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GRADIVA - Romance de Wilheim Jensen-Português
GRADIVA - Romance de Wilheim Jensen-Português
GRADIVA
Uma fantasia pompeiana
Produção editorial
Revisão: Cláudio Estrella (copy); Andréa Rodrigues, Nair Dametto, Nanei
Ribeiro (tip.);
Diagramação: Celso Bivar;
Composição e Arte-final: Linolivro
Composições Gráficas Ltda.;
Arte-final de capa: António Sampaio;
Impressão: Gráfica Pertinho Cavalcanti Ltda.
ISBN: 85-85061-80-4
Segundo Lacan, Freud era ávido de literatura, pois ela "lhe servira
para franquear a via desta idéia do inconsciente" e, com efeito, diante
do romance de Jensen, ele se encontra face a uma obra que lhe
permite estabelecer, mais uma vez, um paralelismo, que lhe era tão
caro, entre o procedimento arqueológico e o método psicanalítico:
Gradiva narra a estória de um jovem arqueólogo e de seu tortuoso
reencontro com uma musa de sua infância.
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Freud dá com esse texto? A resposta para tal questão, e sobretudo em
se tratando de Freud, não é certamente unívoca, e variadas foram as
tentativas de situar Gradiva em sua obra.
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ou da tumba de Tutancâmon. Todos os elementos essenciais estão
preservados; mesmo coisas que parecem completamente esquecidas
estão presentes, de alguma maneira e em algum lugar, e simplesmente
foram enterradas e tornadas inacessíveis ao indivíduo. Na verdade,
como sabemos, é possível duvidar de que alguma estrutura psíquica
possa realmente ser vítima da destruição total. Depende
exclusivamente do trabalho analítico obtermos sucesso em trazer à luz
o que está completamente oculto".(8)
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com a história de um arqueólogo cujo "esquecimento das mulheres",
por assim dizer, obterá sua cura exatamente em Pompéia!
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para Freud, mais uma vez, de recolher os achados do escritor e do
poeta, achados cuja emergência na obra é tornada possível pela
especial aptidão do artista para se deixar perpassar pelos elementos
que, estruturados como uma linguagem — como sabemos a partir de
Lacan —, apontam para o inconsciente, para a Outra Cena.
São tais elementos que desejamos com esta publicação trazer ao leitor
brasileiro, em geral, e ao psicanalista, em particular.
NOTAS:
1. .Freud, S., Delírios e sonhos na "Gradiva" de Jensen, Edição Standard Brasileira das Obras
Completas, Rio, Imago, 1976, vol IX, pp. 13-98.
2. Schreber, D. P., Memórias de um doente dos nervos, Rio, Graal, 1985.
3. Lacan, J., "Conférences et entretiens dans dês universités nord-américaines", Scilicet 6/7,
Paris, Seuil, 1976, p. 33.
4. Freud, S., Delírios e sonhos na "Gradiva" de Jensen, op. cit., Nota do editor inglês, pp. 14-
15.
5. Freud, S., Construções em análise, Edição Standard Brasileira das Obras Completas, Rio,
Imago, 1975, vol. XXIII, p. 293.
6. Freud, S., Construções em análise, op. cit., p. 293.
7. Freud, S., Construções em análise, op. cit., pp. 293-294.
8. Freud, S., Construções em análise, op. cit., p. 294.
9. Freud, S., O mal-estar na civilização, Edição Standard Brasileira das Obras Completas,
Rio, Imago, 1974, vol. XXI, p. 86.
10. Freud, S., O mal-estar na civilização, op. cit., p. 89.
íl. Lacan, J., "Proposition du 9 octobre 1967 sur lê psychanaliste
de 1'École", Scilicet l, Paris, Seuil, 1968, pp. 14-30.
12. Magno, M. D., "Alguns apontamentos sobre a garantia e o passe", Revisão l, Rio, Aoutra,
p. 161.
13. Freud, S., Delírios e sonhos na "Gradiva" de Jensen, op. cit., p. 48.
14. Freud, S., Delírios e sonhos na "Gradiva" de Jensen, op. cit., p. 50.
15. Lacan, J., "Conférences et entretiens dans dês universités nord-américaines", op.
cit., p. 21.
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Ao visitar uma das grandes coleções romanas de antiguidades,
Norbert Hanold descobrira um baixo-relevo que o impressionara
excepcionalmente. Alegrou-se de poder encontrar, na volta à
Alemanha, uma excelente cópia dele. Alguns anos depois, esta se
encontrava em lugar privilegiado em seu gabinete de trabalho, cujas
paredes estavam quase que inteiramente revestidas de prateleiras
cobertas de livros; a luz caía diretamente sobre o relevo, e o sol poente
o iluminava durante alguns instantes. A escultura representava, de pé,
uma mulher caminhando, mais ou menos num terço do seu tamanho
natural. Ela era jovem, não criança e, evidentemente, ainda não
mulher, porém uma virgem romana de cerca de vinte anos. Em nada
lembrava os baixos-relevos tão freqüentes de Vênus, de Diana, ou de
alguma outra divindade do Olimpo, nem Psique ou outra Ninfa. Havia
nela alguma coisa da humanidade contemporânea — expressão que
não é tomada num sentido desfavorável — atual, de algum modo,
como se o artista, ao invés de lançar, como teria feito hoje, um croquis
sobre uma folha de papel, tivesse esboçado um modelo de argila, na
rua, passando rapidamente ao lado da própria vida. O corpo era
grande e esbelto, os cabelos frouxamente ondulados e quase que
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completamente cobertos por um xale. O rosto, um pouco pequeno,
não tinha fascínio especial, mas era evidente que não buscava tal
efeito. Seus traços finos exprimiam uma tranqüila indiferença em
relação aos acontecimentos externos, o olho, que olhava reto para
frente, testemunhava uma visão excelente e intacta, e de um voltar-se
pacífico dos pensamentos para si mesmo. Essa jovem mulher, que não
atraía pela beleza de suas formas, possuía, no entanto, uma coisa rara
nas esculturas da antiguidade, o encanto simples e natural de uma
moça, encanto que parecia ser a inspiração de sua própria vida. Ele se
devia, sem dúvida, à postura em que ela era representada. Com a
cabeça ligeiramente inclinada, tinha recolhida na mão esquerda uma
parte do vestido extraordinariamente pregueado, que lhe caía da nuca
aos calcanhares, e descobria assim seus pés nas sandálias. O pé
esquerdo estava à frente, e o direito, disposto a segui-lo, só tocava o
chão com a ponta dos artelhos, enquanto que a planta e o calcanhar
elevavam-se quase verticalmente. Esse movimento exprimia ao
mesmo tempo a leveza ágil de uma jovem caminhando e um repouso
seguro de si, o que lhe dava, ao combinar uma espécie de vôo
suspenso com um andar firme, aquele encanto particular.
De onde ela vinha? Para onde ia? O doutor Norbert Hanold, professor
de arqueologia, não encontrava, na verdade, do ponto de vista da
ciência que ensinava, nada de particularmente notável naquele baixo-
relevo. Não era uma escultura da época áurea, mas antes um tableau
de genre ao gosto romano, e ele não conseguia explicar a si mesmo o
que é que tinha chamado tanto a sua atenção; mas alguma coisa o
havia atraído e ele ficou, desde o primeiro momento, com aquela
impressão. Para designar a escultura, lhe tinha dado o nome, para si
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mesmo, de Gradiva, aquela que avança. Esse prenome, que os poetas
antigos reservam para Mars Gradivus, para o deus da guerra que vai à
batalha, parecia a Norbert, entretanto, o mais característico do
movimento da jovem, ou, empregando uma expressão
contemporânea, da jovem dama, pois ela evidentemente não era de
origem da classe inferior, mas filha de um nobre, pelo menos de um
honesto loco ortus. Talvez, como sua aparência o sugerisse
involuntariamente, fosse filha de um magistrado patrício que
desempenhava suas funções sob os auspícios de Ceres, e ia-se ela,
para uma atividade qualquer, rumo ao templo da Deusa.
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dras, enquanto que o outro se dispunha a segui-lo. Ao mesmo tempo
em que ele contemplava a menina andando, tudo aquilo que o
cercava, perto ou longe, se projetava na realidade diante de sua
imaginação. Graças a seu conhecimento de antiguidades, aquela
mulher fazia nascer nele a visão de uma rua comprida, estendendo-se
entre duas fileiras de casas a que se misturavam os numerosos
edifícios dos templos e dos pórticos. O comércio e a indústria
mostravam tabernae offidnae cauponae, butiques, ateliês e tavernas.
Os padeiros exibiam seus pães, as ânforas de argila afundadas em
mesas de mármore ofereciam todo o tipo de coisa útil para o lar e a
cozinha; num canto de rua, uma mulher sentada oferecia aos
compradores legumes e frutas em cestos. Tinha tirado a casca de meia
dúzia de grandes nozes para atrair os fregueses, mostrando que o
interior de seus frutos era irrepreensível e fresco. Em toda parte onde
a vista pousava, descobria cores vivas: as muralhas alegremente
coloridas, as colunas com capitéis vermelhos e amarelos, tons
deslumbrantes e resplandecentes sob o esplendor do sol de meio-dia.
Mais adiante, sobre um pedestal elevado, erguia-se uma estátua de
uma brancura gritante que, através das brumas de calor que faziam
tremer o ar, parecia contemplar o Vesúvio, que ainda não tinha a
forma de cone acastanhado e solitário que tem hoje, mas estava
recoberto, até o pico rude e despojado, por uma vegetação de um
verde ofuscante. Pela rua não passava ninguém além de jovens que
procuravam sombra. O calor estival do meio-dia paralisava o tráfego
em outras horas tão intenso. No meio de tudo isso, Gradiva
caminhava pelas lajes espaçadas, fazendo fugir um lagarto verde e
ouro.
Era assim que aquilo tudo revivia diante dos olhos de Norbert
Hanold; entretanto, a contempla-
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cão diária daquele rosto havia feito nascer nele uma outra hipótese. O
ar geral de seus traços lhe parecia ser, cada vez mais, não de raça
latina ou romana, mas grega. E pouco a pouco ele adquiria a certeza
dessa origem helênica. A antiga colonização do sul da Itália pela
Grécia lhe fornecia uma série de motivos suficientes, e ele daí deduzia
uma nova série de agradáveis suposições. A jovem domina talvez
tivesse falado grego em casa e fosse educada, nutrida, pela educação
grega. E seu rosto, bem examinado, o confirmava, pois sob a sua
modéstia se ocultava, sem dúvida, prudência e uma inteligência fina e
cheia de espírito.
Mas não conseguia tirar a limpo essa questão, e sua rica coleção de
obras de arte da antiguidade, nesse assunto, não lhe trazia auxílio
algum. A posição quase vertical do pé direito lhe parecia exagerada.
Toda vez que ele próprio fazia essa experiência, o pé que ficava atrás
durante seu movimento encontrava-se sempre em posição menos
vertical; formulando matematicamente, durante o breve instante em
que o pé permanecia no lugar, o seu só fazia, em relação ao chão, um
semi-ângulo reto, o que lhe parecia ao mesmo tempo mais natural e
mais apropriado ao mecanismo do andar. Ele chegou a se aproveitar,
uma vez, da presença de um jovem anatomista amigo seu, para lhe
colocar a questão, mas este também foi
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incapaz de resolvê-la definitivamente, porque nunca tinha feito
observações sobre o tema. Repetida a experiência, o amigo chegou ao
mesmo resultado, mas acrescentou que não saberia dizer se o andar
feminino se distinguia do masculino, e a questão não foi solucionada.
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de aspecto bastante sedutor, uma espécie de encorajamento se lia em
alguns olhos; mas ele não compreendia o sentido desses olhares.
