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Descriminalização do Cuidado:

Políticas, Cenários e Experiências em Redução de Danos.

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Conselho Editorial

Ana Cristina Costa de Figueiredo


(Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ)

Analice de Lima Palombini


(Universidade Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS)

Andrea Máris Campos Guerra


(Universidade Federal de Minas Gerais- UFMG)

Jacqueline de Oliveira Moreira


(Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais- PUC-MINAS)

Zaeth Aguiar do Nascimento


(Universidade Federal da Paraíba - UFPB).

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Descriminalização do Cuidado:
Políticas, Cenários e Experiências em Redução de Danos.

Organização:
Sandra Djambolakdjian Torossian
Samantha Torres
Daniel Boianovsky Kveller

3
Organização:
Sandra Djambolakdjian Torossian
Samantha Torres
Daniel Boianovsky Kveller

Capa:
Daniel Dall’Igna Ecker

Diagramação:
Samantha Torres

Revisão:
Lélia Almeida

Rede Multicêntrica
Descriminalização do Cuidado: Políticas, Cenários e Experiências em
Redução de Danos.
Porto Alegre, RS: Rede Multicêntrica, 2017. 380p.

ISBN: 978-85-9489-035-1

1. Políticas Públicas 2. Saúde Coletiva 3. Drogas 4. Redução de Danos 5.


Educação Permanente

CRR Rede Multicêntrica- UFRGS


redemulti@ufrgs.br

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Redutor de Danos III
A Redução de Danos
É minha vida, meu trampo.
Quando vou à campo
Não levo meus planos
Nem tampouco a verdade,
Só vontade e necessidade:
Aprender com minas e manos.

Nunca julgo o que estou vendo,


Não levo armas pra luta,
Minha força está na escuta
Que faço com quem atendo.
Conhecendo outros lugares,
O mundo por outros olhares,
Me armo com o que aprendo.

Tudo é muito relativo,


Vou crescendo estando junto,
Não critico, só pergunto,
Processo mútuo, reflexivo.
Só a partir desta empatia
Outra perspectiva se cria,
Um caminho alternativo.

Pra esta trilha ser seguida


Não é só oito ou oitenta,
Não há derrota pra quem tenta
Buscar qualidade de vida.
Valorizo cada avanço,
Por isso luto e não canso
E acredito nesta lida.

Discordo do empoderamento*
De uma substância inerte,
Que o lugar comum converte
Na desgraça do momento.
Mesmo sendo psicoativa,

5
Por não ter vida é passiva
Neste relacionamento.

Eu aposto no ser humano


E acredito em sua potência,
Na ampliação da consciência
De quem é julgado insano.
Transcendendo a aparência,
Reconhecendo a essência,
Talvez se reduza o dano.

Carlinhos Guarnieri, 29/10/2015

*A substância pode ser empoderada, à pessoa, cabe o reconhecimento do


poder que tem.

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Sumário

Apresentação
Gilberta Acselrad

Abertura

Capitulo I - Do ruído das pedras ao som da chuva: histórias de criação descentrada


da Rede Multicêntrica ............................................................................................... 17
Sandra Djambolakdjian Torossian e Pedro Augusto Papini

Política

Capítulo II - SUS, SUAS e política sobre drogas: interfaces e tensionamentos ........ 27


Míriam Dias

Capítulo III – Drogas, vamos pensar! ......................................................................... 71


Samantha Torres, Daniel Dall’Igna Ecker

Capítulo IV - Educação permanente e humanização no campo da saúde coletiva


voltada às pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas .................................. 91
Marta Conte, Fátima de Barros Plein, Marília Silveira

Capítulo V - Ex-viciado conta que a maioria dos amigos que consumia crack já
morreu ...................................................................................................................... 111
Dênis Roberto da Silva Petuco

Capítulo VI – Incursões sobre as políticas sobre drogas e o cuidado nos processos


de drogodependência .............................................................................................. 133
Maria Gabriela Curubeto Godoy

Capítulo VII - Redução de Danos e Linhas de Cuidado ............................................ 145


Paula Adamy, Rosane Neves da Silva

Capítulo VIII - Linha de Cuidado em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas“O


cuidado que eu preciso” ........................................................................................... 159
Károl Veiga Cabral, Ana Carolina Rios Simoni, Sandra Maria Sales Fagundes, Paula
Emilia Adamy, Carolina Nunes Port, Jaqueline da Rosa Monteiro, Vanessa Bettiol
Oliveira, Simone Alves Almeida

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Cenários

Capítulo IX - A droga enunciando conflitos: (des) encontros com a adolescência. 183


Magda Martins de Oliveira, Paula Flores, Karine Szuchman

Capítulo X - Álcool e Outras Drogas: Práticas Possíveis na Atenção Básica ........... 199
Camila Maggi Rech Noguez,Rose Teresinha da Rocha Mayer

Capítulo XI - O CHEIRO DA RUA - Intervenções e invenções nas ruas de Porto Alegre


.................................................................................................................................. 227
Carmen Lúcia Paz, Mateus Freitas Cunda

Capítulo XII - HIV/Aids e Drogas: diálogo a partir de uma passagem pela Rede
Multicêntrica ............................................................................................................ 247
Daniel Boianovsky Kveller

Capítulo XIII - Casa, família e emprego: o cuidado de usuários de álcool e outras


drogas no território como um contraponto aos rumos da política pública sobre
drogas no Brasil ....................................................................................................... 267
Luciana Barcellos Fossi

Experiências

Capítulo XIV - PROJETO SEMEAR: uma proposta de reabilitação psicossocial do


Hospital Sanatório Partenon para pessoas com tuberculose e outras comorbidades
.................................................................................................................................. 287
Marta Conte, Cíntia Germany, Denise Bastos, ElisaneCoutinho, Jarbas Osório, Rebeca
Litvin, Simone Meyer Rosa, Carla Adriane Jarczewski

Capítulo XV - Oficinas de Escrita: narração e produção de cuidados no contexto da


rede de atenção ao uso prejudicial de drogas ........................................................ 313
Rita Pereira Barboza, Marília Silveira, Tanise Kettermann Fick, Analice de Lima
Palombini

Capítulo XVI - Circulação e controle: ambivalências das redes nas cidades de Porto
Alegre, Brasil, e Amsterdam, Holanda ..................................................................... 331
Rafaela de Quadros Rigoni

Capítulo XVII - CAPS AD III: cotidiano, avanços e desafios ..................................... 351


Karine Zenatti Ely

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Capítulo XVIII - Os usuários de crack em Amsterdã e medidas de baixa exigência e
de redução de danos ................................................................................................ 365
Alberto Oteo

Posfácio – Paixões e químicas ................................................................................. 369


Sandra Djambolakdjian Torossian

Sobre os autores ...................................................................................................... 373

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Apresentação

O título deste livro - “Descriminalizar o cuidado” – evoca o


paradoxo mais que terrível criado por convenções internacionais, que
no século passado tornaram algumas drogas ilícitas. Isto porque, por
este meio também se criminalizou o gesto de quem busca socorro e
de quem tenta responder a esse apelo. Logo de início, em que pesem
as dificuldades, somos apresentados à poesia de quem diz: “muitos já
ouviram o crack, mas poucos o sentiram como a chuva”. Com essa
frase concreta e certeira aqueles que criaram e atuam na Rede
Multicêntrica fazem o relato de sua história. Tecem, assim, os fios da
memória dos princípios que levaram à sua construção, com base nas
diretrizes do SUS, incorporando a lógica da Redução de Danos que se
abre para diversas práticas e saberes. E atendendo pessoas que usam
álcool e outras drogas e seus familiares, tentando articular instituições
que, tantas vezes, pensam de forma muito diferente!
Este relato recupera também a memória de outros usos,
entendendo que a proibição relacionada a certas drogas tem apenas
cem anos, o que em termos históricos não é muito tempo e que por
isso mesmo corre o risco de poder vir a ser negado.
Assim, outras formas de relação com as drogas podem ser
construídas, através da solidariedade. Neste caminho, os autores
contam, em cada capítulo, como organizam suas ações, seus cenários
e experiências, desde 2010 aos dias de hoje. Também comparam
experiências de atuação em rede, realizadas em Porto Alegre e em
Amsterdã.
Trata-se aqui de recuperar e reconstruir a memória de tempos
passados, para que se possa entender a possibilidade de recriar
formas solidárias de cuidado do outro, num tempo presente que tem
outras características. Trata-se, portanto, de priorizar o cuidado,

11
questionando assim a política proibicionista de enfrentamento e
coercitiva que impõe a abstinência para todos, sem discussão.
Sabe-se, porém, que na realidade da história do mundo as
práticas sempre foram outras, insistindo-se na internação como saída,
na maioria dos casos compulsória como saída única frente aos
impasses, persistindo como uma verdadeira pedra no meio do
caminho.
Por outro lado, afirma-se aqui a proposta de Redução de
Danos, com seus sentidos de acolhimento, afirmação dos direitos das
pessoas que usam álcool e outras drogas, com a possibilidade de
(re)construção de suas vidas, com base no princípio da autonomia, a
capacidade de fazer escolhas adequadas para si e abrindo
possibilidades de estabelecer laços com o mundo.
O encontro de um dado produto com uma personalidade
específica num momento sociocultural pode ou não gerar sofrimento.
A vida é risco permanente, “viver é muito perigoso”, dizia Guimaraes
Rosa. Alguns passarão pela experiência do uso de drogas sem maiores
consequências, outros vão vivê-la como forma mesma de integração
no ritmo de produtividade exigido pela ideologia do mercado,
enquanto outros serão “pedra, porre, o perfume e o brilho, a cana no
bafo (...), corpos no meio do caminho, cheiros invisíveis” atrapalhando
o transito da sociedade que, com seu modelo de vida, produz mal-
estar no mundo, mas que não se reconhece como cúmplice e
responsável.
A droga em si é matéria inerte, existe e sempre existiu em
todos os tempos e todos os lugares, variando apenas a relação que se
estabelece com ela. Face à experiência de uso, cada sujeito vai agir e
reagir de forma diferente no tempo e no espaço. Como dizia Claude
Olievenstein, a dependência resulta do encontro de um sujeito com
uma droga em um dado momento e meio sociocultural.
Mas se, em outros tempos, a relação com as drogas estava
sujeita a certas normas, rituais, e a verdadeiros controles sociais
coletivamente construídos e aceitos, podendo reduzir danos, hoje, a
droga é transformada em mercadoria. Algumas delas são proibidas e

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com a produção e comércio sem nenhum controle de qualidade,
aparecem “como sintoma social, nos revelam questões desse sujeito e
também da sociedade”.
No contexto neoliberal, com a ideia de cidadania e de direitos
tendo se tornado ideologia de consumo, não caberia perguntar até
que ponto o uso abusivo não corresponde exatamente ao ideal de
cidadania da sociedade de consumo? A equação é simples: Consumo,
logo existo; consumo o que é meu desejo imediato; o máximo de
consumo e sem maiores questionamentos.
São várias e diferentes as personalidades de quem usa drogas.
A cada um que está em sofrimento psíquico ou físico, corresponde um
projeto terapêutico singular do qual ele vai participar, trazendo sua
história de vida, sua fala ativa, e os locais onde a vida acontece.
Poderá criar-se assim o cuidado territorial, com a presença do
profissional de saúde na cena de uso. Isso significa envolver os
familiares, garantindo-se o atendimento da pessoa de forma integrada
por vários outros profissionais e instituições, abrindo-se a
possibilidade de formação de múltiplos vínculos, deixando a
internação, que jamais pode ser compulsória, para os casos extremos.
E esta deverá ser sempre breve, para que a (re)construção da vida de
cada um possa ocorrer no mundo e não em situação de isolamento.
“Curso, em um rio, é passagem”. Para poder atender as
pessoas que usam drogas e seus familiares, o profissional precisa se
preparar, se questionar, ser amparado também. Daí a necessidade de
um aprendizado e formação permanente, aberta e continuada.
Caberá pensar e repensar o cotidiano de trabalho, um pensar
que se interroga e que convoca a ação de transformar, um pensar
articulado com a realidade política do país. Refletir sobre a própria
prática, recusar engessamentos e modelos pré-estabelecidos. A
dependência a um produto químico não pode ser reduzida
simplesmente a um estar sob o domínio da química. É urgente
questionar o conceito de dependência química que, no mais das vezes,
é uma armadilha simplista, que descarta a história do sujeito e o
contexto mais amplo onde se dão as escolhas possíveis. Insistir no

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conceito de dependência química faz crer que é impossível a
autonomia, descaracterizando, assim, a potência do sujeito. O
profissional precisa ir além da competência técnica, não se sentir
frustrado quando alguém tem uma recaída. Afinal, o próprio
profissional, que tem consciência da necessidade da integralidade e da
transversalidade no atendimento, muitas vezes desanima e de alguma
forma tem recaídas. E, nestes momentos, longe de achar que o
caminho é ser tolerante diante de tantos desafios precisa, de fato,
assumir o compromisso político com a mudança.
E são muitos os desafios. O modelo proibicionista propõe a
guerra às pessoas que não conseguem, não podem, não querem
aceitar as leis que negam sua experiência de uso. Mas são essas
pessoas que precisam do atendimento de saúde, de educação e tantos
outros apoios que vão permitir religar seus laços com o mundo. A
ilegalidade dificulta a possibilidade de contato, de vinculo; cria
barreiras reais e simbólicas e fortalece preconceitos entre alcoolistas e
pessoas que usam outras drogas. Tudo é proibido: é proibido pensar, é
proibido falar, é proibido pedir ajuda, e assim tem-se comprometida a
atuação integrada dos gestores, das instituições que agem junto a
quem faz uso de álcool e outras drogas.
Fica comprometido também o pensamento da população
dominada pelo senso comum que repete de forma acrítica que droga
faz mal e que o usuário é o responsável pela violência do tráfico.
O uso de bebidas alcóolicas é apresentado em meio a tanto
glamour e a advertência sobre o uso moderado aparece sempre em
caracteres bem reduzidos, negligenciando a informação mais
importante. A pedagogia do terror continua presente nos maços de
cigarro de tabaco. As campanhas do “Diga não ás drogas” mostram
sempre o sujeito como incapaz, enfatizando a potência do especialista.
O discurso das campanhas implica na afirmação do poder e da
dominação – subtendendo-se, assim, que não é qualquer um que
pode falar sobre drogas e em qualquer lugar. O discurso é controlado
e distribuído de forma a disseminar a ideia de que não devemos
pensar, e limitar-nos a repetir Diga não às drogas”, e de nos

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afastarmos de quem usa drogas ilícitas. Quando o que é urgente é a
necessidade de refletir, lembrar, repensar, interpretar as proibições,
criar controles coletivos protetores que reduzam danos, porque só
assim seremos sujeitos de nossa história.
Na experiência da Rede Multicêntrica, aqui relatada, o cuidado
às pessoas em situação de dependência se baseia na integralidade do
atendimento, pela via da colaboração entre trabalhadores de
diferentes setores. Através de uma autoanálise, os autores
reconhecem que redes trazem potência; mas assim como promovem a
circulação de ideias e ações, podem também promover controle,
esbarrar em dificuldades de negociação, tendo em vista a coexistência
de movimentos conflitantes: a proposta de Redução de Danos versus
Política Antidrogas oficial que se alia às Comunidades Terapêuticas.
Na atuação da rede Multicêntrica, o conhecimento das leis e
normas relacionadas às unidades de saúde, os direitos dos sujeitos
que usam drogas, a regulamentação da Redução de Danos, são
instrumentos essenciais ao projeto de autonomia do sujeito, que,
desta forma, não apenas sofre as leis, mas pensa sobre elas e pode
construir estratégias para transformá-las.
“Cheirar e punir, vigiar e sumir” é imprescindível que o cuidado
se sobreponha ao controle. O modelo de gestão neoliberal pressupõe
uma permanente tensão entre o que é do interesse público e os
interesses de um Estado cada vez mais privatizado. Um Estado em que
a garantia de financiamento público para as necessidades básicas da
população é sempre secundária, prevalecendo os interesses do capital
sobre o social. A política de drogas atual compromete a organização
do cuidado à saúde das pessoas em situação de dependência. Os
autores que aqui se apresentam, afirmam uma utopia em processo,
com suas reflexões, relatos de projetos, propostas. Mostram a
importância de se fazer memória, de escrever a história das ações da
Rede Multicêntrica e de seu compromisso político com a mudança do
sentido do cuidado.
Gilberta Acselrad
Educadora

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Capitulo I

Do ruído das pedras ao som da chuva: histórias de


criação descentrada da Rede Multicêntrica
Sandra Djambolakdjian Torossian, Pedro Augusto Papini

O ruído provocado pelas pedras de cocaína de base livre


quando volatizadas através do calor tem sido estridente. Crack. Muitas
vezes escutamos alguma coisa de longe e conseguimos imaginar ou
identificar o que é, como quando escutamos a chuva lá fora. Sabemos
que é prazeroso estar protegidos naquele momento porque, a partir
da nossa experiência, temos a noção de que a chuva molha e isso às
vezes nos causa mal-estar. Causa-nos prazer escutar o barulhinho das
gotas batendo harmonicamente no telhado - lá fora. Longe de nós.
Amplificado pela grande mídia muitos já ouviram o crack, mas
poucos o sentiram como a chuva. O barulho bradado sobre essas
pedras que se esfumaçam está popularmente centrado na ideia do
desespero, do medo, da violência, da doença, da epidemia. Pratos
cheios de tristeza para venda massiva de notícias clamam pelo
posicionamento dos gestores de políticas públicas. Demonizado como
uma praga apocalíptica, a pedra toma a forma concreta e dura de algo
possível de ser dizimado. Surge, nesse cenário, o Plano de
Enfrentamento ao Crack.
Uma das táticas desse enfrentamento é a criação dos centros
de referência em educação para trabalhadores que têm contato com
pessoas que usam drogas. Na região metropolitana de Porto Alegre,
existiam diferentes instituições e atores que trabalhavam com a
temática, desarticulados, mas com pontos em comum. Tocava-se na

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perspectiva do trabalho: os princípios e diretrizes do SUS, a lógica da
Redução de Danos e da Educação Permanente.
No ano de 2010, a partir do Plano de Enfrentamento ao Crack,
a SENAD (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas) lança uma
série de editais para o financiamento de diversas ações dirigidas a
diferentes serviços de saúde e educação. Um desses editais convoca às
universidades e propõe a criação de Centros de Referência para a
educação permanente nessa área (CRR). Foi assim que a partir de um
primeiro diálogo entre a Escola GHC (Escola do Grupo Hospitalar
Conceição) e a UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)
surge a Rede Multicêntrica: um centro de referência e apoio
institucional para políticas de cuidado ao uso de drogas.
A pauta do início desse primeiro encontro marca de modo
constante a construção do diálogo intersetorial entre os serviços e a
universidade. Nesse primeiro encontro organiza-se um chamado a
diversos serviços e gestões da rede SUS e SUAS com o objetivo de
construir o projeto. Um projeto elaborado a muitas mãos e
orquestrado por inúmeras ideias amarradas a cada uma das
proposições dos participantes. Ancorados nos pontos em comum,
anteriormente mencionados, inicia-se o tramado de uma rede viva,
composta por diversas práticas e saberes que envolvem usuários,
familiares, profissionais de diversas áreas, gestores e instituições.
Na reunião inicial, na qual estavam presentes
aproximadamente 30 pessoas representantes de diversas áreas e
municípios, organizou-se, de modo espontâneo, um grupo que
acolheu a perspectiva da realização do projeto. E dessa primeira
reunião surgiu também o nome do projeto que carrega no texto a
marca de sua fundação: uma Rede Multicêntrica.
Os complementos desse nome foram variando até chegar à
denominação atual, no entanto, preservou-se o conceito de rede. E,
por mais redundante que possa parecer, esse foi suplementado com a
afirmação de uma descentração: não se trataria de um centro
universitário de referência, mas de uma série de centros colocados em
diálogo. Grande desafio cujos objetivos ainda perseguimos, ancorado

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no esforço de oferecer uma diversidade de ferramentas e de olhares
para as situações complexas.

Do enfrentamento ao acolhimento: o olhar da Rede Multicêntrica

Na área da atenção ao usuário de drogas, a ideia de


"enfrentamento às drogas" cola-se rapidamente a uma matriz: a
abstinência. Abstinência que rapidamente se torna paradigma de
cuidado e de promoção à saúde. Paradigma de abstinência que pode
ser resumido nas palavras de Passos e Souza (2011):

(...) por paradigma da abstinência entendemos algo


diferente da abstinência enquanto uma direção clínica
possível e muitas vezes necessária. Por paradigma da
abstinência entendemos uma rede de instituições que
define uma governabilidade das políticas de drogas e que
se exerce de forma coercitiva na medida em que faz da
abstinência a única direção de tratamento possível,
submetendo o campo da saúde ao poder jurídico,
psiquiátrico e religioso (p.157).

O paradigma da abstinência foi problematizado pela Redução


de Danos (RD) tal como a estratégia de enfrentamento à AIDS que se
transforma num paradigma de cuidado. Nesse paradigma destaca-se o
acolhimento aos usuários como uma dos pontos fundamentais. De
acordo com Passos e Souza (2011), a RD problematiza as forças que
conduzem à criminalização, à patologização e à moral quando
reconhece que há pessoas que usam drogas e que não precisam de
tratamento, pessoas que não querem parar de usar drogas, pessoas
que não querem ser tratadas, ou pessoas que querem diminuir o uso
sem, necessariamente, parar de usar drogas.
Para uma melhor compreensão dos usos de drogas destacamos
as palavras de Olievenstein (1989) quem avalia a compreensão dos
usos de drogas na perspectiva de um encontro.

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(...) Uma equação que compreende o encontro de um
produto, com uma personalidade e um momento
sociocultural [...] O objeto droga, matéria inerte, existe,
sempre existiu, em todos os tempos e todos os lugares.
Diante deste objeto, a atitude do homem é variável,
conforme o espaço, a ideologia, o lugar e o momento
sociocultural (grifo dos autores) (OLIEVENSTEIN, 1989,
p.14).

Encontro é então a palavra-chave para a compreensão da


questão dos usos contemporâneos das drogas. Quando nos referimos
aos vetores socioculturais, costumamos iluminar os valores
contemporâneos, associados ao modo de vida consumidor (do
consumidor ou consumista). Realçamos o ideal de felicidade ancorado
na aquisição de bens materiais, as relações de trabalho sustentadas na
exploração do outro, o imediatismo na busca do prazer. Sem negar
tais referências precisamos suplementá-las com um ponto que
geralmente fica na escuridão: os contextos proibicionistas.
Podemos falar tranquilamente das questões subjetivas,
jurídicas, sociais sem tocar nesse ponto. Deixando na sombra da
obviedade o fato de algumas drogas serem proibidas e outras
liberadas, sem interrogar a arbitrariedade dessa proibição.
Costumamos não interrogar os contextos proibicionistas,
naturalizando a ideia da necessidade disso e da periculosidade do
contrário. Se isso se sustenta nos cenários do último século, já não se
sustenta no cenário atual, e não se sustentava na antiguidade.
Hoje o cenário que deu lugar aos paradigmas proibicionistas
convive com os paradigmas não-proibicionistas. Há tensão e conflito
entre eles. Um bom conflito. Um conflito que produz abertura para o
diálogo.
Ligado a um modelo proibicionista o movimento de
transformar os usuários de drogas em não usuários pode impedir o
alcance dos mesmos a direitos consagrados na constituição brasileira,
como o acesso universal à saúde ou o direito à educação. Dentro de
uma lógica proibicionista passa-se não apenas a combater a droga,

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coisa inerte e sem vida própria, mas a enfrentar a pessoa que dela faz
uso.
O paradigma proibicionista, no trabalho, parece forçar uma
dúvida unilateral que se restringe, ao tratar de um sujeito, a saber se
ele usa ou se não usa drogas. Como que criando uma distância entre o
profissional e o usuário. Quando pensamos em redução de danos as
perguntas não estão prontas, e tentam tomar importância e sentido a
partir da vida da pessoa com a qual se pretende trabalhar, que pode,
além de querer ou não parar de usar drogas, querer muitas outras
coisas.

Educação permanente nos cursos da Rede Multicêntrica

Curso, em um rio, é passagem. Quando falamos em educação


permanente estamos tentando romper com a noção de um curso
estanque - que começa e acaba em si mesmo. Acreditava-se,
antigamente, que os espaços de aprendizagem eram especialmente
restritos a lugares delimitados por quatro paredes, cadeiras alinhadas
e focadas para frente, prontas para absorver as palavras proféticas de
um mestre, detentor de um saber.
Muitos autores já trabalham com este conceito e ele é uma
realidade em processo nas práticas e nas políticas de saúde do país. As
ações governamentais educativas em saúde procuram seguir os
preceitos de uma educação que é implicada com o caráter situacional
das aprendizagens nos próprios cenários de trabalho em saúde
(CECCIN, 2005).
No cotidiano, os acontecimentos esvaziam as teorias. Somos
convocados, em constante transmutação, a nos colocar alertas,
ocupando-nos das perguntas como um artefato sempre à mão para o
enfrentamento das situações complexas. Entendemos que é
importante que o cotidiano de trabalho seja um instigador do
pensamento, precisamente como são os preceitos da Educação
Permanente (idem).

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Em um exercício de resistir a práticas cristalizadas em fazeres
que desistem de se questionar, nos munimos do conceito de Educação
Permanente. Utilizando variadas técnicas, os cursos foram se
desenvolvendo de modo que se fizessem presentes as práticas dos
profissionais que ali estavam, e que tinham suas histórias pessoais,
suas ideias, seus serviços, e seus saberes singulares. Se não paramos
de nos interrogar, podemos pensar que nunca estaremos
completamente certos do que estamos fazendo. E de fato não
estaremos; mas é na certeza que estão as mais fatais armadilhas,
“certeza é quando a ideia cansa de procurar e pára”(FALCÃO, 2013).
Nos cursos da Rede Multicêntrica, realizou-se o esforço para
que ali fosse encarnada uma potência de passagem. Ou, como nos
mostra Ceccin (2004/2005) sobre a Educação Permanente, utilizamos
uma definição pedagógica que coloca o cotidiano do trabalho em
saúde em análise, “que se permeabiliza pelas relações concretas que
operam realidades que possibilita construir espaços coletivos para a
reflexão e avaliação de sentido dos atos produzidos no cotidiano”
(idem, p. 161). Nos cursos da Rede Multicêntrica um importante rumo
foi a valorização e abertura de espaços em sala de aula para, digamos,
dar a conhecer o que acontece nos processos de trabalho.
Os modos tradicionais de trabalhar com o tema das drogas,
ancorados no paradigma proibicionista marcaram presença nos
cursos. E aí se desenharam grandes desafios.
Uma série de práticas instituídas de cuidado tomava corpo e
fazia eco nos cursos, onde era possível debatê-las. Um hábito comum,
por exemplo, que surgia nas discussões: referir as pessoas que têm
problemas com drogas nomeando-as de Dependente Químico, e
utilizar isso como baliza para o cuidado. Questionamos: “Se a
dependência é química, onde habita o sujeito? Qual o seu estilo de
vida, sua história, suas relações? Quem depende da química?”
(Torossian e Papini, 2013).

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Referências

CECCIN, Ricardo Burg .Educação permanente em Saúde: desafio


ambicioso e necessário. Interface Comunic, Saúde, Educ, v.9, n.16,
p.161-77, set.2004/fev.2005

_________. Educação Permanente em Saúde decentralização e


disseminação de capacidade pedagógica na saúde. Ciênc. saúde
coletiva vol.10 no.4 Rio de Janeiro Oct./Dec. 2005

FALCÃO, Adriana. Mania de explicação. São Paulo, 2013

OLIEVENSTEIN, Claude. A clínica do toxicômano: a falta da falta. Porto


Alegre: artes Médicas, 1989.

PASSOS, Eduardo Henrique; SOUZA, Tadeu Paula. Redução de danos e


saúde pública: construções alternativas à política global de "guerra às
drogas". Psicol. Soc., Florianópolis , v. 23, n. 1, p. 154-162, Abril. 2011

TOROSSIAN, Sandra Djambolackdjian, PAPINI, Pedro Augusto. As


drogas e suas políticas: usos, excessos e reduções. Em: CRUZ, Lilian
Rodrigues da, RODRIGUES, Luciana e GUARESCHI, Neuza M. F.
Interlocuções entre a psicologia e a política nacional de assistência
social. Santa Cruz do Sul: Udunisc, 2013.

23
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POLÍTICAS

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Capítulo II

SUS, SUAS e política sobre drogas: interfaces e


tensionamentos
Míriam Dias

O tema das políticas públicas sobre as drogas tem relação


direta com o entendimento do seu contexto de instalação e o
significado da relação da sociedade e o Estado, requerendo o
entendimento de conceitos e dimensões intrínsecas.
A intersetorialidade é um desafio para uma ação articulada das
políticas públicas na oferta de serviços e programas à população, e
para isto, torna-se necessário um entendimento sobre a seguridade
social no Brasil, a característica do federalismo existente no país, e a
compreensão dos sistemas nas políticas. A forte setorialidade dos
sistemas únicos de saúde e de assistência social repercute na proteção
social, requerendo um entendimento de algumas de suas
características.
Os aspectos na Saúde que merecem destaque são a mudança
do conceito de saúde, os modos explicativos do processo saúde-
doença, a organização e os desafios da atenção à saúde. E na
Assistência Social são os fundamentos, os tipos de proteções sociais e
a organização da rede de um sistema com existência recente no país.
Ressalta-se o marco regulatório sobre as drogas, com destaque às
contribuições da IV Conferência Nacional de Saúde Mental
Intersetorial (2010), bem como o arcabouço de atenção presente na
recente institucionalização da Rede de Atenção Psicossocial.

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Este panorama desvela os desafios que os profissionais,
gestores e cidadãos, de um modo geral, têm para a construção de uma
articulação capaz de contribuir na elaboração de ações para a atenção
integral às pessoas com prejuízos pelo uso de álcool e outras drogas,
na perspectiva de respeito aos direitos humanos e da integralidade.

Considerações sobre políticas públicas e a seguridade social no Brasil

As políticas públicas são constituídas a partir de um


determinado modo da sociedade conceber e explicar os fenômenos
sociais, para que seja possível que a ação pública governamental se
efetive, indicando os fins, os setores, os públicos e os meios,
ancorados em dispositivos legais e de gestão, requeridos para a sua
materialização.
(...) A formulação de políticas públicas constitui-se
no estágio em que os governos democráticos
traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais
em programas e ações que produzirão resultados
ou mudanças no mundo real (SOUZA, 2006, p. 26).

O entendimento da existência desta relação entre sociedade e


Estado, mediada pelos governos, possibilita uma compreensão das
peculiaridades presentes no âmbito da execução terminal das políticas
sociais, circunstância em que os trabalhadores sentem os impactos e
tensões existentes nesta relação, que a Figura 01 procura ilustrar.

Figura 01 - Políticas Públicas - Relação entre Estado e Sociedade

Fonte: elaboração da
autora

28
Assim, as políticas públicas são

(...) espaço de tomada de decisão autorizada ou


sancionada por intermédio de atores
governamentais, compreendendo atos que
viabilizem agendas de inovação em políticas ou que
respondem a demandas de grupos de interesses
(COSTA, 1998, p. 07).

Esta peculiaridade da política pública expressa o grau de


relação com a mobilização e organização de grupos e coletivos que
defendem seus projetos societários, cuja trama de negociação e
relação com as condições sociais e econômicas, no momento, vão
desenhar as formas de oferta de bens e serviços à população.
As políticas públicas setoriais da saúde e da assistência social
foram gestadas no teor, ritmo e tempo característicos da formação e
consolidação do Estado brasileiro ao longo do século vinte,
particularidades que as moldam com feições contraditórias, ora de
negação, ora de reconhecimento da questão social. A questão social,
entendida como o conjunto das manifestações das desigualdades
sociais geradas na sociedade capitalista, e as formas de reação das
classes nas lutas por acesso a bens e direitos (IAMAMOTO, 1998).
É para o enfrentamento da questão social que, em
determinado momento histórico, a sociedade e o Estado constituíram
formas de proteção social, que é um conceito amplo, vigente a partir
do século XX, que engloba a Seguridade Social (ou Segurança Social),
asseguramento (ou garantias à seguridade) e as Políticas Sociais
(PEREIRA, 2002). Dois modelos marcaram a história nos países centrais
e também inspiraram os países em desenvolvimento.
Um é o modelo Bismarckiano, com seu caráter seletivo e
corporativista, no qual os benefícios eram fixos, uniformes e voltados
apenas aos grupos profissionais, baseado nas propostas de Otto Von
Bismarck, na Prússia do final do século XIX. O outro modelo é o

29
orientado pelo Plano Beveridge1, de formatação calcada nos direitos
de cidadania, caracterizado por oferecer benefícios uniformes,
democráticos, igualitários, desmercadorizantes e universalizantes.
Ambos os modelos inspiraram a elaboração de propostas de
proteção social no Brasil, inaugurados na década de 1930, quando o
país viveu o momento de construção do estado moderno, e a agenda
do governo estabeleceu a criação de um variado conjunto de políticas
previdenciárias, sanitárias e trabalhistas.
Os dois modelos de política social instalados, ambos com
feições intervencionista e centralizadora foram o Assistencial e o
Seguro Social (FLEURY, 2003). O primeiro destinava-se aos grupos
pobres mais vulneráveis como medida compensatória pela situação de
alta desigualdade social, e não pela concepção de direito social.
Modelo inspirado na ação caritativa e reeducacional, com estrutura
pulverizada e descontínua, resultante da aliança entre setores
privados filantrópicos e Estado, assentado muitas vezes no trabalho
voluntário. No modelo de Seguro Social o acesso à saúde era para os
que estavam inseridos no mercado de trabalho e contribuintes da
previdência social, o que construiu o sistema de medicina
previdenciário no país.
Estes modelos vigoraram por décadas até a promulgação da
Constituição Federal de 1988, resultante da Assembleia Constituinte
que produziu um novo marco conceitual de seguridade social,
derivado de um longo processo de luta pela democratização e por
melhores condições de vida, com a participação da sociedade de
forma mais orgânica nos novos rumos da nação.
A década de 1990 expressou várias rupturas relevantes no país.
No quadro político, o retorno do sufrágio universal para a retomada da
democracia representativa; na área econômica, a política de
estabilização pela via da recessão para combater a herança da
inflação; a desregulamentação da economia através da liberação dos
preços dos produtos e consequentes privatizações e liberalização das
1
Para maior conhecimento sobre o tema ler o artigo A influência do relatório
Beveridge nas origens do Welfare State (1942 – 1950), de Cardoso, 2010.

30
importações, e a flexibilização das relações capital-trabalho (SOARES,
2001).
O Estado brasileiro desenvolvimentista (1945–1964), que havia
sido elemento-chave do processo de industrialização, investindo em
infraestrutura e criando estatais produtoras de matérias primas
essenciais, ocupado em operar um determinado sistema público de
proteção social (BIELSCHOWSKI, 2004) iniciou seu processo de reforma
administrativa. A contenção do gasto público, dirigida tanto ao
combate à inflação como à criação de um superávit primário2 fiscal,
expressa a posição do Estado de contenção de investimento nas
políticas sociais.
É nesse contexto que a Constituição de 1988 introduziu o
conceito de Seguridade Social, com a construção de um consenso
mínimo sobre direitos sociais a serem efetivados. Ou seja, se
evidenciavam as contradições e disputas de projetos societários nos
rumos da sociedade e do Estado brasileiro.
Mas o que é seguridade social? Pereira (2002 p. 16) contribui
definindo-a como um “sistema programático de segurança contra
riscos, circunstâncias, perdas e danos sociais, cujas ocorrências afetam
negativamente as condições de vida dos cidadãos”. É o sistema mais
avançado de proteção social produzido no Estado de Bem Estar Social
(Welfare State) nos países centrais, de feição socialdemocrata.
Consiste numa união das políticas de cunho social com as
perspectivas intervencionistas estatais no mercado, que foi capaz de
oferecer excedentes econômicos, desenvolvimento tecnológico,
avançada burocratização e um específico modelo de produção -
modelo fordista capaz de viabilizar o Estado Protetor, o que se
constituiu num regime específico de capitalismo moderno (CARDOSO,
2009).

2
O superávit primário: governo passa a ter como objetivo arrecadar mais do que
gasta, não considerando o pagamento de juros da dívida. Esta ferramenta contábil se
torna essencial na política econômica para o pagamento da dívida. O superávit
primário se torna para as políticas sociais um “sacrifício Social” (FBO, 2004, p. 7).

31
A característica peculiar da noção de seguridade social é o
reconhecimento dos direitos sociais como condição da cidadania, e a
responsabilidade do Estado em provê-los por meio de sistemas de
políticas sociais – Direito do Cidadão, Dever do Estado.
O contexto social e político da Constituinte, resultante da forte
mobilização social por reformas no Estado brasileiro para o alcance de
prerrogativas cidadãs e o processo de democratização, criou um
consenso possível na definição de Seguridade Social, expresso no
artigo 194 da Constituição Federal como um “conjunto integrado de
ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade destinado a
assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência
social”.
No parágrafo único do referido artigo, estão os objetivos da
Seguridade Social, quais sejam: I - universalidade da cobertura e do
atendimento; II - uniformidade e equivalência dos benefícios e
serviços às populações urbanas e rurais; III - seletividade e
distributividade na prestação dos benefícios e serviços; IV -
irredutibilidade do valor dos benefícios; V - equidade na forma de
participação no custeio; VI - diversidade da base de financiamento;
VII - caráter democrático e descentralizado da administração,
mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores,
dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos
colegiados.
Estes objetivos vão orientar a organização das políticas sociais
setoriais constituindo-se em componentes orientadores e
estruturantes dos Sistemas de Saúde e de Assistência Social.

A setorialidade das políticas sociais

O termo setor equivale a um “conjunto de atividades


relativamente coerentes em termos técnicos ainda que diferenciados
em termos de subsistemas socioeconômicos aos quais pertencem”
(DOWBOR, 2003, p. 17).

