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MUDRAS, OS GESTOS DO YOGA

LÚCIA MARIA DE OLIVEIRA NABÃO

Mudras são gestos realizados com a mente, as mãos, os pés, a boca, os olhos ou com o corpo
todo. São muito usados no Yoga e nas danças indianas, pois fazem uma reverência a vários aspectos
das divindades hindus e da natureza. Nas palavras de Caio Miranda (1962), os mudras, "encerrando
um profundo simbolismo, têm por objetivo unificar dualidades, como por exemplo, unir a consciência
individual à consciência cósmica, o prana solar ao prana lunar, a matéria ao espírito, etc". Tanto os
yogues como as dançarinas hindus dedicam muitos anos aprimorando-se na prática dos mudras, que
exige treinamento e concentração nos detalhes.

No contexto do Hatha Yoga, os mudras são elementos que dão suporte à prática. Outros
componentes dos suportes do Yoga são: os bandhas ou contrações, os kryias ou técnicas de
purificação interna, os mantras ou sons sagrados. No Gheranda Samhita, texto clássico do Hatha Yoga,
encontramos que "o processo útil que colabora nas práticas de pranayama, pratyahara, dharana,
dhyana e samadhi (1) se denomina mudra" (Souto, 2002). Constatamos, assim, que os mudras estão
ligados às principais técnicas utilizadas no Hatha Yoga, e em geral são praticados concomitantemente
com elas.

Nos textos tântricos, que expõem um Yoga muito antigo, os mudras estão diretamente ligados
aos rituais. Associados à entoação de sons e à visualização mental, simbolizando o corpo (mudra), a
palavra (mantra) e o espírito (visualização), acontece a invocação da divindade que se deseja estar em
comunhão (Kupfer, 2001).

Os mudras não são exclusivos da Índia. São encontrados em muitas tradições espirituais do
oriente e do ocidente. Os budistas, os sufistas, islamitas e também os cristãos usam os mudras, como
apoio para suas orações e práticas espirituais (Rammm-Bonwitt, 1997).

Vale ressaltar que o Hatha Yoga busca integrar as polaridades representadas por HA - energia
expansiva, solar, coletiva, macrocósmica, e THA - energia receptiva, lunar, individual, introspectiva,
microcósmica. É nessa integração que o praticante vive um estado de consciência além do eu, um
estado transpessoal, integrado com o Universo, de criatividade e cura.

Os mudras são ligados ao fluxo das energias, tanto na mente como no campo energético, e
fazem correspondência com o corpo físico, especialmente por meio do sistema endócrino e do sistema
nervoso simpático e parassimpático. Para o físico indiano e estudioso do Yoga, Harbans Lal Arora
(1999), "eles produzem efeitos fisiológicos e psíquicos benéficos, proporcionando a saúde
psicossomática, o equilíbrio dinâmico e a harmonia interna".

A palavra sânscrita mudra deriva de duas raízes, mud e ra, tendo diversos significados. Pode ser
traduzida por deleite, alegria ou prazer, pois ao conectar as correntes de energia solar e lunar nos
canais e centros energéticos ou psíquicos do praticante, esse experimenta a consciência do prazer.
Segundo Dr. Gharote (2000), "um comentário de Raghavabhata no Sarada Tilaka 23:106 explica (...)
que mudra dá uma sensação de bem-estar e felicidade."

Outro significado para mudra é magia ou encanto, pois, como num passe de mágica ou num
encantamento, um determinado gesto corporal conduz o indivíduo a um respectivo estado de mente
calma ou feliz. Assim, os mudras são também chamados gestos de poder.

São conhecidos como selos (Feurerstein, 2001), pois, por meio do controle das energias vitais,
selam o corpo e geram alegria. Os grandes sábios da Índia, há mais de 4000 anos, conhecendo
profundamente a anatomia e a fisiologia energética do ser humano, e compreendendo a estreita relação
entre o aparato energético e o psíquico, perceberam que poderiam produzir estados mentais
específicos a partir da colocação do corpo, ou partes do corpo, numa determinada posição gestual. Os
gestos, como selos, fixam na mente um estado particular e favorável ao praticante do Yoga.