Pouco a pouco, sua perseverança ia sendo recompensada. Colecionava
um número considerável de observações e encontrava entre elas
numerosas diferenças. A maioria das mulheres deixava escorregar a
planta do pé quase sobre o chão, e havia poucas que a erguiam
obliquamente numa posição mais graciosa. Mas nenhuma delas tinha
o andar de Gradiva, o que o satisfez bastante: ele não se tinha
enganado em seu exame do baixo-relevo, do ponto de vista
arqueológico. Mas, suas observações o contrariaram, porque ele
achava bonita a posição vertical do pé suspenso e lamentava que ela
apenas tivesse sido obra da imaginação e da vontade do escultor e não
correspondesse à realidade.
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ela pudesse estar presente nem sequer lhe tinha aflorado, agora, essa
idéia surgia e lhe parecia completamente natural! Gradiva era
pompeiana, morava em sua cidade natal e, com toda certeza, na
mesma época que ele. Ele a reconhecia ao primeiro olhar, a visão que
tinha dela era perfeitamente exata, até o mínimo detalhe, mesmo o
seu andar, que ele designava com a expressão lente festinans. Ela
atravessava assim, com o seu andar macio e tranqüilo, o lajeado do
Fórum e se dirigia ao templo de Apolo, em tranqüila indiferença para
com tudo o que a cercava, indiferença que lhe era característica.
Parecia que ela não se apercebia do destino que se abatia sobre a
cidade, absorvida unicamente em seus pensamentos; ele o esquecia
também, pelo menos por alguns momentos, o terrível acontecimento,
e procurava, ao pensamento de que a viva realidade da moça fosse
desaparecer em breve, gravar o mais profundamente possível a sua
imagem na memória. Mas a todo momento lhe vinha à mente que se
ela não fugisse rapidamente, tornar-se-ia vítima da catástrofe geral, e
um terror violento arrancou dele um grito de aviso. Ela o ouviu, pois
voltou a cabeça em sua direção, de tal modo que ele viu o rosto um
tanto de lado, mas expressando uma incompreensão total; sem mais
prestar atenção, ela retomou o caminho no mesmo rumo anterior. Seu
rosto descoloriu-se como se ela se tivesse transformado em mármore;
ela continuou ainda seu caminho até o pórtico do templo, mas, aí
chegando, sentou-se entre as colunas, sobre um degrau onde
lentamente encostou a cabeça. Agora, os lapilli caíam em tal número
que se pareciam com uma cortina completamente opaca. Apressando-
se na direção dela, ele encontrou o caminho do local onde ela havia
desaparecido de sua vista, e lá estava ela deitada, sobre o grande
degrau, protegida pela sa-
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liência do telhado. Parecia dormir, estendida, mas não respirava mais;
os vapores do enxofre evidentemente a tinham sufocado.
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são, mas não conseguia, fazendo uso da razão, evitar a idéia de que
Gradiva tinha vivido em Pompéia e lá fora sepultada no ano de 79.
Sua primeira hipótese se transformava, ao contrário, em convicção, e
esta se unia aos precedentes. Ele olhava melancolicamente, na parede
do quarto, o antigo baixo-relevo, que tinha ganhado para ele uma
nova importância. Era, em certa medida, um monumento funerário,
no qual o artista havia conservado para a posteridade a imagem da
mulher que tinha deixado a existência numa idade tão jovem. Mas
quando a olhava com o espírito bem desperto, a expressão de toda sua
atitude não deixava nenhuma dúvida: de fato ela tinha se deitado, na
noite fatal, para morrer, com uma calma semelhante à que
demonstrara no sonho. De acordo com o antigo provérbio, os
favoritos dos deuses são aqueles que eles fazem com que deixem a
terra na flor da idade.
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tempo: outra coisa os solicitava. Ele percebia agora apenas que não
tinha notado, em particular, se Gradiva, viva, andava assim como a
representava o baixo-relevo e, pelo menos, se andava de modo
diferente das mulheres de hoje. Isso era bem surpreendente, já que
era a origem do interesse científico que ele tinha pelo baixo-relevo,
mas se explicava, por outro lado, pela emoção que sentira diante do
perigo de morte que a ameaçava.
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obesa, puxou-o pela manga e, fazendo-o parar, disse-lhe, meio rindo:
O riso que estourou à sua volta lhe confirmou que não estava em
trajes dignos de se apresentar em público e o convenceu de que tinha
se dirigido para fora do quarto sem considerações. Isso o atemorizou,
porque se preocupava com a aparência e, abandonando seus projetos,
voltou rapidamente para o apartamento. Os sentidos perturbados pelo
sonho eram ainda, evidentemente, joguete de falsas aparências, pois a
última coisa que ele notou foi que os risos e gritos por um instante
fizeram a jovem voltar a cabeça e ele jurava ter visto, não um rosto
desconhecido, mas aquele mesmo que Gradiva mostrara quando o
tinha olhado no sonho.
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o pássaro. Com efeito, o jovem arqueólogo não tinha nascido na
liberdade da natureza nem tinha sido criado nela, mas ao contrário,
desde seu nascimento tinha sido fechado pelas grades da gaiola com a
qual o cercara a tradição familiar, a boa educação e as disposições
elaboradas pelos outros em relação a ele. Desde a tenra infância, não
havia dúvida, na casa de seus pais, enquanto filho único de um
professor de universidade que tinha feito descobertas relativas à
antiguidade, tinha sido destinado a conservar, e se possível aumentar,
o lustro do nome de seu pai, seguindo o mesmo caminho, e via a
sucessão nessa carreira como tarefa evidente para o seu futuro. Tendo
ficado só após a morte dos pais, ateve-se fielmente a essa idéia; fez a
viagem obrigatória à Itália depois de passar por excelentes exames de
filologia e abundantemente contemplar os originais das obras-primas
da escultura antiga, das quais até então tinha visto apenas
reproduções. Em nenhum outro lugar poderia encontrar algo mais
instrutivo que as coleções de Roma, Nápoles e Florença, e podia
felicitar-se por ter utilizado o tempo de sua estada tirando o maior
proveito para a sua ciência. Voltou ao seu país inteiramente satisfeito,
para mergulhar nos estudos com as novas aquisições. Não lhe ocorria
senão vagamente que afora os objetos que testemunhavam um
passado longínquo, pudesse existir um presente em torno dele. O
mármore e o bronze não eram para ele matérias mortas, mas a única
coisa realmente viva, a que exprimia o valor e a razão de ser da
existência humana. Assim ele se mantinha entre suas paredes
cobertas de livros e de quadros, sem necessidade de qualquer
relacionamento com os outros homens, pelo contrário, evitando-os,
como se constituíssem uma pura perda de tempo, resignando-se, no
máximo, contra a sua vontade, ao tributo inevi-
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tável de algumas obrigações mundanas, às quais era constrangido
pelas antigas relações de sua família. Mas se sabia que ele freqüentava
esse tipo de reunião sem ver e sem ouvir o que se passava à sua volta,
que ele ia embora a qualquer pretexto, logo depois do almoço ou do
jantar, se fosse possível, e que jamais cumprimentava na rua uma
pessoa que tivesse estado à mesma mesa com ele. Tudo isso não
permitia que ele fosse visto sob prisma muito favorável, sobretudo
pelas jovens mulheres, pois se acontecia de encontrar-se com uma
delas, mesmo que, por exceção, tivesse trocado com ela algumas
palavras, ele a olhava como uma estranha figura desconhecida e não a
cumprimentava.
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condoía dele, acudindo de novo à janela. Era ao mesmo tempo afetado
pelo sentimento de que também a ele faltava qualquer coisa, sem que
pudesse dizer com certeza o que era: meditar sobre este último ponto
de nada lhe servia; o ar leve da primavera, os raios do sol, o espaço
perfumado lhe punham no espírito um sentimento vago e o
conduziam à comparação — também ele se encontrava entre as grades
de uma gaiola. Mas logo lhe veio à mente uma idéia que o consolou,
que sua situação era infinitamente melhor que a do canário, pois
possuía asas que nada impedia de voarem rumo à liberdade quando
tivesse vontade.
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Pouca gente tem a experiência de, sendo jovem, rica e independente,
ir da Alemanha à Itália, pois as pessoas que possuem esses três
privilégios nem sempre têm acesso ao sentimento de tal beleza.
Principalmente porque tais pessoas, e infelizmente é o que ocorre na
maioria dos casos, fazem essa viagem a dois durante os dias e as
semanas que se seguem a seus casamentos; elas não permitem que
nada passe por seus olhos sem expressar seu contentamento através
de inúmeros epítetos superlativos, mas, no final das contas, nada
trazem de volta além do que poderiam ter descoberto, sentido e
saboreado se tivessem ficado em casa. Esses casais têm o hábito de
voar por sobre os Alpes na direção contrária à dos pássaros
migradores.
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como aquelas lhe parecia ainda mais misterioso. Cada vez que erguia
a cabeça era obrigado a deixar seu olhar cair sobre o rosto de uma
delas e não encontrava nenhum detalhe que desse prazer ao olho por
sua forma agradável ou que exprimisse uma alma terna ou
espirituosa. Com certeza lhe faltava algum padrão para avaliá-los, pois
não se pode comparar o sexo feminino contemporâneo com a sublime
beleza das obras antigas, mas ele tinha a vaga sensação de que não era
responsável pela injustiça desse método e de que esses rostos não
possuíam algo que ele tinha o direito de exigir no dia-a-dia. Também
refletiu durante algumas horas acerca da atitude extraordinária dos
homens e chegou à conclusão de que, se dentre todas as loucuras
humanas, o primeiro lugar cabe sempre ao casamento, como a maior
e a mais inconcebível, conviria, no entanto, reservar o cetro da
loucura a essas absurdas viagens de lua-de-mel à Itália.
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mene um azul úmido que nunca tinha notado na superfície de água
nenhuma. Veio-lhe à mente que a estrada estava cercada dos dois
lados por uma natureza que lhe era estranha, como se tivesse sido
obrigado a atravessá-la na luz de um crepúsculo perpétuo ou durante
uma chuva cinzenta e a visse pela primeira vez sob cores opulentas
douradas pelo sol. Às vezes, se surpreendia com um desejo do qual
não havia suspeitado até então; o de descer e poder encontrar o
caminho que deveria fazer a pé, para tal ou tal lugar, porque lhe
parecia que alguma coisa particular e de certa forma misteriosa ali se
ocultava. Mas não se deixava seduzir por sugestões tão loucas, o
direitíssimo o conduzia direto a Roma, onde o acolheu, mesmo antes
de sua chegada, todo o mundo antigo, com as ruínas do templo da
Minerva Medica. Tendo deixado a gaiola cheia de obstáculos e
atingido a liberdade, estabeleceu-se primeiramente num hotel que já
conhecia, a fim de poder procurar sem pressa um apartamento
particular a seu gosto.
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do vinho castelli romani que deviam, muito nitidamente, a troca de
sentimentos em alemão do norte.
— Meu adorável Augusto!
— Minha adorável Greta!
— Outra vez um para o outro!
— Sim, enfim sós!
_ Ainda devemos nos preocupar com amanhã? _ Veremos no
Baedeker à hora do café da manhã o que nos falta fazer.
— Meu Augusto querido, você me agrada mais que o Apolo do
Belvedere.
— Eu pensei a mesma coisa, minha doce Greta, você é muito mais
linda que a Vênus Capitolina.
_ O vulcão que vamos escalar fica perto daqui?
_ Não, para chegar lá, acho que teremos de fazer uma viagem de trem
de algumas horas.
— Se ele começasse a entrar em erupção exatamente no momento em
que nós estivéssemos no meio, o que você faria?
_ Não teria outra idéia senão a salvar e tomaria você nos braços,
assim.
— Não se fira com um alfinete!
_ Mas eu não posso imaginar coisa mais doce que derramar sangue
por você.
— Meu querido Augusto!
— Minha adorável Greta!
