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XII |

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IX

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Gelado social | VI |

J
e olhou fixamente para a casa de Rex
ESSICA PAROU A SUA BICICLETA
Greene, que se encontrava desamparada na rua, rodeada por casas
mais novas de ambos os lados, o relvado em frente reduzido a peda-
ços castanhos moribundos.
A casa parecia vazia, como se tivesse sido abandonada há anos. Mas
o pai de Rex tinha atendido o telefone há uma hora. Tinha confirmado
que Rex estava em casa e depois desligara, não se incomodando em
chamá-lo. Através dos outros midnighters, Jessica tinha ficado com a im-
pressão de que alguma coisa não estava bem com o pai de Rex, mas nun-
ca ninguém dissera exatamente o quê.
Ela olhou para o relógio, ainda uma hora adiantado, por continuar a
marcar o tempo durante a hora secreta, e desejou que Jonathan aparecesse
rapidamente. Não queria enfrentar sozinha a esquisitice do pai de Rex.
− Jessica!
Ela saltou, virando-se para encarar o som antes de perceber quem era.
− Fogo, Jonathan! Assustaste-me.
Ele surgiu detrás do carvalho envelhecido que provocava uma som-
bra sinistra em grande parte do quintal em frente à casa.
– Desculpa. – A voz dele estava áspera. – Estava de certo modo a…
esconder-me, para o caso de o teu pai te ter vindo trazer. Não queria que
ele me visse.
Jessica revirou os olhos.
– Ele nem sequer sabe como é que tu és. De qualquer forma, desde
que ele e a minha mãe decidiram colocar-me parcialmente de castigo, dei-
xou de ser tão paranoico. – Apesar de, como era de prever, o pai ter con-
siderado esta visita como o cartão semanal de Jessica para sair da prisão.
Ela tinha esperança de que a mãe invertesse a regra esta noite depois do
trabalho, se não chegasse demasiado exausta.

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Jessica levou a bicicleta à mão até ao alpendre da entrada a cair aos
pedaços e prendeu-a à grade de ferro.
− Não precisas de fazer isso aqui – disse Jonathan.
Jessica passou a corrente pelos raios e fechou-a.
– Tens de ser condescendente comigo. Os hábitos das grandes cidades
são difíceis de perder. Além disso, gosto de ter o Encarapinhado por perto.
− Encarapinhado? É esse o nome do cadeado da tua bicicleta?
− Tem 13 letras. E, porque sei que vais perguntar, significa «encara-
colado».
Jonathan pestanejou.
– «Encaracolado»? Foi a Dess quem o inventou?
− Quem mais poderia ser? – Ela fez pressão até o cadeado dar um es-
talido. A forma como os elos de metal se enrolavam no quadro da bicicle-
ta fazia-lhe lembrar uma cobra.
Quando ela se voltou de novo para Jonathan, ele deu um passo em
frente e agarrou-se a ela num longo abraço. Ela apertou-o contra si, apre-
ciando a quente solidez do seu corpo. Na hora da meia-noite, Jonathan
parecia tão leve, quase frágil na sua ausência de peso, como se não esti-
vesse realmente ali. A meia-noite podia permitir-lhe voar, mas de certa
forma defraudava-a da substância de Jonathan.
− Estás bem? – perguntou ele.
− Claro. Não dormi grande coisa. E tu? Parece que estás a ficar doente.
Ele encolheu os ombros.
– Esqueci-me de levar um casaco ontem à noite. Foi uma caminhada
até casa sempre ao frio.
− Oh, meu Deus. – Ela olhou para ele. – Esqueci-me… − Não tinha
pensado em Jonathan no seu caminho para casa. Ela nunca o imaginava
a caminhar para lado nenhum.
− Estava um gelo ontem à noite.
Ele sorriu e falou em voz baixa e áspera.
– A quem o dizes.
Jessica olhou fixamente para o chão. Ela tinha sentido medo, mas
pelo menos estava quente e dentro de casa. Eram quilómetros até à casa
de Jonathan. Olhou-o nos seus olhos castanhos e disse-lhe serenamente:
− Sabes, podias ter ido…
A porta de rede abriu-se bruscamente com um chiar de molas ferru-
gentas.

