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SETEMBRO 2023 48ª EDIÇÃO

R E V I S T A

Leituras especiais para o


seu feriado
Uma seleção de conteúdos para se divertir
e refletir

Conheça os humoristas Quem foi o pivô do


mais politicamente maior engano histórico
incorretos do Brasil de nossa era
Índice

Editorial: Os populistas e a arte de enganar 03

Bruna Frascolla: Vocês já ouviram falar de


12
Speenhamland?

Samia Marsili: É preciso mudar de vida 25

Que o STF não os ouça: quem são os humoristas


46
mais politicamente incorretos do Brasil

“Tente isso numa cidade pequena”: os cantores


57
country que estão tirando a esquerda do sério

Bartolomeu de Las Casas, o pivô do maior


72
engano histórico de nossa era

“12 Homens e uma Sentença”: a maior


125
obra-prima dentre os dramas de tribunal

💡 USUÁRIO DE ANDROID: PARA NAVEGAR UTILIZANDO OS


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2
O presidente Lula e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, NO lançamento do
Plano Safra, em junho.| Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

EDITORIAL.

Os populistas e a arte de
enganar
Desde a campanha do ano passado até agora,
oito meses após a posse, o presidente Lula cole-
ciona várias declarações públicas em assuntos
de economia que, juntadas às falas de alguns

3
ministros e parlamentares apoiadores do go-
verno, produzem um conjunto de afirmações
cujas partes conflitam entre si e agridem a mais
elementar lógica econômica. Entre tantas de-
clarações conflitantes, algumas são repetidas
com certa insistência, a começar pela fala de
Lula que, enquanto houver pobres, não haveria
sentido em fixar teto para os gastos do governo.
Essa foi a razão invocada por Lula para propor e
conseguir, no Congresso, a revogação da lei do
teto de gastos fixada no governo Temer.

Outra declaração de Lula, repetida pelo ministro


da Fazenda, Fernando Haddad, é a de que o
déficit público não é um problema e que seu
governo iria colocar o pobre no orçamento.
Isoladamente, a ideia embutida nas declarações
(ajudar os pobres) é positiva e, como objetivo,
está correta. Para um pobre que ouve essas

4
declarações, soa como se o governo fosse
aumentar os gastos direcionados aos pobres
sem se limitar ao teto fixado na lei, que foi
revogada. É o mesmo caso do déficit público: as
falas sugerem que o déficit será feito porque o
governo vai gastar o valor equivalente com os
pobres de algum modo e que, por isso mesmo, o
déficit não tem consequência negativa.

Houve também declarações públicas do minis-


tro Haddad, que o tempo todo ameaça aumentar
impostos existentes ou criar tributos novos,
como tributar dividendos, aumentar o imposto
sobre herança (que é de competência estadual,
não federal), criar imposto sobre grandes fortu-
nas, tributar as empresas off-shore (aquelas
que são montadas por brasileiros fora do Brasil)
etc. O ministro Haddad, fiel ao estilo do chefe
Lula, usa o mesmo argumento: colocar o pobre

5
no orçamento, o que nada mais é que uma frase
de efeito, um engodo, como se o orçamento pú-
blico no Brasil nunca tivesse gastado dinheiro
com programas direcionados aos pobres e como
se realmente fosse assim que o governo gasta
quando aumenta tributos.

A combinação de mais impostos, mais


déficits e mais dívida gera um
conjunto de efeitos negativos de
forma a castigar de forma mais cruel
justamente aqueles que o governo
afirma defender: os miseráveis, os
pobres e os assalariados

Vale lembrar a fala de José Sarney, que assumiu


a Presidência da República em 1985, na qual ele
reclamava que a carga tributária naquele mo-
mento era de 21% sobre o Produto Interno

6
Bruto (PIB), quando poucos anos antes chegara
a 25% do PIB, para então concluir dizendo que,
se a carga tributária nacional aumentasse qua-
tro pontos e retornasse aos 25% do PIB, o go-
verno venceria a pobreza. Pois a carga tributária
cresceu ano a ano e hoje atinge 34% em valor
efetivamente arrecadado pelos cofres públicos,
sem que nem a miséria nem a pobreza tenham
sido extirpadas, e a razão é simples: os aumen-
tos tributários vão para sustentar as corpora-
ções mais bem remuneradas no setor estatal,
inchar a máquina de governo, dar a servidores
benefícios que o resto da população não tem, e
fazer gastos que nem de longe melhoram a vida
dos pobres e dos miseráveis.

A técnica de lançar declarações disparatadas e


dizer que tudo é feito pelos pobres e para os
pobres, além de mentirosa e desonesta inte-

7
lectualmente, tem um propósito: colocar o ró-
tulo de “inimigo dos pobres” na testa de quem
argumenta contra as medidas que aumentam
gastos, aumentam impostos, fazem déficits e,
por consequência, aumentam cada vez mais a
dívida pública. Um fenômeno que tem ocorrido
com persistência no Brasil é a elevação da carga
tributária, que nunca tem sido suficiente para
cobrir os aumentos de gastos públicos; por isso,
a dívida pública não cessa de crescer.

A combinação de mais impostos, mais déficits e


mais dívida gera um conjunto de efeitos negati-
vos de forma a castigar de forma mais cruel jus-
tamente aqueles que o governo afirma defen-
der: os miseráveis, os pobres e os assalariados.
Não é preciso malabarismo técnico para con-
cluir que a tríade impostos, déficits e dívidas
fomenta a inflação, reduz os fundos disponíveis

8
no sistema bancário para financiar os negócios
privados, provoca elevação da taxa de juros,
diminui os investimentos privados, retrai a
capacidade de investimento do governo, freia o
crescimento do PIB, enfim, impede o país de
crescer de forma saudável com estabilidade de
preços, aumento do emprego e elevação da
renda por habitante.

Quando esses efeitos chegam, os mesmos


políticos populistas que defenderam as medidas
responsáveis pelas consequências dedicam-se a
xingar os bancos, os banqueiros, o “neolibe-
ralismo” (que ninguém sabe bem o que é), a
crise internacional, o Banco Central e o Fundo
Monetário Internacional (FMI). Adicional-
mente, eles começam a propor aventuras como
o calote na dívida pública interna e na dívida
externa, o tabelamento de juros e, de novo, mais

9
aumento de impostos. Em várias oportunidades
esse foi o roteiro de campanhas feitas pelo PT e
suas entidades-satélites, não esquecendo que a
Argentina e seus governos populistas são os
mais contumazes em seguir esse figurino
desastroso.

O Brasil está às voltas com uma reforma tribu-


tária – já aprovada na Câmara dos Deputados,
atualmente tramitando no Senado Federal –,
cujo efeito em termos de aumento da carga
tributária é desconhecido no mínimo por uma
razão: as alíquotas do Imposto de Bens e
Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e
Serviços (CBS) serão fixadas posteriormente,
em lei complementar, sem que ninguém possa
prever o que sairá disso. Historicamente, nunca
houve reforma tributária que tenha reduzido a
carga tributária e nada indica que será diferente

10
agora. Ainda que ela traga o aspecto positivo de
desmontar o hospício tributário brasileiro, as
dúvidas são enormes. Neste momento, as
atenções se voltam para o Senado Federal, que
vem sendo pressionado de todos os lados para
aprovar exceções e modificações sobre a
estrutura da reforma recebida da Câmara dos
Deputados. O país tem de ficar atento para não
incorrer no risco de ter elevação substancial da
carga de impostos, que hoje já é alta.

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11
Camponeses ceifando trigo a iluminura de um calendário inglês do século XIV.|
Foto: Anônimo/Domínio público

OPINIÃO.

Bruna Frascolla

Vocês já ouviram falar de


Speenhamland?
Eu nunca tinha ouvido falar da lei de
Speenhamland até ler A grande transformação,

12
de Karl Polanyi, e ficar com a sensação de que
não conhecemos nada da experiência liberal do
século XIX. Pois bem, a lei foi basicamente o
Bolsa Família inglês do século XVIII, que foi
objeto de intensa discussão e rechaço no século
XIX. Quando a lei acabou, sua natureza deletéria
era consensual. Não obstante, Speenhamland
foi e é repetida nos últimos séculos sob as mais
diferentes roupagens políticas.

Cheguei a Polanyi através de Por que o


liberalismo fracassou?, do pós-liberal Patrick
Deneen. Mas não é difícil encontrar A grande
transformação no Brasil porque o livro é
benquisto pelos marxistas heterodoxos dos
anos 70, e a versão que tenho é da editora do
comunista César Benjamin, a Contraponto.

13
Todavia, Polanyi parece ser mais um autor
antimarxista amado pelos marxistas
heterodoxos do Brasil. Um, do qual já tratei
aqui, é Max Weber. E a razão do antimarxismo
de ambos é, grosso modo, a mesma: Marx erra
ao dar à matéria importância determinante e
negligencia a dimensão moral da vida social.

Para Polanyi, Marx estava longe da solidão em


tal erro. Ao contrário, ele apenas deu
continuidade ao erro dos liberais. Assim, faz
todo o sentido um pós-liberal acolher a obra de
Polanyi, cujo subtítulo é: "As origens políticas e
econômicas de nossa época." A época referida é
a II Guerra Mundial; 1944 é o ano de
lançamento do livro. O autor era um cristão
novo criado como calvinista na Hungria; e, por
causa de sua ancestralidade judaica, teve que
fugir do continente europeu.

14
Em meio à miséria e ao caos social
dos cercamentos, então, criou-se a
Lei de Speenhamland em 1795

Vamos à História. Em A grande transformação,


é-nos dito que a Inglaterra criou e impôs ao
mundo a sociedade de mercado autorregulado.
Esta, até a época do padrão ouro, se baseava em
três ficções: que a terra, o trabalho e o dinheiro
são mercadoria. "Nenhum deles é produzido
para venda. A descrição do trabalho, da terra e
do dinheiro como mercadorias é inteiramente
fictícia. No entanto, com a ajuda dessa ficção
organizam-se os mercados de trabalho, da terra
e do dinheiro" (p. 134). Polanyi então relata
como cada qual dessas três coisas passou a ser
tratada como mercadoria.

15
O começo dessa revolução deu-se com a
transformação da terra em algo que deveria ser
usado para extrair lucro. Na Idade Média, cabia
à maior parte da plebe produzir alimentos no
campo, e à nobreza cabia proteger a cristandade
de ataques bárbaros. A cristandade incluía,
naturalmente, a plebe camponesa. O nobre
tinha, portanto, deveres para com o camponês.

O mundo decerto era muito mais rural, mas


existiam os centros urbanos que se abasteciam
do excedente produzido pelo campo. Na feira —
uma instituição medieval muito viva no
Nordeste brasileiro, e que, na Europa de
Polanyi, era considerada extinta —, esse
excedente era trocado por moedas cujo valor
residia no metal. Nos centros urbanos, ou
burgos, vigorava a economia ligada ao dinheiro.
Na maior parte do tempo, essa economia era

16
coisa de comerciante, uma classe tida por
aventureira, afastada da vida estável. Na
Inglaterra em particular, a produção de tecidos
ia de vento em popa. E essa produção começava
lá no mundo rural, com as ovelhas lanígeras.

Assim, os nobres ingleses começaram a ganhar


dinheiro com as terras por meio do pasto. A
coisa foi aumentando até os nobres começarem
a demolir as casas dos camponeses, a
expulsá-los das terras aráveis onde viviam
havia gerações e a cercá-las para criar ovelhas
lanígeras. A função da terra passou a ser o lucro.
"Os cercamentos", diz Polanyi, "foram
oportunamente chamados de revolução dos
ricos contra os pobres. Os senhores e os nobres
perturbaram a ordem social, violando leis e
costumes antigos [...]. Aldeias desertas e ruínas
de antigas moradias humanas atestaram a

17
ferocidade da revolução, pondo em risco as
defesas do país, destruindo suas cidades,
dizimando sua população, transformando em
poeira o solo sobrecarregado, perseguindo as
pessoas e fazendo-as passar da condição de
agricultores decadentes a uma turba de
mendigos e ladrões" (p. 89).

A instância superior à nobreza, sobretudo após


a ruptura de Henrique VIII com o Papa, era a
Coroa. Assim, "o rei e seu conselho, os
chanceleres e os bispos defendiam o bem-estar
da comunidade e, a rigor, a substância humana
e natural da sociedade, tentando enfrentar o
flagelo. De modo ininterrupto, durante quase
um século e meio — desde a década de 1490,
pelo menos, até 1640 — lutaram contra o
despovoamento" (p. 89). Ao cabo, a Coroa foi
deposta, a Inglaterra virou uma República (a

18
Commonwealth de Cromwell) e a monarquia só
foi restaurada com reis sem capacidade ou
disposição de brigar com o Parlamento (que era
o grande entusiasta dos cercamentos).

