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O FANTASMA DO VELHO SUICIDA

Era sem dúvida uma casa velha. Todo o quarteirão era antigo, com aquele ar de
abandono. A casa de nº 19 da Avenida Rachel de Queiroz não era diferente; tudo nela era mais
solene, mais cinzento, mais pretensioso, mais frio. A mansão se erguia austera, sombria, as
grandes janelas portuguesas dominavam os dois pavimentos do imóvel desabitado fazia muito
tempo. O quintal, muito grande, estava tomado pelo mato. Todos os moradores da Ilha, onde
ficava a propriedade, se referiam a casa como mal-assombrada. Anos após anos, no portão do
grande muro de pedra permanecia a placa: “Aluga-se ou Vende-se”.

Rebecca Tribianni contemplou a casa com olhar de aprovação. O corretor imobiliário,


eufórico, se esforçava para tentar, pela centésima vez, vender aquele imóvel e se livrar do que
considerava um “abacaxi”. Ele abriu os cadeados que fechavam o portão (eram três) e seguiu
para a porta de entrada fazendo elogios a casa. – Há quanto tempo está desocupada? –
perguntou Rebecca. Luciano Silva (da Imobiliária Samuel Mattos & Filhos) ficou meio confuso.
– faz algum tempo – respondeu com calma. – Logo vi – disse Rebecca com desaprovação.

O hall de entrada se abria para um enorme espaço, mal iluminado e frio que tinha qualquer
coisa de macabro. Outra mulher sentiria calafrios, mas Rebecca era extremamente prática.
Alta, de cabelos castanhos escuros presos em um coque elegante, ela examinava tudo com
seus expressivos olhos azuis. Conferiu a casa de alto a baixo, fazendo perguntas pertinentes
aqui e ali. Quando se deu por satisfeita com a inspeção que fizera do imóvel, ela encarou o
corretor com expressão decidida. – Qual o problema da casa? Luciano foi pego de surpresa. –
Senhora,uma casa sem móveis fica sempre um pouco triste – disse, esquivando-se de uma
resposta direta. – Isso é bobagem – retrucou Rebecca. – O valor chega a ser ridículo de tão
baixo para uma casa destas... É simplesmente irrisório. - Tem que haver algum motivo. - Talvez
seja mal-assombrada. O corretor teve um pequeno sobressalto, mas não disse nada.

Rebecca, depois de alguns instantes, prosseguiu: – Claro que é tudo besteira. - Não
acredito em fantasmas e isso não seria impedimento para eu ficar com a casa. – mas nem todo
mundo pensa como eu e então quer me dizer exatamente o que é que ela tem de mal-
assombrada? – Eu realmente não sei – disse o corretor. – Tenho certeza de que sabe –
afirmou Rebecca. – Não posso comprar a casa sem saber. - O que houve aqui? - Um crime? –
É só uma lenda sobre um velho. – Um velho? – Sim. Não sei exatamente a história –
acrescentou relutante.

– Evidentemente, há um monte de versões diferentes, mas parece que há uns trinta anos,
mais ou menos, um casal alugou essa casa. Ninguém sabia nada a seu respeito. Ele estava
doente, vivia isolado com a esposa, não tinham amigos e raramente saíam de casa. Quando já
fazia uns dois meses que moravam nessa casa, os moradores ouviram gritos e choro em voz
alta aqui e um barulho como um tiro de pistola. No dia seguinte, o casal havia desaparecido. A
empregada que cuidava da casa contou aos moradores que o velho, por causa das dores
horríveis que sentia, havia se matado com um tiro na cabeça. Segundo ela, ele preferiu se
matar porque não conseguia viver de forma digna. Durante muitas noites, antes de tirar a
própria vida, os vizinhos o ouviam soluçando na terrível solidão e tristeza da casa vazia.

– E é o fantasma desse velho que assombra a casa? – perguntou Rebecca. – Ver mesmo,
ninguém nunca viu nada. - A única coisa que dizem, um absurdo, claro, é que se ouve a voz do
velho. – Gostei muito da casa – disse Rebecca com calma. – Não consigo nada tão bom por
esse preço. - Vou falar com meu marido e aviso. Dias depois ela comprou a casa e começou a
reforma do imóvel. A história do fantasma suicida parecia ter ficado para trás.

