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A Caixa de
Pandora
Alexandre Santos Lobão

Edição especial para distribuição gratuita pela Internet,


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A Caixa de
Pandora
Alexandre Santos Lobão

Apresentação

“A Caixa de Pandora” é uma das histórias do livro “A


Caixa de Pandora e outras histórias”, escrito por
Alexandre S. Lobão no ano de 2001. Ela representa bem
o estilo do autor, que posiciona seus contos em algum
ponto, impreciso, entre o real e o imaginário e ameaça
arrastar o leitor para longe da segura rotina do dia a dia.

Neste e-book apresentamos, além da história, a


introdução do livro escrita pelo escritor Joilson
Portocalvo, e uma sugestão de alguns links para aqueles
que quiserem saber um pouco mais sobre Louise Brooks.

O livro pode ser encontrado na Livraria Siciliano


(http://www.siciliano.com.br/livro.asp?orn=LSE&Tipo=2
&ID=204556) ou diretamente com o autor, que pode ser

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encontrado nos endereços a seguir:
alobao@microsoft.com ou lobao@gns.com.br.

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autor!

A Caixa Mágica de Lobão

Joilson Portocalvo

Pela primeira vez a tarefa de apresentar um


texto me fez devorar os originais de um fôlego.
Atribuir isto à pressa do editor em publicá-lo
seria desmerecer o autor. O mérito deve-se a
este, que como um diretor de cinema consegue
prender o espectador até o final da fita. A
coerência da narrativa faz do estreante Lobão,
autor de uma obra madura, nada devendo a outros
autores do gênero.
A Caixa de Pandora abre-se para nove contos de
realidade fantástica, gênero de poucos adeptos
em Brasília. Alexandre ao mesmo tempo brinca e
dá tratamento sério, com estilo e velocidade de
quadrinho e desenho animado, onde ninguém se
machuca de verdade, e nem morre pra valer. O
autor faz o que quer: viaja entre o realismo
fantástico e o onírico. Por falar nisso,
“Sonhos” parece real. Não há como saber se o
ficcionista entrou n“A Casa”, para revelar

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segredos de Antônio e Henrique ou se realmente
Lobão sonhou tudo aquilo.
Mágico! Assim se expressará quem ler A Caixa de
Pandora. Parece filme, parece gibi... é tudo ao
mesmo tempo. O contador de histórias, com
talento, diversifica temas e utiliza o recurso
do diário, com isso somos levados a acreditar
que os fatos realmente estão acontecendo ou
aconteceram. Mas é impossível descobrir onde
começa a fantasia. Embora não seja contemporâneo
das grandes guerras, pois Alexandre nasceu na
segunda metade deste século, fala como um
soldado, ou um viajante intergalático. No conto-
título aparece como um personagem apaixonado por
Louise Brooks, diva do cinema mudo, e narra em
detalhes seus encontros com a atriz.
Um espiritualista identificará nos temas viagens
astrais e dirá que seus relatos confirmam isso;
algum apaixonado dirá que o livro está recheado
de histórias de amor. Não afirmo nem desminto, o
livro deve ser descoberto e identificar-se com o
leitor e transformar-se no que este pretender.
A Caixa de Pandora vai desabrochando aos poucos
e pulsa como um coração cibernético. Que me
desculpe Carlos Castañeda, agora, prefiro o
índio Tantee de “O Espírito do Lobo”, de
Alexandre Lobão, a Don Juan, também índio, do
autor de Porta Para o Infinito.

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A Caixa de Pandora
“It’s a long, long way,
From where you want to be.
And it’s a long, long road (too long)
But you’re too blind to see”

O.M.D. — Pandora’s
Box.

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A Caixa de Pandora, o título até que soa bem, não? A
enciclopédia diz que Pandora, segundo a mitologia
grega, foi a primeira mulher. Ao se casar, ganhou como
presente uma caixa onde estavam encerrados todos os
males, que se espalharam pelo mundo quando a
curiosidade feminina foi maior que a cautela. A última
linha do curto parágrafo diz, literalmente: “No fundo da
caixa ficou apenas a Esperança”. É, bonito. Só que eu
me pergunto: se a esperança ficou no fundo da caixa,
quer dizer que ela não foi espalhada, como os males?
Uma figura rabiscada por um artista incógnito ilustra o
verbete e eu me pego tentando encontrar alguma
semelhança entre aqueles traços e os traços daquela
que, sem mitologia, eu posso dizer: foi minha primeira e
única mulher. Não, talvez não a primeira, nem ao menos
a única, mas mesmo assim meu coração ainda grita que
sim.
É engraçado. Quando comecei a escrever esta história
eu nem ao menos que a estava escrevendo, e muito
menos sabia qual título colocar. Agora que o título me
apareceu e finalmente me dispus a colocar no papel tudo
aquilo por que passei, parece que ele não poderia ser
outro. Não, não. Como um tolo, eu recebi; não, pior que
isso, procurei a caixa que continha minha própria
desgraça, e fiz questão de abri-la o quanto antes. Mas
olhando agora para trás e repassando todos aqueles
momentos, tenho certeza de que faria tudo de novo.
Afinal, de que vale uma caixa cheia de males,
comparada com o valor de uma caixa que contém a
esperança, mesmo que escondida lá no fundo?
Certamente que valeu a pena. Mas estou me
adiantando. Vamos começar bem do princípio, em 1987,
quando o primeiro elemento da trama foi lançado à luz.

***

Brasília, 1987. Recém-saído do Colégio Militar, ingresso


na Universidade de Brasília. Fanático por histórias em
quadrinhos, nunca me contentei com os assim chamados
“gibis de linha”, lançados mês a mês para um público
ávido de continuações. Procurando rotas alternativas da
cultura quadrinística, se é que esta palavra existe, enchi

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minhas prateleiras com críticas de jornais, fanzines,
revistas em inglês, francês, italiano e japonês — embora
eu não entendesse mais que as figuras em muitas delas
— além de livros especializados no assunto.
Para meu deleite, descobri que a biblioteca possuía
exemplares antigos de livros técnicos que abordavam
desde a linguagem metafórica dos quadrinhos até
coletâneas de imagens e fotos de roteiristas e
desenhistas. Armado de um bloco de papel, lápis e
borracha, gastei diversas horas debruçado sobre os
livros copiando desenhos dos grandes mestres. Hal
Foster, Frank Frazzeta, Will Eisner, nenhum deles
escapou de ser garatujado no meu bloco.
Entre muitas cópias e anotações, uma praticamente me
passou despercebida. Um autor de quem já não sei o
nome, pois não o anotei, criou uma personagem
baseada em uma atriz de cinema mudo que fazia muito
sucesso na época. Ao lado dos desenhos, a foto da atriz.
Copiei os desenhos quase sem cuidado e voltei minha
atenção para a foto. Como a página não merecia ser
xerocada (verba de estudante é sempre baixa), resolvi
“copiar” a foto também, mais pensando em comparar
meu desenho com o do artista do que por outro motivo
qualquer. E copiei, o mais fiel possível que minha
habilidade permitiu. O desenho, entre muitos outros,
ficou perdido em minha gaveta até que, em 1991, novos
fatos me levaram a desenterrá-lo.

***

Veneza, setembro de 1991.