Em meio à miséria e ao caos social dos cerca-


mentos, então, criou-se a Lei de Speenhamland
em 1795. No dia 6 de maio desse ano, "os ma-
gistrados de Berkshire [...] decidiram que se
deveriam conceder subsídios para complemen-
tar os salários, de acordo com uma tabela ba-
seada no preço do pão, para que se assegurasse
aos pobres um rendimento mínimo, indepen-
dentemente de seus proventos" (p. 140). No
começo, tudo foi lindo: "Nunca houve medida
mais popular. Os pais eram liberados de cuidar
dos filhos, os filhos já não dependiam dos pais,
os patrões podiam reduzir os salários como lhes
aprouvesse e os trabalhadores ficavam

19
protegidos da fome, fossem eles diligentes ou
preguiçosos" (p. 142).

Mas os efeitos deletérios foram os mais varia-


dos. Esse "Bolsa Família" original era dividido
por condados, organização parecida com mu-
nicípio. Assim, as contas dos condados menores
eram exauridas pelo pagamento dos auxílios.
Como a lei durou décadas, ela, que já encontrou
um cenário de desintegração social, fomentou
uma corrosão da moralidade do povo: no
começo, depender dos impostos era motivo de
vergonha; depois, foi naturalizado ao ponto de
as pessoas preferirem a indigência subsidiada
em vez do trabalho.

20
Após o fracasso consensual de
Speenhamland, por que os liberais
da Escola de Chicago em diante
passaram a defender o "imposto
negativo", que nada mais é que a
lógica de Speenhamland?

De outro lado, os empregadores tampouco se


sentiram instados a pagar salários decentes. Se
os pobres tinham, sem trabalhar, a subsistência
garantida, não havia por que pagar salários que
bastassem à sobrevivência; pagava-se uma
mesadinha miserável. Na prática, o auxílio aos
pobres era um subsídio aos patrões. E não raro
um trabalhador ficava no zero a zero, traba-
lhando para pagar o imposto que ele mesmo iria
receber: era "rico" o bastante para pagar e
"pobre" o bastante para receber.

21
Segundo Polanyi, Speenhamland foi "uma ten-
tativa de criar uma ordem capitalista sem mer-
cado de trabalho" — e "falhara redondamente"
(p. 143). A lei acabou em 1834, e depois disso a
Revolução Industrial deslanchou de verdade.
Como consequência, os cercamentos aumenta-
ram em maior intensidade e a desagregação
social também — junto com a riqueza desigual-
mente espalhada pela sociedade. Por isso, as
coisas pareciam estar ligadas. Ricardo, Malthus,
Marx... todos os observadores da realidade
inglesa achavam que a sociedade industrial
estava necessariamente ligada à espoliação dos
pobres. Polanyi atribui a Robert Owen, sozinho,
a capacidade de perceber a seguinte realidade:
"as possibilidades humanas [são] limitadas,
não pelas leis de mercado, mas pelas da própria
sociedade" (p. 148). E assim, no século XX, a
sociedade começou a se proteger da anarquia

22
causada pelo mercado. Valeu-se de coisas tão
banais quanto leis contra a exploração infantil
até tão extremas quanto a instauração de um
Estado forte controlador do mercado.

Disso tudo, porém, fica uma curiosidade insa-


tisfeita: após o fracasso consensual de
Speenhamland, por que os liberais da Escola de
Chicago em diante passaram a defender o "im-
posto negativo", que nada mais é que a lógica de
Speenhamland? Friso ainda que os liberais de
Viena tiveram, no começo do século XX, ocasião
para criticar um sistema semelhante (como se
pode ver nos apêndices do livro de Polanyi).
Tenho pra mim que é de propósito para atacar a
indústria ocidental e transferir tudo para a
China, já que a ascensão da Escola de Chicago
coincidiu com essa migração. No Brasil em
particular, o Bolsa Família foi baseado no

23
imposto negativo de Milton Friedman, como já
esclareceu Marcos Lisboa.

Post scriptum: Os interessados em história do


Brasil gostarão de saber que Perfilino Neto,
vulgo Enciclopédia do Rádio, não deixou passar
batida a efeméride do suicídio de Getúlio
Vargas, ocorrida a 24 de agosto de 1954. Esta
quinta, no 69º aniversário, apresentará em sua
rádio um programa especial previsto para as 9h
e 21h, com possibilidade de algo em torno de 20
minutos de atraso devido ao servidor.

Autor: Bruna Frascolla é doutora em filosofia pela


UFBa e autora de "As ideias e o terror" (República
AF, 2020).

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24
| Foto: NoName_13/Pixabay

OPINIÃO.

Samia Marsili
É preciso mudar de vida
Assim que chegou a Nova York, Henry Davis
revelou à esposa as razões de sua partida:
jamais quisera aquela vida que eles tinham

25
juntos. Pensou que quisesse, pensou que estava
feliz, mas não estava. Não queria a casa, nem o
apartamento, e não queria saber da guarda das
filhas. Eles haviam dormido na mesma cama
por 20 anos, e desde esse dia Flobelle Burden
não teve mais qualquer informação concreta a
seu respeito – como se sentia, o que faltava em
seu relacionamento, por que as estava
abandonando assim, que importância tinha
para ele aquela outra mulher. Ele parou de
atender a suas ligações, e o processo de divórcio
correu frio e duro, como um cadáver. Ela tocou a
vida, mesmo sem respostas para suas muitas
dúvidas, que faziam sua própria história
parecer-lhe um filme do qual ela perdera o
meio. Às vezes vê o ex-marido de longe na
cidade, andando altivo com seus tênis
cor-de-laranja, e, embora seu coração palpite,

26
tem muito claro que não passa de um completo
estranho.

Esta história foi contada dois meses atrás, no


The New York Times, pela própria personagem.
O desfecho se deu entre os dias 21 e 22 de março
de 2020, menos de uma semana depois de o
casal e as duas filhas, então com 15 e 12 anos,
terem se acolhido em sua casa de veraneio na
ilha Martha’s Vineyard, para passarem juntos o
incerto período de lockdown que se iniciava. À
noite, quando Flobelle limpava o chão da
cozinha após o jantar, atendeu ao telefone, e
uma voz lhe revelou: “Lamento dizer que o seu
marido está tendo um caso com minha esposa”.
O marido mostrou-se arrependido, disse que a
amava e que aquele deslize não significava
nada. Ao nascer do sol, porém, com os olhos

27
vidrados, ele anunciou sua partida, para nunca
mais voltar.

Não resta dúvida de que alguma coisa chegou ao


limite dentro daquele homem, que – como disse
o Pedro Sette-Câmara, admirado com a mesma
história – pode ter se tornado um estranho para
si mesmo, antes de ser um estranho para os
outros, para a própria mulher. Pode ser que,
ainda jovem, tenha optado por uma faculdade
que lhe desse segurança, e tenha feito escolhas
de trabalho e de encaminhamento na vida
movido pelo mesmo medo. Enamorou-se por
quem lhe pareceu desejável e disponível, e, por
inércia ou por ímpeto, casou-se; teve dois
filhos, como todo mundo faz, e continuou
perseguindo o status e o dinheiro, bancando
pequenos escapismos como viagens, carros,
móveis, e anestesiando-se com a comida, a

28
bebida, a televisão, o sono. O ser humano é
altamente capaz de se enganar assim por longas
décadas, até que, quando os astros marcam no
céu aquilo que se convencionou chamar de
“crise da meia-idade”, e a velhice e a morte
começam a se afigurar no horizonte como
inescapáveis, você percebe que ninguém o
conhece de verdade, você mesmo não sabe mais
quem é, como chegou ali, e está completamente
alheio à própria vida, o que gera uma angústia e
um sufocamento insuportáveis, tanto que é
melhor largar tudo e todos para trás em vez de
meter uma bala na cabeça.

29
Se não houver esforço e coragem da
nossa parte, e apenas medo, desejo
de segurança, de entorpecimento,
de fuga, tudo o que faremos será
criar uma farsa ao nosso redor, com
máscaras de papel que, à primeira
cheia, derreterão

Quando chegou ao limite, Henry Davis decidiu


mudar de vida. Mas, creio que ninguém vá
discordar, fez isso um pouco tarde... Desertou
covardemente de uma pseudovida que
construíra, não só para si, mas para sua mulher
e para duas filhas, sem falar no restante da
família e os amigos. Represou o desejo de
sentido, a vocação que soava dentro de sua
alma, e que talvez nunca tenha parado para
ouvir, com as formas sociais e convencionais
mais à mão, mais óbvias, mais seguras. E,

30
quando a pressão estourou os diques, foi
arrebatado para longe por seu caudaloso e
desesperado acúmulo. Tenho em mente algo
que disse Luigi Pirandello (escritor italiano
muito interessado na fragilidade dos papéis
sociais), em L’umorismo, de 1908:

“A vida é um fluxo contínuo que nós


procuramos deter, fixar em formas estáveis e
determinadas, dentro e fora de nós (...). As
formas, em que procuramos deter, fixar em nós
esse fluxo contínuo, são os conceitos, são os
ideais em relação aos quais queremos nos
conservar coerentes, todas as ficções que nós
criamos, as condições, o estado em que
tendemos a estabelecer-nos. Mas dentro de nós
mesmos, naquilo que chamamos alma, e que é a
vida em nós, o fluxo continua, indistinto, sob os
diques, além dos limites que nós impomos, ao

31
compor-nos uma consciência, ao construir-nos
uma personalidade. Em certos momentos
tempestuosos, acometidas pelo fluxo, todas
aquelas formas fictícias ruem miseravelmente;
e também aquilo que não escorre sob os diques e
além dos limites, mas que se nos revela distinto
e que nós havíamos cuidadosamente canalizado
em nossos afetos, nos deveres que nos
impusemos, nos hábitos que traçamos, em
certos momentos de cheia transborda e revolve
tudo.”

Pode ser que o autor siciliano, um tanto cético


ou pessimista, visse essas formas tão somente
como “ficções que criamos”, e nunca como
encarnações válidas do sentido, como a matéria
que temos à disposição para moldar uma vida
verdadeira com base em ideais autênticos,
enfim, como canalizações salutares da força

32
criativa da vida, que, em vez de “transbordar e
revolver tudo”, passa a operar em nós, a
fecundar nossa biografia. De qualquer modo, a
sua ideia é esclarecedora, pois, se não houver
esforço e coragem da nossa parte, e apenas
medo, desejo de segurança, de entorpecimento,
de fuga, realmente tudo o que faremos será
criar uma farsa ao nosso redor, com máscaras
de papel que, à primeira cheia, derreterão, e nós
seremos colocados, sem escapatória a não ser a
loucura, assim como Henry Davis naquele 21 de
março, diante da divisa máxima: é preciso
mudar de vida.

Nada garante que, num ou noutro momento de


nosso itinerário sobre a Terra, não tenhamos de
fazer grandes e radicais mudanças em nosso
modo de viver, sem que isso seja uma
“mudança de vida”, tal como tento explicar.

33
Pode ser que seja inevitável fazer grandes
esforços de adaptação se a situação social ou
econômica ao nosso redor mudar, e que
precisemos migrar ou nos virar de outro modo,
ou então que um acidente, uma doença, uma
catástrofe tire de nós algo, ou alguém. Porém,
essas mudanças acontecem como que dentro da
própria vida, que as absorve; é nossa vida que
muda, internamente, e não nós que mudamos
de vida. O que aconteceu nessa história, e que
devemos temer que aconteça conosco, é algo de
outro tipo: é o prenúncio de um colapso geral,
por conta de ter chegado a data de validade das
nossas mentiras. O que tenho a dizer é que o
método para prevenir, para evitar esses
cataclismos vitais não é outro a não ser fazer,
voluntariamente, aquilo que será imposto mais
tarde: é preciso mudar de vida todos os dias. Em
que consistiria isso?

34
Certamente não significa mudar tudo todos os
dias, e viver uma vida inconstante, em que nada
é permanente, ao sabor dos desejos e dos
movimentos espontâneos. Henry Davis teria
sido feliz se, em vez de casar-se e ter duas
filhas, tivesse continuado um bad boy, levando
a vida como lhe parecesse bem naquela semana,
tendo relacionamentos curtos, e sem
responsabilidade alguma? Creio que o seu
desespero, na meia-idade, seria apenas
diferente, mas não menor. Esta é uma maneira
errônea e viciada de conceber e viver os
movimentos internos do ser humano, que
identifica o bem com a bravata, com o risco, que
enxerga a volubilidade de maneira romantizada,
como se isso fosse viver intensamente, ou
apaixonadamente.