Todos nós experimentamos o caráter arquetípico dos mudras quando, num determinado estado
emocional ou numa situação específica, realizamos um gesto que qualquer outro ser humano, em
qualquer parte do planeta e em qualquer outra época, também o faz. Por exemplo, quando juntamos as
mãos em prece para orar, reverenciar ou em sinal de agradecimento. Ou quando abanamos a mão para
cumprimentar uma pessoa, num encontro ou numa despedida. São gestos universais, que as pessoas
fazem, em todas as partes, desde a antiguidade. Muitos gestos corporais estão no inconsciente
coletivo, como diria o psicanalista suíço Carl Gustav Jung, ou, como dizem os orientais, estão no
Akasha, o espaço cósmico, onde estão armazenados todos os conhecimentos da Humanidade, desde
os primórdios (Miranda, 1962).

Um gesto freqüentemente usado no Hatha Yoga para dar suporte à concentração e à meditação
é o jñana mudra, símbolo da sabedoria ou do conhecimento, em que a ponta do indicador e a ponta do
polegar se unem e ou outros dedos permanecem estendidos. O polegar representa a alma universal, e
o indicador, a alma individual, que se unem para facilitar o estado interior de integração. Assim como
este, existe outros mudras, com um simbolismo próprio.

Concluindo, citamos a bailarina e pesquisadora dos mudras, Sabrina Mesko (2003), da


Eslovênia, dizendo que "mudra é a senha de acesso aos dados do seu computador interior - seu poder
invisível".

Yoga e mudrá
Pedro Kupfer

Mudrá é uma palavra sânscrita que significa gesto, selo ou matriz. Os mudrás são a fonte de
uma linguagem gestual e corporal que se origina na tradição tântrica, e está indissoluvelmente
associada ao registro akáshico, o espaço sutil onde estão armazenados todos os conhecimentos e
feitos da Humanidade desde seus primórdios.
Essa linguagem busca a realização de determinados estados de consciência através da
simbologia e das mensagens contidas em certos gestos arquetípicos que atuam por ressonância e
associação neurológica. Tocam os estratos mais profundos do ser humano, permitindo-nos redescobrir
o conhecimento escondido em cada gesto e transportar-nos aos processos de consciência a que eles
aludem.
Muito pouco tem se escrito sobre estes gestos. Menos ainda, sobre as formas em que eles
podem utilizar-se na prática, seja de Yoga, seja de dança. Quando os mudrás são mencionados na
literatura, figuram apenas como símbolos que se referem às diferentes deidades hindus, a eventos
artísticos ou religiosos, ou ainda no teatro, na dança e em cerimônias religiosas, como meios para
identificar os deuses.
Algo que freqüentemente deixa de ser mencionado, mas que nós estudaremos neste livro, são
os aspectos energéticos e metafísicos dos gestos. Eles influenciam a forma como percebemos a
energia vital, aumentando seu caudal e canalizando-a através de diversas técnicas do Yoga, que visam
a aumentar o estado geral de saúde, expandir as percepções, disciplinar a mente e aprofundar os
estados de meditação. O termo deriva das raízes mud, encanto, magia, satisfação, e rati, dar, doar.
Literalmente pode traduzir-se como aquilo que outorga encanto, força ou poder. Em algumas obras
aparece incorretamente traduzido como símbolo, porém, embora alguns mudrás sejam simbólicos,
existe outro termo (yantra) para designar os símbolos em si. Pronuncia-se sempre com a tônico.
Possui três significações bem diferentes: por um lado designa os gestos feitos com as mãos; por outro,
em alguns textos (principalmente de Hatha Yoga, modalidade de Yoga tântrico, surgida no século xi
d.C.) designa outras técnicas fisiológicas, como ásanas (posições físicas) ou bandhas (contrações de
plexos e órgãos); e ainda, no contexto do tantrismo, mudrá designa a Shaktí, a parceira com quem se
pratica o maithuna, a união sexual ritual. A primeira acepção é a que nos interessa.
No Yoga e na dança, a palavra mudrá designa exclusivamente os gestos feitos com mãos e
dedos. A riqueza da linguagem gestual reside no fato de que estes gestos revelam significações
distintas, de acordo com o contexto e a pessoa que os percebe. Eles aludem a verdades eternas,
valores, idéias, conceitos ou estados emocionais que são diferentes para cada um de nós, pois, a partir
de suas múltiplas interpretações, falam diretamente ao eu profundo.
O Yoga e as danças tradicionais da Índia nos revelam o significado dos gestos, em que idéias e
sentimentos são manifestados por meio de símbolos. Eles formam parte do legado da Humanidade e
de nossas vidas, impregnando-nos até o mais íntimo do ser, muitas vezes sem que o percebamos.
Mostram-nos a unidade essencial das coisas, as correspondências entre o mundo sensível e o mundo
das idéias.
O hinduísmo como um todo se nos apresenta cercado de símbolos e emblemas, representação
de idéias e propriedades da Natureza que muitas vezes revelam qualidades ou poderes das suas
diferentes manifestações, sob a forma de deidades. Tudo é significativo, convergente e recíproco: o
segredo está em saber ver, decifrar o que a Natureza, o Yoga, o Tantra e as culturas chamadas
primitivas nos mostram. Assim, poderemos remontar-nos à origem, resgatar a liberdade e os valores
eternos do ser, dos quais fomos afastados pela tirania moral, patriarcal e religiosa das civilizações
industriais e urbanas.