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jeto qualquer. Devia ser um carro ou carroça no qual a iria levar, pois
dali provinha um rangido. Esse evento mitológico não surpreendia
muito o jovem arqueólogo, mas o que lhe parecia digno de atenção era
o fato de o casal não empregar o grego, mas o alemão, e de ele os ouvir
dizer um tempo depois, quase retomando consciência:
Alguma coisa, com efeito, havia mudado nele, sem que ele pudesse
dizer o quê, pois de novo era presa daquele sentimento
particularmente angustiante de que estava preso em uma gaiola que,
desta vez, chamava-se Roma. Quando abriu a janela, dúzias de
mercadores lançaram a seu ouvido gritos ainda mais agudos que em
sua Alemanha natal. Ele nada tinha feito além de vir de uma massa de
pedras cheia de barulho a outra, e uma apreensão inquietante e
misteriosa o afastava das coleções de antiguidades, onde desejava
reencontrar-se com o Apolo do Belvedere e a Vênus Capitolina. Do
mesmo modo, depois de uma breve deliberação, abandonou seu
projeto de procurar para si um apartamento, fez rapidamente a mala e
tomou o trem para ir adiante, mais para o sul. Fez essa viagem, para
evitar os casais insepará-
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veis, na terceira classe, esperando, por outro lado, ter a companhia
daqueles tipos do povo italiano que antigamente serviram de modelo
às obras de arte, coisa de que tiraria proveito para a ciência que
estudava. Mas não viu nada além da sujeira popular, o fedor
assustador dos charutos da região, uns homenzinhos tortos
gesticulando braços e pernas e umas mulheres perto das quais aquelas
que viu emparelhadas com seus compatriotas lhe pareciam, quando as
revia na memória, deusas do Olimpo.
Dois dias depois, Norbert Hanold estava vivendo num quarto meio
duvidoso, balizado de camera no Hotel Diomedes, na frente do
Ingresso, escavações de Pompéia guardadas por eucaliptos. Tivera a
intenção de passar um bom tempo em Nápoles para aí estudar de
novo com cuidado os afrescos e as esculturas do Museo Nazionale,
mas lhe ocorreu a mesma coisa que em Roma. Na sala onde se
reúnem os utensílios do lar de Pompéia, viu-se no meio de uma
nuvem de vestidos femininos de viagem da última moda que, sem
dúvida, sucederam imediatamente a virginal auréola dos vestidos de
noiva em cetim, seda ou gaze. Cada uma das mulheres que os vestia
estava presa ao braço de um companheiro mais jovem ou mais idoso
que ela, de roupa igualmente impecável, e o discernimento
recentemente adquirido por Norbert, numa espécie de ciência que ele
havia até então ignorado, tornou-se tal que ao primeiro olhar reco-
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nheceu que todos eram Augusto e que todas eram Greta. Mas, em
pleno dia, o clima geral de sua conversa tinha se modificado. A
presença de ouvintes fazia-os acalmarem-se e baixar o tom.
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ser, poderemos ir amanhã a Capri, meu amor. Dizem que é tudo uma
beleza, e na admirável luz da caverna azul enfim eu conseguiria ver
toda a perfeição do grande prêmio que tirei na loteria da sorte.
— Olha, se alguém nos ouve, me dá vergonha. Mas onde você me levar
tudo estará bem e será sempre assim posto que você estará do meu
lado.
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estava ele instalado em uma carozella que o levava rapidamente
através de Portici e Resina! Viajava por uma estrada que parecia tão
magnificamente ornada como a de um conquistador da antiga Roma:
à direita e à esquerda, em quase toda casa, estendiam-se como que
uns tapetes amarelos. Era, suspensa, pasta da Napoli em abundância,
chamada de macaroni, vermicelli, spaghetti, canelloni e fidelini,
conforme a grossura, a iguaria nacional à qual a fumaça gordurosa das
tascas, as nuvens de poeira misturadas às moscas e pulgas, as escamas
de peixe que voavam no ar, o fumo das chaminés e os outros fatores
diurnos e noturnos davam todo o sabor de seu gosto especial.
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pois de terem, permanecido dois mil anos numa mortalha de cinzas.
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proteger através de uma atitude prudente. Mas, contra a mosca
comum, não havia nenhum meio de proteção e ela aborrecia, ela
paralisava, ela acabava, enfim, no homem, com a inteligência, a
capacidade de trabalho e de pensamento, todos os impulsos
superiores e todos os sentimentos sublimes. Não era a necessidade de
saciar sua fome, nem a sede da chacina que a possuíam, mas apenas o
desejo diabólico de atormentar. Era a coisa em si na qual o mal
absoluto havia encontrado sua expressão e realização. Como o
scacciamosche etrusco — um tubo de madeira ao qual estava preso
um feixe de finas correias de couro — comprovava, elas haviam já
expelido da cabeça de Ésquilo os pensamentos poéticos mais
sublimes, haviam induzido Fídias a dar um golpe de martelo mal
dirigido e irreparável, haviam trotado sobre a fronte de Zeus, sobre o
peito de Afrodite e percorrido todos os deuses e todas as deusas do
Olimpo, da cabeça aos pés. Norbert pensou, no mais profundo do seu
ser, que era preciso, antes de tudo, avaliar o mérito de um homem
pelo número de moscas que ele tivesse podido, ao longo de sua vida, a
título de vingador da raça humana desde os tempos mais remotos,
aniquilar, transpassar, queimar, e extinguir em hecatombes
cotidianas.
Mas aqui, para conquistar essa glória, a arma necessária lhe faltava, e
da mesma forma como o maior herói da antiguidade, vendo-se só, não
teria podido fazer outra coisa senão fugir diante das vulgares
adversárias, que lhe eram cem vezes superiores em número, assim
Norbert fugia, ou melhor, deixava o seu quarto. Uma vez fora dele, se
deu conta de que o que havia se passado hoje aconteceria em maior
escala amanhã. Pompéia não era, ademais, o lugar tranqüilizante e
reconfortante que ele desejava. Além disso, a essa idéia se associava
vagamente uma
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outra, a de que o seu descontentamento não era apenas provocado
pelo que o cercava, mas vinha também um pouco dele mesmo. Os
tormentos que as moscas lhe causavam sempre lhe tinham sido
insuportáveis, mas não o haviam deixado, até então, num tal estado
de furor. A viagem o havia, incontestavelmente, excitado e deixado
com os nervos à flor da pele, estado cuja origem era, sem dúvida,
devido à estafa e à atmosfera fechada do inverno. Sentia-se de mau
humor, faltava-lhe algo que não podia compreender. E esse mau
humor ele o levava consigo aonde fosse. Os jovens casais e as moscas
que o haviam rodeado em massa não eram, nem uns, nem outras,
feitos para tornar a vida de ninguém agradável. Todavia, se não queria
se deixar envolver por uma nuvem espessa de fatuidade, não podia
dissimular a si próprio que se conduzia como eles, sem quê nem
porquê, surdo e cego, a torto e a direito pela Itália, com uma faculdade
de se distrair muito menor. Sua companheira de viagem, a ciência,
tinha muito, na verdade, de uma velha trapista, não abria a boca
senão quando se dirigia a ela, e ele parecia estar bem perto de
esquecer com que língua havia podido comunicar-se com ela.
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ca que se elevava da cratera do Vesúvio e revestia de púrpura os
cumes e os recortes do monte Sant'Ângelo. Soberbo e solitário, o
monte Epomeo se erguia por cima do mar azul e cintilante onde
faiscavam fagulhas de luz e de onde surgia, como uma misteriosa
construção titânica, a silhueta sombria do cabo Misene. Onde quer
que o olhar pousasse, descobria um quadro maravilhoso em que o
sublime se aliava à graça, o passado distante ao alegre presente.
Norbert Hanold tinha acreditado aí encontrar aquele desconhecido
para o qual o impelia um desejo indistinto, mas não se encontrava
com a disposição de espírito que esperava. Não havia, no entanto,
sobre essas muralhas abandonadas, nem jovens casais, nem moscas,
para importuná-lo, mas a natureza mesma não estava em condições
de oferecer-lhe o que lhe faltava, quer dentro dele quer fora. Passeou
seus olhos com uma calma próxima da apatia por sobre aquela
profusão de beleza e não lamentou nem um pouco quando o pôr do
sol a fez empalidecer e se apagar. Voltou ao Diomedes tão descontente
como daí havia partido.
Mas como tivesse sido, invita Minerva, aí levado pela sua falta de
reflexão, tomou a decisão, durante a noite, de ao menos tirar algum
proveito científico, ainda que por um dia, da bobagem que tinha feito,
e cedo, tão logo se abriu o Ingresso, tomou o caminho obrigatório que
leva a Pompéia. À sua frente
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e atrás dele, os hóspedes eventuais dos dois hotéis avançavam em
pequenos grupos sob as ordens do inevitável guia, munidos do
Baedeker ou de suas imitações estrangeiras, ávidos de meterem-se em
escavações clandestinas. Tagarelices em inglês ou anglo-saxônicas
ressoavam no ar ainda puro da manhã quase que exclusivamente. Os
jovens casais alemães, lá longe, por trás o monte Sant'Ângelo, se
haviam sentado à mesa para almoçar no seu quartel-general de
Pagano, e se faziam mutuamente felizes com uma doçura e um
entusiasmo bem alemães. Norbert sabia, por experiência própria,
graças a algumas palavras bem escolhidas e a uma gorjeta (de uma
manda), como se desembaraçar do guia, aquele pesadelo, a fim de
poder seguir livremente com suas intenções. Comprazia-se com o fato
de ter uma memória infalível; onde quer que seu olhar caísse,
encontrava um lugar exatamente semelhante àquele cuja lembrança
guardava, como se o tivesse gravado na véspera em sua memória,
depois de ampla contemplação. Essa observação, que não cessava de
fazer, o levava a pensar que bem podia dispensar a ida a esses lugares;
e assim, uma notável apatia tomou sua vista e seu espírito, como já lhe
havia acontecido na tarde que havia passado sobre as muralhas. Ainda
que percebesse várias vezes, ao levantar os olhos, o cone do Vesúvio e
seu penacho de fumo se destacando sobre o céu azul, não lhe veio
sequer uma vez ao espírito, o que não deixa de ser bastante singular, o
sonho que ele havia tido pouco tempo antes e no qual havia
testemunhado o sepultamento de Pompéia na erupção de 79. Depois
de ter caminhado durante horas, sentiu-se fatigado e meio sonolento,
mas não teve a impressão de se encontrar em um cenário de sonho.
Tinha ao seu redor apenas velhos pórticos, muros e colunas do maior
interesse arqueológico mas sem ne-
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nhum sentido esotérico propriamente dito; não passavam de um
grande conjunto de ruínas devidamente mantidas, mas por isso
mesmo bastante insípidas. E embora a ciência e a fantasia sejam
normalmente bem antagônicas, hoje pareciam se ter combinado para,
de alguma maneira, privar Norbert Hanold de sua ajuda,
abandonando-o completamente ao curso de sua ociosa caminhada.
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alados ou rastejantes das. ruínas, ele exercia todo o seu ardor vertical
com menos amabilidade sobre a tez ocidental das Misses e das
Mistresses. E é preciso mesmo acreditar nessa relação de causa e
efeito pois durante a hora que acabava de se passar, os Charming
haviam diminuído consideravelmente, os Shocking, aumentado
igualmente, e os Oh! masculinos, provenientes de duas carreiras de
dentes ainda mais divergentes do que anteriormente, se aproximavam
de maneira inquietante do bocejo.