35
Não é verdade que mudar é sempre bom, não é
verdade que a mudança seja, em si mesma, algo
bom, e também não é verdade que estamos
sempre progredindo, conduzidos por uma força
maior a sermos melhores e a estarmos no lugar
certo, bastando, para tal, que o tempo passe.
Esse pensamento, que é uma contrafação do
“abandono à providência divina”, leva muita
gente a viver de maneira superficial, a mudar de
ideia conforme mudem os discursos
altissonantes, a flertar com o relativismo moral,
a dar pouco valor às pessoas e ser menos
confiável em suas relações pessoais, e, enfim, a
não criar bases sólidas, em todos os sentidos,
nem para si nem para sua família – digo,
enquanto a família sobreviver a isso. Nesse tipo
de dinâmica, em que se acredita viver uma vida
aventurosa, busca-se sempre ser alguém
diferente, trocar de vida em vez de mudar de

36
vida, e na realidade não há nenhum progresso,
apenas um incessante quicar de lá para cá,
chacoalhar de um lado para o outro: um
irrefletido girar em falso, em que as pessoas
ficam iludidas ou anestesiadas pela velocidade
das mudanças, pelo ritmo da agitação – e,
assim, renunciam a uma elaboração duradoura
de suas máscaras de papel, que mais dia menos
dia seriam empapadas pela verdade, por uma
troca rápida de máscaras improvisadas,
tentando escapar do confronto com a verdade
pela rapidez. Mas não é possível, pois toda essa
corrida terá um termo, e não há como
esgueirar-se da morte. Mas em que consistiria,
então, mudar de vida todos os dias?

37
Mudar de vida a cada dia significa
avaliar quais das nossas decisões,
ações e relações ainda são pautadas
por outros critérios e valores
menores, e buscar nos entregar,
cada vez mais profundamente, ao
verdadeiro critério da vida

O primeiro princípio a se ter em conta é


inexorável, é um princípio físico e metafísico. O
seguinte: para que algo mude, ou progrida, é
forçoso que algo permaneça. Não é possível
dizer que houve uma mudança sem algo fixo
com relação ao qual possamos medir o
movimento, comparar o antes e o depois. Na
prática, significa que uma verdadeira mudança
de vida é uma mudança da vida de alguém, e que
a pessoa, a sua identidade e a sua essência, é a
mesma. Como eu disse, mudar de vida é

38
diferente de trocar de vida. Belle Burden afirma
que o ex-marido tornou-se para ela um
completo estranho – e, de fato, para ela e as
filhas, o Henry Davis do dia 21 é o mesmo Henry
Davis do dia 22? Mas ela se questiona (e este é o
título do seu artigo) se na verdade não foi
casada 20 anos com um estranho. O que a faz
perguntar-se isso é justamente o fato de que a
pessoa, o núcleo pessoal e intransferível de cada
um de nós, não muda; portanto, se ele foi capaz
de sumir para sempre, é porque sempre fora
capaz, e ela é que não sabia, ela é que não podia
ver através das falsidades. Por isso, a nossa
mudança diária de vida não deve de modo
algum ser uma ruptura total com o passado, um
grande reset, uma revolução – uma deserção
irresponsável, como a de Henry Davis –, mas o
contrário disso: deve ser uma confirmação

39
daquilo que deve permanecer, com base no que
vamos emendar o que for preciso mudar.

Devemos assumir a responsabilidade por todo o


nosso passado e por tudo aquilo que tenhamos
feito, reconhecendo que, por mais que
estivéssemos errados ou alienados, éramos nós
quem fazia aquelas coisas. Se estávamos muito
longe do nosso centro, se estávamos surdos
para a voz da vocação interior ou tentando
escoar a água da vida com diques de papel, não
importa; era a mesma pessoa que fazia aquelas
coisas, era a mesma pessoa que fazia aquelas
escolhas – e que têm consequências, como ter
filhos, por exemplo –, e é esta mesma pessoa
que, agora, tenta instalar-se, novamente ou
pela primeira vez, em seu próprio coração, e
mudar de vida, sem fugir às responsabilidades.
Se nunca fizemos esse tipo de exame, devemos

40
fazê-lo o quanto antes, e, se o fizermos todos os
dias, evitaremos grandes tragédias. Nossa
mudança de vida diária deve ser, portanto,
fundamentalmente uma distinção entre o que
deve permanecer e o que precisa ser alterado,
aperfeiçoado, aprofundado, radicalizado, ou
então abandonado, erradicado, exorcizado.
“Todo homem normal há de ser conservador do
que deve ser conservado, e reformador do que
pede reforma”, disse Gustavo Corção. Mas qual
é o critério para essa distinção? Qual é minha
regra absoluta, pela qual tudo o mais será
julgado? Onde está minha felicidade, o que me
faz levantar da cama e suportar o que vier? Que
vida eu quero levar, da qual não vou me
arrepender? O que deve permanecer, ainda que
seja preciso abrir mão de todo o resto? Pois fato
é que, em algum momento, mais cedo ou mais
tarde, teremos de abrir mão de tudo.

41
A morte tem esse temível privilégio de pôr
diante dos nossos olhos toda a nossa vida,
avassaladoramente nua, e de eternizar o que, na
verdade, sempre fomos. Por isso é tão
fundamental, para essa mudança de vida nossa
de cada dia, meditar sobre a própria morte:
olhar de frente o nosso próprio crânio
descarnado, e assim encarar essa ideia, até que,
de uma simples ideia, abstrata, ela se torne uma
verdade tão concreta quanto o presente.
Memento homo... “lembra-te, homem, de que
és pó, e em pó te hás de tornar”. A
contemplação de nossa vida terrestre como um
todo finito, e a perspectiva de que tudo nela é
certamente passageiro, ajuda-nos a colocar
todos os elementos que a compõem em
suspensão, a nos desligarmos, nos desgarramos
de suas falsas seguranças, e nos sentirmos
distantes, livres para julgá-los todos

42
novamente conforme o nosso magno critério.
Mas, de novo, qual será o nosso magno critério?
Se você não tem claro qual é o seu, será preciso
descobri-lo ou escolhê-lo – não às pressas, por
medo, novamente, o que seria uma trapalhada
ainda pior. Mas consistentemente.
Responsavelmente. O que tem de permanecer,
caso tudo ao seu redor venha a se alterar? Se
uma grande mudança de vida lhe for oferecida,
com base em que você vai decidir? Se for posto
numa encruzilhada e for preciso escolher entre
duas vidas diferentes a se levar, sem
meio-termo, qual será o critério da sua vida? –
A vida de Henry Davis e Belle Burden teria sido
diferente se tivessem se perguntado isso
repetidas vezes ao longo dos anos? Eu acredito
que sim.

43
Mudar de vida a cada dia significa avaliar quais
das nossas decisões, ações e relações ainda são
pautadas por outros critérios e valores menores,
e buscar nos entregar, cada vez mais
profundamente, ao verdadeiro critério da vida.
Qual é ele, quanto ele define minhas escolhas?
Faça essas perguntas todos os dias. Suspenda a
cada dia todos os elementos de sua vida e
julgue-os pelo critério máximo, que é a única
coisa que você terá quando enfrentar a morte
um dia. É preciso mudar, antes que se viva uma
vida tão falsa que fique impossível continuar;
antes que a nossa pessoa esteja aquém da nossa
mesma vida. Mudar para que nossa
personalidade – a integridade de nossa pessoa,
nossa “saúde existencial” – não esteja aquém
dos nossos poderes, habilidades,
responsabilidades e papéis sociais. Para não
sermos estranhos a nós mesmos, é preciso

44
conversarmos conosco mesmos todos os dias, e
para não sermos estranhos para os nossos
familiares, é preciso que sejamos nós mesmos a
conversar com eles todos os dias. Isto, creio,
nos manterá a salvo de grandes tragédias, das
grandes apostasias existenciais, se
mantivermos acesa diante de nós, a nos fitar, a
luz do nosso critério máximo – como faz, no
poema de Rilke, aquele “torso arcaico de
Apolo”, no qual, mesmo despedaçado e com as
partes faltando, tudo brilha, e tudo está voltado
para nós dizendo: “É preciso mudar de vida”.

Autor:Samia Marsili é médica, palestrante, escritora, mãe de 7


filhos e esposa do Dr. Italo Marsili, um dos psiquiatras mais
influentes do país. Ela deixou o consultório médico e a
residência em Pediatria para se dedicar integralmente à
pesquisa e à prática da criação de filhos, aconselhando
milhares de famílias por meio de seus conteúdos digitais.

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45
Abner Dantas e Cássius Ogro: dupla de Maceió se projetou tirando sarro de
militantes e lacradores em geral.| Foto: Divulgação

PERFIL

Que o STF não os ouça: quem são os


humoristas mais politicamente
incorretos do Brasil
Por Omar Godoy

“Se não fosse a comédia, ele não seria meu


amigo”, confessa o humorista alagoano Abner

46
Dantas, referindo-se ao parceiro Cássius Ogro.
Com idades, perfis, histórias de vida e até
posições políticas bem diferentes entre si, os
dois praticamente só concordam num único
ponto, que virou um lema repetido aos gritos
pelo público de seus shows: “Que se dane o
cancelamento!”.

A frase na verdade é um pouco mais pesada,


mas vamos aos fatos. Formada em Maceió (AL),
a dupla começou a se projetar nacionalmente
nos últimos meses, graças à internet e a um
repertório de piadas ácidas que não poupam
nada e nem ninguém. Na verdade, seus textos
mais engraçados são justamente sobre quem
mais se incomoda com esse tipo de humor – os
militantes de plantão, desde feministas a
lacradores em geral.

47
Cássius e Abner ainda tiram sarro de outros
comediantes, algo raro no meio artístico bra-
sileiro, onde a hipocrisia reina em nome da
manutenção das boas relações. Enfim: é como
se sua chegada ao cenário, exatamente num
momento de ameaça à liberdade de expressão,
fosse uma resposta e um antídoto ao baixo
astral atualmente em vigor.

Negros, nordestinos e de origem modesta, os


dois não preservam nem eles mesmos. Abner,
por exemplo, chegou a comprar briga com a
própria família por tirar sarro de uma tatuagem
que fez em homenagem a avó, já morta. Com-
parou, em um vídeo, o retrato desenhado com
os personagens Zacarias (dos ‘Trapalhões’) e
Beiçola (da ‘Grande Família’) – realmente
parecidos com a falecida senhora, ou pelo
menos com a figura reproduzida na pele do

48
comediante. Uma tia não gostou da brincadeira
e até ameaçou processá-lo.

Em uma edição de seu podcast no YouTube,


‘Caverna do Ogro’, Cássius comentou o novo
filme da Pequena Sereia, protagonizado por
uma atriz negra (como ele). “Não acho que esse
tipo de representatividade seja boa para a
negritude. Porque uma sereia negra vai ser
morta tanto pela polícia, quanto pelos
pescadores”, disse o humorista.

Mas a única – pelo menos por enquanto –


grande campanha de cancelamento contra os
dois partiu de um influencer que descobriu os
vídeos da dupla e iniciou uma mobilização para
denunciar e derrubar seus conteúdos. E a
polêmica chegou à tevê, no programa ‘Melhor
da Tarde’, exibido pela Band.

49
“É uma coisa inaceitável, um desrespeito. Mais
que isso, é um crime. Eles deveriam tomar um
processo coletivo. Quem sabe sendo presos
alguma coisa entre na cabeça deles?”, afirmou a
apresentadora Cátia Fonseca, apoiando a
corrente de influenciadores militantes que se
espalhou pelas redes sociais pedindo a cabeça
dos humoristas. “Medidas serão tomadas”,
chegou a prometer a deputada federal Erika
Hilton (PSOL-SP) – no entanto, nada de mais
grave aconteceu, com exceção de dois shows
cancelados por pressão da militância.

Em entrevista por telefone para a Gazeta do


Povo, Cássius Ogro, de 31 anos, debochou do
ocorrido. “Felizmente, até agora só fomos
reprimidos pela Série C da mídia”, brincou, para
depois falar sério. “A comédia, ao longo da
História, sempre serviu como um instrumento a

50
favor do ser humano, como uma forma de
aliviar a dor. Mas o movimento woke quer fazer
com que a sociedade veja o comediante apenas
como um sádico.”

“Gente depressiva com o cabelo pintado de


azul”

Colegas de profissão que Abner e Cássius


consideram sem graça também entram na linha
de tiro – a lista inclui nomes como Yuri Marçal,
Fábio Lins e Thiago Ventura, entre outros. Até o
popularíssimo Whindersson Nunes já levou os
seus pipocos (os dois costumam se divertir às
custas da fama de marido traído do piauiense,
ex da cantora Luisa Sonza).

E nem as representantes do chamado “novo


humor feminino” escapam. Especialmente a

51
paranaense Bruna Louise, cuja fórmula, segun-
do a dupla, se resume apenas a citar o órgão
genital masculino e fazer uma careta em
seguida.

