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ÍENDICE

NTREVISTA

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Marcio Goldman

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Alteridade e experiência

Entrevista com SIDNEY MINTZ Sidney Mintz estudou a vida rural nas Caraíbas, a
história social e a tradição afro-caribenha desde os
primeiros momentos de trabalho de campo da sua
carreira, em Porto Rico (1948). Em 1956, o seu
estudo de uma aldeia de trabalhadores na
cana-de-açúcar foi incluído na obra The People of
Puerto Rico, editada por Julian Steward e outros.
Em 1960, publicou Worker in the Cane, a história de
vida de um trabalhador dessa aldeia. Em 1992,
publica, em conjunto com Richard Price, The Birth
of African-American Culture: An Anthropological
Perspective, um ensaio que revolucionou o debate
sobre a cultura afro-americana nos Estados
Unidos da América. No entanto, já em 1985
publicara Sweetness and Power, focada na história
mundial do açúcar, e, desde então, escreveu sobre
a antropologia da comida e iniciou uma pesquisa
sobre o papel global da soja, enquanto continuava
com a sua pesquisa nas Caraíbas. Os seus livros
mais recentes incluem Tasting Food, Tasting
Freedom (1996), The Vanquished — uma tradução
do espanhol do romance de Cesar Andreu, Los
Derrotados (2002) e O Poder Amargo do Açúcar, uma
colecção de textos seus sobre o açúcar em
tradução portuguesa (2004). Depois de mais de
duas décadas na universidade de Yale, Mintz
integrou e ajudou a construir o departamento de
Por antropologia na Johns Hopkins University, tendo
CRISTIANA BASTOS também sido professor visitante em Princeton,
Berkeley, MIT, Collège de France, Nova Zelândia,
e MIGUEL VALE DE ALMEIDA Austrália, e Hong Kong. 

CRISTIANA BASTOS – Pensámos aproveitar College, onde estudava ilegalmente, e


o privilégio de estar consigo para que nos que durante o curso tive apenas uma
desse uma panorâmica geral do que foi a cadeira de antropologia, dada pelo
antropologia na segunda metade do século professor Alexander Lesser, que foi aluno
XX e do seu papel nesse processo, bem como de Boas. Nessa altura, este professor
para ouvir ideias que queira transmitir a marcou-me de uma forma especial. Eu
futuras gerações de antropólogos. Podemos não era bom aluno, era mesmo medíocre
começar por onde achar melhor – por (era muito jovem e estava bastante
Sweetness and Power, pelo impacte dessa interessado noutras questões, mas as
obra, pelo impacte do trabalho realizado com ideias não me interessavam de todo).
o porto-riquenho… Mas ele marcou-me, mais do que me
SIDNEY MINTZ – Talvez a melhor apercebi naquela altura, pela seriedade
maneira de eu recordar seja falar um com que ensinava. Eu era demasiado
pouco de como me tornei antropólogo e jovem e rude para perceber então que as
depois passar a outros assuntos. pessoas são muitas vezes o que fazem,
Mencionei numa conversa anterior que que é isso que forma o seu carácter. Mas
fiz a minha licenciatura no Brooklyn ele impressionava-me, apesar de eu não

Etnográfica, Vol. X (1), 2006, pp. 177-191 177


Cristiana Bastos e Miguel Vale de Almeida

entender completamente a razão por que integrado num programa de investigação


isso acontecia. Nesse semestre ele estava dirigido por Julian Steward. Em Porto
interessado no paleolítico europeu e Rico decidi estudar uma plantação de
passámos todo o semestre da cadeira de cana-de-açúcar e o meu trabalho inicial
antropologia, o meu primeiro semestre, a centrava-se nos proletários rurais (aliás,
tratar os níveis estratigráficos da creio que fui a primeira pessoa a usar
pré-história europeia. Passados muitos essa expressão para descrever os
anos, depois de eu ter estado na Força trabalhadores da cana-de-açúcar). Em
Aérea e de me ter licenciado, quando era 1953, quando já estava em Yale havia
já professor em Yale, encontrei esse alguns anos, fiz uma história de vida de
senhor numa festa e ele perguntou-me o um amigo dessa comunidade, do lugar
que eu fazia. Respondi que ensinava onde trabalhara anteriormente, e talvez
antropologia e ele mostrou-se essa tenha sido a primeira história de
interessado. Disse-lhe então: “Na vida de um proletário rural, de um
verdade, aprendi antropologia consigo, trabalhador das plantações. Nesse
fui seu aluno”. Ele perguntou-me que sentido, o trabalho que fiz na altura era
nota tinha obtido e eu respondi: “Bem, inovador e original (sem qualquer mérito
tive um C,” – o que não é uma nota pessoal, não teve nada a ver com o facto
famosa – “mas foi o que mereci.” Quando de ser eu), porque a antropologia
me perguntou onde ensinava agora e lhe começava assim a afastar-se do estudo
disse que estava em Yale, comentou: das chamadas sociedades primitivas e a
“Que interessante. Eu sou professor na voltar-se para o estudo dos campesinatos,
Hofstra e dei-lhe um C e agora você está dos proletariados e das sociedades
em Yale!” Mas havia uma história por modernas.
detrás desse sarcasmo. Ele próprio era Depois disso trabalhei noutras
um homem de esquerda cuja carreira na sociedades das Caraíbas, porque me
antropologia tinha sido destruída devido interessava a questão da raça. Vindo eu
a calúnias, e que durante vários anos não dos Estados Unidos e pertencendo à
conseguira obter um emprego decente geração a que pertencia, era impossível
nessa área. Mas foi o meu primeiro não ter a sensação de que nos Estados
professor de antropologia e nessa altura Unidos, em alguns aspectos, o atraso era
eu nem sequer sonhava tornar-me muito grande, de que o modo como se
antropólogo. lidava com as questões da raça e da
Precisamente na semana em que acabei a cidadania era bastante arcaico. Quando
licenciatura entrei para a Força Aérea e fui para Porto Rico, achei estimulante a
estive fora da universidade durante forma relativamente civilizada de gerir as
quase quatro anos. Quando regressei, diferenças raciais.
ingressei, com a bolsa que o governo Decidi em seguida trabalhar na Jamaica,
criou para os veteranos, a chamada GI em parte por causa disso, queria
Bill, em Columbia, onde estive entre 1946 tornar-me um especialista das Caraíbas.
e 1951. Durante esse período fiz o meu Como se sabe, a Jamaica havia sido uma
primeiro trabalho de campo, que colónia britânica antes de alcançar a
consistia em entrevistar europeus de independência – e nisto era diferente de
Leste para o projecto de Ruth Benedict, e Porto Rico, que havia sido uma colónia
logo depois fui para Porto Rico, espanhola e depois americana. Na

