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O SONO DA RAZO, por Jorge Coli

O sono da razo produz monstros: a clebre gravura de Goya indica a oposio entre a frgil
e spera ordem racional e os monstros aterrorizadores que surgem quando a razo
adormece. De um lado, a ordem; do outro, o caos. Vnus vigia quando Marte dorme,
ensinou a pintura do renascimento. Essa oposio entre no exclusiva . Ns nos situamos
no eixo da gangorra. Pressupomos a dvida, o incerto, probabilidades, acasos, diante de um
mundo ao mesmo tempo compreensvel e incompreensvel.

A partir dessa concepo, a violncia necessria para que exista o equilbrio. Marte a
violncia e a desagregao, herdeiro do caos original, ele mesmo fecundante e criador. A
difcil conscincia de que o modo violento parte do mundo e do humano repousa sobre a
incorporao da violncia como dado inefvel. Ao terror e ao medo ele ordena que atrelem
seus corcis, enquanto de suas cintilantes armas vai se vestindo, assim Homero, no canto
XV da Ilada, descreve Marte em sua fria. Aqui encontra-se a excluso do reino violento
como permanncia, mas no retirada da violncia o sinal positivo: h um princpio de
fecundidade no caos.

Desde pelo menos o sculo 18, a violncia concebida teoricamente como negativa, oposta
harmonia social, liberdade, igualdade, fraternidade. A histria mesmo a histria
imediata, como a da Revoluo Francesa, demonstraria o paradoxo que encerra a violncia
em ao em nome daqueles ideais. Por outro lado est claro -, a instaurao de uma
sensibilidade pacificadora fez progressos ao longo do tempo. Violncia, violar: hoje o
estupro inadmissvel eis uma forma de violncia abominada.

No entanto, impossvel no constatar o desencadear da violncia cotidianamente em


nosso tempo. Resta o fato de que ela se encontra, de modo genrico, no legitimada.
Podemos pressupor no o seu desaparecimento, mas sua canalizao. A violncia nos
campos do imaginrio, a violncia apenas em operaes catrticas que se situam no domnio
da fico. A guerra, o terror, o medo e seus corcis, o fascnio mrbido pela podrido, pela
desagregao, pela destruio, to humanos, devem ter seu lugar. Esse lugar o da
conjurao, no o da incitao, como o moralismo estreito imagina. A catarse existe
intensamente apenas dentro de ns.

NOVAES, Adauto (org.). Entre dois mundos 30 anos de experincias do pensamento. Rio de
Janeiro: FBN, 2016.

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