Sobre a polêmica recente envolvendo o comedi-


ante de esquerda Tiago Santineli (que dramati-
zou o assassinato a pauladas do empresário
Luciano Hang em um vídeo e passou ileso pelo
julgamento da militância vermelha), Cássius
não adota dois pesos e duas medidas. “Ele es-
tava produzindo arte em um ambiente contro-
lado, o canal dele, e também não acho que foi
um incentivo à violência. Mas é claro que existe
um cancelamento seletivo por parte dos esquer-
distas. E isso tem uma raiz marxista. Se é o
oprimido que está batendo no opressor, a
agressão é justificada”.

52
“Ele não faz piada. O show dele é um monte de
discurso”, diz Abner. E Ogro arremata: “Esses
caras só têm uma carreira porque existe gente
depressiva com o cabelo pintado de azul”.

Dupla trabalhou em um quiosque de açaí para


pagar as contas

Nascido na cidade de Pojuca, localizada na Re-


gião Metropolitana de Salvador, Cássius se mu-
dou para Maceió após ser aprovado no vestibu-
lar da Universidade Federal de Alagoas, onde se
formou em Engenharia de Agrimensura. Antes
disso, ele já havia pensado em ser artista – mas
achou que seria impossível, pelo fato de ter
nascido em uma família pobre. Foi encenando
uma peça na Igreja Batista, já adulto, no papel
do diabo, que o baiano descobriu seu potencial
para a atuação.

53
Em um passo seguinte, comprou o livro
‘Segredos da Comédia Stand-up’, uma espécie
de bíblia para os humoristas brasileiros ini-
ciantes, escrito por Léo Lins. Daí para frente,
mergulhou para valer no circuito de shows em
bares, onde conheceu o parceiro Abner e com
ele começou a produzir os próprios eventos.

Natural de Messias, cidade próxima a Maceió,


Abner Dantas, de 22 anos, começou a trabalhar
ainda criança. Foi ajudante de uma lan-house,
garçom e operário em uma fábrica de tijolos,
entre outras “correrias”. “Sempre fui mais
caladão, mas do tipo que, de repente, soltava
uma piada na sala de aula que fazia todo mundo
rir”, diz Dantas, cujas maiores influências são
comediantes negros norte-americanos (e
polêmicos) como Dave Chappelle, Chris Rock e
Patrice O’Neal.

54
Já ativos na cena do humor, os dois ainda traba-
lharam juntos em um quiosque de açaí para
conseguir pagar as contas. A situação começou a
melhorar quando ambos trocaram o comércio
por empregos num estúdio de gravação de
podcasts – onde tiveram a oportunidade de
criar conteúdos para a internet, chamaram a
atenção de produtores de outros estados e
entraram na rota nacional de shows.

Os “gângsters da comédia”, como eles gostam


de ser chamados, realmente não são muito pa-
recidos. Mais falante e “filosófico”, Cássius é
casado, pai de uma filha, cristão convicto e pen-
de mais para o conservadorismo (“Ainda preci-
so ler mais livros para me considerar um con-
servador de verdade”, afirma). Abner, por sua
vez, posiciona-se mais à esquerda, e baseia
muito de seu humor em suas vivências como um

55
típico jovem da periferia. “Preciso de dinheiro
para mandar para a minha mãe e pagar uma
escola particular para a minha sobrinha”, diz,
questionado sobre a possibilidade de os dois se
mudarem em breve para São Paulo, centro do
mercado de stand-up comedy no Brasil.

Unida em prol da esculhambação geral, essa du-


pla improvável representa hoje a resistência
(para usar uma expressão woke) do humor ver-
dadeiramente engraçado – aquele implacável,
no melhor sentido do termo, e, acima de tudo,
livre. “Quando você pode fazer piada com todo
mundo, quem se considera sagrado passa a ser
desmascarado. É assim que a comédia
humaniza as pessoas”, afirma Cássius.

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56
O cantor Jason Aldean em uma cena do polêmico clipe da música “Try That In a
Small Town”.| Foto: Reprodução / YouTube

GUERRA CULTURAL

“Tente isso numa cidade pequena”:


os cantores country que estão
tirando a esquerda do sério
Por Omar Godoy

Foi o maior ataque a tiros da história dos Estados


Unidos. No dia 1º de outubro de 2017, um homem

57
de 64 anos chamado Stephen Paddock abriu fogo
contra uma multidão que acompanhava o show do
cantor Jason Aldean durante o festival de música
country Route 91 Harvest, em Las Vegas. Da janela
de seu quarto de hotel, próximo ao local do evento,
Paddock matou 59 pessoas, além de ferir outras
527 – e cometeu suicídio antes de ser encontrado
pela polícia.

O massacre teve um impacto profundo no cenário


country. Não apenas no tocante às questões de
organização e segurança. Associado aos valores de
regiões rurais e conservadoras, onde grande parte
da população é contrária ao controle rigoroso de
armas, o gênero musical virou alvo fácil da
patrulha progressista. E foi dado como morto
pelos intelectuais “esclarecidos” do país.

Agora, seis anos depois da tragédia em Las Vegas,


o estilo passa por um momento de redenção – e,

58
novamente, de muita controvérsia. Pela primeira
vez, artistas “sertanejos” ocuparam,
simultaneamente, nas últimas semanas, os três
primeiros lugares da parada de sucessos Hot 100
da Billboard (o principal ranking dos EUA, que dita
tendências para o mundo todo).

A esquerda, é claro, já tratou de classificar o


fenômeno como um reflexo do racismo, do
machismo e da ignorância política sempre
atribuídas às comunidades do interior dos Estados
Unidos. Mas o nome de um dos protagonistas
desse novo levante musical, justamente o que
alcançou o posto mais alto da lista, chama a
atenção: Jason Aldean. Sim, o mesmo cantor
presente no palco durante o ataque de 2017.

É dele a canção “Try That In a Small Town”


(“Tente Isso Numa Cidade Pequena”), um
quase-rock sombrio que desafia forasteiros

59
metidos a espertos a roubar carros de senhoras
idosas, cuspir em policiais, apontar armas para
comerciantes ou pisar na bandeira americana.
“Por estas bandas, a gente cuida dos nossos / Se
você está procurando briga / Tente isso numa
cidade pequena / Cheia de bons e velhos garotos,
criados do jeito certo”, diz a letra.

Apesar dos versos provocativos, escritos por


quatro compositores conhecidos no meio country,
a faixa passou batida pelo público e a imprensa até
ganhar um videoclipe altamente polêmico –
composto por imagens de vândalos confrontando
a polícia e do próprio Aldean se apresentando em
frente ao Tribunal do Condado de Maury, em
Columbia, no estado do Tennessee.

Detalhe: a edição incluía cenas de um protesto com


quebra-quebra promovido pelo movimento Black
Lives Matters (“Vidas Negras Importam”), voltado

60
supostamente para a defesa dos direitos das
pessoas negras — mas cujos líderes já foram
denunciados pelo mau uso dos fundos
arrecadados.

E, para piorar, o local onde o artista dubla a música


com sua banda ficou marcado na história dos EUA
por ser o cenário de um linchamento de um
homem negro ocorrido no ano de 1927 e de um dos
maiores confrontos raciais do país, em 1946.
Pronto, estava feita a cama para mais uma rodada
interminável de discussões sobre os limites da
expressão artística.

Censura impulsionou a canção nas paradas de


sucesso

Bastou os ativistas “descobrirem” o vídeo de “Try


That In a Small Town” e o canal por assinatura
Country Music Television (a MTV sertaneja

61
americana) retirou o material do ar. E como esse
tipo de censura sempre desperta a curiosidade do
público, a busca pelo clipe e pela faixa explodiu na
internet. O boicote do CMT também colocou mais
gasolina no fogo da guerra cultural, estimulando
ataques e defesas de ambos os lados do fronte
ideológico.

Para políticos como Justin Jones, deputado


estadual democrata do Tennesse, a música
“normaliza a violência racista e o nacionalismo
branco, glorificando um Sul que estamos tentando
superar”. Já a militante desarmamentista Shannon
Watts, da entidade Moms Demand Action For Gun
Sense In America (“Mães Exigem Ação Pelo
Controle de Armas na América”, financiada pelo
bilionário Michael Bloomberg, ex-prefeito de
Nova York) associou a canção ao massacre de Las
Vegas em 2017.

62
Até a articulista conservadora Kathryn Jean Lopez,
da revista National Review, deu umas lambadas no
cantor. “Espero que o republicano Aldean, em
músicas futuras, possa incentivar as pessoas a
fazer o bem, em vez de adicionar mais raiva e
violência ao nosso tempo”, escreveu, em um texto
intitulado “Jason Aldean não está ajudando”.

Do lado da defesa, dois nomes de peso – e que


estão de olho nas próximas eleições – deram
declarações sobre a controvérsia: Donald Trump e
Ron DeSantis. O ex-presidente incentivou seus
seguidores a “apoiar Jason o tempo todo”. “Ele é
um cara fantástico, que acabou de lançar uma
ótima música”, afirmou.

O governador da Flórida, por sua vez, preferiu


mirar os meios de comunicação. “Quando a mídia
ataca você, é sinal de que você está fazendo certo.
Aldean não tem nada pelo que se desculpar”, disse.

63
Mais isento, o popularíssimo apresentador de
podcasts Joe Rogan, conhecido por expressar
ideias iconoclastas e convidar entrevistados tanto
da direita quando da esquerda, comparou o forte
teor de “Try That In a Small Town” com as letras
misóginas e violentas dos artistas de hip-hop.
“Não estou dizendo que essa é a melhor música do
mundo. Mas o nível de indignação das pessoas que
estão irritadas com ela é tão estranho se levarmos
em conta que há centenas de músicas de rap
infinitamente piores”, afirmou.

Além de chamar a atenção para a indignação


seletiva dos esquerdistas, Rogan não viu intenções
racistas por trás dos seis segundos em que
manifestantes do Black Lives Matter aparecem no
videoclipe (o trecho, inclusive, foi apagado pela
equipe de Aldean e não consta mais da versão
oficial disponível no YouTube).

64
Para ele, o BLM é visto como agressivo pelo
cidadão comum por causa de “um monte de
progressistas brancos que decidiram participar do
movimento e saíram quebrando as coisas”.

Por fim, há a posição do próprio Jason Aldean, que


definiu as críticas como “sem mérito e perigosas”.
“Parece que, em algum momento, o senso de
comunidade e respeito se perdeu. Essa música
mostra que estamos todos prontos para retomar
isso”, disse, sobre a mensagem embutida na
composição.

Polêmicas marcam as carreiras de outras


estrelas do country atual

Morgan Wallen e Luke Combs, os outros dois


astros country que dividiram o pódio da Billboard
com Aldean, também já foram acusados de
racismo – mas nada relacionado às suas letras.

65
Intérprete do hit “Last Night”, Wallen teve
músicas retiradas das rádios e foi impedido de
concorrer em premiações após o vazamento de um
vídeo em que aparece bêbado gritando a palavra
nigger (uma maneira altamente ofensiva de se
referir aos negros nos EUA). Os fãs, no entanto,
nem deram bola. E seguem o consagrando como o
maior expoente da corrente denominada
bro-country, centrada em sonoridades mais atuais
e temáticas ligadas a festas, mulheres e carros (ou
melhor, caminhonetes).

Combs, estourado com “Fast Car” (cover de um


clássico oitentista da cantora Tracy Chapman),
entrou na mira dos progressistas em 2015, ao
mostrar em um clipe a bandeira dos Estados
Confederados – considerada um “símbolo
divisivo” por representar o lado escravocrata da
Guerra Civil.

66
Agora, ele é acusado de apropriação cultural por
lucrar em cima da criação de uma compositora
negra e lésbica (embora Chapman tenha
autorizado a regravação, responsável por
apresentá-la ao público jovem e abastecer sua
conta bancária com o dinheiro arrecadado via
direitos autorais).

E quem vem chegando com força total nesse


cenário controverso é um artista amador da
Virginia chamado Oliver Anthony. Esse operário,
residente na cidade de Farmville, já havia
alcançado o primeiro lugar em execuções nas
plataformas de streaming, e na terça-feira (22)
também chegou ao topo do Hot 100 da Billboard.

Tudo isso graças a “Rich Men North of Richmond”


(“Homens Ricos ao Norte de Richmond”), uma
canção acústica e emotiva gravada
despretensiosamente, de forma caseira – mas que,

67
a exemplo de “Try That In a Small Town”,
tornou-se munição para ambos os lados da
polarização ideológica.