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Entrevista com Sidney Mintz

Jamaica estudei uma aldeia de assunto interessante), mas, na verdade,


camponeses que haviam obtido as suas abordar a história do capitalismo. Quis
terras depois da libertação, ou seja, após usar a história do açúcar como uma
1838. Era uma das chamadas “aldeias espécie de fio condutor na teia da história
libertadas” – e ainda se usava esta social, embora pudesse ter escolhido uma
designação –, uma aldeia com uma outra linha – podia ter enveredado pela
população liberta há não muito tempo, goma arábica, pelo camarão, pelo
após o fim da escravatura na Jamaica. bacalhau ou outra coisa qualquer –, mas
Depois de ter trabalhado nessas duas preferi esta às outras porque já tinha
sociedades, fui para o Haiti. Tinha a ideia experiência nessa área. Quando o livro
de trabalhar nas quatro principais foi publicado, em 1985, por vezes
tradições coloniais da região caribenha, a convidavam-me para falar sobre ele e
espanhola, a inglesa, a
francesa e a holandesa.
Acabei por nunca estudar
nenhuma sociedade
holandesa nas Caraíbas
porque a minha mulher, com
quem casara pouco tempo
antes, queria fazer trabalho
de campo no Irão (ela
estudava linguística), pelo
que decidimos ir para o Irão e
eu não fui para o Suriname.
Depois disso enviei para lá
um aluno meu, Richard Price,
que se especializou em
estudos sobre o Suriname.
Resumindo, o que posso
dizer sobre esses trinta anos da minha depois colocavam-me questões para as
carreira é que estava especialmente quais eu não tinha respostas. As pessoas
interessado na região caribenha e nas perguntavam: “O açúcar, muito bem,
variações quanto às questões de género, mas então e o sal? É branco, é granuloso,
às relações inter-raciais, às relações de é comestível…” Eu nada sabia sobre o
trabalho, às relações familiares – o tipo de sal, para poder responder tinha de
configurações institucionais que os estudar o assunto. Na conferência
antropólogos sempre estudaram, mas seguinte, já estava preparado para
que eu queria ver como diferiam entre as responder a questões sobre o sal, mas
várias tradições coloniais. alguém acabava por fazer-me perguntas
Em 1985, ou seja, cerca de trinta anos sobre o mel ou qualquer outra coisa. E foi
depois de eu ter começado a fazer por causa desse tipo de perguntas que
trabalho de campo, escrevi um livro me dediquei ao estudo da alimentação.
sobre a história do açúcar. A minha Fi-lo com grande à-vontade, porque o
intenção não era escrever especificamente meu pai era cozinheiro profissional e
sobre o açúcar (embora possa ser um sempre me interessei pela comida. Mas

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Cristiana Bastos e Miguel Vale de Almeida

foi assim que, gradualmente, passei a professor – sei falar, como podem ver, e
estudar a alimentação, embora sempre de sei ensinar. Dei a cadeira de Introdução à
um modo exploratório, porque nunca Antropologia no Yale College durante 25
tive qualquer formação nessa área, sou anos e provavelmente nesse período
um verdadeiro autodidacta. Contudo, ensinei 40% dos estudantes de Yale, em
acho que o meu trabalho foi útil turmas de 600 a 700 alunos. Acho que, se
sobretudo no caso das Caraíbas, não me perguntassem o que há de bom na
considero que o que faço no domínio da sociedade norte-americana, uma das
alimentação seja particularmente coisas que apontaria seria o facto de ela
relevante. me ter confiado os filhos da classe
Logo no início desta entrevista foi dominante para que lhes ensinasse
sugerido que me pronunciasse sobre o Introdução à Antropologia, durante 25
possível contributo da minha experiência anos.
para o campo de estudos em que me Ao longo destes anos (e eu licenciei-me
integro. É obviamente difícil responder a em 1951), a antropologia enveredou, na
essa questão, mas, como já referi, não minha opinião, por um caminho muito
julgo que aquilo que escrevo seja muito interessante. Posso contar-vos
importante. Não me considero um brevemente uma história que talvez vá
teórico, nem sei dizer exactamente o que ao encontro do que me pediram. Em
é uma teoria – sei o que é uma intuição, 1960, publiquei um livro chamado Worker
sei o que é uma noção, mas não sei dizer in the Cane, que consiste numa história de
exactamente o que é uma teoria (sou vida. Quando o livro saiu, mereceu muito
muito diferente de Rodney Needham…). poucas recensões críticas (eu era ainda
Interessa-me a relação entre o um jovem assistente e ninguém se
comportamento e o desenvolvimento da interessou), mas as poucas que foram
teoria marxista. É isso que me interessa, publicadas acusavam-me de não ser
dotar o marxismo de uma dimensão suficientemente científico, já que era
antropológica, porque julgo que a falta amigo do homem que entrevistara. Sendo
dessa dimensão o prejudicou imenso. amigo dele, como poderia ser objectivo
Sem essa dimensão, o marxismo na análise da sua vida? Acontece,
tornou-se não humano, não humanista, curiosamente, que esse livro tem vindo a
mecânico e incapaz de prever o ser reeditado desde que saiu há 44 anos e
comportamento de forma satisfatória. Na agora, de vez em quando, há uma
minha opinião, se nós, antropólogos, recensão ou algum comentário. O
pudermos melhorar a perspectiva geral comentário actualmente é o de que não se
do materialismo histórico através da trata de um mau livro, mas há um
compreensão do comportamento problema: eu pertenço à potência
humano em termos genéricos, através de imperialista e o meu amigo à colónia.
uma compreensão mais profunda do Como poderia este ser um livro objectivo
comportamento humano, talvez quando eu pertenço à potência
possamos dizer coisas mais úteis. É este, imperialista e o meu amigo à colónia?
portanto, o meu interesse pessoal. Mas Mas o mais interessante é que se trata do
quanto ao meu contributo, julgo que a mesmo livro. Em 1960 eu estava
minha maior contribuição para a demasiado próximo do meu informante,
antropologia foi ensinar e ser um bom agora não estou suficientemente próximo