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− Onde estão elas? Viram-nas em algum sítio?
Ambos viraram-se perante o alarido. Emergindo da casa decadente
estava um velho, com o rosto marcado pelo tempo e a barba por fazer. As
mãos tremiam desenfreadamente, afastou os dedos e olhou fixamente
para o alpendre, agarrando com força algo invisível.
− Elas fugiram!
− Desculpe – respondeu Jessica. – Quem é que fugiu?
− As minhas queridas…
Os seus olhos ergueram-se para cima na sua direção, olhando de soslaio
através de uma película de branco leitoso. Um olhar de confusão tomou
conta da sua expressão de pânico e um fio brilhante de baba no seu queixo
reluziu sob a luz do sol. Tufos de barba branca saíam ao longo das rugas,
como se a lâmina não conseguisse chegar às fendas do seu velho rosto.
− Está tudo bem, pai, eu vou encontrá-las.
Através da porta de rede, Jessica viu aparecer o rosto pálido de Rex.
As molas ferrugentas guincharam de novo quando ele agarrou firmemen-
te o ombro do pai.
− Senta-te aqui que nós procuramo-las.
Rex puxou-o para dentro através da porta, as palavras do velhote
reduzidas a murmúrios ao seu toque. A porta de rede retrocedeu e fechou-
-se atrás dele, batendo até parar numa série de golpes contra a estrutura.
Jessica agarrou a mão de Jonathan e apertou-a.
– É verdade, por acaso já te agradeci por teres vindo?
− Não perderia isto por nada neste mundo – disse ele em voz baixa.
Os passos regressaram e Jonathan largou-lhe a mão.
− Foram vocês que telefonaram há pouco? – Rex abriu a porta e saiu,
entreolhando para a luz do sol. Encaminhou-os para um trio de cadeiras
de jardim, na extremidade do alpendre.
Estava vestido com o mesmo uniforme que todos os dias levava para
a escola: calças escuras e uma camisa tão preta que o seu rosto pálido pare-
cia flutuar no ar por detrás da porta de rede. As suas botas pesadas batiam
ruidosamente ao longo do alpendre, as correntes de metal à volta dos torno-
zelos tilintavam e cintilavam ao sol. Há alguns dias, ele tinha dito a Jessica
o nome das correntes do tornozelo – trezivocábulos como Conscienciosa
e Confidenciosa.
− Sim, fui eu. – Enquanto Jessica subia para o alpendre, os degraus
de madeira arquearam ligeiramente sob os seus pés e ela reparou que Jo-

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nathan esperava até ela estar lá em cima, como se não quisesse sobrecar-
regar as velhas tábuas com o seu peso em simultâneo. Ele parecia estar a
coxear. O que lhe teria acontecido ontem à noite a caminho de casa?
− Desculpem o meu secretário – disse Rex com rispidez. – Ultima-
mente anda um pouco distraído.
− Oh, claro. Mas ele disse-me que estavas em casa. Então viemos até cá.
Rex tirou os óculos, olhando nos olhos de Jessica com uma intensi-
dade que a fez desviar o olhar. Ela sabia que, sem os óculos, o mundo era
para Rex uma mancha desfocada no tempo regular. Mas com os rostos
dos outros midnighters era diferente: conseguia vê-los perfeitamente, à
luz do dia ou à meia-noite.
− Pensei que ainda estavas de castigo – disse ele.
− Sim, mas posso ver os amigos uma vez por semana.
Rex sentou-se e depois olhou de relance para Jonathan.
– Sinto-me honrado.
Jessica sentou-se cuidadosamente numa cadeira de jardim, como que
à espera que esta se desmoronasse. A estrutura de metal estava fria mesmo
através da sua saia de lã e os braços pareciam lixa por causa da ferrugem
castanha.
− Aconteceu alguma coisa – limitou-se Rex a dizer. Sabia que eles não
o visitariam para uma simples conversa.
Jessica ergueu o olhar para a janela junto das suas cabeças. Estava
aberta, e rajadas frias levavam a frouxa rede mosquiteira para dentro e
para fora, como se fosse uma membrana viva.
− Não te preocupes com ele – disse Rex, sorrindo ligeiramente. – Eu
não tenho segredos para o meu pai.
− Vimos uma coisa ontem à noite – disse Jonathan. Ele deu uma ên-
fase subtil à palavra noite, que todos eles empregavam quando se queriam
referir à hora secreta.
Rex aquiesceu de forma prudente com a cabeça.
– Animal, vegetal ou darkling?
− Humano – respondeu Jessica. – Petrificado, do outro lado da rua da
minha casa, com uma máquina fotográfica apontada para a minha janela.
Rex franziu as sobrancelhas, as botas raspando no alpendre enquanto
se endireitava na cadeira de jardim. De repente, parecia comportar-se tal
qual como na escola: nervoso e indeciso. A sua presunção só despontava
na hora secreta ou quando se discutia um assunto relacionado com os

