulgação de HQs, bem como a opinião dos leitores,
mas englobe assuntos diversos, referente à sociedade. “A convergência também ocorre quando as
pessoas assumem o controle das mídias. Entretenimento não é a única coisa que flui pelos múltiplos
suportes midiáticos” (JENKINS, 2008, p. 43).

O conteúdo das histórias analisadas neste estudo serve de exemplo para como uma evolução
dos temas abordados serve de base para a evolução dos próprios comentários ao redor das histórias
em quadrinhos. Cada vez mais se esperam narrativas que transgridam a visão infantil sobre o
conteúdo das histórias em quadrinhos, sendo esperado que este ambiente contribua para que,
através da divulgação de novas histórias, bem como opiniões diversas dos consumidores, ocorra um
amadurecimento da opinião da sociedade acerca desta mídia.

5.3 Metodologia de construção do ambiente


A metodologia de construção deste ambiente se desenvolverá conforme a formulada por
Bruno Munari, em Das Coisas Nascem Coisas (1998), dividindo-se em dez etapas, aqui agrupadas
em quatro subcapítulos. A implementação deste processo metodológico visa elucidar o caráter
projetual do profissional de design, bem como o da própria prática aqui realizada.

5.3.1 Problema – necessidades, definição e componentes

Por problema pode-se definir o próprio ambiente digital a ser construído dentro de um
website. Definindo o problema, tem-se como público os interessados em histórias em quadrinhos,
sejam consumidores ou produtores. Fundamenta-se isso na teoria da Cultura da Convergência
de Jenkins. Seus componentes constituem-se em um conjunto de páginas onde o ambiente para
participação, um infográfico do percurso histórico deste trabalho, bem como resumos deste e
disponibilização de seu conteúdo, serão realizados.

106
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

5.3.2 Referência – coleta e análise de dados

Jenkins cita o site Sequential Tart11, um ambiente aonde as consumidoras das HQs elucidam
seus pontos de vista em relação aos lançamentos do mercado, expondo através de resenhas suas
contribuições para uma evolução desta mídia no contexto de abordagem da figura da mulher.
Representa um “novo tipo de grupo de defesa do consumidor – que procura conteúdo diversificado
e torna os meios de comunicação de massa mais receptivos aos consumidores (JENKINS, 2008, p.
317)”.

Sua estrutura é bastante simples, apresentando o conteúdo como principal fator. Apesar de
conter propagandas (uma forma do ambiente manter-se financeiramente, comumente usada por
sites sem fins lucrativos), percebe-se um tom de seriedade em relação ao tema abordado. Porém,
a participação é mediada através dos idealizadores do site, sendo submetida a uma avaliação dos
mesmos.

A simplicidade do ambiente não significa uma “falta” de atenção a critérios visuais, neste
caso (e em sua grande maioria), a simplicidade de um site significa a funcionalidade do mesmo,
até mesmo por questões de acessibilidade (conforme elaboram-se importantes estudos da área de
arquitetura de informação).

5.3.3 Criação – criatividade, materiais e tecnologias

A partir de esboços realizados à mão livre e em papel quadriculado, foram determinadas as


escalas e posicionamentos dos elementos do ambiente, e aplicadas em um wireframe com grid.

A questão da identidade visual do site remete á própria linguagem das HQs, porém
priorizando a simplicidade. Uma marca construída tipograficamente encaixa-se nesta necessidade,
bem como as cores utilizadas no site (neutras, em sua maioria).

A estrutura do site se baseara na linguagem HTML, bem como recursos de CSS, Javascript
e Flash serão adotados. A participação direta/indireta dos participantes também será mediada
através da busca de contribuições da rede social Twitter, através da busca de palavras chave, como
“quadrinhos”, “tirinhas”, “comics” e “socialcomics” remetendo diretamente ao nome do site (www.
socialcomicart.com) (figuras 105 e 106).

5.3.4 Repercussão – experimentação, modelo, verificação e desenho de


construção

Esta importante etapa do processo metodológico será apresentada na banca final de avaliação

11. SEQUENTIAL TART. < http://www.sequentialtart.com/> Acessado em 28 dez. 2009.

107
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

deste trabalho, pois compreenderá o período do lançamento do site com a banca em questão.

5.3.5 Solução

O uso do Twitter como fonte de participação direta/indireta dos consumidores de HQs


encontra-se com a necessidade de participação cultural priorizada pela cultura de convergência.