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Entrevista com Sidney Mintz

dele. Só que o livro é o mesmo. Algo outros o farão. E sem o trabalho de


mudou – mas não foi o livro. campo não teremos, na minha opinião,
Escrevi um artigo sobre esta questão, qualquer valor. É isso que me preocupa
intitulado “The Sensation of Moving na tendência actual, mas julgo que agora
While Standing Still”. Tem a ver com o essa tendência começa a perder força e
que mudou ao longo destes anos. O que que começamos a fazer o caminho
mudou foi o seguinte: naquela altura, inverso.
esperava-se que os antropólogos Posto isto, o que poderia dizer-vos sobre
tratassem as pessoas que constituem o a minha própria vida no seio da
seu objecto de estudo como um cientista disciplina é, sobretudo, que julgo ter tido
trata uma rã no laboratório; hoje muita sorte. Fui visitar o meu informante,
espera-se que façamos amor com a rã. A o mesmo homem de que falava há pouco,
rã é a mesma e eu creio que foi isso que depois de termos feito o trabalho de
mudou. Não consigo explicar a natureza campo e de o livro ter sido publicado, e
dessa mudança, mas não creio que se ele disse-me: “Tenho saudades do
tenha dado um passo em frente – trabalho que fizemos quando vivias
também não penso que tenha sido um naquela casinha atrás da minha casa.” Foi
passo atrás, mas realmente não penso o mais próximo de uma recriminação que
que tenha sido um passo em frente. O alguma vez ouvi da parte dele. Mas
que mudou foi a forma como as pessoas senti-o como uma recriminação. Eu podia
vêem os sujeitos que estudam e, na continuar a falar e a viajar e a viver uma
minha perspectiva, isto faz parte de um boa vida e ele tinha de levantar-se todos
processo de mudança muito mais antigo os dias e ir trabalhar nos
e secular, que funciona como um caminhos-de-ferro, tinha de ganhar a
pêndulo na sua oscilação entre o amor e a vida. E é claro que, se Deus fosse um
ciência e de volta ao amor. E julgo que deus mais justo, seria eu quem estaria a
hoje estamos em período de amor e nessa trabalhar nos caminhos-de-ferro e ele
altura estávamos em período de ciência. quem estaria a escrever os livros, porque
Por isso penso que a disciplina é ainda, ele era mais esperto do que eu. Mas essa
pelo menos em certos aspectos, a mesma foi a única recriminação que alguma vez
disciplina. senti da parte dele. Para mim, ter podido
Se há algo que me preocupa (e tive trabalhar com ele, ter podido trabalhar
oportunidade de exprimir essa com as pessoas que conheci e ter feito o
preocupação em alguns dos textos que que fiz foi uma alegria, um privilégio e
escrevi) é a tendência por parte de alguns um prazer.
jovens investigadores para abandonar o Realmente não posso dizer mais do que
trabalho de campo. Na minha opinião, isto a respeito da relevância do meu
seria uma enorme perda. Nós não somos trabalho. Quando olho para o trabalho de
bons críticos literários, enquanto que há Ralph Linton, Robert Redfield, Julian
outros que são bons críticos literários. O Steward… Ninguém o lê, mesmo
trabalho de campo é aquilo que nós ninguém. Acho que é uma honra para
sabemos fazer e mais ninguém sabe – nós se, depois de termos desaparecido,
outros poderão aprender a fazê-lo, mas alguém ler o que escrevemos. Há alguns
actualmente não sabem fazê-lo tão bem anos, vi o nome Franz Boas (que eu
como nós –, mas se nós não o fizermos, nunca conheci pessoalmente) num

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Cristiana Bastos e Miguel Vale de Almeida

panfleto de uma organização que existe em 1952-1953. Nunca foi a Yale e acho
nos Estados Unidos e se chama The que sei porquê. Ele ia a muitos sítios e
White Citizens’ Council, um célebre muita gente perdia o emprego por causa
grupo racista (Carlton Coon estava disso. Portanto as pessoas falavam aquilo
envolvido nesse grupo, assim como a que em inglês chamamos esópico, ou
Carlton Putnam, ambos eram racistas). seja, contávamos as nossas histórias em
No verso desse folheto dizia: “Franz código, recorrendo a pequenos animais.
Boas, o antropólogo judeu e comunista Eu acho que ele nunca foi a Yale porque o
que abastardou a raça americana.” Boas senador Taft era de Yale e creio que
tinha morrido 50 anos antes e eu pensei: McCarthy não quis meter-se com a
“Se ao menos eu viesse a ser recordado, universidade de Taft. Suponho que foi
tal como eles o recordam hoje!” isso. Sei que havia comigo três pessoas
das brigadas Abraham Lincoln no corpo
MIGUEL VALE DE ALMEIDA – Os meus docente, mas nunca ninguém veio ter
alunos, estudantes de antropologia connosco. Acho que tivemos sorte. Mas
portugueses, surpreendem-se sempre quando nessa época realmente lidávamos com os
lhes falo de pessoas como o Sidney Mintz ou conceitos marxistas com muita cautela,
Eric Wolf (e mesmo de alguns dos elementos porque havia muita gente que ganhava a
do grupo de estudos sobre Porto Rico), e a vida a perseguir marxistas. E esta é uma
surpresa deles deve-se a uma razão muito das razões: os franceses nunca passaram
simples, relacionada com áreas de hegemonia por isto. Em França, a única coisa
na reflexão. Quando conversamos sobre o verdadeiramente má que se podia ser era
marxismo na antropologia, verifico que os nacionalista (as pessoas da Martinica é
meus alunos estão familiarizados basicamente que eram nacionalistas), ninguém se
com os marxistas franceses da década de importava com o facto de Aimé Césaire
1970. E por isso surpreendem-se sempre ao pertencer ao PCF. Por isso era diferente.
saber que, nos Estados Unidos (logo nos Mas havia ligações. Por exemplo, eu ia a
Estados Unidos, e pode imaginar como um França e ensinava na École Pratique des
português é preconceituoso a esse respeito), Hautes Études, e era muito amigo de
havia marxistas que já faziam o mesmo antes, Godelier… Havia esse tipo de ligações. E
embora não se dissessem marxistas. Quer também com os Annales, porque alguns
falar-nos um pouco sobre as ligações, ou a dos meus colegas da história que não
falta de ligações, com os antropólogos eram marxistas coordenavam a edição de
marxistas da Europa? colectâneas de artigos dos Annales,
CB – E com a escola francesa dos Annales, antologias em inglês, sobre temáticas
talvez… variadas. Havia essas relações, uma
SM – Bem, havia relações quer com a espécie de entente cordiale, mas não eram
escola dos Annales quer com os marxistas muito significativas. Andávamos
franceses, mas não havia uma grande realmente para trás e para a frente e,
proximidade. Relativamente à razão por como é óbvio, Marshall Sahlins avançou
que nos definíamos de outra forma, ou por aí, mas Sahlins, que era adepto de
por que não nos definíamos de todo, é um materialismo mecânico, converteu-se
muito simples: era a época de McCarthy. ao que quer que seja que faz hoje! Sou
Fui para Yale em 1951, quando terminei a muito amigo dele…
licenciatura, e McCarthy ganhou força