Era curioso constatar como tudo o que havia sido outrora a vila de
Pompéia tomava um outro aspecto, ao mesmo tempo em que se
operava esse êxodo. Não era, certamente, uma cidade viva, mas nesse
momento parecia se petrificar numa rigidez cadavérica. No entanto,
daí emanava qualquer coisa que dava a impressão de que a morte se
punha a falar, embora não de uma maneira perceptível aos ouvidos
humanos. Ê verdade que aqui e ali ressoava uma espécie de
murmúrio, que parecia sair das pedras, só revelado pelo doce sussurro
do vento do sul, o antigo Atabulus, que dois mil anos antes tinha
assim zunido em volta do templo, dos mercados e das casas, e que
agora brincava levemente com as ervas verdes e brilhantes que
cresciam sobre as ruínas baixas das muralhas. Às vezes esse vento,
vindo da costa da África, se precipitava aqui lançando a plenos
pulmões um assovio louco. Ele hoje não estava assim, e abanava com
doçura seus velhos amigos de volta à luz, mas continuava um filho do
deserto e seu hálito queimava, mesmo se soprava com extrema
doçura, tudo o que encontrava no caminho. O sol, seu pai,
eternamente jovem, o ajudava nessa tarefa, reforçando seu sopro
ardente, o supria nos lugares que ele não podia atingir, e derramava
sobre todas as coisas seu esplendor resplandecente, ofus-
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cante e fremente. Ele havia retirado com uma lâmina de ouro a pouca
sombra desatada que subsistia rente às casas dos semitae e dos
crepidines via-rum — assim se chamavam antigamente as calçadas.
Jogava em profusão feixes de raios em todos os vestibula, atria,
peristyla e tablina, e lá onde um telhado saliente impedia seu acesso,
encontrava um jeito de jogar por baixo dele raios esparsos. Mal
conseguia algum canto para proteger-se da onda de luz e obter uma
penumbra prateada. Cada rua se estendia entre as antigas paredes
como se aí tivessem posto para secar grandes peças de fazenda de
brancura resplendente E, sem exceção, tudo estava mudo e calmo: os
viajantes fanhosos e barulhentos enviados pela América e pela
Inglaterra desapareceram todos, até o último, e mesmo o arremedo de
vida que haviam emprestado até este instante os lagartos e as
borboletas, se dissipou. Pareciam ter abandonado o silencioso campo
das ruínas, o que em realidade não havia, sem dúvida, acontecido,
mas o olho não via mais um só movimento. Assim também,
antigamente, há milhares de anos, acontecia com os animais seus
ancestrais, os das montanhas e os dos rochedos, era um costume,
enquanto o grande Pan repousava, eles também, para não incomodá-
lo, se estendiam sem moverem-se ou pousavam aqui e ali, fechando as
asas. E era como se se submetessem aqui, mais rigorosamente ainda,
à lei da calma tórrida e sagrada do meio-dia, desta hora de espectros,
quando a vida devia calar-se e esconder-se porque os mortos, a esta
hora, despertavam e começavam a conversar na língua muda dos
fantasmas. Não era tanto a visão que ficava chocada com este novo
aspecto das coisas, mas o sentimento, ou um sexto sentido sem nome,
contudo este ficava tão fortemente impressionado e de uma maneira
tão decisiva, que a pessoa que o possuísse não poderia
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se subtrair ao efeito que ele causava. Na verdade, era pouco provável
que algum, ou alguma, dos honestos turistas, que já se ocupavam em
mergulhar na sopa a colher, no interior de um dos dois hotéis situados
perto do Ingresso, fosse dotado desse sentimento, mas isso pouco
importava, pois a natureza havia sido pródiga em tal dom para
Norbert Hanold, destinado a sofrer seus efeitos. Sem dúvida, não o
exercia por sua própria vontade, pois não desejava senão uma coisa:
poder estar tranquilamente sentado no seu gabinete de trabalho, um
bom livro nas mãos, em vez de estar metido, sem razão, nessa viagem
de primavera. Entretanto, mal havia tido tempo de penetrar no
coração da cidade, ao voltar da porta de Hércules pela Via dos
Túmulos, tendo acabado de tomar, sem pensar, um estreito vicolo à
esquerda da Casa de Salusto, quando aquele sexto sentido se
manifestou nele. Ou melhor, não foi bem assim, ele acabava de ser
transportado, em função desse sentido, a um estado de espírito
estranhamente sonhador, intermediário entre a consciência lúcida e a
inconsciência. O silêncio morto e inundado de luz estendia-se à volta
dele, como se o mistério se escondesse por toda parte sem um sopro, a
tal ponto que seu próprio peito não ousava respirar. Encontrava-se no
cruzamento do Vicolo di Mercúrio com a Strada di Mercúrio. Essa
avenida bastante larga que corta a ruela se estendia a perder de vista à
sua direita e à sua esquerda. Pelo patronato do deus dos mercados,
esse lugar deveria ter sido outrora o local do comércio e da indústria,
como testemunham as esquinas mudas. Em diversos pontos, pelos
lados, se abriam tabernas, lojas guarnecidas de mesas cobertas com
mármore quebrado; aqui, a arrumação indicava uma padaria, ali,
muitos potes grandes, barrigudos, indicavam comércio de óleo e
farinha. Mais adiante, graciosas ânforas pre-
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gadas às prateleiras de uma mesa indicavam que havia funcionado
uma venda de vinho na peça vizinha. Toda noite os escravos e
servidores das vizinhanças sem dúvida vinham ali buscar a caupona,
em suas bilhas, o vinho de seus senhores. Via-se, com efeito, que uma
multidão de passos havia gasto a inscrição de pedrinhas de mosaicos
incrustados na semita diante da loja, tornando-a ilegível. Ela, sem
dúvida, teria cantado aos passantes o louvor de vini praecellentis.
Sobre a parede em frente, à altura da metade de um homem apenas,
um graffito, com certeza um rabisco de criança, com a unha ou um
prego, comentava esse anúncio, talvez ironicamente, dizendo que o
vinho do restaurante devia sua qualidade incomparável à diluição em
água, que não era mínima.
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da árvore da ciência, sem nada dar a perceber da essência e de seu
verdadeiro conteúdo, sem dar o prazer de sua íntima compreensão. O
que a ciência professava era uma visão arqueológica sem sentido e o
que ela falava, uma língua morta para uso dos filólogos. Ela não
permitia apreender com a alma, sentimento, o coração, pouco importa
o nome. Ao contrário, aquele que aspirava a essa compreensão sofria,
único ser vivo no silêncio abrasado do meio-dia por permanecer aqui
entre os restos do passado, para não mais ver com os olhos do corpo,
para não mais ouvir com os ouvidos carnais. Nesse momento, de
repente parte disso surgia, sem fazer, porém, um movimento, e
começava a falar sem emitir um único som. Nesse momento, o sol
tirava de seu entorpecimento sobre as pedras velhas, um arrepio
abrasado as perseguia, os mortos despertavam e Pompéia recomeçava
viver.
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que se estendiam dessa casa ao outro lado da Strada di Mercúrio
avançava, no seu passo leve, Gradiva.
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realidade. Isso se viu pelo efeito que fez ao se aproximar da última
laje, sobre a qual estava estendido, na luz quente do sol, um grande
lagarto, cujo corpo de ouro e malaquita resplendia distintamente nos
olhos de Norbert Hanold. Quando os passos de Gradiva
aproximaram-se do animal, ele se precipitou de um só golpe para
baixo da pedra e fugiu num movimento ondulado e macio por entre o
pavimento cintilante da rua. Gradiva, após ter atravessado as lajes
com tranqüila agilidade, continuou o seu caminho. Norbert agora a
via de costas — na calçada da frente. Ela parecia se dirigir à casa de
Adónis, que se encontrava diante dela, mas, depois de uma breve
parada, continuou a caminhar, tendo sem dúvida mudado de idéia,
pela Strada di Mercúrio. Não havia mais, nessa direção, outra
residência célebre, a não ser, à esquerda, a Casa di Apollo, assim
chamada devido às numerosas figuras de Apolo aí descobertas, e logo
voltou à mente de Norbert, que a observava, que ela já tinha elegido o
pórtico do templo de Apolo para abrigar seu sono eterno. Era,
portanto, provável, que um laço qualquer a unisse ao culto do deus do
sol e que ia à casa que lhe era consagrada. No entanto, ela logo parou
outra vez. Também aí as lajes iam de um lado a outro da rua e ela
passou de novo para a direita. Mostrou assim a Norbert a outra face
de seu perfil e lhe deu nesse momento uma impressão diferente.
Agora, escondia a mão esquerda, que segurava o vestido, e mostrava o
braço direito que, ao invés de dobrar-se, pendia reto. Mas a essa
distância pouco maior, a faísca dos raios de sol a envolvia num véu
mais denso, não permitindo que se distinguisse onde ela poderia ter
desaparecido subitamente, ao passar diante da casa de Meleagro.
Norbert Hanold ficou parado no lugar, sem poder se mexer. Mas tinha
nos olhos, nos do corpo
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desta vez, a visão de sua imagem que se distanciava. Retomou
profundamente a respiração pela primeira vez, pois até esse momento
seu peito esteve quase que paralisado. Entretanto, ao mesmo tempo,
seu sexto sentido, em detrimento de todos os outros, o dominou
completamente. Acabava de ver diante de si uma criatura real ou um
produto da imaginação? Não sabia se sonhava ou se estava acordado,
e em vão tentava descobrir. Nesse momento um arrepio muito
peculiar lhe percorreu bruscamente a espinha. Não via nada, não
entendia nada, mas havia nele qualquer coisa misteriosa que o fazia
sentir que Pompéia em volta dele começava a reviver naquela hora
espectral do meio-dia e que Gradiva, ressuscitada acabava de entrar
na casa em que vivia antes daquele dia fatal em agosto de 79.
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O colchete polido fecha com o alfinete o alto de sua túnica.
Seus cabelos estão presos sem arte num único nó.
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sala grande e silenciosa algo de solene. Via-se no centro uma piscina
em forma de fonte, rodeada de um belo cenário. A julgar, por todos
esses detalhes, a casa devia ter sido domicílio de um homem
conhecido, de boa educação e apreciador das belas-artes.
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buindo os sucos colhidos à noite em seus cálices vermelhos e que
provocavam nos espíritos um sonho crepuscular. Esse antigo
conquistador dos deuses e dos homens parecia ter tocado Norbert
com a sua varinha invisível que dá sono. Ele acabava de penetrar no
oecus pelo pórtico do peristilo e entrou não num pesado torpor, mas
num sonho leve e amável que envolvia vagamente a consciência.
Permaneceu, no entanto, senhor de seus passos. Andava ao longo das
muralhas da antiga sala de festas onde o olhavam velhos afrescos
representando Páris dando a maçã e um sátiro que, com uma víbora
na mão, assustava uma jovem bacante.
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sobre os joelhos qualquer coisa branca que ele era incapaz de
distinguir, mas que lhe parecia ser uma folha de papiro, onde se
destacava o luar vermelho de uma papoula.
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— Teu pai é um nobre cidadão de Pompéia, e de origem latina?
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Já não lhe parecia nada curioso que ela falasse alemão e que
pronunciasse as vogais segundo o costume moderno. Como agira
dessa maneira ele estava persuadido de que não podia ser de outro
modo e respondeu rapidamente:
— Não, não nos falamos, mas eu te chamei quando te deitavas para
dormir, e fiquei perto de ti. Teu rosto estava calmo e belo como o
mármore. Oh! Peço-te, pousa-o outra vez no degrau como então.
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do esposo foi tamanha que ela própria se imolou aos deuses
subterrâneos.