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Rebecca, agora já morando na casa, olhou o ambiente com ar de aprovação. A casa agora
nem de longe lembrava o imóvel abandonado que fora. Móveis e quadros, flores e uma
decoração considerada moderna transformaram o ambiente por completo. Rebecca olhou o
marido, Angelo, sentado no sofá da ampla sala de estar sempre lendo alguma coisa. Ele era
tudo que ela tinha na vida. O casal agora já de meia-idade, não tinha filhos. Morava com eles a
mãe de Rebecca, Silvana, viúva fazia muitos anos.

Silvana, italiana de nascimento, não se parecia com a filha. Aliás, não se poderia conceber
maior contraste entre o espírito prático de Rebecca e o alheamento sonhador de Silvana. –
Ninguém diria que a casa é mal assombrada- disse Silvana sentada no lado oposto do mesmo
sofá onde estava o genro – Mamãe, não fala besteira! A velha deu um sorriso e olhou para a
filha. – Tudo bem, minha querida, tudo bem, - Fica combinado, então, que não existe nenhum
fantasma aqui.

Certo dia chuvoso e frio de fins de junho, com a chuva batendo na vidraça de uma das
janelas da sala de estar, Silvana fez um sinal com uma das mãos no ouvido como que fazendo
esforço para ouvir alguma coisa. – Escuta, filha, não parece os passos de um idoso? – Está
mais com cara de chuva que não vai parar tão cedo – retrucou Rebecca sorrindo. – Mas agora,
isso foi um passo – afirmou a mãe, inclinando-se para escutar. Rebecca agora teve que rir.
Silvana também riu. E foi assim que tudo começou.

O mês de junho prosseguia melancólico, cada dia mais frio. Numa noite de sábado, ainda
chovendo muito, Rebecca e Angelo estavam tomando um drinque na sala de estar quando
Silvana desceu lentamente e com cuidado os degraus de carvalho envernizado e sem carpete
da escada que conduzia ao segundo pavimento da casa. Ela se aproximou e ficou de pé ao
lado do genro. Angelo teve um ligeiro sobressalto. Quando a idosa estava descendo a escada
ele teve a impressão nítida de ouvir outros passos na escada, como se alguém estivesse
seguindo Silvana. Passos arrastados, estranhamente penosos, como se a pessoa tivesse
dificuldade de andar. Angelo encolheu os ombros, incrédulo. Deve ser a chuva- pensou. –
Esses dias cinzentos não ajudam muito. Mas mesmo querendo não pensar nisso, aquela
impressão o acompanharia por muitos dias.

– E então, Angelo, está gostando da casa nova? – perguntou Rebecca. – Muito –


respondeu o marido. – É uma casa tranquila e aconchegante. – Vou esperar o tempo melhorar
para dar uma olhada no sótão. A chuva continuava a cair torrencialmente. Silvana se levantou
e subiu a escada alegando querer descansar um pouco no quarto. Angelo outra vez teve
impressão de que alguém a acompanhava. Dessa vez ficou um pouco preocupado.

Ele teve um sonho estranho naquela noite. Sonhou que estava andando por uma cidade,
uma grande cidade. Mas era uma cidade de velhos, não havia adultos, crianças nem jovens;
era uma multidão de idosos. No sonho, um idoso caminhava para ele, gritando: “Faça justiça
por mim, faça justiça por mim”. Ele não conseguia ver direito o rosto do idoso, mas a voz
parecia familiar. Ainda no sonho Angelo dizia: “eu não tenho como ajudar o senhor, não tenho”
e sacudia tristemente a cabeça. Nesse momento, então, o velho se afastava soluçando,
andando com dificuldade, a bengala apoiando o peso do corpo frágil. Quando ele despertou do
sono ainda ouvia os soluços do idoso.