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Entrevista com Sidney Mintz

MVA – Provavelmente ele diria o mesmo… refugiados e é um refugiado da União


SM – Diria, com certeza. Sahlins escreveu Soviética, escapou à União Soviética, por
um panfleto admirável (se quiserem que motivo haveria de querer ir para a
poderei enviá-lo) intitulado “Waiting for Argentina?” E ele responde: “Bem, a
Foucault”. União Soviética era uma prisão e isto é
uma pocilga.” Como disse, não devemos
MVA – O facto de termos uma perspectiva levar a história demasiado à letra, porque
materialista sobre a realidade não significa eu preferiria cem vezes uma pocilga
que sejamos comunistas. Como é que lida com americana a uma prisão soviética. Mas
esta questão hoje, tendo em conta as grandes ele chama a atenção para a questão
mudanças que entretanto se verificaram? importante da forma como as sociedades
SM – Bem, desde logo, pode dizer-se que são governadas e do tipo de objectivos
estamos num intervalo. Tenho a ideia de sociais que a nossa sociedade assume.
que estamos actualmente num intervalo Resumindo, houve muitas alturas em que
entre o colapso das formas políticas o meu marxismo ou o que dele decorria
instituídas que se diziam marxistas e assumiu uma forma política, em que era,
uma organização internacional dos na verdade, um marxismo por exclusão
intelectuais marxistas, sem uma ligação de partes. Não via alternativas. Hoje,
estrita a um determinado estado. No tudo isso desapareceu – a menos que
período entre 1919 e o colapso da União queiramos considerar Cuba, tudo
Soviética, era inevitável que o marxismo desapareceu. E acho que o que poderá
estivesse ligado de uma forma ou outra a acontecer agora é a criação de uma
estados políticos, e todos esses estados genuína organização internacional
fracassaram quanto à aplicação do marxista, tão política ou apolítica quanto
marxismo em que acreditavam. Acho que pretenda ser, que tente construir um
uma enormíssima parte de nós tinha marxismo humano. Julgo que é isso que
consciência disso. Se fui a favor da União pode acontecer. Mas, nesta fase da minha
Soviética, e fui-o em diversos momentos, vida, é muito difícil para mim pensar
isso acontecia porque não havia mais sobre o que será, como podem imaginar.
nada a que pudesse agarrar-me.
Conta-se a história – e não deve ser MVA – Mas não vê ligações com os
levada muito à letra – de um refugiado movimentos da altermundialização e afins,
ucraniano que acaba por chegar aos não acha que o caminho será por aí?
Estados Unidos com o filho. É SM – Vejo, sim. Foi publicado um artigo
entrevistado no Harvard Center for na revista mensal do Royal
Russian Studies, que foi criado como Anthropological Institute…
dispositivo para acompanhar o que
estava a passar-se na Rússia. Esse homem MVA – A Anthropology Today…
é entrevistado e relata que esteve num SM – Sim. No último número, havia um
campo de refugiados com o filho e que artigo de Nancy Lindisfarne, muito bom.
agora se encontra nos Estados Unidos. Acho que foi uma das coisas mais
Quando lhe perguntam o que pretende estimulantes que li nos tempos mais
fazer então, responde que está a pensar ir recentes. E apoio as coisas óbvias – os
para a Argentina. Dizem-lhe: “Mas ambientalistas, os anti…, claro que sim.
acabou de sair de um campo de Mas quanto a saber se isso terá realmente

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Cristiana Bastos e Miguel Vale de Almeida