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midnighters. A referência a um simples humano tinha-o feito sentir-se di-
minuído.
− Como um perseguidor?
− Não assim tão normal – disse Jonathan.
Jessica olhou-o de soslaio. Desde quando os perseguidores eram nor-
mais?
− Eu fiquei a observá-lo depois de a hora acabar – continuou ele. –
O tipo estava a tirar fotografias exatamente à meia-noite. Tinha uma da-
quelas máquinas fotográficas que… − Simulou segurar uma máquina nas
mãos e aspirou através dos dentes, fazendo uma série de silvos. – Sabes,
daquelas que tiram muitas fotografias de seguida. Acho que ele estava a
tentar ver se alguma coisa… mudava à meia-noite.
− Vocês expuseram o rolo à luz, certo?
− Humm… − Jonathan e Jessica entreolharam-se.
− Não? – Rex sorriu, pôs os óculos de novo no rosto e recostou-se,
como se estivesse de novo em terreno familiar.
− Bem, não é nada de especial. As fotografias podem revelar uma
mudança à meia-noite. Quer dizer, provavelmente, tu mexeste nos cortina-
dos durante a hora secreta. – Ele encolheu os ombros. – As pessoas tentaram
uma coisa chamada «fotografia do espírito» no início do século xx. Espe-
cialmente aqui em Bixby. Mas, na verdade, isso não mostra nada.
− Como é que podes agir como se não fosse nada de especial? – indi-
gnou-se Jessica. – É óbvio que o tipo sabe a respeito da meia-noite!
Rex assentiu com a cabeça, balançando a cadeira devagar.
– Não é algo sem precedentes.
− O que queres dizer?
Ele pôs-se de pé, caminhando com ruído em direção à porta de rede
e abrindo-a com um rangido.
− Deixem-me mostrar-vos uma coisa.

Mesmo com todas as janelas abertas, a casa libertava um cheiro. Na


verdade, mais do que um cheiro. Havia um cheiro a pessoa velha, como
a casa de repouso nos arredores de Chicago onde a avó de Jessica estava
serenamente a ficar senil. E havia também o odor singular de cigarros apa-
gados a marinar em cinzeiros cheios de água.