A letra questiona a insensibilidade dos políticos (a


capital do país fica ao “norte de Richmond”), a
alta cobrança de impostos (“Seu dólar não vale m*
nenhuma, e é taxado até o fim”) e “os obesos
mamando na assistência social”, entre outros
aspectos da realidade americana.

Apesar de se denominar centrista (e dizer frases


como “A internet nos dividiu”), Anthony
rapidamente virou o queridinho da direita.
Personalidades republicanas como a ex-candidata
ao governo do Arizona, Kari Lake, e as deputadas
Marjorie Taylor Greene e Lauren Boebert, além de
vários colunistas conservadores, já correram para
declarar publicamente seu apoio à música – que,
para os detratores, aponta o dedo para o inimigo

68
errado, no caso do comentário aos beneficiários de
programas sociais. “Você criou o hino de nosso
tempo. Parabéns!”, tuitou Boebert.

Sucesso orgânico ou fruto do “ativismo


consumidor”?

Esteticamente falando, a nova onda country é


fruto de um processo de atualização e urbanização
dos músicos do gênero – em termos de visual, das
temáticas abordadas e da sonoridade (faixas como
“Last Night”, de Morgan Wallen, trazem timbres e
ambiências próximas do pop e do hip-hop). Mas
há quem atribua esse boom de popularidade ao
chamado “ativismo consumidor”, uma espécie de
decisão de compra politizada. Sendo que o
consumo, aqui, é o de cultura popular.

O filme ‘O Som da Liberdade’ (sobre o tráfico de


crianças), a série ‘Os Escolhidos’ (que narra a vida

69
de Jesus) e, agora, as canções de Jason Aldean e
Oliver Anthony são casos de produtos pop recentes
apoiados pela comunidade de direita como uma
forma de lealdade aos artistas de mesmo viés
ideológico. Um expediente, obviamente, também
adotado pela esquerda – porém há muito mais
tempo.

Um bom exemplo de como os conservadores


adotaram com empolgação essa forma de ativismo
é a chegada de Donald Trump às paradas de
sucesso. Isso mesmo. No último mês de março, ele
vendeu surpreendentes 33 mil downloads da faixa
“Justice for All”. Trata-se de uma versão do hino
nacional americano cantada por um grupo de
manifestantes presos durante a invasão ao
Capitólio, com a voz sobreposta do ex-presidente
recitando o “Juramento de Fidelidade aos Estados
Unidos” (verso patriótico de reverência à bandeira
do país).

70
Em apenas uma semana, o lançamento chegou ao
topo do ranking de vendas digitais da Billboard,
voltado aos arquivos comprados e baixados
diretamente para computadores e dispositivos
móveis. E, segundo o político, todo o lucro obtido
com as vendas será destinado aos réus.

“Estou apoiando financeiramente pessoas que são


incríveis e estão muito presentes na minha mente.
É uma vergonha o que fizeram com elas”, disse
Trump – que, pelo menos no mundo da música,
voltou a ser o número 1.

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71
Litografia de Bartolomeu de las Casa batizando prisioneiros indígenas em 1511, J.
J. Martinez (1854), História da Marinha Real Espanhola| Foto: Wikipedia

ARTIGO

Bartolomeu de Las Casas, o pivô


do maior engano histórico de
nossa era
Por Jean-Pierre Gallez, Traduzido por Rafael Salvi

Existe uma constante entre os povos, seja qual


for seu tamanho ou localização geográfica, que

72
consiste em preservar em sua própria cultura
ideias forjadas deliberadamente para satisfazer
suas necessidades existenciais. É o caso de paí-
ses como Alemanha, Inglaterra, Holanda, Itália,
França ou Estados Unidos, para citar apenas os
principais. Com o denominador comum – como
sabemos – de que a história é escrita pelos ven-
cedores. E, no entanto, a Espanha foge a essa
regra, com uma particularidade inquietante: o
seu passado está maculado por faltas abominá-
veis ​e isso desde a Descoberta do Novo Mundo, e
seu povo está condenado a arrastar consigo um
fardo do qual em vão procurará se libertar.
Assim foi julgado por uma espécie de Tribunal
da Humanidade, no qual se instalaram as
nações mencionadas.

A autossacralização como uma comunidade


superior é particularmente marcante para as

73
nações que se encontravam em competição com
a Espanha, desde a aurora do século XVI. O mo-
do de operação delas era, portanto, o recurso
simultâneo à difamação social e econômica,
racial e cultural e, é claro, religiosa. Na verdade,
esse tipo de processo já vinha sendo aplicado há
muito tempo; a Roma Imperial já havia sido
alvo de seus detratores. No século 18, também
os envaidecidos filósofos franceses classifica-
ram o Império Russo como bárbaro, à margem
da civilização, assim como seus sucessores
recobriram os norte-americanos com o manto
de rudes no século seguinte, numa tradição
anti-imperial muito atual, tanto na forma
quanto no conteúdo. Essas criações de opiniões
ad imperium, portanto, aderem ao fundo
cultural das nações que as emitem e podem,
sem dúvida, receber o nome de Lenda Negra. O
termo, em gestação no século XIX, só veio a ser

74
utilizado pela primeira vez para se referir à
propaganda antiespanhola em 1899, durante
uma conferência em Paris. Os Estados Unidos da
América haviam acabado de conquistar Cuba e
as Filipinas, e fizeram uso extensivo dela.

No entanto, convém desde já sublinhar as dife-


renças essenciais das Lendas Negras fabricadas
especificamente para a Espanha, face às que se
referem a outros impérios. Sua temática, antes
de tudo, é sistematicamente utilizada e incita-
da, e sua persistência deliberadamente mantida
(se a soubermos detectar) na opinião pública,
pelos meios de comunicação, produções docu-
mentais e cinematográficas, mas também em
escolas e universidades. O que coloca em
evidência que, se o tempo desconstrói outras
lendas, não consegue frear a Lenda Negra
espanhola.

75
A chave de entrada – ainda atual – dessa for-
matação cultural, é personificada por um per-
sonagem que ocupa um lugar especial nos livros
didáticos: chamado Bartolomeu de Las Casas.
Graças a ele teremos notícia de que a aventura
espanhola na Nova Espanha (México) é um em-
preendimento abominável, levado a cabo por
bárbaros que cometeram inúmeras atrocidades,
assassinatos, violações e massacres, genocídio
até, que ele mesmo diz ter visto e que descreve
com um luxo sem precedentes de detalhes. Ele é
proclamado como um grande defensor dos ín-
dios americanos e, como tal, é coroado com o
título de precursor dos direitos humanos, nada
menos.

No entanto, as queixas expostas por Bartolomeu


de Las Casas são uma curiosa mistura de atroci-
dades sem que ele especifique onde, quando ou

76
quem são os autores. O famoso dominicano de
fato levanta mais do que questionamentos: do
que ele diz, o que tem fundamento, quando e
por que, e, acima de tudo, o que é essencial, mas
largamente ocultado: por que e como ele obteve
tamanha notoriedade?

Temática

Vamos mergulhar novamente no contexto das


Grandes Navegações. Os reis católicos Fernando
de Aragão e Isabel de Castela percebem de ime-
diato a extensão das suas consequências em ní-
vel religioso e humanista, moral e jurídico, geo-
político e comercial. Nada será como antes, a
começar pelo último tratado com os portugue-
ses e datado de 1480, já obsoleto, e que estabe-
lecia as respectivas zonas de direitos ultrama-
rinos dos dois reinos. Além disso, estabelecer a

77
base da autoridade moral para governar as
novas terras está no centro de suas
preocupações.

Até então, o direito de conquista baseava-se no


direito romano, na jurisprudência medieval e no
direito pontifício. O Papa Alexandre VI conce-
deu, em 1493, o poder sobre as terras descober-
tas e por descobrir ‒ Dominus Orbis ‒ tanto no
domínio espiritual como no temporal, subordi-
nando este àquele. São as “Bulas Alexandrinas”,
que estabelecem os termos da repartição do
mundo com a coroa portuguesa. Mas este “dom
pontifício” não é absoluto: coloca-se aí uma
condição essencial, que é a obrigação dos sobe-
ranos de evangelizar os habitantes destas terras
na fé católica, e de enviar para lá missionários
com esse fim. A Espanha vive um momento de
excepcional intensidade em sua história:

78
forjada por um ideal heróico ao longo de oito
séculos de guerra religiosa e fortalecida pelo fim
da reunificação, assinalado pela queda de
Granada, tendo em seu bojo elites militares e
atividades culturais imbuídas de uma autêntica
dimensão humanista. Os espanhóis saberão
como ninguém – nem mesmo os portugueses –
enfrentar este desafio coletivo com entusiasmo
e com um sentido de extraordinária realização
individual.

E, no entanto, a assimilação acrítica da Lenda


Negra, que fez dos textos de Las Casas seu
negócio fundamental, oblitera forçosamente
todos os aspectos contextuais. A primeira, e
menor, tange o ambiente cultural que prenuncia
a Brevísima relación de la destruyción de las
Indias, sua obra, digamos, mais “midiática”, já
que é impossível fazer uma leitura crítica dela

79
sem levar em conta a tradição secular de
discussões polêmicas e apaixonadas, que
remonta à Idade Média, e que permeia também
os homens da Igreja. O texto de Las Casas
pertence, de fato, a um gênero literário que não
se incomoda com exageros, e cujas hipérboles
muitas vezes beiram os limites da difamação.
Nos povos mediterrânicos, as crianças não são
educadas no silêncio e na reserva; é assim. Isso,
sob outros céus, pode ser mal interpretado.

O sermão proferido em 1511 pelo dominicano


Antonio Montesino no púlpito da igreja de
Santo Domingo (atual Haiti e República
Dominicana) é desse tipo: “Vós todos estais em
estado de pecado mortal”, lança aos encomen-
deros e autoridades presentes. Ele próprio e os
pregadores puderam observar e denunciar os
abusos praticados na ilha nas lavouras e nas

80
minas. E prosseguem sua afirmação até o fim: a
absolvição é negada a quem mantém índios em
regime de exploração. Ninguém lhe escapa, nem
mesmo um certo Bartolomeu de las Casas,
então instalado como encomendero desde 1502.

Em outros lugares e em outras épocas isso não


teria consequências, mas não na Espanha
católica renascentista. A denúncia chega aos
ouvidos do rei D. Fernando (viúvo de Isabel
desde 1504), que toma as rédeas da situação.
Porque a legitimidade da presença espanhola
repousa no mandato evangelizador. Ele reuniu
os melhores teólogos e juristas do reino e fez
decretos com base em um conceito verdadeira-
mente revolucionário para a época: o de que o
índio, como ser humano pleno, é, portanto,
titular de direitos. Isso se traduz nas Leyes de
Burgos (1512) que estabelecem as regras de

81
trabalho, remuneração, propriedade, acesso à
cultura e educação. Em resumo, a escravidão e a
segregação são proibidas, uma regra comple-
tamente heterodoxa para a época.

Foi com Francisco de Vitória, também domini-


cano, principal representante da Escola de
Salamanca, que a revolução moral da conquista
avançou, acompanhada também por uma
reflexão totalmente inovadora sobre a econo-
mia. A sua obra intitulada “Relectio de Indis”,
de 1532, estabeleceu pela primeira vez uma
distinção entre sociedade civil e religiosa,
lançando as bases do Estado moderno. Ele funda
o direito internacional por sua concepção do
mundo como uma comunidade de povos
organizada politicamente e baseada no Direito
Natural. É sobre essa premissa que se inicia o
exame da conquista e que o imperador o

82
consulta. Disso surgiram as Novas Leis de 1542,
claramente intituladas: “Leis e Ordenações
Feitas por Sua Majestade para Governança e
Proteção dos Índios”. A imposição de condições
drásticas aos conquistadores, o reconhecimento
aos índios de novos direitos e liberdades de
escolha são o resumo do seu conteúdo. Não é
pouco: doravante a conquista estará sujeita a
um novo marco legal, um Ius Gentium, que será
ampliado posteriormente, e contará com a
ajuda da Igreja e de uma administração civil
para aplicá-la.

O segundo aspecto contextual que nos permite


um olhar crítico sobre as acusações de Las Casas
é o da realidade social do momento. Ela nos
revela uma sociedade em pleno desenvolvimen-
to humano sob o impulso evangelizador de um
humanismo católico integral, em que o cuidado

83
do corpo e da alma andam lado a lado, e se
traduz no desenvolvimento da inteligência, das
artes, das ciências e da prosperidade econômica.

Ademais, a honestidade histórica exige uma


análise justa e uma apreciação serena dos
elementos constitutivos da Lenda Negra, em
suas dimensões ocultas por uma guerra de
subordinação ideológica e cultural que precede
à sua construção mítica, e nas suas variantes
operacionais.

O fim de um paraíso?