consequências a longo prazo… alimentação, ou por barcos… Procuro


Principalmente, o que podemos fazer aproveitar todas as oportunidades que
hoje é, por exemplo, travar Bush – eu tenho para falar e ouvir como um treino
faria qualquer coisa para travar Bush, para o trabalho de campo.
quem não faria? Mas não há muito mais, A segunda coisa seria dizer aos
penso eu, que possamos fazer na frente estudantes que toda a inteligência
do mercado internacional, para além do humana se baseia na ideia de contraste.
tipo de coisas de que ela fala, Tudo o que aprendemos se baseia na
precisamente. Se eu dispusesse ainda de ideia de contraste. Sem esse contraste não
mais 50 anos, então poderíamos falar! seríamos capazes de pensar, pois o
pensamento, o pensamento humano,
CB – Talvez seja melhor voltarmos à precisa do contraste. A linguagem precisa
antropologia… do contraste, todos os tipos de percepção
SM – Sim, claro. precisam do contraste. Diria aos
estudantes que devem pensar
CB – Gostava de retomar uma coisa que constantemente em termos de branco e
afirmou: que houve uma passagem, uma preto, acima e abaixo, quente e frio,
espécie de passagem pendular, de uma grande quando procuram compreender o
distância relativamente às pessoas com quem mundo. O contraste é a chave para a
trabalhamos para uma excessiva proximidade compreensão.
dessas mesmas pessoas. Mas falou-nos A terceira coisa seria, creio, que se
também da sua preocupação, que muitos de deixem levar, que tentem descontrair-se.
nós partilham, por as pessoas estarem a Que não se concentrem demasiado no
deixar de fazer trabalho de campo, o que é um facto de estarem a fazer trabalho de
outro aspecto. Como descreveria a situação campo. Há tempo, acabamos por viver
actual da antropologia e que conselhos daria muito mais do que alguma vez
aos estudantes sobre a relação a manter com imaginámos! Descontraiam-se, deixem
as pessoas que estudam e a sua possível que a coisa passe por vocês. Estes seriam
contribuição para o conhecimento da os aspectos que eu sublinharia.
humanidade por meio daquilo que aprendem Fui educado por uma mãe anarquista e
como antropólogos? um pai que de política só ligava a
SM – Começaria por dizer – e seria muito Franklin D. Roosevelt. A minha mãe, no
interessante se vocês concordassem seu anarquismo, tinha um respeito tão
comigo acerca disto – que procuro fazer grande pelas outras pessoas! Por todas e
trabalho de campo permanentemente, cada uma das pessoas. Ainda me espanto
quer esteja a falar com alguém que me quando penso nisto e vejo que por vezes
serve o almoço ou num autocarro. se manifesta no que faço. Se um amigo
Procuro aplicar sempre a minha que está num hotel me convida a ir ao
capacidade de extrair algo das pessoas: seu quarto para falarmos e enquanto
fazer com que falem, sem as incomodar e falamos ele sai do banho e se dirige ao
sem me encostar a elas, antes buscando quarto para se vestir e eu vou usar a casa
denominadores comuns. E é possível de banho e vejo a toalha no chão, apanho
encontrá-los tantas vezes com qualquer a toalha e coloco-a no toalheiro. Se ele me
pessoa! Acabamos por perceber que pergunta porque apanhei a toalha,
ambos nos interessamos pela respondo-lhe: “Porque se não, amanhã de

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Entrevista com Sidney Mintz

manhã a minha mãe vai ter de apanhar a humanidade e isso não acontece só na
toalha.” Foi a minha mãe quem me antropologia social. Relativamente à
ensinou isto. Era assim que ela vivia o antropologia física, a minha opinião é
seu dia-a-dia e acho que isso me deu uma provavelmente idêntica à vossa: querem
maneira diferente de ver as coisas. dominar o mundo e a maior parte do que
Fui buscá-la de táxi ao aeroporto de Porto dizem é puro dislate. Mas há uma
Rico quando ela foi visitar-me, era já uma pequena parte que é importante:
velhinha. No trajecto do aeroporto para a perceber que espécie de animais somos é
cidade, em Porto Rico, passámos por um importante, porque somos animais muito
bairro de lata chamado El Fanguito, onde pouco comuns. Temos de conhecer os
havia crianças a brincar na lama, no meio outros animais para percebermos quão
da porcaria. Era um percurso de meia diferentes somos. É como a questão das
hora sempre assim, inacreditável. Ela ia línguas… Todas as línguas das Caraíbas
quieta a olhar pela janela em silêncio e eu a que se chama línguas crioulas foram
perguntei-lhe em que pensava. “Penso criadas pelos escravos a partir de coisa
que tem de haver muita gente rica neste nenhuma! A linguagem diz-nos muito
país”, disse. Surpreendi-me: “Como é sobre a humanidade e a antropologia
que pode olhar para isto e dizer que há física ensina-nos também algo sobre nós
muita gente rica?” Ao que ela respondeu: mesmos, tal como a arqueologia nos
“Que tonto! Se há assim tanta gente ensina muito sobre a nossa humanidade
pobre tem de haver muita gente rica.” – sobre os homens e as mulheres, sobre
Fui educado neste tipo de forma de quem faz o quê. Quando era estudante,
encarar o mundo e gostaria que todos os percebi que essas coisas no seu conjunto
meus alunos dessem valor àquilo que me ajudavam a compreender o
vêem os outros fazer por eles comportamento.
constantemente – limpar as casas de Todos queriam que o Eric Wolf e eu
banho que utilizam, fazer as camas em escrevêssemos um manual de introdução
que dormem, varrer as ruas onde vivem à antropologia, mas nunca o fizemos.
ou trazer-lhes a comida à mesa. Se Mas agora penso nisso, porque a cadeira
quiserem ter consciência de que são que eu costumava dar em Yale (que
humanos, têm de ter consciência disto. estava sempre a mudar) e continuei a dar
na Universidade de Johns Hopkins, essa
CB – Acha que, hoje em dia, a formação em cadeira que eu ensinava nessas duas
antropologia põe de parte essas questões instituições tinha realmente a ver
sociais universais tão reais, ou de certa forma sobretudo com a antropologia, mas tinha
elas são incorporadas? também muito a ver com o que significa
SM – Seria muito bom que fossem. Na ser-se humano. O nome da cadeira era
verdade, quando referi a introdução à “Ser Humano e Humanizar-se”
antropologia, deveria ter dito que – tornar-se humano e ser humano. Eu
ensinava os quatro domínios. Julgo tentava discutir nessa cadeira o quanto
efectivamente – e posso estar enganado, temos em comum com o mais despojado
porque realmente não sei – que a dos selvagens. O quanto somos
abordagem dos quatro domínios parecidos, apesar de nos considerarmos
proporciona aos estudantes uma certa tão diferentes. Porque o mundo é tão
consciência adicional sobre a artificial para essa pessoa quanto para