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– É por segurança – disse Rex quando ela levantou as sobrancelhas
para uma tigela de charutos baratos, encharcados e a desintegrarem-se.
– O meu pai não é muito bom a apagar as beatas. A água ajuda.
Sob tudo o resto havia um cheiro insistente a urina de gato. Um gato
enorme estendido numa poltrona bastante arranhada observou-os a pas-
sar, conseguindo parecer entediado, incomodado e majestoso ao mesmo
tempo.
O pai de Rex estava imóvel num grande cadeirão, com os olhos pa-
ralisados num aquário vazio com os vidros laterais arranhados.
− Onde estão elas? – perguntou ele debilmente quando Jessica pas-
sou em bicos dos pés.
− Nós vamos encontrá-las – respondeu Rex. – Devem estar algures
por aqui.
− O quê? – murmurou ela quando eles se viraram para o corredor
escuro. – Os peixes?
Sem olhar para ela, Rex abanou a cabeça.
– Não, as aranhas.
Ela olhou para Jonathan, que encolheu os ombros.
O quarto de Rex era ao fundo do corredor e tinha um cheiro diferen-
te do resto da casa. Aqui o mofo provinha dos livros antigos e das peças
de museu. Pilhas de cadernos de apontamentos e papel avulso estavam
dispostos precariamente em torres e filas de livros que cobriam todas as
paredes. Uma prateleira de livros bloqueava a única janela do quarto; pa-
recia mesmo que Rex tinha mais medo da luz do que do escuro.
− Lar, doce lar – disse ele.
À medida que os olhos de Jessica se ajustavam à obscuridade, alguns
títulos começavam-se a focar. Mais ou menos o que ela estava à espera,
mas mais. Havia livros de história sobre o estado de Oklahoma, diários de
colonos e relatos dos deslocamentos e do Caminho das Lágrimas, quan-
do os Nativos Americanos tinham sido colocados à força no Território
de Oklahoma há mais de cem anos. Recuando ainda mais no tempo, havia
livros sobre povos pré-históricos do Novo Mundo e sobre as ferramentas
e animais da Idade da Pedra. Ela e Jonathan caminharam entre pilhas de
papel, documentos manuscritos contendo o selo da cidade e páginas ve-
lhas do Bixby Register.
Tanto quanto Jessica se apercebia, Rex tinha fotocopiado cerca de
metade da biblioteca local e empilhara os resultados no seu quarto. Até a

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cama estava coberta de papéis. Em alguns estavam inscritos os símbolos
longos e esguios que lembravam a doutrina midnighter. Ela reconheceu
a runa em forma de tocha que simbolizava o seu próprio talento, a por-
tadora da chama. Recentemente, à hora de almoço, Rex tinha tentado
ensinar-lhe os símbolos dos outros talentos: polimatemata, acrobata, cla-
rividente e leitor de mentes. Mas ela mal podia distinguir o que quer que
fosse nas páginas densamente rabiscadas.
Na única cadeira do quarto, estava pendurada uma mochila. Rex
sentou-se e aclarou a garganta.
– A Dess contou-te sobre Bixby, certo?
Jessica observou as pilhas e prateleiras à sua volta.
– Talvez não me tenha contado tudo sobre Bixby. A que é que te re-
feres, exatamente?
– Aos sinais da meia-noite. As escadarias com 13 degraus, os símbo-
los…
– Sim. – Dess tinha-lhe dado algumas dicas sobre pormenores esqui-
sitos de Bixby, na primeira vez em que se encontraram, antes de Jessica
perceber que a hora secreta era tudo menos um sonho. Desde então, ela
tinha encontrado os sinais em todo o lado: as estrelas de 13 pontas no selo
da cidade, no emblema do liceu, nas placas antigas que as pessoas pendu-
ravam nas casas. Até as palavras Bixby e Oklahoma totalizavam 13 letras.
− Alguma vez te perguntaste quem é que pôs todos esses sinais em
prática?
Jessica franziu as sobrancelhas.
– Não existem midnighters por aqui há muito tempo? Tu disseste
que eles lutam contra os darklings há 10 mil anos. Desde que o tempo
azul foi criado.
− É verdade. Mas a luta nem sempre foi tão secreta como agora. Anti-
gamente, não éramos só nós, midnighters, que sabíamos o que se passava.
Jessica assentiu lentamente com a cabeça. Segundo Dess, toda a cida-
de fora construída com especificações anti-darklings. Era lógico que um
punhado de midnighters teria precisado de ajuda para conseguir fazer
algo assim. A menos que houvesse algum tipo de talento relacionado com
arquitetura de que ninguém ainda lhe tivesse falado.
Rex continuou.
– Todas as cidades pequenas têm os seus segredos, isto é, coisas que
os forasteiros não precisam de saber. Há muito tempo, Bixby era uma ci-