Quando os conquistadores chegaram, as vastas


terras americanas eram povoadas por um mo-
saico de grupos étnicos indígenas, separados
pela cultura e pelo idioma. Oitenta e dois são
registradas no México, mais de novecentos

84
dialetos apenas para a Amazônia. Além das
tentativas de unificação linguística dos im-
périos asteca e inca para com seus vassalos, a
situação é de incomunicabilidade entre esses
povos em um contexto bélico quase permanen-
te. No Vale do México, onde o poder asteca
mantinha nada menos que 371 tribos em escra-
vidão, o tributo a ser pago ao imperador
Moctezuma consistia em uma cota de seres
humanos. Porque a frequência e a quantidade
dos sacrifícios humanos que o calendário
religioso asteca exigia ultrapassa o imaginável:
cada mês tinha suas festas e cada festa exigia
seu lote de vítimas para apaziguar com sangue
divindades nunca saciadas, inclusive crianças,
como as descobertas arqueológicas de
pirâmides de caveiras e locais de sacrifício vêm
regularmente ilustrar, em confirmação dos
testemunhos escritos da época – por muito

85
tempo contestados, e muitas vezes minimiza-
dos ou justificados hoje em dia, segundo a
solicitação de objetivos ideológicos. Com “pi-
cos” de festividades aproximando-se de 1.000
sacrifícios diários, o sistema imperial asteca
montou uma rede de abastecimento das popu-
lações circundantes, que o produtor Mel Gibson
ilustrou à perfeição no seu filme “Apocalypto”
de 2006.

O que é menos conhecido são os costumes


antropófagos dos astecas, bem como de muitos
grupos étnicos indígenas da Mesoamérica. O
termo "Nahuatl" também significa “milho de
homem”, em referência à carne humana dos
guerreiros cativos consumidos com milho,
cujos “melhores pedaços” eram distribuídos de
acordo com a posição social. Assim, querendo
homenagear seu anfitrião em sua primeira

86
visita a Tenochtitlán, Moctezuma ofereceu a
Hernán Cortés a coxa direita de uma criança,
iguaria normalmente reservada a ele por
prerrogativa.

Nesse cenário, compreende-se, reinava contra


os mexicanos entre os povos dessa forma mal-
tratados um ódio feroz, para dizer o mínimo. A
derrota do forte exército asteca de 200.000
homens não se deveu, portanto, a um milagre
militar espanhol. Com apenas quinhentos
soldados acompanhando Cortés, 32 cavalos e
dez canhões, o empreendimento estava con-
denado. A balança pendeu apenas graças à
aliança com os guerreiros zapotecas, totonacas,
tlaxcaltecas, tlaplanecas, huexotzincas,
atlixcas, tizauhcoacs, texcocotecas e, sem
dúvida, outros. Assim, para a maioria dos povos
indígenas, a invasão espanhola significou nem

87
mais nem menos que a oportunidade de se
libertarem, na Mesoamérica, de um império
canibal e, nos Andes, da escravidão do império
inca. E, portanto, não é exagero afirmar que a
Conquista foi uma libertação em que os próprios
índios foram os atores.

De tudo isso, porém, Bartolomeu de las Casas


nunca diz uma palavra.

Rumo a uma nova sociedade

A Espanha foi, e por muito tempo, o único país


do mundo que promulgou leis específicas para
proteger os vencidos na conquista. Nada como
isso havia sido feito antes. A obrigação evange-
lizadora das “Bulas Alexandrinas” para com os
índios, como vimos, os tornava sujeitos de
direitos. Na Ordenança Real de 19 de outubro de

88
1514 do rei Fernando, então viúvo há dez anos,
encontramos a mesma delicada solicitude
expressa por Isabel a Católica por “suas índias”,
imortalizada em seu testamento:

“É nosso desejo que os índios tenham, como se


deve, plena liberdade para casar com quem
quiserem, tanto para os índios, como para os
originários de nossos reinos, ou para os espa-
nhóis nascidos nas Índias, e que nisso nenhum
impedimento seja colocado sobre eles. E orde-
namos que nenhuma ordem que tenhamos da-
do, ou que de nós possa emanar, possa impedir,
nem impeça o casamento entre índios ou índios
com espanhóis, ou espanholas, e que todos
tenham total liberdade para casar com quem
quiserem, e que as nossas Administrações
assegurem que assim seja feito e respeitado.”
(Tradução do autor)

89
A mestiçagem entre espanhóis e índios é de fato
a pedra angular da política de Estado, tão extra-
ordinariamente singular, sobre a qual repousa
toda a epopeia das conquistas e a história pos-
terior do Império espanhol, sem interrupção
desde os Reis Católicos, o Cardeal Cisneros,
Carlos V, Filipe II e os descendentes da linha
Habsburgo da Áustria. Isso mudaria gradual-
mente durante o século XVIII, com o advento da
dinastia Bourbon e a influência dos filósofos do
Iluminismo.

Qualquer império em expansão se depara com a


questão de integrar a diversidade de seus habi-
tantes. A resposta dada varia, basta um exem-
plo: o da colonização inglesa da Austrália. Tão
logo desembarcou em 1788, James Cook
declarou-a Terra nullius, isto é, de ninguém,
desabitada. Embora cerca de novecentos mil

90
aborígenes serão contados lá, nenhum dilema
moral sofisticado surgirá quanto à natureza dos
aborígenes; virá em seu apoio o supremacismo
de Charles Darwin. Para o colono inglês, o abo-
rígine não é um ser humano e, como um animal
bizarro, será exterminado por uma vontade
política sistemática. Em um século, o número de
aborígenes será reduzido em 90%. E embora os
próprios australianos já não contestem o geno-
cídio cometido – não mais que os holandeses
com o deles na Indonésia, nem os alemães na
África austral – digamos de passagem – basta
constatar que sua história colonial e carcerária
não pode colocar um único grande nome da
comunidade indígena em sua lista: o exato
oposto do império espanhol.

Ousemos mais uma questão hipotética: teria a


Rainha Vitória de Inglaterra (com mais de três

91
séculos de distância) conseguido, em Hong
Kong por exemplo, ter encorajado o casamento
de ingleses com chinesas ou de inglesas com
chineses? Para fazer um balanço da ideia huma-
nista dos Reis Católicos, lembre-se que os
casamentos inter-raciais foram proibidos nos
Estados Unidos até 1967. E que as primeiras leis
penalizando casamentos – e relações sexuais –
com pessoas “de cor” vieram todas das colônias
inglesas, e isso desde sua origem.

Que autoridade moral os anglo-saxões podem


reivindicar para se estabelecerem como juízes
da história? Ou a França? E, a propósito, outros
países coloniais são flagelados com uma lenda
negra?

Assim, esta mistura nova no florescente im-


pério espanhol, absolutamente resoluta, preside

92
a criação de uma sociedade onde o racismo é
inconcebível. Os casamentos mistos e os filhos
deles resultantes, inclusive entre as mais altas
dignidades sociais, não deixam espaço para a
segregação. Isto é particularmente evidenciado
por dois dos indicadores mais reveladores da
obra imperial espanhola, nomeadamente a
educação e os cuidados de saúde.

Escolas, colégios, universidades

O desejo de educar os nativos materializou-se


com uma rapidez desconcertante: em 1523 -
Cortés tomara Tenochtitlan apenas dois anos
antes - Pierre de Gand, parente próximo de
Carlos V, desembarcou no México com outros
missionários para se dedicar os últimos
quarenta anos de sua vida à criação de escolas
para crianças, meninas e meninos, de todas as

93
condições sociais, de famílias espanholas,
mestiças ou da nobreza asteca. Foi à Igreja que
coube o imenso desígnio de elevar a população
indígena, em uma ou duas gerações, a um
patamar cultural semelhante ao dos europeus.
Nas instituições que então surgiram, as pessoas
aprenderam o nahuatl, o castelhano e o latim,
mas também o ensino de artes e ofícios como
pintura, escultura e música, ou carpintaria,
ferraria e ourivesaria.

Dez anos serão suficientes para que surjam os


primeiros mestres mestiços, eles próprios
muitas vezes missionários, poliglotas e letra-
dos. Note-se que quando, em 1536, começou a
instituição de ensino preparatório para a uni-
versidade, a primeira na América, no Colegio
Imperial de la Santa Cruz (México), ela não se
destinava aos filhos dos espanhóis, mas dos

94
indígenas. Ali ensinava-se latim, gramática,
retórica, lógica, aritmética e geometria,
astronomia, medicina, teologia e religião.

O passo seguinte foi dado em 1538 com a criação


da primeira universidade em Santo Domingo,
depois em México e em Lima em 1551, seguidas
de outras vinte e nove até o alvorecer do século
XIX. Delas sairão cerca de 150.000 diplomados.
Para chegar a um total comparável, seria neces-
sário somar todas as universidades coloniais
criadas pela Bélgica, Inglaterra, Alemanha,
França e Itália… Quanto aos portugueses e
holandeses, a observação é ainda mais rápida,
eles não abrirão uma única universidade em
seus respectivos impérios.

À medida que surgem as universidades, surgem


também as faculdades de línguas indígenas,

95
logo tornadas obrigatórias por Filipe II. Ali
serão desenvolvidos os glossários dessas lín-
guas, as primeiras traduções de livros sagrados,
como a dos Evangelhos em náhuatl, datada de
1544. Três anos depois apareceu no México
“Arte de la lengua Mexicana”, a primeira gra-
mática do náhuatl, tornando-se a primeira lín-
gua indígena a ter uma gramática, e isso antes
mesmo do francês. No alvorecer do século XVII,
109 obras em línguas indígenas terão sido
publicadas, incluindo em quíchua, aimara,
guarani, totonac, otomi, purépecha, zapoteca,
mixteca, maia, mapuche, etc. Esta enumeração
a modo de conclusão deveria ser suficiente para
destruir uma das mentiras mais propagadas
pela Lenda Negra: relativa ao desaparecimento
das culturas indo-americanas no império
espanhol.

96
Saúde pública

O outro pilar do empreendimento imperial é,


sem dúvida, a preocupação com o cuidado dos
enfermos. Os reis católicos Isabel e Fernando
dão instruções contundentes: “Façam nas
aldeias onde forem necessários hospitais para
receber e cuidar tanto de cristãos como de
índios”. Assim, a partir de uma política de
profissionalização da medicina iniciada nas
décadas anteriores, somente na primeira
metade do século XVI foram construídos na
Índias cerca de vinte e cinco grandes hospitais,
como o primeiro denominado San Nicolas de
Bari, fundado em 1503, na ilha de Guanahani
(San Salvador). Onze anos apenas após o
desembarque de Colombo! Além disso,
acrescentam-se um número muito maior de
pequenos hospitais e instituições de caridade

97
com capacidade menor. Todo atendimento é
totalmente gratuito e para todos, com especial
atenção para os índios, atingidos por novas
doenças importadas do Velho Mundo, como
sarampo, catapora, caxumba ou gripe, e contra
as quais os nativos não tinham imunidade.
Foram criados estabelecimentos especializados
no tratamento da sífilis e dos leprosos. É para
eles que o próprio Hernan Cortés lançará a
construção do hospital San Lázaro da Cidade do
México, entre 1521 e 1524.

Em breve serão raros os povoados e vilas com


mais de 500 habitantes que não possuam
estabelecimento hospitalar, não sem destacar o
caso marcante de Lima, no Peru, que oferecerá
capacidade para quinze leitos por 1.000
habitantes, índice bem superior ‒ diga-se de

98
passagem ‒ que muitas cidades
contemporâneas.

Seguindo esta mesma política imperial, e em


paralelo com o desenvolvimento das universi-
dades, nasceu em 1551 a primeira faculdade de
medicina. Fora das terras mexicanas, a mesma
observação pode ser feita para as regiões do
Vice-Reino do Peru, conquistadas posterior-
mente. Em Lima, por exemplo, o primeiro
hospital foi inaugurado em 1533 e a primeira
universidade em 1551.

Este rápido panorama do desenvolvimento sem


precedentes da saúde pública ficaria incompleto
se omitíssemos a farmacopeia dos hospitais de
todo o império, onde a tradição europeia foi
enriquecida pela cultura andina para se tornar a
referência de vanguarda, oferecendo aos índios

99
a melhor medicina do mundo, muito antes dos
próprios países europeus. A contribuição das
plantas medicinais indígenas é em si mesma
uma lista extensa, onde destacaremos em par-
ticular a importância salvadora da coca e da
quinina [O médico índio peruano Pedro Leiva
descobriu suas propriedades, a partir de 1630, e
desenvolveu o primeiro tratamento contra a
malária].