Mudrá, dança e mitologia hindu

Para o homem arcaico, a dança ocupa um lugar essencial na vida da comunidade; dança-se
para despertar o psiquismo coletivo da tribo, para aceder à sacralidade, para renovar as relações entre
o céu e a terra através das chuvas, para promover a fertilidade ou a benevolência das forças da
Natureza, para colocar-se em sintonia com o ritmo do Cosmos.
A dança indiana é tão antiga quanto o próprio Yoga, havendo-se achado estatuetas de
dançarinos e dançarinas em escavações arqueológicas da cultura do vale do Indus, com mais de 5000
anos de antigüidade. Para os hindus, a dança não é criação humana nem produto de uma cultura: é o
fruto de uma revelação de origem divina. Antiqüíssimos mitos contam que o próprio Brahmá, o criador, haveria
composto a pedido dos deuses os tratados originais considerados escrituras sagradas sobre dança, teatro e
mímica. “‘Assim seja‘, disse Brahmá e dispensando Indra, o rei dos deuses, aquele que conhece a essência da
realidade recorreu ao Yoga para relembrar os quatro Vedas. Então decidiu: ‘Farei um quinto Veda, que será
chamado Nátya (teatro); nele, todos os temas da mitologia e da tradição épica estarão combinados. Este Veda
levará à retidão e à justiça (dharma), à prosperidade e à plenitude (artha). Ele trará celebridade, transmitirá
conhecimento, estará regulado por uma série de aforismos, mostrará ao mundo futuro qualquer possível ação,
conterá o significado e de todo o conhecimento sagrado, trará à vida cada faceta das artes e as fará prosperar.‘
“Então, concentrando em sua mente toda a sabedoria, o venerável Brahmá compôs o Nátya Veda, escolhendo à
vontade alguns dos aspectos dos quatro Vedas. Do Rig Veda ele tomou a fala, do Sama Veda, a melodia, do
Yajur Veda a mímica e o movimento corporal (abhinaya) e, do Atharva Veda, a emoção estética (rasa). Nesse
momento, o Nátya Veda passou a existir, vinculado como estava aos grandes e aos pequenos Vedas. Brahmá
então revelou este Veda a Bhárata (o ‘homem‘) e a seus cem filhos.”