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dade muito mais pequena, mas com segredos muito maiores do que a
maioria.
− Ainda é um lugar estranho, mesmo que nunca se veja a hora secre-
ta – disse Jonathan. – Apercebi-me disso assim que me mudei para cá.
− Basta provar a água – completou Jessica.
Rex aquiesceu com a cabeça e colocou uma mão numa pilha de foto-
cópias.
– Se souberes o que procurar nestes papéis velhos, é fácil ler nas en-
trelinhas. Não foram só as superstições locais que tornaram esta cidade
naquilo que é. Os códigos de construção são concebidos para repelir dark-
lings, os jornais noticiam avistamentos de animais estranhos que só po-
dem ter acontecido à meia-noite e existem muitos clubes e sociedades
dedicados à «preservação de Bixby». Este é o meu preferido.
Ele pegou num papel muito gasto do topo da pilha e entregou-o a
Jessica. Ela leu:

LIGA FEMININA ANTITENEBROSIDADE


GELADO SOCIAL E LEILÃO DE TARTE
ENTRADA 5 CÊNTIMOS
SEGUIDO DE REUNIÃO DA LIGA
(APENAS PARA MEMBROS)
Jessica levantou uma sobrancelha.
– O que é «tenebrosidade»?
− É uma palavra antiga para escuridão.
− Está bem. Mas um gelado social?
Rex sorriu.
– É uma forma de combater o mal. Também faziam vendas de bolos.
Praticamente toda a população devia saber o que se passava.
− Há sempre alguém que não sabe o que se está a passar – disse Jo-
nathan.
Rex olhou-o diretamente pela primeira vez desde que tinham chegado,
espreitando sobre os óculos para avaliar a expressão de Jonathan. Depois
encolheu os ombros.
– Sim, tens razão. Provavelmente, para muitos era apenas uma reali-
dade social, tal como ir à igreja é para muitas pessoas. Mas, nessa altura,
os midnighters eram apoiados pela comunidade. – Ele tirou o papel das
mãos de Jessica e resmungou: – Mais do que nós alguma vez iremos ser.

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− Mas o que é que mudou? – perguntou ela. – Quer dizer, como é que
todos podem ter simplesmente esquecido?
− É uma boa pergunta. – Ele apontou para as prateleiras dos livros.
– Aliás, uma para a qual tenho andado a procurar resposta. Tanto quanto
posso calcular, tudo mudou há cerca de 60 anos. Primeiro, houve o boom
do petróleo, com muitas pessoas a chegarem para trabalhar nos campos.
Pessoas essas que não iriam perceber.
− Então os veteranos mantiveram-se em silêncio sobre o pequeno
problema de Bixby com os darklings? − perguntou Jonathan.
− Sim. Não farias o mesmo? – Rex reuniu um monte de papéis da
cama. – A cidade passou de algumas centenas de habitantes para 12 mil
em 10 anos. A altura do boom. Espera, eu tenho os números exatos algu-
res por aqui.
Jessica e Jonathan esperaram em silêncio enquanto ele folheava os pa-
péis. Ela tentou imaginar uma cidade em que cerca de dez pessoas sabiam
a verdade sobre a meia-noite enquanto outros milhares permaneciam às
escuras. Claro que, mesmo que alguém contasse o segredo, seria impro-
vável que os recém-chegados acreditassem neles, exceto para os poucos
nascidos na badalada da meia-noite, que podiam ver tudo com os seus
próprios olhos.
E partilhar um segredo com uma centena de pessoas seria muito mais
fácil do que ser apenas um entre cinco…
O gato forçou a entrada no quarto e esfregou-se nos tornozelos de
Jessica, esquivando-se entre as pilhas para desaparecer debaixo da cama.
Ela perguntou a si própria para onde teriam ido as aranhas do velho e sen-
tiu um formigueiro nas pernas descobertas.
Por fim, Rex encolheu os ombros, colocando os papéis no cimo de
um monte no chão.
– Não consigo encontrar, mas foi basicamente o que aconteceu. A par-
te óbvia, pelo menos.
Ainda sentindo um certo formigueiro por causa das aranhas imagi-
nárias, Jessica perguntou:
– Qual é a parte menos óbvia?
Ele tirou os óculos e olhou para ela.
− Os midnighters desapareceram.
− Desapareceram?
Ele meneou a cabeça em concordância.
− Não existe nada na doutrina depois de 1956. Nenhuma marca ou