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Cristiana Bastos e Miguel Vale de Almeida

nós; ela é tão culturalizada quanto nós. E numa igreja, todos casavam fugindo. Se
eu acho que as pessoas têm de aprender uma rapariga não dormia em casa e no
isto, têm de o saber. Eu dizia assim às dia seguinte se sabia que estivera em casa
minhas turmas: quando olhamos para as de um familiar do rapaz e que ambos
pirâmides do Egipto, pensamos como são haviam passado a noite lá, isso bastava
maravilhosas. Toda a gente diz que são como declaração de que se tinham
extraordinárias, que são grandes feitos casado. Teriam então de arranjar a sua
arquitectónicos, que são grandiosas. Mas própria casa, Quien se casa, p’a su casa.
todos vocês estão a pensar que um Não podiam viver ali, teriam de dar
construtor civil italiano podia construir início à sua própria casa. O casamento
uma pirâmide na baixa de Baltimore em fazia-se por consentimento, pelo
pouco mais de um fim-de-semana. A costume. E a atitude das pessoas
ideia de que estamos a formar pessoas correspondia a esse costume. Dou-vos
que entendem a humanidade porque um exemplo. Certa vez, comentava com
vêem filmes sobre os bosquímanes… Elas o meu amigo – com o meu grande amigo,
ainda estão a pensar que podem por quem eu nutria uma imensa estima e
construir pirâmides num fim-de-semana. uma enorme admiração – uma dessas
Julgo, portanto, que temos de insistir uniões, dizendo-lhe que se la llevó (ela
muito para que os outros seres humanos foi levada), e perguntei-lhe como seria se
como nós compreendam a nossa o mesmo acontecesse com a filha dele.
humanidade fundamental. Acho que sem Ele respondeu: “Levaríamos o rapaz ao
isso nada faz sentido. juiz (ao juez, o juiz local) e
denunciávamo-lo, e então ele teria de
CB – Afirmou que durante o trabalho que deu casar com ela. Assim haveria uma
origem a Worker in the Cane tratou responsabilidade legal.” E então
aspectos muito contemporâneos e relevantes perguntei como seria se fosse o filho a
para a antropologia, tais como o género ou a fugir com uma rapariga e ele disse: Eso es
raça. Como é que enquadrava isso nessa para el padre de ella!
altura, quando essas não eram as questões Também há ciúme em Porto Rico. Quase
habitualmente estudadas? Quer falar-nos um todos os crimes violentos se deviam ao
pouco sobre a política social da produção do ciúme. Não havia crimes violentos por
conhecimento quando se tem uma roubo – aliás, não havia furto em Porto
determinada forma de compreender as coisas e Rico, ninguém roubava nada. Mas eram
não se dispõe das ferramentas sociais que capazes de matar por ciúme e isso
permitiriam explicá-las? aconteceu, na minha aldeia de 600
SM – No meu caso, talvez seja útil saber pessoas, 14 vezes em 10 anos – machetazo,
que eu era o mais novo de quatro irmãos, puñalada…–, matavam-se uns aos outros
o único rapaz, e a minha mãe era uma por ciúme. Na Jamaica, onde também
activista sindical – isto pode ter a sua trabalhei, ninguém matava outra pessoa
importância. Quando trabalhei em Porto por ciúme, simplesmente não acontecia!
Rico, o modo como os homens e as Quando lhes dizia que havia trabalhado
mulheres, ou os rapazes e as raparigas, se numa outra ilha onde as pessoas se
comportavam uns com os outros era tão matavam umas às outras por razões
diferente! Na minha aldeia, não havia sexuais, rebolavam a rir, achavam
casamento pela Igreja, ninguém se casava hilariante! Trabalhei ainda no Haiti e aí

186
Entrevista com Sidney Mintz

as mulheres do campo pegavam em toda casa e vão para a cidade, onde chegam a
a comida e iam para a cidade, dormiam ficar quatro noites a dormir na rua?” E
nas ruas três ou quatro noites, vendiam ele respondeu: ¡Si ella no está en la casa a
os seus produtos, compravam mais las cuatro de la tarde, yo voy a cerrar la
produtos e puerta!
voltavam de Perguntam-me
camioneta para a SM – Houve um rapaz muito tímido e como é que eu
sua aldeia. modesto (eu lembrava-me de o ver nas reparava nas
Estavam fora da aulas, ainda estava a vê-lo sentado no questões de
aldeia durante três meio daquela turma enorme), que me género? Como era
ou quatro noites e disse: “Sabe, por sua causa destruí todos possível não
os meus filmes, os filmes que eu tinha
dormiam na rua. reparar? Essas duas
feito.” E eu perguntei-lhe: “Que fiz eu para
Disse o seguinte a o levar a fazer uma coisa dessas?” Ele sociedades, Haiti e
um amigo em respondeu-me: “Explicou-me a cultura e Porto Rico, são
Porto Rico (ao percebi que eles não prestavam, por isso como a noite e o
filho do meu queimei-os.” Tornou-se um bom amigo e dia, como se
grande amigo), ainda sou amigo dele, mas isto passou-se estivessem em
cuja mulher há meio século. Ser capaz de tocar assim extremos opostos
trabalhava numa um jovem e levá-lo a repensar as suas do mundo. E
premissas – acho que isso é o mais
fábrica numa outra relativamente à
importante. E isso nada tem a ver com
localidade: “Se há ideologia, não tem nada a ver com as raça também, o
30 anos eu tivesse minhas opções políticas. Nunca tentei mesmo acontece
dito ao teu pai que vender política a ninguém nas aulas, acho com as questões da
a tua mulher fazia que não é o lugar certo para o fazer. E raça. Certa vez
um percurso de 15 acho que não seria possível, de qualquer estava em Porto
quilómetros para modo. As pessoas chegam lá por meio da Rico com um
ir trabalhar, sua própria inteligência. amigo, que era
[…] Bem, eu recordo que quando eu
sozinha e de carro, branco, estávamos
próprio era aluno, quando estava a fazer a
e depois minha licenciatura, o que realmente me na praia a olhar
regressava ao fim abriu os olhos foi a ideia de que a para os estragos
do dia, ele teria concepção da realidade que as pessoas depois de uma
dito: ¡Imposible! produzem nada tem a ver com a sua tempestade e
¡Eso no va a pasar situação material, ter percebido que não é apareceram dois
aquí en Puerto Rico preciso haver lenços de papel para que rapazes de
haja uma filosofia, que não é preciso
nunca! E então esse bicicleta, dois afros.
haver metralhadoras para que haja
amigo actividade política. Nos Estados Unidos,
Eu estava de visita,
disse-me: “Bem, dá-se sempre demasiada importância à de passagem, não
sabe como é, vertente material – e eu lembro-me de ter tinha assistido ao
temos de construir aprendido isso! princípio dos afros
uma casa, em Porto Rico, e
precisamos de comentei, olhando
mais dinheiro…” Começou a explicar-me para os rapazes: “Parece que os
racionalmente a razão por que isso penteados estão a mudar por aqui…” E
acontecia. Então eu disse-lhe: “Sabes que ele respondeu: “Se não o fizessem,
conheço mulheres no Haiti que saem de ninguém notaria de que cor são.” A ideia