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tinha durado pelo menos algumas horas, e a frescura do ar não teve
nenhum efeito sobre o seu estado de espírito e seus sentidos. Voltou
ao hotel quase no mesmo estado em que o deixou. Encontrou os
outros hóspedes ocupados com a cena, fez-se servir num canto de sua
sala de jantar um fiaschetto de vinho do Vesúvio e se pôs a observar o
rosto dos comensais e a ouvir suas conversas. Parecia indiscutível, de
acordo com a mímica e com a conversa deles, que nenhum tinha
encontrado uma pompeiana morta, ressuscitada ao meio-dia por um
instante, nem falado com ela. Aliás isso se poderia supor de imediato
pois, nesse momento, todos se encontravam no seu pranzo. Pouco
depois, sem motivo e sem saber por que, Norbert foi ao concorrente
do Diomedes, o Hotel Suíço, sentou-se do mesmo modo num canto, e
depois de ter pedido meia garrafa de Vesúvio, porque era preciso
pedir alguma coisa, entregou-se às mesmas observações, ouvindo e
observando. Elas lhe deram o mesmo resultado, mas fizeram ao
mesmo tempo com que conhecesse de vista todos os turistas
atualmente hospedados em Pompéia. Aí estava um aumento dos seus
conhecimentos que ele, absolutamente, não podia considerar como
enriquecimento, mas tirava certa satisfação do fato de que não havia
mais nenhum hóspede dos dois hotéis com quem não tivesse tido uma
relação pessoal, ainda que unilateral, vendo e ouvindo. Bem
entendido, não lhe tinha vindo ao espírito a hipótese absurda de que
poderia muito bem ter encontrado Gradiva num dos hotéis, mas ele
podia jurar que nenhuma das pessoas ali hospedadas tinha com ela a
mínima parecença, por mais longínqua que fosse. Enquanto fazia
essas observações, entornava de quando em quando o conteúdo de
seu fiaschetto no copo, bebendo aos golinhos. Quando a garrafa por
fim se esvaziou, levantou-se para voltar para o Dio-
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medes. O céu estava agora semeado de uma infinidade de estrelas
cintilantes e deslumbrantes. Elas não estavam ordenadas
imovelmente, como de hábito; parecia a Norbert Hanold que Perseu,
Cassiopeu, Andrômeda e todos os vizinhos e vizinhas se inclinavam
ligeiramente aqui e ali, dançavam lentamente em círculo. Do mesmo
modo, no chão, lhe parecia que as silhuetas negras dos cumes das
árvores e dos edifícios não ficavam completamente retas. Esse
fenômeno, é verdade, não tinha nada de assustador nessa região
sempre abalada desde as épocas mais remotas, pois o fogo
subterrâneo que espera por todos os lados com impaciência para fazer
erupções encontra uma saída pelas parreiras e pelos cachos de uvas
com que fazem o- Vesúvio, esse Vesúvio que não era uma das bebidas
habituais de Norbert Hanold todas as noites. Mas ele se lembrava de
que, ainda que atribuindo ao vinho um pouco do torvelinho dos
objetos em volta, tudo havia já girado em torno dele ao meio-dia, e de
que não era um fenômeno novo para ele, mas a sequência natural do
que havia acontecido anteriormente. Subiu à sua camera e aí
descansou algum tempo, diante da janela aberta, a contemplar o cone
do Vesúvio, sobre o qual não se via, naquele momento, o penacho de
fumaça, mas que envolvia uma espécie de manto de púrpura escura
que parecia se agitar de um lado para outro. Depois o jovem
arqueólogo se despiu sem acender a luz e procurou sua cama às
apalpadelas. Mas quando aí se estendeu, não era mais a cama do
Diomedes, mas um campo vermelho de papoulas que se fechava sobre
ele como uma almofada fofa e aquecida pelo sol. A Musca domestica
communis, sua adversária, chegava ao número de meia centena sobre
a muralha, por cima de sua cabeça, mas elas estavam domadas pela
obscuridade que as mergulhava numa letargia embotada. Uma só
dentre
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elas, tirada da sonolência pela necessidade de atormentar, se pôs a
zumbir em volta do seu nariz. Mas ele não a identificou com o mal
absoluto, com o flagelo eterno que aflige a humanidade há milénios,
ele a tomou, os olhos fechados, por uma cleópatra vermelha e dourada
ocupada em adejar à volta dele.
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forma de um branco prateado brilhante, que sua vista, bastante baixa,
não permitia distinguir claramente. Mas ele se dirigiu
involuntariamente até o objeto e descobriu uma haste de asfódelo
inteiramente coberta de campânulas brancas. O vento havia trazido a
semente do exterior. Era a flor do mundo subterrâneo e ele pensou
que ela havia brotado num tal lugar especialmente para ele. Colheu a
elegante haste e voltou ao lugar onde estava sentado. O sol de maio
estava cada vez mais ardente, se aproximava enfim do meio-dia.
Tomou então a longa Strada di Nola. Esta se estendia vazia num
silêncio de morte, como quase todas as outras. Lá embaixo, na direção
do oeste, todos os visitantes da manhã se apressavam já para a Porta
Marina e os pratos de sopa. O ar em movimento vibrava e no seu
esplendor, Norbert Hanold, seu galho de asfódelo na mão, parecia a
solitária aparição do Hermes Psicopompos, vestido com uma roupa
moderna e pronto para acompanhar ao Hades a alma de um defunto.
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a qual convergiam todos os pensamentos e todas as reflexões: qual a
essência da aparição corporal de um ser como Gr adiva, ao mesmo
tempo morta e viva, embora ela só se revestisse desse último estado
ao meio-dia, à hora dos fantasmas, ou quem sabe somente ontem, ou
ainda uma vez a cada século ou a cada mil anos. De repente, sentiu-se
certo de que sua visita de hoje era inútil. Não encontraria aquela que
procurava porque não se permitiria a ela regressar senão em uma
época em que ele também não pertenceria mais ao mundo dos vivos e
estaria, depois de muito tempo, morto, enterrado e esquecido. Mas
quando caminhava ao longo da muralha onde estava pintado Páris no
momento de dar a maçã, percebeu Gradiva à sua frente, com o mesmo
vestido da véspera, sentada sobre o mesmo degrau, entre as mesmas
duas colunas amarelas. Ele não se deixaria enganar por uma fantasia
de sua imaginação, sabia bem que era objeto de uma alucinação que
compunha outra vez como uma ilusão, diante dos seus olhos, o que
ontem ele havia visto na realidade. Mas não pôde se negar a
abandonar-se à vã aparência saída da imaginação. Ficou pregado no
lugar e gritou, sem mesmo se dar conta, num tom queixoso:
Uma tonteira tomou-o. Sentiu que seus pés não o sustentavam mais.
Teve que sentar-se e deixou-se escorregar frente a ela, contra uma
coluna, sobre o degrau de mármore. Ela fixava no rosto dele seus
olhos claros, mas a expressão desse olhar era completamente
diferente da que tinha na véspera, quando se levantou bruscamente
para partir. Qualquer vestígio da possível expressão de aborrecimento
ou recusa havia desaparecido, como se ela houvesse mudado de
opinião e como se a curiosidade e o desejo de saber a tivessem
conduzido àquele lugar. Ela parecia também ter percebido que tratá-
lo cerimoniosamente não convinha nem à sua pessoa nem às
circunstâncias. Havia usado o "tu" que, para dizer a verdade, vinha
aos seus lábios como coisa muito natural. Mas como ele havia ficado
mudo, sem responder sua última pergunta, ela tomou a palavra e
disse:
— Tu me dizias ontem que me havias chamado quando eu me
dispunha a dormir e que havias ficado perto de mim e que meu rosto
se havia tornado parecido ao mármore. Quando é que tudo isso se
passou? Não consigo lembrar-me disso e queria que me explicasses
mais claramente.
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bem, mais ou menos há dois mil anos. Tu vivias já nessa época? Tu me
pareces mais jovem.
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representar uma jovem pompeiana caminhando pela sua cidade natal,
sobre as pedras de uma rua, e seu sonho confirmara essa idéia. Sabia
agora que era esse sonho que o havia incitado a vir de novo à cidade
morta para explorá-la e incumbir-se de descobrir seus rastros. E
ontem quando parara na esquina da rua de Mercúrio, ela caminhava
precisamente como uma imagem bruscamente aparecida diante dele,
sobre as lajes. Parecia encaminhar-se à casa de Apolo. Mas refez seu
caminho e desapareceu em frente à casa de Meleagro.
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Era visível que o interesse dela a levava a esse ponto e ele se pôs a
dizer:
— Eu te peço, se tu queres...
Mas ele parou nesse instante, pois se lembrou com medo, de repente,
de que na véspera ela tinha se levantado bruscamente para partir
quando ele pediu que se deitasse sobre a laje para dormir, como
outrora fizera no templo de Apolo; e ele vagamente associou, em seu
espírito, essa lembrança com o olhar que ela lhe havia lançado ao
partir. Mas agora seus olhos guardavam a mesma expressão calma e
doce e ela disse, como ele não acrescentasse mais nada:
— Foi gentil de tua parte dizer que teu desejo de que alguém fosse
vivo se aplicava a mim... E tu podes, por isso, me pedir o que quiseres,
eu o farei com prazer.
Ela se levantou sem dizer nada, pronta para realizar esse desejo, e
percorreu uma pequena distância entre a muralha e as colunas. Tinha
mesmo aquele passo calmo e flexível que ele tinha gravado no
espírito, em que a planta do pé se elevava quase verticalmente, mas
ele verificou pela primeira vez que ela não tinha sandálias sob o
vestido, que deixava ver seus pés, mas finos calçados claros, cor de
areia. Quando ela retornou e se sentou sem dizer uma palavra, ele
involuntariamente levou a conversação para a diferença que existia
entre os sapatos que ela calçava e aqueles do baixo-relevo. Ela
respondeu:
— Tudo muda com o tempo e, para a época atual, as sandálias não são
cômodas. Ponho estes sapatos que protegem melhor contra a poeira e
a chuva.
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Mas por que me pediste para caminhar diante de ti? Há qualquer
coisa de diferente no meu caminhar? Esse desejo de saber isso, desejo
que ela manifestava de novo, mostrava que não era desprovida de
curiosidade feminina. Ele respondeu então que se tratava da posição
particularmente vertical de seu pé, que se demorava atrás, enquanto
ela caminhava, e acrescentou que havia tentado observar, na sua
cidade natal, a maneira de caminhar de suas contemporâneas durante
várias semanas. Mas suas observações haviam sido frustrantes, exceto
talvez uma só ocasião em que ele havia acreditado perceber a mesma
maneira de caminhar. Ele se havia, sem dúvida, deixado levar, na
confusão da multidão, vítima de uma ilusão, pois havia pensado que
os traços dessa mulher se pareciam um pouco aos de Gradiva.
— Que pena — disse ela —, pois uma tal constatação teria sido, sem
dúvida, de grande interesse científico e, se tu a tivesses efetuado,
terias poupado essa longa viagem até aqui. Mas quem é a pessoa de
que falas, quem é essa Gradiva?
— Foi .assim que eu chamei a tua imagem, pois que ignorava até
agora teu verdadeiro nome.
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esgotou. Tu me trouxeste a flor dos túmulos para que ela me mostre o
caminho. Dá-ma, portanto.
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dinário talento artístico, a lembrança do ambiente em que ela havia
outrora vivido. Seus desenhos testemunhavam um grande sentido de
observação finamente desenvolvido, assim como cada palavra sua
mostrava capacidade de raciocínio e idéias inteligentes. Ela deveria
ter se sentado frequentemente perto da mesa adornada com os grifos
e essa era, sem dúvida, para ela, uma recordação particularmente
preciosa. Norbert, segurando o caderno, atravessou mecanicamente o
pórtico e descobriu, no momento em que ia virar-se, uma estreita
abertura na muralha, suficientemente larga, no entanto, para deixar
passar um corpo de uma esbelteza fora do normal para dentro do
edifício contíguo, e, de lá, para o Vicolo dei Fauno, do outro lado da
casa. Parecia-lhe, ao mesmo tempo, muita insensatez sua acreditar
que Zoé-Gradiva se entranhasse pelo solo. Não podia compreender
como ele havia acreditado nisso. Ela tomava o caminho que a levava a
sua tumba. Esta devia encontrar-se na rua dos Túmulos. Precipitou-se
e seguiu apressado a rua de Mercúrio até à porta de Hércules. Mas
quando chegou aí, era já muito tarde. A grande Stirada dei Sepolcri se
estendia vazia, inundada de luz. O máximo que se podia distinguir, na
sua extremidade, por trás da cortina resplandecente dos raios do sol,
era uma sombra ligeira que parecia passar vagamente diante da casa
de Diomedes.