Sentou-se na cama e acendeu a luz do abajur. Rebecca dormia profundamente. Os


soluços cessaram imediatamente. Angelo não contou à esposa nem o sonho, nem o que ouviu
depois. Tinha certeza de que não era imaginação sua. E de fato, pouco tempo depois, ouviu
tudo de novo, desta vez à luz do dia. Era uma manhã de muita ventania, a chuva dera uma

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trégua. Se ele contasse para Rebecca, ela diria que era a imaginação dele de escritor de
suspense e ficção e não daria crédito ao relato.

Resolveu falar com a sogra. Contou o que estava acontecendo, sobre o fantasma do
velho suicida que não só aparecia nos seus sonhos, mas aparecia para ele nos cômodos da
casa desde que eles compraram a casa. A sogra riu: - Que imaginação, Angelo – Não me
surpreendo com o sucesso dos seus livros de suspense. Bom observador que era, Angelo
notou certo nervosismo na risada de Silvana.

Os dias se tornaram mais amenos e por isso Angelo resolveu que iria fazer a limpeza do
sótão conforme prometera à esposa. E assim, lá estava ele com o filho de empregada recém-
contratada tentando limpar a bagunça. Muita coisa seria jogada fora, com certeza, coisas
velhas sem utilidade alguma. Do lado esquerdo de quem sobe a escada para o sótão havia
uma velha prateleira de madeira e uma caixa de papelão de tamanho médio. Angelo abriu a
caixa e viu que havia muitas fotografias antigas, já amareladas. Ele pegou a caixa e começou a
olhar as fotos. Tinha fotografias de crianças, de casamento, algumas eram fotos de
aniversários, da praia, da Ilha etc. Foi quando de repente uma foto chamou a atenção dele. Era
a foto de um homem já idoso abraçado a uma mulher, tirada na frente da casa. Angelo ficou
pasmo com a fotografia. O homem da foto era o velho que aparecia nos seus sonhos e a
mulher... não ... não podia ser ... parecia ser Silvana, a sogra dele!

Completamente intrigado com tudo aquilo, ele, tranquilo e sensato que era, resolveu
guardar a foto no bolso e terminou a limpeza do sótão pedindo ao ajudante que jogasse tudo
fora. Ele queria o local totalmente limpo. No íntimo ele estava preocupado com a situação que
vivia desde que observara que havia alguma coisa como que um fantasma seguindo os passos
da sua sogra.

Na noite daquele mesmo dia, voltou a chover torrencialmente em toda a Ilha. Ventos fortes
agitavam as águas do mar e de repente faltou energia. A casa ficou completamente às escuras.
Rebecca, muita prática, correu para a cozinha em busca das velas. Resolvida a não ficar
sozinha no quarto, Silvana desceu as escadas em direção à sala de estar. E no meio da
escuridão, Angelo, de onde estava no sofá, viu nitidamente a figura do velho que era a mesma
da fotografia descer atrás de Silvana fazendo barulho com sua bengala. Tateando os móveis, a
velha senhora conseguiu sentar-se no sofá ao lado do genro. – Fim de mundo essa Ilha –
comentou ela – Faltar energia por causa de uma chuvinha. Rebecca já tinha trazido as velas e
os três ficaram sentados aguardando que a energia voltasse logo.

Angelo resolveu que aquele seria o momento para confrontar a sogra, não poderia continuar
mais com sonhos e visões daquele velho chorando; sua saúde mental era importante. Foi
então que ele disse: - Sogra, hoje no sótão, eu encontrei várias velhas fotografias. Silvana
olhou para ele enigmática, protegida pela sombra da luz das velas e nada disse. – Uma dessas
fotos era de uma mulher muito parecida com você.

Rebecca perguntou: - Você está falando sério? – Sim, meu bem, está na hora da sua mãe
nos contar qual a ligação dela com essa casa e com o homem que se matou aqui. – Angelo,
por favor, que história absurda. Angelo tentava ver o rosto de Silvana. – Não é absurda,
Rebecca, desde que chegamos aqui tenho tido visões e sonhos com um velho doente que me
pede para ajudar a fazer justiça. E então, aos borbotões, contou o que vinha acontecendo
desde que eles estavam morando na casa. Rebecca tentou rir: - Angelo, meu amor, você está
impressionado com a lenda do fantasma do velho suicida. Silvana permanecia em silêncio,
olhar perdido no vazio, agora claramente nervosa. Angelo tirou a foto do bolso e entregou a

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esposa que se aproximando de uma das velas, olhou o retrato. - Mas é você, mamãe, e o
papai. – Como essa foto teria vindo parar aqui? Agora Rebecca parecia compreender que
alguma coisa a havia trazido para aquela casa.

