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O rio e o morro

A cidade nasceu em torno do morro e do rio. Era como se estes dois


acontecimentos da natureza fossem seus olhos. Ao morro, nomearam Boa Vista,
ao rio, Cachoeira.
A cidade cresceu, cresceu, e sem saber ou querer saber, matou um de seus
olhos, o rio. Ele sempre foi mais frágil, delicado, nascia mínimo, vinha alargando-
se, tímido, até despejar-se nas águas da Babitonga. A cidade nunca o limpou.
Mais: sempre jogou suas sujeiras dentro dele sem nenhuma vergonha. Hoje, a
cidade anda tropeçando, com seu olho morto exposto. Finge alguns curativos,
inventa promessas e espera um milagre de ver seu rio, rio novamente.
Sobrou o outro olho. O morro. Mais resistente, agüentou melhor o peso da
cidade crescida. Ela ainda o enfeitou com um mirante. Lá de cima, todos podiam
ver sua pujança. A cidade é vaidosa, gosta de ser nomeada a melhor em muitas
coisas. Sua vaidade é do tamanho de seu esquecimento. O mirante virou um
cancro de ferrugem no alto do morro, devidamente cercado por antenas de
televisão e celular. O que era para ser um lugar de beleza, tornou-se um lugar de
descaso.
Da base para o alto do morro, a cidade foi fazendo pequenas fissuras
clandestinas, ruas foram criadas, casas construídas num desrespeito às leis que a
própria cidade criou para proteger seu olho. Estas fissuras também foram uma
agressão de alvenaria, asfalto e madeira ao silêncio do morro. Por ser muito forte,
ele agüenta estes cortes no seu corpo, ainda diz: “não é nada, a cidade irá me
cicatrizar”. O morro é inocente, acredita demasiado na cidade, perdoou todas as
invasões, assim como vai perdoar as próximas. É a sua natureza de gigante gentil.
Os legisladores da cidade resolveram legalizar os agressores do morro.
Tudo sem comunicar ninguém, sem um estudo completo e concreto sobre o
impacto ambiental. Nada. Dizem que é simples, que vão solucionar o problema e o
morro não correrá nenhum risco. Ficará apenas com cicatrizes leves, que irá
conferir a ele até um certo charme de morro sofrido e misterioso.
A grande dúvida é o histórico da cidade. Além de vaidosa e esquecida, ela
gosta de ser permissiva: já destruiu um de seus olhos. Já deixou que
construíssem inadequadamente no outro. Quem garante que novas construções
não abrirão brechas na lei? A paisagem vista lá do morro é a mais bonita da
cidade. Os endinheirados gostam de olhar de cima. A cidade gosta dos
endinheirados.
Pessoas de bom senso estão falando, impondo questionamentos,
defendendo o morro de futuros ataques. Mas a cidade é um conjunto bem maior
do que individualidades e enquanto este conjunto não se manifestar, não ver que
pode fazer com o morro o mesmo que fez com o rio, continuará crescendo e
destruindo seus recursos naturais. É um risco que a cidade não pode correr, sob
pena de ficar cega para sempre.

Rubens da Cunha

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