Consumidores estão aprendendo a utilizar as diferentes tecnologias para ter um controle


mais completo sobre o fluxo da mídia e para interagir com outros consumidores. As
promessas desse novo ambiente midiático provocam expectativas de um fluxo mais livre
de idéias e conteúdos. Inspirados por esses ideais, os consumidores estão lutando pelo
direito de participar mais plenamente de sua cultura (JENKINS, 2008, p. 44).

Neste cenário, se estabelece uma importante conexão entre novas e velhas mídias, no
momento em que esta participação também visa divulgar novas histórias, já criadas diretamente na
internet, levando a estrutura das HQs, do ambiente impresso para o ambiente digital. É importante
destacar também, que, na medida em que a liberdade de participação na internet é maior do que
na já estruturada mídia impressa, “o público, que ganhou poder com as novas tecnologias, que está
ocupando um espaço na intersecção entre os velhos e novos meios de comunicação, está exigindo o
direito de participar intimamente da cultura” (JENKINS, 2008, p. 51).

Isso tudo se encontra com as “previsões” de Benjamin (1994), que previa uma mudança
significativa na estrutura democrática através da cultura de massa. Além de um sentimento de
“conforto” ao expor suas opiniões, o público participa no processo de renovação das obras.

Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra por
uma existência serial. E, na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao
encontro do espectador, em todas as situações, ele atualiza o objeto reproduzido. Esses
dois processos resultam num violento abalo da tradição, que constitui o reverso da crise
atual e a renovação da humanidade (BENJAMIN, 1994, p. 168-9).

Esse ambiente democrático propicia um abalo significativo na estrutura democrático, “o


próximo passo é pensar na cidadania democrática como um estilo de vida” (JENKINS, 2008, p.
301). É quase um processo lúdico, onde pequenas “doses” de posicionamento político encontram-
se com o cotidiano destes participantes, e conforme conclui Jenkins,

Os efeitos políticos dessas comunidades de fãs surgem não apenas da produção e circulação
de novas idéias (a leitura crítica de textos favoritos), mas também pelo acesso a novas
estruturas sociais (inteligência coletiva) e novos modelos de produção cultural (cultura

108
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

105

menu

busca do twitter

infográfico
em flash
106

109
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

participativa) (JENKINS, 2008, p. 314).

O autor de Cultura da Convergência afirma que “Piérre Lévy definiu seu ideal de inteligência
coletiva como uma ‘utopia realizável’, e é isso mesmo” (JENKINS, 2008, p. 314). E não obstante
ainda reafirma que esta “nova política” é totalmente antagônica às teorias críticas de Frankfurt, “a
política da utopia crítica é fundamentada na noção de delegação de poderes; a política do pessimismo
crítico, na vitimização” (JENKINS, 2008, p. 315).

Também se pode concluir que esta prática afirma que o designer, como profissional da
comunicação visual, pode se preocupar com questões mais “amplas”, participação, cidadania
e política, reformulando antigas mídias e complementando novas tecnologias, e não somente
trabalhando para estruturas corporativas e mercadológicas, “restritas”, de certa forma, ao contexto
social. Jenkins afirma que “(...) o momento atual de transformação midiática está reafirmando o
direito que as pessoas comuns têm de contribuir ativamente com sua cultura” (2008, p. 182) e o
designer tem um papel fundamental neste processo, ao preocupar-se com a criação, a mediação e a
recepção desta nova estrutura comunicacional, participando do processo de construção da própria
democracia do século XXI.

110
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

Considerações Finais

“As mídias são interpretadas basicamente como ameaças, em vez de recursos”.

Henry Jenkins

Conforme foi visto ao longo deste trabalho, as potencialidades das Histórias em Quadrinhos
como fonte de construção para a crítica social não é somente uma possibilidade, é uma realidade.
Estudar a comunicação de massa de uma maneira positivista permite que isto se evidencie, bem
como eleva a cultura a um nível participativo da política na sociedade.

Ao observarem-se cada capítulo, bem como a análise e a prática, comprovam-se os objetivos


deste trabalho: a relação complementar das HQs com o Design Gráfico, a existência de crítica
à sociedade através das HQs, a influência destas na construção de identidade dos indivíduos (e
da própria sociedade), a utilização de novas tecnologias para a reformulação de antigos meios de
comunicação, e por fim, a comprovação que as HQs são um meio válido (e perceberemos que ainda
é um meio promissor) de formulação de crítica social.