Terminado este panorama dos pilares mais


representativos da obra imperial nas Índias
americanas, ousemos fazer uma rápida com-
paração com os territórios ingleses da América
do Norte: notemos apenas que o primeiro hos-
pital não veria a luz do dia até 1664, cinquenta e
sete anos após a chegada dos primeiros coloni-
zadores, ou seja, cento e quarenta e três anos
após a fundação do Hospital da Cidade do

100
México por Hernán Cortés. E mesmo assim
destinava-se apenas a receber soldados e
marinheiros. Quanto à primeira escola de
medicina britânica, ela não foi criada até 1765.

Existe outro exemplo na história em que os


conquistadores levaram tão a sério as neces-
sidades e a saúde dos povos conquistados?
Bartolomeu de la Casas não podia ignorá-lo:
autorizou em 1534 a transformação do Hospital
da Misericórdia (Guatemala), fundado em 1527.
Não é razoável que os fatos concretos da obra
imperial espanhola em relação aos índios não
sejam ponderados em relação ao anátema
lascasiano? Dessa forma, e se quisermos fazer
“um balanço geral” – como diríamos hoje – da
sociedade mexicana em meados do século XVI,
por meio dos setores mais reveladores de seu
desenvolvimento humano, somos forçados a

101
concluir que nos encontramos no exato oposto
da descrição dantesca feita pelo dominicano Las
Casas quando encontrou uma editora para sua
obra em Sevilha em 1552. La Brevísima relación
de la destruyción de las Indias retoma e desen-
volve textos escritos dez anos antes. Ele poderia
tê-los corrigido, mas não o fez. A agitação
doentia do dominicano, nomeado bispo de
Chiapas (México) em 1543, atrai a atenção régia
e leva à organização da famosa Controvérsia de
Valladolid, em 1550. Ela se estenderá por seis
anos, mas não se concentra em determinar se os
índios têm alma ou não. A evangelização per se
é uma prova contundente que isso é absurdo,
mas no entanto se repete há gerações nos livros
didáticos. Tratava-se de um debate filosófico e
teológico, lançado por iniciativa do imperador
Carlos V, em torno da forma de evangelizar os
índios. Mas, em si, é a própria natureza da

102
disputa teológica sobre a legalidade das
conquistas da Índia que é verdadeiramente
fascinante. Pois o contexto é essencial: em um
império em crescimento, o imperador mais
poderoso da Europa, no auge de sua glória,
decide pausar a conquista para examinar se a
Espanha está cumprindo sua missão moral!
Devemos insistir nisso, porque nunca antes,
nem depois, nenhuma potência em ascensão –
e menos ainda uma potência colonial – se fez
esse tipo de pergunta. Alguém já viu um rei da
Inglaterra, França, Holanda ou um imperador
alemão infligir tal dilema a si mesmo? As
conquistas espanholas recomeçarão a partir de
1556, não sem terem sido promulgadas novas
disposições que as regerão, devendo cada
iniciativa ser previamente aprovada, sob
vigilância dos vice-reis e do próprio imperador.

103
Neste ínterim, muitos contemporâneos de Las
Casas se insurgiram contra suas afirmações.
Mas convenhamos: se outros clérigos se pro-
nunciaram nas Índias contra o abuso onde os
viram, o que não passa batido é a insuportável
arrogância narcisista da personagem, suas
acusações generalizadas e suas condenações
ultrajantes, gratuitas e preconceituosas: ele
demoniza a conquista em sua totalidade, atri-
buindo-lhe até um genocídio. Eles o acusam –
como o não menos famoso evangelista francis-
cano Toribio de Benavente –, em outros termos,
de ser injusto ao difamar todo um povo e mentir
com pleno conhecimento de causa. Autores
modernos como a renomada historiadora María
Elvira Roca Barea analisaram criticamente seus
escritos. Cito-a: “Duvido que muita gente tenha
lido a Brevísima; basta lê-lo para desacreditá-lo
como documento confiável e sem que seja

104
necessário desenvolver qualquer tipo de argu-
mentação. Ele produz espanto e pena em partes
iguais. Ninguém com um pouco de serenidade
intelectual ou bom senso defende uma causa,
por mais nobre que seja, como fez o domini-
cano. Foi somente nas mãos da propaganda que
ela conseguiu fazer do Padre Bartolomé um
apóstolo dos direitos humanos” (Tradução do
autor).

Porque os exageros verbais são também acom-


panhados de aberrações difíceis de sustentar:
desde a justificação dos sacrifícios humanos
pelos índios – que ele compara ao da missa –
até a proposta de substituí-los no trabalho por
escravos negros, os quais não têm alma... Tais
excessos, impregnados pela ideia do “índio”
sem culpas, vindo de uma espécie de Éden
primitivo – e do qual Rousseau saberá tirar

105
proveito – também podem ser explicados pelo
fato, denunciado por seu contemporâneos, que
Las Casas não conhecia os índios, assim como
não participou pessoalmente da pregação para
eles. E não é um argumento menor sublinhar
que Las Casas nunca se preocupou em aprender
nenhuma das 300 línguas indígenas das regiões
da Nova Espanha, tarefa absolutamente indis-
pensável para evangelizadores dominicanos,
franciscanos, jeronimitas, agostinianos ou
jesuítas. Um leitor distraído pode pensar: pro-
vavelmente Las Casas exagerou e mentiu para
proteger os índios. Mas esta ideia é duplamente
incoerente: do ponto de vista da moral católica,
primeiro, porque o fim nunca pode justificar os
meios; e depois porque o bom Bartolomeu
mentiu mesmo sem nenhuma necessidade.
Quanto às suas próprias tentativas de comuni-
dades indígenas em Cumaná na Venezuela, em

106
seu bispado de Chiapas no México, e seu projeto
de Verapaz na Guatemala, na aplicação de seus
princípios utópicos, elas terminaram em fra-
casso sem paliativo, deixando seu bispado no
caos, aumentando seu descrédito perante as
autoridades civis e religiosas, e motivando seu
retorno definitivo para a Espanha em 1547. Para
um homem credenciado urbi et orbi com o título
de defensor dos índios, deve-se dizer que ele se
saiu muito mal.

Em resumo, verdade seja dita, os escritos lasca-


sianos têm apenas um propósito de propaganda
e, como examinamos, nenhum valor histórico.
Mas então, que interesse eles podem ter e para
quem? Com que artimanha Bartolomeu de las
Casas se tornou uma referência universal válida
para julgar (e condenar) o Império espanhol,

107
um "arauto" dos direitos indígenas e precursor
dos direitos humanos?

Foi na Inglaterra que o anticatolicismo e a pro-


paganda antiespanhola começaram “oficial-
mente”, quando Henrique VIII se proclamou
chefe da Igreja Anglicana em 1534. Recordemos
que Catarina de Aragão, sua repudiada esposa, é
filha dos reis católicos Isabel e Fernando. Ele
encontra nas teses de Lutero seu maior aliado.
Contra os espanhóis, qualificados de “corrom-
pidos” pelo preconceito italiano já em curso, o
monge alemão impele o argumento ao limite e
os assimila ao Demônio e ao Anticristo. Esse
amálgama não é secundário: a desumanização é
a premissa necessária para o nascimento do
nacionalismo inglês: o verdadeiro inglês deve
ser anticatólico e antiespanhol. O "Livro dos
Mártires" de John Fox, de 1559, foi fundamental

108
para o estabelecimento do protestantismo na
Inglaterra, exacerbado pela propaganda de Es-
tado da Rainha Elizabeth I. Ele alcançou o status
de manual de doutrinação, de leitura obrigató-
ria para os jovens ingleses, porque forjava a
ideia de que a Inglaterra é a nova nação escolhi-
da para cumprir a vontade divina na terra. Pois
se “Deus é inglês”, qualquer inimigo da Ingla-
terra é inimigo de Deus. Foi neste contexto de
ódio anticatólico, e portanto hispanofóbico, que
surgiu em 1583 a primeira edição inglesa da
Brevísima de B. de Las Casas. Motivado pelo
mito da nação eleita, e autojustificado para se
apropriar das riquezas espanholas, o poder
inglês montou o maior empreendimento de
pirataria da história. A historiografia atual e a
indústria cinematográfica popularizaram-nos
em termos simpáticos, mas Francis Drake,
Noble, Barker, Oxenham ou John Hawkins

109
foram na realidade saqueadores sanguinários
cujo “dever sagrado” consistia em semear
morte e destruição nas cidades costeiras do
Caribe, o que fizeram entre 1585 e 1596. Este foi
também o objetivo da enorme expedição naval
inglesa de 1589, liderada por Drake, destinada
ao saque dos portos peninsulares espanhóis,
mas como esta última terminou em um amargo
fracasso, a reescrita vitoriana da história
britânica não fala disso, e tampouco Hollywood.
A Lenda Negra Espanhola servirá ao longo dos
séculos seguintes para credenciar a necessidade
de arrancar as “imerecidas” posses de um povo
“ímpio e lascivo”. As tentativas militares
britânicas de ocupar a Argentina em 1806 foram
apenas um precursor da vassalagem econômica
e bancária dos estados procedentes do império
espanhol em decomposição. A Guerra das Ilhas
Malvinas de 1982 nos fornece um exemplo mais

110
recente do cínico desprezo britânico para com
um povo hispano-americano: Margaret
Thatcher permitiu que, se a Marinha Real
falhasse, mísseis nucleares fossem lançados na
cidade Argentina de Córdoba, em retaliação.

Voltemos agora às províncias alemãs do século


XVI, que viram nascer as teses luteranas.
Habilmente adaptado às circunstâncias, Lutero
soube fornecer aos príncipes novas bases de
caráter divino para o seu poder, na forma da
total subordinação do povo à nobreza. Nas
regiões sob influência reformista, a regressão
ao domínio feudal provocou uma série de
convulsões e guerras civis cíclicas, que duraram
um século, e uma recessão sem precedentes.
Terreno fértil, também, para receber de braços
abertos os escritos lascasianos, traduzidos para
o alemão em 1569, e sobre os quais se apoiou a

111
propaganda protestante para construir um
nacionalismo germânico até então inexistente,
expressa em termos de hispano-católicos,
nomeadamente estrangeiros, contra os
alemães-protestantes, em total negação da
realidade. O romantismo alemão de Schiller e
Goethe explorará tanto quanto possível os
mitos do perverso inquisidor e do preguiçoso
espanhol. Ser católico na Alemanha, até o final
do século XIX, significava pertencer a uma
subclasse da sociedade: após a proibição do
culto, proibição do acesso às universidades, às
profissões superiores e aos cargos na
administração pública. Os nazistas souberam
jogar com o sentimento reformista: a Lutero foi
dedicada à infame “Noite do Cristal” de 9 a 10
de novembro de 1938.

112
Na Holanda, o príncipe de Orange, vassalo de
Filipe II, travara uma queda de braço contra o
poder espanhol, não na forma de rebeliões
populares, mas de reivindicações aristocráticas
de caráter feudal. Com base em uma transição
gradual para o calvinismo nas províncias
holandesas, essa dinâmica de solapamento
culminará em uma guerra civil de oitenta anos,
na qual intervirão jogos de alianças, em par-
ticular com a França de Richelieu. Por conse-
guinte, por motivos geopolíticos particularistas,
o objetivo comum era a destruição do Império
Espanhol. Nas mãos do partido de Orange, a
Brevísima, traduzida para o holandês em 1579,
será explorada com uma habilidade inigualável,
destinada sobretudo a escandalizar e a suscitar
reações passionais, na ausência de uma argu-
mentação bem desenvolvida, e a reduzir a nada
os esforços de pacificação do imperador. A fé

113
católica, tornada ilegal pelos Estados Gerais em
1584, só recuperou seu lugar de direito em 1853.
O termo sul-africano “apartheid”, que significa
marginalização, é de origem holandesa.

Havia um triângulo de propaganda fértil entre


Holanda, Inglaterra e os huguenotes franceses
apoiados pelo Príncipe de Orange. Os panfletos
antiespanhóis eram geralmente produzidos
primeiro em francês e holandês, antes de serem
imediatamente traduzidos para o inglês,
acompanhados pelas terríveis gravuras
inspiradas nas descrições de Las Casas. É uma
verdadeira indústria editorial, um gênero à
parte, beneficiando de financiamentos à altura
das apostas políticas, e envolvendo artistas da
dimensão de Hans Holbein, Lucas Cranach o
Velho, Albrecht Dürer ou Johann Wierix. Um
tema que ocupa o Olimpo desse mito é, claro, a

114
Inquisição, mas apenas a espanhola, embora
nunca se tenha estabelecido na Holanda,
enquanto esteve presente em outros países
europeus, inclusive na França.