Se seis meses atrás alguém me dissesse que eu viajaria
para a Europa ainda esse ano, eu buscaria um
termômetro para medir a temperatura do infeliz. No
entanto, aqui estou, graças ao sacrifício que meu pai fez,
vendendo seu carro para que eu pudesse vir com dois
amigos participar de um congresso no qual um de
nossos trabalhos foi aprovado. Bom, a viagem inteira é
matéria para uma outra história, que, aliás, mereceria
ser escrita, mas o que importa é um pequeno fato, que
não teria mais repercussões caso não fosse o próximo

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elo de uma corrente que, pouco a pouco, se fechava à
minha volta.
Veneza era a única cidade italiana que iríamos visitar, e
o Eduardo, um de meus companheiros de viagem, havia
prometido levar algumas camisas de times de futebol
italianos para seus irmãos. Enquanto passeávamos
encontramos uma loja de artigos esportivos, e o Eduardo
nos fez entrar. Escolhe daqui, escolhe dali, enquanto
isso eu topei com uma televisão passando videoclipes, a
MTV ou similar italiana. Não lembro nem mesmo se vi o
clipe inteiro ou apenas parte dele, mas gostei de cara.
No final, o nome — Pandora’s Box, e o grupo — O.M.D.
Guardei na memória ambos (já tenho dois discos do
conjunto), na esperança de rever o clipe e comprar o
disco mais tarde.
O clipe, para quem ainda não viu nem adivinhou,
apresentava cenas de uma certa atriz de cinema mudo,
que me chamou a atenção pelo sorriso e olhar
vagamente familiares. Mais uma vez os fatos ficariam
em suspenso, pois a agitação da viagem tomou por
completo minha atenção.

***

Brasília, abril de 1992. A viagem agora nada mais era


que uma boa lembrança, e os dias corriam um atrás do
outro como se nos desafiando a quebrar sua rotina. Na
TV, descubro um novo programa de videoclipes, o
Kliptonita, logo após a hora do almoço. Meu segundo
vício, após as revistas em quadrinhos, é a música, por
isso a meia hora de infusão áudio-visual logo virou
sagrada para mim. Uma semana, duas... E de repente lá
estava ela, aquela música que chamou minha atenção e
que estava perdida no fundo da memória. Dei um pulo
da cadeira e apertei o “REC” do videocassete. Com um
suspiro, curti a música que ao mesmo tempo que me
lembrava da viagem parecia particularmente minha,
como se eu tivesse sido o primeiro brasileiro a ouvi-la há
seis meses. Atrás do cantor, uma parede com uma
grande foto ou desenho da atriz sem nome, que em
flashes de vídeo chocava com seu sorriso desprendido e
seu olhar expressivo. Uma foto...

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— Droga! O vídeo!
Corri e olhei atrás da televisão, mas minhas suspeitas se
confirmaram: o vídeo não estava ligado à televisão.
Droga! O clipe correu seus últimos segundos e foi
substituído por uma música bate-estacas do C+C Music
Factory. Com uma mescla de raiva e decepção, liguei o
videocassete corretamente e programei a gravação para
todos os dias da semana.
Mas a foto...
Quem é colecionador entende. Mesmo com uma coleção
gigantesca, todo bom colecionador sabe exatamente
onde está cada um de seus objetos, e conhece cada um
em detalhes. Eu sabia que já havia visto aquela foto em
algum lugar, e a tinha copiado entre os meus rabiscos.
Mais por curiosidade do que por cautela, procurei entre
minhas pastas os desenhos feitos à mão. Após uma boa
revirada, encontro finalmente a cópia da foto, talvez a
mesma que estava no clipe, os desenhos originais do
artista, um nome, uma data e um título: Dixie Dugan,
sex simbol 1933. Minha atriz já tinha um nome.

***

Foi quando me veio a idéia de aproveitar a seqüência de


fatos para escrever uma história. Meus amigos sabem
que não sou um escritor muito assíduo, mas também
não consigo deixar de escrever uma história quando ela
me entra na cabeça. Foi assim que, juntando pouco a
pouco as histórias escritas ao longo de praticamente dez
anos, finalmente consegui material suficiente para
publicar um livro. Mas de todas as histórias escritas
nestes dez anos, esta foi a que mais me envolveu e, sem
dúvida, a que mais me doeu ter que parar de escrever,
pois eu nunca desejei que ela acabasse. Mas não quero
adiantar os fatos, vamos acompanhá-los à medida em
que aconteceram.
A idéia básica é narrar a história de um sujeito que vai
passando exatamente por tudo que passei, uma espécie
de quase-auto-biografia, sendo que ele acaba se
interessando pela atriz. Dixie Dugan. “Se interessando”
é forma de falar, o personagem, que aliás eu posso

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batizar com meu próprio nome, começa a ter uma certa
curiosidade e, aproveitando seu tempo livre, começa a
procurar informações sobre aquela atriz como um hobby,
uma brincadeira de detetive. Só que a brincadeira vai se
tornando mais séria quando ele começa a se aprofundar
nas informações... Bem, estas são apenas as idéias
iniciais. Para saber melhor o que vou escrever, vai ser
necessário realizar alguma pesquisa.
Me pego sorrindo enquanto dirijo para a biblioteca. Estou
fazendo exatamente o que o meu personagem faria. O
seu primeiro passo seria justamente buscar mais
informações, rever o livro de quadrinhos, quem sabe
achar algum livro de cinema que a mencione. Presto
atenção nas minhas próprias emoções, a ansiedade, a
curiosidade... Já convivi com pessoas de teatro, mas
será que é isso que elas sentem quando “vestem” um
personagem? Parece que aqui existe algo mais, eu não
estou incorporando um personagem, eu SOU o
personagem, porque não sei como ele vai agir daqui a
pouco. Não sei qual será o próximo passo, para onde
minhas informações vão me levar, mas sei que ele vai se
sentir exatamente como eu. É. Estou vivendo minha
história. Deixo a história me embriagar e tento esquecer
que sou um escritor: estou indo à biblioteca como um
detetive, apenas um curioso. E não preciso me esforçar
muito para me sentir assim.

***

A tarde realmente não foi nada profícua. Após a


decepção inicial de descobrir que o livro de quadrinhos
tinha se extraviado de alguma forma, enterrei-me
durante três ou quatro horas na prateleira sobre cinema.
Livros e livros corriam pelas minhas mãos, e por sorte
grande parte deles possuía índices remissivos, senão o
tempo perdido seria ainda maior. Em muitos livros não
me contentei em buscar nos índices, folheei página a
página à procura de fotos, e a cada imagem perdia um
bom tempo analisando cada rosto, buscando aqueles
traços.
A julgar pelo nome, pensei, a atriz deveria ter certa
descendência escocesa, por isso busquei também

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referências ao cinema mudo na Inglaterra... mas nada!
O mais perto de que cheguei foi o título de um filme, de
mil novecentos e trinta ou quarenta e poucos, “Dixie”.
Pensei que talvez o nome não fosse da atriz, fosse da
personagem em um filme, o que seria bastante
provável. Mas certamente não era daquele filme. Se por
acaso o nome não fosse exclusivamente da personagem
dos quadrinhos, deveria ser de uma atriz muito pouco
conhecida, ou de um papel pouco conhecido em um
filme qualquer. Mas algo não se encaixava: se realmente
ela havia sido tão pouco conhecida, por que a inspiração
para um quadrinista e um compositor? Em algum lugar
deveria haver alguma referência a ela.
Cansado, coberto de pó de livros antigos e com as
roupas e o espírito amarrotados, voltei para casa sem
ter dado um passo a mais na direção da solução do
mistério, sem nada para ajudar na continuação da minha
história.