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registo de qualquer tipo que eu tenha encontrado. E, quando eu e a Me-
lissa éramos crianças, não havia midnighters mais velhos do que nós, nin-
guém para nos dizer o que se estava a passar. Ela teve de me encontrar
por conta própria, quando tínhamos 8 anos. Antes dessa noite, eu pensa-
va que era o único.
Ele suspirou e estendeu a mão quase até ao chão. O gato emergiu
para cheirá-la e depois deixou-se ser afagado.
− Antigamente era diferente. Havia sempre pelo menos um leitor de
mentes, alguém para encontrar os novos midnighters. Quando tinham
idade suficiente para compreender a hora azul, havia cerimónias de ini-
ciação, professores. Sabias que pertencias a algo. – Colocou novamente
os óculos. – Mas, tanto quanto sei, tudo isso desapareceu há cerca de 50
anos.
− Então, aconteceu-lhes alguma coisa? – indagou Jonathan.
Rex anuiu com a cabeça.
− Podemos assumir que aconteceu alguma coisa má.
− Mas o tipo de ontem à noite… − disse Jessica. – Talvez tenha so-
brevivido a esses anos ou algo assim. Como se tivesse mudado de cidade
há muito tempo e agora regressado?
− Ele parecia assim tão velho? – perguntou Rex.
− Por acaso não. – Ela olhou para Jonathan, que concordou.
− Era novo. – Ele mudou inquietamente para um pé. – Ele saltou
uma vedação com cerca de dois metros com mais facilidade do que eu.
E rico. Vi pedras preciosas embutidas no relógio dele.
− Então como é que ele pode saber? – questionou-se Rex, baixinho.
– A Melissa nunca sentiu outro midnighter além de nós os cinco e nunca
saboreou uma mente diurna que soubesse a verdade. Claro que, nos últi-
mos tempos, não tem estado à procura de nenhuma. Mas quando éramos
pequenos…
Ele fez um silêncio e Jessica deu por si a observar as quatro paredes
de livros que os rodeavam. O quarto era o seu próprio pequeno mundo,
uma fatia imaginária do passado. De repente, ela compreendeu Rex um
pouco melhor. Não era de admirar que ele parecesse sempre deslocado,
infeliz com o mundo em que se encontrava. Ele desejava ter nascido anti-
gamente, quando existiam regras, reuniões e iniciações, até gelados so-
ciais. Quando um clarividente era, provavelmente, o chefe de tudo.
− Tenho o número da matrícula do carro do tipo – disse Jonathan.

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Rex fez um sorriso forçado.
− Talvez o xerife Saint Claire te possa dar uma ajuda.
O rosto de Jonathan ensombrou-se e olhou de forma penetrante para
o gato que esfregava a cabeça nos seus pés.
− Bem, de qualquer forma, é alguma coisa.
Jessica suspirou.
− Então o que vamos fazer, Rex?
− A Melissa vai passar por cá esta noite, depois de eu deitar o meu
pai. Vou contar-lhe o que aconteceu. Talvez ela possa fazer um pouco de
leitura de mentes e descobrir o que há de novo em Bixby. Esta noite vamos
dar uma volta de carro pela tua vizinhança e ver se encontramos alguns
pensamentos perdidos. Se o teu perseguidor estiver lá a uma hora tardia,
quando a maioria das pessoas estiver a dormir, deverá ser fácil encontrá-lo.
− O que é que nós devemos fazer? – perguntou Jessica.
− Ter cuidado.
− Só isso? – interrogou Jonathan. – Ter cuidado?
Rex reforçou a sua sugestão com um movimento de cabeça.
− Muito cuidado. É isso que o passado parece recomendar. Quando
os antigos midnighters desapareceram, aconteceu tudo de repente – tão
depressa que nada ficou registado. Alguma coisa se livrou deles com um
ataque fatal.
− Como os darklings, certo? – Jessica sentiu o peso reconfortante de
Exibicionista no bolso.
Rex encolheu os ombros.
− Talvez tenham sido darklings… ou talvez tenha acontecido em
plena luz do dia.

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