32
Classicamente o termo é utilizado para definir os setores da
economia, mas também identifica as políticas sociais, demarcando
suas especificidades quanto aos objetivos e natureza da ação. A
seguridade social no Brasil é formada pelos setores da saúde,
assistência social e previdência social, sendo que as duas primeiras
serão abordadas nesta discussão.
A seguridade social definida pela Constituição estabelece dois
princípios básicos para as políticas sociais correspondentes:
participação da sociedade e descentralização político-administrativa.
Estes princípios são inovadores na história brasileira da proteção
social, pois vão provocar alterações substantivas na relação entre
Estado e sociedade (Figura 01). A formação inicial da sociedade
brasileira revela que o exercício da cidadania civil foi obstaculizado por
três fatores: a escravidão, a grande propriedade rural e um Estado
comprometido com os interesses privados. Esta situação torna o Brasil
a terra da cidadania inconclusa (CARVALHO, 2004), pois a presença de
alguns direitos não garante que todos sejam considerados.
A participação dos brasileiros nas políticas da seguridade social
constitui-se numa inovação democrática relevante, pois vai recuperar
o tempo de privação da liberdade de expressão e de inserção na vida
social que a ditadura militar impôs no país. Mas esta peculiaridade da
participação no país é um fator ainda a ser conquistado e fortalecido
através da forma histórica como se constituiu a relação entre
sociedade e Estado. Coutinho (2003, p. 212) analisa o Brasil
contemporâneo à luz da teoria do Estado ampliado de Gramsci e
sintetiza que “[...] não só a sociedade civil brasileira era até pouco
tempo ‘primitiva e gelatinosa’, mas também que o Estado foi sempre
bastante forte”.
A luta pela democratização no país e a forte mobilização de
vários setores por melhores condições de vida repôs no campo legal a
participação da população através de Conferências e da criação dos
Conselhos Setoriais ou de Direitos nas três esferas de governo.
Os conselhos são órgãos colegiados, de caráter permanente e
deliberativo sobre as respectivas políticas, e são “canais de

33
participação que articulam representantes da população e membros
do poder público estatal em práticas que dizem respeito à gestão de
bens públicos” (GOHN, 2003, p. 07).
Há uma diferença na composição dos Conselhos de Saúde e os
Conselhos das demais políticas setoriais. Os da saúde são formados
pelo segmento dos usuários (50%), profissionais de saúde (25%) e
gestor e prestadores de serviços (25%). Os demais conselhos tem sua
composição paritária entre governo e sociedade civil, ou seja,
entidades que representam seus usuários, os trabalhadores do setor e
entidades prestadoras de serviços.
Côrtes (2004, p. 251) assinala que

(...) a maior parte dos conselhos tem atribuições


relativas ao planejamento e fiscalização da
aplicação de recursos financeiros transferidos da
esfera do governo federal ou estadual, e
relacionados ao monitoramento da
implementação de políticas.

Estas atribuições ainda requerem uma maior


institucionalização, considerando as diferenças regionais no país e a
cultura participativa brasileira, que deve avançar para uma democracia
participativa, estágio em que a população tem maior poder na tomada
de decisão sobre os rumos do país.
Um aspecto a se considerar na formulação e gestão das
políticas sociais no aspecto da descentralização é quanto ao tipo de
federalismo existente, pois diferente da maioria dos outros países, o
Brasil é um sistema federativo de tripla soberania. A união, os estados
e os municípios são entes autônomos, com autoridade administrativa
e jurídica própria, não havendo hierarquia entre os mesmos.
Ocorre uma repartição da autoridade política do Estado [a
soberania] e o exercício do poder [o governo] em centros soberanos
definidos geograficamente e coordenados entre si. Esta situação
produz um elevado grau de heterogeneidade, com a existência de
múltiplos centros de poder e de um sistema complexo de dependência

34
política e financeira entre as esferas governamentais, cujos resultados
podem ser diversos e contraditórios pelas disparidades inter e
intrarregiões no país (LIMA, 2007).
Na forma como estão organizadas no país, as Políticas Sociais
Setoriais têm uma organização calcada em Leis Orgânicas, no caso da
Saúde, Assistência Social, Previdência Social e Educação. Os segmentos
da população com suas especificidades têm Estatutos: da Criança e do
Adolescente, Idosos, Igualdade Racial, Pessoa com deficiência, assim
como a política da Habitação com Estatuto das Cidades.
Todas estas políticas têm Planos Nacionais, Estaduais e
Municipais, e respectivos programas com regramentos normativos
que estabelecem os processos organizativos, de gestão e de
financiamento. Da mesma maneira foram instituídos os respectivos
Conselhos Nacionais, Estaduais e Municipais e as Conferências
Nacionais, Estaduais e Municipais por setor, responsáveis por garantir
a participação da população nos rumos das políticas sociais. Assim,
cada uma das políticas se dirige ao seu público, de acordo com as suas
finalidades, como mostra a Figura 02.

Figura 02 - A Setorialidade das Políticas Sociais

Fonte: elaboração da autora

35
Outro aspecto a se considerar diz respeito ao papel das
profissões na formulação e gestão das políticas sociais, pois estas são
uma

(...) espécie de política pública que visa concretizar


o direito à seguridade social, por meio de um
conjunto de medidas, instituições, profissões,
benefícios, serviços e recursos programáticos e
financeiros (PEREIRA, 2002, p. 16).

Cada profissão tem como matriz uma ou mais disciplinas do


campo do conhecimento e legislações específicas sobre suas
competências e atribuições no exercício profissional. A racionalidade
científica criou as disciplinas para possibilitar, por meio da
especialização em profissões, para distribuir distintamente as
atribuições e as responsabilidades e para que a execução do trabalho
seja bem disciplinada, prepará-los e treiná-los para produzirem mais e
melhor, de acordo com o método planejado, conforme preconizado
pela Teoria da Administração Científica de Taylor, em 1903
(CHIAVENATO, 2000).
Esta teoria determinou a organização do trabalho no modelo
fordista3, hegemônica durante o período do Welfare State nos países
centrais e era do desenvolvimentismo nos países como o Brasil. Uma
das características deste trabalho realizado em série, dependente de
normas e especializado, é a fragmentação do processo de trabalho e
das relações entre os diferentes profissionais.
Associando as características das profissões com as das
políticas setoriais já apresentadas, temos um contexto que dificulta a
possibilidade de integração e articulação necessária para uma oferta
3
Baseou-se em inovações tecnológicas e organizacionais calcadas na produção a
partir de ciclos operatórios curtos, segmentados e em fluxo contínuo e progressivo,
de modo a obter uma grande produção no menor tempo possível, associado a uma
política de recompensa ao operário pela obtenção de um salário mais elevado
(HARVEY, 1993).

36
de serviços centrados no cidadão, como se verifica na ilustração da
Figura 03.

Figura 03 - As especificidades das Profissões e das Políticas Setoriais

Fonte: elaboração da autora

As políticas públicas de Saúde e de Assistência Social são


sistemas, pois contêm um conjunto de órgãos funcionais,
componentes, entidades, partes ou elementos e a integração entre
esses componentes se dá por meio de variados fluxos de informações,
existindo comunicação entre seus componentes em cada política.
A Lei n.º 12.435, 06 de julho de 2011 que altera a Lei nº 8.742,
de 07/12/1993, dispõe sobre a organização da Assistência Social, e no
artigo 6º está definido que a gestão das ações na área de assistência
social fica organizada sob a forma de sistema descentralizado e
participativo, denominado Sistema Único de Assistência Social (Suas).
Os seus objetivos são: I - consolidar a gestão compartilhada, o
cofinanciamento e a cooperação técnica entre os entes federativos
que, de modo articulado, operam a proteção social não contributiva; II
- integrar a rede pública e privada de serviços, programas, projetos e
benefícios de assistência social, na forma do art. 6o-C; III - estabelecer
as responsabilidades dos entes federativos na organização, regulação,
manutenção e expansão das ações de assistência social; IV - definir os

37
níveis de gestão, respeitadas as diversidades regionais e municipais; V
- implementar a gestão do trabalho e a educação permanente na
assistência social; VI - estabelecer a gestão integrada de serviços e
benefícios; e VII - afiançar a vigilância socioassistencial e a garantia de
direitos.
O parágrafo 1º define que as ações ofertadas no âmbito do
Suas têm por objetivo a proteção à família, à maternidade, à infância,
à adolescência e à velhice e, como base de organização, o território. E
no 2º parágrafo, fica estabelecido que o Suas é integrado pelos entes
federativos, pelos respectivos conselhos de assistência social e pelas
entidades e organizações de assistência social abrangidas pela Lei.
O Decreto nº 7508 de 28/06/2011 que regulamenta a Lei nº
8.080, de 19/09/1990, para dispor sobre a organização do Sistema
Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde
e a articulação interfederativa, e dá outras providências. No
artigo 3o está definido que o SUS é constituído pela conjugação das
ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde
executados pelos entes federativos, de forma direta ou indireta,
mediante a participação complementar da iniciativa privada, sendo
organizado de forma regionalizada e hierarquizada.
Como se constata no marco legal destas duas políticas sociais,
estas “são pensadas no interior do setor fundamentadas no seu objeto
e acúmulo de práticas e saberes [...]” (ANDRADE, 2006, p. 281),
peculiaridades da setorialidade histórica nas políticas brasileiras.

O Sistema Único de Saúde

A conceituação da saúde se torna necessária tendo em vista a


mudança significativa nas últimas décadas. Considera-se a saúde tanto
um valor universal na sua dimensão de cuidados para a manutenção e
qualidade de vida, quanto um setor estratégico de política pública, no
atendimento das condições necessárias para a reprodução social.
A saúde é também fundamental para a democracia e a
cidadania, pois como diz Escorel (2009), a democracia é entendida

38
como substantiva, que indica um conjunto de fins entre os quais
sobressai a igualdade jurídica, social e econômica, onde podemos
situar a saúde como um dos objetivos sociais a serem atingidos. Esta
perspectiva de saúde é resultante do Movimento da Reforma
Sanitária4, que se constituiu numa articulação de forças sociais com a
mesma direção: qualificar a atenção em saúde e torná-la pública,
como direito universal dos cidadãos, no período de lutas pela
democratização do país e de crítica à política e às condições de saúde
vigentes na época.
A VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, foi o ápice do
Movimento pela Reforma Sanitária, e a primeira vez que
representantes dos usuários da saúde pública e profissionais de saúde
participaram. Os temas discutidos foram: saúde como direito;
reformulação do Sistema Nacional de Saúde e financiamento setorial.
O forte debate produzido no Movimento construiu um novo conceito
de saúde que esta conferência aprovou: saúde é resultante das
condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio
ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e
posse da terra, e acesso a serviços de saúde. É assim, antes de tudo, o
resultado das formas de organização social da produção, as quais
podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida (BRASIL, 1986).
O conceito de saúde ampliado, que não envolve apenas a
recuperação da doença, mas como resultante das condições de vida,
além de explicitamente considerar a intersetorialidade, transforma a
luta pela saúde numa luta pela cidadania, com a primazia do público
para garantir os direitos sociais da população. Deste modo, o Brasil
superou o clássico conceito de saúde elaborado pela Organização das
Nações Unidas (ONU), quando no período pós 2ª guerra mundial, em 7
de abril de 1948, divulga uma carta de princípios (desde então o Dia

4
“Processo de transformação da norma legal e do aparelho institucional que
regulamenta e se responsabiliza pela proteção à saúde dos cidadãos e corresponde a
um efetivo deslocamento do poder político em direção às camadas populares, cuja
expressão material se concretiza na busca do direito universal à saúde e na criação
de um sistema único de serviços sob a égide do Estado” (TEIXEIRA, 1989, p. 39).

39
Mundial da Saúde) que reconhece o direito à saúde e da obrigação do
Estado na promoção e proteção da saúde, e formula o conceito de
saúde: estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não
simplesmente à ausência de doença ou enfermidade. A crítica feita a
este conceito é quanto ao seu caráter linear sistêmico – coloca num
mesmo nível dimensões completamente distintas e independentes,
como são o físico, o mental e o social (DAMASO, 1989).
O Sistema Único de Saúde (SUS), instituído em 1988 pela
Constituição Federal, por ação do movimento sanitário, e criado pelas
Leis 8.080 e 8.142/92, é considerado um dos sistemas de saúde mais
avançados do mundo. Ao garantir o acesso universal aos serviços de
saúde a toda a população, constitui-se numa das maiores conquistas
dos brasileiros.
Conhecer os modos explicativos do processo saúde-doença
torna-se necessário, visto serem matrizes conceituais que orientam o
modo como é organizada a atenção e a gestão em saúde. Dois modos
explicativos são preponderantes neste debate. O primeiro é o clássico
“História Natural da Doença”, criado na década de 1950 por Leavell
&Clark e calcado no tripé: o homem-hospedeiro, o agente patogênico
e o meio. E que se baseia na dinâmica do equilíbrio ou desequilíbrio
dos três elementos, pelo estabelecimento de uma relação causa-
efeito, demarcando dois momentos no processo de adoecimento: fase
pré-patogênica - Prevenção Primária e fase patogênica – Prevenção
Secundária e Terciária. Este modelo inspirou a organização
hierarquizada e de etapas vigente no sistema de saúde até os dias
atuais, cujos componentes podem ser visualizados na Figura 04.

40
Figura 04 – Modelo História Natural da Doença

Fonte: FIOCRUZ, 1998.

O debate promovido pelo Movimento pela Reforma Sanitária


também produziu um novo campo de conhecimento, o da Saúde
Coletiva, que mesmo em permanente processo de

(...) autocriação, [...] (que) recompõe e atualiza


constantemente os elementos das práticas de
saúde - os objetos, os meios de trabalho, as
atividades realizadas nessas práticas, e também
para que, a partir dessa experiência democrática,
sejam instauradas novas relações técnicas e sociais
no processo de trabalho em saúde (PAIM, JS;
ALMEIDA FILHO, 1998, p. 312).

Neste contexto outro modo de explicação do processo saúde-


doença é produzido, o da Determinação Social da Doença, quando a
Epidemiologia Social faz a crítica à Epidemiologia Clínica tradicional,
baseada na causalidade. O processo de adoecimento é entendido
como uma

41
(...) realidade concreta expressa em grupos sociais
marcados por traços socioeconômicos particulares,
que evidenciam as suas similaridades em termos de
condições materiais de vida e condições materiais
de trabalho (FIOCRUZ, 1998, p. 54).

Deste modo a noção de causalidade é substituída pela de


determinação: as condições ligadas à estrutura social são consideradas
na explicação da saúde e da doença, pelas características comuns
relativas às condições materiais de vida dos indivíduos que
correspondem às relações de trabalho, alimentação, moradia, lazer,
educação, transporte, etc.
Os Determinantes Sociais de Saúde são elementos de ordem
econômica e social que afetam a situação de saúde de uma população,
e passaram a se constituir como referência na política de saúde. Uma
Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde (DSS)5 foi
criada em 2005 pelo governo federal, formada por um grupo
interdisciplinar e intersetorial, para examinar e propor ações
considerando que as desigualdades sociais brasileiras determinam as
condições de saúde da população como consequência das escolhas
sobre a política econômica e social no país.
Um conceito relevante considerado é o das iniquidades em
saúde, que se traduz nas desigualdades de saúde entre grupos
populacionais que além de sistemáticas e relevantes são também
evitáveis, injustas e desnecessárias (WHITEHEAD, 1992 apud FIOCRUZ,
2008, p. 11). Um exemplo de iniquidade é a probabilidade de 5 vezes
maior de uma criança morrer antes de alcançar o primeiro ano de vida
pelo fato de ter nascido no nordeste e não no sudeste. O outro
exemplo é a chance de uma criança morrer antes de chegar aos 5 anos

5
Ver Relatório Final da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde.
2008. Disponível em: http://www.cndss.fiocruz.br/pdf/home/relatorio.pdf.

42
de idade ser 3 vezes maior pelo fato de sua mãe ter 4 anos de estudo e
não 8.
Os pesquisadores Dahlgren e Whitehead propõem um
esquema que permite visualizar as relações hierárquicas entre os
diversos determinantes da saúde, divulgado pelo Relatório Final da
Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde, como se
observa na Figura 05.

Figura 05 – Relações hierárquicas entre os Determinantes Sociais da


Saúde

Fonte: Dahlgren e Whitehead (1991) apud FIOCRUZ, 2008.

Esta perspectiva explicativa do processo de saúde-doença


demanda a intersetorialidade como eixo catalizador da formulação e
execução de políticas sociais na realidade social.
Outro aspecto importante a destacar na política de saúde é
referente à Atenção à Saúde, com o fim de explicitar conceitos e a
organização do sistema de saúde. Como Atenção à Saúde entende-se
um conjunto de ações que envolvem a promoção, a prevenção e os
serviços de saúde nos diferentes níveis de complexidade, abarcando a
Vigilância em Saúde e a assistência prestada no âmbito do SUS e da
Saúde Suplementar (Brasil, 2008).

43
A atenção à saúde no país segue em processo de atualização e
consolidação, que se expressa na Portaria GM/MS nº 4.279, de
30/12/2010 ao estabelecer as diretrizes para a organização da Rede de
Atenção à Saúde (RAS) no âmbito do Sistema Único de Saúde.
A Rede de Atenção à Saúde é o conjunto de ações e serviços de
saúde articulados em níveis de complexidade crescente, com a
finalidade de garantir a integralidade da assistência à saúde (BRASIL,
2010a). Esta portaria tem um marco conceitual e organizativo que
revela o acúmulo do setor nestas décadas de execução da política
pública de saúde.
A atenção à saúde tem relação intrínseca com o entendimento
sobre os modos de atenção, que para Campos, é “[...] o modo como
são produzidas ações de saúde e a maneira como os serviços de saúde
e o Estado se organizam para produzi-las e distribuí-las” (1989, p. 53).
Para Paim,

(...) os modelos de atenção ou modelos


assistenciais ou modos de intervenção em saúde
podem ser definidos como combinações
tecnológicas estruturadas em função de problemas
de saúde (danos e riscos) que compõem o perfil
epidemiológico de uma dada população e que
expressam necessidades sociais de saúde
historicamente definidas (2006, p. 18).

Está presente nestas definições a perspectiva histórica


processual do modo de atenção, pois são os atores e forças sociais,
mediados pelo Estado, que em determinado tempo e condicionados
por uma gama de interesses, vão constituir a forma como a saúde será
materializada em serviços, processos e gestão.
A Portaria GM/MS nº 4.279 define Modelo de Atenção à Saúde
como um sistema lógico que organiza o funcionamento da RAS,
articulando, de forma singular, as relações entre a população e suas
subpopulações estratificadas por riscos, os focos das intervenções do
sistema de atenção à saúde e os diferentes tipos de intervenções

44
sanitárias, definido em função da visão prevalecente da saúde, das
situações demográficas e epidemiológicas e dos determinantes sociais
da saúde, vigentes em determinado tempo e em determinada
sociedade (BRASIL, 2010a).
Uma apreciação relevante sobre o modelo assistencial
hegemônico no Brasil é feita por Teixeira (2004), quando aponta o
modelo médico-assistencial privatista, com suas características de
considerar o hospital como o centro da organização dos serviços de
saúde, desvinculado da relação com os demais serviços que compõem
a atenção à saúde. As ações curativas são predominantes na oferta de
serviços de saúde, e, por conseguinte, as ações preventivas e de
promoção da saúde são consideradas de baixa relevância. Outra
característica é o fato da organização do trabalho estar fundamentada
na prática médica, com o conhecimento específico dos demais
profissionais com posição subordinada.
Outra dimensão relevante para se destacar é que
historicamente a Atenção no SUS foi guiada pelas condições agudas
que induziram a conformação do sistema de saúde, com suas
características de ser um modelo de atenção episódico, voltado para
atenuar os sintomas e promover a cura, não se aplicando para atender
às condições das doenças crônicas. Os conceitos de doenças
transmissíveis e não transmissíveis têm sido os conceitos usados para
análise e compreensão da situação epidemiológica, mas sua aplicação
na organização de serviços não atende às necessidades decorrentes
das peculiaridades das doenças crônicas e agudas (CONASS, 2009).
A condição crônica requer como ação de enfrentamento a
continuidade do cuidado, pois constituem problemas de saúde que
requerem gerenciamento contínuo por um longo período de anos ou
décadas. As condições crônicas abarcam uma categoria extremamente
vasta de agravos, doenças transmissíveis, não transmissíveis e
incapacidades (CONASS, 2009). A figura 06 sintetiza as peculiaridades
das condições agudas e crônicas de saúde.

45
Figura 06 - Condições Agudas e Condições Crônicas

Fonte: CONASS, 2009.

A situação de saúde no Brasil, segundo Mendes (2010) é de


uma agenda não concluída de infecções, desnutrição e problemas de
saúde reprodutiva. Há uma forte predominância relativa das doenças
crônicas e de seus fatores de riscos, como tabagismo, sobrepeso,
inatividade física, uso excessivo de álcool e outras drogas e
alimentação inadequada, assim como o forte crescimento da violência
e das causas externas.
O atual modelo de atenção orientado para a constituição das
Redes de Atenção à Saúde, conforme a Portaria GM/MS nº 4.279,
requer uma mudança necessária no atual modelo de atenção
hegemônico no SUS, ou seja, exige uma intervenção concomitante
sobre as condições agudas e crônicas. Para isto a Estratégia Saúde da
Família representa o principal modelo para a organização da Atenção
Primária à Saúde, tornando-se uma exigência para o estabelecimento
da RAS (BRASIL, 2010a).

46
Conforme o Art. 7º da Portaria GM/MS nº 4.279, as Redes de
Atenção à Saúde estarão compreendidas no âmbito de uma Região de
Saúde, ou de várias delas, em consonância com diretrizes pactuadas
nas Comissões Intergestores6, devendo conter em cada Região de
Saúde, no mínimo, ações e serviços de I - atenção primária; II -
urgência e emergência; III - atenção psicossocial; IV - atenção
ambulatorial especializada e hospitalar; e V - vigilância em saúde. No
Art. 9º estão definidas as Portas de Entrada às ações e aos serviços de
saúde nas Redes de Atenção à Saúde os serviços: I - de atenção
primária; II - de atenção de urgência e emergência; III - de atenção
psicossocial; e IV - especiais de acesso aberto.
Estes são, portanto, os atuais componentes da atenção à saúde
no SUS, que o conjunto de municípios, estados e união precisam
organizar, financiar e ofertar à população para que a saúde seja
acessada por todos os cidadãos, como expressão deste direito social.
Importante referir que o SUS tem também entre suas
atribuições constitucionais a atuação em Saúde do Trabalhador,
conforme artigo 200 da Constituição Federal. A Lei 8080/90, que
institui o SUS, no seu artigo 6º, parágrafo 3º, descreve a Saúde do
Trabalhador como: Conjunto de atividades que se destina, através das
ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, à promoção e
proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa à recuperação
e reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e
agravos advindos das condições de trabalho.
Esta área ainda precisa ser devidamente valorizada e efetivada
na política pública de saúde, pois o trabalho também produz
adoecimento e está presente nas determinações sociais da saúde.
Por fim, é relevante assinalar as mais recentes mudanças no
marco legal do SUS. O Decreto nº 7.508 de 28 de junho de 2011 que
regulamenta a Lei no 8.080, 19/09/1990 na organização do SUS:
planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação
interfederativa. E a Lei Complementar nº 141, de 13 de Janeiro de

6
Fóruns de negociação e pactuação sobre o funcionamento do sistema de saúde.

47
2012 (PEC 29), que Regulamenta o § 3º do art. 198 da Constituição
Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados
anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em
ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio
dos recursos de transferências para a saúde.
Estes instrumentos legais consolidam a saúde como uma
política de Estado no país, oferecendo os mecanismos organizativos e
financeiros para que o direito à saúde e o dever do Estado se efetive
no Brasil.

O Sistema Único de Assistência Social

No marco do processo de democratização da sociedade


brasileira se instituiu a Política de Assistência Social, orientada pelo
princípio de respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao
acesso a benefícios e serviços de qualidade, vedando-se qualquer
comprovação vexatória de necessidade. Com este princípio, a
assistência social se orienta sob a condição de direito social e
integrante da seguridade social no país. A assistência social passou
então a ter reconhecimento de política pública setorial, com as
diretrizes de descentralização político-administrativa e a participação
dos indivíduos auto representáveis na sua formulação e sua
fiscalização.
Esta inovação no marco da cidadania não eliminou as tensões
entre concepções distintas e até antagônicas, típicas das políticas
sociais. Sposati (2009) destaca que há duas concepções em embate:
uma que considera a política de assistência social como direito do
cidadão e dever do Estado, requerendo então uma gestão pública e
transparência quanto ao seu financiamento. E a outra posição
interpreta a Constituição Federal pelo princípio da subsidiariedade,
isto é, o “Estado deve ser o último e não o primeiro a agir. [...] opera a
assistência social sob o princípio de solidariedade como ação de
entidades sociais subvencionadas pelo Estado” (SPOSATI, 2009, p. 16).

48
Estas concepções vão delinear o tipo de gestão da política, ou
sob a responsabilidade do Estado ou pela parceria com as entidades
privadas filantrópicas.
Esta tensão, presente em todas as políticas sociais setoriais na
contemporaneidade brasileira, é muito forte na assistência social pelo
fato de estar ancorada

(...) por décadas na matriz do favor, clientelismo, do


apadrinhamento e do mando, [...] [que]
caracterizou-se historicamente como não política,
renegada como secundária e marginal no conjunto
das políticas públicas (COUTO, 2010, p.33).

O desafio para os segmentos sociais que defendem a política


pública como direito social é o de garantir os princípios da seguridade
social. O marco legal da política é formado pela Lei Orgânica da
Assistência Social (LOAS) Lei N° 8.742/1993, a Política Nacional de
Assistência Social (PNAS, 2004) e a Lei nº 12.435/2011 que institui o
Sistema Único de Assistência Social, SUAS. No Art. 1º da LOAS a
assistência social é definida como direito do cidadão e dever do
Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que prove os
mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações
de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às
necessidades básicas.
Os mínimos sociais estão entendidos como o acesso aos bens e
serviços básicos de reprodução da vida moderna, mas que se ampliam
quando seu provimento se relaciona com o enfrentamento da
pobreza, universalização dos direitos sociais, tornando-se um conceito
“problematizador do próprio padrão desta reprodução” (LOPES, 1998,
p. 96).
O público da assistência social é constituído por cidadãos e
grupos que se encontram em situações de vulnerabilidade e risco, tais
como: famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de
afetividade, pertencimento e sociabilidade, ciclos de vida; identidades
estigmatizadas em termos étnicos, culturais e sexual, desvantagem

49
pessoal resultante de deficiências, exclusão pela pobreza e ou
dificuldades de acesso às demais políticas públicas, uso de substâncias
psicoativas, vítimas de diferenças formas de violências advindas do
núcleo familiar, de grupos e ou indivíduos, desemprego ou inserção
precária no mercado formal ou informal, além de sujeitos ou grupos
que utilizam outras estratégias de sobrevivência que possam
representar risco social ou pessoal (BRASIL, 2004, p.33).
O Art. 2º da Lei do SUAS (BRASIL, 2011) define os objetivos da
assistência social, que são o da proteção social, da vigilância
socioassistencial e a defesa de direitos.
A proteção social também orienta a materialização da política
de assistência social, rompendo

(...) com a noção dos cidadãos como massa abstrata


e os reconstrói a partir da realidade de sua vida [...]
e age sob três situações: proteção às
fragilidades/vulnerabilidades próprias ao ciclo de
vida; proteção às fragilidades da convivência
familiar; proteção à dignidade humana e combate
às suas violações (SPOSATI, 2009, p.42).

Está assentada em princípios apresentados no Quadro 01.

Quadro 01 – Princípios da Proteção Social

Princípios Significado
Universalidade Pode ser acessado por todos os cidadãos.
Matricialidade A família é o núcleo protetivo intergeracional, presente
sociofamiliar no cotidiano e que opera tanto o circuito de relações
afetivas como de acessos materiais e sociais.
Descentralização Federalismo cooperativo, cuja concepção se opera pelo
compartilhada processo de regionalização.
Territorialização Dimensão da política que supõe o reconhecimento da
heterogeneidade dos espaços em que a população se
assenta e vive bem como o respeito cultural aos seus
valores, referências e hábitos.

50
Intersetorialidade Construção de uma relação de complementaridade
entre as políticas públicas.
Fonte: Sistematização de SPOSATI (2009).

A proteção social consiste no “conjunto de ações, cuidados,


atenções, benefícios e auxílios ofertados pelo SUAS para redução e
prevenção do impacto das vicissitudes sociais e naturais ao ciclo da
vida, à dignidade humana e à família como núcleo básico de
sustentação afetiva, biológica e relacional” (BRASIL, 2005). A Lei do
SUAS estabelece no Art. 6 A os tipos de proteção:

I - proteção social básica: conjunto de serviços, programas, projetos e


benefícios da assistência social que visa a prevenir situações de
vulnerabilidade e risco social por meio do desenvolvimento de
potencialidades e aquisições e do fortalecimento de vínculos
familiares e comunitários;
II - proteção social especial: conjunto de serviços, programas e
projetos que tem por objetivo contribuir para a reconstrução de
vínculos familiares e comunitários, a defesa de direito, o
fortalecimento das potencialidades e aquisições e a proteção de
famílias e indivíduos para o enfrentamento das situações de violação
de direitos.
O Art. 6º-B define que as proteções sociais básica e especial serão
ofertadas pela rede socioassistencial, de forma integrada, diretamente
pelos entes públicos e/ou pelas entidades e organizações de
assistência social vinculadas ao Suas, respeitadas as especificidades de
cada ação.
O Art. 6º-C estabelece que as proteções sociais, básica e especial,
serão ofertadas precipuamente no Centro de Referência de
Assistência Social (Cras) e no Centro de Referência Especializado de
Assistência Social (Creas), respectivamente, e pelas entidades sem fins
lucrativos de assistência social.

51
A Figura 07 apresenta de forma esquemática a Proteção Social
Básica (PSB) e a Proteção Social Especial (PSE) de Média Complexidade
e Alta Complexidade.

Figura 07 – As formas de proteção Social no SUAS

Fonte: Brasil, 2005.

A Proteção Social Especial de Média Complexidade é para o


atendimento especializado a famílias e indivíduos que vivenciam
situações de vulnerabilidade, com direitos violados, mas cujos vínculos
familiar e comunitário não foram rompidos. A Proteção Social Especial
de Alta Complexidade é para o atendimento de famílias e indivíduos
que se encontram em situação de abandono, ameaça ou violação de
direitos, necessitando de acolhimento provisório, fora de seu núcleo
familiar de origem. O Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS,
2009) aprovou a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais,
organizados pelos níveis de complexidades, categorizando e
detalhando cada um dos serviços de atenção.
A proteção social inclui a rede hierarquizada de serviços,
benefícios e programas, que são formas complementares de atenção.
A Lei do SUAS, no Art. 23 define os serviços socioassistenciais “como
as atividades continuadas que visem à melhoria de vida da população
e cujas ações, voltadas para as necessidades básicas”.

52
O Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (Paif)
foi instituído no Art. 24-A da Lei do SUAS, integrando a proteção social
básica e consiste na oferta de ações e serviços socioassistenciais de
prestação continuada, nos CRAS, por meio do trabalho social com
famílias em situação de vulnerabilidade social, com o objetivo de
prevenir o rompimento dos vínculos familiares e a violência no âmbito
de suas relações, garantindo o direito à convivência familiar e
comunitária.
O Art. 24-B institui o Serviço de Proteção e Atendimento
Especializado a Famílias e Indivíduos (Paefi), que integra a proteção
social especial e consiste no apoio, orientação e acompanhamento a
famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos,
articulando os serviços socioassistenciais com as diversas políticas
públicas e com órgãos do sistema de garantia de direitos.
O benefício de prestação continuada é a garantia de um
salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65
(sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de
prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família,
previsto no Art. 20. Os benefícios podem ser eventuais, e consistem
em provisões suplementares e provisórias destinadas “aos cidadãos e às
famílias em virtude de nascimento, morte, situações de vulnerabilidade
temporária e de calamidade pública”, conforme Art. 22.
E o Art. 24 define que os programas de assistência social
“compreendem ações integradas e complementares com objetivos,
tempo e área de abrangência definidos para qualificar, incentivar e
melhorar os benefícios e os serviços assistenciais”.
O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), de
caráter intersetorial, integrante da Política Nacional de Assistência
Social, que, no âmbito do Suas, compreende transferências de renda,
trabalho social com famílias e oferta de serviços socioeducativos para
crianças e adolescentes que se encontrem em situação de trabalho foi
instituído no Art. 24-C da Lei do SUAS.
Em 27 de novembro de 2009, foi sancionada a Lei 12.101, que
dispõe sobre a certificação das entidades beneficentes de assistência

53
social; regula os procedimentos de isenção de contribuições para a
seguridade social e dá outras providências. Esta legislação, junto com a
tipificação dos serviços de assistência social, está produzindo um
reordenamento no setor, possibilitando a formatação da política na
forma de sistema único de fato, superando a multiplicidade de
serviços e programas existentes até recentemente, típica da forma
como a assistência social se constituiu no Brasil.
A política de assistência social, na perspectiva da
universalidade, não é mais exclusiva para aqueles considerados
inaptos para o trabalho, mas inclui aqueles em situação de
desemprego, subemprego e sob precárias condições de trabalho
(COUTO, 2010). As vulnerabilidades sociais estão postas a muitos
extratos sociais, pois o padrão de desigualdade social brasileiro não se
alterou, apesar dos índices de melhora na empregabilidade e no
aumento de renda na população em geral, ainda está presente o
desafio da justiça social para todos.

Políticas sobre drogas

Inicialmente é importante o registro de que se consideram os


direitos humanos como a matriz ética orientadora do marco legal e
estratégico das políticas sobre drogas. “Os direitos humanos integram
direitos e valores universais, nenhuma pessoa pode ser excluída desse
respeito, e toda exclusão social é negação do humano” (DALLARI,
2000, p. 24).
O horizonte é o do respeito aos direitos dos homens e
mulheres, com universalização do acesso a bens e serviços, tendo a
liberdade como valor central nos seus corolários de autonomia e
emancipação dos indivíduos sociais.
A abordagem sobre o marco legal e das políticas públicas sobre
as drogas no país é muito dinâmico e controverso, considerando o
intenso debate na sociedade sobre o tema. O objetivo neste tópico é
apresentar suscintamente o que de significativo foi produzido como

54
referência na área, de modo a possibilitar uma informação deste
arcabouço e contribuir em estudos subsequentes.
O Ministério da Saúde lança em 2002 o Programa Nacional de
Atenção Comunitária Integrada aos usuários álcool/outras drogas que
é um marco no período para a construção de uma política específica
para esse campo da saúde mental. A política específica vai ser
consolidada em 2004, com o lançamento da Política de Atenção
Integral ao Usuário de Álcool e outras Drogas.
A Intersetorialidade é um dos aspectos relevantes desta
Política, visto que: O impacto de políticas públicas coordenadas
setorialmente é visível e vem se impondo para todas as áreas sociais
de governo; O uso de álcool e outras drogas é um tema transversal a
outras áreas - da justiça, da educação, social e de desenvolvimento;
Requer uma intensa capilaridade para a execução de uma política de
atenção integral ao consumidor de álcool e outras drogas; As
articulações com a sociedade civil, movimentos sindicais, associações
e organizações comunitárias e universidades são fundamentais para a
elaboração de planos estratégicos ampliando-se significativamente a
cobertura das ações dirigidas a populações de difícil acesso (BRASIL,
2004).
A Política Nacional de Promoção da Saúde (BRASIL, 2006)
aborda a relevância da redução da morbimortalidade em decorrência
do uso abusivo de álcool e outras drogas, indicando um conjunto de
iniciativas a serem realizadas pelo poder público, como: I –
Investimento em ações educativas e sensibilizadoras para crianças e
adolescentes quanto ao uso abusivo de álcool e suas consequências; II
– Produzir e distribuir material educativo para orientar e sensibilizar a
população sobre os malefícios do uso abusivo do álcool; III – Promover
campanhas municipais em interação com as agências de trânsito no
alerta quanto às consequências da direção alcoolizada; IV –
Desenvolvimento de iniciativas de redução de danos pelo consumo de
álcool e outras drogas que envolvam a corresponsabilização e
autonomia da população; V – Investimento no aumento de
informações veiculadas pela mídia quanto aos riscos e danos

55
envolvidos na associação entre o uso abusivo de álcool e outras drogas
e acidentes/violências; e VI – Apoio à restrição de acesso a bebidas
alcoólicas de acordo com o perfil epidemiológico de dado território,
protegendo segmentos vulneráveis e priorizando situações de
violência e danos sociais.
Em 2005 o Presidente do Conselho Nacional Antidrogas –
CONAD, aprova e o Presidente do Brasil sanciona a Política Nacional
de Drogas que

(...) avança ao enfatizar a prevenção ao uso


indevido de drogas e o tratamento humanizado à
pessoa que faz um uso abusivo de drogas, em um
movimento de afastamento da repressão como
central, reconhecendo a redução de danos
enquanto uma estratégia para intervenção em
relação às drogas (MACHADO, 2013, p.69).

No âmbito legislativo, a Lei Federal nº 11.343 de 23 de agosto


de 2006 institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas
– Sisnad; Prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção
e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; Estabelece
normas par repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de
drogas. Posteriormente o Decreto nº 5.912, de 27 de setembro de
2006regulamenta a referida Lei.
O Decreto nº 6.117 de 22 de maio de 2007 aprovou a Política
Nacional sobre Álcool e Outras Drogas que dispõe sobre as medidas
para redução do uso indevido de álcool e sua associação com a
violência e a criminalidade. As principais medidas para reduzir e
prevenir danos à saúde: Propaganda de bebida alcoólica:
regulamentação, monitoramento e fiscalização; Campanhas de
informação e sensibilização quanto às consequências do uso indevido
de bebidas alcoólicas; Redução da demanda de álcool por populações
vulneráveis: fiscalização do ECA, populações indígenas,
escolas/universidades; Álcool e trânsito; Capacitação profissionais

56
rede básica saúde e da segurança pública; Fiscalização de
estabelecimentos diversão/lazer.
O Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e
Prevenção em Álcool e outras drogas (PEAD 2009-2011), foi aprovado
em Reunião da Comissão Intergestores Tripartite do SUS em maio de
2009, com os objetivos de: 1) Ampliar o acesso ao tratamento e à
prevenção em álcool e outras drogas no Sistema Único de Saúde
(SUS); 2) Diversificar as ações orientadas para a prevenção, promoção
da saúde, tratamento e redução dos riscos e danos, e 3) Construir
respostas intersetoriais efetivas, sensíveis ao ambiente cultural, aos
direitos humanos e à complexidade desta clínica.
O Decreto n.º 7179, de 20 de 05 de 2010 instituiu o Plano
Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, com vistas à
prevenção do uso, ao tratamento e à reinserção social de usuários e
ao enfrentamento do tráfico de crack e outras drogas ilícitas. A
prevenção é direcionada a educação e informações sobre drogas,
visando ampliar a rede de assistência ao dependente e autoridade no
enfrentamento ao tráfico.
Na IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial,
2010, os delegados participantes examinaram a política sobre drogas
no país e deliberaram sobre o conjunto de princípios que devem
orientar a ação do Estado, e destacam-se aqueles referentes à
imprescindível articulação entre as políticas sociais.
Deliberação 183:

Assegurar que as políticas públicas sejam


elaboradas integralmente, prevendo ações e
financiamento intersetorial, em especial nos
campos da infância e adolescência, no que se refere
à violência doméstica, exploração sexual, uso de
álcool e outras drogas, moradores e em situação de
rua, em cumprimento de medidas socioeducativas
e em situação de risco, seguindo a Política Nacional
para cada área.