***

Os dias passavam devagar, e de vez em quando a


história me voltava à cabeça, cada vez com uma
continuação diferente. Uma semana após eu visitar a
biblioteca, finalmente consegui gravar o videoclipe, e de
vez em quando buscava uma nova inspiração olhando
para as cenas rápidas que passavam na telinha. Comprei
o disco do O.M.D. à busca de mais informações, mas ele
não tinha nem mesmo as letras das músicas, que
poderiam me falar algo mais. A idéia ficou travada na
garganta, como um sentimento de angústia que não
queria passar, mas eu não ousava dar continuidade a
uma história sem saber realmente o que estava
dizendo... Eu sei, pode parecer besteira, mas eu sou
assim. Se fosse uma história totalmente inventada, tudo
bem, mas quando eu mencionava algum fato real, queria
que fosse real mesmo.
Mal eu sabia que a realidade iria me atingir mais fundo
do que eu desejava.
Comecei a pensar sobre o que sentiria meu personagem
nesta situação. A princípio, frustração por não ter
conseguido seu objetivo. Depois, saudade. Saudade? É,

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saudade é a palavra que chega mais perto. Ali estava
ele, olhando um videoclipe com algumas curtas cenas de
cinema mudo, pelo menos duas vezes por semana, como
quem olha para a foto de algum conhecido distante, e
aos poucos aquelas fotos animadas vão parecendo mais
e mais familiares, aquele rosto pelo qual ele sentia
apenas curiosidade vai se tornando o rosto de alguém
que ele gostaria de ter ao seu lado. Lógico que o
pensamento era pura besteira, mas o próprio
pensamento nunca chegava a se formalizar, o que
presidia era apenas o sentimento. Aquele vago
sentimento de quem perdeu alguma coisa.
Este sentimento de perda permaneceu em mim até a
segunda quinzena de julho, quando, afinal, a situação
começou a mudar novamente.

***

Paro um pouco de escrever e coloco uma música. Não


por coincidência, Pandora’s Box. A sua vida passa pelos
meus ouvidos enquanto sento de novo na frente do
micro e tento organizar as idéias. As linhas na tela
permanecem vazias durante algum tempo; coordenar
meus pensamentos não é mais tão fácil quanto
costumava ser. A música acaba e me deixa com lágrimas
nos olhos, que por puro orgulho não deixo rolar. Respiro
fundo e recomeço a escrever. Tenho que colocar tudo
para fora para não implodir.

***

Julho, 1992. Na segunda quinzena, chegou nas bancas


de revista a “BIZZ-letras traduzidas”, ano 08, número
07, edição 84. Nunca entendi esta numeração. Na capa,
Mr.Big, Alice in Chains, Skid Row e Roy Orbison. Na
página 34, quase perco o fôlego ao deparar com a letra
de Pandora’s Box: não só a letra me fala de um ou outro
detalhe da vida da minha atriz perdida, como também
há uma foto e uma explicação para a música: A Caixa de
Pandora, ou Die Büchse Der Pandora, foi um filme de
G.W.Pabst, cineasta alemão, lançado em 1929. No papel

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principal, a atriz americana que foi “uma das maiores
estrelas do cinema mudo”: Louise Brooks! Até hoje não
consegui descobrir o que era “Dixie Dugan” em minhas
anotações. Talvez o nome do próprio desenhista de
quadrinhos!
Agora, sim! Finalmente eu tinha algo sólido em que me
basear. Um nome para pesquisar. Meu personagem não
mais se sentia órfão, já tinha como continuar sua
pesquisa. E, na minha excitação com as novas
informações, deixei de perceber que sentia, tanto quanto
o meu companheiro de ficção, um sentimento mais
próximo da felicidade de um reencontro do que da
satisfação com a proximidade da solução de um
mistério.

***

Corri para a biblioteca na primeira tarde livre, e revirei


novamente os livros sobre cinema. Um a um, os
volumes me sonegavam qualquer informação. Ao fim da
primeira hora e meia de pesquisa, finalmente alguma
coisa: Cinema Muto: Dalle Origini al 1930, uma
coletânea de filmes mudos por Luigi Rognoni. O meu
conhecimento de italiano é pouco melhor que o meu de
japonês (ou seja, quase nada), mas devorei as linhas
onde o autor descrevia a história dos filmes Lulu (o
próprio Caixa de Pandora na Itália) e Il diario di una
donna perduta, também protagonizado por ela. Entre as
linhas do roteiro, o autor intercalava observações a
respeito de como Louise via e vivia os papéis, e como a
sociedade moralista se escandalizava com os filmes e
atuações. A cada linha eu me deliciava imaginando a
atriz como uma feminista antiga, ativa e sem medo de
ser ela mesma na frente de uma sociedade hipócrita. É
isso que meu personagem deve sentir, essa admiração
que, misturada ao início de saudade, pode levar a algo
mais.
Quando me dou conta, já se passaram diversas horas e
os livros finalmente acabaram. À minha frente, a triste
colheita: dois livros e uma lista de filmes, com nomes
em até seis línguas diferentes, diretores e datas de
lançamento. Ao todo, seis filmes entre 1925 e 1930,

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além de outras participações em filmes de terceira
categoria que muitas vezes sequer eram mencionados.
Com o início do cinema falado, minha estrela se apagou
e trabalhou em muitas outras coisas, morrendo em 1985
como aposentada do funcionalismo público.
Entre feliz e arrasado, recolho meu parco material e me
dirijo à xerox, onde tiro cópias dos textos e duas cópias
de cada foto. Quatro, ao todo. O segundo livro, uma
biografia de Georg Wilhelm Pabst, parece ser rico em
referências à atriz, mas infelizmente está em francês, e,
embora me esforce, não consigo esquecer que minha
única frase conhecida é Je ne parle pa français, que,
aliás, também não sei escrever. Volto para casa e peço
para um amigo retirar os livros para mim, pois deixei de
ser sócio após minha formatura, mas sem muita
esperança de encontrar algo além do material que já
copiei.

***

Os próximos dias passam devagar, sem que eu consiga


imaginar meu próximo passo. A idéia, que me pareceu
óbvia logo que a tive, me veio com a publicação, na
revista SET (de cinema), de uma pequena bibliografia de
Louise em um livrinho “Mitos do Cinema”. A palavra,
após a leitura das curtas linhas que pouco
acrescentavam ao que eu já sabia, saltou-me aos olhos:
CINEMA. Mas é claro! Eu preciso dos seus filmes. Talvez
pela dificuldade de consegui-los a idéia não tenha me
passado pela mente antes, mas agora eu percebia que,
se quisesse continuar, o próximo passo só poderia ser
assistir aos filmes.
Neste ponto, parei para meditar. Havia, obviamente, um
ou dois lugares onde eu poderia procurar pelos filmes,
mas não foi isso que me preocupou. É que resolvi fazer
uma auto-avaliação. Quanto de autor e quanto de
personagem eu era neste momento? Eu sentia crescer
em mim a ansiedade por vê-la em ação, ver seu rosto e
seu corpo em movimento, abandonando as linhas
estáticas e emboloradas dos meus livros. Tentei analisar
friamente as minhas emoções, e percebi que, se
realmente quisesse e me entregasse ao sentimento, eu

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poderia gostar dela. Sem eufemismos: poderia me
apaixonar por ela. Não pela atriz ou pelas personagens,
mas pela mulher, pela energia que emanava de cada
palavra que eu lia a seu respeito. Lembrei-me de uma
frase antiga, tirada da boca de um poeta perdido em
algum lugar da minha memória: “Only the lonely can
love”. Um exagero, é claro. Mas também uma
possibilidade.
Senti que eu tinha a capacidade de me entregar. Mas
era o que eu queria? O que aconteceria depois, quando a
história acabasse? Será que eu teria coragem de romper
a barreira da ficção? Minha cabeça girava. Por
momentos, senti que minha sanidade estava por um fio,
e que tudo o que eu queria era me apaixonar, louca e
perdidamente como há muito não fazia. Logo a seguir,
me convencia de que não poderia fazer isso, pelo meu
próprio bem, e que além de tudo não fazia sentido. Uma
paixão sem futuro? Não posso ser covarde! Medo de
sentir? De experimentar? Não, esse não sou eu.
Quase sem perceber, fui até a sala e coloquei o disco do
OMD. Os ecos se ampliaram na casa vazia, e comecei a
dançar. A cada palavra, seu rosto me vinha à mente.
Dancei como nunca dancei antes, com a alma e com o
corpo, de olhos fechados, e só consegui parar quando a
música acabou. Durante instantes que me pareceram
séculos, fiquei ajoelhado tentando entender o que se
passava. No meu rosto, as lágrimas paravam lentamente
de correr. Comecei a rir e a chorar, pensando no ridículo
e no romântico da situação. Não, isso não daria certo.
Meu personagem nunca faria algo assim. Mas, se não
poderia aproveitar a cena para meu livro, pelo menos de
uma coisa eu estava certo: a decisão já estava tomada.