O Bhárata Nátyam, a dança clássica, constitui-se assim em expressão humana do ritmo cósmico,
portadora do conhecimento filosófico e religioso da cultura indiana. Não há nada nesta dança que não
possua uma dimensão sagrada: Não há pensamento, afirma Brahmá, nem conhecimento, nem arte,
nem obra, nem sabedoria, nem valor, nem princípio de Yoga que não possa achar-se nesta Arte
uperior. Nátya Shastra. Para entender os mitos por ela narrados, precisamos antes compreender a
função que a mitologia exerce nesta cultura.
Esta função, exemplificante, formativa e construtiva, é equivalente à que ostenta o ensino da
História no Ocidente. As mãos se movimentam com graça e harmonia; os gestos, trabalhados através
de longos anos de intenso treinamento, evocam diferentes aspectos da sabedoria e o conhecimento,
paisagens, campos de batalha, combates entre deuses e demônios, rufar de trompas e tambores,
encontros amorosos e uma infindável quantidade de sentimentos e emoções, que variam segundo o
contexto. Nesta manifestação artística, os mudrás trabalham em três níveis: esteticamente, como
expressão do que está sendo narrado;energeticamente, como movimentos feitos pelo dançarino mas
que atingem a audiência; e, iconograficamente, como representações simbólicas que assumem uma
significação metafísica, histórica ou religiosa.
Como a maioria das danças é a recriação de sagas e mitos do hinduísmo, existe uma
identificação (nyása) que se estabelece a partir dos mudrás que falam desses mitos. O dançarino sente
essa identificação, que se processa no plano emocional e através de longos anos de preparação
constante. Segundo o Vishnudharmottara, tratado clássico sobre as artes, a teoria estética da dança,
bem como de outras manifestações artísticas (principalmente a pintura e a escultura) trabalha com dois
recursos, rasa e bháva. Rasas são as nove qualidades essenciais ou sentimentos: erótico, cômico,
patético, furioso, heróico, terrível, odioso, maravilhoso e pacífico. Bhávas são as expressões ou
inclinações da consciência, que funcionam como uma resposta natural aos rasas. Os bhávas
correspondentes são: amor, alegria, piedade, raiva, energia, medo, desgosto, surpresa e tranqüilidade.
O dançarino deve manipular esses recursos de forma tal que, no final de uma apresentação, a platéia
fique com uma sensação de alegria e bem-estar. Os bhávas se transmitem não apenas através do
movimento do tronco, braços e pernas, mas igualmente pelas mudanças sutis dos olhos, sobrancelhas
e dedos.
A linguagem assim constituída ajuda a identificar situações, estados de ânimo ou atributos dos
diferentes deuses hindus. O panteão hindu constitui uma tentativa formidável (e bem-sucedida) de
definir os distintos aspectos da energia que anima o mundo. Sendo estas manifestações reflexo do
imanifestado (que pode ser chamado Shiva, Om, Purusha ou Brahman), todas as formas de existência
são em essência iguais a ele. Unidade na pluralidade, dentro da mitologia hindu inclue m-se todas as
possibilidades: deuses, semideuses, seres celestiais, anjos, demônios e vampiros cujas sagas e
peripécias serviram desde antigamente para alimentar o imaginário e os ideais de elevação e realização
do seu humano.
Apesar desta inegável multiplicidade, o hinduísmo não é tão politeísta quanto aparenta; tirar essa
conclusão seria tão leviano como concluir, olhando para o santoral cristão, que o cristianismo é
politeísta. Desde seus mais diversos pontos de vista, o hinduísmo sempre vê no Cosmos uma unidade
essencial, um campo vibratório todo penetrante que ao mesmo tempo permanece imanifesto e
inatingível:
Armas não conseguem cortá-lo,
fogo não pode queimá-lo,
água não consegue molhá-lo,
ventos não podem secá-lo...
Ele é eterno e tudo permeia, sutil, imóvel e sempre o mesmo

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