57
Quanto a princípios e diretrizes gerais, a Deliberação 485
enfatiza que o enfrentamento da problemática do uso e abuso de
álcool e outras drogas requer a implantação e o desenvolvimento, nos
três níveis de atenção, de políticas públicas intersetoriais, em
consonância com as diretrizes da reforma psiquiátrica, do Sistema
Único de Saúde (SUS), Sistema Único de Assistência Social (SUAS), do
Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) e do Programa de
Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas.
Do mesmo modo a Deliberação 486 enfatiza que é necessário
se estabelecer, efetivamente, a estratégia de redução de danos como
política pública de saúde; e expandir, em todo território nacional, a
rede de cuidados em saúde mental para os usuários de álcool e outras
drogas, garantindo de forma irrestrita o direito à saúde e a uma
melhor qualidade de vida (BRASIL, 2010b).
O mais recente ordenamento da política pública sobre drogas é
a Portaria do Ministério da Saúde nº 3.0887, de 23 de dezembro de
2011, que institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com
sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do
uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de
Saúde.
Os objetivos, conforme artigo 3º são de I - Ampliar o acesso à
atenção psicossocial da população em geral; II - Promover a vinculação
das pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes
do uso de crack, álcool e outras drogas e suas famílias aos pontos de
atenção; e III - Garantir a articulação e integração dos pontos de
atenção das redes de saúde no território, qualificando o cuidado por
meio do acolhimento, do acompanhamento contínuo e da atenção às
urgências.
O art. 5º da Portaria elenca os componentes da Rede: I -
Atenção Básica em Saúde; II - Atenção Psicossocial Especializada; III -
Atenção de Urgência e Emergência; IV - Atenção Residencial de

7
A Portaria na sua íntegra está disponível no sítio:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html

58
Caráter Transitório; V - Atenção Hospitalar; VI - Estratégias de
Desinstitucionalização; e VI - Reabilitação Psicossocial.
No ponto de atenção da Atenção Básica em Saúde, é
institucionalizado um dispositivo relevante para abordagem e cuidado
a pessoas em situação de rua com problemas decorrentes do uso de
drogas e as mais diversas vulnerabilidades sociais, as Equipes de
Consultório na Rua, cujas diretrizes de organização e funcionamento
estão regradas pela Portaria do Ministério da Saúde nº 122, de 25 de
janeiro de 2011. Já a Portaria nº 121, de 25 de janeiro de 2012, institui
a Unidade de Acolhimento para pessoas com necessidades
decorrentes do uso de Crack, Álcool e Outras Drogas (Unidade de
Acolhimento), no componente de atenção residencial de caráter
transitório da Rede de Atenção Psicossocial.
Estes são alguns destaques orientadores para a elaboração e
execução de políticas de atenção às pessoas com problemas
decorrentes do uso de álcool e outras drogas, tema complexo e que
requer a intersetorialidade como patamar imprescindível na sua
realização.

O desafio da intersetorialidade

Contemporaneamente o campo de conhecimento da gestão de


políticas públicas tem constatado que a intersetorialidade é um fator
preponderante para a efetivação de serviços e programas à
população. A natureza das necessidades humanas e sociais tem em si
complexidade relevante que não podem ser atendidas na perspectiva
da setorialidade. Do mesmo modo, a integralidade é um princípio
fundamental das políticas de saúde e de assistência social, políticas
sociais aqui analisadas, requerendo uma ação articulada das políticas
públicas.
A integralidade se expressa na Assistência Social por meio das
Seguranças Socioassistenciais: atenção básica, média e alta
complexidade. E na Saúde, é um dos princípios doutrinários da política
do Estado brasileiro através do SUS para conjugar as ações

59
direcionadas à materialização da saúde como direito e como serviço à
população. Mas a forte setorialidade dos Sistemas Únicos de Saúde e
de Assistência Social repercute na efetividade de suas ações de
proteção social, e no caso de políticas sobre drogas, torna-se
imperiosa a intersetorialidade.
Um conceito de intersetorialidade apropriado para este debate
é o que o considera

(...) um princípio de gestão das políticas sociais que


privilegia a integração das políticas em sua
elaboração, execução, monitoramento e avaliação.
Busca superar a fragmentação das políticas,
respeitando as especificidades de cada área
(SAMPAIO, 2009).

A gestão em políticas públicas tem o papel de ser a


protagonista nos esforços de ações intersetoriais. Aproveitando a
conceituação no setor saúde, a função gestora é um conjunto
articulado de saberes e práticas de gestão necessários para a
implementação de políticas na área, através de quatro grandes
grupos: (1) formulação de políticas e planejamento; (2) financiamento;
(3) regulação, coordenação, controle e avaliação do sistema/redes e
prestadores de serviços, (4) prestação direta de serviços (MACHADO
et al, 2009, p. 56).
Ou seja, no processo de gestão devem ser incluídas ações e
estratégias para a necessária articulação entre os setores, pois

(...) a intersetorialidade se assenta no princípio da


convergência da ação, devendo refletir uma
racionalidade interna da ação governamental. [...]
O que a move é o pacto de uma ação coletiva,
integrada para um objetivo (SPOSATI, 2006, p. 140).

As ações de atenção à saúde e assistência social, assim como as


de educação, trabalho, habitação entre outras, para a população com

60
prejuízo pelo uso de álcool e outras drogas torna mais complexa o tipo
de intersetorialidade, pois vai requer as outras esferas da sociedade.
Por isto o conceito de rede intersetorial colabora na compreensão e
formulação deste tipo de ação. Como Porto e colaboradores
expressam,

(...) as redes intersetoriais são estruturas flexíveis


que permitem a construção de canais de
comunicação e de estratégias de ação conjunta,
estabelecendo novos compromissos entre
instituições e atores sociais organizados (2003, p.
196).

Esta perspectiva alia as políticas que foram sendo gestadas na


área específica de álcool e outras drogas como a da promoção da
saúde, ficando evidenciado que a magnitude do problema em tela é
tanto do Estado como da sociedade em geral, e principalmente,
precisa ser elaborada e executada na perspectiva da
intersetorialidade.

Considerações finais

O debate realizado e a aproximação das legislações do SUS e do


SUAS revelam o elementar: apontam ações diretas aos cidadãos. A
interface é evidente, com ações que se complementam entre si.
Portanto, é requerido aos gestores, trabalhadores e prestadores de
serviços um esforço de pensar a política pública tendo como sua
centralidade os indivíduos, a população usuária e, a partir deste foco,
revisitar as normas, processos e ações para a construção de elos de
articulação. É preciso ter como direção da execução das políticas
sociais públicas a Integralidade, articulando os meios para o alcance da
maior cobertura possível de ações, com postura interdisciplinar e
ética, de modo a pautar as políticas nos direitos e na cidadania de
todos.

61
Os desafios estão postos aos profissionais, gestores e cidadãos
em modo geral para a construção de uma articulação capaz de
contribuir na elaboração de ações para a atenção integral às pessoas
com prejuízos pelo uso de álcool e outras drogas, na perspectiva de
respeito aos direitos humanos e da integralidade.
Mudanças conceituais também se fazem necessárias, pois a
perspectiva das condições agudas das doenças não é mais suficiente
para a formulação e organização de ações de cuidado, uma vez que os
problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas exigem
atenção ao longo da vida, e de práticas capazes de possibilitar a
inserção social destes indivíduos.
Outros desafios para a efetiva política pública também estão
colocados, como a permanente tensão entre um Estado garantidor de
direitos e um Estado privatista, o que determina o insuficiente
financiamento público para as necessidades da população por meio
das políticas públicas.
Por fim, a organização dos serviços de saúde e de assistência
social, assim como as demais políticas setoriais, deve ser orientada
pelo cuidado ao usuário; esta é uma máxima que vai possibilitar ações
de intersetorialidade. Para tanto, é fundamental o incentivo a
participação social no processo de decisão e gestão das políticas
públicas, com destaque ao controle social.

Referências

ANDRADE, LOM. A saúde e o dilema da intersetorialidade. São Paulo:


Hucitec, 2006.

BIELSCHOWSKI, R. Pensamento Econômico Brasileiro: o ciclo


ideológico do desenvolvimentismo. 5. ed. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2004.

62
BRASIL. Lei Complementar nº 141, de 13 de Janeiro de 2012.
Regulamenta o § 3º do art. 198 da Constituição Federal para dispor
sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União,
Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de
saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de transferências
para a saúde.

_____. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011.Regulamenta a Lei


no 8.080, 19/09/1990 - organização do SUS: planejamento da saúde, a
assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras
providências.

_____ . Ministério da Saúde. Portaria do Ministério da Saúde nº 3.088,


de 23 de dezembro de 2011. Rede de Atenção Psicossocial para
pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades
decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do
Sistema Único de Saúde.

_____. Lei Nº 12.435, de 06 de julho de 2011. Altera a Lei no 8.742, de


7 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência
Social.

_____ . Ministério da Saúde. Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de


2010.
Estabelece as diretrizes para a organização da Rede de Atenção à
Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde, 2010a.

_____ . IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial.


Relatório Final, 27/06 a 01/07 2010. Brasília, 2010b.

_____. Ministério do Desenvolvimento Social. Orientações Técnicas:


Centro de Referência de Assistência Social – CRAS. Brasília: MDS, 2009.

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69
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Capítulo III

Drogas, vamos pensar!


Samantha Torres; Daniel Dall’Igna Ecker

Frequentemente escutamos falar que uma das coisas que


diferencia o ser humano dos animais é sua capacidade de pensar e
refletir sobre si no mundo. O argumento de que os humanos são seres
racionais, por vezes, é usado como forma de colocar as pessoas em
um patamar de superioridade, quase como uma marca de poder que
distinguiria os humanos de outros animais. Por essa perspectiva, o
pensar, debater e refletir sobre os diversos aspectos da vida seria
quase como algo inerente ao que caracterizaria o ser humano. Nesse
raciocínio, pensamos: qual o significado e o objetivo de se fazerem
campanhas para não se pensar sobre determinados assuntos se o
humano, como alguns argumentam, é um ser essencialmente
racional?
Uma campanha muito difundida nos últimos anos elaborada
por uma grande mídia tinha como slogan a expressão “Crack, nem
Pensar!” (GRUPO RBS, 2009). Entende-se que nesse slogan o que se
trata não é necessariamente o ‘nem pensar’ do pensamento, mas o
‘nem pensar’ no sentido de não experimentar, de manter afastado o
sujeito do objeto considerado droga – o crack. Porém esse ‘nem
pensar’, no sentido de estimulo a repulsa, traz um interdito ao
pensamento pois, além de tratar como óbvio a ideia de que não se
pode experimentar ou usar a substância como se a mesma fosse por si
só um grande malefício, estigmatiza no crack o discurso da interdição.
Com essa campanha, entendemos que houve uma construção de um

71
tabu em cima da substância, no sentido das pessoas falarem do crack
apenas como algo que precisa ser evitado e repulsado. Como grande
parte dos tabus, oculta-se algo que está presente no cotidiano
humano, tendo o interdito do pensamento como estratégia para que
esse cotidiano não seja colocado em análise.
Compreendemos que, se existe um fenômeno acontecendo na
sociedade, distante de tentarmos anular sua existência acobertando-o
com discursos morais sob o argumento do perigo ou da impureza, é
preciso refletir sobre ele: tentar compreender o porquê do surgimento
do fenômeno, o que ele significa e ao que ele vem dar conta em uma
determinada conjuntura político-social. Exemplificamos a estratégia
de censura com o discurso sobre o uso do Crack mas, dentre os
desafios presentes no campo da Redução de Danos, poderiam ser
diversas outras situações citadas que envolvem padrões morais,
convenções sociais, religiosas ou culturais em torno do uso de
substâncias químicas.
Frente a essas diversas fontes de interdição no campo do uso
de drogas propomos, neste texto, trazer para discussão o tema sem o
uso da censura como estratégia de anular algo que faz parte do
cotidiano humano: Drogas, vamos pensar!
Para guiar nosso pensamento na escrita, partimos das
seguintes indagações: quais são as condições para que emerja o
fenômeno do uso de drogas no meio social? Afinal, o que são drogas?
De onde surge o termo e exatamente ao que ele se designa? O que
significa o uso de substâncias químicas para os sujeitos e para o meio
social?
Trazer para reflexão a problemática discursiva que envolve o
tema das drogas, não significa com isso, que se está defendendo o uso
indiscriminado de drogas e que todos os usos ‘são bons’, ‘legais’ e
devem ser aceitos. A reflexão busca, na verdade, o entendimento da
complexidade que envolve o tema do uso de substâncias, sem cair em
dicotomias simplistas do ‘certo’ e ‘errado’ que negam a complexidade
do tema e, por vezes, produzem profissionais nos serviços que atuam
de forma moralizante e superficial. É importante analisar o uso de

72
substâncias em seus múltiplos determinantes e não em simplórios
julgamentos morais.
Infelizmente, grande parte das campanhas sobre o uso de
drogas ainda mantêm como lente de entendimento o moralismo. É a
esse tipo de campanha, estudos e demandas, que não podemos
responder mecanicamente como se fossem óbvias, claras e ‘verdades
absolutas’. Quando falamos de seres humanos, e o discurso sobre a
gestão deles aparece sob argumentos muito claros, óbvios e lógicos, é
preciso um pouco de desconfiança. Antes de mais nada, é necessário
entendermos que o ser humano é algo complexo, por vezes não
lógico, que vive em determinada cultura e tempo histórico. Existem
valores na contemporaneidade, que nem sempre foram assim e nem
sempre serão. Reconhecendo que as realidades mudam no decorrer
do tempo, torna-se inviável e falso a tentativa de estabelecer verdades
absolutas sobre os humanos. Que outros modos de analisar e se
relacionar com o fenômeno do uso de substâncias
existiram/existem/existirão? Há apenas um caminho na prática do
trabalho com usuários de drogas?
Pensamos que toda a trabalhadora e trabalhador, seja de
serviço público ou privado, deveria desconfiar um pouco mais dos
objetivos e resultados que seu trabalho lhe impõe. Afinal, ‘para o quê’
e ‘para quem’ estão sendo convocadas respostas sobre o
comportamento humano? Através de nossa prática, percebemos que
muitos profissionais partem de certas verdades impostas pelas
políticas, ou por suas próprias perspectivas de vida, para executarem
suas tarefas sem ao menos desconfiar de onde surgem tais verdades e
ao que elas vem dar conta. O risco de se atuar em cima de verdades
dadas a priori, sem ao menos coloca-las em análise, é acabar servindo
como ferramenta não pensante da máquina de tabus que,
infelizmente, ainda sustenta nosso social. Construída em cima de
profundas desigualdades e injustiças, essa maquinaria reflete um
sistema social que é permeado por práticas humanas perversas, que
propulsiona a alavanca das injustiças, travestindo-se em ‘boas ideias’,
práticas de ‘prevenção’ ou como ações ‘corretos e óbvias’.

73
Como dispositivo para embasar essa reflexão, trazemos um
levantamento de conceitos sobre drogas que foram obtidos em um
curso sobre o tema, oferecido a profissionais de serviços públicos,
como forma de introduzir as aulas do dia. A proposta deste
levantamento era compreender o que cada um dos
profissionais entendia por ‘droga’ e que tipo de drogas ‘cada um ali já
havia feito uso, ou mantinha fazendo’. No total, foram 25 profissionais
que responderam esse levantamento de forma anônima em uma folha
em branco. Os resultados foram muito diversos e, a partir deles, foi
possível fazer rodas de debates com reflexões sobre o tema,
estimulando o pensar sobre as drogas!
Pela nossa experiência com as atividades da Rede
Multicêntrica, de forma geral, quando as pessoas vão fazer um curso
que tem como tema as drogas elas já partem de certas ideias sobre o
assunto, pois a própria palavra drogas incita em cada uma delas um
pensamento, valorações e uma série de estereótipos e repetições
sociais. Não há como negar que, na conjuntura social atual,
potencializada por veiculações da mídia, a ideia sobre drogas ainda é
difundida como algo negativo, que precisa ser censurado, e que é
colocada no patamar dos problemas sociais graves. Então, quando
falamos de drogas com os serviços, já estamos partindo de uma
narrativa construída historicamente que vê na relação do ser humano
com as substâncias uma série de estereótipos e fabricações discursivas
(GOMIDE, 2010).
Porém, o uso de substâncias sempre foi algo problemático? Em
todas as sociedade o uso de substâncias é considerado algo
problemático? Por que algumas substâncias são criminalizadas e
outras não? Que interesses existem em criminalizar algumas
substâncias e outras não? O uso do álcool, por exemplo, como discute
Guareschi et al. (2015) já foi considerado uma das causas da
criminalidade, do caos social e, inclusive, da loucura. Segundo as
autoras, era recorrente na década de 1930 discursos que situavam o
álcool como futura epidemia social, semelhante a tuberculose e a
varíola. O álcool já fora colocado como ameaça ao processo

74
civilizatório, sendo situado como “[…] o principal responsável pelo
pauperismo, pelo abandono do lar, pela immoralidade, pela vadiagem,
pelo crime e depravação social” (GUARESCHI et al. apud PENNA, 1929,
nº12: 2-3).
Interessante verificar como os discursos sobre o uso de drogas
se transforma ao longo do anos e, provavelmente, nem fosse possível
pensar naquela época que o álcool seria uma substância tão
consumida mundialmente, alvo de grandes publicidades e central
produto na movimentação econômica do país. O exercício de
questionar termos, pensando sobre a palavra ‘drogas’, permite a
desestabilização das noções de sujeitos, modos de ser e estar no
mundo que vem diretamente colados ao seu discurso. O próprio
termo drogas fora cunhado tendo como origem a palavra drogg,
proveniente do holandês antigo, cujo significado é folha seca. Esta
denominação é devido ao fato de que, antigamente, quase todos os
medicamentos utilizavam vegetais em sua composição (GÓIS;
AMARAL, 2016). Inicialmente, então, a palavra droga não era
entendida como hoje comumente se compreende. De certa forma, até
hoje o termo drogas não se refere ao uso dependente de uma
substância. Os medicamentos vendidos em farmácias também são
drogas e, tanto é assim, que muitas farmácias são chamadas de
drogarias.
A variabilidade de possibilidades de entender o termo ‘droga’
evidencia-se na lista de substâncias que foi formulada junto ao
profissionais envolvidos nas atividades do curso da Rede
Multicêntrica. Não havia limite para a citação de itens, então alguns
colocaram mais de uma substância. O número ao lado esquerdo da
substância se refere a quantidade de profissionais que a citaram. A
pergunta era: que drogas você usa ou já fez uso?

75
Drogas Usadas

23 - Álcool 01 - Facebook 01 - Anti-inflamatório


16 – Cigarro 01 - Solvente 01 - Paracetamol
14 – Medicamentos 01 - Refrigerante 01 - Antibiótico
12 - Maconha 01 - Revista Veja 01 - Trabalho
11 - Café 01 - Gordura 01 - Moderador de apetite
05 – Chocolate 01 - Compras 01 - Religião (fanatismo)
04 – Antidepressivos 01 - Sexo 01 - Consumismo
03 - Chimarrão 01 - Cocaína 01 - Excessos
03 – Ansiolíticos 01 - Sal 01 - Aprisionamentos
03 – Açúcar 01 - Analgésicos 01 – Celular
02 – Coca-Cola 01 - Relaxante Muscular 01 - Comida
02 – LSD

É interessante notar que dos 25 profissionais do serviço público


23 deles citaram que fazem ou já fizeram uso do álcool. O álcool,
apesar de ser uma droga lícita, é comprovadamente, através de
estudos, 114 vezes mais letal que a maconha (LACHENMEIER, REHM,
2015). Porém, o álcool está aí nas ruas, nas festas, nos encontros,
sendo vendido e usado publicamente, sem restrições. Contudo, nesse
mesmo estudo, os autores fazem uma discussão a respeito das
metodologias usadas para avaliar os riscos de cada substância no
organismo. Eles apontam algumas problemáticas e limitações das
metodologias da pesquisa cientifica no campo das substâncias
químicas.
De acordo com os autores (LACHENMEIER, REHM, 2015), de
forma geral, os estudos são feitos em animais em um ambiente muito
diferente da condição em que vive os seres humanos com suas
relações. Quando levamos em conta a vida humana é preciso pensar
sobre a multiplicidade de modos de existências, nesse sentido, o risco
do uso de drogas é extremamente variável, sendo difícil ter resultados
precisos em termos de efeitos gerais do uso de drogas para população
geral. Os estudos acabam tendo resultados generalizantes que, na
maioria das vezes, subestimam ou superestimam o efeito de alguma
droga. Exemplo disso é a maconha, que durante muito tempo foi

76
colocada no patamar das drogas nocivas e atualmente tem sido
apresentada como uma das substâncias que tem menor nível de
toxidade, sendo inclusive utilizada de forma terapêutica para
determinadas doenças.
Grande parte dos danos do uso de drogas não está relacionada
ao consumo, mas é fortemente influenciada pelas condições
ambientais do uso, pelo uso concomitante com outras substâncias
químicas, e esse risco adicional não está incluído na análise de drogas
com base em toxicologia animal. Exemplo muito frequente disso, a
partir de nossa experiência com usuários de drogas, se refere a
diferença do uso da mesma substância em classes sociais divergentes.
Por vezes, a falta de infraestrutura econômica acarretará em grandes
danos a um usuário de drogas de classe popular, quando um usuário
da mesma droga de classe média pouco se afetará. Ter uma má
alimentação, precário acesso a higiene, má qualidade de sono (devido
a uma infraestrutura precária ou o a um contexto social hostil),
excessiva carga horária de trabalho e não ter acesso aos Direitos
Sociais previstos em Constituição Federal (lazer, transporte, educação,
saúde, etc.) influenciará na precarização da vida do usuário pela
potencialização dos efeitos danosos da substância.
Essa variabilidade de reações frente ao uso de drogas nos
fazem questionar seriamente o que, de fato, se define por drogas.
Definimos por droga uma substância devido a algum tipo de efeito que
ela nos causa? Drogas seriam tudo aquilo que consumimos que nos
trazem malefícios? E o que de fato criminalizamos, levando em conta
que diversas classes sociais faz uso, mas de forma geral, apenas uma
classe mais desfavorável acaba sendo punida?
Os conceitos relatados pelos profissionais na atividade para
pensar sobre o que são drogas nos ajudam a ampliar a análise sobre
essa questão. Para isso, através das 25 respostas, criamos 5 grandes
temas que permearam a discussão naquele encontro, são elas: 1)
Drogas e Saúdes; 2) Drogas e Efeitos; 3) Drogas e Materialidades; 4)
Drogas e Seres Humanos e 5) Drogas e Conceitos.

77
1) Drogas e Saúdes

Drogas como algo que faz mal ao organismo


Droga como algo prejudicial à saúde
Droga como algo que precisa de tratamento
Droga como algo que leva a dependência e ao vício
Droga como algo que toma o lugar na vida das pessoas aprisionando-as

Será que realmente as drogas fazem mal para o organismo? O


que de fato faz mal ao organismo? Vamos pensar um exemplo: Uma
pessoa fuma um baseado, ou toma um copo de cerveja, já outra
pessoa, toma de uma só vez, 5 litros de água. Quem vai ter o
organismo prejudicado? A droga é algo que nos leva necessariamente
à dependência? Toda pessoa que bebe um copo de vinho é um
dependente? Toda pessoa que cheira cocaína é um dependente?
A dependência pode ser uma forma de se relacionar com as
drogas, mas não é a única. Não é a substância que aprisiona, mas a
forma como a pessoa se relaciona com a substância que a coloca, ou
não, num aprisionamento. As drogas em si não fazem,
necessariamente, mal ao organismo, já que o que causa mal estar ao
organismo depende da forma como os sujeitos introduzem a droga no
seu cotidiano. Se a droga for introduzida na vida como elemento
principal da existência, provavelmente é uma existência-droga que
será produzida na vida do sujeito. E isso não se refere apenas ao
consumo de substâncias químicas, pois tudo aquilo que se torna única
fonte de significação da existência para alguém (seja pela religião,
sexo, consumo, política, esporte, etc.) pode reduzir o sujeito a uma
unicidade pessoa-objeto.
O risco desse modo de existência pautado em apenas um
modo de ser é a limitação das possibilidades da vida que o sujeito
passa a impor no seu cotidiano. Circular sempre nos mesmo lugares,
se relacionar sempre com as mesmas pessoas, viver preso em circuitos
pré-estabelecidos por aquele objeto que consome. Um exemplo
frequente disso, é em relação a aqueles usuários que anteriormente
tinham o consumo de alguma substancia química como centralidade

78
em suas vidas e, como estratégia de cura, são apresentados a religião
e essa nova religião torna-se centralidade na vida do sujeito. O sujeito
deixa de ser um fanático pela droga para se tornar um fanático pela
religião.
O uso por si só de substancias químicas não necessariamente
torna um sujeito dependente. E esse argumento se torna evidente
quando percebemos que grande parte dos profissionais que
responderam à enquete já utilizaram algum tipo de substância: LSD,
cocaína, maconha, álcool, cigarro, dentre outras. Podemos dizer que
todos esses profissionais são dependentes porque em algum dia de
suas vidas já fizeram ou fazem uso de alguma substância considerada
droga? Por esse uso eles, necessariamente, teriam problemas de
saúde e precisariam ser tratados como viciados?
Por que algumas pessoas ficam dependentes e outras não? Por
que algumas pessoas ficam dependentes de uma relação afetiva, do
trabalho, da comida, da ginástica, por exemplo, e outras não? Quando
pensamos a dependência de forma ampla mais podemos ver que ela
se trata de uma relação. Relação que um ser humano estabelece com
as coisas ou com pessoas. Neste sentido, a droga em si não leva
ninguém à dependência. Ninguém usa crack uma única vez e torna-se
imediatamente dependente. Aliás, é justamente essa ideia – a da
inevitabilidade da dependência fatal e imediata do crack - muito
difundida em campanhas midiáticas, o que causa muitas dificuldades
no tratamento com as pessoas usuárias dessa substância. Elas passam
a acreditar que, por terem consumido apenas uma vez, estariam
“perdidas” (SIC)8 e por isso “não conseguem mais deixar o seu vício”
(SIC). As campanhas, nessa perspectiva, fazem um desfavor social ao
transmitir esse discurso que estereotipa os sujeitos e os impossibilita
de pensar sobre as drogas e o uso delas na constituição de sua saúde.

8
Relatos frequentes de usuários de crack, mesmo em casos em que o uso fora
esporádico.

79
2) Drogas e Efeitos

Droga como algo que altera nosso funcionamento psíquico ou físico


Droga como algo que nos aciona o prazer
Droga como algo que substitui uma frustração, insegurança
Droga como algo que modifica nossa emoções
Droga como substâncias que provocam sensações

Sim, as drogas provocam sensações e modificam nossas


emoções, assim como qualquer coisa na vida pode nos provocar
sensações e alterar nossas emoções e comportamentos. Porém, nem
sempre o uso de uma substâncias altera emoções e comportamentos.
Muitas vezes vemos uma pessoa usar uma substância e não sentir
absolutamente nada, e nem haver nenhuma mudança, seja física,
psíquica ou emocional. Ao falar de estados alterados temos que
pensar antes: alterados a partir de quais parâmetros de normalidade?
Muitas pessoas quando escutam música sentem muitas
emoções ao ponto te terem significativamente seu comportamento
alterado. E, tanto isso é verdade, que as academias de ginástica
utilizam músicas com ritmos fortes como forma de dar ânimo e
estimular as pessoas a melhorar o desempenho nos exercícios
(RODRIGUES; COELHO FILHO, 2012). Assim como também muitas
religiões se utilizam de ritmos musicais e até de alterações na voz
chegando a gritos, para induzir as pessoas a um estado de transe.
Podemos, então, dizer que músicas e ondas sonoras são drogas?
Podemos falar que uma festa - momento em que as pessoas muitas
vezes mudam o comportamento pelo uso da música – seria um ritual
para uso dessa “droga” sonora? Podemos pensar que diversos rituais
religiosos – em que nitidamente as pessoas estão alteradas - são
espaços de uso de drogas? E, revertendo a questão: existiriam usos de
algo na vida que não influenciariam em nosso funcionamento psíquico
e físico? Vamos proibir todos de comerem, fazer sexo e compras
apenas porque algumas pessoas fazem uso disso de forma compulsiva
e negativa?

80
Outro ponto importante para pensarmos sobre o que são
drogas e efeitos se refere a tendência que temos em desenvolver um
olhar sobre o usuário muito focado para a questão do uso de drogas e
perdemos de vista outras contingências de sua vida. Para muitos
profissionais dos serviços o objetivo final de um atendimento seria
levar o usuário à abstinência mas, essa ação nega, por vezes, que esse
uso existe para dar conta de outras demandas da vida daquele sujeito.
Vamos pensar dois exemplos. Um desses exemplos foi contado
a partir da experiência de um Redutor de Danos que trabalhava com a
população de rua. Nele, a equipe se deparou com o caso de uma
adolescente de 13 anos que tinha um uso prolongado de crack. De
uma forma geral, o que se pensaria é que era preciso fazer um
tratamento no sentido de eliminar a dependência dessa adolescente.
O foco neste caso seria a droga. Porém, essa equipe ao invés de
pensar somente na questão do uso de crack, optou por ter um olhar
mais ampliado sobre a vida dessa adolescente. Em uma das conversas,
a adolescente então diz: “eu uso o crack, para poder suportar a dor de
fazer sexo” (SIC).
No caso dela a prostituição servia como estratégia de
sobrevivência, pois era de onde ela obtinha recursos para obter
alimento. O crack, nesse exemplo, era uma ferramenta que ela usava
para suportar suas condições de vida. Tirar essa ferramenta dela de
forma autoritária e abrupta poderia ter consequências negativas sobre
a forma como ela organizava sua vida. Por isso, não podemos atuar
tendo focos e objetivos a priori da realidade dos sujeitos, anterior ao
encontro e ao diálogo com cada pessoa, já que a droga possui efeitos e
funções diferentes e, por isso, demandará tratamentos singulares. É
no encontro e no diálogo que podemos construir um plano com a
pessoa dentro de suas necessidades e possibilidades. Se acreditamos
que apenas a abstinência é o caminho, vamos deixar de ver outras
questões importantes da vida dessas pessoas, e por vezes vamos
construir projetos terapêuticos que fracassarão ou podem ter
consequências negativas importantes na vida do usuário.

81
Outro caso semelhante, foi de um rapaz que relatou ter feito
uso de maconha em um momento de profunda tristeza, quando ele
pensava em suicídio. A maconha, nessa situação, servia como um
efeito anestésico da realidade, permitindo um prolongamento da vida
do jovem, pela suspensão e afastamento das ideias de suicídio.
Alguém que está de fora do contexto desses exemplos pode emitir
muitos julgamentos morais pré-concebidos a partir de sua estrutura
emocional própria, porém, no cuidado com usuários de drogas, é
necessário legitimar que é o sujeito que tem conhecimento sobre sua
própria vida: só quem está passando a situação para sentir e saber o
que significa o uso de substâncias no seu cotidiano. Muitas vezes, ao
contrário do que muitos discursos hegemônicos de criminalização das
drogas tentam impor - que a droga enfraquece a pessoa -, é na droga
que muitas pessoas encontram força para resistir e sobreviver. Por
isso, enfatizamos a extrema importância de não termos uma única
visão sobre o uso de substâncias, mas sim sempre pensando sobre a
singularidade de cada uso da droga, buscando ter uma escuta
ampliada do que significa esses usos e qual a funcionalidade dele na
vida de cada pessoa.

3) Drogas e Materialidades

Drogas como substâncias químicas ou naturais


Drogas como algo concreto, visível
Drogas como um objeto que deve ser ingerido
Drogas como algo palpável, uma materialidade

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) ‘droga’ é um


nome genérico dado a todo o tipo de substância, natural ou sintética,
que ao ser introduzida no organismo provoca mudanças em suas
funções (WHO, 1992). Se droga é considerada a partir de uma
materialidade, somos convocados a deixar de lado muitos dos
exemplo presentes no relato dos profissionais sobre aquilo que eles
consideram como droga: trabalho, uso de tecnologias, religião,
consumo, etc.

82
O relato deles nos provocam a pensar sobre as drogas por uma
outra perspectiva: afinal, essas coisas não são substâncias, não
possuem uma materialidade, isso significa que não poderiam ter um
efeito inebriante e alucinógeno sobre a realidade? Por não serem um
objeto palpável, significa que não são capazes de viciar e trazer
impactos negativos na vida das pessoas?
Podemos definir as drogas como substâncias advindas da
natureza ou como substâncias criadas em laboratório, mas, ampliando
a análise sobre nossas vidas, torna-se possível pensar que essas
substâncias também podem ser produzidas pelo nosso próprio
organismo, a partir de vários setores da vida, por discursos,
pensamentos, ideias, comportamentos ou papéis sociais que
adotamos. A ideia de satisfação, como um fim almejado quando se usa
uma droga, pode ser vinculada a várias outras esferas de nossas vidas:
quando conquistamos um novo cargo de trabalho, quando atingimos
um efeito muscular depois de meses em uma academia, quando
seduzimos aquela pessoa desejada, quando obtemos uma
determinada nota na escola, quando compramos um objeto que
almejávamos... todos esses exemplos, e muitos outros, falam de um
comportamento humano em busca de algo externo a nós para atingir
a satisfação. Satisfação essa que traz prazer e também pode ter muitos
efeitos negativos.
A busca de satisfação é algo quase que inerente ao humano. A
droga pode ser uma das vias para atingir essa satisfação, mas ela não é
a única. A prática de esportes radicais, por exemplo, atua na liberação
de hormônios como forma de sentir prazer. E, por isso, muitas vezes
dizemos: “O fulano é viciado em adrenalina!”. Fazer corrida de carros
em centros urbanos também pode ser um comportamento com fim
satisfacional e perigoso para quem o faz e para o seu entorno. Neste
sentido, pensar sobre o que são drogas, contrapondo a um simplismo
da materialidade, permite-nos refletir que é a relação que o ser
humano estabelece com a sua satisfação que poderá, ou não, ser
problemática para ele e seu entorno. Deveríamos proibir e criminalizar

83
o uso de automóveis já que algumas pessoas os usam como
dispositivo de satisfação?

4) Droga e Seres humanos

Droga como escape ou fuga


Droga como potencializadora ou aliviadora de sensações
Droga como mediadora de encontros sociais
Droga como algo inerente a cultura humana

A droga é uma substância inanimada, logo somos nós seres


humanos vivos, desejosos e pensantes que significamos e atuamos em
cima das substâncias. E é essa significação que vai moldar a forma
como vamos nos relacionamos com as coisas. Muitas pessoas, talvez
por tanto escutarem que droga vicia, acabam por perder a dimensão
de seu potencial de relação com as coisas, significando demais objetos
inanimados e esquecendo de seu protagonismo e responsabilidade na
forma como se relacionam elas. Substâncias estão paradas, é o ser
humano que se impulsiona sobre as mesmas. Droga é algo que nos
relacionamos. A ação sobre algo está em nós (humanos) e não nas
substâncias. Elas não nos possuem, nós as possuímos.
O debate com os profissionais na atividade para pensar o que
são drogas nos fez colocar em análise a ideia de droga como algo
contraposto ao ser humano. Droga é uma palavra relativamente atual,
cunhada a pouco tempo dentro da história humana. Sua noção como
algo pejorativo, que faz mal e precisa ser evitado, é um discurso
fabricado mais intensamente no último século. O uso de substâncias é
algo que sempre esteve presente nas culturas humanas. Esses usos
podiam se dar de forma individual (no caso de alivio de dores,
ampliação do espirito, satisfação, etc.), e tinham funções sociais, tais
como comunhão com o coletivo, ritos religiosos, festejos, etc.
(GUARESCHI et al., 2015). Até hoje isso não é diferente, tanto é que o
álcool muitas vezes é chamado de ‘lubrificante social’. Dessa forma,
não almejamos sermos hipócritas e querermos convencer você leitor
que existe uma sociedade isenta do uso de drogas como muitas

84
campanhas antidrogas discursam. As drogas não são ameaças aos
humanos, são os humanos que se utilizam delas.

5) Drogas e Conceitos

Droga um conceito múltiplo


Droga como uma palavra diversa em sentidos
Droga um conceito em constante construção
Droga como um termo indefinível

O mais interessante do levantamento que tinha como intenção


estimular o pensar sobre o que são drogas foi perceber que, mesmo
entre os profissionais das políticas públicas, não existe um único
significado sobre drogas. E o mais interessante de se refletir é que se
não existe uma única maneira de enxergar o fenômeno do uso de
substâncias, também não existe uma única maneira de lidar com esse
fenômeno. O conceito de drogas realmente é um conceito múltiplo,
por vezes indefinível ou embasado por valores morais, naturalizações
e determinismos simplistas.
Também não podemos esquecer - como foi dito anteriormente
- que os usos de substâncias sempre estiverem presentes nas culturas
humanas, e a forma como lidamos com esses usos é algo que vai se
transformando ao longo do tempo. Se hoje a cocaína é proibida, a
pouco tempo ela era usada como medicamento (GURFINKEL, 2008).
Drogas torna-se um conceito em constante transformação. A
Marijuana (nome como é chamada a maconha no país do Paquistão) é
encontrada no país em vários lugares, semelhante aos arbustos daqui.
Quando fomos buscar referências na internet sobre isso, ficamos
surpresos ao vermos fotos de lugares em que há pés de maconha
plantados em qualquer canto, sem que isso seja um problema. A
Figura 1 ilustra essa situação, é a foto de uma mulher australiana que
viveu alguns anos no Paquistão. Na foto vemos ela agachada em
frente a pés de maconha que nascem livremente perto da cidade de
Islamabad (capital do Paquistão). Contatamos alguns moradores da
cidade e pedimos informações sobre a “tal” planta da imagem. E nos

85
foi informado que a erva tem em tudo que é lugar na cidade e que,
frequentemente, as mulheres usam por seu efeito medicinal.
Ao questionarmos uma pessoa no Paquistão se ela já havia
feito uso da planta, ela respondeu que não, pois não havia tido a
doença específica em que se usaria ela. De fato, essa pessoa responde
tudo com uma certa inocência, pois a maconha não tem no sul da Ásia
o mesmo significado que tem para nós do ocidente. Essa significação
(como droga ilícita) faz parte de nossa construção cultural e denuncia
uma determinado modo de constituir uma sociedade.
Figura 1 – Planta de maconha usualmente encontrada
no Sul da Ásia em espaços públicos

Fonte: Facebook (autora não deseja ser identificada)

Uma dos moradores locais que nos respondeu essas questões


sobre a planta da foto, é uma pessoa que trabalha como policial no
país, e é interessante destacar que, mesmo nesse cargo, seu olhar
sobre a planta não tem nenhum viés criminalizador. A preocupação
em criminalizar algo na sua região está muito mais voltada para as
práticas de terrorismo do que sobre os costumes medicinais da
população. Esse exemplo nos faz visualizar os múltiplos

86
entendimentos que se tem sobre a ideia de droga enquanto conceito e
a variabilidade do impacto na constituição do social, dependendo de
como a população interpreta determinados elementos. Trazemos esse
exemplo como uma forma de estranharmos nossa cultura e aquilo que
para nós já parece naturalizado. A pessoa que nos concedeu a
entrevista de fato nem sabia o que significava aquela erva na cultura
ocidental. A ‘ignorância’ dela sobre isso escancara as construções
sociais que estão por detrás das drogas. O fato da maconha nascer lá
em diversos locais públicos não torna as pessoas paquistanesas
viciadas ou dependentes na planta, muito menos a torna causadora de
um ‘caos social’.