***

As próximas semanas foram carregadas de ansiedade e


depressão. Fui ao Instituto Goëthe, de cultura alemã,
mas nada encontrei sobre Pabst, nem livro, nem filmes.
Busquei saber a respeito do acervo do Cine Brasília, mas
também não encontrei nada. Liguei para o Museu da
Imagem e do Som, em São Paulo, mas ninguém

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conseguiu me informar sobre qualquer facilidade quanto
à pesquisa.
A solução que eu queria veio através de um amigo com
quem me correspondia no exterior: em troca de três CDs
de música brasileira por filme, ele conseguiu para mim
as cópias dos dois filmes mais famosos de Louise, A
Caixa de Pandora e Diário de uma Mulher Perdida.
Quando recebi sua carta dizendo que havia conseguido
os filmes quase parei de respirar. As próximas três
semanas se arrastaram, cada dia dividido em duas
fases: ansiedade à espera do correio e decepção após a
sua passagem. Finalmente, 17 dias após a carta, chegou
a encomenda com os dois filmes.
Tranquei-me no quarto e não fui trabalhar nesse dia. Fiz
um lanche corrido já quase às onze da noite, e continuei
vendo cena após cena através da noite, repassando os
sorrisos mais expressivos e os closes. Acordei no dia
seguinte com o sol na minha cara, que estava tão
amarrotada quanto as roupas e a cama, almocei ainda
com um gosto de sono na boca e tentei colocar as idéias
em ordem.
Minhas têmporas latejavam, embora não costume ter
dor de cabeça. Parecia que eu estava dentro de algum
sonho esquisito. Depois de um banho frio as idéias
clarearam um pouco, e sentei na frente do micro para
escrever.
A folha branca na tela do editor parecia me desafiar,
mas eu tinha que escrever. Sentia que estava na borda
de algum abismo, e precisava desabafar de alguma
forma, precisava escrever para organizar meus
pensamentos. Com um sorriso meio cínico, pensei que
havia conseguido material para escrever, mais do que na
verdade pretendia.
É engraçado, parece que a coisa mais difícil de se
escolher é justamente o título, e geralmente eu deixo
para colocar o título no final, ou em um momento de
inspiração. Fechei os olhos e pensei aonde deveria
começar minha história. Fui recapitulando mentalmente
passo a passo cada uma das ocorrências que me haviam
levado até aquele momento.

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O livro de quadrinhos.
O clipe em Veneza.
As buscas na biblioteca.
A revista e a descoberta.
Novas buscas e encontros.
O sentimento.
O sentimento!

Lembrando de todo o ocorrido, o sentimento foi


crescendo, a angústia começou a me sufocar. De
repente me dei conta de que tudo acabava por ali: na
frente do micro, escrevendo minha história. É claro, eu
poderia ainda correr atrás dos outros filmes, tentar
entrar em contato com pessoas que a conheceram, que
pudessem falar da Louise como ela realmente era,
mesmo no fim da vida. Mas nada disso adiantaria.
Estava terminado, eu sentia. Se a música estivesse
certa, ela continuou com a mesma graça, com a mesma
energia até o fim. Mas de que adiantava tudo isso? De
que adiantavam agora todas as fotos e os filmes que eu
havia conseguido? De repente me senti perdido,
abafado, morto junto com ela.
O título me ocorreu logo antes da primeira linha. Eu
antes havia pensado em “Dixie”, “História muda” ou
“Louise”, entre outros, mas agora sabia que não poderia
fugir do “A Caixa de Pandora”. Por diversas razões: o
filme. A música. A Caixa.
Tentando seguir a fleuma de escritor, fui buscar algo a
respeito da lenda original na enciclopédia. Meus pés se
arrastavam no chão, tentando estender o tempo,
buscando organizar os pensamentos, tentando descobrir
qual o próximo passo do meu personagem. O que fazer
quando não há mais nada a fazer? Sorri meio sem graça
(tenho o péssimo hábito de rir das minhas próprias
desgraças) enquanto lia a enciclopédia e via a gravura
rabiscada que ilustrava o verbete.
Às dezenove horas liguei para o trabalho e pedi uma
outra folga. O estômago me pesava e a digestão do
almoço mal tinha começado quando finalmente terminei

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de escrever minha história, no início da madrugada, e
dormi mais uma vez sem tirar os sapatos.

***

O dia 13 de outubro de 1992 nasceu com um céu claro e


sem nuvens. O ar frio entrou pela janela e soprou meu
rosto enquanto eu esfregava os olhos com as mãos. O
corpo moído pela noite maldormida não conseguia mais
descansar, e me dirigi ao banheiro com os olhos
ardendo. Tentando me animar, fiz a barba e algumas
caretas e pensei que não poderia continuar daquele
jeito. Mas a saudade me apertava o peito enquanto eu
arrumava o quarto e pensava no futuro do meu
personagem. Eu não sabia o que fazer. O que ELE faria?
Empurrei um café para dentro enquanto chegava à
conclusão de que a minha história estava sem final.
O que eu vou fazer? O que ele faria? Um último esforço,
já quase sem esperanças? Por momentos pensei em
terminar a história com um suicídio, mas o personagem
precisava ser coerente, consigo e comigo, e por mais
que eu me esforce acho que nunca iria conseguir fazer
um personagem meu se suicidar, por não achar a
atitude coerente.
Após uma manhã sem idéias e um almoço sem gosto, e
já quase convencido de que eu e minha história
ficaríamos sem um final, resolvi passar a tarde na
biblioteca. O livro de quadrinhos ainda não havia
aparecido, e nas prateleiras de cinema não percebi nada
de novo. Às três, resolvi sentar às mesas de estudo e
reler o que havia escrito, à busca de algo que pudesse
salvar o dia. Eu sentia que havia alguma coisa ali, pronta
para ser descoberta, sentia que ainda tinha alguma coisa
a mais. A história não podia terminar assim. Não era só
a história. Havia algo no ar. EU não podia terminar
assim. Minhas linhas corriam pelo final da história
quando uma idéia se esboçou no limiar da inconsciência,
e não tive nem ânimo de acordar para agarrá-la, eu e
meu personagem éramos um. Quaisquer que fossem os
parágrafos ainda não escritos, só poderíamos vivê-los
juntos.
***