No primeiro capítulo, a analogia das próprias histórias em quadrinhos com a área do


Design Gráfico fundamenta como responsabilidade do profissional desta área, a preocupação
com essa estrutura comunicacional. Percebe-se uma potencialidade, inclusive, na sua atuação,
seja mercadológica, seja acadêmica. A pluralidade do século XXI evidencia, cada vez mais, que
não existem graus de dependência entre design e quadrinhos, mas sim, uma complementação de
ambos.

Após, ao observarem-se as peculiaridades, bem como o percurso histórico das HQs, de


sua concepção até a Segunda Guerra Mundial, percebemos que a HQs nasceram na crítica, e ao
se submeterem a fatores massificadores, como a “indústria cultural”, bem como visões unilaterais,
nos estereótipos da 2º Guerra, perde essa capacidade de contestação da sociedade. Porém, é no
período após a Segunda Guerra que uma importante transformação cultural ocorre, renovando e
reformulando as Histórias em Quadrinhos.

Aos compreender-se as teorias sobre cultura de massa, indústria cultural, modernidade,


bem como os estudos posteriores que enfatizam a importância da recepção destes, formula-se uma
importante base para a percepção desse processo de crítica social nas HQs a partir do término da

111
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

Segunda Guerra. Vale destacar que existe um número enorme (e, felizmente, crescente), de histórias
que não foram citadas, mas que têm uma importância enorme neste contexto, desde a precursora
autobiografia American Splendor, de Harvey Pikar, desenhada por R. Crumb, a inovadora Frequência
Global, de Warren Ellis12, bem com 100 Balas, de Brian Azarello.

Assim, baseando-se nestas teorias estudadas, a análise realizada neste trabalho demonstra
que as HQs autobiográficas e históricas que surgiram nos anos 80 ganhando força nos últimos vinte
anos, são fontes de opinião, bem como conhecimento histórico para seus leitores e as futuras gerações.
Cumprem um papel vital na construção de repertorio da sociedade atual, e ainda reformulam a
própria estrutura da mídia das Histórias em Quadrinhos, ganhando prêmios e incorporam-se à
leitura escolar, tal quais os livros de literatura “séria”.

O trabalho prático visa complementar o trabalho, que tem maior perfil teórico. Ela mostra
um “futuro” do sistema cultural que engloba a cultura de massa, elevando o “consumidor” ao mesmo
nível dos produtores, outrora vistos como “vilões” no processo comunicacional. Através de práticas
atuais como a simples opinião acerca das HQs, bem como divulgação de novas obras através de um
ambiente digital convergente, percebe-se também que esta participação dos consumidores também
reformula as histórias em quadrinhos do século XXI. Assim como seus conteúdos, conforme visto na
análise deste trabalho, uma nova percepção das HQs (e não somente restrita aos seus consumidores,
mas a sociedade em geral) as eleva como uma poderosa fonte de repertório para a construção de
crítica social.

Este ponto de vista não é uma novidade. Bem como foi dito, toda essa reformulação da
sociedade através do bom uso da comunicação de massa já era previsto por Walter Benjamin nos
anos 30. Os próprios autores das HQs citadas no cap. 3 desde trabalho, também acreditavam nas
HQs como importante instrumento de construção de uma nova sociedade. Porém, para eles, este
processo foi “natural”, pois não pretendiam denominar as HQs como tal, eles queriam simplesmente
dedicar-se ao que realmente acreditavam: escrever e desenhar histórias em quadrinhos. Mal sabiam
que, posteriormente, serviriam de base para uma nova percepção de toda a cultura, incluindo esta
em um processo evolutivo da própria sociedade do século XXI, bem como as futuras gerações.

12. Em Cultura da Convergência, Henry Jenkins (2008) cita um episódio no qual a Warner Bros recusa
uma adaptação da HQ para série televisiva, porém, deixa “vazar” o episódio-piloto da série na internet. Os fãs
da série, mobilizados pela decisão, pressionam o estúdio para a produção da série, e atualmente há boatos de
uma nova tentativa de adaptação, vinda da própria Warner Bros.

112
Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

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Crítica Social nas Histórias em Quadrinhos

Apêndice A. esboço do funcionamento


do ambiente interativo

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