Considerações Nunca Finais

Ao propormos esse texto, como uma estratégia de reflexão


sobre a ideia de drogas, não tínhamos o objetivo de fazer apologia ao
uso indiscriminado de substâncias químicas ou de modo algum
levantar bandeiras e posicionamentos estanques frente aos debates
sobre o tema. Iniciamos a escrita desse capítulo, fazendo uma
provocação ao pensamento sobre algo que tantos humanos se
orgulham: serem sujeitos racionais. A racionalidade é colocada como
central na vida humana, permitindo a criação e resolução de
importantes meios de sobrevivência para a espécie, mas também
pode-se tornar uma ferramenta de censura ao próprio pensar.
Desse modo, questionamos a forma como o debate sobre
drogas ainda é envolto por muitas ações de censura e, assumindo a
falência dessa estratégia nas políticas de cuidado que tem se mostrado
eficazes, afirmamos a importância do pensar sobre as drogas como
meio para o tratamento dos usuários que fazem uso problemático,
com base na reflexão sobre o uso, responsabilização e auto-gestão de
todos os envolvidos. Acreditamos, por nossas experiências no campo,
que não cabe formular projetos terapêuticos pré-prontos: é
necessário, frente as verdades apresentadas como absolutas,
colocarmos mais interrogações do que respostas prontas. Quando

87
temos interrogações, pesquisamos mais, observamos e escutamos
mais antes de agir. Ao escutarmos, construímos algo coletivo mais
genuíno junto a aquele que nos fala. Frente ao usuário de drogas, e a
complexidade que envolve sua vida, não devemos basear nossa
prática em textos que apenas nos conduzam a agir: precisamos ser e
produzir condutores e não apoiarmos a produção de meros sujeitos
assujeitados por discursos externos a si.
Como dispositivo para embasar nossa reflexão, trouxemos um
levantamento de conceitos sobre drogas que foram obtidos em um
curso sobre o tema da Redução de Danos, oferecido à profissionais de
serviços públicos. Os resultados apontaram para uma complexidade
no campo do uso de drogas que não deve ser negada pelo pensar, mas
usada com forma de potencializar cuidados singulares. O fenômeno do
uso de substâncias é algo extremamente complexo. É preciso deslocar
o foco da substância para conseguirmos olhar para tantos outros
fatores além da droga que envolvem o fenômeno desse consumo.
Existem muitas variáveis na questão dos usos, tantas variáveis,
que o que nos sobra é analisar cada caso na sua existência. É muito
confortável vivermos com receitas que nos mostrem como devemos
proceder diante de cada situação. Isso é confortável realmente, porém
ilusório: ilusão de nossa suposta primazia de racionalidade que, pelo
próprio pensar, tenta nos ludibriar cegando-nos frente aos escapes de
nossa razão.
Nós humanos nos orgulhamos de sermos seres racionais?
Frente às drogas, sugerimos que esse orgulho deva ser mantido:
Drogas, vamos pensar! Mas, nos atrevemos a dizer que com essa
própria lógica, da razão como primazia humana, devemos ter uma
certa desconfiança. Nossos sentimentos e comportamentos, por vezes
contraditórios e complexos, provam que não somos máquinas
previsíveis. Nossa racionalidade nos engana e nos surpreende e isso
não deve ser desconsiderado quando estamos em frente de humanos,
usuários de alguma substância química, e somos convocados a
construir políticas de cuidado junto a eles. Drogas, vamos pensar, para
poder cuidar!

88
Referências

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de drogas lícitas e ilícitas e suas consequências sociais e econômicas.
Trabalho de Conclusão. Universidade Federal do Pará – UFPA, 2016.
Disponível em: http://www.progep.ufpa.br/progep/docsDSQV/ALCOO
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GOMIDE, Henrique Pinto et al. Estereótipos dos profissionais de saúde


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São Paulo, v.12, n. 1, p. 171-180, 2010. Disponível em:
http://pepsic.bvs alud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-
3687201000010001 4&lng=pt&nrm=iso

GRUPO RBS. Guerra ao crack - um talk show para mobilizar o Estado


(2009, 30 de junho). Zero Hora, p. 33. Disponível em: http://www.clic
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GUARESCHI, Neuza Maria de Fátima; LARA, Lutiane de; ECKER, Daniel


Dall'Igna. A internação compulsória como estratégia de
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GUARESCHI, Neuza Maria de Fátima; RODRIGUES, Luciana; ECKER,


Daniel Dall'Igna; MAGALHÃES, Francisca; ARGENTA, Vinícius Fretes.
Archivos rio-grandenses de medicina de 1920 a 1943: Uso do álcool e a
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monstro. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 11, n. 3, p.

89
420-436, setembro 2008. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rlpf/v11 n3/06.pdf

LACHENMEIER, Dirk W.; REHM, Jurgen. Comparative risk assessment


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PENNA, Belisario. A lucta contra o alcoolismo. Archivos rio-grandenses


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RODRIGUES, Nathália Sixel; COELHO FILHO, Carlos Alberto de Andrade.


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WHO, World Health Organization. The ICD-10 classification of mental


and behavioural disorders: clinical descriptions and diagnostic
guidelines. Geneva, World Health Organization, 1992.

90
Capítulo IV

Educação permanente e humanização no campo


da saúde coletiva voltada às pessoas que fazem
uso de álcool e outras drogas
Marta Conte, Fátima de Barros Plein, Marília Silveira

Sempre foi um desafio para as práticas de saúde aliar o âmbito


clínico de intervenção com o da saúde coletiva. O primeiro tem como
seu foco as manifestações individuais das alterações da saúde,
enquanto que o segundo efetua outro tipo de corte, tomando a
incidência e a prevalência das alterações em plano coletivo. Menos do
que contribuir para o avanço de dispositivos e instrumentos de
diagnóstico, tratamento e reabilitação, promoção e prevenção, esta
divisão entre a clínica de um lado e a saúde coletiva de outro tem
resultado em embates de saber/poder que (re) afirmam suas verdades
em campos separados e, grande parte das vezes, oponentes. Quando
seguimos esta lógica, a das binarizações, todos perdemos. Perdemos
as contribuições da experiência clínica que está voltada para as
características singulares que se expressam em cada corpo, em cada
sujeito, em cada história de vida. Perdemos as contribuições das
análises propiciadas pelo recorte da saúde coletiva que capta as
expressões de uma comunidade, de uma localidade, de um tipo de
afecção, de uma categoria social ou de gênero, de histórias que se
cruzam configurando a história em um certo momento (MS, 2004, p.
9).

91
A escrita deste texto nasceu da necessidade de se estabelecer
um intervalo entre a prática em saúde coletiva e a produção de
conhecimento que pudesse ser compartilhada entre os profissionais
que transitam no campo da saúde coletiva, na atenção às pessoas que
consomem álcool e outras drogas de forma problemática.
Esse intervalo colabora com o distanciamento necessário para
analisarmos nossas práticas em saúde por outros ângulos, produzindo
diferença e desafiando-nos a dar sustentação ao que se vem trilhando
na Rede Multicêntrica. Nesta rede articulam-se diferentes atores que
estão inseridos na 1, 2, e 18 CRS. Neste coletivo que vem se
constituindo a partir das práticas de educação que se realizam através
de quatro modalidades de curso (médicos, hospitais, SUS-SUAS nível
médio e SUS-SUAS nível superior) reconhecemos diferenças, mas
também interesses que são mútuos e que vão ao encontro do que tem
sido essencial para todos, isto é, a criação de condições favoráveis à
fala, à escuta e ao trabalho de inclusão das pessoas que consomem
álcool e outras drogas nas ações intersetoriais públicas.
Cotidianamente, na saúde coletiva, estamos às voltas com o
tema da singularidade nos processos de trabalho e de produção tanto
de educação quanto de saúde, pois os entendemos como
indissociáveis. As mudanças nas práticas profissionais que almejamos
operam-se através de diferentes políticas, estratégias, arranjos e
dispositivos. A Educação Permanente em Saúde, como uma destas
propostas, desenha-se a partir do resgate do sujeito e dos coletivos no
processo de trabalho. Neste contexto, a aprendizagem acontece de
forma distinta da educação formal, pois aquilo que andava da teoria
para a prática, passa da prática à teoria através de outros percursos
que valorizam os diferentes saberes, a cultura, os contextos
socioeconômicos e políticos, e aqui a aprendizagem no trabalho torna-
se um processo significativo ancorado na elaboração significativa da
experiência para daí produzir teorias.
Outro aspecto que ressaltamos, de início, é o tipo de relação
que se estabelece entre o usuário e o trabalhador na perspectiva da
aposta na alteridade como possibilidade da construção de uma saúde

92
coletiva acessível a todos, mas com singularidade nas respostas, uma
vez que o sujeito e os coletivos não se repetem em série.
Para delinearmos os aspectos apresentados na introdução,
situaremos alguns conceitos como sujeito, clínica ampliada, saúde e
saúde coletiva e os modos de operá-los através da mudança das
estratégias de modelo, da ampliação da clínica e das condições de
viabilidade desta perspectiva de trabalho.

O sujeito contemporâneo: que invenção é esta?

A noção de subjetividade surge na passagem do Renascimento


para a Idade Moderna, com a crise do Sujeito Moderno, que se
consuma no final do século XIX. A experiência medieval era de amparo
e constrangimento. Com a falência do mundo medieval e a abertura
do ocidente ao restante do mundo, produzem-se perdas de
referências, experiência de liberdade e a consequente condição de
desamparo. Com o declínio da figura de autoridade, o Homem fica
obrigado a escolher seus próprios caminhos e a arcar com as
consequências de suas opções. É na sociedade contemporânea que as
contradições do sujeito individual – social e coletivo se acentuam.
Muitos autores problematizaram as fronteiras entre o psíquico e o
social e a passagem entre Individual - Social e Coletivo, mas Campos
(2002) chamou a atenção para a pesquisa que sistematizou as
formulações de vários deles valorizando diferentes ângulos,
especialmente a análise dos teóricos construtivistas sócio históricos,
de Vygotski a Paulo Freire, que trabalharam com a inseparabilidade do
sujeito e do objeto, do coletivo e do individual (CAMPOS, 2002).
Trata-se de um movimento amplo, com limites imprecisos no
qual se somam inúmeros autores com concepções completamente
aplicáveis à Saúde Coletiva, como vem demonstrando os profissionais
ligados à denominada educação em saúde (VALLA, 1999;
VASCONCELOS, 1999, CAMPOS, 2002).
Em Freud (1980 a), é possível identificar uma recusa à
fragmentação contraditória das diferentes dimensões do sujeito. Entre

93
consciente e inconsciente, ele sempre trabalhou numa perspectiva
dinâmica, em que lógicas distintas estariam presentes o tempo todo. A
psicologia individual é, também, psicologia social. As relações de um
indivíduo com os pais, com os irmãos, com o objeto de seu amor, com
seu médico, na realidade, todas as relações que até o presente
constituíram o principal tema da pesquisa psicanalítica, podem
reivindicar serem consideradas como fenômenos sociais.
Ao lado de outros autores como TENÓRIO (2001), a leitura que
fazemos pressupõe uma concepção de sujeito que integra a dimensão
de sujeito do inconsciente, do sujeito da cidadania e do sujeito
psicossocial:
(...) o discurso sobre o sujeito tem vindo
acompanhado, no campo psi, de um processo de
despolitização destas mesmas práticas. No mesmo
movimento em que o sujeito é tomado como
centro (ou mesmo eventualmente descentrado)
opera-se uma dicotomização com o social que se
acredita circundá-lo (BENEVIDES, p.21).

Considerar as três dimensões do sujeito é o que mais se


aproxima do princípio da integralidade para a saúde coletiva. Cabe
aqui não confundir integralidade com totalidade, uma vez que esse é
um principio que tem como premissa um sujeito complexo e não
completo.
A concepção de clínica na saúde precisa ampliar-se, em
oposição a práticas “amesquinhadas” (TENÓRIO, 2001) e
indiscriminadas (PAULON, 2004) que reduzem o sujeito à dimensão do
biológico, do dever, da vontade e da performance. Há muitas objeções
à clínica ampliada; entre elas, a perda da especificidade quanto aos
limites de cada intervenção interdisciplinar, o risco da
homogeneização e da perda de domínio dos diferentes saberes.
No entanto, pensamos, como Tenório (2001, p. 73), que:

(...) esta expressão tem um valor estratégico: de um


lado preserva e afirma a clínica e sua tradição, de

94
outro recusa uma concepção estreita, incorporando
à preocupação clínica inúmeros elementos antes
manejados burocraticamente por serem expelidos
como “extraclínicos”.

A clínica à qual nos referimos inclui como eixos da prática, além


do sujeito, o coletivo, a cidadania e a análise institucional. Numa
prática clínico-institucional, não se escuta necessariamente um
paciente, mas escutam-se os sujeitos que emergem da intersecção
com coletivos (profissionais/gestores, comunidade, usuários, etc.),
com relações institucionais, com relações políticas, com relações
midiáticas, entre outras. Consideram-se na análise clínico-institucional
as diferentes instâncias nas quais o sujeito busca inscrição e
reconhecimento. Para este enfoque, é condição importante uma
leitura transdisciplinar da realidade, que rompa com fronteiras e
práticas fragmentadas.

Mas de que saúde falamos?

O conceito de saúde como qualidade de vida e processo social,


presente no Sistema Único de Saúde (SUS), permite vislumbrar uma
estrutura que provê as condições básicas de um relativo bem-estar e
promove um amplo desenvolvimento do potencial humano e
comunitário. Neste sentido, saúde não se resume à ausência de
doença, pois ter saúde é poder conviver com as fragilidades expressas
através de diferentes formas, entre elas as doenças, caracterizando-se
pela capacidade de enfrentar adversidades.
Nos últimos anos, o conceito de saúde vem sofrendo
modificações forjadas tanto pelo debate quanto pela urgência de uma
mudança que acompanhe o dinâmico processo de transformação
social. Partilhamos das ideias de Ceccim (1997), que propõe uma
concepção de saúde como defesa da vida que busca olhar para os
problemas como expressão de uma maneira particular de construir e
levar a vida. Para ela, as responsabilidades com a saúde afirmam-se
para além do âmbito individual, envolvendo coletivos, as práticas
95
sociais e de atenção integral. A saúde que tomamos como ponto de
partida é a que se propõe a promover a vida numa sociedade
complexa, e isto é propiciado pelos processos cooperativos, pela
formação de redes intersetoriais e pelo respeito às diferenças.
A Saúde Coletiva se situa no marco conceitual que está
fundamentado nos princípios e diretrizes do SUS e constitui-se como
campo científico consolidado pela formulação de modos de operar
que incidem no âmbito das práticas de saúde. Sustenta-se por um
campo interdisciplinar dinâmico, renovado e recomposto a partir de
uma produção teórica ousada e consistente, enfrentando diversas
interrogações e dilemas. As crises na saúde – científica, econômica e
política – lançam novos desafios para a saúde coletiva neste século XXI
(PAIM;ALMEIDA FILHO, 1998). O nascimento da ABRASCO (Associação
Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva), em 1979, consagrou,
segundo Ceccim (2001), a participação das ciências sociais e das
ciências humanas na compreensão do que realmente promove saúde
e nas chances de efetiva interferência pela qualidade do cuidado à
saúde. O autor define:

(...) assim, o campo de estudos da saúde pública


que toma em conta o estudo interdisciplinar das
ciências da saúde, das ciências sociais e das ciências
humanas passou a ser nomeado como campo da
saúde coletiva (CECCIM, 2001, p.32).

Essa retrospectiva mostra, então, como se redimensiona a


concepção de saúde via ampliação dos campos de conhecimento e de
sujeitos e coletivos que até então compunham o espectro conceitual
da mesma. Com a incorporação definitiva de outros campos de
conhecimento, a educação em saúde coletiva se abre à complexidade
da transdisciplinaridade e intersetorialidade (rompendo fronteiras
entre diferentes disciplinas e setores) e transversa objetivando a
transformação dos modos de relação e de comunicação entre os
sujeitos implicados nos processos de produção de saúde.

96
Saúde acessível ou igual para todos? Coletividade ou massa?

O SUS é uma perspectiva que nasce primeiro como utopia,


diante de uma sociedade em profunda transformação e da
necessidade urgente de reformulações em diferentes âmbitos. Na
década de 1970, importantes movimentos são encabeçados por
intelectuais, trabalhadores e líderes políticos ligados à saúde que
compartilhavam uma concepção histórica e social do processo saúde-
doença e da adoção de novos dispositivos legais e administrativos para
a organização do sistema de saúde.
Muitas mobilizações, reuniões e movimentos ocorreram com
instituições de destaque para a saúde (ABRASCO - Associação
Brasileira de Pós Graduação em Saúde Coletiva e CEBES - Centro
Brasileiro de Estudos em Saúde) resultando no reforço do movimento
sanitário. O que ficou como marco histórico para a reforma sanitária
foi a VIII Conferência Nacional de Saúde, que propôs a reforma
administrativa e a unificação das instituições e serviços de cuidados
médicos em um único Ministério da Saúde, que ficaria com a
responsabilidade pela condução e gestão de toda a política de saúde
(ROSA ; LABATE, 2005).
A construção legal do SUS é fruto de uma história que foi
coletiva e contemplou, portanto, diferenças, tensionamentos, avanços
e retrocessos. O processo de implementação foi obviamente
sustentado por atores que já tinham práticas anteriores, arraigadas
em modelos e concepções de saúde que se contrapunham, muitas
vezes, ao que se vinha construindo como desejo daquele coletivo.
O que foi primeiro desejo de muitos e para todos, transformou-
se em uma arrojada proposta de um sistema de saúde no nosso país.
Foi desse coletivo que emergiu a concepção de saúde que se queria e
foi formalizada através da Lei 8080/90 com a designação de Sistema
Único de Saúde. Os princípios e diretrizes que orientam sua
implementação são universalidade de acesso aos serviços de saúde
em todos os níveis de assistência; integralidade da assistência;
preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade

97
física e moral; igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou
privilégios de qualquer espécie; direito à informação, às pessoas
assistidas, sobre sua saúde; divulgação de informações quanto ao
potencial dos serviços de saúde e sua utilização pelo usuário;
utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a
alocação de recursos e a orientação programática; participação da
comunidade; descentralização político-administrativa, com direção
única em cada esfera de governo; integração, em nível executivo, das
ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico; conjugação dos
recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; capacidade de resolução
dos serviços em todos os níveis de assistência; e organização dos
serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins
idênticos (BRASIL, 1990).
Aqui vamos focalizar a integralidade, um dos princípios
fundantes do SUS, que tem um lugar central na atenção em saúde
pelo reconhecimento, na prática dos serviços, das várias dimensões e
necessidades dos sujeitos, a saber: educação, saúde, assistência social,
geração de renda, esporte, lazer e cultura, entre outras. Estas
necessidades e dimensões são contempladas através de várias
modalidades de serviços e áreas, diferentes níveis de complexidade e
interdisciplinaridade, visando a uma atenção integral.
Em relação às diretrizes para os serviços de saúde, construiu-se
com a clínica ampliada uma forma de operacionalizá-las, valorizando
alguns aspectos: o vínculo entendido como a humanização da relação
com o/a usuário/a, na sua singularidade, reconhecendo em cada um a
capacidade crítica de escolha da modalidade de atendimento que
melhor esteja adequado às suas necessidades. A responsabilidade
integral pela atenção aos sujeitos considera a especificidade de
crianças, adolescentes, adultos, idosos, pessoas em situação de rua e
pessoas institucionalizadas. A corresponsabilidade que envolve o
contrato de cuidados entre os profissionais e usuários, sendo que esse
contrato se caracteriza por engajar a todos e a cada um dos atores
(considerando as suas diferentes funções na rede). A cada nova

98
combinação (individual ou coletiva, terapêutica ou preventiva)
estabelecida, considera-se o engajamento do usuário no processo de
atenção à saúde, a sua história de vida, a cultura, a sua singularidade,
suas inter-relações na sociedade, reconhecendo o saber de cada um
sobre suas potencialidades e fragilidades (RIO GRANDE DO SUL, 2002).
A humanização da atenção e gestão é a responsabilização
mútua entre os serviços de saúde e a sociedade, e o estreitamento do
vínculo entre as equipes de profissionais e a população. Entre os
princípios desta política, encontram-se o protagonismo, a
corresponsabilidade e a autonomia dos sujeitos e coletivos. Atenta-se
para as responsabilidades compartilhadas em uma construção coletiva
dos processos de gerir e cuidar que logram maior efetividade quando
se afirma a autonomia de sujeitos e dos coletivos.
A constituição de redes dá contorno aos princípios e diretrizes
acima descritos ao considerar os diferentes saberes sem situar
fronteiras, permitindo fluxos, laços, responsabilidades compartilhadas,
possibilidades de trânsitos entre eles, de forma inusitada, sem a ilusão
de recuperar uma unidade perdida (GALLO, 1997). Além disso, supera
as limitações das disciplinas em favor de um diálogo entre os sistemas
teóricos que, ao mesmo tempo, rompe com os limites disciplinares
estabelecidos (BRICEÑO-LÉON, 2002). Aprender a construir
integralidade e inter (ou trans) setorialidade é um dos modos de
intervenção propostos através da Educação Permanente em Saúde e
da Clínica Ampliada, aprofundadas mais adiante.
Neste ponto, abrimos espaço para pensar como estabelecer
uma intersecção entre uma proposta que é “para todos iguais” com
uma teoria que convoca o sujeito a uma posição singular? Teoria esta
que tem como um dos eixos centrais a alteridade, o respeito à
diferença e ao desejo. E o coletivo, como significante que, em
princípio, serviu para instaurar um movimento de direitos, uma saúde
para todos como garantia de inclusão.
Cabe aqui diferenciar coletivo e massa. A palavra coletivo tem
entre seus significados “sociedade, aquilo que, mesmo estando no
singular indica um conjunto de pessoas, animais ou coisas”

99
(FERREIRA,1980). Em contrapartida, enquanto coletivo aponta para
conjunto, combinado, unido a outro, a massa aponta para um
apagamento das diferenças; trata-se de quantidade, de
indiferenciação. Com o passar das décadas, das lutas e organizações
sociais construímos, do ponto de vista legal, esse direito de todos e
caminhamos no sentido de uma construção de fato, o que pressupôs
um movimento dinâmico, com momentos de muitos tensionamentos,
estancamentos, avanços, crises, produções, melhorias,
problematizações, superações, etc.
Nesse processo em construção, em alguns momentos, as
demandas sociais em saúde foram acolhidas através de ações que não
consideraram as especificidades subjetivas que emergiam dos
coletivos, caracterizando-se como respostas massificadas. O que era
igual para todos no direito à saúde passou a ser para “todos iguais”. O
que era para ser singular passou a ser padrão. Daí não se saber o
nome, não se escutar um pedido, não se formular uma pergunta e não
se realizar um acolhimento que é sempre singular.
O profissional reiteradamente silenciado pela impessoalidade
dos procedimentos em saúde, herança de uma concepção
fragmentada, falou. Denunciou através de sintomas como
embrutecimento e/ou adoecimento, deixando no caminho dúvidas
sobre como construir uma saúde coletiva para todos, considerando
que esse todo não fosse mera soma de iguais, mas uma composição
de diferenças.
Desse processo, gradativamente, vamos construindo
estratégias para lidar com esses dois campos, a Saúde Coletiva e a
Psicanálise. Apesar do próprio Freud (1980 a) ter considerado
impossível educar, curar e governar considerava de alto valor social o
trabalho realizado por aqueles que se empenham na educação e na
gestão. Concordamos com ele sobre os desafios colocados neste
empreendimento que articula saúde, educação, trabalho e psicanálise
na gestão da saúde pública.
Entretanto, a despeito de toda construção que considera as
várias dimensões do sujeito, como situado anteriormente,

100
encontramo-nos, ainda, com o desafio de movimentar concepções
instituídas que olham para a doença, o órgão, o direito, o dever, a
classificação, o sintoma, mas nem de longe escutam um sujeito que
toma posição em um determinado laço social. Sabemos que um
sujeito interroga de um lugar original e único e que ele mesmo
desconhece.
A Saúde Coletiva, para escapar da cristalização decorrente dos
limites do positivismo e do estruturalismo, tem articulado teorias e
práticas oriundas do campo da política e da gestão com saberes e
experiências originários da psicanálise, pedagogia e análise
institucional (CAMPOS, 2002).
Nesse movimento constante de aproximar diferenças, conviver
ao mesmo tempo com o que gostaríamos, o que queremos, o que
conseguimos, o que precisamos reformular, buscamos estratégias e
alternativas para mobilizar recursos que permitam abrir vias de
escuta, espaços de criação e autoria para todos os envolvidos no
movimento de promover saúde e cuidar de si e do outro.

Mas por que a educação?

O que entendemos aqui por educação compreende uma


concepção de educação que é ao mesmo tempo estratégia, prática e
política. Tem como objetivo incidir na qualificação dos profissionais da
saúde, mobilizando recursos como protagonismo e para a gestão
participativa, criando condições para a transformação do modelo de
atenção e da formação dos futuros profissionais. Visa a uma educação
articulada com a realidade política e as necessidades sociais de saúde
da população em um território, bem como a transformação das
práticas na rede intersetorial, contribuindo, assim, com a consolidação
da reforma sanitária.
Talvez uma das possibilidades para manter esse processo
dinâmico seja através de uma educação que se aproxime da
psicanálise, do campo do sujeito/coletivo e do desejo e, ao mesmo

101
tempo, dos processos sociais que produzem sentidos quanto à saúde,
estilos de vida e existência, e subjetividades.
Em uma interlocução com a psicanálise, torna-se necessário
discutir o termo educação, pois desde sempre essa não tem sido uma
combinação possível. Como se sabe, o inconsciente não se submete a
fórmulas pedagógicas de qualquer ordem e nem é objetivo da
psicanálise comprometer-se mais que com a possibilidade de
surgimento e as condições para um sujeito manter-se
desejante. Diante disso, é preciso também revisitar brevemente o
universo conceitual que ressignifica o próprio conceito de ensinar e
aprender. Afinal, o que se ensina no ensinar a não ser a possibilidade
de desejar aprender? Pois, como escreve Freire (1999), o educador
educa a fome do desejo.
Considerando, ainda, neste mote, a ideia de que antes de
oportunizar um saber é necessário assegurar-se de que o aprendente
sente falta deste saber, e que este vem a dar-lhe uma resposta a um
problema. Ainda, sabe que, para um problema surgir, são necessárias
instigantes e exigentes experiências participativas nas quais se possa
viver prática e efetivamente os caminhos de uma indagação (PAIN,
2005, p. 24).
Assim, busca-se uma educação que promova algumas paradas
necessárias em meio ao grande volume de trabalho que a saúde
coletiva demanda, permitindo ao trabalhador que elabore sua prática,
instale o espaço, a dúvida, a incerteza, possibilite novos caminhos e
novos movimentos do desejo. Ao mesmo tempo, deve legitimar nos
coletivos (pares, usuários e comunidade) suas práticas que, muitas
vezes, são inovações e criações no trabalho e que não são
reconhecidas, necessitando um olhar externo que as ressituem. Essas
práticas não prescindem dos sujeitos para os quais são planejadas,
sendo que a inclusão do sujeito desde o planejamento, durante o seu
desenvolvimento e na avaliação (para redirecionamento das mesmas)
torna-se uma condição do trabalho em saúde.

102
A Política de Educação Permanente em Saúde

Esta proposta de educação tem respaldo na Política de


Educação Permanente em Saúde, a qual o governo federal apresenta
como uma das estratégias de implementação do SUS. Para isso, em
substituição à antiga portaria (GM/MS 1996) que regulava a política
até 2006, foi publicada a Portaria GM/MS nº 198, em agosto de 2007,
que dispõe sobre as diretrizes de implantação da política de educação
permanente em saúde no país. Essa portaria é abrangente composta
por gestores, trabalhadores em saúde, instituições formadoras e
controle social que se articulam para promover e construir mudanças
nas práticas profissionais.
O conceito de educação permanente não é novo e nem nasce
no campo da saúde, mas para esse trabalho é importante estabelecer
que a ESP/RS assumiu a proposição do Ministério da Saúde nesta
Portaria, que define educação permanente nos seguintes termos:

(...) Educação Permanente é aprendizagem no


trabalho, onde o aprender e o ensinar se
incorporam ao cotidiano das organizações e ao
trabalho. A educação permanente se baseia na
aprendizagem significativa e na possibilidade de
transformar as práticas profissionais. A educação
permanente pode ser entendida como
aprendizagem-trabalho, ou seja, ela acontece no
cotidiano das pessoas e das organizações. Ela é
feita a partir dos problemas enfrentados na
realidade e leva em consideração os
conhecimentos e as experiências que as pessoas já
têm (BRASIL, 2007).

Esse convite, feito aos profissionais de saúde, a falar e colocar-


se como sujeito, busca dar sentido ao seu fazer e a seu espaço de
trabalho.

103
Retomando o diálogo com Freud sobre o trabalho, ele deixa
transparente, ao longo de sua obra, a função estruturante do trabalho
para a saúde psíquica apontando para um caminho de investimento
libidinal, que tem um efeito mais poderoso do que qualquer outro
aspecto da vida humana de vincular uma pessoa à realidade, e chega a
resumir como propósito da existência humana: amar e trabalhar.
Contudo, essa perspectiva inscreve-se na possibilidade de um trabalho
criativo, em que seja possível deixar marcas e deixar-se marcar.
Dejours (2000) analisa a loucura do trabalho e aponta o
sofrimento psíquico gerado pela constante alienação do homem ao
seu fazer e as estratégias de defesa que acompanham o processo de
adoecimento no trabalho. O trabalho é problematizado por Dejours e
Mehry em suas obras, quando o mesmo se caracteriza como um
conjunto de procedimentos indiscriminados, padronizados,
“eficientes” e neutros, em relação ao qual a singularidade, a
humanidade e a criatividade não tem lugar.
Entrar no campo da saúde tendo como premissa a afirmação
da vida (CECCIN, 1997) implica irremediavelmente considerar que a
sustentação das práticas profissionais é feita por sujeitos e para
sujeitos e que como tal, se não constroem e se apropriam de seu
processo de trabalho, adoecem. Esse processo de trabalho criativo
implica respeito ao desejo. Neste sentido, podemos acrescentar que o
sujeito da saúde coletiva não é altruísta, pois ele mesmo é um dos
beneficiários do laço que se estabelece nos coletivos que possibilitam
reconhecimento e testemunho compartilhado de suas experiências.
Neste aspecto, situamos a Política Nacional de Humanização
(PNH), conhecida como HumanizaSUS, que tem respaldado a proposta
de Educação Permanente em Saúde. Essa Política tem como
orientações gerais a valorização da dimensão subjetiva e coletiva em
todas as práticas de atenção e gestão no SUS, fortalecendo o
compromisso com os direitos de cidadania, destacando-se as
necessidades específicas de gênero, étnico - racial,
orientação/expressão sexual e de segmentos específicos (população
negra, do campo, extrativista, povos indígenas, quilombolas, ciganos,

104
ribeirinhos, assentados, população em situação de rua, etc.). Outra
orientação geral é o fortalecimento do trabalho em equipe
multiprofissional, fomentando a transversalidade e a grupalidade, bem
como a valorização da ambiência, com organização de espaços de
trabalho saudáveis e acolhedores. Amplia-se para a construção de
redes cooperativas, solidárias e comprometidas com a produção de
saúde e com a produção de sujeitos.
Ainda, essa Política visa a “construção de autonomia e
protagonismo dos sujeitos e coletivos implicados na rede do SUS e a
corresponsabilidade desses sujeitos nos processos de gestão e
atenção”. Chama atenção para o fortalecimento do controle social,
com caráter participativo, em todas as instâncias gestoras do SUS,
culminando com o compromisso com a democratização das relações
de trabalho e valorização dos trabalhadores da saúde, e o estímulo à
educação permanente em saúde. A PNH se estrutura a partir de
princípios, método, diretrizes e dispositivos, sendo que um dos
principais objetivos estratégicos dessa política é a “infiltração” de todo
o seu corpo conceitual nas práticas dos serviços.
Tanto a educação permanente em saúde quanto a política
HumanizaSUS são estratégias, políticas e práticas em serviço, nas
quais a aprendizagem se dá nos processos de trabalho que abrem
espaço para o lugar de sujeito e coletivo que trabalha com saúde.
Inverte a lógica de objeto que recebe conteúdo e reproduz um fazer,
para deixar emergir um sujeito e coletivos que produzem
conhecimento a partir de práticas engajadas que lhe permite investir
libidinalmente no trabalho e oferecer escuta, acolhimento e atenção
integral.
Estas duas estratégias políticas têm permeado a formação, a
atenção, a gestão e o controle social de forma articulada, entre
diferentes segmentos e profissionais, para pensar ações em saúde
com vistas à corresponsabilização na construção de uma saúde que
seja efetivamente coletiva.
Tecemos algumas ideias que permitiram aproximar educação,
saúde e trabalho, acolhendo as contribuições da psicanálise. É o

105
próprio processo do trabalho que tem nos indicado quais saberes são
necessários para a qualificação da atenção aos usuários e a melhoria
das condições de trabalho no SUS. E é na interface da Educação com a
Psicanálise que encontramos subsídios para construir um processo
que possibilite e reconheça o desejo, engaje cada um com a saúde de
todos, inclusive com a própria.
Cabe deixar como questão as nuances de cada um dos
discursos dos segmentos envolvidos nos processos de condução da
Educação Permanente em Saúde como diferenças que sirvam à
reflexão de como em cada espaço, o mesmo sujeito que também é
usuário, trabalhador, ator, enfim, envolvido na construção da
sociedade, opera e protagoniza as necessárias transformações sociais
e de saúde. Para além das possibilidades de articulações conceituais
entre psicanálise e saúde coletiva - diálogo que está apenas
começando - os profissionais que transitam nestes campos vão
construindo alternativas em saúde para a coletividade na qual estão
inseridos. Pensar neste processo e contribuir para essa construção é o
objetivo primeiro desse movimento de interlocução.
Situamos, neste texto, que a articulação teórica que reúne
Psicanálise, Educação Permanente e Saúde Coletiva foi estratégica
para o alcance dos objetivos dos cursos da rede multicêntrica. Como
espaço potencial produziram-se mudanças nas formas de ver e intervir
nos problemas relacionados ao consumo problemático de álcool e
outras drogas, focando os coletivos e operando com maior
resolutividade às abordagens neste campo. A produção de
subjetividade ocorreu tanto com os docentes quanto com os alunos,
bem como a valorização dos saberes populares, que colaborou para o
empoderamento e o intercâmbio que se produziu com o curso.
Para finalizar, pensamos que o exercício desta escrita lançou-
nos ao risco, possibilitou-nos deixar um rastro, um pedaço de trilha
entre os campos da Psicanálise e da Saúde Coletiva. Como propõe
Fernández (1997), escrever é também uma necessidade de deixar
marcas do nosso pensar e do nosso desejar quando nos ausentamos,
e, assim, esperamos que esta escrita possa germinar, pulsar, fazer laço

106
e produzir sempre novas perguntas, ideias, invenções e novos espaços
para pensar.

Referências

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110
Capitulo V

“Ex-viciado conta que a maioria dos amigos que


consumia crack já morreu”
Dênis Roberto da Silva Petuco

Desde o princípio, ela está lá. A sombra, a escuridão, o


pretume. Não importa de que modo refiro este aspecto preto-
avermelhado que aparece na base da dispersão de signos que
compõem os enunciados desta campanha de prevenção: o que
importa é que este fundo escuro e nebuloso se faz presente ao longo
de todo o percurso de navegação neste site. Sendo assim, este fundo é
mais um signo que se articula a toda esta multiplicidade de signos,
produzindo efeitos, fazendo funcionar dinâmicas de positivação e de
ocultação. Mais que mero suporte para os enunciados, este fundo é,
ele próprio, um elemento enunciativo.
As imagens também estão presentes em todos os lugares
percorridos. Com sua monótona coloração pálido-acinzentada, os
usuários de crack, sujeitos deste discurso preventivo, compõem o
fundo de tudo o que se venha a acessar neste território virtual.
Independente de que link eu acione, as imagens se repetem
aleatoriamente no fundo da tela, como dispositivos que fazem ver e
cegar, e que produzem efeitos nas articulações com os outros signos
nos conjuntos. Em suas articulações, o fundo escuro e avermelhado e
as imagens, com seus personagens e cenários, produzem efeitos muito
eloquentes, que afirmam os usuários de crack como zumbis (PETUCO,
2011).

111
Quero debruçar-me sobre os links visíveis na capa do site.
Acionando-os, pode-se navegar por todos os recantos deste site, em
espaços nos quais posso acessar: respostas de especialistas às
perguntas de internautas; informações técnicas sobre o crack e seus
efeitos no organismo; material interativo; filmes, gráficos e
slideshows; cartazes e outras peças visuais; um blog com a cobertura
de uma série de iniciativas relacionadas à prevenção e tratamento.
O que me trouxe ao território virtual desta campanha foi a
busca por vozes de pessoas que usam drogas, busca esta que me
manteve alerta por todo o tempo em que me dediquei a esta
investigação. Neste tempo, fui interpelado por estas vozes, expressas
das mais diferentes maneiras, tanto na vida vivida quanto em suportes
de diferentes tipos (campanhas de prevenção, romances, músicas,
poemas, filmes, notícias...). E foi durante este processo de
investigação que me deparei com esta campanha, organizada por um
importante grupo de comunicação da região sul do Brasil.
Desde minha primeira visita ao site, impressionou-me a
multiplicidade de enunciados inscritos na superfície desta campanha,
numa interessante demonstração da amplitude de positividades
articuladas pelo objeto “droga” (neste caso específico, o crack). São
discursos sanitários (subdivididos em discursos psi, organicistas e
neurobiológicos); discursos jurídicos (subdivididos em debates legais e
em reflexões e anúncios sobre a ação policial); discursos educativos
(dispositivos pedagógicos e preventivos); discursos de mobilização
(anúncios de celebridades que apoiam a campanha, dispositivos de
sensibilização). Ao longo de quase dois anos eu percorri a superfície de
dispersão dos enunciados inscritos no site da campanha. Naveguei por
todos os links, e encontrei o que procurava dentre as centenas de
notícias no site, durante o período mencionado. São entrevistas com
pesquisadores, trabalhadores de saúde e autoridades, reportagens
sobre centros de recuperação, cobertura de ações organizadas pelo
próprio grupo de comunicação que veicula a campanha, declarações
de artistas e outras pessoas famosas, notícias sobre ações policiais,

112
além de muitas matérias com declarações de pessoas que usam ou
usaram crack, bem como de familiares.
Em 20 notícias, encontrei a fala de pessoas que usam ou
usaram crack, expressa de distintas maneiras: aparece citada por
pessoas entrevistadas (como uma mãe que reproduz o que o filho diz
pouco antes de morrer); nas transcrições relativamente longas de
narrativas pessoais; nos depoimentos colhidos em centros de
tratamento de diferentes tipos; na fala de ex-usuários e de pessoas
ainda em uso. Há fotos em diversas destas matérias, e em pelo menos
uma, é possível assistir a uma entrevista com um rapaz que parou de
usar crack, gravada durante uma atividade de auditório ligada à
mesma campanha analisada.
De que modo a fala destas pessoas é configurada nestas
reportagens? Que recursos discursivos são utilizados? O que dizem
estas pessoas? Como? Que articulações existem entre os distintos
signos que inscrevem os enunciados expressos por estas matérias
jornalísticas? Que regularidades podem ser observadas nesta
dispersão de elementos? A análise arqueológica deve fazer falar o
discurso no interior do enunciado, a partir de seus próprios elementos,
da articulação dos signos expressos nos conjuntos analisados
(FOUCAULT, 2005b, p. 149). Que assim seja.