19
“Dormindo debruçado sobre os livros, ele só percebeu a
presença da estranha senhora quando ela lhe tocou
levemente no ombro. Um arrepio correu pelo seu corpo
quando sua consciência se adaptou à temperatura do
corpo, enquanto ele levantava os olhos e se defrontava
com um sorriso de dentes esmaecidos pelo tempo...”
Acordei de meu sono/devaneio com um pedaço da
história já na cabeça, e um arrepio subiu das minhas
pernas até a coluna. Ainda meio sonolento, assustei-me
com a figura à minha frente, sorrindo com dentes
amarelos e me entregando um papel.
— Aqui, meu filho. Isto é o que você precisa... ou o que
eu preciso, talvez...
Um brilho de maldade refulgiu em seus olhos, mas foi
prontamente substituído pela solicitude de uma
bibliotecária.
— Como assim? Não estou entendendo...
— Você não quer algo mais sobre aquela moça? A atriz?
Nesse papel está a referência de algo que você ainda
não viu, e que não pode deixar de ver.
— Como é que você sabe? Quem é você?
Ela sorriu com sarcasmo e minha vista ficou embaçada.
Acordei com um arrepio, e quase caí da cadeira com a
mão que tocava levemente meu ombro.
— Ah, meu filho, desculpa. Eu só queria te avisar que a
biblioteca vai fechar daqui a meia hora, é melhor você ir
para casa.
A senhora gorda e simpática me olhava com um ar de
preocupada, os óculos pendendo sobre o nariz redondo.
Ainda meio desconcertado, meneei a cabeça.
— Não foi nada, não. Obrigado.
Passei a mão firmemente pelo rosto, para afastar o final
do sono. Um arrepio mais profundo me subiu até a nuca
quando vi a referência sobre a mesa. Escrita em um
papel de textura estranha, com uma letra que não era a
minha, seguiam as palavras “Louise Brooks, P.P.,
Änima”, e, logo abaixo, “14.681.(1-3)a920/.08”. Talvez
eu tivesse escrito aquilo dormindo. Talvez eu fosse

20
sonâmbulo. “Ou, muito mais provavelmente,” pensei,
“talvez eu esteja simplesmente ficando maluco”.
Juntei minhas coisas e desci até o subsolo, com medo de
encontrar e de não encontrar alguma coisa naquela
prateleira. Segui a numeração das fileiras... 10... 11...
12... 13... Parede. Por pura teimosia, andei até o fim e
toquei na parede, apenas para me certificar de algo que
eu já sabia: não havia seção 14. Entre perturbado e
aliviado, amassei o papel e dei dois passos em direção à
lixeira antes de perceber que estava enganado. A seção
14 era ligeiramente menor, se encaixando em um vão da
parede que eu nunca havia visto. Adiantei-me enquanto
desamassava o papel, entre as estantes de livros e a
parede, no canto pouco iluminado da biblioteca. O cheiro
de mofo e papel velho por ali era mais forte, e posso
jurar que vi teias de aranha na penumbra entre os
livros.
Encontrei o que procurava numa prateleira quase vazia,
pouco mais iluminada que o resto por uma fímbria de luz
que surgia dentre dois livros maiores. Três fitas de
vídeo, cuja limpeza chegava a surpreender naquelas
prateleiras esquecidas. Na frente de cada uma, apenas o
nome — “A essência de Louise Brooks”, e um close dos
seus olhos. Meus olhos começaram a lacrimejar no
instante em que as segurei, mas não tive tempo de
pensar mais — O sinal tocou indicando que a biblioteca
fecharia em quinze minutos. Coloquei as fitas sob o
braço e retornei aos corredores iluminados, caminhando
em direção à saída.

***

Minha casa, dois dias depois. Não posso mais continuar


com esta intranqüilidade. Tudo bem, as situações que
me levaram a obter estas fitas foram realmente
estranhas. Nos dois últimos dias, a primeira coisa que fiz
após acordar foi justamente verificar se elas ainda se
encontravam em cima da mesa ou se haviam retornado
ao sonho de onde vieram. Mas que mal pode haver em
assisti-las? Tudo bem, eu fiquei impressionado com a tal
velha do sonho. Fiquei surpreso quando encontrei a
seção que eu não conhecia. Fiquei assustado quando a

21
bibliotecária falou que as fitas não eram da biblioteca.
Tudo bem, fiquei apavorado e mais tarde não consegui
dormir porque voltei atrás e descobri que realmente não
havia seção 14 na biblioteca. Mas as fitas estão aqui.
Não vou conseguir me livrar delas sem assistir. Pode até
ser que estejam em branco, como a minha cabeça
nestes últimos dias. Quase chamei alguém para assistir
comigo, mas fiquei com medo de que as fitas não
existissem, e eu estivesse louco.
Tudo bem, fiquei meio perturbado com essa história
toda. Mas sei que estou são. Se estivesse maluco,
minhas idéias não iam se coordenar tão bem. Estou
apenas um pouco impressionado com a coisa toda. Mas
não dá para agüentar. Se é para o pior, que seja. A
incerteza é a pior das torturas.
Juntei todo meu amor e a minha coragem e me dirigi
para o quarto. Acho que apenas para dar um clima
doméstico, fiz pipoca e enchi um copo de Coca-Cola. Me
ajeitei na frente da TV e apertei o PLAY.

***

“Lá estava ela, radiante como sempre. Não. Mais. De


frente para o espelho, penteava o cabelo rapidamente,
com seu jeito meio espevitado, um sorriso no rosto. De
repente, o sorriso se transforma em surpresa e ela se
vira sobre a cadeira.”
Estava tão entretido com minha posição de autor-
personagem, assistindo o início da fita enquanto vivia o
final da história mentalmente, que levei um susto
quando a televisão emitiu um som.
—Who ARE you?
O sotaque meio arrastado do Kansas era mal disfarçado
pela convivência na cidade grande. Fiquei maravilhado
com o som da sua voz. Nem mais, nem menos do que
eu poderia imaginar. Simplesmente se encaixava
perfeitamente com aquele rosto. Inclinei-me para frente
com um sorriso bobo no rosto.
— Hey, I’m talking to you. Who are you?

22
— Just a fan — respondi, quase por instinto, com um
sorriso no rosto. Sua interpretação era perfeita, embora
eu não soubesse que filme era aquele. Seus olhos
olhavam diretamente nos meus, e pude ver toda a
profundidade tão badalada pelos críticos da época. —
You have the most beautiful eyes I ever seen —
completei, brincando de conversar com a tela.
— Thank you. But who let you in?
Mal pude ver seu sorriso enquanto pulava na sua
direção. Desliguei a televisão e o vídeo, tirei a fita como
se estivesse quente e a joguei no canto do quarto, na
direção da cestinha de lixo. Deitei-me na cama com o
rosto apertado no travesseiro e devo ter chorado por
puro medo durante uma meia hora. Tranquei o quarto,
tomei um banho frio apesar da noite não estar quente, e
saí para a rua para esfriar a cabeça. Naquele dia, o
pouco que dormi dormi no sofá, e apenas porque meu
corpo não agüentava mais ficar acordado.

***

Acordei com o corpo dolorido e pedi umas férias


urgentes no trabalho, alegando motivo de saúde. Juntei
algumas roupas numa mala e parti para a estrada.
Precisava descansar, pegar uma praia, pensar em coisas
diferentes. Antes de ir, porém, num último rasgo de
coragem, conferi se a fita havia sido quebrada, coloquei-
a na estante e saí sem olhar para trás.
A viagem foi realmente muito interessante. Há muitos
anos eu queria fazer uma viagem assim, sem
compromisso, sem ter para onde ir, pingando de
cidadezinha em cidadezinha por toda Minas Gerais até
chegar ao Rio e ao litoral. Subi por Cabo Frio e me
instalei numa praia pouco mais ao norte, cujo nome nem
me lembro mais. Tudo o que eu queria era descansar.
O sol e os exercícios físicos matinais me deram uma
nova energia, um novo sorriso no rosto. Agora, de
longe, a situação não parecia tão desesperadora.
Estranha, sim. Incomum, com certeza. Mas agora, com o
corpo restabelecido, eu tinha certeza da minha sanidade.
E com a certeza veio a saudade. E, com a saudade, a

23
esperança. Explicação? Segurança? Não preciso dela.
“Fugiu de mim quando eu era criança”, lembrei, com um
sorriso, a frase de uma poetisa amiga minha. Não, não
quero ter medo de viver. Se for para escrever, se for só
para desfrutar, não interessa mais.
Foi assim que, na segunda quinzena de novembro de
1992, voltei meu carro em direção a Brasília, em uma
viagem coberta de expectativas e esperanças, e estava
disposto a tudo para viver o que fosse necessário para
minha felicidade.