Angelo insistia: - Por favor, Silvana, nós precisamos saber a verdade. – Não tenho como
continuar sem dormir, tendo visões horríveis e pesadelos no meio da noite – ele elevou o tom
da voz. Ainda protegida pela escuridão e longe das velas colocadas na sala, Silvana olhou para
o genro e para a filha. Sim, eles precisavam saber; seria como tirar um peso de sobre os
ombros. Foi então que ela contou como resolvera se vingar do marido por tê-la traído durante
muitos anos com sua melhor amiga quando ainda moravam em Copacabana. Angelo e
Rebecca ouviam chocados os detalhes da vingança macabra de Silvana: a troca dos remédios,
os acidentes que ela provocava para que o marido se ferisse, as humilhações, os dias que
deixara o esposo sem comer e sem beber e por fim, ela havia alugado a casa na qual nunca
trouxera a filha e num curto espaço concluiu sua vingança matando o idoso doente com um tiro
na cabeça. Não foi difícil convencer a polícia de que fora suicídio.

Angelo, passado o espanto, resolveu falar: - e por que ele pede que se faça justiça? Silvana,
pela primeira vez baixou a cabeça:- Eu sei o porquê. - Quando finalmente ele morreu, eu soube
que ele jamais tinha tido caso com minha amiga, ele era inocente e foi vitima dos meus
rompantes e devaneios. - Filha, eu matei seu pai e realmente agora sei que errei muito.

De repente, um vento forte abriu as janelas da sala, vidros se quebraram, as velas foram
apagadas e as mulheres gritaram. No meio do caos, uma voz de homem se fez ouvir: - Vim
acertas as contas com você, Silvana, sua maldita. Silvana se levantou apavorada e tateando os
móveis tentou chegar até a escada; se chegasse ao quarto quem sabe estaria segura.
Rebecca sem saber o que estava acontecendo permaneceu sentada enquanto todo ambiente
permanecia sem iluminação. Angelo conseguia ver, apesar da escuridão. Tudo muito estranho.

Viu quando a sogra tentava subir a escada completamente desesperada. Apoiada ao


corrimão, ela conseguiu chegar ao patamar. Em pouco tempo estaria no quarto – pensava. Mas
parado, a espera dela, estava o velho. Angelo não acreditava no que estava vendo. Só poderia
ser imaginação, pesadelo, ele com certeza estava sonhando. O fantasma do velho ergueu a
bengala e golpeou a cabeça de Silvana. Angelo teve a impressão de ouvi-lo dizer: - o inferno
espera você, desgraçada. Silvana tentou se agarrar ao corrimão, lutando pela vida, apavorada.
Mas a bengala se ergueu em novo golpe. Perdendo o equilíbrio, Silvana rolou os degraus da
longa escada de madeira. Ao ouvir o barulho, Angelo se aproximou enquanto Rebecca,
tateando no escuro, tentava, mais uma vez, entender o que estava acontecendo. No chão o
corpo imóvel de Silvana. Angelo olhou na direção da escada e viu o velho descendo e se
aproximando do corpo imóvel de Silvana. – Angelo, mamãe caiu... - Não consigo enxergar
nada. – Fica onde você está, eu cuido dela.

A energia voltou e as luzes se acenderam. Silvana estava morta. Enquanto a esposa


tentava ligar para a emergência, Angelo olhou para a porta de entrada da casa e agora viu um
casal de idosos deixando o lugar, ambos andando com muita dificuldade. Depois da morte
trágica da mãe, Rebecca desistiu de morar na casa.

A nova placa de “Vende-se ou aluga-se” novamente colocada no portão do muro alto de


pedras, iria fomentar outra lenda por muitos longos anos.

Histórias da Ilha

Dionildo Dantas
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