Um acontecimento no interior do discurso

Aciono o link para o já referido programa de auditório. Ao


fundo, as mesmas imagens e cores já descritas. Ao centro, uma
imagem que se amplia, ocupando a quase totalidade da tela do
computador. Nela, vejo duas pessoas sentadas em poltronas brancas:
ao lado direito, um jovem com cerca de vinte anos, cabelos pretos,
pele morena, usando bigode e uma jaqueta de nylon preta sobre uma
blusa vermelha, segurando um microfone; do lado esquerdo, um
senhor de barba e cabelos brancos, vestindo terno de cores claras,
também com um microfone numa das mãos.

113
Olhando para o rapaz fica difícil definir se os seus olhos estão
voltados para o chão, ou se estão fechados. Suas costas apoiam-se no
encosto de uma ampla poltrona, e sua cabeça está levemente
abaixada, aproximando o queixo do peito. Parece bastante cansado, e
apoia o cotovelo direito no braço da poltrona, sustentando o peso do
microfone, seguro muito mais pelos dedos do que pela mão.
Articulando estes aspectos da imagem deste jovem, pode-se dizer que
ele parece prostrado, atirado à poltrona.
À sua frente, a imagem do homem de cabelos brancos
interpela-me de modo absolutamente distinto. Ele está sentado na
ponta da poltrona, como que buscando ficar mais próximo do rapaz.
Suas costas mantêm-se distantes do encosto, e sua mão esquerda
segura o microfone com firmeza. Mas o que mais chama a atenção é o
movimento de seu braço direito: sua mão está firmemente fechada, o
cotovelo apoiado no braço da poltrona, permitindo que o punho
cerrado fique mais próximo do rapaz. Bastante diferente da imagem
do jovem, os signos que inscrevem este senhor oferecem uma imagem
ativa, de alguém prestes a levantar do local em que está sentado.
Começo por este dispositivo em que uma pequena foto abre
um repertório de diversas fotos. A imagem descrita acima é a sétima
de treze. Na primeira, há um auditório com algumas cadeiras
ocupadas, dentre muitas vazias; a segunda e a terceira mostram o
visor de uma filmadora em primeiro plano, com um palco ao fundo; na
quarta foto, vê-se lateralmente o mesmo palco, agora com uma
pessoa ao microfone, e as cadeiras já ocupadas; na quinta, o palco é
mostrado frontalmente, mais de perto, e nele vejo pessoas
acomodadas em poltronas (dentre as quais o jovem e o senhor de
cabelos brancos descritos anteriormente); na sexta foto, um homem
em close up, falando ao microfone; a sétima imagem é aquela descrita
logo acima; na oitava, há um jogo de espelhos constituído por duas
pessoas que aparecem em um telão, enquanto as mesmas duas
pessoas aparecem de costas para a imagem, e de frente para uma
câmera filmadora; na nona foto, veem-se novamente o homem de
cabelos brancos e o jovem de jaqueta preta, além de uma terceira

114
pessoa ao lado direito, também sentado em uma poltrona; na décima
e décima primeira imagens, vejo homens sentados nas poltronas,
segurando microfones; nas duas últimas fotos, vejo diversos homens
de meia idade, vestindo camisetas pretas, com a frase “CRACK NEM
PENSAR”.
Que não restem dúvidas: não estou descrevendo uma
sequência de fotos soltas no tempo e no espaço, dispersas em um
bloco ao mesmo tempo branco e obscuro. Estas fotos configuram-se
como um dispositivo que é acionado quando clico a pequena foto
situada no centro da tela do computador, cuja imagem é aquela com o
jovem e o homem de cabelos bancos. Os signos dispersos na superfície
do enunciado, incluindo esta pequena foto no centro da tela,
expressam ao mesmo tempo uma totalidade em suas articulações, e
uma impossibilidade de que metanarrativas venham explicar a
complexidade das relações sociais em torno daquilo que se
convencionou chamar de “o fenômeno das drogas”. Longe de
expressar consensos, tornam-se cada vez mais nítidas as lutas no
interior do discurso. Configurado simultaneamente como arma e
objetivo, como meio e fim, o discurso expõe, em suas entranhas,
àquilo que o faz funcionar (FOUCAULT, 2005a, p. 10).
Às imagens (das fotos e do fundo anteriormente descrito),
articula-se o texto, palavra escrita. Em suas articulações, os signos
enunciam um evento - encontro presencial organizado no seio desta
campanha de prevenção. Plateia, pessoas sentadas em poltronas
sobre um palco, telões, microfones. Um acontecimento para além da
virtualidade midiática da campanha, ou um acontecimento midiático
no interior da campanha? Nas imagens que analiso a plateia não se faz
presente para ver, mas para ser vista. Esta plateia é mais um signo na
ordem do discurso. Mais um dispositivo que o faz funcionar.
Na sequência ordinária do texto, logo me deparo com uma
descrição mais detalhada do par formado pelo jovem moreno e pelo
homem de cabelos brancos. Posso agora revelar do que falam as
expressões capturadas na foto? Resisto. Talvez seja mais interessante
observar outros elementos deste enunciado antes de me dedicar um

115
pouco mais a esta imagem, ao que dizem estes dois homens em seus
silêncios tão eloquentes. Ou talvez eu deva mesmo seguir o enunciado
em sua dispersão, respeitando não apenas, mas também a sua frágil
linearidade. Talvez eu deva, sim, percorrer o enunciado do modo
como ele se apresenta, pois que disto também são feitas suas regras
de formação.
Que me diz o texto escrito sobre os dois homens capturados na
foto que se situa exatamente no centro desta página de internet?
Aquele de cabelos brancos é um jornalista, e o jovem moreno é
apresentado como alguém que “foi viciado em crack por quatro anos”.
Há uma espécie de “dispositivo narrador” a informar-nos que o jovem
teria dito que o apoio de sua família foi “[...] fundamental para que ele
superasse a dependência. Ele contou que roubava objetos dos
familiares, inclusive de seu filho”. Nas linhas seguintes, confere-se
destaque às palavras do jovem:

- Eu andava como um mendigo, dormindo na rua e


não comia.
- Os que não estão nos presídios estão mortos.
- Quando meu filho me via, ele chorava. Ficava
agarrado na mãe dele, queria correr para os meus
braços, mas eu não gostava que ele chegasse perto.
Agora ele passa dias lá em casa, faço tudo com ele.
O meu filho é tudo para mim, me salvou.

Imagem de degradação. Um herói enfrenta uma batalha da


qual poucos saem vitoriosos. Desde a referência à mendicância até o
momento em que o jovem diz do seu receio diante da aproximação do
filho, é de desumanização que falam estas palavras. Imerso em uma
cultura que apregoa aos quatro ventos a bestialidade de pessoas que
usam drogas, convencido de sua própria desumanidade, prefere
manter seu filho amado afastado deste demônio que ele mesmo
representa. Agora, livre do crack, torna-se digno de gozar as delícias
da paternidade.

116
Uma batalha no interior do acontecimento

Ato contínuo à fala do dito “ex-usuário”, emerge na superfície


do enunciado a presença do especialista, fortemente articulada ao
discurso do jovem “ex-usuário” de crack. Entre ambos, estabelece-se
um jogo discursivo:

- À medida que vai ficando mais longe do momento


em que parou, vai ficando mais fácil suportar (a
abstinência).

Se é possível afirmar que o especialista reforça o discurso do


“ex-usuário”, afirmando que a fala do jovem é típica de quem já
superou os piores momentos, por outro lado também pode-se dizer
que o “ex-usuário” reforça o discurso do especialista, ao balançar a
cabeça positivamente diante das assertivas do pesquisador. Se sobre o
“ex-usuário” recaem efeitos de potencialização de sua fala, sobre os
discursos do especialista recaem efeitos semelhantes. Neste ponto,
julgo pertinente problematizar a emergência da noção de especialista
com que opero neste ponto do texto. Inicialmente, recorro aos
discursos poéticos da performer estadunidense Laurie Anderson:

[...]
Agora vamos dizer que você foi convidado para
estar na Oprah
E você não tem um problema
Mas você quer ir no show, então você precisa de
um problema
Então você precisa inventar um problema
Mas se você não for um especialista em problemas
Você provavelmente não vai inventar um problema
muito plausível
E então você provavelmente vai ficar pregado
Você vai ficar exposto
Você vai ter que se curvar e pedir desculpas
E implorar o perdão do público.

117
Porque só um especialista pode ver que há um
problema
E só um especialista consegue lidar com o problema
Somente um especialista pode lidar com o
problema

(Laurie Anderson - Only an expert)

O especialista de que nos fala o fragmento da canção não está


solto no tempo e no espaço; capaz de colocar-se discursivamente em
um campo que imprime sentido às suas assertivas, ele move-se sem
expor-se (portanto, sem ter de se curvar ou pedir desculpas). Assim, à
definição de especialista construída por Laurie Anderson, gostaria de
somar a noção de campo e de agente em Pierre Bourdieu:

(...) A noção de campo está aí para designar esse


espaço relativamente autônomo, esse microcosmo
dotado de suas leis próprias. Se, como o
macrocosmo, ele é submetido a leis sociais, essas
não são as mesmas. Se jamais escapa às imposições
do macrocosmo, ele dispõe, com relação a este, de
uma autonomia parcial mais ou menos acentuada
(BOURDIEU, 2004, pp. 20-21).

Um território de relações sociais, de luta e de articulação, de


aproximações e embates, de rupturas e enlaces. Neste microcosmo
dotado de suas leis próprias (Idem, p. 20), que pode ser lido como um
campo de forças e um campo de lutas para conservar ou transformar
esse campo de forças (Ibidem, p. 22-23), operam aqueles a quem
Bourdieu chama de agentes engajados, com foco muito mais em suas
relações sociais (a posição de um agente em um campo), do que em
uma pretensa natureza essencial destes agentes:

(...) Isso significa que só compreendemos,


verdadeiramente, o que diz ou faz um agente

118
engajado num campo (um economista, um escritor,
um artista, etc.) se estamos em condições de nos
referirmos à posição que ele ocupa nesse campo, se
sabemos “de onde ele fala”, como se dizia de um
modo um tanto vago por volta de 1968 [...]. [grifo
nosso] (BOURDIEU, 2004, p. 23).

No caso em questão, o especialista não está em um destes


ambientes convencionais a um intelectual específico, segundo a
expressão de Foucault (1979, p. 11). Não se trata de um debate em
uma universidade, congresso ou atividade promovida por algum
instituto de pesquisa, mas em um evento promovido por uma
empresa de comunicação, no seio de uma campanha de prevenção ao
uso de crack, dirigido ao público leigo. Acerca disto, julgo pertinentes
os comentários de um importante intelectual francês, pronunciados
justamente na abertura de um programa de televisão:

(...) Hoje, graças ao serviço audiovisual do Collège


de France, beneficio-me de condições inteiramente
excepcionais: em primeiro lugar, meu tempo não é
limitado; em segundo, o assunto de meu discurso
não me foi imposto – eu o decidi livremente e ainda
posso mudá-lo -; em terceiro, ninguém está ali,
como nos programas comuns, para me chamar à
ordem, em nome da técnica, em nome do “público-
que-não-compreenderá” ou em nome da moral, da
conveniência, etc. É uma situação inteiramente
particular já que, para empregar uma linguagem
fora de moda, tenho um domínio dos instrumentos
de produção que não é costumeiro. Insistindo no
que as condições a mim oferecidas têm de
absolutamente excepcional, já digo alguma coisa
sobre as condições habituais nas quais se é levado a
falar na televisão (BOURDIEU, 1997, pp. 15-16).

119
Emerge no texto a fala do especialista, em resposta ao relato
do “ex-usuário” sobre as dificuldades vividas nos primeiros tempos
sem a droga. Diz ele que estas dificuldades diminuem com o passar do
tempo. Ao relato pessoal do “ex-usuário”, portanto, sobrepõe-se um
discurso que reduz o relato a um excerto do tipo “Como vocês podem
ver...”. À complexidade da vida, uma assertiva generalizante e
transparente. À vida, a ordem:

[...]

Se quiserem, podem meter-me numa camisa de


força
mas não existe coisa mais inútil que um órgão.

Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos,


então o terão libertado dos seus automatismos
e devolvido sua verdadeira liberdade.

Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas


como no delírio dos bailes populares
e esse avesso será
seu verdadeiro lugar.

(Antonin Artaud – Para acabar com o julgamento de


Deus)

Artaud clama por um corpo sem órgãos, como que numa


resposta antecipada ao especialista de Laurie Anderson. Um corpo
liberto de seus automatismos, ao qual foi devolvida sua verdadeira
liberdade. E ele dançará às avessas, como no delírio dos bailes
populares. Livre de julgamentos (de Deus ou dos especialistas):

Ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode


chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite.
Diz-se: que é isto - o Corpo sem Órgãos - mas já se
está sobre ele - arrastando-se como um verme,

120
tateando como um cego ou correndo como um
louco, viajante e nômade da estepe. É sobre ele
que dormimos, velamos, que lutamos, lutamos e
somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que
descobrimos nossas felicidades inauditas e nossas
quedas fabulosas, que penetramos e somos
penetrados, que amamos (DELEUZE & GUATTARI,
1996, pp. 9-10).

Há uma luta no interior do discurso. Nela, disputa-se o direito


de enunciar. Pode o “ex-usuário” dizer de si, com sua linguagem
própria, com sua verdade? Pode o especialista dizer sua verdade, à
revelia de um mínimo pacto com tão eloquente objeto de pesquisa?
Não fosse já suficientemente dramático o momento vivido no
fio da linearidade narrativa, sou surpreendido pela presença de um
novo dispositivo na superfície do enunciado. Entre um parágrafo e
outro, surge uma pequena tela que reproduz a gravação do evento a
que a matéria se refere. Volto a pensar no evento como processo para
a produção de uma peça que se perpetua no tempo, que resiste ainda
que descolada da memória daquele momento. Um evento a produzir
um acontecimento:
[...] não [se deve] confundir acontecimento com sua
efetuação espaço-temporal em um estado de
coisas. Não perguntaremos, pois, qual é o sentido
de um acontecimento: o acontecimento é o próprio
sentido. O acontecimento pertence essencialmente
à linguagem, ele mantém uma relação essencial
com a linguagem; mas a linguagem é o que se diz
das coisas [grifo do autor] (DELEUZE, 2000, p. 23).

Aciono o dispositivo. Assisto a um programa de auditório,


semelhante a tantos que existem em diversos países. Há a plateia que
aplaude, e o homem responsável pela condução do espetáculo. O
presidente do grupo empresarial em que a campanha de prevenção ao
crack a qual este evento está vinculado abre os trabalhos, e os

121
repórteres responsáveis por entrevistar pessoas da plateia são
apresentados.
Aparentemente, há uma quebra no ritmo da narrativa com o
surgimento deste dispositivo. No entanto, basta que eu o acione para
perceber que não há ruptura, já que a primeira atração logo após as
apresentações de praxe no início do evento registrado é justamente o
especialista, chamado a falar sobre o crack. À primeira pergunta, sobre
a dificuldade em tratar pessoas que usam crack, ele responde:

- Eu diria que ao mesmo tempo em que é difícil, não


existe sensação melhor para um especialista que
trata de dependência de drogas, que é a de
recuperar um dependente depois de um
tratamento.

Uma batalha contra um inimigo que dificilmente pode ser


derrotado. Assim como nos enunciados percorridos ao longo das
últimas páginas, emerge aqui também um discurso ao mesmo tempo
heroico e desesperado. Talvez fosse possível uma analogia com o uso
de drogas, em que prejuízos físicos e sociais são justificados pelos
momentos em que predomina uma sensação de bem estar. Aqui
também, os fracassos em apoiar a recuperação de pessoas que usam
crack são justificados pelos momentos (raros?) de “vitória” (“não
existe sensação melhor para um especialista”).
Interpela-me a utilização da expressão “especialista”. Não se
fala em “profissional”, ou em “terapeuta” (muito menos em
“trabalhador de saúde”). Fala-se do “especialista”. E de um
especialista que trata de “dependência de drogas”. O especialista e
seu campo de intervenção, de pesquisa. O especialista e seu objeto de
estudo. O especialista em sua relação, não com a saúde, não com a
pessoa que sofre, mas com a doença. O especialista e a doença: o
herói e seu inimigo poderoso.
Mas, talvez eu esteja sendo injusto. O sujeito que sofre está
presente, sim, na discursividade do especialista. Diz ele que não há
sensação melhor que a de “[...] recuperar um dependente depois do

122
tratamento”. Quem é este dependente de quem o especialista fala?
Não é o próprio sujeito do sofrimento?
Talvez sim. Mas o protagonismo é do especialista. É ele quem
recupera um dependente, mais ou menos como quem resgata a
cidadania de outrem. O foco está no herói que recupera. É ele que se
sente realizado quando tem sucesso, quando vence o inimigo
poderoso. Sujeito, aqui, é sujeito ao (nunca sujeito do) projeto
terapêutico, sempre planejado pelo (nunca com) especialista. Sujeito
recuperado, sim, mas nunca um sujeito implicado no próprio processo
de recuperação. Sujeito verbo, não substantivo.
Talvez eu esteja sendo, mais uma vez, injusto. Estou afirmando
que o especialista, em sua discursividade, não acolhe o protagonismo
da pessoa a quem se destina sua prática. Não estaria novamente
incorrendo em um julgamento por demais rigoroso? Vejamos: em
resposta a pergunta sobre a dificuldade dos pais em levar seus filhos
para tratamento, o especialista diz o seguinte:

- Levem! O que eu posso dizer é isto: levem! Se tiver


que levar pela mão, pelo pé, pela orelha, levem! As
chances não estão em casa. Do ponto de vista da
recuperação, as chances estão em ambiente
profissional. Não há o que se possa fazer em casa
para tratar da grave dependência que é esta
substância. Levem! Se tiver que ser contra a
vontade, eu imagino que vai haver um momento
em que este paciente, quando recuperado, vai
agradecer. É um gesto difícil de fazer. Eu imagino
que um pai ou uma mãe teria muita dificuldade de
fazer isto com o seu filho. Mas a gente tem de
entender que atrás deste gesto aparentemente
agressivo, está um gesto, na verdade, de salvação.

O especialista define o ato de levar a tratamento um filho que


usa crack como um gesto de salvação. A imagem do herói que
enfrenta um inimigo poderoso segue sendo reforçada. Um gesto

123
aparentemente agressivo, mas, na verdade, um gesto de salvação. Há
o componente de heroísmo (até mesmo messiânico), ao mesmo
tempo em que há a afirmação de saberes técnicos. Não há o que fazer
em casa, diz o especialista (As chances estão em ambiente
profissional).
Havia a fala do “ex-usuário” nas primeiras linhas do texto
escrito sobre o mesmo fundo preto-avermelhado já fartamente
descrito, com suas imagens em tonalidades sombrias ao fundo,
compondo o enunciado. As palavras do “ex-usuário” são
interrompidas pelas palavras do especialista, e surge, na superfície do
discurso, o dispositivo do vídeo em que podem ser vistas as imagens
do evento-acontecimento ao qual a própria matéria se refere. No
vídeo, há a fala do especialista, e na sequência de sua aparição, surge
novamente o “ex-usuário”, entrevistado pelo homem de cabelos
brancos descrito anteriormente. Há, pois, um efeito de retorno, de
retomada das palavras que iniciaram a narrativa em sua linearidade
discursiva.
Mas não é ao mesmo texto que se retorna. As mesmas
palavras, ditas pela mesma pessoa; é outro o discurso, entretanto.
Entre as palavras do “ex-usuário” no início do texto escrito, e as
palavras deste mesmo “ex-usuário” que emergem agora, por meio
deste vídeo com as imagens de sua entrevista, há um oceano de
saber-poder. A separar estas palavras – que são, mormente, as
mesmas palavras – há todo o espaço percorrido pela discursividade do
especialista. Tudo o que foi dito antes, e também o que será dito
agora, faz parte deste mesmo enunciado, deste mesmo discurso, em
sua totalidade inequívoca, em sua dispersão, em suas lutas intestinas.
Mas há ainda mais a ser dito, antes que o “ex-usuário” possa
dizer de si próprio. É preciso que, a este monstro anormal que é o “ex-
usuário”, se lhe devolva sua humanidade, para que somente então ele
possa expressar-se por sua conta e risco. Sua discursividade, já
organizada na fala do especialista, sofre nova investida do poder,
promovida agora pelo especialista da comunicação. Assim, sua fala é
precedida por uma longa arguição na qual o entrevistador apresenta-

124
se, ele também, como um viciado, cuja única diferença para com o
“ex-usuário” residiria no fato de que a droga de um é lícita (o tabaco),
enquanto que a droga do outro é ilícita (o crack); sobre este ponto
interroga o especialista, que confirma: de fato, tanto o tabaco quanto
o crack são drogas, e podem-se estabelecer relações de dependência
com qualquer uma das duas.
A partir deste ponto, vejo a reprodução em vídeo da fala do
“ex-usuário”, incluindo alguns trechos já registrados no texto escrito.
Conta que usou crack por quatro anos, e que chegou a roubar de
familiares e desconhecidos para sustentar seu uso. Conta que chegou
a usar mais de trezentas pedras (mil e oitocentos reais), em apenas
três dias, durante os quais ficou sem dormir ou comer, apenas
fumando e bebendo água. Conta que foi preso, e que em algumas
manhãs não conseguia sequer caminhar depois de uma noite de uso. E
arremata: “daqueles que andavam comigo, quase todos morreram ou
estão presos”.
Mais uma vez, um herói emerge no discurso. A narrativa fala
de uma luta contra um adversário indestrutível, diante do qual o herói
escapa com vida. Que corpo é este que sobrevive àquilo que matou ou
tirou a liberdade de tantos? Que corpo é este, que escapa com vida
após uma batalha de três dias, sem comida ou sono, diante de um
adversário tão poderoso?

[...]

É que me pressionavam
ao meu corpo
e contra meu corpo

e foi então
que eu fiz tudo explodir
porque no meu corpo
não se toca nunca.

125
(Antonin Artaud – Para acabar com o julgamento de
Deus)

Os locais onde se usa crack são inóspitos, a se considerar as


imagens que compõem os enunciados da campanha, bem como os
relatos de auto-exposição a situações-limite, às agruras da noite, da
rua, da droga. Viver quatro anos neste mundo, e sair para contar os
relatos do campo de batalha. É um corpo heroico que emerge neste
tipo de relato, bastante comum entre “ex-usuários”, mas com um
diferencial; uma inflação de vontade que emerge no discurso do “ex-
usuário” (“eu me orgulho, pois daqueles que usavam comigo, quase
todos morreram ou estão presos”).
O entrevistador pede que o “ex-usuário” dê um conselho
àqueles que ainda não conseguiram parar de usar crack. Qual deveria
ser a conduta, a postura adotada pelas pessoas que desejam
abandonar o uso de crack? Neste momento, emerge na voz do “ex-
usuário” uma discursividade que produz abalos na ordem
estabelecida, até então, no discurso:

- Eu acho que tem que ter vergonha na cara, porque


eu estive internado em clínicas por duas vezes, e
não resolveu pra nada. Então eu parei e pensei: do
jeito que eu andava, eu até dizia para minha mãe
esperar, que eu ia morrer. Eu não saía mais de cima
da cama. Durante doze dias eu fiquei deitado em
cima de uma cama, porque eu não podia levantar
mais.
- Há quanto tempo você parou? – pergunta uma
repórter.
- Há dois anos – responde o “ex-usuário.

Aplausos na plateia. René Magrite me lembra que não há


contradições no interior do discurso. Mas, como explicar que agora a
pouco o especialista dizia que não há o que fazer em casa para tratar
desta grave dependência? As chances não estavam apenas em

126
ambiente profissional? Como não reconhecer aqui uma contradição no
seio do discurso?
Não se trata de contradição, mas de luta. A unidade do
discurso é sua própria multiplicidade, e as lutas que parecem
desestabilizá-lo, antes o constituem. Relações de força, de luta e de
poder trespassam o enunciado. O discurso é o próprio poder pelo que
se luta, lembra Foucault (2005a, p. 10). Nele, nada se estabiliza, nunca.
Nunca um vencedor, nunca um vencido. Nunca uma hegemonia, nem
mesmo precária.
Lágrimas e aplausos na plateia. O repórter ressalta o exemplo
que o “ex-usuário” oferece naquela noite, e lhe pergunta, com uma
voz enérgica:

- É possível parar de fumar crack?


- É possível. Meu pai e minha mãe jamais me
abandonaram, e hoje eles olham para mim com
orgulho. Meus amigos hoje têm orgulho de mim,
me abraçam, e vêm na minha casa me buscar para
jogar bola com eles. Hoje eu sou um orgulho para
eles.

Reforça-se a luta no interior do próprio enunciado, e esgarçam-


se as possibilidades de alcance do discurso. Amplia-se a dispersão, a
multiplicidade. Não há o que fazer em casa, diz o especialista, ao
mesmo tempo em que o jovem afirma que o acolhimento dos pais e
dos amigos foi fundamental em seu processo de recuperação.
Neste ponto, ainda amparado pela perseguição da narrativa
em seu fio linear, vejo o entrevistador voltar-se novamente ao
especialista, pedindo-lhe que fale sobre as possibilidades de
recuperação, provocando o surgimento da frase com que ele irrompeu
no interior do enunciado, ainda em sua parte textual:

- À medida que vai ficando mais longe do momento


em que ele fumava, vai ficando mais fácil a cada
dia. Não são dias fáceis, provavelmente...

127
Há um retorno ao momento em que o discurso do especialista
aparece pela primeira vez, nos signos que compõe a multiplicidade
discursiva deste enunciado. Mas, assim como nas palavras do “ex-
usuário”, também aqui não há um retorno ao mesmo enunciado; ele
jamais é o mesmo, ainda que fossem as mesmas palavras (e não são).
Aqui, o enunciado emerge modificado pelo transcorrer do evento-
acontecimento em sua linearidade. Articulada à rede de signos
dispersos no interior do discurso, à linearidade temporal produzida
pelo vídeo (em que algumas falas são recolocadas depois de terem
anteriormente aparecido na textualidade do enunciado), a fala do
especialista é esgarçada pelos efeitos de força no interior do próprio
discurso. Mantém-se o jogo:

- Nos primeiros dias eu me acordava de noite,


suando, tendo pesadelos de que tinha droga dentro
de casa, e eu saía procurando, revirando tudo
dentro de casa.

Quem reforça os discursos de quem? Os jogos de relações que


se estabelecem entre as falas do especialista e do “ex-usuário” fazem
funcionar dinâmicas de reconstrução, desvio, ruptura, reforço,
reconfiguração e redimensionamento no interior do discurso. O
especialista e o “ex-usuário” forçam, esgarçam, esticam, dobram e
desdobram o discurso de múltiplas maneiras, articulando múltiplos
pontos de força no interior do enunciado. Alguém pergunta se é
possível deixar o uso de crack apoiado apenas na própria força de
vontade:

- Gostaria de tirar de sua frase a expressão


“apenas” força de vontade. Não se pode tratar de
um paciente se ele não possui aquilo que o “ex-
usuário” está relatando. Ele tem uma motivação
real. O que a equipe deve fazer, os terapeutas, é
reforçar no paciente isto que o “ex-usuário” parece

128
que conseguiu encontrar sozinho. Muitas vezes é
preciso ajudar a procurar. As coisas já estão lá.
- É. O meu pai e minha mãe nunca me
abandonaram. Nem os meus irmãos. Quero
agradecer ao meu irmão mais jovem, que é o caçula
lá de casa. É ele quem me dá conselhos.

Captura minha atenção a reconfiguração dos discursos do “ex-


usuário e do especialista. Percebo uma terceira via, entre o “levem-no
à força” e o “foi tudo uma questão de força de vontade”. Da parte do
especialista, há a afirmação de um processo terapêutico que deve
levar em consideração a vontade do sujeito que sofre; da parte do “ex-
usuário”, há o crédito às pessoas que estão ao seu lado durante este
tempo, com destaque para os conselhos do irmão mais jovem. Jogos
de força, de tencionamentos, que produzem efeitos sobre o próprio
discurso. Não se trata do discurso de pessoas que usam drogas,
tampouco dos discursos psiquiátricos sobre o uso de drogas, mas dos
discursos midiáticos produzidos na articulação de múltiplas
discursividades.

À guisa de conclusão

As vozes que constituem a rede de enunciados desta


campanha de prevenção sobrepõem-se, reforçam-se, esgarçam-se,
articulam-se. Outras vozes ainda surgirão neste evento-
acontecimento: vozes de autoridades ligadas à área de saúde e da
repressão, vozes de outros especialistas, vozes de humoristas que
tentarão conferir um clima mais leve ao evento. Fico apenas com estes
dois personagens: nos últimos momentos do diálogo-luta entre o “ex-
usuário” e o especialista, já era possível perceber um efeito de mescla,
em que as duas vozes, depois de dobrarem-se mutuamente, emergem
como se fossem uma única voz, uma única discursividade, inseparáveis
em sua multiplicidade, reconciliadas em sua peleja. Vozes que incidem
uma sobre de tal maneira, que a separatividade torna-se complicada.
Fundem-se na multiplicidade, a própria unidade do discurso.

129
De minha parte, não buscarei acompanhá-las. Não mais. Já não
se trata de individualidades, de frases pronunciadas por sujeitos
concretos, mas da própria materialidade discursiva que constitui a
unidade deste acontecimento:

Gostaria de me insinuar sub-repticiamente no


discurso que devo pronunciar hoje, e nos que
deverei pronunciar aqui, talvez durante anos. Ao
invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido
por ela e levado bem além de todo começo
possível. Gostaria de perceber que no momento de
falar, uma voz sem nome me precedia há muito
tempo: bastaria, então, que eu encadeasse,
prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser
percebido, em seus interstícios, como se ela me
houvesse dado um sinal, mantendo-se, por um
instante, suspensa. Não haveria, portanto, começo;
e em vez de ser aquele de quem parte o discurso,
eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma
estreita lacuna, o ponto de seu desaparecimento
possível (FOUCAULT, 2005a, pp. 5-6).

Referências

ANDERSON, Laurie. Only an expert. In.:ANDERSON, Laurie. Homeland.


New York: Nonesuch Records, 2010.

ARTAUD, Antonin. Os escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM


Editores, 1983.

BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia


clínica do campo cientifico. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

__________. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,


1997.
130
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Editora Perspectiva,
2000.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e


esquizofrenia (vol. 3). São Paulo: Editora 34, 1996.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de


France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições
Loyola, 2005a.

_________________. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2005b.

_________________. Verdade e poder. In.: _________________.


Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p. 1-14.

GEERTZ, Clifford. Vidas e obras: o antropólogo como autor. Rio de


Janeiro: Editora da UFRJ, 2005.

PETUCO, Dênis Roberto da Silva. Entre imagens e palavras: o discurso


em uma campanha de prevenção ao crack. Dissertação (Mestrado) –
Programa de Pós-Graduação em Educação, UFPB, João Pessoa, 2011.

131
132
Capitulo VI

Incursões sobre as politicas sobre drogas e o


cuidado nos processos de drogodependência
Maria Gabriela Curubeto Godoy

Breve análise histórica das políticas sobre drogas

Apenas recentemente as drogas tornaram-se objeto passível de


intervenção sistemática do campo da saúde, predominantemente de um
saber de caráter biomédico, sucedaneamente ao ocorrido em outros
campos, como o da loucura. Conjugam-se nesse processo novos modos
de produzir e estar no mundo, engendrados na Modernidade com o
advento do capitalismo, da racionalidade científica e do Estado Moderno
e suas tendências de controle biopolítico das populações, que
contribuíram para inspirar abordagens teóricas e intervenções no campo
da saúde.
Dentre as vertentes que tratam da questão das drogas,
observamos atualmente um debate entre partidários de políticas de
legalização, regulamentação e/ou descriminalização das drogas e
defensores do proibicionismo, vertente gestada nos Estados Unidos da
América (EUA) ao longo do século XIX, que influenciou as políticas sobre
drogas em diversos países. Para contextualizar nossa discussão,
analisaremos resumidamente neste texto experiências históricas
referentes à legalização, regulamentação ou proibição de determinadas
drogas e algumas consequências decorrentes desses processos.
Iniciaremos rememorando o surgimento do “GIN ACT”,
promulgado pelo parlamento britânico em 1751. Por volta de 1690, a
Inglaterra permitiu a importação de gin da Holanda e posteriormente

133
liberou a produção inglesa desta bebida destilada, que gradativamente
suplantou o tradicional consumo de cerveja. Neste período a Inglaterra
passava por grandes transformações decorrentes de modificações na Lei
dos Pobres e dos primórdios da Revolução Industrial. Intensificava-se o
êxodo rural, o crescimento acelerado e desordenado da população
urbana, a exploração da força de trabalho nas fábricas e os problemas
decorrentes desses processos, onde grande parte da população estava
submetida a péssimas condições de vida. É nesse contexto que aumenta
exponencialmente o consumo de gin, provocando o “Gin Craze” em 1730.
As taxas de alcoolismo na população em geral, inclusive em
crianças, eram muito altas e havia grande mortalidade infantil. (ROSEN,
1994)
Surgiu então, a proposta do Gin Act, que proibiu a venda de gin
destilado de comerciantes não licenciados, estabeleceu o controle do
teor do gin e aumentou sua taxação. Além disso, gradativamente
estabeleceu-se a estratégia de substituição do gin por uma bebida
estimulante não alcoólica através do incentivo à importação e consumo
do chá – cujos importadores atingiram grandes lucros com o negócio - e
que acabou tornando-se a bebida oficial do país.
Grosso modo, o Gin Craze e o Gin Act possibilitam algumas
reflexões. A liberação e o consumo descontrolado do gin ocorreram em
um contexto de mudança social e econômica que intensificou as tensões
sociais e o aumento da pobreza de grande parte da população inglesa. A
disseminação do uso de uma determinada (??) como questão relacionada
ao contexto social tem sido adotada por autores do campo da
Socioantropologia das drogas. Um exemplo é o estudo de Bourgois (2010)
sobre os primórdios do comércio e o consumo do crack em guetos pobres
de Nova Iorque e as decorrentes estratégias de sobrevivência econômica
(comércio de drogas) e subjetiva (consumo de drogas) dessas pessoas
ante seu contexto social.
Quanto ao Gin Act, vale destacar que, como medida mais
regulamentadora do que proibicionista, foi efetivo no que pretendia, ou
seja, reduzir as taxas de alcoolismo e de mortalidade infantil. Como
política pontual, foi congruente com o capitalismo, pois obviamente não
incidiu nas determinações sociais e políticas da pobreza e das péssimas
condições de vida da população, mas propiciou menos problemas

134
laborais e, por outro lado afetou positivamente a saúde pública. A
substituição gradativa do gin pelo chá, que, na atualidade poderia ser
interpretada como uma estratégia de redução de danos propagou-se
inicialmente entre burguesia inglesa constituindo parte de seu ritual
social, e apenas ao longo dos séculos seguintes atingiu e propagou-se a
outras parcelas da população.
Já o proibicionismo como política incipiente de Estado surgiu mais
de cem anos depois. A primeira experiência proibicionista iniciou-se a
partir de 1898, nas Filipinas ex-colônia espanhola tomada pelos EUA, que
nesse período ensaiaram uma política externa imperialista - de caráter
expansionista e neocolonialista - que perdurou ao longo do século XX até
nossos dias. O consumo do ópio, introduzido na Ásia a partir dos
interesses comerciais ingleses em relação à China, era liberado nas
Filipinas. Quando este país se tornou colônia dos EUA, o comércio e
consumo de ópio foi gradativamente sendo proibido, efetivando-se em
1908. Essa primeira experiência proibicionista dos EUA influenciou a
política interna e externa proibicionista americana, que combinava
moralismo - inspirado por políticos puritanos dos EUA, e repressão
seletiva a certos grupos sociais. (ROMANÍ, 1999).
O discurso proibicionista possibilitou, subliminarmente,
referendar juízos morais, posturas racistas e xenófobas que instituíram as
bases do que Romaní (1999) designa de paradigma jurídico-repressivo das
políticas sobre drogas. Políticas internas nos EUA como a Lei Seca, em
1920 e o Marihuana Act, em 1937, referendaram as tendências
proibicionistas adotadas por esse país e a expansão das mesmas
internacionalmente, sobretudo nos países submetidos a relações
colonialistas com os EUA.
Esse novo enfoque sobre as drogas e a elaboração de um regime
internacional de controle das mesmas fundamentou diversas convenções,
tratados e deliberações que gradativamente estabeleceram a restrição do
uso de drogas para fins exclusivamente médicos e científicos, proibindo a
produção, a distribuição e o consumo das substâncias e matérias primas
tornadas ilícitas, mediante a criminalização dessas atividades. Entretanto,
a experiência da própria Lei Seca nos EUA, que vigorou entre 1920 a
1933, favoreceu a reativação do crime organizado, que gradativamente
passou a obter maiores lucros com o comércio ilegal de bebidas do que

135
com seus antigos negócios: o jogo clandestino e a prostituição.
(SOUTHWELL, 2014).
Entre os argumentos sobre a ineficácia do proibicionismo,
podemos citar a Lei Seca e o legado da política de Guerra às Drogas
instaurada pelos EUA, ao longo da segunda metade do século XX,
sobretudo no decorrer da década de 80, com o final da Guerra Fria e a
dissolução da União Soviética, que expõe um novo panorama na
reorganização geopolítica e econômica do mundo. É nesse contexto de
globalização neoliberal que as drogas “ilícitas”, o narcotráfico e os
próprios usuários passam a ser o foco da Guerra às Drogas, justificando a
criminalização e exclusão de populações pobres, bem como a ocupação
geopolítica e a militarização de determinadas regiões da América Latina.
Algumas consequências desse processo foram o aumento da
violência e mortalidade decorrentes do narcotráfico e o aumento
exponencial da população carcerária, principalmente de homens jovens,
pobres e de minorias étnicas nos EUA e também em outros países.
(BOURGOIS, 2010) (UNODC, 2010).
As experiências acima citadas, de liberação e posterior
regulamentação do gin na Inglaterra, e as diversas propostas
proibicionistas oriundas dos EUA, propiciam reflexões sobre o debate
contemporâneo a respeito das drogas. Ante as limitações e
consequências negativas do proibicionismo, a legalização tem sido
apontada como alternativa. A legalização apresenta diversas nuances,
desde a descriminalização do usuário, até a liberação do comércio de
qualquer droga, o que, mesmo em países que avançaram em suas
políticas sobre drogas, não ocorre livremente. A liberação total,
referendada, inclusive, por expoentes da economia liberal e neoliberal,
trata a droga enquanto mercadoria à mercê de uma economia de
mercado que relega o Estado a um papel mínimo. A experiência do Gin
Craze representou a liberação sem controle e teve consequências sociais
problemáticas.
Torna-se, portanto, indagar, no caso da legalização, qual
legalização e qual o papel do Estado nesse processo: um Estado refém de
uma economia de mercado sem nenhum tipo de controle ou regulação,
ou um Estado ao qual caiba um papel importante na regulamentação e
elaboração de políticas sobre drogas e políticas sociais em geral? Até

136
porque os problemas como o crescimento do narcotráfico e da violência a
ele associada, não são apenas decorrentes do proibicionismo, mas
também do capitalismo como modo de organização social e econômica
que torna diversos objetos, inclusive as drogas, em mercadoria.
A questão das drogas exige, por conseguinte, um conjunto de
políticas sociais para além da própria legalização/regulamentação das
mesmas. A busca de soluções para problemas complexos, relacionados a
uma organização social e econômica excludente de grande parcela da
população depende de respostas articuladas, que derivem em diversas
políticas sociais, no sentido de maior equidade e justiça social para todos.
Na atual conjuntura, a questão das drogas e, acima de tudo, a
drogodependência, representa apenas mais um dos sintomas sociais que
expressam o mal-estar na contemporaneidade, conforme veremos
abaixo.