***

A fita entrou suavemente no vídeo, o ruído mecânico das


engrenagens quase inaudível. Apertei o pause antes que
ela começasse a rodar, e a imagem do sorriso de Louise
ficou tão congelada quanto muda na tela. Retrocedi a
fita, e vi passarem de trás para frente os poucos
segundos de nossa “conversa” anterior. O pensamento
óbvio me veio à mente: é só uma fita. Talvez o “meio-
diálogo”, ela conversando sem interlocutor, fosse um
recurso qualquer usado no início do cinema falado.
Talvez eu tivesse bancado o idiota todo esse tempo.
Com quase certeza disso, recomecei a fita. Lembrei da
expressão de seu olhar e de como ela parecia ter se
dirigido a mim, mas aqueles primeiros segundos se
repetiram como um filme sem graça, apenas com o
atrativo da sua voz...
— Thank you. But who let you in?
A hora. Respondo ou não respondo? “Vamos, você disse
que faria qualquer coisa”. Respondi, o peito apertado de
emoção:
— Eu... entrei aqui sozinho. Você é Louise Brooks, não
é?
— É, parece que você está ganhando. Eu ainda não sei o
seu nome.
— Alexandre. Alexandre Santos Lobão.
— Espanhol?
— Brasileiro.

24
Eu mal podia acreditar. Pausei a fita mais uma vez, e
soltei um suspiro profundo. Meu Deus! Era verdade! Eu
estava falando com ela! Não interessava como, mas eu
estava! Olhei para o seu rosto parado e uma onda
enorme de paixão me invadiu. Lágrimas vieram-me aos
olhos, e gastei alguns minutos pensando no que poderia
dizer. Cheguei, por fim, à conclusão de que nada que eu
pudesse planejar poderia ser tão bom quanto a
espontaneidade de cada momento. Continuei com a fita,
ansioso.
— Interessante. Nunca conheci um brasileiro. Mas,
afinal, o que você quer mesmo?
“Não posso descrever as próximas duas horas. Eu me
entreguei totalmente à conversa, e com tal avidez que
nem mesmo percebi que estava conversando em inglês.
Invenção da minha cabeça ou alguma magia sem
explicação, eu não sei. Só sei que ela estava lá. E o que
me conquistou ainda mais não foi o fato de ela ser
exatamente o que eu esperava, mas por possuir suas
particularidades, sua realidade ligeiramente diferente do
que eu pensava se encaixava como a última peça em um
quebra-cabeça, que não pode ser outra.”
Eu simplesmente não sabia o que escrever. A minha
história estava ficando... subjetiva demais para que eu
conseguisse passar para o papel. Naquela altura, as
palavras perdiam o significado. E ainda não consegui
descobrir como colocar no papel um sorriso, uma
lágrima, um olhar. E por tudo isso nós passamos. Seus
olhos grandes cada vez mais me cativavam, e eram
ainda mais belos quando eu percebia que também
estava refletido neles. Mas a parte final da nossa
conversa ficou marcada em fogo na minha mente,
palavra por palavra.
Em um certo momento ela se levantou e sentou ao meu
lado. A televisão mostrava apenas o seu rosto, seus
olhos, seu sorriso, e ela me olhou e pediu que eu
segurasse sua mão.
Instintivamente, levantei a mão em direção à tela, e por
alguns instantes acreditei que poderia tocá-la. Ela se
levantou bruscamente, foi de costas até sua cadeira e
começou a chorar. Como se movida pela minha vontade,

25
a câmera atravessou o aposento, chegando até perto
dela.
— Olha, eu não sei...
— Claro que você não sabe! Como poderia saber?
Desculpe o choro, acho que eu já sabia que não ia dar
certo. Aliás, não sei por que gastei tanto tempo com
você. Mas é que você me pareceu sincero. Você me
pareceu de verdade.
— Louise, sei que posso parecer bobo e apressado, mas
eu gosto muito de você. Muito.
— Você nem me conhece. Não sabe quem sou.
— Sei mais do que você imagina.
Assim que eu disse essas palavras, ela levantou a
cabeça com os olhos em brasa, como se tivesse acabado
de compreender a situação.
— E como, afinal, você chegou aqui? Você é um deles,
não é? Nunca vem ninguém diferente aqui! Como fui
idiota!
Sua tristeza parecia mudada em raiva, e cada vez eu
entendia menos.
— Deles quem? Do que você está falando?
— Você sabe muito bem. Só eles podem vir aqui.
— Eles quem, droga?! Os produtores, atores, quem?
— Não seja ridículo! Não vejo um produtor desde muito
antes de morrer!
Lágrimas vieram-me aos olhos. Eu quis balbuciar alguma
coisa, mas a voz me falhou. Antes que eu pudesse
pensar em qualquer coisa mais, a fita acabou e foi
substituída pelo chuvisco na TV, e o vídeo fez algum
barulho enquanto começava automaticamente a
rebobiná-la...

***

Assim que a fita retornou ao início, comecei a repassá-


la. Como eu havia imaginado, lá estava uma fita comum,
com meio diálogo, o que por si só já a tornava pouco
atraente. Mas o pior eu percebi aos poucos, e confirmei

26
quando revi nosso diálogo final: a imagem estava mais
gasta, menos nítida, como um filme antigo, e mesmo em
seus momentos de raiva a imagem não expressava toda
a força dos olhos e dos gestos daquela moça.
“Uma fita sem alma”, pensei, num arroubo poético que,
simplesmente, descrevia tudo o que eu sentia revendo o
tape.
O que me levou à próxima e inevitável questão: eu
ainda possuía duas fitas. Caso elas permitissem a
continuidade da minha conversa, eu teria, no máximo,
quatro horas mais com ela. Quatro horas por uma vida.
E, ainda, um mistério a resolver. E depois? Meu coração
apertou no peito e resolvi não pensar nisso. Tirei a
segunda fita cuidadosamente da caixa e a examinei por
alguns momentos, olhando contra a luz, à procura de
algum sinal que indicasse procedência. Nada. Sem
marca do fabricante, de quem gravou, nada. Apenas
uma fita preta. Nos fundos da fita, o título e uma cruz
em baixo-relevo. Sem produtor, sem companhia, nada.
Minha garganta ficou seca quando a luz da compreensão
veio a mim, na hora de inserir a fita no vídeo. Eu não
havia percebido na primeira, mas o título ficava de
cabeça para baixo. Ao seu lado, a cruz invertida pareceu
refletir o vermelho dos leds do vídeo, brilhando por
alguns instantes antes de ser tragada pelo ronronar das
engrenagens do videocassete.

***

Não deixei que a fita começasse. Descobri que precisava


pensar um pouco, digerir um pouco de toda aquela
informação que recebi de uma vez. Além disso, eu só
tinha mais quatro horas de conversa com ela. Será que
eu conseguiria encontrar novamente aquela senhora da
biblioteca? Sem chance.
Quatro horas. O pensamento me oprimia. No que eu me
metera, afinal? A essa altura do campeonato, já estava
aceitando qualquer explicação, mesmo que envolvendo
magia ou absurdo, que esclarecesse a situação.
Qualquer que fosse a explicação, nada me faria deixar
de ver as duas últimas fitas, mas a ansiedade no meu

27
peito não me fazia esquecer as palavras da estranha
senhora: “Isto é o que você precisa... ou o que eu
preciso, talvez...”.
Odeio café, mas mesmo assim me forcei a tomar um
copo cheio, sem açúcar, para manter as idéias em
ordem. Se eu bebesse, certamente seria um copo de
uísque, vodca ou pinga. Algo forte. Coloquei a xícara na
mesinha ao lado do sofá e apontei o controle para a
televisão, tomando coragem e disparando a próxima fita.