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berta, ou se encontrava, pelo menos, numa nuvem brumosa. Esta não
era, como habitualmente, cinza, morna e melancólica, mas, para dizer
a verdade, era mais uma nuvem alegre, particularmente mesclada de
azul, de vermelho, de marrom, e sobretudo de um branco amarelado e
de um branco de alabastro, onde os raios do sol misturavam fios de
ouro. A nuvem tampouco diminuía a capacidade ótica do olho, ou a
capacidade auditiva do ouvido. Somente o pensamento não conseguia
atravessá-la, e era, no entanto, uma muralha de nuvens cujo efeito
podia ser comparado ao da mais densa bruma. Ao jovem arqueólogo
parecia que lhe administravam todas as horas de uma maneira
invisível e, ademais, mal perceptível, que um fiaschetto di Vesuvio
girava incansavelmente no seu cérebro. Procurava libertar-se disso
aplicando a si mesmo o antídoto, bebendo muita água e fazendo
caminhadas tão longas quanto possível. Seus conhecimentos médicos
não eram muito extensos, mas o faziam diagnosticar que seu estado
estranho se devia a um afluxo de sangue muito forte à cabeça, o que
estaria relacionado talvez com uma aceleração da atividade do
coração, pois sentia, por outro lado, algo até aqui totalmente
desconhecido: um choque rápido, de tempos em tempos, contra a
parede do peito. Além disso, seus pensamentos, se não podiam se
exteriorizar, não ficavam inativos no seu interior, ou, mais
exatamente, não havia no seu espírito senão um pensamento, seu
dono exclusivo, e cuja atividade era tal que, mesmo sendo perpétuo,
se tornava vão. Girava em torno da questão de saber que invólucro
físico tinha Zoé-Gradiva, durante sua estada na casa de Meleagro, ou
se, ao contrário, ela não era senão a enganadora ilusão do que havia
sido anteriormente. O fato de que dispusesse de órgãos para falar, de
que pudesse manter um lápis entre os
68
dedos, parecia testemunhar em favor da primeira hipótese dos pontos
de vista da física, da fisiologia e da anatomia. Mas a idéia dominante
em Norbert era a de que, se ele a tocasse, se ele tentasse pôr sua mão
sobre a dela, não encontraria senão o vazio. Um estranho instinto o
impelia a procurar uma certificação, enquanto uma não menor
timidez o impedia, em imaginação, pois ele sentia que a confirmação
de qualquer dessas duas possibilidades tinha alguma coisa de
assustador. A existência física dessa mão o teria amedrontado e a
ausência dessa existência lhe daria um grande desgosto. Esterilmente
absorvido por esse problema, que continuaria sem solução pelo
menos até que uma experiência científica fosse instituída, Norbert foi
conduzido pelo seu longo passeio até à montanha que se eleva acima
de Pompéia e que é o primeiro contraforte da alta cadeia do monte
Sant'Angelo. Aí encontrou, de maneira bastante imprevista, um velho
senhor de barba grisalha que, a se julgar pelos apetrechos de toda
sorte com que estava munido, devia ser um zoólogo ou um botânico
ocupado em pesquisar sobre uma encosta ardentemente ensolarada.
Virou a cabeça para Norbert, no momento mesmo em que este quase
o tocava, olhou-o por um momento com surpresa e lhe disse:
69
com um talo de erva comprido, diante de uma estreita fresta de
rochedo onde se via a cabeça brilhante de um lagarto a espiar. O
zoólogo permaneceu assim, sem se mexer. Norbert passou por trás
dele sem fazer ruído e retomou o caminho pelo qual tinha vindo.
Parecia lembrar-se vagamente de já ter visto a figura do caçador de
lagartos, provavelmente num dos dois hotéis, e a acolhida que ele lhe
dera parecia confirmar isso. O mínimo que se poderia dizer dos
motivos que levavam as pessoas a demorar em Pompéia é que eram
extremamente curiosas e incríveis. Feliz por ter podido se
desembaraçar rapidamente do armador de laços e voltar a pensar no
problema da existência ou da não-existência corporal, sentiu-se no
dever de retornar. Mas um atalho o levou na direção errada,
conduzindo-o à extremidade leste das muralhas da cidade e não a
oeste aonde deveria ir. Absorvido pelos pensamentos, só percebeu seu
erro quando chegou perto de um edifício que não era nem o Diomedes
nem o Hotel Suíço. Entretanto, a construção tinha as indicações de
um hotel. Notou, na vizinhança, as ruínas do grande anfiteatro de
Pompéia e lhe veio à lembrança que existia perto do teatro um outro
hotel, o Albergo dei Sole, que por ser afastado da estação não
conseguia senão um número restrito de hóspedes e, que por essa
mesma razão, era pouco conhecido. Tinha sentido calor durante o
trajeto e sua cabeça não se havia liberado das nuvens que a rodeavam.
Entrou então pela porta aberta e pediu o remédio que acreditava seria
bom contra a congestão, uma garrafa de água mineral. A peça estava
vazia, não se levando em conta as moscas, que se amontoavam em
grande número, e o proprietário, que não tendo o que fazer,
aproveitou a ocasião para puxar conversa e recomendar-lhe sua casa e
as maravilhas, retiradas das escavações, que
70
continha. Fez alusões bem pouco veladas às pessoas em casa de quem
não havia um só objeto autêntico entre os que punham à venda, mas
apenas falsos. Ele, que se contentava com uma coleção menor, pelo
menos não oferecia aos seus clientes senão peças absolutamente
autênticas. Não comprava jamais objetos provenientes de escavações
às quais não tivesse ele mesmo assistido e, em seguida, de seu
discurso se depreendeu que ele estava presente quando se descobriu,
nos arredores do Fórum, um jovem casal de amantes que, na
expectativa da inevitável catástrofe, se havia estreitamente enlaçado
para esperar a morte. Norbert já havia ouvido essa história antes, mas
havia dado de ombros, considerando-a uma fábula saída da
imaginação particularmente fértil de um contador de histórias. Fez de
novo essa observação, mas o proprietário lhe trouxe um broche de
metal coberto de patina que teria sido encontrado, sob os seus olhos,
na cinza, ao lado da jovem. Quando o hóspede do Albergo dei Sole
teve a jóia em suas mãos, sua imaginação dominou-o de tal forma que
a comprou ali mesmo, abandonando todo senso crítico, pelo preço
para inglês que lhe pediam, e deixou logo em seguida o hotel com a
sua compra. Ao virar-se para trás viu, à janela de um dos andares,
uma haste de flores brancas de asfódelos suspensa, mergulhada num
copo de água. Sem que nada de lógico houvesse nisso tudo, a vista
dessa flor dos túmulos lhe pareceu uma confirmação da autenticidade
de sua nova aquisição. Tomou então o caminho que segue ao longo
das muralhas da cidade até a Porta Marina, olhando a jóia com
atenção e timidez, tomado por um duplo sentimento. Não era,
portanto, uma fábula; um casal de amantes fora exumado perto do
Fórum e tinha sido perto do templo de Apolo que ele vira Gradiva se
deitar para dormir o sono da morte. Mas ele a
71
tinha visto em sonho e estava certo agora de que, na realidade, ela
podia ter avançado alguns passos no Fórum e aí haver encontrado
com o homem com quem havia morrido.
Mas a razão ainda era a dona do seu espírito e não deixava reinar sem
controle a imaginação. Faltava-lhe, de qualquer maneira, uma prova
irrefutável de que o broche pertencera a Gradiva e de que fosse
mesmo ela que houvessem encontrado nos braços do jovem. Essa
convicção teve para ele a força de um sopro liberador e, quando
chegou ao Diomedes, com o crepúsculo que caía, seu passeio de
algumas horas e sua boa saúde lhe haviam proporcionado também a
necessidade de se alimentar. Comeu com bastante apetite a refeição
espartana que o Diomedes estava acostumado a servir, apesar de sua
origem ariana, e reparou em dois clientes novos chegados naquela
tarde. Pela postura, pela língua, via-se que eram alemães. Eram um
homem e uma mulher, tinham os dois umas caras jovens, simpáticas e
espirituosas. Não se podia adivinhar que laços os uniam, mas Norbert
deduziu por uma certa semelhança que encontrou entre eles que
deviam ser irmão e irmã. No entanto, os cabelos louros do rapaz se
distinguiam da nuance castanho-clara dos de sua companheira. Ela
trazia no
72
peito uma rosa vermelha de Sorrento, cujo aspecto recordava
qualquer coisa àquele que a observava de um canto da sala, sem que
ele pudesse se lembrar o que era. Era o primeiro casal que encontrava
na viagem que lhe causava uma impressão simpática. Eles se
entretinham diante de um fiaschetto e falavam num tom nem alto
nem confidencial, sem dúvida de coisas tanto sérias quanto alegres
pois, de vez em quando, um ligeiro sorriso lhes subia, nos dois ao
mesmo tempo, aos lábios, tornando-os gentis e dando vontade de
tomar parte na conversa deles ou, pelo menos, a Norbert veio esse
desejo, se ele os tivesse encontrado dois dias antes numa sala povoada
de ingleses e de americanos. Mas ele sentia que o que tinha na cabeça
estava em grande contradição com a atitude natural e alegre do jovem
casal que, evidentemente, não estava envolvido em nenhuma nuvem,
que não meditava, certamente não, sobre a substância de que é feita
uma mulher morta há dois mil anos e que usufruía do momento
presente e da vida, sem se deixar perturbar por um problema repleto
de enigmas. Não correspondendo seu estado ao deles, ele achou que
não saberiam ser uns para os outros de nenhuma valia e, além disso,
tinha bastante medo de travar conhecimento com aquelas pessoas
naquelas condições, porque sentia um vago pressentimento de que
seus olhos claros poderiam penetrar sua fronte, seus pensamentos e
mostrar, pela sua expressão, que eles pensavam não estar ele em toda
a sua razão. Meteu-se então no quarto e ficou, como na véspera,
algum tempo frente à janela, a contemplar o manto de púrpura que, à
noite, revestia o Vesúvio, depois se estirou para dormir. Muito
fatigado, adormeceu logo e teve um sonho estranhamente absurdo:
em algum lugar, sob o sol, Gradiva estava sentada e fez de um talo
de erva um nó escorregadio para prender
73
um lagarto dizendo: "Eu te peço, não te movas, minha colega tem
razão, o procedimento é verdadeiramente bom, e ela o tem aplicado
com pleno sucesso". No sonho, tudo isso pareceu absolutamente louco
a Norbert Hanold, e ele se agitou, dormindo, a fim de libertar-se do
seu sonho. E conseguiu, com efeito, graças ao socorro de um pássaro
que, soltando um grito breve, semelhante a uma gargalhada, voou
levando o lagarto no bico. Então, tudo desapareceu.
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vermelhas. Estas últimas o haviam feito esquecer de tomar o café da
manhã, e seus pensamentos não apontavam a hora presente, mas o
meio-dia. Como tinha ainda muito que esperar até lá, devia encontrar
como empregar o tempo e, com essa intenção, penetrou numa casa,
depois numa outra, onde lhe parecia possível que, outrora, Gradiva
tivesse entrado com frequência, e que ela devesse, de tempos em
tempos, visitar. A opinião de que ela só podia sair ao meio-dia lhe
pareceu menos correta. Podia ser que lhe fosse permitido sair em
outras horas do dia e durante a noite, ao luar. As rosas confirmavam
miraculosamente essa opinião quando as tinha sob o nariz e as
cheirava. E a reflexão ela própria lhe vinha confirmar essa maneira de
ver. Ele podia, com efeito, se orgulhar de não manter uma suposição a
priori e, ao contrário, deixar o campo livre a todas as hipóteses
plausíveis e sua última hipótese não só lhe parecia lógica, como ainda
desejável. Mas então colocou a questão de saber se os outros homens
eram também capazes de perceber o invólucro corporal de Gradiva ou
se era o único a possuir esse poder. Não pôde repelir a primeira destas
hipóteses que chegou a tomar, a seus olhos, alguma verossimilhança,
ainda que ele desejasse que fosse o contrário, e ela o pôr num estado
de instabilidade e aborrecimento. O pensamento de que outros
pudessem falar com Gradiva e sentar-se perto dela para a entreter o
chocava. Era um direito que não pertencia senão a ele ou, pelo menos,
tinha direito a um tratamento mais favorável, pois fora ele quem a
havia reencontrado, a esta Gradiva, em quem ninguém pensava. Ele a
havia contemplado diariamente, ele a tinha presa nele mesmo, ele
tinha infundido nela, por assim dizer, sua própria força vital, e lhe
parecia, por isso, haver dado a ela uma vida que ela não mais teria
possuído sem ele.