Drogodependência e sintoma social

Mudanças nas políticas sobre drogas afetam a organização do


cuidado à saúde das pessoas que vivenciam processos de
drogodependência e estimulam reflexões sobre os paradigmas de
cuidado vigentes. Os próprios serviços de saúde que atendem pessoas
com problemas de álcool e outras drogas desvelam tensões e até a
coexistência de modelos e abordagens de tratamento por vezes
contraditórios entre si.
O uso de drogas, prática milenar ao longo da história da
humanidade, é um fenômeno multidimensional relacionado a fatores
culturais, econômicos, políticos, históricos, sociais e subjetivos. Na
contemporaneidade, o uso de drogas representa também um sintoma
social, cuja manifestação mais evidente desvela como um determinado
sujeito se relaciona com alguma droga e também com o mundo. Mas,
como sintoma social, o uso de drogas não nos revela apenas questões
desse sujeito, mas também da sociedade na qual ele está inserido, pois é
partir desta última que surgem intervenções para lidar com o uso de
drogas e seus efeitos. Na contemporaneidade, as drogas tornaram-se
mercadorias de consumo expressivas de processos sociais e econômicos

137
mais amplos que incidem sobre os processos de produção de
subjetividade e vice-versa.
A questão das drogas ocupa, então, um lugar de regulação social
correlato aos mesmos interesses que perpassam processos de
medicalização social e da constituição de uma sociedade de consumo
pautada, paradoxalmente, pelo excesso e pelo vazio. Esse processo
apresenta grande influência do modelo neoliberal e seus sucedâneos: a
globalização econômica, a reestruturação produtiva, a entronização do
mercado e a fragilização do Estado de Bem-Estar e as políticas sociais,
que afetam processos de subjetivação. Acentuam-se transformações
culturais de modos de vida marcadas pelo individualismo, o consumismo,
a aceitação passiva da restrição do público e a expansão do privado,
maior serialização e controle disciplinar na gestão das populações,
intensificando a exclusão social e gerando maior insegurança ante o
porvir. (GUINSBERG, 2004). Claro que esse cenário representa uma forte
tendência contemporânea confrontada por diversos movimentos de
resistência pautados por parâmetros éticos solidários que postulam
inflexões nesses modos de estar no mundo.
De qualquer maneira, essa discussão descortina e reforça a
perspectiva que o efeito de uso das drogas não dependem apenas das
propriedades farmacológicas das mesmas, mas também das atitudes e
características do usuário e do meio físico e social em que ocorre o uso,
ou seja, o efeito de uso depende de três elementos inter-relacionados: o
sujeito, a substância e o contexto. (ZINBERG, 1984).
Alinhando-nos a essa perspectiva, adotamos uma definição de
droga congruente com a mesma, conforme propõe Romaní (1999:53):

(...) Substâncias químicas que se incorporam ao


organismo humano, com capacidade para modificar
várias funções deste (percepção, conduta,
motricidade, etc.), mas cujos efeitos, consequências
e funções estão condicionados, sobretudo, pelas
definições sociais, econômicas e culturais que
geram nos conjuntos sociais que as utilizam.

138
Para além do uso controlado e não prejudicial de drogas, que é o
mais frequente na população, o uso extremado de drogas pode induzir
prejuízos à saúde e apontar para dimensões relativas ao sofrimento e à
morte, e, quando associado a contextos de extrema pobreza e exclusão,
expressa os efeitos destrutivos do biopoder e da governamentalidade na
produção de subjetividades lumpenizadas. (BOURGOIS, 2011).
A questão das drogas como sintoma social não cabe, assim sendo,
nos critérios epidemiológicos que reduzem o uso a parâmetros
mensuráveis como a intensidade e frequência, adotados pela literatura
biomédica e que, justamente, desconsideram implicações subjetivas e
sociais mais profundas do mesmo. Por isso, alinhamo-nos ao conceito de
drogodependência como fenômeno das sociedades contemporâneas
relacionado ao campo das adicções, cujas características específicas são
descritas abaixo:

(...) Conjunto de processos através dos quais se


expressam certos mal-estares mais ou menos
graves, que podem ter causas diversas, mas cujo
principal sintoma seria a organização do conjunto
da vida cotidiana de um indivíduo em torno do
consumo compulsivo de determinadas drogas
(ROMANÍ, 1999:55).

sobre drogas e sua interface com os modelos de cuidado

Para compreender as propostas vigentes no campo da saúde,


apresentaremos o que Romaní (1999) designa como diferentes
paradigmas que têm norteado as políticas sobre drogas: a) o modelo
jurídico-repressivo; b) o modelo médico-sanitarista; e c) o modelo
sociocultural.
O modelo jurídico-repressivo, inspirado a partir de vertentes
religiosas puritanas que inspiraram o proibicionismo, considera os
assuntos relativos às drogas como delito e os usuários como delituosos.
Um paralelo possível deste paradigma é que assuntos relacionados a
drogas são concebidos como pecado e vício, e os usuários são, por esse
motivo, pecadores. Nessa perspectiva, a proposta de tratamento

139
predominante é o afastamento do contexto social do usuário e a
abstinência completa das drogas.
O modelomédico-sanitarista, surgido no final do século XIX e início
do XX, baseou-se na obra do antropólogo e farmacologista polonês-
alemão Louis Lewin, que investigou casos de “morfismo” em soldados
feridos da guerra franco-prussiana tratados com morfina. Foi Lewin quem
criou os conceitos de dependência, tolerância e abstinência e estabeleceu
classificações das diferentes drogas. Este modelo reforçou o
deslocamento parcial da questão das drogas do campo judicial para o
médico, considerando os problemas relacionados ao uso de drogas como
doença e o usuário como um doente. Avanços posteriores nos
conhecimentos neurobiológicos associados a concepções biomédicas de
caráter organicista e fisicalista, historicamente alinhados a processos de
controle social, contribuíram no delineamento de teorias científicas com
pretensão de neutralidade e intervenções que referendam a exigência de
abstinência como forma mais eficaz de entrada, permanência e saída do
tratamento.
Evidenciam-se, assim, aproximações e reforços entre o modelo
jurídico-repressivo, de base religiosa e moral e o modelo médico-sanitário,
baseado em determinadas concepções de ciência, que expressam
ideologias e práticas dominantes no cuidado a pessoas com problemas de
drogodependência.
O terceiro modelo, designado de sociocultural surgiu da
perspectiva de que o fenômeno das drogas deve levar em conta o
indivíduo, a droga e o contexto e que as variáveis determinantes nessa
relação são socioculturais, pois tanto o sujeito, quanto o significado de
seus atos, o tipo de drogas, as formas de obtenção, as técnicas de uso, as
vias de ingestão e as dosagens são mediadas pelo contexto sociocultural.
Neste modelo, o usuário é um sujeito de direitos, as políticas sobre
drogas apontam para a descriminalização, regulamentação e legalização.
As propostas de tratamento são orientadas por estratégias de
redução de danos, baseadas na negociação com o usuário e não se
reduzem ao ato prescritivo daquilo que é considerado adequado por uma
autoridade competente, no caso, o profissional de saúde.
O quadro abaixo sintetiza os modelos acima apresentados:

140
QUADRO 1 – Principais modelos nas políticas e no cuidado a questões
relativas às drogas.

PRINCIPAIS MODELO MODELO MODELO SOCIOCULTURAL


CARACTERÍSTICA JURÍDICO - MÉDICO –
S REPRESSIVO SANITARISTA

Assuntos DELITO DOENÇA Levam em conta o: Indivíduo, a


relacionados a Droga e o Contexto
drogas

Usuários DELITUOSOS DOENTE SUJEITO DE DIREITOS


Criminalizados Faz carreira
e institucionalizad
estigmatizados a como
paciente
tornando-se um
‘ex-adicto’

Políticas PROIBICIONISM PROIBICIONISM  REGULAMENTAÇÃO


O O  DESCRIMINALIZAÇÃO
 LEGALIZAÇÃO

Intervenções de ABSTINÊNCIA ABSTINÊNCIA DA REDUÇÃO DE


saúde PRESCRITA PRESCRITA DANOS À ABSTINÊNCIA
NEGOCIADA

Limite como cuidado ou limite do cuidado?

Ante as questões apresentadas acima, os desafios cotidianos no


cuidado de pessoas que vivenciam processos de drogodependência
expressam os modelos acima apresentados. Uma questão que perpassa
tais modelos e que, frequentemente, é colocada pelos trabalhadores de
serviços de álcool e outras drogas é a do limite. É comum ouvir que
usuários de álcool e outras drogas precisam de limites ou têm falta de
limites. Mas o que é o limite? Segundo o dicionário, o limite é uma linha
de demarcação, real ou imaginária que separa territórios contíguos; um
ponto extremo, confim; o momento que marca o começo ou fim de

141
espaço de tempo; o ponto que não se pode ou não se deve ultrapassar
(FERREIRA, 1986).
Parece que é neste último sentido que a questão dos limites do
usuário é concebido no campo que trata de problemas de álcool e outras
drogas, como ponto de desvio do padrão estabelecido. Como categoria
sociológica, o desvio é uma noção que pode variar segundo a época
histórica, a cultura e a ideologia vigente (BECKER, 2008). Subjetivamente,
o limite pode relacionar-se à continência, à internalização de regras e
normas socialmente estabelecidas e à capacidade de um sujeito
estabelecer seus próprios processos de normatividade.
Então, no caso de pessoas que têm problemas com álcool e
drogas, práticas consideradas terapêuticas seriam as que estabelecem
limites externos ao sujeito ou as que ativam a possibilidade deste
estabelecer seus próprios limites? Como dar continência sem cercear as
possibilidades do sujeito estabelecer/experimentar seu processo de
normatividade?
Intervenções em saúde baseadas na concepção do usuário como
incapaz de estabelecer seus próprios limites parecem, então, alinhadas às
políticas proibicionistas e aos modelos jurídico-repressivos e médico-
sanitaristas pautados pelo controle e disciplinarização da população. É na
incapacidade do usuário que se fundamentam intervenções como a
abstinência prescrita e práticas como os exames de urina obrigatórios
para verificar presença de metabólitos de drogas, que anulam a
possibilidade de o usuário construir gradualmente seus próprios critérios
de normatividade, enquadrando-o em uma normatividade política e
ideologicamente pré-estabelecidas.
Enfim, as práticas em saúde, especialmente aquelas pautadas em
tecnologias leves, ativam as dimensões relacionais do cuidado, onde os
profissionais executam não apenas procedimentos ‘cientificamente’
estabelecidos, mas também expressam suas concepções de mundo. A
escolha de vertentes teóricas no campo do cuidado a problemas de álcool
e outras drogas também expressa a impossibilidade de isenção e
neutralidade pretendida por determinadas compreensões do que seja
ciência e, em última instância, nos coloca ante o desafio sobre o tipo de
sociedade que pretendemos construir e como lidamos com a diversidade

142
dos modos de estar no mundo. Nessa perspectiva, o cuidado como limite
pode incorrer no risco de revelar justamente o limite do cuidado.

Referências

BECKER, H. (2008). Outsiders. Estudos da Sociologia do desvio. Rio de


Janeiro: Zahar Editores.

BOURGOIS, P. (2010). En busca de respeto: vendiendo crack en Harlem.


Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores.

BOURGOIS, P. (2011). La lumpenización de los sectores vulnerables en la


guerra contra la droga en los Estados Unidos. . Umbrales, Fugas de la
Institución Total: Entre Captura y La Vida. Dario Malventi (ed). Sevilla:
Universidad Internacional de Andaluzia , 22-35.

FERREIRA, A. (1986). Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2a ed. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira S.A. .

GUINSBERG, E. (2004). La salud mental en el neoliberalismo. San Rafael,


México.: Plaza y Valdés S.A. 2a ed.

ROMANÍ, O. (1999). Las drogas: sueños y razones. Barcelona: Ed. Ariel.

ROSEN, G. (1994). Uma história da Saúde Pública. São paulo: HUCITEC:


Ed. UNESP.
SOUTHWELL, D. (2014). A história do crime organizado. São Paulo: Ed.
EScala.

UNODC. (2010). Da coerção à coesão: Tratamento da dependência de


drogas por meio de cuidados em saúde e não da punição.New York:
Nações Unidas.

ZINBERG, N. (1984). Drug, set and setting. The Basis for Controlled
Intoxicant Use. New Haven: Yale University Press.

143
144
Capitulo VII

Redução de danos e linhas de cuidado:


Ferramentas possíveis para o cuidado em saúde
mental, álcool e outras drogas
Paula Emília Adamy, Rosane Neves da Silva

Pensar em saúde mental, álcool e outras drogas no momento


atual implica em contextualizar este campo de disputa no processo da
Reforma Psiquiátrica e pensar quais ferramentas poderão ser potentes
para articular o cuidado no território. As linhas de cuidado e a
Redução de Danos são trazidas aqui como ferramentas possíveis ao
acompanhamento para além de serviços estanques, tendo o usuário
como protagonista de um itinerário a ser construído. Afirmar a
Redução de Danos enquanto diretriz de trabalho a pessoas que usam
álcool e outras drogas implica em trabalhar, junto aos usuários, um
cuidado através de linhas e fluxos para além dos serviços de saúde,
pressupondo um acompanhamento que contemple os modos de
andar a vida singular de cada sujeito.

O tema álcool e outras drogas na reforma psiquiátrica

“Vários tipos de categorias profissionais vem sendo


convidadas a exercer funções policiais cada vez mais
precisas: professores, psiquiatras, educadores de
todo tipo”.
Michel Foucault.

145
O uso de substâncias psicoativas sempre esteve presente nos
diversos momentos históricos e nas diferentes culturas humanas,
recebendo, em cada tempo e geografia, significados e valores
distintos, não necessariamente associados a práticas marginais ou
criminosas (ESCOHOTADO, 1996). Dependendo do lugar e do período,
uma droga pode ser considerada lícita ou ilícita, assumindo diferentes
status e estatutos na cena social. O sentido de experiência de borda é
um elemento contemporâneo nesta histórica relação. As políticas
públicas, por sua vez, incidem diretamente nestes processos sócio-
históricos, reproduzindo outras economias psíquicas.
Desse modo, para construir uma política sobre drogas, é
preciso compreender seus lugares e funções num determinado
contexto social, considerando sempre o caráter multifacetado do
epifenômeno9, evitando, assim, o investimento público em projetos
fundamentados em reducionismos.
Um país como o Brasil, com dimensões continentais e
multiculturais, apresenta diferentes cenários para o uso de drogas e
distintas formas de relação com as mesmas. O uso do crack, por
exemplo, tem sido situado como um dos principais problemas atuais
na saúde pública brasileira, ainda que os dados epidemiológicos
demonstrem que o uso de álcool e tabaco seja mais preocupante em
relação às mortes por acidentes de trânsito ou doenças pulmonares.
Assistimos a mídia enaltecendo projetos de leis de internação
compulsória que retrocedem às conquistas do cuidado em liberdade e
no território, das Reformas Psiquiátrica e Sanitária, violam direitos
humanos, estigmatizam usuários, além de induzir à terceirização do
Sistema Único de Saúde. O que tem sido “vendido” como oferta de

9
Segundo Novo Dicionário Aurélio (1989): “(de epi + fenômeno) (1) Filos. fenômeno
que é subproduto ocasional de outro, sobre o qual não exerce qualquer influência, e
do qual é dependente. (2) Med. Acontecimento excepcional, acidental ou
secundário”. Ricardo Brasil Charão referiu-se ao crack como epifenômeno ao
problematizar nossas formas de viver na contemporaneidade no Encontro Estadual
de Saúde Mental em Hospital Geral. Porto Alegre, 2011.

146
cuidado tem por trás uma limpeza social, tirando das ruas os que
denunciam nosso maior problema, que é a desigualdade social.
Ao analisar esse contexto, cabe como desafio das políticas
públicas intersetoriais, no que diz respeito ao cuidado em saúde de
pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas,
trabalhar na direção da desassociação do estigma, pois quando o tema
vem fortemente colado à criminalidade e práticas antissociais, as
possibilidades de tratamento acabam sendo inspiradas em modelos
manicomiais, de exclusão/separação dos usuários do convívio social.
É preciso repensar as formas de cuidar destas pessoas,
contemplando formas de promoção à saúde, em consonância com a
Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral aos Usuários de
Álcool e Outras Drogas (BRASIL, 2003) que traz a redução de danos de
forma transversalizada em todo o documento, de forma a ser
interpretada como diretriz de trabalho no cuidado a pessoas que usam
álcool e outras drogas por qualquer trabalhador da saúde que for
acolher esta temática. Esta interpretação foi feita a partir de diversas
discussões a nível estadual e federal, com trabalhadores e gestores de
diferentes políticas, incluindo saúde mental e controle de DST/Aids.
Essa Política traz uma série de proposições que convergem
com os preceitos da Reforma Psiquiátrica, pois vemos a necessidade
de desconstruir o senso comum de que todo usuário de drogas é um
doente que requer internação, prisão ou absolvição.

(...) A abstinência não pode ser, então, o único


objetivo a ser alcançado. Aliás, quando se trata de
cuidar de vidas humanas, temos de,
necessariamente, lidar com as singularidades, com
as diferentes possibilidades e escolhas que são
feitas. As práticas de saúde, em qualquer nível de
ocorrência, devem levar em conta esta diversidade.
Devem acolher, sem julgamento, o que em cada
situação, com cada usuário, é possível, o que é
necessário, o que está sendo demandado, o que
pode ser ofertado, o que deve ser feito, sempre

147
estimulando a sua participação e o seu
engajamento (BRASIL, 2003, p. 10).

Domiciano Siqueira e Rose Mayer (2010) sistematizam um


conceito de Redução de Danos que afirma o seu lugar como diretriz de
trabalho10:

(...) Redução de Danos é uma das diretrizes de


trabalho do SUS. Não estabelece a diminuição do
consumo como condição de acesso ou exige
abstinência a priori, mas o protagonismo da pessoa
que usa drogas. Fundamenta-se nos Direitos
Humanos e considera o exercício da liberdade, os
modos de viver e trabalhar, a saúde como produção
e determinação social, convergindo com a posição
ética e compreensiva proposta pela Saúde Coletiva.
Implica um repertório de cuidado integral e
intersetorial, na perspectiva da rede. Incluem
conjuntos de estratégias singulares e coletivos
voltados as pessoas que usam, abusam ou
dependem de drogas e sua rede social e afetiva.
Dirige-se à identificação e minimização dos fatores
de riscos sociais econômicos e de saúde bem como
potencialização dos fatores de proteção, cidadania
e defesa da vida.

Passaram-se 20 anos de Reforma Psiquiátrica no Rio Grande


do Sul e quase 12 anos no Brasil e ainda estamos em um campo de
extrema disputa. Historicamente, o tema álcool e outras drogas
caminharam à margem do processo da Reforma Psiquiátrica, pois foi
pouco discutido no processo de criação e implantação desse outro
modelo de cuidado. É a partir dessa lacuna que modalidades de
tratamento geradoras de exclusão têm sido justificadas, além de
10
Conceito sistematizado por Domiciano Siqueira e Rose Mayer na Oficina de
Redução de Danos ocorrida no Congresso de Crack, em Porto Alegre, julho 2010.

148
suscitar olhares diversos com referencial muitas vezes de aspectos
morais. Talvez essa lacuna também seja a de nos apontar que não
basta fechar os hospitais psiquiátricos e criar novos serviços, mas
fortalecer a rede de atenção e, principalmente, incidir sobre o olhar da
sociedade.
Segundo Lancetti (2011), um dos maiores riscos que o advento
do crack nos traz é a possibilidade de interrupção do processo de
Reforma Psiquiátrica na construção do sistema público de saúde
mental. Isso se deve a “fissura” por responder rapidamente a uma
demanda de urgência, ao invés de construir uma visão compartilhada
com o outro, buscando quais os caminhos possíveis.

Linhas e fluxos de um cuidado no território

“Olhar dá medo porque é risco. Se estivermos


realmente decididos a enxergar não sabemos o que
vamos ver. (...) Tudo o que somos de melhor é
resultado do espanto. Como prescindir da
possibilidade de se espantar? O melhor de ir para
rua e espiar o mundo é que não sabemos o que
vamos encontrar. (...) (Essa é a maior graça de ser
gente).”
Eliane Brum, 2005

Acompanhar pressupõe estar junto de alguém; fazer


companhia a; dar atenção a; partilhar. Cuidado implica solicitude,
diligência, desvelo; ter preocupação ou atenção em; disponibilidade
ao outro; se ocupar de (NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO, 1989). Estar
junto, fazer companhia, estar solícito a dar atenção ao outro, estar
disponível, se ocupar do outro, partilhar exige escuta. Acompanhar em
saúde supõe, portanto, a escuta do desejo do outro de por onde ele
quer andar. E esse andar pressupõe diferentes andares, que podem
mudar a cada instante e a cada nova potência de vida que se abre.
São diferentes linhas que se entrecruzam e que podem ou
não conter em seus trajetos dispositivos de saúde. Esses dispositivos

149
não serão necessariamente serviços estanques se as linhas em si
presumirem cuidado ao abrir os trajetos para novas vias de desejo e
de vida.
Ao refletir sobre o cuidado em saúde, inevitavelmente vem à
mente quais os serviços de saúde estão disponíveis no território como
oferta de cuidado, como se todo o acompanhamento tivesse que se
antecipar como terapêutico e como se todas as ofertas fossem
garantia de acesso em saúde. Nem toda a oferta é garantia de acesso,
assim como nem todo o acompanhamento se nomeia como
terapêutico. Mas um acompanhamento poderá ter efeitos
terapêuticos se puder dar espaço à singularidade, dando aberturas
possíveis para que o desejo possa se enunciar. E que outros tantos
espaços e linhas de cuidado um território pode oferecer?
A Linha de Cuidado acontece no território, que é o que Milton
Santos define como “matriz da vida social, econômica e política”
(SANTOS, 2006). Um território dentro de uma cidade com tudo que o
que nela é vivo e que se descobre mesmo quando se tenta esconder;
com “tudo o que nela deixa marca: o suor e o trabalho, o desespero e
a lágrima, a tragédia e o sangue” (BAPTISTA, 1999, p. 9). Um território
dentro de uma cidade onde a lógica capitalista fabrica indivíduos,
como demonstram alguns contos de Luis Antonio Baptista na obra
citada, mas que possa abrir espaços para possibilidades de escolhas
que emergem de encontros e palavras, “que é o mais humano de
todos os artifícios para devolver-lhes de pleno direito o seu lugar no
mundo da cidade e da História” (BAPTISTA, 1999, p. 10).
O território é onde todos se encontram, pois com as novas
tecnologias, o espaço adquiriu outras características para se tornar um
conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações, que
trazem como categorias analíticas internas “as paisagens, a
configuração territorial, a divisão territorial do trabalho, o espaço
produzido ou produtivo, as rugozidades e as formas conteúdos”
(SANTOS, 2004, p. 22). Desse modo, o espaço é um “conceito histórico
atual e fruto, ao mesmo tempo, da emergência das redes e do
processo de globalização” (Idem).

150
O usuário é o elemento estruturante da Linha de Cuidado,
pensada a partir do Projeto Terapêutico, já que a linha de Cuidado é
fruto de um pacto a ser realizado entre todos os atores que controlam
serviços e recursos assistenciais, pois o trabalho é integrado e não
partilhado (FRANCO & FRANCO, 2011).
Conceitualmente, a Linha de Cuidado é entendida como o
trabalho integrado entre serviços e recursos de uma rede que
compõem um território, que é muito mais amplo do que a rede que
conhecemos. Isso significa acompanhar o caminho que o usuário faz,
tendo o Projeto Terapêutico Singular – PTS como fio condutor e o
usuário como o elemento estruturante da gestão desse cuidado, ou
seja, o desejo do usuário é o “GPS” dessa Linha. Considera-se que
quem caminha nesta linha não é a patologia, mas sim um sujeito, cuja
saúde diz respeito principalmente a ele mesmo (CECCIM e FERLA,
2006).
A Linha de Cuidado tem a Atenção Básica como ordenadora e
a porta preferencial, mas não a única, já que em saúde mental não se
pode ter portas de entrada rígidas. O conjunto de estratégias é
pensado a partir da demanda de cuidado do usuário, com base em
uma avaliação de risco, reorganizando o processo de trabalho, com
objetivo de facilitar o acesso do usuário às Unidades e Serviços aos
quais necessita. Dessa forma, a Linha de Cuidado é fruto de um pacto a
ser realizado entre todos os atores que gerenciam serviços e recursos
assistenciais, pois o trabalho é integrado e não partilhado e se difere
dos processos de referência e contrarreferência, apesar de incluí-los
também. Trata-se de, a partir do vínculo, acompanhar o caminho que o
usuário faz dentro da rede (FRANCO & FRANCO, 2011).
Depois de organizada a Linha de Cuidado, a formação de um
Grupo Gestor é importante para manter seu funcionamento, pois é ele
que vai fazer o acompanhamento e o monitoramento dos fluxos
pactuados, garantindo que seus caminhos e acessos permaneçam
desobstruídos (FRANCO & FRANCO, 2011).
Este Grupo Condutor, que irá fazer a gestão da Linha de
Cuidado, poderá ser composto por aqueles que têm a apropriação dos

151
fluxos da rede e trânsito em todos os serviços; também poderão ser
pessoas indicadas por cada serviço para fazer esta gestão, garantindo
que este processo tenha participação de todos e que as pessoas que
farão parte do Grupo Condutor sejam representantes da rede.

(...) A gestão das Linhas de Cuidado deve estar


atenta aos processos instituintes, isto é, as
mudanças do processo de trabalho, os novos fluxos
que surgem, as inovações no ato de cuidar, o grupo
gestor deve procurar perceber essas inovações
como elementos que enriquecem o que foi
anteriormente definido para os fluxos assistenciais.
Não é porque algo não está previsto anteriormente
nos fluxos, que pode ser prejudicial ao mesmo.
Muitas vezes a novidade que surge é um
aperfeiçoamento ao processo pensado
originalmente e, portanto, deve ser contemplado.
Liberdade anda junto com a criatividade, e esta é a
maior fonte de enriquecimento e aperfeiçoamento
das Linhas de Cuidado Integral (FRANCO & FRANCO,
2011, p. 5).

Redução de danos na linha de cuidado em saúde mental

“Não pense que a pessoa tem tanta força assim a


ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar
a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser
perigoso — nunca se sabe qual é o defeito que
sustenta nosso edifício inteiro”.
Clarice Lispector

No cenário atual, chama à atenção, tanto no sentido de uma


convocação como de um analisador, a potencialidade da Redução de
Danos como estratégia de cuidado no território para pessoas com
problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas concomitante
a fragilidade de sua sustentabilidade. Há uma polissemia de sentidos e

152
processos que justificam esse quadro: a forte resistência em
reconhecer que esse lugar na rede “está em franca sintonia com todas
as experiências sanitárias que buscam a defesa da vida” (LANCETTI,
2006, p. 77), é uma delas.
Quais seriam as outras polissemias? Qual a compreensão de
Redução de Danos que conduzem as práticas? Qual o caminho que os
usuários percorrem? Por onde passam e com quem contam? O que
buscam? Quem faz redução de danos? Como aprendemos com a
Redução de Danos e a Saúde Coletiva respostas somente são possíveis
a partir de cada situação, seus atores implicados, as forças em
movimento num dado território de vida, disputa e diversidade.
A Redução de Danos é tomada como uma ferramenta
importante no cuidado das pessoas que usam álcool e outras drogas
por possibilitar a produção de saúde, cuidado e cidadania. As três
grandes contribuições da Redução de Danos, todas na direção do
protagonismo e da equidade aos usuários, são: a não exigibilidade da
abstinência; o direito e o incentivo a participação política em
diferentes espaços, como conselhos de saúde, conferências, etc.; e o
trabalho no campo articulado com o território, já que “para promover
saúde é preciso transformar a cidade numa máquina de produzir
cuidado” (PETUCO & MEDEIROS, 2010).
E quem pode operar os conceitos da redução de danos?
Importante ressaltar o território como o redutor de danos e a
importância no seu trabalho de campo, mas lembrar que não é o único
agente que pode operar os conceitos de Redução de Danos no
cotidiano11. Como diretriz, a RD pode estar atravessada no fazer de
qualquer profissional do campo das políticas públicas ao
transversalizar as ações do cuidado com pessoas que usam álcool e
outras drogas, com intervenções que passem por propiciar o
estabelecimento de novas formas de relação com a droga,
fortalecendo o protagonismo e promovendo a capacidade de
transformação.
11
Denis Petuco, em apresentação no Congresso Sul-Brasileiro de DST´s e AIDS,
2009 – não publicado.

153
Os redutores de danos, por sua vez, são agentes que se
deparam com situações limite, sendo que a singularidade do trabalho
remete, muitas vezes, a uma concretude subjetiva, em que é preciso
“emprestar o desejo” ao sujeito para que ele possa vir ou voltar a
desejar, exercendo, em alguns momentos, uma função de espelho, no
sentido de devolver uma imagem e lembrá-lo dos sonhos e projetos
que ora foram compartilhados, mas que estão esquecidos. É essa
aproximação do agente redutor de danos com esses sujeitos que
possibilita com que o redutor se coloque nas brechas que a pessoa
abre entre ela e a droga no caso da dependência, bem como minimizar
os riscos que experimenta no caso de uso e abuso. Reconhecendo,
assim, os gestos de cada um em se enfrentar e se superar, mesmo
quando não conseguiu tudo o que pretendia e, assim, criar com cada
um, alternativas e distâncias necessárias entre ela e a droga quando
ela se sente vacilar (ROBERTO, 2003).
Mas é importante pensar nesse limiar que se coloca o redutor
de danos, entre emprestar o desejo ou prescrevê-lo, pois há uma forte
demanda de prescrição em virtude da concretude dos casos
acompanhados. A prescrição pode passar pela indução às trocas de
objeto de gozo, pois há quem trabalhe com a ideia de que fazer
redução de danos se resume a trocar simplesmente uma droga pela
outra, e também passa pelo risco em induzir um “modo de ser da
redução de danos”, impondo uma permissividade muito ampla que
passe por colocar a droga num lugar divino e de desconsiderar que
algumas relações com o objeto da droga são prejudiciais. Com isso,
vemos a importância de retomamos Foucault ao dizer que “(...) ser
livre em relação aos prazeres é não estar a seu serviço, é não ser seu
escravo” (FOUCAULT, 2003, p.74). Dessa forma, qualquer intervenção
que não passe pela escuta do desejo e da singularidade, nesse sentido,
pode ser prescritiva, e a redução de danos não está livre disso.
Em uma oficina de trabalho com agentes redutores de danos
para trocas de experiências do trabalho de campo nas cenas de uso de
drogas, uma das redutoras aponta para um possível “perfil” para esse
trabalho: “Para ser redutor é preciso se autorizar para isso”. Eu

154
ampliaria esta afirmação, colocando que para promover cuidado,
abrindo espaços de potência de vida no território, também é preciso
se autorizar para isso. E de onde vem essa autorização? Uma formação
garante essa autorização? Não existe uma única via que possa nos
explicar de onde possa vir essa autorização, nem mesmo uma
formação que garanta a suspensão da moral, tão imprescindível para
esse trabalho. Mas talvez uma das hipóteses seja a de poder se lançar
no encontro com o outro a partir de modos de ação, que nos
convocam a fazer uma escuta ativa, aquela que tem potencial de
transformar quem fala, mas de transformar quem escuta também.
Faz-se necessário o acompanhamento do trabalho de
Redução de Danos em um processo cotidiano de educação
permanente para fortalecer e refletir sobre as suas práticas, seu lugar
e efeitos na organização da rede local, os itinerários dos usuários e
suas relações com outros espaços, os acessos e barreiras ao cuidado e
a articulação entre gestão, atenção, educação permanente e controle
social. Ceccim e Feuerwerker nos convocam a refletir sobre a
importância de cada eixo do SUS e da articulação entre eles a partir do
quadrilátero de formação, em que cada face é liberada e controlada
por fluxos específicos, composta por interlocutores específicos e se
configura por espaços-tempos com motivações diferentes (CECCIM &
FEUERWERKER, 2004, p. 47).
A formação e o desenvolvimento dos trabalhadores também
têm que envolver a apropriação dos aspectos culturais de cada
território, bem como os aspectos pessoais e ideais que cada um deles
tem sobre o SUS, sobre a Saúde Mental e sobre as questões
relacionadas ao uso de álcool e outras drogas. É importante ressaltar
que o local de trabalho também é um lugar privilegiado de produção e
disseminação do conhecimento (BRASIL, 2005).

Dos territórios possíveis da redução de danos

A temática álcool e outras drogas tem encontrado muitos


desafios nos itinerários e linhas da Reforma Psiquiátrica. O maior

155
desafio talvez seja o de reafirmar o cuidado no território num contexto
de forte pressão política que retrocedem às conquistas já realizadas
pela Reforma, vide os Projetos de Lei de internações compulsórias.
As linhas de cuidado e a Redução de Danos podem contribuir
para a ampliação desse acesso em saúde mental, álcool e outras
drogas, para além do que temos como oferta de serviços aos usuários,
já que estas ofertas não são garantia de acesso. Essa ampliação do
acesso se dá na medida em que a escuta pode se dar no território, sem
colocar a exigibilidade de abstinência independente de ser no
território ou em algum serviço de saúde, bem como incentiva sua
participação política em diferentes espaços.
A Redução de Danos lança mão de ferramentas que propiciam
o protagonismo, além de dirigir nosso olhar e práticas ao território.
Este é protagonizado especialmente pelo usuário e inspirado, desde a
Saúde Coletiva, na intencionalidade de um Plano Terapêutico
Singularizado ao encontro de uma saúde agenciada na negociação
ética, que reconheça a dimensão política dos modos de viver e
trabalhar implicados nas escolhas e nos delineamentos intercessores
que podem pautar um projeto de vida e, por conseguinte, uma
construção social.
O território da Redução de Danos é o da Linha de Cuidado
porque convoca o usuário a buscar e potencializar em si e ao seu redor
formas de cuidado a partir de caminhos muito singulares. Um cuidado
que, ao cuidar de si, traz efeitos na sua relação com o outro, como nos
coloca Foucault em História da Sexualidade 3: o cuidado de si (1985), e
com o seu território, que é sempre subjetivo. Sendo subjetivo, ele não
pode ser visto apenas como o espaço geográfico, mas como espaço de
práticas de cuidado, relações, cultura e produção de subjetividade. Um
território que possibilite a legitimidade do desejo.

Referências

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156
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157
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USP, 2004.

_______. O mundo global visto do lado de cá. Documentário: 2006.


Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM

158
Capitulo VIII

Linha de Cuidado em Saúde Mental, Álcool e outras


Drogas“O cuidado que eu preciso”
Károl Veiga Cabral, Ana Carolina Rios Simoni, Sandra Maria Sales
Fagundes, Paula Emilia Adamy, Carolina Nunes Port, Jaqueline da Rosa
Monteiro, Vanessa Bettiol Oliveira, Simone Alves Almeida

A maioria das atuais práticas de atenção em saúde ofertadas a


pessoas que fazem uso de drogas é atravessada por uma moralidade
que cega e ensurdece os profissionais de saúde para as demandas
singulares e coletivas dos usuários. Nesse contexto, soluções únicas e
reducionistas aparecem travestidas de salvação, e vão construindo
formas de atenção nos serviços de saúde desconectadas dos modos de
viver daqueles a quem se dirige o cuidado. O modelo centrado na
doença como dependência química prolifera ações prescritivas de
internação, desintoxicação e manutenção da abstinência,
padronizando o “terapêutico” e retirando do cuidado sua força criativa
potencializadora da vida.
Diante dessa realidade, surge como desafio à Política de Saúde
Mental, Álcool e outras Drogas no Brasil, em todas as esferas
governamentais, reinscrever o cuidado AD no campo imantado pelos
princípios ético-técnico-estético-políticos da Reforma Psiquiátrica
Brasileira, no qual a cidadania e o direito ao cuidado integral em saúde
em liberdade são a priori inegociáveis. Alguns dos desafios que se
colocam nessa empreitada de trazer, efetivamente, a atenção aos
usuários de drogas para dentro da Reforma são:

159
 disseminar o cuidado usuário-centrado, tendo a redução de
danos como diretriz e promovendo a educação permanente
em saúde e a cidadania;
 garantir a atenção integral no campo das políticas de álcool e
outras drogas, considerando a ineficiência do modelo centrado
na internação, desintoxicação e abstinência;
 superar o modelo que reproduz um ciclo de internações
sucessivas (hospital com porta giratória), no qual o itinerário
terapêutico do usuário é um interminável vai-e-vem de
internações para desintoxicação, sem vínculo com equipe de
referência e sem acompanhamento territorial no retorno à
comunidade, na qual encontram-se as mesmas condições que
o fazem retornar à internação;
 constituir uma rede sólida de serviços de saúde, em linha de
cuidado, com garantia do acesso e articulação transversal com
outras políticas públicas, de modo a desencadear processos de
cuidado com acolhimento, vínculo, corresponsabilização e
acompanhamento longitudinal em rede;
 ofertar cuidado territorial, inclusive nas cenas de usos de
drogas, acionando os pontos de atenção da rede, organizados
em linha de cuidado, tendo a Atenção Básica como ordenadora
do cuidado integral, via construção de Projetos Terapêuticos
Singulares, assessorados e acompanhados em práticas de
apoio matricial.