***

O jingle do comercial foi substituído pelo choro baixinho


de Louise, sentada na cadeira e apoiada na escrivaninha,
o rosto coberto pelos braços muito brancos. É estranho,

28
ela parecia ser naturalmente assim, em preto e branco,
embora eu soubesse que sua vida havia tido mais cores
que a da maioria das pessoas. Fui me aproximando
devagar.
— Louise?...
— Vai embora! Me deixa em paz!
— Louise, espera! Eu não sou quem você está pensando.
Para ser sincero, não sei como cheguei aqui. Não sei
nem se estou aqui realmente. Só fiquei com medo de
perdê-la caso você me tocasse. Não sei, estou confuso,
acho que não entendo mais nada.
Ela parou um pouco de chorar, levantando seus olhos
lindos e cheios de lágrimas para mim.
— Me abraça, por favor!
— Espere um pouco. Respire fundo e se acalme,
primeiro.
Dei alguns instantes para ela se acalmar, enquanto
olhava para mim. Por fim, ela perguntou:
— Quem é você?
— Eu já disse. Sou só uma pessoa que gosta muito de
você, um fã, se você quiser pensar assim, que teve
oportunidade de realizar aquilo que mais queria: ver
você, conhecê-la pessoalmente. Mais que isso, não sei
dizer.
— Como você chegou aqui?
— Não sei se posso dizer que estou aí. Na verdade,
estou vendo você na televisão, como se fosse uma
janela. Como você me vê?
— Vejo você aqui. Você não parece uma televisão.
O pensamento pareceu diverti-la, porque ela deu um
sorriso ainda meio triste. Suspirei aliviado.
Estendi novamente a mão na sua direção. Minha mão
tocou a tela na altura de seu rosto, e parou por ali. A
imagem correu um pouco e me mostrou sua mão se
levantando, lentamente, até se ajustar à minha, do
outro lado da tela. Seu rosto assumiu uma expressão de
estranheza.
— Que coisa esquisita! É como se tivesse um vidro aqui.
Mas só em volta de você.

29
Ela fechou a mão e bateu com o nó dos dedos na tela. O
alto-falante da televisão ressoou as batidas. Realmente,
isso estava cada vez mais estranho. Ela então se virou,
deu dois ou três passos de costas, brincando com o
vestido, e caiu sentada no sofá.
— Bom, é isso então. Só mais uma tortura daqueles
desgraçados. Eles me deixam falar com alguém, chegar
até perto, mas sem tocar. Droga!
Ela baixou a cabeça até os joelhos, e ia recomeçar a
chorar quando me aproximei.
— Não, Louise. Pare com isso e olhe para mim.
Ela continuou com a cabeça baixa.
— Droga, olhe pra mim! Preste atenção!
Ela levantou os olhos cansados na minha direção, e eu
me forcei a dar um sorriso.
— Olha, só posso ficar aqui com você mais... (olhei para
o vídeo) três horas e quarenta minutos. Mas a gente não
precisa e nem deve fazer disso uma tortura. Vamos nos
divertir um pouco, conseguir um pouco de alívio pra mim
e pra você. Usar essa oportunidade como uma forma de
conseguir mais forças para continuar. Além disso, acho
que posso tocar você. Porque você já me tocou.
Coloquei a mão dentro da blusa e fingi que era o meu
coração batendo. Ela riu e pareceu mais animada.
— Você quer dançar? Só não pode ser de bochecha
colada!
— Você tem música por aí?
— Claro! De que tipo você gosta?
— De tudo! Algo rápido, de preferência.
Dançamos por algum tempo, desde rock dos anos
cinqüenta e sessenta até música baiana, que ela gostou
e até me mostrou outras formas de dançar. Ela me
perguntou por alguns cantores antigos, de quem nunca
ouvira falar. Mostrei-lhe regravações de algumas
músicas de Cole Porter por artistas mais novos. Por fim,
nos sentamos, e a imagem correu como se eu tivesse
me sentado ao seu lado.
Ela parecia viver mais intensamente as memórias da sua
juventude, embora se lembrasse de tudo até a sua

30
velhice, e me contou que um dia foi simplesmente
assim, ela acordou naquele lugar, novamente jovem,
porém prisioneira de um aposento pouco maior que meu
quarto. Não havia como sair. Havia sempre algo para ler
ou fazer, e nunca faltou comida nem água, embora ela
não soubesse me dizer há quanto tempo estava por ali.
Não havia janelas, e sinceramente eu não sei se seria
bom ver o que ocorria do lado de fora do aposento. Ela
me mostrou a única porta, sempre trancada e que havia
desistido de abrir após muitas tentativas frustradas.
Falou-me então das visitas. Pessoas estranhas e com os
olhos embaçados, que sempre iam ali para escarnecer
dela. Pelo que eles falavam, parecia que estavam
sempre observando, e sempre conseguiam dizer o que
parecia ser o mais doloroso para ela. A lembrança trouxe
lágrimas aos seus olhos, e mudamos de assunto. Em
pouco tempo, ela se espreguiçou gostosamente e sorriu
para mim.
— Alexandre, estou um pouco cansada. Acho que vou
dormir um pouco. Obrigada por tudo! Realmente você
fez com que eu me sentisse muito bem.
— Obrigado. Você também me ajudou muito. Acho que
vou conseguir dormir realmente em paz, pela primeira
vez em semanas!
Olhei de relance para o contador do videocassete. Ainda
restavam cinco minutos de fita. Olhamo-nos ainda por
alguns momentos, e levantei a mão em despedida.
— Pode deitar. Eu já vou.
— Boa noite.
— Boa noite. Durma bem.
A câmera se afastou, mostrando de um canto o quarto e
sua cama. Ela se deitou, cobriu-se com um lençol fino e
apagou a luz. Fiquei reparando na sua silhueta esguia,
de costas para mim. As palavras simplesmente brotaram
na minha boca, enquanto a imagem se aproximava
novamente.
— Louise, você já pensou em rezar?
Ela virou-se, meio assustada. Seus olhos pareciam
brilhar no escuro, tal a força da sua personalidade.

31
— Ah, você ainda está aí? Desculpe, achei que você
tinha ido. O que disse?
— Você já pensou em rezar?
— Não. Nunca pensei. Deveria? Acho que ia ser meio
hipócrita, a essa altura.
— Não sei. Sempre é hora de começar. Sabe, eu sinto
como se rezar fosse um desabafo; se não resolver nada,
pelo menos a gente se sente mais leve.
— Que nem chorar.
— Melhor. Bom, é só uma idéia. Meu tempo está
acabando. Amanhã de manhã a gente se fala.
— Até amanhã, então.
— Até amanhã.
A câmera foi se afastando lentamente, seus olhos
pousados nos meus.
— Alexandre?
— Oi?
— Eu também estou gostando muito de você...
Não pude dizer mais nada. A TV começou a chuviscar e a
fita foi sendo rebobinada, enquanto eu arrumava minha
cama para o repouso de que tanto precisava. Antes de
dormir, porém, rezei com uma convicção que há muito
não tinha, e pedi que Alguém olhasse por ela.

***

Acordei quase ao meio-dia, tomei banho, fiz a barba e


fui almoçar. Minha alma estava leve, e fiquei
desenhando nos guardanapos do restaurante enquanto
esperava a pizza chegar. Sorria a toda hora lembrando
da noite anterior. A lembrança, porém, de que só
poderia ver Louise por mais duas horas me deixou sem
fôlego. Como esquecer que os minutos estavam
contados, por mais deliciosos que fossem? Mas eu não
tinha o direito de estragar com saudade as nossas
lembranças. Deveria parecer forte, mesmo que meu
coração estivesse destruído no peito... Percebi com um
sorriso a flutuação do meu humor, da alegria para a
sobriedade, e tentei retornar à leveza. Almocei bem,

32
apesar da sensação de enjôo que se instalou quando
lembrei que só tinha mais duas horas. Satisfeito e
novamente sorrindo, fui para casa e me instalei na
frente do vídeo.