75
Por tudo isso, segundo o seu sentimento, tinha adquirido um direito
ao qual podia pretender sozinho, e que podia recusar dividir com
quem quer que fosse.
O dia estava ainda mais quente que os dois precedentes, o sol parecia
alcançar um extraordinário recorde e fazia lamentar, não só do ponto
de vista arqueológico, mas ainda do ponto de vista prático, que o
aqueduto de Pompéia se encontrasse interrompido e ressecado há
dois mil anos. As fontes das ruas guardavam aqui e ali uma lembrança
e testemunhavam o fato de que antigamente os passantes sedentos as
haviam utilizado sem cerimônia. Para se aproximarem de seus bocais,
agora desaparecidos, eles pousavam uma das mãos sobre as bordas de
mármore, e terminavam, da mesma maneira que a água gasta a pedra,
gota a gota, por aí deixar uma marca funda. Norbert observava isso na
esquina da Strada delia Fortuna e lhe vinha também à idéia que a
mão de Zoé-Gradiva outrora teria igualmente se apoiado nesse lugar.
Involuntariamente, pôs a mão na pequena mossa mas abandonou em
seguida essa hipótese e chegou a ficar contrariado pelo fato de tal
idéia lhe ter vindo ao espírito. Não combinava com os modos e o
comportamento de uma jovem pompeiana de boa família. Havia
qualquer coisa de degradante na idéia de ela se inclinar e pôr os lábios
no bocal onde bebia a boca rude da plebe. Ele nunca havia visto nada
mais nobre ou distinto que os gestos e a atitude de Gradiva.
Aterrorizava-o que ela percebesse que ele tivera essa idéia
incrivelmente absurda. Com efeito, os olhos dela tinham qualquer
coisa de extraordinariamente penetrante e às vezes aflorava nele o
pensamento de que, durante os encontros, eles procuravam saber o
que se passava em sua mente e a penetravam com sua sonda de aço
claro. Por isso precisava ter muito cui-
76
dado para que eles não descobrissem nada de estúpido entre os seus
pensamentos.
Faltava ainda uma hora para chegar o meio-dia e, para passar esta
hora, atravessou a rua e entrou na Casa dei Fauno, a maior e mais
magnificente casa ali descoberta. À diferença de todas as outras,
possuía um átrio duplo, exibindo no centro do implúvio o pedestal
sobre o qual se encontrara a famosa estátua do fauno dançando, que
lhe havia dado o nome.
77
beijo e seu abraço pareciam realmente um pouco prolongados. Era,
pois, um casal de enamorados, provavelmente recém-casados, uma
Greta e um Augusto. Ê preciso notar que estes dois personagens não
vieram, desta vez, ao espírito de Norbert e que este episódio não lhe
pareceu de mau gosto ou ridículo, ao contrário, aumentou a simpatia
que sentia pelo casal. Como o que faziam lhe parecia ao mesmo tempo
natural e perfeitamente compreensível, demorou-se a olhar o
espetáculo com seus dois olhos ainda mais abertos do que jamais
haviam estado para a contemplação da obra de arte mais admirada da
antiguidade e teria seguido nesta contemplação com prazer. Mas tinha
o sentimento de que havia penetrado sem nenhum direito num
recinto sagrado e de que estava perturbando as práticas secretas de
um culto. Também a idéia de que poderia ser descoberto o encheu de
terror e retirou-se apressado, caminhando sem fazer nenhum ruído,
na ponta dos pés. Tão logo se viu a uma distância suficiente para não
ser mais ouvido precipitou-se para fora correndo, pelo Vicolo dei
Fauno, com o peito oprimido e o coração batendo.
78
samente, medo, ao mesmo tempo, de não encontrar Gradiva no
interior da casa e de a encontrar aí, pois lhe havia vindo à cabeça, há
alguns minutos que, no primeiro caso, ela estaria em algum outro
lugar com um rapaz e que, no outro, este rapaz estaria com ela e lhe
faria companhia, sentados os dois nos degraus entre as colunas.
Tinha, contra este último, um ódio mais forte do que o que sentia por
todas as moscas reunidas e não teria acreditado que fosse capaz de
sentir uma emoção tão profunda e avassaladora. O duelo, que sempre
lhe parecera um ato estúpido, surgia de repente sob essa luz como um
direito natural e o único meio de um homem mortalmente ofendido
exercer uma vingança que o satisfizesse ou deixar uma existência já
então sem objetivo. Bruscamente dirigiu-se para a entrada. Queria
provocar aquela selvagem, queria, e isso lhe vinha ainda com mais
força, dizer àquela mulher que ele a havia considerado melhor, mais
nobre e incapaz de tal comércio.
79
de uma certeza. E apesar de toda a realidade, não conseguia chegar a
pensar de outra forma. A mulher tinha os olhos fixos nele, esperando
que retomasse a palavra. Depois bateu com o dedo na fronte e disse:
— Tu és... — Continuou: — Parece-me que já é bastante que eu não
me ausente, apesar de ter que esperar tua chegada. Mas este lugar me
agrada enormemente. Eu vejo que tu me trouxeste o caderno de
esboços que esqueci ontem. Agradeço tua excelente intenção. Não
queres mo dar?
Ele não se lembrava, mas espantou-se por ela lhe falar de uma época
indefinidamente distante, pois o reforço de solidez causado pela
comida na sua cabeça havia tido como efeito uma mudança no estado
do seu cérebro. A idéia de que ela pudesse ter se encontrado neste
local de Pompéia há tão remoto tempo não lhe parecia enquadrar-se
com o são racio-
82
cínio. Tudo nela não lhe parecia agora ter mais que vinte anos. A
forma e a cor do rosto, os cabelos castanhos ondulados de maneira
particularmente encantadora, os dentes imaculados e o vestido claro,
que nem a menor mancha mostrava, não podiam, sem flagrante
contradição, ter estado enterrados durante inumeráveis anos sob a
cinza. Norbert se pôs a duvidar de que estivesse verdadeiramente
sentado ali, acordado, e pensou que era mais certo que estivesse em
seu gabinete de trabalho e que, enquanto contemplava a imagem de
Gradiva, o sono o tivesse tomado. Ele teria então sonhado que estava
em Pompéia, que aí havia encontrado Gradiva ainda viva e continuava
a sonhar que se encontrava sentado ao seu lado na Casa de Meleagro.
Pois o fato de que ela ainda estivesse viva e rediviva não podia
verdadeiramente acontecer senão em sonhos... As leis da natureza se
opunham a isso.
Ela havia pousado os dedos finos da mão esquerda sobre o seu joelho,
da mão que escondia a chave da revelação de um milagre insolúvel.
Ele devia ter respondido à pergunta e dito que não se lembrava de ter
comido antigamente o pão com ela, mas involuntariamente as
palavras seguintes lhe saíram bruscamente da boca:
83
— As moscas eram então já tão diabólicas quanto agora e te
atormentavam a ponto de te dar desgosto pela vida?
O monstro negro havia pousado nesse momento sobre sua mão e ela
não exprimia senti-la sequer pelo menor movimento. À essa visão,
dois poderosos impulsos concorreram para conduzir o jovem
arqueólogo a um mesmo ato. Levantou bruscamente a mão e deu um
golpe sem nenhuma doçura sobre a mosca e a mão da vizinha.
Este nome, que ele não havia dito a ninguém em Pompéia, lhe vinha
com tanta certeza, com tal decisão e sem nenhuma hesitação, dos
lábios de Gradiva, que aquele que o possuía levantou-se, ainda mais
assustado, do degrau onde havia estado sentado. Nesse momento
ressoaram passos entre as colunas, passos que se haviam aproximado
sem serem notados e diante do olhar perturbado de Norbert Hanold
apareceram os rostos do casal de amantes simpáticos da Casa dei
Fauno. A jovem gritou, num tom da mais viva surpresa:
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Norbert se viu do lado de fora da Casa de Meleagro, na Strada di
Mercúrio. Não tinha a menor noção de que maneira havia chegado ali.
Devia ter saído instintivamente ao perceber, num súbito clarão, que
era tudo o que lhe restava fazer se não quisesse se encontrar na
situação mais ridícula do mundo aos olhos do jovem casal, mais ainda
aos olhos daquela que lhe havia chamado por seus dois nomes e que
eles haviam saudado tão amigavelmente, e sobretudo aos seus
próprios olhos. Pois embora não compreendesse nada do que lhe
havia ocorrido, alguma coisa lhe parecia incontestável. Gradiva, com
aquela mão que era humana, que não era sem consistência, que era
morna e realmente viva, havia expressado esta incontestável verdade:
ele havia se encontrado, nos dois últimos dias, num estado de
completa loucura e não era um sonho estúpido, os olhos e os ouvidos
que a natureza põe à disposição da razão humana tinham estado
despertos. Não compreendia em absoluto — não mais, aliás, que todo
o resto — como tudo aquilo pudera acontecer. Além disso, tinha o
vago sentimento de que um sexto sentido teria tido um papel muito
importante nesse caso, a ponto de tê-lo feito tomar uma coisa,
preciosa talvez, pelo seu oposto. A fim de tirar algum proveito dessas
reflexões, precisava de um lugar silencioso e solitário, distante, o que
impulsionou Norbert Hanold a afastar-se o mais rápido possível de
olhos, ouvidos e outros órgãos dos sentidos que utilizam seus talentos
naturais, como convém, aos fins a que são destinados.
85
Quanto à pessoa que possuía a mão morna, tinha ficado também
surpreendida pela visita inopinada e particularmente imprevista ao
meio-dia, e deduzindo-se da expressão inicial de sua fisionomia, a
surpresa não fora exclusivamente agradável. Mas no instante seguinte
não aparecia mais o menor traço disso sobre seu rosto circunspeto;
levantou-se rapidamente, dirigiu-se à jovem mulher e lhe apertou a
mão.
86
lar, tagarelando como se faz com uma velha amiga. Nós não somos, na
verdade, velhas. Meu pai, às duas horas, deixa o sol pela mesa dos
hóspedes do Soleil e eu preciso ir fazer-lhe companhia e tenho que
renunciar, por agora, à de vocês. Vocês podem, eu creio, admirar sem
mim a Casa di Meleagro. Não tenho certeza, mas suponho que sim.
Favorisca signor! A rivederci Gisetta! Já aprendi bastante italiano e
não preciso saber mais. Aquilo de que se necessita, se inventa. Com
licença, não, senza complimenti.
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sidade, e os ciprestes, de um lado e de outro da Strada dei Sepolcri se
erguiam, aqui e ali, em negro escuro sobre o céu. Era um quadro
muito diverso do da véspera. A claridade que tornava todas as cores
misteriosamente radiosas havia desaparecido. Via-se com morna
precisão a rua, que parecia haver tomado um aspecto de acordo com
sua denominação. Essa impressão não se desmentia, mas aumentava
devido a alguma coisa que se via mover-se no outro extremo da rua,
nas proximidades da villa de Diomedes e que se assemelhavam a uma
sombra tentando encontrar sua tumba para desaparecer dentro dela.
Não era o caminho mais curto para ir da Casa de Meleagro ao Albergo
dei Sole, melhor dizendo, era a direção oposta, no entanto, Zoé-
Gradiva devia ter-se lembrado, de repente, de que o tempo não a
pressionava tanto para ir almoçar, pois, em seguida, após uma
pequena parada perto da porta de Hércules, afastou-se de costas,
levantando quase verticalmente a sola dos pés sobre as lajes de lava da
Rua dos Túmulos.