187
Cristiana Bastos e Miguel Vale de Almeida

de se exibir a raça em Porto Rico… Era obviamente, se deixarmos de lado a


como na Jamaica! classe, como poderemos compreender o
Estou actualmente a escrever um livro que quer que seja?
com base numas aulas que dei em Nestes últimos dois dias, eu e a minha
Harvard no ano passado e discuto, entre mulher colocámo-nos a seguinte questão:
outras, estas três coisas: a hierarquia, o se passássemos pelo McDonald’s ou se
género e a raça. Não é que não déssemos atenção a quem lava os pratos,
soubéssemos do que se tratava antes de se olhássemos para a camada mais baixa
terem sido inventadas novas palavras da sociedade lisboeta, seria possível
para os designar; já sabíamos o que eram chegar a conclusões objectivas como a de
antes de as designações serem fixadas. O que há aí uma maior proporção de gente
mesmo acontece com a alteridade: não escura do que em qualquer outro lugar?
precisávamos da alteridade para Julgo que sim.
pensarmos o outro.
MVA – Está a ficar racializado.
CB – No seu percurso, alguma vez teve SM – É inevitável.
contacto com os textos de Gilberto Freyre
sobre o Nordeste brasileiro? MVA – Sempre foi, mas de uma maneira
SM – Sim, claro. diferente. O silêncio sobre a raça em Portugal
é como o silêncio sobre a classe nos Estados
CB – Alguma vez dialogou com esses Unidos.
trabalhos ou era algo que pertencia a uma SM – Corresponde à ideia que tenho.
tradição diferente que não usava como termo Mas, claro, a maneira luso-hispânica de
de comparação? lidar com a diferença física é tão mais
SM – Li tudo, o Casa Grande e Senzala e os respeitadora da psicologia individual!
outros trabalhos, mas acho-o muito Poderá não ser muito mais honesta, mas
sexista… é tão mais benevolente para com a
humanidade! E é isso que, na minha
CB – E racista. opinião, alguns confundem com
SM – E bastante racista. Mas, sim, claro, igualdade.
li-o realmente.
CB – E o que diria àqueles que trabalham em
CB – Boxer, que se contrapõe a Freire… investigação – aos antropólogos mais jovens,
SM – Conheci-o pessoalmente. A minha por exemplo? Há muito por estudar sobre os
mulher era directora do Yale College e portugueses e sobre as antigas ligações
ele e a mulher eram professores portuguesas. Que questões relevantes para
residentes lá, por isso conhecemo-los esse projecto comparativo em que o Sidney
bem. Julgo que Boxer é uma figura Mintz tanto se empenhou poderiam ser
histórica interessante, mas as pessoas que colocadas?
estudavam o Brasil nessa época SM – Há duas coisas que julgo serem
diziam-nos que se tratava de um paraíso óbvias, que todos sabemos. Uma é que é
racial e todos sabíamos que não era preciso ler. Eles têm de ler e de tomar
assim. Aquilo que a ciência social notas. Fico tão satisfeito quando encontro
norte-americana deixa sempre de lado é a um estudante que lê, toma notas e é
classe, a classe fica esquecida. Só que, capaz de recordar o que leu! Eles têm de

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Entrevista com Sidney Mintz

ler, tomar notas e recordar-se do que Ásia durante 2000 anos, era muito mais
leram porque, se o recordamos, podemos importante do que qualquer proteína
comparar aquilo que lemos com o que animal, que a maior parte das pessoas
observamos com os nossos próprios pouco consumia. Logo, as populações da
olhos. E essa é a primeira coisa. A Indonésia, do Japão, da China, do
segunda é que se perguntem sempre Vietname e, até certo ponto, da Coreia,
como a coisa funcionaria na falta de um ingeriam menos proteínas animais do
dado elemento. O funcionalismo é isso que proteínas vegetais. Acontece que,
mesmo: olhamos para algo que está em quanto mais a norte estamos, mais
funcionamento e reflectimos sobre o que proteínas animais consumimos. Nos
aconteceria se retirássemos um elemento Estados Unidos, a soja foi completamente
ao conjunto, porque a única maneira de irrelevante até à I Guerra Mundial e só na
descobrir para que serve é descobrir o altura da II Guerra Mundial se tornou
que acontece quando não está lá. Só importante. Começou por ganhar
então sabemos para que serve. E esta importância enquanto fonte de óleo – e
seria, portanto, a segunda coisa: olhar tratava-se de óleo industrial, a soja era
para a sociedade, tanto quanto possível, usada para produzir óleo industrial. A
como se fosse constituída por diversas sua introdução no Ocidente foi
peças e tentar identificar cada uma completamente contrária à experiência
dessas peças, de modo a que se possa asiática. Após a II Guerra Mundial, à
então analisar a forma como é construída, medida que as plantações de soja se iam
tal como se faria a um motor automóvel: expandindo e que o óleo de soja ganhava
há que desmontá-lo e ver como as partes popularidade, descobriram que podiam
encaixam umas nas outras. Por fim, ter usar o que restava do feijão de soja para
paciência e saber calar – ao contrário do alimentar os animais. Assim, as duas
que estou a fazer agora porque me principais utilizações da soja nos Estados
pediram para falar, se eu estivesse a fazer Unidos – que é actualmente o maior
trabalho de campo não estaria a agir produtor mundial de soja e a exporta
assim! –, ler, recordar o que se leu, tomar para a China e o Japão, entre outros
notas. E ainda a questão do contraste. países – consistem na produção de óleo e
na alimentação dos animais. Aquela que
CB – Na sua opinião, o que faz com que o foi de longe a principal fonte de proteínas
investigador saiba aproveitar uma ocasião na Ásia durante 2000 anos é agora usada
propícia para explorar um assunto? por nós para alimentar galinhas, para que
SM – Estou a estudar a soja – muito possamos depois comer as galinhas, que
importante no Brasil, actualmente. Estou fritamos no óleo proveniente da mesma
a estudar a soja porque quando acabei de fonte. Este contraste entre o que se passa
estudar o açúcar me perguntei o que na Ásia e no Ocidente é emblemático de
poderia estudar a seguir e só consigo uma diferença de atitude relativamente
pensar partindo de objectos, entidades ao mundo, e é por isso que trabalho esta
concretas. O açúcar era bom por ser temática.
concreto, por ser uma substância. E
acabei por iniciar-me no estudo da soja MVA – Fiz investigação no Brasil sobre a
devido a um facto histórico curioso: a raça e recentemente escrevi um artigo sobre a
soja foi a maior fonte de proteínas da crioulização, com base na realidade