Para conferir concretude a estas formulações, a Secretaria


Estadual da Saúde criou o Projeto Estratégico de Governo Linha de
Cuidado em Saúde Mental Álcool e outras Drogas “O Cuidado que eu
Preciso”. A primeira etapa do projeto (no primeiro semestre de 2011)
consistiu na realização de um mapeamento e diagnóstico situacional
da rede de atenção psicossocial de nosso estado, onde ficou clara a
necessidade de ampliar a rede de serviços, fortalecer a atenção básica
para o cuidado em saúde mental, bem como de buscar a
intersetorialidade e a transversalidade das ações em parceria com as

160
demais secretarias estaduais, as coordenadorias regionais de saúde, os
movimentos sociais e as gestões municipais. A segunda etapa
(segundo semestre de 2011) consistiu na elaboração e aprovação na
Comissão Intergestores Bipartite – CIB – de propostas de
redirecionamento do financiamento da Rede de Atenção Psicossocial –
RAPS.
Na terceira etapa do projeto (durante o ano de 2012), se
intensificou a ampliação dos pontos de atenção territoriais desta rede
e se dispararam uma série de processos de educação permanente
para os profissionais. Além disso, e, principalmente, houve a adesão
oficial dos municípios ao projeto, o que significa que gestores e
trabalhadores assumiram o compromisso de operar a Linha de
Cuidado como ferramenta de gestão para o trabalho em rede. Na
prática, essa adesão implicou a criação de instâncias permanentes de
pactuação e repactuação de fluxos de cuidado entre os pontos da
Rede de Atenção Psicossocial – RAPS, nos níveis municipal e regional,
incluindo a articulação com as redes intersetoriais.
Neste artigo, será descrito como este projeto conferiu
movimento à rede de saúde e materialidade ao cuidado integral em
álcool e outras drogas nas regiões e municípios gaúchos.

Reorientação estratégica das linhas de financiamento em saúde


mental

No Rio Grande do Sul, as políticas públicas de saúde mental


implementadas pelo Governo do Estado priorizaram, de 2007 a 2010,
investimentos em meios de internação – leitos hospitalares e vagas
em Comunidades Terapêuticas. O Projeto Estratégico de Governo,
criado em 2011, Linha de Cuidado em Saúde Mental, Álcool e outras
Drogas – O cuidado que eu preciso, redirecionou os recursos do
tesouro do estado em torno dos seguintes eixos de estratégicos:

161
1. Linha de Cuidado como estruturante do redirecionamento do
modelo de atenção hospitalocêntrico para o de trabalho em
rede;
2. Fortalecimento da Atenção Básica;
3. Expansão e Qualificação da Atenção Psicossocial Estratégica;
4. Qualificação do componente Atenção Hospitalar;
5. Expansão qualificada do componente Moradia Transitória.

A escolha destes eixos foi feita em consonância com as


recomendações da IV Conferência Nacional de Saúde Mental
Intersetorial e com a Política Nacional de Saúde Mental, que criou no
país a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), através da Portaria
GM/MS nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011 (BRASIL, 2011a), para
acolher e acompanhar as pessoas com sofrimento ou transtorno
mental e com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras
drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde.
Considerando que a estruturação das Redes de Atenção em
Saúde tem a atenção básica como ordenadora do cuidado e também
tendo em conta que quase 80% dos municípios gaúchos têm
população inferior a quinze mil habitantes e, portanto, não podem
contar com serviço especializado de saúde mental (CAPS) em seu
território, a Secretaria de Saúde do Estado, criou dispositivos e linhas
de financiamento próprios para potencializar o cuidado em saúde
mental em rede a partir da atenção básica.
Os serviços componentes da Linha de Cuidado em Saúde
Mental, Álcool e outras Drogas no Rio Grande do Sul são: Centros de
Atenção Psicossocial – CAPS, Núcleos de Apoio à Atenção Básica –
NAAB, Oficinas Terapêuticas – OT, Composições de Equipes de
Redução de Danos – RD, Leitos de Atenção Integral em Saúde Mental
em Hospital Geral – HG, Unidades de Acolhimento adulto e infanto-
juvenil – UA e Uai, e vagas contratualizadas e monitoradas em
Comunidades Terapêuticas – CT. Estes serviços tiveram o implemento
de recurso estadual com diretrizes de funcionamento especificadas
em resoluções CIB (RIO GRANDE DO SUL, 2008; 2011a; 2011b; 2011c;

162
2012a; 2012b e BRASIL, 2011b, 2012a, 2013). Tais cofinanciamentos
são importantes subsídios aos municípios para a contratação de
profissionais, o aprimoramento da estrutura dos serviços e a
organização das ações, qualificando assim a rede de atenção.
A atenção básica é o ponto de atenção da rede de saúde
privilegiado para desenvolver ações de cuidado e promoção de saúde
na infância e adolescência, para incidir nos ciclos da violência e em
outras vulnerabilidades sociais. A articulação intersetorial para criação
e fortalecimento de espaços de promoção da saúde que incluam
acompanhamento de crianças, adolescentes, pais, cuidadores, homens
e mulheres de todas as faixas etárias, em ambiente escolar, domiciliar
e comunitário são ações passíveis de serem executadas por
profissionais da atenção básica.
Estas e outras ações podem potencializar os aspectos de
resiliência dos sujeitos, famílias e comunidades. Tendo em vista
necessidades desta ordem, foram criados os Núcleos de Apoio à
Atenção Básica, as Oficinas Terapêuticas e as Composições de
Trabalho e Equipes de Redução de Danos.
O Núcleo de Apoio a Atenção Básica – NAAB foi um dos
dispositivos criados para fortalecer este nível da atenção. A inserção
de uma equipe multiprofissional de apoiadores junto às equipes de
Atenção Básica almejou, especialmente, a mudança de modelo de
atenção, ampliando ações já desenvolvidas e construindo novas
possibilidades de processos de trabalho das equipes com vistas à
diversificação dos modos de cuidar.
As Oficinas Terapêuticas na Atenção Básica foram destinadas à
Promoção da Saúde, ao configurarem-se como lócus de práticas
coletivas, enlaçando interesses singulares em torno de um fazer
comum, promovem os laços de pertença comunitária na direção da
inclusão social. Seu intuito foi o de fortalecer os espaços comunitários
de convivência e a produção de redes de solidariedade. Consistem em
encontros realizados no território da atenção básica em que se
realizam atividades criativas em grupo, tais como: música, teatro,
artesanato, carpintaria, costura, cerâmica, fotografia, artes plásticas,

163
dança, culinária, entre outras. Até dezembro de 2014, segundo dados
da SES/RS, 120 NAABs e 297 oficinas estavam em funcionamento no
RS.
Destinadas a municípios com população superior a 16 mil
habitantes, criou-se financiamento para as Composições de Equipes de
Redução de Danos, as quais também devem operar na lógica de
fortalecimento do cuidado no território pela atenção básica. O
trabalho destas equipes visa aproximar-se dos cenários e experiências
do uso de drogas para criar com o usuário estratégias de cuidado
singular para construir projetos de vida nos quais o cuidado de si e do
outro seja possível, independentemente da presença ou ausência de
abstinência.
Neste dispositivo, cada equipe é formada por três profissionais
de nível médio ou superior que organizam seu processo de trabalho de
modo a realizar atividades de campo de redução de danos nas cenas
de uso e articulam práticas de apoio matricial sobre redução de danos
para outras equipes da Rede de Atenção Psicossocial. Ao incluir, nos
cenários da atenção em saúde, práticas de cuidado e de apoio
matricial descoladas dos imperativos sociais morais que demonizam o
uso de drogas e que prescrevem futuros dantescos para os usuários,
as Composições de RD contribuem para transversalizar na rede de
saúde e intersetorial a ética da redução de danos, da integralidade,
equidade e universalidade do cuidado. Em dezembro de 2014, as
composições de RD somavam 40 equipes em diferentes municípios do
RS.
A expansão e qualificação da Rede de Atenção Psicossocial
estratégica também foi uma ação prioritária do projeto Linha de
Cuidado em Saúde Mental, Álcool e Outras drogas da SES, com a
destinação de recursos para financiamento estadual de CAPS em
implantação e complementação de financiamento para CAPS dia e
CAPS 24h.
Os Centros de Atenção Psicossocial são dispositivos de base
comunitária, cujo processo de trabalho precisa ser caracterizado por
plasticidade suficiente para se adequar tanto às necessidades das

164
pessoas em sofrimento psíquico grave, relacionados ou não ao uso de
álcool e outras drogas, quanto às de seus familiares. Em suas
diferentes modalidades, os CAPS são os pontos de referência
estratégicos no desenvolvimento de projetos de cuidado e proteção
para usuários e familiares nos momentos mais intensos do sofrimento,
sendo de sua responsabilidade a atenção à crise, o acompanhamento
longitudinal a partir de planos terapêuticos singulares de reabilitação
psicossocial, o apoio matricial em saúde mental para os demais pontos
da rede na direção do compartilhamento do cuidado e a transferência
do cuidado dos usuários, que já não demandem cuidado intensivo,
para a atenção básica.
Na atenção psicossocial estratégica os dispositivos grupais, as
ações comunitárias intersetoriais, os acompanhamentos domiciliares e
o acolhimento noturno (nos caso dos CAPS 24h) são potentes
estratégias de cuidado no contexto do uso problemático de drogas
(BRASIL, 2011b e 2012a). Entre o final de 2011 e o fim de 2014,
agregaram-se à RAPS do RS 50 novos CAPS, dos quais 11 são do tipo
AD 24h. Isso significa que a ampliação da rede que foi posta em curso
priorizou tecnologias de cuidado como a hospitalidade noturna,
oferecendo aos usuários com problemas relacionados ao uso de
drogas espaços de acolhimento ao invés da segregação produzida,
comumente, nos tratamentos compulsórios.
O projeto estratégico O Cuidado que Eu Preciso considerou
ainda a atenção hospitalar em hospitais gerais como um dos pontos a
ser qualificado para a efetivação das redes de cuidado. Entendeu-se
que os leitos hospitalares são um componente importante da atenção,
mas que seu funcionamento apenas é efetivo quando em articulação
aos demais pontos da rede.
Neste sentido, elegeu-se como necessário: a) qualificar os
processos de regulação do acesso aos leitos; b) aproximar os
dispositivos hospitalares dos dispositivos de atenção territorial da
rede; c) realizar uma realocação dos leitos existentes, de modo que
eles estejam distribuídos de forma mais equânime nas regiões do
estado.

165
Visando adequar a realidade estadual às novas diretrizes
nacionais, regidas pela Portaria 148 do Ministério da Saúde, de janeiro
de 2012 (BRASIL, 2012c), o Estado do Rio Grande do Sul redefiniu a
forma de organização e financiamento dos Serviços Hospitalares para
atenção integral a pessoas com sofrimento ou transtorno mental e
com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas em
hospitais gerais. No que diz respeito ao aspecto financeiro, o valor dos
incentivos mensais aumentou significativamente, entretanto, o
pagamento foi atrelado à taxa de ocupação dos leitos para evitar o
financiamento de serviços que obstaculizam o acesso ou que utilizam
os recursos da saúde mental para investir em outras áreas do hospital.
A principal modificação técnica adotada referiu-se à exclusão
da distinção dos leitos nas categorias “leitos psiquiátricos” e “leitos
clínicos para álcool e outras drogas”. Doravante, os leitos destinam-se
a pessoas em sofrimento psíquico, decorrentes ou não do uso de
álcool e outras drogas, sendo denominados leitos de atenção integral
em saúde mental. Essa transformação implicou na qualificação e
ampliação das equipes de saúde mental dos hospitais, assim como a
necessidade de reformulação de seus projetos técnicos institucionais,
para que efetivamente ofertassem cuidados articulados em rede com
os demais pontos da atenção.
Outro novo serviço da RAPS, nesse caso, criado pelo governo
federal e cujo financiamento é complementado pelo Estado são as
Unidades de Acolhimento – UA. São pontos de atenção que ofertam
um ambiente residencial de caráter transitório para pessoas em
vulnerabilidade e com necessidades decorrentes do uso de álcool e
outras drogas. O tempo de permanência neste dispositivo é de até seis
meses e o ingresso é definido pela equipe de referência do território,
conjuntamente com usuário e familiares, a partir de um projeto
terapêutico singular.
Há possibilidade de se implantar Unidades de Acolhimento
específicas crianças e adolescentes – UAi – de 12 a 18 anos,
modalidade infanto-juvenil, e Unidades específicas para adultos. Tais
dispositivos configuram-se como uma alternativa para evitar

166
internações hospitalares de longa permanência (as quais não trazem
efeitos terapêuticos). As Unidades de Acolhimento visam ainda a
fortalecer a longitudinalidade e intersetorialidade do cuidado, ao se
articular aos demais pontos da rede de saúde e intersetorial para
garantir cuidados contínuos em saúde (nos CAPS, ESF, HG etc.), bem
como acesso à educação, trabalho e renda e outros direitos sociais
(BRASIL, 2012b).
Desse modo, este ponto da rede se difere das comunidades
terapêuticas pelo seu caráter laico, pela não padronização do
acompanhamento e do tempo de permanência do usuário e pela sua
capacidade de articulação com a rede de saúde e intersetorial.
Considerando a baixa cobertura de Unidades de Acolhimento no Rio
Grande do Sul, o investimento no cofinanciamento deste dispositivo
também foi uma ação da Política Estadual para estimular a adesão dos
municípios (RIO GRANDE DO SUL, 2013), a partir do qual se
implantaram algumas unidades no RS. Em dezembro de 2014, já se
contava com duas UAi e duas UA em funcionamento no RS. O cuidado
nas unidades de acolhimento é um desafio para a RAPS do RS, uma vez
que os longos anos de trabalho com o modelo das CTs sedimentaram a
logica da abstinência como foco da oferta assistencial, o que vem se
modificando aos poucos no empuxo gerado pelo trabalho em rede.

Georreferenciamento, Apoio Institucional e Educação Permanente

É importante salientar que o Projeto Estratégico Linha de


Cuidado em Saúde Mental Álcool e outras Drogas - O cuidado que eu
preciso inseriu-se num contexto mais amplo de redesenho da atenção
em saúde no RS, a partir da criação de Linhas de Cuidado por ciclo de
vida, grupos vulneráveis e políticas transversais estratégicas para
operar itinerários mais resolutivos de cuidado nas regiões de saúde.
Para implementar as linhas de cuidado nas trinta regiões de saúde do
estado, disparou-se um processo de gestão georreferenciado, com a
criação de uma equipe de apoio composta por assessores técnicos da
Secretaria Estadual de Saúde referenciada para cada uma das sete

167
macrorregiões do RS. O objetivo do trabalho foi o de realizar apoio
institucional às Coordenadorias Regionais de Saúde e municípios na
implementação das Linhas de Cuidado.
Sabia-se que ampliar o conjunto dos serviços sem modificar os
processos de trabalho instituídos não resultaria em mudanças na
qualidade do cuidado. Nesse sentido, a Política de Saúde Mental,
Álcool e Outras Drogas se inseriu no processo de georreferenciamento,
tendo representação em cada um dos grupos macrorregionais, quais
sejam: 1) Macro Metropolitana; 2) Macro Norte; 3) Macro Vales e
Macro Serra; 4) Macro Missioneira e 5) Macro Centro-Oeste e Macro
Sul.
Tratou-se, em cada uma das Macrorregiões, de identificar os
vazios assistenciais em todos os níveis da atenção e de fomentar a
ampliação da rede via implantação dos pontos de atenção que compõe
a linha de cuidado, já mencionados anteriormente. No entanto, tratou-
se, acima de tudo, de incidir na relação entre os serviços e equipes e
nos modos de operar o cuidado em cada um deles. O mandato foi o
trabalho em rede, através da intensificação da comunicação
qualificada e da pactuação de ações articuladas entre os diversos
pontos de atenção.
Conforme Franco & Franco (2011), acolhimento, vínculo e
responsabilização são diretrizes de uma Linha de Cuidado, o que
significa que se trata, como já referimos, de reorganizar processos de
trabalho para ofertar a cada usuário, a cada vez, “uma escuta
qualificada do seu problema de saúde, resolver e, se necessário, fazer
um encaminhamento seguro” (FRANCO & FRANCO, 2011, p. 3-4).
O vínculo é fundamental para que se estabeleça
responsabilização pelo acompanhamento dos itinerários de cuidado
dos usuários. A responsabilização afiança a criação e pactuação de
novos fluxos entre os serviços. E o Projeto Terapêutico Singular, por
sua vez, dispara a Linha de Cuidado Integral, fazendo com que as
equipes operem centradas nas necessidades dos usuários e, não mais,
na oferta de serviços, o que geralmente limita o acesso. Nesse caso, o

168
Apoio Institucional e a Educação permanente tornaram-se estratégias
fundamentais para operar a transformação almejada.
A perspectiva do Apoio Institucional visa a estimular a
problematização do cotidiano pelas equipes de Atenção Básica e a
gestão local das redes de atenção, com o objetivo de aumentar a
capacidade resolutiva das equipes a partir da análise e intervenção
diante das demandas concretas. O apoiador institucional tem o papel
de auxiliar as equipes a colocar seu próprio trabalho em análise,
identificando os nós críticos, tendo como diretrizes a democracia
institucional e a autonomia dos sujeitos ao produzirem o
enfrentamento dos problemas cotidianos. O trabalho deve ser o de
potencializar as experiências da equipe, na construção da
responsabilização por aquilo que está na sua governabilidade,
evitando processos de culpabilização e de produção da impotência e
estimulando ações inovadoras.
O apoio institucional opera com os princípios da Atenção
Básica e da Linha de Cuidado – território, vínculo e responsabilização –
para produzir modos compartilhados de cuidar que levem em conta a
realidade local e os processos singulares de trabalho. Pressupõe o
planejamento, a avaliação constante e agendas de educação
permanente com vistas ao desenvolvimento de estratégias gerenciais,
pedagógicas e matriciais. Nesse contexto, a Educação Permanente em
Saúde é uma importante estratégia com potencial para provocar
mudanças na micropolítica do trabalho. Inscreve a aquisição e
atualização de conhecimentos no campo das aprendizagens
significativas, ou seja, daquelas que façam sentido para o trabalhador
a partir da análise dos problemas presentes no cotidiano do trabalho
em equipe.
As ações de educação permanente foram construídas em
parceria com a Escola de Saúde Publica do RS – ESP – na perspectiva
de se desenhar linhas de formação, sustentadas em um Plano Estadual
e em Planos Regionais de Educação Permanente, que superassem a
fragmentação das ações pontuais de formação e atenção e fortaleçam
as coordenadorias regionais de saúde e os municípios em seu papel de

169
gestores da educação para profissionais de saúde. A integração entre
as políticas de saúde da SES e a ESP foi crucial para o planejamento e
execução de ações de educação mais permanentes e sustentáveis.
É assim que Educação Permanente e Apoio Institucional,
enquanto ferramentas que incidem nos processos de trabalho e
convocam as equipes a reverem seus modos de trabalhar e de ofertar
cuidado, foram situados como fundamentais para a reorientação
estratégica do modelo de atenção em saúde mental. As equipes
georreferenciadas da SES, em seu trabalho de apoio às regiões e
municípios, estruturaram suas ações a partir destas metodologias, o
que produziu efeitos consistentes na implementação das linhas de
cuidado, que seguem reverberando no cotidiano das práticas.
Desse modo, além das visitas periódicas às CRS para escutar
os trabalhadores das regiões e colocá-los em roda para trocas de
experiências e resolução coletiva de problemas em grupos condutores
e fóruns de saúde mental, realizaram-se as oficinas regionais de
implantação da linha de cuidado (2012), os encontros macrorregionais
de CAPS (2013), e os encontros macrorregionais sobre redução de
danos (2014). Aqui, focaremos na descrição da implantação da linha de
cuidado nas regionais a partir das oficinas, bem como nas ações
desencadeadas na esteira desse processo.

Implantação da Linha de Cuidado em Saúde Mental, Álcool e outras


Drogas – a experiência nas Macrorregiões

A implantação da Linha de Cuidado em Saúde Mental, Álcool e


Outras Drogas – O Cuidado que Eu Preciso iniciou com a realização de
oficinas de trabalho nas 19 Coordenadorias Regionais de Saúde,
primeiramente, apenas com os servidores das regionais e, em seguida,
com os gestores e trabalhadores dos municípios da região. Tais oficinas
tiveram os seguintes objetivos:

 fortalecer o coletivo técnico regional para apoiar os municípios;

170
 apresentar da Linha de Cuidado em Saúde Mental, Álcool e
outras Drogas como ferramenta de gestão, a partir de
conceitos éticos, técnicos e políticos sustentados nos princípios
da Saúde Coletiva, da Reforma Psiquiátrica e da Redução de
Danos como diretriz de trabalho e nas portarias e resoluções
que regulamentam a saúde mental no país e no RS;
 produzir pactos entre os gestores, serviços e setores em torno
da constituição de grupos condutores da Linha de Cuidado;
 definir os fluxos para a redes a partir das realidades locais,
através do mapeamento das várias possibilidades e das
barreiras de acesso aos serviços, usando de criatividade para
encontrar formas de desobstruir entraves burocráticos e
garantir que o sistema trabalhe centrado nas necessidades dos
usuários;
 efetuar planejamento conjunto sobre a implantação da Linha
de Cuidado na região, construindo agenda sistemática de apoio
institucional à região e aos municípios e de espaços de
educação permanente.

Nas oficinas de trabalho, utilizou-se a metodologia de discussão de


casos e construção de Projetos Terapêuticos Singulares com o objetivo
de subsidiar o desenho de Linhas de Cuidado e Linhas de Formação
possíveis para a região. Nestes encontros, as peculiaridades de cada
região puderam se mostrar, demandando estratégias de seguimento
do trabalho distintas e diversas, construídas conjuntamente com os
municípios e com as coordenadorias regionais de saúde. Agendas
regionais e municipais foram realizadas para trabalhar a Linha de
Cuidado como ferramenta de gestão ou mesmo para abordar questões
específicas, como a implantação de determinados serviços.
Na Macrorregião Metropolitana, por exemplo, foi possível
avançar na realização de um encontro macrorregional de equipes de
NAAB, promovendo-se trocas de experiências (iniciantes ou já em
andamento) entre os municípios. O caminho construído no apoio
institucional a esta macro apontou também para a necessidade de

171
acompanhamento mais sistemático e próximo aos CAPS, tendo em
conta o grande número de leitos nela existentes e sua significativa taxa
de ocupação. No município de Porto Alegre, por exemplo, que
implantou Consultórios na Rua e CAPS ad III foram feitas oficinas
intersetoriais com os trabalhadores da saúde, segurança e assistência
social para pactuar fluxos de cuidado para usuários drogas.
Nas macrorregiões Sul e Centro-Oeste onde houve um maior
número de composições de redução de danos implantadas realizaram-
se encontros e oficinas de trocas de experiências entre os redutores,
nas quais se discutiu a especificidade do trabalho de campo e do apoio
matricial em álcool e outras drogas. Outro desdobramento do
processo regional de implantação da Linha de Cuidado O Cuidado que
eu Preciso na Macro Centro-Oeste foi a realização de encontros
itinerantes (a cada vez um município diferente sediou o encontro) com
os grupos condutores da linha de cuidado.
Nas macrorregiões Serra e Vales onde é grande número de
municípios de pequeno porte houve uma adesão maciça às oficinas
terapêuticas na atenção básica. Também nestas macrorregiões
surgiram as primeiras demandas para a implantação de CAPS ad III e
Unidades de Acolhimento, os quais se encontram habilitados. Na
Macro Norte onde há um excesso de leitos de saúde mental em
hospitais gerais, comparado às demais regiões, foram realizadas
diversas oficinas para fortalecer a atenção básica. Obteve-se também
grande adesão à implantação de NAAB e Oficinas Terapêuticas, o que
diversificará a oferta de cuidados para além da internação.
Já na macrorregião da Missioneira, através do processo de
educação permanente com os grupos condutores da linha de cuidado,
levantaram-se algumas necessidades regionais de ações. Dentre elas, a
revisão dos processos de regulação do acesso aos leitos de saúde
mental integral dos hospitais gerais, o acompanhamento de equipes
de CAPS para a inserção do atendimento à crise no seu processo de
trabalho e a realização de oficinas sobre apoio matricial com vistas à
inclusão do cuidado em saúde mental na atenção básica. Um dos
analisadores que levaram os coletivos regionais à identificação destas

172
necessidades foi o grande número de internações judiciais de saúde
mental solicitadas nesta macrorregião.
A continuidade do trabalho de implantação da Linha de
Cuidado em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas ganhou desenhos e
cores distintas em cada região. Nesse caminho, o conhecimento e a
apropriação dos técnicos das coordenadorias sobre as especificidades
dos territórios foi fundamental para o planejamento de ações
sustentáveis e pertinentes às realidades locais. Contudo, um dos
grandes desafios das equipes georreferenciadas foi o de trabalhar para
que os planejamentos das ações das linhas de cuidado e linhas de
formação aconteçam com mais autonomia nas regionais, considerando
as peculiaridades e singularidades de cada uma.
Tomando emprestada uma expressão de Rose Mayer, nossa
colega e Coordenadora do Centro de Referência de Redução de Danos
da Escola de Saúde Pública do RS, “todas as versões são válidas, a
questão está em como dar estatuto a cada uma delas”.
O desafio da legitimidade e da autonomia do planejamento
regional encontrou-se com outro impasse importante. Como garantir a
sustentabilidade destas versões, uma vez que a Linha de Cuidado é um
Projeto Estratégico de Governo? Todos sabem que projetos desta
ordem tendem a ter dificuldades para resistir à alternância de partidos
no poder. Todavia, a Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas é
uma Política de Estado e não de Governo, cuja sustentabilidade vem
sendo ameaçada por governos e setores da opinião pública
mergulhados em preconceitos e responsáveis pela proliferação de
práticas excludentes e desrespeitosas dos direitos humanos. Como
então superar esses obstáculos que se traduzem em políticas
higienistas e verticais?
Para isso, o apoio institucional constituiu-se em importante
ferramenta. Ao considerar o caráter vivencial de que se fazem as
práticas de apoio matricial, institucional ou temático, ousamos afirmar
que a legitimidade destas versões de linha de cuidado reside nas
próprias experiências regionais singulares, que se validaram a cada
passo, ao longo do processo de construção coletiva. A

173
sustentabilidade, por sua vez, pode ser um efeito deste processo
vivencial de cogestão, à medida que a linha de cuidado, o apoio
institucional e a educação permanente, como ferramentas de gestão,
se capilarizem pelos territórios e sobrevivam aderidas aos desejos e
aos modos de trabalhar dos servidores das regionais e das redes dos
municípios.
Especificamente no que tange à educação permanente, foram
encontrados alguns impasses e obstáculos. Foram recebidos muitos
pedidos de “capacitações” e “cursos” por parte dos municípios e
regionais. O acúmulo de técnicas é importante, mas é apenas um dos
aspectos para a transformação das práticas, não é o seu foco central.
Presa à lógica de educação continuada na qual o conhecimento
aparece como unilateral, a educação de trabalhadores de saúde
renuncia a operar a partir do saber dos mesmos sobre o território e do
seu imaginário acerca dos temas abordados. Esquece que o local de
trabalho também é um lugar privilegiado de produção e disseminação
do conhecimento e retira dele sua potência de agenciar novas
tecnologias (BRASIL, 2005).
Assim, avançar no entendimento do que realmente se
caracteriza como educação permanente, enquanto processo cotidiano
cujos contornos se desenham a partir dos problemas enfrentados na
realidade e dos conhecimentos e experiências das pessoas implicadas,
segue sendo fundamental.

Considerações finais

A experiência de gestão relatada neste artigo contribuiu para o


redesenho dos modos de promover acesso e a qualidade do cuidado,
na medida em que muitos municípios puderam efetivamente entrar
num rol de territórios com cobertura de atenção. Tal redesenho
impactou, principalmente, nos municípios de médio e pequeno porte,
antes alijados do acesso a recursos financeiros para a política de saúde
mental, ainda que se constituíssem e se constituam como perfil

174
preponderante de composição populacional de municípios no RS e no
Brasil.
A partir da reestruturação dos processos de trabalho da SES,
com a criação dos grupos georreferenciados, pode-se acompanhar o
avanço nos processos de ampliação e fortalecimento da Rede de
Atenção Psicossocial, por meio da implantação da Linha de Cuidado em
Saúde Mental, Álcool e outras Drogas nas regiões do RS. Processos que
colocaram impasses e desafios constantes, diariamente, o que faz da
Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas um texto aberto,
pulsante, escrito a várias mãos e ainda sem ponto final.
Ainda que se trate de uma transformação em curso e sem um
ponto final derradeiro, como a própria ideia de Reforma Psiquiátrica
carrega, foi extremamente importante consolidar os avanços
conquistados em textos normativos norteadores. Nesse sentido, em
2014, foi aprovada pelo Conselho Estadual de Saúde, a Portaria SES
503/2014, que estabelece a Política de Redução de Danos para o
cuidado aos usuários de drogas, bem como a Política Estadual de
Saúde Mental Álcool e outras Drogas. Nessa mesma direção, a
Comissão Intergestores Bipartite CIB/RS aprovou o Plano Estadual da
Rede de Atenção Psicossocial 2013-2015, que estabelece as metas e
rumos da ampliação RAPS nos munícipios gaúchos até o final de 2015.
Trata-se de documentos que registram um processo ao mesmo tempo
em que relançam desafios para o futuro.
O seguimento e o acompanhamento da implantação das linhas
de cuidado nas Macrorregiões de Saúde têm na descentralização e na
corresponsabilização de diversos atores a sua continuidade. Os grupos
condutores regionais da linha de cuidado/RAPS compostos por
gestores, trabalhadores e conselhos de saúde locais, em consonância
com a Política de Saúde Mental no Brasil, são instâncias
compartilhadas de gestão, que podem garantir essa continuidade,
assegurando as pactuações regionais para a qualificação do acesso,
dos fluxos de cuidado e da atenção longitudinal nos territórios.
O momento político do RS e do Brasil coloca importantes
obstáculos para que os usuários de drogas tenham assegurado seu

175
direito de dizer “o cuidado que eu preciso”, à medida que velhas
fórmulas “terapêuticas”, que excluem e segregam, reivindicam
permanência e/ou retorno. Desse modo, o caminho a seguir implica
não recuar à problematização do cuidado em álcool e drogas, de forma
ética, técnica, estética e política. Articular espaços para tal nos pontos
de encontro entre gestão, atenção, educação e controle social, assim
como entre as políticas públicas de saúde e o poder judiciário é crucial
nesse sentido.
Assim como criar e fortalecer dispositivos de cuidado e de
educação permanente que, de diferentes formas, são capazes de
agenciar a multiplicidade e intensidade das forças que habitam a arena
do cuidado no território para inaugurar invenções cotidianas de modos
de cuidado em liberdade segue sendo, nesse cenário, um ponto de
partida, um método e um horizonte compartilhado.

Referências

FRANCO, Camila e FRANCO, Túlio. Linhas do cuidado Integral: Uma


proposta de organização da rede de saúde. 2011. Disponível em:
http://www.saude.rs.gov.br/upload/1337000728_Linha%20cuidado%2
0integral%20conceito%20como%20fazer.pdf. Acesso em: 20 de maio
de 2013.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da


Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde.
A educação permanente entra na roda: polos de educação
permanente em saúde: conceitos e caminhos a percorrer. Brasília:
Ministério da Saúde, 2005.

_______. Ministério da Saúde. Portaria nº 3088 de 23 de dezembro de


2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com
sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do
uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de

176
Saúde. 2011a. Disponível em:
http://www.brasilsus.com.br/legislacoes/gm.html

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 3089 de 23 de dezembro de


2011. Estabelece novo tipo de financiamento do Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS). 2011b. Disponível
em: http://www.brasilsus.com.br/legislacoes/gm/111277-3089.html

_______. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 130


de 26 de janeiro de 2012. Redefine os Centros de Atenção Psicossocial
de Álcool e Outras Drogas 24 h (CAPS ad III) e os respectivos incentivos
financeiros. 2012a. Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt0130_26_01_2
012.html.

_______. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 121


de 25 de janeiro de 2012. Institui a Unidade de Acolhimento para
pessoas com necessidades decorrentes do uso de Crack, Álcool e
Outras Drogas (Unidade de Acolhimento), no componente de atenção
residencial de caráter transitório da Rede de Atenção Psicossocial.
2012b.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt0121_25_01_2
012.html

_______. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 148


de 31 de janeiro de 2012. Define as normas de funcionamento e
habilitação do Serviço Hospitalar de Referência para atenção a pessoas
com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades de saúde
decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, do Componente
Hospitalar da Rede de Atenção Psicossocial, e institui incentivos
financeiros de investimento e de custeio. 2012c.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt0148_31_01_2
012.html

177
RIO GRANDE DO SUL. Resolução CIB nº 430/2008. Institui dentro da
Política Estadual de Atenção Integral em Saúde Mental, incentivos
financeiros Estaduais para o atendimento pelo SUS a usuários
dependentes de álcool e outras drogas, em especial o crack, em
Comunidades Terapêuticas - CT. 2008. Disponível em:
www.saude.rs.gov.br

____________________ Resolução CIB nº 401 de 03 de novembro de


2011. Institui, dentro da Política de Saúde Mental, Incentivo Financeiro
Estadual para custeio dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
2011a. Disponível em: www.saude.rs.gov.br

____________________ Resolução CIB nº 403 de 03 de novembro de


2011. Cria os Núcleos de Apoio à Atenção Básica (NAAB) – saúde
mental, dentro da Política Estadual da Atenção Básica. 2011b.
Disponível em: www.saude.rs.gov.br

____________________ Resolução CIB nº 404 de 03 de novembro de


2011. Institui o Incentivo Financeiro Estadual para implantação pelos
municípios de atividades educativas – modalidade Oficinas
Terapêuticas. 2011c. Disponível em: www.saude.rs.gov.br

_____________________ Resolução CIB nº 038, de 1 de março de


2012. Institui, dentro da Política Estadual de Atenção Integralem Saúde
Mental, álcool e outras drogas, Incentivo Financeiro Estadual para a
Redução de Danos em âmbito municipal. 2012a. Disponível em:
www.saude.rs.gov.br

_____________________ Resolução CIB nº 562 de 19 de setembro de


2012. Institui normas para organização e financiamento dos Serviços
Hospitalares para Atenção Integral em Saúde Mental nos Hospitais
Gerais do Estado do Rio Grande do Sul. 2012b. Disponível em:
www.saude.rs.gov.br

178
_____________________ Resolução CIB nº 242 de 24 de junho de
2013. Institui, dentro da Politica Estadual de Saúde Mental, Álcool e
outras Drogas, incentivo financeiro para custeio dos CAPS ad III, CAPS
III, UA, UAi e SRT tipo I e II, em complementação ao financiamento
federal. Disponível em: www.saude.rs.gov.br

_____________________ Resolução CIB nº 655 de 12 de novembro


de 2014. Institui o Plano Estadual da Rede de Atenção Psicossocial do
Rio Grande do Sul. Disponível em: www.saude.rs.gov.br

_____________________ Portaria SES 503, de 1 de julho de 2014.


Institui a Política de Redução de Danos para o cuidado em Álcool e
outras Drogas dentro das Políticas Estaduais de Atenção Básica, Saúde
Mental e DST/AIDS e redefine as Composições de Redução de Danos.
Disponível em:
http://cosemsrs.org.br/imagens/portarias/por_g1b2.pdf

179
180
CENÁRIOS

181
182
Capitulo IX

A droga enunciando conflitos:


(des) encontros com a adolescência
Magda Martins de Oliveira, Paula Flores, Karine Szuchman

As forças do mundo não cabem todas numa só


pessoa; o mundo está cheio delas, diferentes,
contrastantes, de várias intensidades. O mundo não
tem paz, ele é nervoso, finito, inventado e
reinventado a todo momento.12

Um cenário: a socioeducação, os serviços de execução de


medidas socioeducativas de Porto Alegre, as ruas desta cidade, a
saúde, uma rede de atenção à juventude, uma rede de proteção.
Uma cena: um adolescente de 17 anos que vive seus conflitos:
um deles com a lei, que gerou uma medida de prestação de serviços à
comunidade (PSC) e outro conflito com o uso de drogas, que gerou um
percurso de internações sucessivas.
Uma intervenção: um encontro. Como inventar um encontro
que favoreça diálogos ainda que a partir de uma medida
socioeducativa? Um encontro que potencialize a rede de atenção
composta também pela socioeducação? Como produzir abertura e
análise dessa vida em conflitos, dessa vida-mundo nervoso?
Protagonistas: o adolescente e os trabalhadores do Programa
de Prestação de Serviços à Comunidade da UFRGS (PPSC).

12
BAPTISTA, L. A. A cidade dos sábios. São Paulo: Summus, 1999.

183
O presente texto versa sobre a experiência dos trabalhadores do
PPSC no acompanhamento dos conflitos de MEL, um adolescente que
chega para o cumprimento de uma medida socioeducativa. Tais
conflitos ganham corpo no cruzamento dos campos da socioeducação,
saúde mental e justiça, percurso no qual o adolescente constrói sua
travessia. Utilizando-se de relatos do arquivo do PPSC e da experiência
pela qual os trabalhadores foram marcados, levantamos aqui algumas
questões para pensar as possibilidades e limites desse
acompanhamento enquanto executores de um programa de medida
socioeducativa. Da mesma forma, avaliamos as oscilações desses
campos que ora se aproximam e ora se afastam, muitas vezes
deixando o adolescente no desencontro das políticas. Através dos
tensionamentos que se fazem presentes com a chegada de MEL e de
tantos outros jovens, vamos abrindo novas possibilidades de cuidado e
inventando formas de um acompanhar construídas na singularidade
dos casos e na sutileza dos encontros.