88
Pompéia. Todo prédio superior estava agora reduzido a um grande
amontoado de ruínas. Um pouco mais abaixo se encontrava um
jardim de dimensões excepcionalmente extensas, inteiramente
cercado por um pórtico cujos pilares estavam bem conservados. No
centro do jardim se encontravam os magros resíduos de uma fonte e
de um pequeno templo. Um pouco mais abaixo ainda, duas escadas
conduziam a um subterrâneo abobadado que circundava o jardim e
era iluminado por uma claridade obscura e crepuscular. A cinza do
Vesúvio havia penetrado também aí, onde foram descobertos os
esqueletos de dezoito mulheres e crianças. Haviam se refugiado com
algumas provisões colhidas às pressas nessa peça meio subterrânea e
esse pretenso refúgio se havia transformado em túmulo para todos os
que nele se haviam abrigado. Em outro local se encontrara o suposto
dono da casa que fora do mesmo modo asfixiado e jazia sobre o solo.
Havia querido fugir pela porta do jardim, da qual tinha ainda a chave
na mão. Ao seu lado encontrava-se outro esqueleto contorcido, sem
dúvida o de um de seus serviçais, que trazia com ele considerável
número de peças de ouro e prata. A cinza endurecida conservara a
forma dos corpos que enterrara e assim se tirara moldes deles; no
Museo Nazionale de Nápoles se encontra, sob um vidro, o modelado
exato do pescoço, dos ombros e do belo busto de uma jovem vestida
num fino vestido de gaze.
89
tumba, um silêncio sem sopro e uma tranquilidade sem movimento,
mas uma inquietude poderosa crescia energicamente no sistema
arterial de Hanold contrariando essa última pretensão. Tinha sido
forçado a fazer entre as duas reivindicações um acordo; a mente
tentaria manter a sua, permitindo, todavia, aos pés que contentassem
seu desejo. Assim, desde a chegada, passeava em volta do pórtico,
conseguindo manter o equilíbrio corporal e esforçando-se para
normalizar o de sua mente. Mas a realização se mostrava mais difícil
de atingir que a intenção; sem dúvida, Norbert via clara e
incontestavelmente que havia sido totalmente insensato ao pensar
que tinha se sentado ao lado de uma jovem pompeiana ressuscitada e
mais ou menos reencarnada, e esta idéia, bem distinta da sua loucura,
o levava incontestavelmente a um progresso considerável no caminho
de volta à razão. Mas sua razão não retornara ainda ao estado normal,
pois se lhe parecera que Gradiva não era mais que uma figura de
pedra morta, estava da mesma forma fora de dúvida que ela vivia
ainda. Tinha disso uma prova irrefutável, ele não tinha sido o único a
vê-la, outros também o podiam fazer, sabiam que ela se chamava Zoe
e lhe falavam como a uma pessoa de sua espécie. Por outro lado.
Gradiva sabia o nome de Norbert Hanold e isso só poderia dever-se a
uma faculdade sobrenatural do seu ser. Ora, essa dupla natureza
continuava igualmente indecifrável à luz da razão que começava a lhe
voltar. A essa contradição insolúvel se associava outra parecida, que
estava nele, pois se tinha o vivo desejo de se enterrar com os outros na
villa de Diomedes a fim de não correr o risco de reencontrar Gradiva,
ao mesmo tempo o animava o sentimento extremamente alegre de
que ela ainda estava na vida e conseqüentemente ele podia
reencontrá-la outra vez. Isso girava na sua
90
cabeça, empregando uma comparação vulgar, mas exata, como a roda
de um moinho, e ele corria da mesma maneira ao redor do longo
pórtico, o que não dissipava suas contradições. Muito ao contrário,
tinha o vago sentimento de que tudo em volta dele obscurecia sem
cessar.
Foi então que, de súbito, recuou, quando virava um dos quatro cantos
da aléia bordejada de pilares. A alguns passos diante dele, bem alto,
sobre um trecho de muralha em ruínas estava sentada uma jovem,
uma das que foram encontradas mortas aqui mesmo sob as cinzas.
Percebeu agora, pela primeira vez, que chovia; era por isso que o
tempo se havia tornado tão sombrio. Isso seria, sem dúvida, do
melhor proveito para a vegetação de Pompéia e seus arredores, mas
seria ridículo acreditar que um homem pudesse tirar qualquer
vantagem daquela chuva e nesse momento Norbert Hanold temia
muito mais o ridículo do que um perigo de morte.
91
Foi esta a razão por que abandonou, a contragosto, seu desígnio, e
ficou, todo sem graça, olhando os dois pés de Gradiva que, agora,
como que tomados de impaciência, balançavam ligeiramente. E como
isso não esclarecia precisamente os pensamentos que pudesse estar
exprimindo, a proprietária dos pés graciosos tomou de novo a palavra:
— Nós fomos interrompidos... Querias dizer-me qualquer coisa sobre
as moscas... creio que fazias observações científicas ou tinhas uma
mosca dentro da cabeça... Conseguiste pegá-la sobre a minha mão e
matá-la?
92
— A cem léguas daqui — repetiu ele sem compreender e meio
gaguejante —, onde isso?
— Em frente à tua casa, na diagonal, na casa da esquina, à minha
janela há uma gaiola com um canário.
93
Não apenas os pés da jovem testemunhavam uma nova onda de
impaciência, mas também havia no tom da sua voz qualquer coisa que
parecia demonstrar que ela estava zangada e de mau humor e Norbert
tinha a impressão de desempenhar o papel de um escolar
repreendido, que leva um tapa na boca. O que o fez procurar
maquinalmente, mais uma vez, uma saída entre os pilares, e ao
movimento que expressava esse desejo é que se referiam as últimas
palavras que havia acrescentado a senhorita Zoe Bertgang. E, para
dizer a verdade, eram incontestavelmente justas, pois para designar a
chuva que caía por fora do teto protetor a expressão chove muito era
bastante fraca. Uma tromba d'água tropical, de uma espécie que
raramente se abate, para benzê-los, sobre os campos napolitanos,
precipitava o mar Tirreno do alto do céu sobre a villa de Diomedes e
se erguia como uma firme muralha composta de milhares de gotas da
grossura de uma noz, resplandecentes como pérolas. Essa
circunstância tornava, com efeito, impossível uma fuga ao ar livre e
forçava Norbert Hanold a permanecer na sala de aula que constituía o
pórtico. Sua jovem professora, de expressão fina e prudente,
aproveitava o aprisionamento para continuar, após curta pausa, os
esforços pedagógicos.
— Então, até essa idade em que, não sei bem por quê, nos tratam de
"Backfisch", eu, na verdade estranhamente, me dediquei ao senhor, e
acreditei jamais poder encontrar no mundo amigo mais encantador.
Eu não tinha mãe, nem irmão, nem irmã, e quanto ao meu pai, a
primeira cobra-de-vidro que aparece, conservada no álcool, lhe
parece muito mais interessante do que eu; ora, é uma necessidade,
necessidade da mais absoluta para quem quer que seja, mesmo para
uma adolescente, ter com que ocupar seus pensamentos e tudo o que
daí se segue. Esse quê era,
94
então, o senhor, mas quando a ciência da antiguidade o submergiu,
eu fiz essa descoberta que tu — desculpe-me, mas sua inovação
protocolar parece tão insípida e pouco apropriada ao que eu quero
exprimir — eu queria dizer, então, me pareceu que te havias
transformado num homem insuportável que, para mim pelo menos,
não tinha mais olhos na cara, língua na boca, lembranças no lugar em
que eu conservava intacta toda a nossa amizade de infância. Por isso,
sem dúvida, eu não tinha mais meu jeito de antes; pois quando nós
nos encontrávamos aqui ou ali no mundo, no inverno passado ainda,
tu não me vias, eu não ouvia o som da tua voz, o que não me parecia,
aliás, especial, pois fazias o mesmo com todas as outras. Eu não era,
para ti, senão o vento, e com esse topete louro, que antigamente
tantas vezes eu despenteei, estavas também tão tedioso, seco e parco
de palavras como uma cacatua empalhada e com isso inchado de
importância como um arqueopterix (é bem o nome de pássaro
monstro, fóssil antedilu-viano). Mas que a tua mente edificasse um
fantasma assim tão monumental de me tomar aqui, em Pompéia,
como uma coisa qualquer exumada e ressuscitada, eis o que eu não
poderia ter esperado de ti e quando surgiste de imprevisto diante de
mim, foi com grande esforço, primeiramente, que pude alcançar o
que havia por trás da incrível teia tecida pela imaginação no teu
cérebro. Depois comecei a me divertir e saboreei esse divertimento,
apesar do seu bolor de casa de loucos. Pois, como te dizia, não
esperava isso de tua parte.
95
Gradiva, não apenas pelos traços de seu rosto, pelo tamanho, pela
expressão séria dos olhos, os cabelos graciosamente ondulados, a
postura que ela havia tantas vezes manifestado, mas ainda pelas
vestes, o vestido e o xale de fina e macia casimira creme, com
numerosas pregas, que completavam a extraordinária semelhança de
toda a sua aparência.
96
— Que alguém tenha primeiro que morrer para encontrar a vida. Mas
isso sem dúvida é necessário na arqueologia...
— Não, eu quero falar de teu nome...
— Porque ele é. estranho?
O jovem arqueólogo se mostrava não apenas versado nas línguas clássicas, mas
também nos radicais germânicos, pois respondeu:
— Pois Bertgang e Gradiva têm o mesmo sentido e querem dizer
aquela que resplandece ao andar.
97
— Ë bem natural. Por que outra razão estariam em Pompéia em
viagem de núpcias?
98
um pouquinho, o que poderia bem exprimir tanto um desafio quanto
um desejo de rir reprimido, talvez até as duas coisas juntas. Norbert
Hanold olhava essa covinha e, ainda que fosse trazido à razão segundo
o diploma que acabavam de conceder-lhe, seus olhos devem ter se
confundido por um erro de ótica. Pois anunciou sua descoberta num
tom particularmente triunfante:
— Eis a mosca outra vez!
E nesse sentido dirigiu sua caçada com a rapidez do raio. Mas dessa
vez demorou tanto tempo que não deixou nenhuma dúvida de que
não vinha atrás do inseto. E, coisa extraordinária, a Gradiva viva
agora não o contrariava em nada, e quando, por volta de um minuto
mais tarde, foi obrigada a retomar a respiração, não lhe disse, apesar
de a possibilidade de falar lhe ter sido restituída:
— És completamente louco, Norbert Hanold.
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hora não viu acontecer nada capaz de provocar terror. Nesse
momento, então, surgiu na senhorita Zoe uma reflexão sensata e ela
disse, na verdade contra a vontade:
— Mas realmente preciso ir agora. Meu pai vai morrer de fome. Creio
que por hoje podes renunciar à companhia de Gisa Hartleben no
almoço e te contentares com o Albergo dei Sole, pois já não tens mais
nada a aprender com a minha amiga.
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lega Eimer, pois sem a invenção genial dele, relativa a lagartos, eu
com certeza não viria à casa de Meleagro, o que teria sido uma pena,
não só para ti mas também para mim.
De todo modo, Norbert Hanold ficou tão enlevado que gritou, tomado
por um impulso poético:
— Oh! Zoe, tu que és a vida amada e a presença amável, faremos
nossa viagem de núpcias na Itália e em Pompéia?
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trava, ele próprio parecendo ter sido desenterrado de um longo
sepultamento:
— Acho que não há necessidade de quebrar a cabeça com esse
assunto hoje. Ê uma coisa que tem de ser seriamente pensada e à
qual dedicaremos nosso pensamento no futuro. De minha parte,
não me sinto ainda tão plenamente viva para tomar tal decisão
geográfica.
FIM
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