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Cristiana Bastos e Miguel Vale de Almeida

cabo-verdiana, pelo que passei em revista MVA – Um uso metafórico do termo.


muitos dos seus textos. Impressionou-me, em SM – Não creio que tenha grande
ambos os casos, a análise sobre o nascimento utilidade. A segunda maneira de usar a
da cultura afro-americana que é avançada por palavra é quando estamos perante
si e por Price. É como se fosse uma análise situações comparáveis, situações que
feita numa altura em que era necessário permitem realmente uma comparação.
contradizer outros argumentos que a própria Cabo Verde talvez seja um bom exemplo,
sociedade manifestava. Como vê hoje esta mas há alguns outros. Nesses casos, acho
questão, num momento em que há uma que o que fazemos é identificar
grande profusão de estudos sobre a raça ou o semelhanças e diferenças, contanto que
pós-colonialismo (onde a questão da raça possa realmente fazer-se uma
também está presente) e em que há inúmeros comparação controlada. Mas, para mim,
cruzamentos entre os movimentos sociais da crioulização continua a ser a palavra que
sociedade civil e o meio académico? Como é designa aquilo que aconteceu a
vista a sua análise hoje em dia? populações africanas, sobretudo, que se
SM – Bem, actualmente há bastante viram arrastadas para o Novo Mundo
discórdia sobre esse assunto. Foi muito num regime esclavagista, bem como aos
difícil para nós que alguém nos ouvisse, seus descendentes, ao longo dos últimos
não conseguíamos publicar aquilo. 350 anos. Penso que as condições sociais
Quando finalmente o publicámos, em que tal ocorreu não podem ser
circulou quase em segredo de mão em comparadas com qualquer outro lugar,
mão, ninguém ouviu falar do texto. Por não há nada que possamos comparar!
fim, decidimos publicá-lo em forma de
livro, para que pudesse circular. MVA – Isso tem a ver com o facto de o
Recorde-se que foi publicado pela Sidney Mintz seguir a perspectiva do
primeira vez há vinte e tal anos. E não materialismo histórico e não uma perspectiva
era uma análise bem aceite. Quando as simplesmente culturalista, não é verdade?
pessoas começaram a aceitá-la, SM – É claro que sim. Julgo que, sem a
levaram-na longe demais, como acontece história, a antropologia não tem
frequentemente, extravasaram. Passamos realmente grande utilidade.
uma boa parte do nosso tempo agora a Analiticamente, os sociólogos têm teorias
tentar trazer a coisa de volta ao seu lugar, melhores e efectivamente os
porque realmente não era isso que historiadores fazem uma historiografia
pretendíamos dizer. melhor do que nós. Aquilo que nos cabe
Defendi muito recentemente que a fazer é o trabalho de campo. Acho que
crioulização, a própria palavra isso é o que nós fazemos. Quando
crioulização, deveria ser definida, geramos materiais a partir da nossa
provavelmente, de três maneiras (e estou experiência, a partir da nossa
só a pensar em voz alta). Uma tem a ver investigação, eles resultam do trabalho
com o uso que lhe dá Hannerz, e que eu de campo, que é onde podemos ir buscar
rejeito liminarmente: Hannerz julga que a informação. E é por isso que é tão
quando um esquimó e um húngaro imprescindível continuar a fazê-lo. Mas,
comem pitta no centro de Estocolmo se sim, acho que, se não tivermos uma
trata de crioulização. perspectiva histórica, então os sociólogos
poderão fazê-lo melhor do que nós.

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Entrevista com Sidney Mintz

Tenho de escrever sobre isto em breve. O desapossamento das pessoas a quem


Hannerz está muito zangado comigo, diz pertencia.
que eu tenho problemas de digestão! SM – Sim, é isso mesmo. Foi isso que os
CB – Estivemos com Hannerz há alguns dias Estados Unidos fizeram com o jazz:
e ele é muito calmo, não se zanga com nada! retiraram-no àqueles a quem pertencia e
SM – Acho que sou nacionalista no que enriqueceram com ele. Eu falo bem o
toca a ideia de crioulização (se sou haitiano, o crioulo do Haiti, e a dada
nacionalista a respeito de alguma coisa é altura, como conhecia muito bem a
da crioulização). Porque aquelas pessoas língua, cheguei a escrever poesia nesse
não tinham quem falasse com elas. crioulo… Mas se sou nacionalista a
Herskovitz tentou, mas acho que não o respeito de alguma coisa é a respeito
fez da melhor maneira. Se tomarmos dessas pessoas despojadas,
esses conceitos e os aplicarmos à estigmatizadas, acorrentadas e violadas,
mudança cultural em geral, voltarão a que criaram coisas das quais podiam
perder-se, perderemos essas pessoas. viver, coisas que julgavam merecer que
se vivesse delas. Nunca mais ninguém
MVA – Exactamente. É como a hegemonia fez isso. Digo isto há muito tempo e
transformacionista, para falarmos em termos continuo a dizê-lo. Por isso, penso que se
gramscianos: retiramos a um processo queremos ter uma crioulização A, uma B e
cultural específico algo que lhe é próprio e uma C, uns podem ficar com a B e outros
tornamo-lo de toda a gente, o que aumenta o com a C – mas eu prefiro ficar com a A.

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