A “Très brève relation de la destruction des


Indes”, título da tradução de 1578, difundiu-se,
portanto, na França, somando-se às dezenas de
edições em outras línguas que já circulavam
pelos meios protestantes. E, embora a França
tenha sido a última a seguir massivamente as
pegadas da propaganda antiespanhola, o final
do século XVII viu florescer os primeiros pan-
fletos, motivados pela necessidade de levantar
uma autoestima nacional afligida por um século
de hegemonia espanhola e oito cruéis guerras
civis de religião. Michel de Montaigne, num
capítulo dos Ensaios, discorre sobre os crimes
perpetrados na América pelos espanhóis, agora

115
relatados por eles: “pois não se contentam em
confessá-los, gabam-se deles, e os publicam” .
(“Eles”, leia-se: Las Casas). Sob o disfarce de
argumento religioso, a acusação é de fato geo-
política: os espanhóis são “bárbaros”, piores do
que os próprios “selvagens” (que são muito
poucos) e, portanto, nada de bom pode resultar
de seus negócios junto deles. Entenda-se: tal
privilégio civilizador deve ser conferido a
outros. Sem surpresa, os textos de Montaigne
foram imediatamente traduzidos para o inglês.

No contexto das guerras franco-espanholas, a


condessa d'Aulnoy iniciou um novo e próspero
filão, descrevendo a Espanha como “exótica”,
ignorante e supersticiosa, ou seja, à margem do
cânone europeu. Esta ideia literária de
“anormalidade”, descoberta por meio de
viagens, reais ou imaginárias, chegará bem a

116
tempo de servir aos desígnios expansionistas de
Luís XIV, instala-se e não partirá jamais.

O ano de 1700 inaugurou a dinastia Bourbon, na


pessoa de Filipe V ‒ aliás neto do Rei Sol ‒ no
trono de Espanha, após uma longa luta
sucessória.

Uma reviravolta decisiva vai ocorrer: os políti-


cos e órgãos administrativos implantados pelos
Habsburgos são desmantelados em favor de
uma centralização ao modelo de Estado francês,
acompanhada de uma colonização cultural na
corte de Madri e nas elites espanholas. Na
França, a adaptação a esse acontecimento não
elimina os temores inspirados por esse colosso
que ainda é o império espanhol; a propaganda
de pensadores “iluminados” superará os clichês
anteriores, mas o estilo panfletário dará lugar a

117
obras eruditas e prestigiosas. Diderot, Raynal ou
Montesquieu (nas “Lettres persanes”) despeja-
rão no rígido molde da historiografia oficial da
Espanha as mentiras amplificadas em modo
erudito: a Inquisição e a intolerância, os
maus-tratos às minorias, o extermínio dos
índios por Filipe II, uma sociedade atrasada e
uma economia arruinada, a incapacidade para a
ciência e para o pensamento, etc. Desta gene-
rosa fonte hão de beber os autores da
ópera-balé e do teatro, de Jean-Philippe
Rameau a Marmontel passando por Voltaire. O
mais curioso, aliás, é que a maioria dessas obras
foi proibida na França e teve de ser publicada no
exterior ou impressa clandestinamente,
enquanto circulava livremente no “tirânico”
império espanhol. Note-se que o obsessivo
discurso anti-imperial francês não aponta
apenas para a Espanha, mas também para a

118
Rússia, a potência em ascensão do momento,
enquanto, ao mesmo tempo, a empreitada im-
perial francesa na América do Norte termina em
desastre absoluto, sobre o qual cai um silêncio
espesso, e do qual nenhum autor ilustre, nem
Montesquieu, tão prolífico em suas
“Considérations sur les richesses de l’Espagne”
[Considerações sobre a Riqueza da Espanha],
desejará analisar as causas.

Então chega o momento da ideia da


degeneração das espécies sob a pena do
naturalista Buffon em sua “Histoire Naturelle”.
Segundo ele, as condições ambientais tornariam
as terras do Novo Mundo impróprias para a
civilização. E como a “demonstração” disso foi
fornecida para as possessões espanholas, isso
também se aplica à América do Norte. A teoria
da degeneração não é um detalhe na história da

119
“Ilustração”: ela fornece a ideologia para a
organização ideal do mundo, em dominantes e
dominados: da predisposição natural dos índios
à servidão, defendida por Montesquieu em “De
l'esprit des lois”, Buffon decreta a inferioridade
do nativo americano. Cornelius De Pauw, em
sua “Recherches philosophiques sur les
Américains” vai além, pois detecta nos indíge-
nas uma debilidade nativa tanto física quanto
intelectual, que os impede definitivamente de
progredir, evoluir e aprender. Está aberto o ca-
minho para o “racismo científico” do superior
europeu – nórdico, é claro. Esses preconceitos
presidirão todos os empreendimentos coloniais,
como vimos.

Os fundamentos do liberalismo norte-ameri-


cano serão impregnados de desprezo racial e
cobiça em relação aos nativos hispânicos. Os

120
temas lascasianos e hispanofóbicos contribui-
rão para as revoluções burguesas sul-america-
nas para então serem retransmitidas pelo
marxismo europeu, soviético e hispano-ameri-
cano. Em meados do século passado, o indige-
nismo ressurgiu como reivindicação de direitos
“historicamente pisoteados”, retomando a
Lenda Negra eternamente renascente, mas
ensinada de outra forma na história oficial, do
México à Patagônia. No entanto, a ideia de
“povos originários” reivindicando sua sobera-
nia ‒ numa lógica de balcanização que é um dos
objetivos do Foro de São Paulo ‒ é baseada em
um mito, já que a população hispano-ameri-
cana é 95% mestiça. A ideologia indigenista
encontrou no wokismo atual um amplificador
ideal.

121
Las Casas não foi, nem de longe, o primeiro a
defender os índios, nem seu sensacionalismo o
mais eficaz para esse fim. Quanto ao reconheci-
mento dos direitos, teórico em primeiro lugar, e
sua concretização progressiva, muito pouco de
fato se deve ao dominicano. Foi apenas a
propaganda europeia que fez dele o apóstolo
que ele não era, mas aspirava ser. A sociedade
contemporânea adora “denunciantes” e
“precursores”, de modo que a maioria das
publicações dedicadas a Las Casas repete
continuamente os mesmos clichês, cujas
origens e objetivos agora conhecemos. Os sites
da Internet oferecem uma coletânea disso.

“A Lenda Negra sobre a Espanha é a maior


alucinação coletiva do Ocidente” [Assim
expressa o historiador sueco Sverker
Arnoldsson em sua obra Las origenes de la

122
Leyenda Negra. (Ed. El Paso, 2018)]. Baseia-se
essencialmente na obra escrita do dominicano
Las Casas, cuja fértil descendência dá vertigem,
e que os artesãos do politicamente útil primeiro,
e os guardiões do politicamente correto depois,
empenharam-se para elevar à categoria de mito
intocável. Dessa elaboração primeiramente
anticatólica, mais amplamente anticristã em
seguida, emergiu uma distopia histórica
verdadeiramente única – porque global – que
distorce, se não eclipsa, um dos períodos mais
importantes da nossa história europeia comum.
A obliteração cultural imposta nos priva, por
consequência, de uma de suas mais ilustres
joias, senão, talvez, a maior.

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123
O grande elenco reunido pelo diretor estreante Sidney Lumet, em 1957| Foto:
Divulgação Lumine

12 HOMENS E UMA SENTENÇA

A maior obra-prima dentre os dramas


de tribunal
Por Marcos Petrucelli, especial para a Gazeta do Povo

Um jovem de 18 anos de idade, acusado de ter


assassinado o próprio pai a facadas, está diante
do tribunal, aguardando o veredito de seu

124
julgamento. O juiz faz um resumo do caso e in-
forma aos doze membros do júri qual deverá ser
o procedimento: a condenação ou absolvição do
réu só se dará em caso de certeza absoluta, ou
seja, unanimidade. Caso haja discordância entre
eles, prevalecerá a inocência. O juiz também
ressalta que, em sendo o veredito pela condena-
ção, a única alternativa para o réu será a pena de
morte numa cadeira elétrica.

A sinopse aqui descrita é também uma das pri-


meiras sequências de 12 Homens e uma Senten-
ça, disponível para streaming pela Brasil Para-
lelo, Lumine, além de locação pela Apple TV.
São somente alguns poucos minutos de uma
introdução que nos apresenta a um dos maiores
clássicos do cinema americano e também mun-
dial, certamente o filme mais prestigiado e de

125
referência mais frequente tanto no universo
jurídico, quanto nas escolas de cinema.

Aliás, por ser uma obra que se insere na catego-


ria dos dramas de tribunal, é curioso destacar
que todo o desenvolvimento narrativo não
acontece de fato no tribunal, diante do juiz,
advogados, promotores e testemunhas, mas
numa pequena sala na qual os doze jurados se
reúnem para chegar a um veredito. É nessa sala
apertada e desconfortável que doze homens
terão de decidir o destino de um ser humano. Já
na primeira votação que realizam, onze jurados
não hesitam na escolha pela culpabilidade e
consequente condenação. Um único jurado, no
entanto, vota em contrário. Ele não considera
que o réu seja inocente, mas também não tem
certeza de sua culpa. Justamente por conta da
dúvida, esse jurado prefere investir mais algum

126
tempo discutindo o caso com os companheiros a
fim de se chegar a uma sentença correta.

Estão, ali, pessoas de várias posições, de


diferentes níveis de conhecimento e de distintos
mecanismos para a interpretação dos fatos.
Mas, contrariando a todos, um único jurado
quer exatamente isso: eliminar dúvidas, afastar
preconceitos morais e éticos, desconstruir
impossibilidades, até que restem somente os
fatos e se encontre uma certeza razoável.

Certezas e dúvidas em foco

12 Homens e uma Sentença foi lançado em 1957,


marcando a estreia no cinema do diretor Sidney
Lumet. O roteiro é assinado por Reginald Rose,
que primeiro escreveu a história como uma peça
de teatro. Lumet e Rose se conheceram traba-

127
lhando na televisão, no início dos anos de 1950,
e chegaram a gravar essa mesma história nesse
formato. Sendo assim, não é de se estranhar que
a versão para cinema tenha referências tanto
televisivas quanto teatrais. Ocorre que o diretor
Lumet, contando com a engenhosidade do fotó-
grafo Boris Kaufman, criou uma linguagem
cinematográfica única, desenvolvendo planos e
sequências que evidenciam todo o poder
narrativo do roteiro.

O maior obstáculo, evidentemente, é o espaço


restrito. Ainda assim, Lumet e Kaufman con-
seguem transitar habilmente naquela
minúscula sala com as câmeras entre tantos
homens e cadeiras. De início são planos mais
lentos, sem cortes e abertos, somente para
evidenciar a confusão espacial e também de
pontos de vista.

128
Mas, rapidamente, o diretor passa a usar a câ-
mera em close, a fim de desagregar o tumulto
verbal, focando as certezas e as dúvidas, a se-
gurança e a hesitação de cada um. De quebra,
Lumet também encontra uma forma de realçar
o talento individual de cada uma de suas estre-
las: Lee J. Cobb, E. G. Marshall, Joseph Sweeney,
Ed Begley, Edward Binns, George Voskovec,
Jack Klugman, Jack Warden, John Fiedler,
Martin Balsam, Robert Webber e, claro, Henry
Fonda – o jurado número 8 e responsável pelo
enfrentamento –, que também assina a
produção do filme.

Em pouco menos de 100 minutos, Lumet cria


um ambiente caótico e claustrofóbico. Mesmo
não contando com as tradicionais sequências de
verborragias jurídicas proferidas pelos advoga-
dos, por vezes sedutoras ou até enfadonhas, o

129
diretor Lumet transforma em imagens catárti-
cas as expressões de cada jurado, o suor escor-
rendo pelos rostos, papéis espalhados na mesa,
cigarros e mais cigarros nos cinzeiros.

É o discurso, no entanto, que faz desse filme


uma obra-prima (não por acaso entre os 100
melhores filmes de todos os tempos pelo
American Film Institute). 12 Homens e uma
Sentença mostra que, mesmo diante da letra
fria das Leis, não há certeza absoluta, que
ninguém possui o monopólio da verdade, que
não se pode aceitar uma decisão monocrática e
que é necessário, sempre, colocar à frente de
tudo a razoabilidade e a impessoalidade quando
se pretende fazer justiça.

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PARA SE APROFUNDAR

● Que terror é esse que impressionou Spielberg,


Peter Jackson e Stephen King?

● “Missão de Honra” faz justiça aos bravos


aviadores poloneses da 2ª Guerra Mundial

● Para além de “Um Sonho Possível”: três


ótimos filmes sobre adoção de crianças

● O Holocausto antes do Holocausto: “A


Promessa” retrata o genocídio dos armênios

● Adam Smith explica: por que alguns países


permanecem pobres?

● Fui para Cuba. Será que Lula vai ver o mesmo


que eu vi?

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Você também pode gostar