***

Apenas para confirmar minhas suspeitas, repassei o


início da segunda fita, e percebi que ela havia entrado
naquele estado apagado que eu havia observado na
primeira. Tentando não pensar no que eu faria depois
que a última fita acabasse, coloquei a terceira fita no
vídeo e corri para o sofá. A imagem foi aparecendo
devagar, do escuro para o claro, e pude ver Louise
ajoelhada ao lado da cama, a testa apoiada sobre as
mãos fechadas. Não me aproximei.
— Deus, eu sei que nunca procurei saber de Você, e fico
envergonhada por buscá-Lo numa hora assim, de
necessidade, porque não O procurei quando precisava
dividir minha alegria com alguém. Sei que eu fiz alguma
coisa para merecer isso, que não pode ser ruim assim
para todo mundo. Eu... eu acho que só gostaria de
agradecer por toda a vida que levei, e gostaria de
agradecer por poder falar com Você mesmo agora.
Obrigada. Amém.
Não deu para evitar as lágrimas que me vieram.
Disfarcei como pude e pigarreei. Ela se levantou e virou-
se para o meu lado.
— Alexandre?
— Oi, Louise. Dormiu bem?
— Bem demais. Você acordou agora?
— Não, já até almocei.
— Tão cedo?
— Por aqui já é quase uma e meia.
— É, pensei que fosse mais cedo. E aí? O que vamos
fazer hoje?
Seu sorriso me absorveu, enquanto eu respondia
mecanicamente.

33
— Não sei. Estava pensando em conversar algumas
coisas mais sérias.
— Por exemplo?
— Por exemplo, o que vamos fazer... depois? Só posso
falar com você mais duas horas. Já pensei sobre isso,
não vale a pena perdermos essas horas nos lamentando,
mas eu queria falar um pouco sobre isso.
Ela ficou mais séria. Foi até a cadeira e se sentou ao
contrário, apoiando os braços e o queixo no encosto.
— Pode começar.
— Não sei direito. Primeiro, gostaria de saber o que você
pensa sobre isso.
— Eu não parei para pensar, ainda. Depois eu penso.
Agora, quero viver.
— Mas eu acho que é legal a gente pensar um pouco. Eu
não quero que a minha lembrança sirva como mais uma
coisa para atormentar você. Mais uma dor.
— Alexandre, você me deu algo mais que lembranças.
Eu não posso tocar em você fisicamente, mas como você
falou, existe muito mais. Você já me tocou. Ontem
pensei muito antes de cair no sono, e agora estou mais
tranqüila, e sei que vou continuar assim. Eles não vão
mais me atormentar tão fácil. Estou mais forte. E esta
noite sonhei com uma planície muito tranqüila, e depois
com um campo lindo, cheio de flores, com muito sol e
pássaros. Foi o primeiro sonho que tive desde que
cheguei aqui. Obrigada.
— Não, obrigado a você. Você é mais linda que eu
pensava. Muito mais. Tenho certeza de que tudo vai ficar
bem.
Nesse momento, meus olhos foram atraídos para o
contador do videocassete. Com um frio na espinha,
percebi que os números corriam céleres, e já havia
passado meia hora de filme.
— Louise, alguma coisa está acontecendo! O tempo está
correndo mais rápido que deveria! Só temos mais alguns
momentos juntos. Dois ou três minutos.
Ela deu um sorriso triste. Comecei a chorar, percebendo
que não ia conseguir ser forte naquele momento.
— Eu te amo!

34
— Eu também. Não se preocupe comigo, vou estar bem.
Você me deu algo que não poderei nunca pagar:
esperança. E compreensão.
Olhei o contador. Os números começaram a ir mais
depressa. Estiquei a mão em sua direção, e ela estendeu
a sua para mim. Ficamos tocando a tela, a um universo
de distância. Nossos olhares se cruzaram e nossos
corações se uniram mais uma vez. Não havia palavras a
dizer naquele adeus.
Com os olhos cobertos de lágrimas, quase não vi a luz
se abrindo atrás dela, como uma passagem, enquanto a
porta do quarto se abria e entravam a velha que eu
conhecera no sonho na biblioteca e dois homens grandes
e deformados. Com os braços sobre os olhos, eles
tentaram se aproximar de Louise, mas a luz os mantinha
à distância. Com a mão ainda sobre a tela, Louise olhou
para trás e se virou sorrindo para mim, os olhos cheios
de lágrimas.
— Alexandre, é o campo com que sonhei! Que coisa
mais linda!
Senti o calor da sua mão na minha, e seus dedos se
entrelaçaram nos meus. Beijei-os pouco antes de nos
separarmos, e ainda tive tempo de me despedir:
— Boa viagem, meu amor!
A luz se apagou. A velha olhou com fúria na minha
direção. Entre os palavrões que ela começava a falar,
minha voz soou mais alto.
— Não, velha, não adianta reclamar. Não sei quem é
você, mas seu plano não deu certo. O desespero se foi.
Você perdeu.
A fita passava lentamente de novo, os últimos segundos
contados devagar. Suspirei de alívio, olhando e sorrindo
para a velha.
— E a senhora? Já pensou em rezar?
— Ora, seu...
A fita terminou e o chiado da televisão se misturou com
a minha gargalhada. Mais vivo do que nunca, liguei para
o meu trabalho, avisando que amanhã iria trabalhar.
Não, hoje não. Hoje tenho uma história para terminar de
escrever.

35
Para saber mais sobre Louise Brooks:

The Louise Brooks Society


http://www.pandorasbox.com/

36
O primeiro fan-clube virtual a ser criado, possui tudo o
que se poderia querer saber sobre a atriz.

Louise Brooks Stuff


http://www.cps.net.au/
Página com muitas informações sobre a atriz, incluindo
uma muito bem organizada cronologia de sua vida.

Existem ainda dezenas de outros sites, que podem ser


acessados a partir da sessão de links destes dois.

**********

37
Sobre o Autor e sua obra:

Alexandre Santos Lobão é um


brasiliense nascido no Rio de Janeiro, em março de
1969. Quase antes de aprender a ler, mergulhou em
obras de Júlio Verne, Alexandre Dumas e outros autores
da literatura universal, influências que o acompanham
até hoje.
Escritor desde os doze anos, Alexandre já havia
participado de antologias de escritores em Brasília e em
Minas Gerais, além de escrever artigos para revistas
locais e para sites na Internet. Já escreveu diversos
livros infantis (ainda não publicados), roteiros para
histórias em quadrinhos e um roteiro para cinema -
"Uhuru" (liberdade, em idioma swahili).
"A Caixa de Pandora" é o seu primeiro trabalho editado,
tendo sido apresentado primeiramente na Romênia, para
universidades cujos cursos de Letras estudam o
português e para algumas bibliotecas do país. Duas
editoras estão avaliando o livro para possível tradução e
publicação naquele país.
Dono de um estilo próprio de escrever, o autor
apresenta suas histórias de maneira viva, quase como
em uma conversa, envolvendo com a mesma facilidade o
leitor tanto em situações cotidianas quanto em
realidades diversas que por vezes chegam ao limite da
imaginação.

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O lançamento no Brasil será realizado por duas editoras
de maneira simultânea: Em Brasília, no Restaurante
Vercelli, pela Editora Thesaurus, e na Internet pela
editora Writers.

Para corresponder com Alexandre Santos Lobão,


escreva: alobao@microsoft.com

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