A chegada de MEL ao Programa de Prestação de Serviços à


Comunidade da UFRGS: distância, aproximações e histórias

A primeira notícia que recebemos sobre MEL, adolescente de 17


anos, quando ainda não o conhecíamos, foi de que já havia sofrido
várias internações em função do uso da maconha, cocaína e crack. A
última havia acontecido dois meses antes de apresentar-se no PPSC
para o cumprimento de uma medida de Prestação de Serviços à
Comunidade de 24 semanas pelo ato infracional de tráfico. MEL veio
acompanhado da mãe, uma senhora meiga, com fala mansa,
visivelmente cansada. Durante o encontro MEL falou sobre o uso do
cigarro, mas afirmava não estar fazendo uso de outras drogas. Tossia
muito, estava magro e abatido.
O relato da mãe confirmou a informação repassada pelo CREAS: o
filho já teria passado por várias internações. MEL falou das
experiências como não boas, mas admitiu que “serviram para alguma

184
coisa”. Segundo Torossian (2014, p.88) não raramente os usuários “se
identificam com os produtos que utilizam, deixando de pensar e
deixando-se aniquilar”. Importante pensar o quanto o conflito com a
Lei, as idas e vindas dos hospitais e o cansaço da mãe não estariam
fazendo com que MEL se sentisse alguém de menor importância, uma
“droga” de pessoa.
Na entrevista inicial a mãe contou que MEL tinha acolhimento
agendado em uma entidade que oferecia atendimento para
adolescentes usuários de drogas. Imediatamente colocamo-nos à
disposição para acompanhá-lo caso desejasse ou considerasse
necessário. MEL agradeceu e deixou uma porta entreaberta. Pela
fresta, uma possibilidade de vínculo e relação, um início de conversa
entre o PPSC e essa vida. Questionamos, então: como sustentaríamos
os efeitos da aproximação com essa vida em cena, em ato, em
movimento? Como nossa intervenção - enquanto executores de uma
medida socioeducativa- conversaria com a história de MEL, seus
percursos e limites e como produziríamos com ele uma prática de
cuidado e de acompanhamento? Era preciso, primeiramente, estar
atentos às oportunidades que MEL nos concederia de estar junto a ele
e construir boas experiências, um bom encontro. "O bom seria como
um alimento, que se compõe com nosso corpo, constituindo um bom
encontro, à medida que aumenta nossa potência de existir,
produzindo afetos de alegria. (FUGANTI, 2001 apud NASCIMENTO e
COIMBRA, 2009, p.47).
Nossa estratégia era ir ao encontro de MEL, buscando
compartilhar experiências que pudessem fortalecê-lo durante a
trajetória.

As possibilidades e limites do encontro entre MEL e o PPSC

Logo que chegou ao PPSC MEL foi acolhido pela equipe das
oficinas socioeducativas como fazemos com todos os adolescentes
que chegam ao programa. De acordo com a proposta de trabalho,
todo adolescente que chega ao PPSC participa de três oficinas e em

185
seguida é encaminhado ao setor onde cumprirá suas tarefas. Segundo
avaliação da equipe era necessário ter cautela no caso de MEL e
procurar sentir a sua condição de enfrentar o novo desafio. Após sua
quinta participação, agendamos o encontro para planejarmos a sua ida
ao setor. Neste dia MEL perguntou várias vezes sobre as horas,
demonstrando ansiedade. Optamos, no entanto, por apostar na sua
vinculação no setor escolhido e na experiência de trabalho que
poderia advir sem perder de vista os cuidados que a situação
inspirava.

A técnica do CREAS ligou e contou que MEL teve


um atendimento ambulatorial e lhe deram uma
nova medicação, que segundo ela o deixa bem
“grogue”. [...] já tínhamos comentado que ele
parecia um pouco “grogue” mesmo com a outra
medicação. Pensei nisso porque no segundo dia
MEL veio até o PPSC e pediu para que eu o
acompanhasse até a PROPLAN porque ele não
conseguia chegar lá; não lembrava o caminho.
Talvez alguma coisa dessa desatenção possa estar
relacionada ao uso do remédio. (Arquivo PPSC.
janeiro/2013).

Como conciliar as condições momentâneas de MEL à exigência


do cumprimento da medida? Importante propormos aqui a sempre
oportuna reflexão sobre a aplicabilidade da medida socioeducativa e
sobre a possibilidade consentida pela Lei de que a autoridade
competente leve em conta a capacidade do adolescente de cumpri-la
(ECA, art. 112). No caso de MEL a medida de PSC lhe fazia exigências
que não podia corresponder naquele momento como, por exemplo, a
circulação no ambiente de trabalho, a interação com outros
funcionários do setor e a qualidade na realização das tarefas. O
cuidado com MEL incluía administrar tais dificuldades e evitar ao
máximo sua exposição a situações que o fragilizassem ainda mais.

186
Dias após ter iniciado no setor MEL voltou a fazer uso de
drogas. Tentando evitar o agravamento da situação, a equipe do
CREAS intercedeu para que MEL fosse acolhido no CAPS III ad recém-
inaugurado na região, enquanto a equipe do PPSC pensava maneiras
de dizer a MEL sobre a sua disponibilidade de estar com ele, sem
desconsiderar, no entanto, seu desejo e as escolhas que era capaz de
fazer naquele momento. Um mês após ter sido acolhido no CAPS, MEL
foi novamente internado. A história repetia-se. Tínhamos a sensação
de estarmos todos - MEL, a mãe, a equipe do PPSC e a equipe do
CREAS - andando em círculos. Com que ferramentas poderíamos
contar para encontrar a saída dessa porta giratória de internação-
desinternação?

Internação protetiva: um paradoxo?

Ao longo destes anos de trabalho no PPSC temos verificado que


para muitos adolescentes e suas famílias, a internação tem sido
tomada como a única alternativa de tratamento para o abuso de
drogas, talvez pela dificuldade do próprio usuário-jovem de assumir
uma rotina de atendimentos, consultas, grupos e, ainda, pela
dificuldade de dar conta da sempre presente exigência da abstinência.
Ressalta Conte (2004) que também os profissionais tendem a
acreditar que a sua função junto aos pacientes é mantê-los
abstinentes e distraem-se para a necessidade imperativa do
acolhimento e da construção de vínculos mais duradouros. Sob o véu
da proteção, o Brasil tem se revestido de crescentes processos de
psiquiatrização, haja visto o crescimento da internação psiquiátrica de
adolescentes por mandado judicial (nos maiores hospitais
psiquiátricos para adolescentes do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto
Alegre).

Em pesquisa realizada no Centro Integrado de


Atenção Psicossocial para crianças e adolescentes
do Hospital Psiquiátrico São Pedro, na cidade de
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, foi verificado que a

187
questão da drogadição tem sido a “patologia”
juvenil que mais demanda atendimento naquele
serviço, sendo corriqueiramente encaminhada de
um modo bastante peculiar: via determinação
judicial (VICENTIN, M. E GRAMKOW, G., 2010, p.4).

Através da judicialização da saúde determina-se como medida


protetiva o isolamento do adolescente de seu convívio social.
Questionamos então: quem está sendo protegido?
Aproximando o cuidado em saúde e o campo socioeducativo,
salienta-se que, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, a
aplicação de uma medida deverá considerar as condições do
adolescente de cumpri-la (art.112,§1º), sendo as medidas de meio
aberto uma importante alternativa à medida de privação de liberdade
que deverá estar “sujeita aos princípios de brevidade,
excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento” (art. 121). No entanto, o isolamento tem sido
tomado como alternativa de tratamento e de penalização, sempre
presente nos procedimentos da saúde mental e da justiça,
respectivamente, assim como nas escolhas de MEL.
O adolescente inaugurou sua relação com a medida
socioeducativa solicitando ajuda à sua orientadora de Liberdade
Assistida (LA) para ser internado. Em resposta, ele foi acompanhado a
um hospital referência na região tendo seu pedido de internação
negado. Um mês depois MEL fez nova tentativa, desta vez sozinho,
diretamente ao Departamento da Criança e do Adolescente (DECA). Lá
foi orientado a pedir a intervenção do Conselho Tutelar e só então
conseguiu sua internação. Num momento em que a internação
compulsória passa a ser amplamente discutida interrogamos sobre a
insuficiência dos serviços de saúde e sobre o não atendimento da
internação buscada espontaneamente, sobretudo por um usuário
jovem.
Enquanto a judicialização do tratamento incide sobre a
autonomia do jovem e o devolve à condição de “incapaz”, defendida
no Código de Menores (Lei nº 6.697/1979), a busca de MEL respondia

188
aos seus desejos e afirmava sua condição de sujeito de direitos. A
singularidade da relação de cada adolescente com a droga indica a
delicadeza que é preciso ter na hora de construir estratégias de
cuidado, seja no Plano Individual de Atendimento (na área da
socioeducação) ou no Projeto Terapêutico Singular (na área da saúde
mental).

Encontros e desencontros no Acompanhamento de MEL

Passado o período de internação MEL reapresentou-se no


PPSC. Em conversa, falou do tempo em que iniciou o uso de drogas,
ainda com 12 anos, da primeira namorada e do desejo por uma
oportunidade de trabalho. Contou também sobre a mudança para
outro bairro da cidade. Ele e a mãe movimentavam-se entre dois
bairros da periferia de Porto Alegre visando maior segurança, levando
em conta os riscos sempre presentes na vida de ambos em função do
envolvimento com o tráfico, o conflito com a Lei e a exposição à
violência.
Ao final da conversa, MEL comentou que precisava alistar-se. A
informação soou-nos como um convite e prontamente colocamo-nos à
disposição para acompanhá-lo. Desde que havia chegado ao PPSC,
aquela era a primeira oportunidade concreta que MEL nos concedia de
estar com ele. Segundo Oliveira & Santana (2014, p.21):

Fazer companhia a alguém pressupõe certa


distância entre aquele que acompanha e aquele
que é acompanhado, o que os coloca ao mesmo
tempo juntos e separados. O acompanhado está
indo ao encontro de algo, não importa a clareza
que tenha sobre isso. Aquele que acompanha, por
sua vez, sabe que o caminho não é seu, embora se
ocupe intensamente da busca. O acompanhamento
tem a importância, a duração e a intensidade que o
acompanhado lhe concede. Não está inscrito no
campo das determinações, pois aquele que

189
acompanha só o faz mediante a licença daquele
que é acompanhado.

Conforme combinado, MEL veio ao PPSC e seguiu em


companhia para fazer o alistamento. MEL estava bastante falante
naquele dia, diferente das outras vezes em que estivemos juntos.
Falou sobre escola, exército, tráfico e sobre outros adolescentes que
conhecia e que também cumpriram medida no PPSC. Uma semana
depois MEL estava sentado em frente ao prédio onde fica a sede do
Programa. Parecia feliz. Perguntou sobre o educador que o havia
acompanhado. A pergunta nos causava muito mais alegria do que
surpresa: MEL havia escolhido para si uma companhia. E nós havíamos
escolhido acompanhá-lo.
Segundo Lazzarotto (2013), acompanhar exige uma atitude de
diálogo entre saberes compartilhando a responsabilidade dessa
análise dos percursos juvenis com os próprios jovens e com aqueles
que os atendem em serviços e programas, constituindo o que
passamos a enunciar como um Acompanhamento Juvenil (AJ).
Caminhar entre, circular nos espaços e criar um fluxo pra abrir outras
possibilidades de se conhecer, de se identificar e ser identificado: é
disso que se alimenta o dispositivo do AJ. A circulação pela cidade, por
espaços desconhecidos, tem como objetivo ir além das fronteiras
institucionalizadas, possibilitando a produção de outros sentidos. A
potência dessa circulação com eles (acompanhando seus passos, seus
olhares) está na invenção de formas de vida, produzindo em cada
jovem outra forma de falar de si.
Acompanhar MEL até o setor, ao alistamento, ao atendimento
em saúde e em tantos outros espaços que pudessem surgir nos
colocava como parceiros na tessitura dessa rede, nesse percurso entre
o cumprimento da medida e seus projetos de vida. Lançamos mão do
dispositivo do AJ na medida em que o próprio adolescente anuncia
este desejo, diferenciando de qualquer outra tarefa que surge como
uma obrigação na vida dele.

190
Seguíamos, no entanto, capturados na porta giratória. Uma
semana depois a situação havia mudado novamente. MEL veio ao
PPSC como de costume, mas parecia bastante nervoso. Contou que
havia sido preso no final de semana por posse de drogas (disse ter sido
enxertado) e levado ao presídio central. A experiência havia sido
muito ruim, afirmou. Nos demos conta, então, que ao completar 18
anos, MEL deixava de ser um adolescente para ser um adulto (segundo
a Lei). Enquanto adolescente, estava sob um regime jurídico que age
em nome da proteção e do cuidado (ECA, Lei Federal 8.069/90), mas a
partir desse momento passava para o estado de “maioridade” e,
embora estivéssemos diante do mesmo jovem vulnerável de ontem - a
mesma demanda de proteção e cuidado, a mesma história de vida -
percebíamos que o percurso de MEL começava a tomar outros rumos,
fazendo desvios, acionado por outras forças que incidiriam sobre a sua
realidade.
MEL ficou desaparecido por dois dias e reapareceu bastante
machucado. Neste período, furtava objetos de casa para dar conta do
uso da droga. Resolvemos fazer contato com a equipe do CAPS no qual
foi acolhido antes da última internação. Fomos informados que MEL
teria tido alta do atendimento. Para o funcionário, a alta estaria
relacionada à internação do jovem paciente.

Questionei sobre quem eles esperavam que


acompanharia o jovem pós-internação e ele me
disse que orientaram o adolescente a procurar o
CAPS novamente. Então, por que a alta anterior?
Falei da situação atual de MEL e ele me sugeriu
internação novamente (?!?!?). Falei do que
entendo como CAPS, ainda mais como CAPS III ad.
Conversamos mais um pouco e ele me disse para
orientar MEL a procurar o CAPS novamente para
um novo acolhimento (Arquivo PPSC: abril/2013).

Percebe-se com o relato que a condição de isolamento não diz


respeito apenas à internação propriamente dita, mas também aos

191
serviços que não dialogam entre si, inviabilizando um fluxo de ações
possível nas redes de trabalho, que aparecem como proposta para
uma ação em um dado território, quando se percebe que a
especialidade de uma equipe ou serviço não consegue responder às
demandas apresentadas pelo usuário. (PONZI & CARVALHO, 2014,
p.138)
Neste caso nem o CAPS nem o hospital/clínica conseguem
perceber o trabalho que realizam dentro de uma lógica de
complementaridade e de continuidade, o que potencializaria em
muito o tratamento de MEL. Os referidos serviços, no entanto,
pensam MEL de forma isolada, ou seja, fora do seu contexto de
existência, circunscrevendo a origem e a solução das suas dificuldades
exclusivamente ao campo da saúde. Conforme Vicentin & Gramkow
(2010), crianças e adolescentes estão sendo isolados dentro de
programas e políticas específicas de atenção que não conseguem
dialogar com os demais espaços sociais que compõem a circunstância
de vida desses sujeitos.
Dias depois recebemos a notícia de que MEL teria dado
entrada no Hospital de Pronto Socorro da cidade com ferimentos
graves. O telefonema recebido por parte da equipe do HPS tinha o
objetivo de informar o atendimento do jovem e de solicitar que o
retirássemos de lá. Com a dificuldade de encontrar a mãe e com a
impossibilidade do CREAS de assumir a situação entendemos nossa
responsabilidade de fazer o acompanhamento. A manhã foi bastante
difícil. A situação ora enfrentada e há muito anunciada nos colocava
diante dos limites desse acompanhamento, cujas ações foram
insuficientes para evitá-la. A vivência da angústia dizia da
impossibilidade de fazermos por MEL (Conte, 2004). Era preciso
acreditar na sua força e na sua capacidade de superar situações como
aquela.

Cheguei ao Pronto Socorro e em minutos estava no


quinto andar com a assistente social. Vi que havia
alguém deitado numa maca no corredor quase em
frente à porta, mas ela precisou dizer-me: “ele está

192
ali”. Aproximei-me de MEL ao som da voz da
assistente social que me alertava “ele não pode
ficar aqui. Já estão reclamando”. MEL estava num
sono profundo. Assustei-me com sua aparência;
tinha vestígios de sangue por todo o corpo e
roupas. Olhar para ele era defrontar-me com a
violência, com as misérias da vida. Toquei no seu
rosto e o chamei pelo nome baixinho: “MEL?”. Ele
demorou um pouquinho, mas abriu os olhos e
levantou a cabeça surpreso exclamando meu nome.
Deitou novamente. Não tinha energia para muito
mais (Arquivo PPSC: abril de 2013).

A conversa que seguiu pautava-se pela necessidade de MEL ser


retirado do corredor do hospital, afinal já estava medicado e todos os
procedimentos já haviam sido realizados. Alegavam, também, que
MEL já tinha 18 anos de idade e, por isso, poderia sair sem estar
acompanhado por um responsável. Os registros do hospital
informavam que MEL havia chegado de ambulância por volta das 5h
da manhã, com traumatismo craniano leve, inspirando cuidados.

Sentei numa cadeira bem em frente à maca.


Enquanto fiquei por ali meus olhos não
desgrudavam dele. MEL encolheu-se o que pode.
Em meio a gemidos deitou de lado e pegou no
sono. De quando em quando abria os olhos e me
olhava. Assim que me via, fechava os olhos e
voltava a cochilar. Parecia querer certificar-se de
que eu ainda estava ali (Arquivo do PPSC: abril de
2013).

Parecia claro para nós que, afora todos os males que a droga
pudesse causar à saúde de MEL, existia ainda a violência que o
vitimava e impunha sérios riscos à sua vida. Ademais, era possível que
aqueles que não o conheciam, pudessem associar a violência sofrida

193
por MEL à sua capacidade de praticar atos violentos/ ou de ser
violento.
Na semana seguinte retomamos o contato com a mãe para
saber como MEL estava. Seguia furtando em casa. Ela pediu ajuda para
interná-lo. Antes que pudéssemos dar um passo à frente, MEL
tropeçou e foi preso por roubo. A mãe foi orientada a apresentar na
Justiça cópia da negativa do Posto de Saúde ao pedido de internação
feito por MEL dias antes da prisão. Três meses depois MEL foi liberado
do presídio e conduzido à FASE onde permaneceu por 60 dias em
função do descumprimento das medidas de meio aberto anteriores.
Assim que saiu da FASE MEL foi ao PPSC visitar-nos, afinal não havia
mais medidas a serem cumpridas. Dando continuidade a um
planejamento antigo, combinamos com MEL dia e hora para
acompanhá-lo ao CAPS.

Antes de chegar ao CAPS fiquei me perguntando


qual seria a minha “função” neste
acompanhamento, mas convicta de que seria
importante. Logo que MEL chegou percebi sua
atrapalhação e sua ansiedade, sem saber o que
fazer. Nunca a palavra “apoio” fez tanto sentido pra
mim. Enquanto preenchia a ficha de acolhimento
MEL perguntou se poderia dar o nº de telefone do
PPSC como referência. Perguntamos a MEL se
queria que entrássemos com ele e respondeu que
“podia ser”. Enquanto esperávamos, MEL tirou um
papel do bolso e disse que precisava apresentar-se
no Foro Central. Parecia bastante ansioso. Falei que
veríamos isso com ele depois e com o CREAS
também (Arquivo PPSC: setembro/2013)

Em novembro, um mês depois, MEL conseguiu um emprego,


mas assim que recebeu o primeiro salário voltou a fazer uso da droga.
A mãe voltou a pensar em isolamento, desta vez numa fazenda
terapêutica. Pedimos que viesse conversar. Ambos tinham horário

194
agendado no CAPS naquele mesmo dia. O tempo passou e os contatos
tornaram-se raros, até que MEL veio ao PPSC pedir ajuda para fazer
cópias de alguns documentos. Havia conseguido um novo emprego e
estava já há bastante tempo sem fazer uso da droga.

Afetos e efeitos de um (des)encontro

Assim como a prática infracional, o uso de drogas também


deve ser tomado como um dos aspectos que compõem a circunstância
de vida do adolescente/jovem. Estar atento aos acontecimentos que
circunscrevem a medida socioeducativa diz do nosso fazer cotidiano, a
partir do momento em que compreendemos o cumprimento da
medida enquanto oportunidade de ir ao encontro daquele que nos
chega. No cenário descrito, vários desencontros: de MEL com os
serviços da rede, da medida socioeducativa com o uso da droga, do
tempo da internação com o tempo da vida e do adolescente com seus
direitos. Sem garantias de qual seria o próximo passo acompanhamos
MEL pelas ruas da cidade em um percurso marcado por possibilidades
e limites; em meio a isolamentos e ferimentos procuramos abrir
outras possibilidades de cuidado, de estar junto. Para que realmente
conseguíssemos encontrar com MEL, foi preciso antes encontrar sua
vida.
A possibilidade de encontro com os adolescentes/jovens que
chegam aos serviços de saúde ou que se apresentam para o
cumprimento de uma medida se constrói sob a seguinte premissa: o
programa socioeducativo não tomará o ato infracional como centro da
intervenção, nem o serviço de saúde tomará o uso da droga como
centro do tratamento. O que está no centro do processo é a pessoa. O
encontro que, não raras vezes, nos coloca diante de muitas incertezas
e silêncios, constitui-se uma prática de cuidado e acompanhamento
construída com e para os adolescentes/jovens que nos chegam com
histórias comumente marcadas pela negação de direitos ditos
fundamentais. Sustentar os efeitos dessa aproximação, desse

195
encontro, requer suportar a angústia de não podermos fazer pelo
adolescente/jovem com o qual trabalhamos.
O desafio é fazer da medida socioeducativa um percurso que o
ajude a construir outras formas de perceber-se e de falar de si neste
mundo nervoso marcado, entre outras coisas, pela dificuldade de
escutar e respeitar os jovens. Através de olhares cautelosos e escutas
afinadas, vamos nos aproximando dos adolescentes/jovens, marcando
os percalços e os êxitos de cada um que vem cumprir sua medida de
PSC conosco, refazendo os primeiros e potencializando os últimos.
Assim vamos tecendo um acompanhamento construído na
singularidade dessas vidas, acolhendo os mais diferentes sentidos que
vão sendo produzidos.
Na prática, fomos inventando um modo de estar com MEL e
com outros tantos adolescentes/jovens que passaram pelo PPSC e que
compartilharam conosco seus percursos que muitas vezes não cabiam
no espaço/tempo da “medida”. Da mesma forma, temos construído a
possibilidade de a(com)panhar histórias e narrativas desses intensos
confrontos e encontros cotidianos da vida com ela mesma, da vida
com seus próprios efeitos e de nós operadores de políticas públicas
com nossas práticas e intervenções sempre sujeitas ao embate com o
outro. Por ora afirmamos que nossa prática segue em seu caráter
finito, incompleto, mas aberta às possibilidades de invenções futuras
de outros cuidados e outras formas de intervir.

Referências

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto


da Criança e do Adolescente. Diário Oficial da União: Brasília, DF, ano
169, p.1353, 16 jul. 1990.

BRASIL. Lei nº 6.697, de 1º de outubro de 1979. Institui o Código de


Menores. Diário Oficial da União: Brasília, em 10 de outubro de 1979;
158º da Independência e 91º da República.

196
CONTE, Marta. Drogadição: entre a angústia e as possibilidades de
intervenção. In: Mello, Adriana, Castro, Ana Luiza de Souza & Geiger,
Mylène. Conversando Sobre Adolescência e Contemporaneidade.
Porto Alegre: Libretos, 2004.

LAZZAROTTO, Gislei. Acompanhamento Juvenil: percorrer mundos e


acolher sentidos. In: SIGNORI, S (ORG). Acompanhamento
Terapêutico: contribuições teórico-práticas para aplicabilidade clínica.
Curitiba: Santos Editora, 2013, v.1, p. 127-136.

NASCIMENTO, Maria Lívia do; COIMBRA, Cecília Maria Bouças.


Juventude Normatixada, moralizada e violentada: alguns modos de
subjetivação contemporâneos. In: Bocayuva, H. & Nunes, S. A. (Orgs.).
Juventudes, subjetivações e violências. Rio de Janeiro: Contra Capa,
2009,p.41-50.

TOROSSIAN, Sandra Djambolakdjian. Drogas. In: LAZZAROTTO...[et


al.]. Medida Socioeducativa: entre A & Z. Porto Alegre: UFRGS:
Evangraf, 2014, p.87-89.

OLIVEIRA, Magda &SANTANA, Fernando. Acompanhamento. In:


LAZZAROTTO...[et al.]. Medida Socioeducativa: entre A & Z. Porto
Alegre: UFRGS: Evangraf, 2014, p. 21-23.

PONZI, Carolina &CARVALHO, Julia Dutra. Intersetorialidade. In:


LAZZAROTTO...[et al.]. Medida Socioeducativa: entre A & Z. Porto
Alegre: UFRGS: Evangraf, 2014, p.138-140.

VICENTIN, Maria Cristina G. & GRAMKOW, Gabriela. Que desafios os


adolescentes autores de ato infracional colocam ao SUS? Algumas
notas para pensar as relações entre saúde mental, justiça e juventude.
In: RIBEIRO, Edith Lauridsen & TANAKA, Oswaldo Yoshimi. Saúde

197
Mental de Crianças e Adolescentes – contribuições ao SUS. São Paulo:
Hucitec, 2010.

198
Capitulo X

Álcool e Outras Drogas: Práticas Possíveis na


Atenção Básica
Camila Maggi Rech Noguez, Rose Teresinha da Rocha Mayer

A pesquisa – qualitativa - versa sobre as possibilidades de cuidado


de pessoas, na Atenção Básica à Saúde (ABS), que usam álcool e outras
drogas, ao mesmo tempo em que se desenvolve a partir de
referenciais que se afinam à prática no contexto da Saúde Coletiva e
da construção do SUS. O objetivo do trabalho é conhecer e
compartilhar os diferentes dispositivos, recursos, estratégias e
referenciais em relação ao cuidado às pessoas que usam álcool e
outras drogas, bem como suas respectivas concepções de sujeito.
Utilizou-se um questionário aberto on-line, que teve a abrangência do
SUS como limite de seu universo investigativo: o território nacional.
As respostas de oito profissionais de saúde ligados à Atenção
Básica foram submetidas à Análise de Conteúdo que levou a
considerar, principalmente, o Projeto Terapêutico Singular, a Educação
Permanente, a Ação Intersetorial e o Apoio Matricial como sugestões
de ferramentas que se orientam para a possibilidade de cuidado a
pessoas que usam álcool e outras drogas na ABS.

Introdução: as dobras da prática

“Quando inventamos o trem, inventamos o


descarrilamento.”
Paul Virilio.

199
O presente trabalho localiza-se no contexto da Residência
Integrada em Saúde – RIS – na ênfase da Atenção Básica (AB),
programa sob responsabilidade da Escola de Saúde Pública do Rio
Grande do Sul – ESP/RS – que conta com o Centro Saúde-Escola
Murialdo – CESM – como um dos cenários dessa formação em serviço.
A Residência em questão é uma modalidade de pós-graduação
multiprofissional orientada pela integração entre ensino, serviço e
gestão do Sistema Único de Saúde – SUS.
Apesar dos consequentes problemas de saúde, gerados em
função do uso abusivo de drogas, não se tinha na Unidade Básica de
Saúde (UBS), cenário de prática da RIS -, uma sistematização
concernente a esse aspecto, que nos permitisse acompanhar o
número de pessoas envolvidas pelo uso problemático de drogas. No
entanto, através da rotina de trabalho na UBS, foi possível observar
que tal questão permeia a comunidade: nos embates familiares, como
possibilidade de lazer, nas manifestações de doenças, nas fontes de
renda, em alguns dos casos de violência, no laço social, no sofrimento
psíquico e na circulação comercial das substâncias. Quando
inventamos saídas para um problema, inventamos, ao mesmo tempo,
outro problema, tal qual o trem e o descarrilamento de Paul Virilio
(2006).
A aposta é que os problemas possam ser outros; mas ainda,
problemas. A questão que nos é colocada assim se apresenta: quais
seriam os dispositivos/estratégias/recursos possíveis a serem
acionados pelos profissionais de saúde, na AB, em relação ao cuidado
às pessoas que usam drogas? Seguindo por essa interrogação,
objetivamos conhecer e compartilhar os diferentes
dispositivos/recursos utilizados pelos profissionais de saúde, na
Atenção Básica. A investigação busca também possibilitar o resgate e a
apropriação, por parte dos participantes da pesquisa, das práticas
utilizadas em suas trajetórias profissionais concernentes ao tema.

200
Processo de Pesquisa:

Optamos por trabalhar com profissionais de diferentes áreas


que tenham tido dois ou mais anos de experiência laborativa na AB;
não importando se em meio rural, ou nos grandes centros urbanos,
seja no funcionamento de UBS, seja em equipe de Estratégia Saúde da
Família - ESF. Ao todo, foram oito participantes. Além da produção
(questionário on-line) e análise dos dados (análise de conteúdo) que
constituem o processo investigativo em si, as estratégias e
fundamentação teórica apresentadas nesse trabalho também dizem
de um lugar possível de entendimento e prática das autoras, o que
implica discutir as problematizações decorrentes dessas diferenças no
lidar com a saúde e as drogas.
Segundo Paiva (2004), o correio eletrônico é uma ferramenta
que facilita a colaboração, discussão de tópicos de trabalho e
aprendizagem, viabilizando a criação de comunidades discursivas,
superando limitações de tempo e de espaço. Apesar de novo em
trabalhos científicos é recurso cada vez mais utilizado na comunicação
entre as pessoas e o presente trabalho esteve atento às notícias e aos
processos que essa via de coleta pode suscitar. No entanto,
percebemos que os e-mails enviados em decorrência de indicação de
outro profissional e que mencionavam essa indicação tiveram um
melhor retorno, provavelmente por se estabelecer aí um sentimento
de compromisso com a expectativa do colega que o indicou.
Verificamos que a dinamicidade e a fluidez favoráveis nesse
tipo de comunicação pôde significar também a dificuldade na coleta de
dados, haja vista o significativo número de e-mails não respondidos.
Provavelmente porque essa mesma dinamicidade e fluidez de
comunicação por vezes atropelam assuntos que exijam maior tempo e
concentração – a exemplo de um questionário.
De todos os e-mails enviados, apenas 14% (oito participantes)
deram retorno, respondendo ao questionário. Outro aspecto que
merece ser destacado é que dos oito participantes apenas dois eram
profissionais ligados – tradicional e convencionalmente - à saúde

201
mental: dois psicólogos, três enfermeiros, um dentista e dois médicos
pediatras. Somado ao fato de que o modo de acessar os participantes
ocorreu através de indicação de colegas (snow ball), isso mostra-nos
que, reconhecidamente, as ações em saúde mental (ou pelo menos as
referentes a álcool e outras drogas) estão sendo marcadas pela
multidisciplinaridade.
Para a análise dos dados elegemos a Análise de Conteúdo que,
conforme Minayo (2003, p. 74), visa verificar hipóteses e ou descobrir
o que está por trás de cada conteúdo manifesto.

“(...) o que está escrito, falado, mapeado,


figurativamente desenhado e/ou simbolicamente
explicitado sempre será o ponto de partida para a
identificação do conteúdo manifesto (seja ele
explícito e/ou latente).” A partir da decodificação
das contribuições dos participantes, foi possível a
sistematização de categorias que auxiliaram no
objetivo do estudo.

Quanto aos aspectos éticos o Termo de Consentimento Livre e


Esclarecido constou no próprio corpo do e-mail, juntamente com o
instrumento e anteriormente a ele. Ele foi considerado aceito pelo
participante na medida em que este retornou o e-mail, respondendo
às perguntas do questionário. A pesquisadora responsabilizou-se pelo
cuidado de enviar e-mails somente individuais, de modo que os
endereços eletrônicos dos destinatários não ficassem vulneráveis a
redes de contatos não solicitadas pelos participantes.

Políticas de Cuidado e Atenção Básica:

Sobre as interrogações que investigam a ética de um trabalho,


consideramos que os espaços em uma UBS podem contribuir na
desconstrução do “senso comum que encara todo usuário de drogas
como aquele que é doente, requer internação, prisão ou absolvição”
(BRASIL, 2004). Além disso, a resolutividade do trabalho na AB

202
romperia com a ideia de que somente sendo especialista se pode lidar
com as especificidades, desconsiderando que as iniciativas devem ser
desenvolvidas frente ao que se apresenta no cotidiano da
comunidade. Incertezas fazem parte do processo de trabalho com
qualquer temática de saúde. Ao serem admitidas, vividas e trabalhadas
pela equipe, tornam-se ferramentas operadoras de qualificação do
cuidado (CECCIM, 2005).
Deste modo, a AB segue sendo convocada a potencializar seu
trabalho na questão das drogas – como parte da rede de serviços –
justamente por ser cenário privilegiado e marcado pela complexidade
da vida que nele circula. A UBS pertence à malha de relações de uma
comunidade e, não só se faz mais próxima à vida local, como compõe o
repertório dessa vida; suas intervenções se dão no território dos
acontecimentos.
Para Merhy (2002) o entendimento sobre o que seja cura ou
saúde é consequência de um cuidado, sendo este, então, o principal
objetivo das equipes de saúde: desenvolver essa tecnologia leve de
atenção, responsabilização e interesse pelo usuário. No limite, todo
profissional de saúde é um cuidador, apesar de ainda haver uma
supervalorização dos avanços tecnológicos e do saber em saúde,
dimensão que contrasta com o desamparo nos serviços.
Pessoas que usam drogas – expressão sugerida pelo redutor de
danos Denis Petuco (2007), que propôs desnaturalizar termos como
usuário ou dependente, que circunscrevem toda a multiplicidade de
uma existência a um único hábito. O uso de drogas muitas vezes não é
central, mas é referido através desses termos convencionais, como se
fosse; são estigmas identitários que produzem subjetividades
reduzidas porque assim são vistas pelos profissionais de saúde,
cientistas, direito, comunidade, família, etc. O termo usuário, então, se
reservaria ao âmbito dos serviços do Sistema Único de Saúde –
usuários do SUS.
Caponi (2003) nos lembra que no paradigma da saúde e da vida
nem sempre consideramos que esses elementos pelos quais se
configura o mal-estar podem ser mais estimulantes que a ausência

203
total de desafios e que, em alguns casos, representam uma escolha;
esquecemos que, ao contrário de situações impostas (como a má
distribuição de renda, alimentação deficiente, condições sanitárias
precárias, analfabetismo), possa existir algo de desejável nessa busca
do indivíduo. Caponi (2003) retoma ainda Canguilhem (1990) para
definir saúde: possibilidade de enfrentar situações novas, mobilidade -
segura ou tolerada – que se tem para lidar com as adversidades do
meio. Enquanto isso, o patológico diz de um sentimento direto de
sofrimento, de uma impotência diante da vida contrariada.
A Política Nacional de Atenção Básica (BRASIL, 2006) estabelece
a revisão e as diretrizes sobre normas e organização especificamente
da rede básica de saúde e, mais uma vez, reitera o papel desse nível de
assistência para o diagnóstico, a prevenção, a promoção, o tratamento
e a reabilitação.
A Política Nacional de Atenção Integral a Usuários de Álcool e
Outras Drogas (BRASIL, 2004) tem a Redução de Danos como diretriz
de trabalho, pois não se orienta exclusivamente pela abstinência, na
medida em que reconhece as escolhas e a corresponsabilidade de cada
pessoa. A Política entende a necessidade do fortalecimento de uma
rede de atenção centrada na comunidade e na reforma psiquiátrica –
CAPS ad (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas), PSF
(Programa Saúde da Família), PACS (Programa Agente Comunitário de
Saúde), PRD (Programa Redução de Danos) e UBS (Unidade Básica de
Saúde)– que é apoiada por leitos psiquiátricos e clínicos em hospitais
gerais.

Cuidado e Controle: encontros sociais entre Saúdes, Drogas e


Liberdades.

Como as liberdades se atravessam em cada vivente no


contemporâneo? Se ele recicla ou não o lixo, se adere ou não à greve
ainda que com ameaça de corte de salário, se é a favor ou não da
legalização da maconha, sua posição quanto a fumar em locais

204
fechados. Quantas pessoas frequentam seu Conselho Local de Saúde
para participar das decisões referentes à sua UBS?
Notemos que uma liberdade de participação voltada aos
interesses públicos recai, nos nossos tempos, prioritariamente sobre
os direitos: de educação, de realizar casamento gay, de se ter terra,
salário, de se usar drogas (Carvalho, 1998). Curiosamente,
reivindicações indissociáveis de uma caminhada hedonista, moderna,
individualista. Não é à toa que uma das campanhas do Ministério da
Saúde seja “Álcool e outras drogas alteram os seus sentidos, mas nada
altera seu direito à saúde”.
Como refere Vargas (1998), a experiência humana de se
consumir drogas com propósitos não apenas medicamentosos é
antiga, mas foi somente a nossa sociedade que declarou guerra a
certas substâncias. Toda essa mobilização médico-criminal, que não
existiu desde sempre e é bem datada, se deve ao fato de que nunca se
consumiu tantas drogas – ilícitas ou não – como nos dias de hoje.
Paradoxalmente, essa crescente e inédita repressão ao uso de drogas
ilegais convive com a também crescente incitação ao consumo de
drogas legais, desde o álcool e o café, até os anoréticos, esteroides e
ansiolíticos. Há então, aos olhos da saúde, um consumo autorizado e
outro não autorizado e, em ambos os casos, o pivô causal se dá em
nome da saúde dos corpos, segundo o mesmo autor.
A relação drogas-saúde é potente quando não sucumbe ao
mais simples e cômodo: instalar-se na dimensão exclusivamente
destrutiva do consumo ou de enxergar apenas o êxtase da experiência.
Pensar e planejar ações em saúde em relação às drogas é encarar e
reconhecer o paradoxo que seu uso carrega, e entendimento de saúde
como direito indica que o cuidado não deve ser confundido com
controle.
Prevenção. O mesmo que prevenir, evitação de encontros.
Venir, em espanhol; vir, em português. Prevenir, então, pode ser
entendido aqui como uma forma de não permitir a experiência de se
dar (TORTORELLI, 2006.), talvez pela possibilidade do confronto, uma
das repercussões do encontro. Prevenir para antecipar de outro jeito a

205
fim de ter controle do acontecimento por medo do que ele possa
disparar, interrompendo o imprevisível. Prevenir, não deixar vir. Como
pensar agora os fenômenos da recaída e da frustração no trabalho
junto a quem usa drogas?
Se nos propusermos a realmente acompanhar o desejo da
pessoa que usa drogas e seu processo - seus momentos de falar sobre
o que teme perder caso pare de usar, sobre o prazer de usar, seus
medos e receios do que possa acontecer caso não consiga se
reposicionar diante da droga, suas tentativas de repensar seu uso, seus
rituais de consumo, suas quantidades e inclusive sua vontade de parar
totalmente – talvez essa frustração possa tomar outras dimensões.
Diante da pessoa que está usando drogas e que, portanto,
enfrenta uma série de complicações na vida social, amorosa e
profissional é tentador para o profissional entrar na lógica de
prescrição de condutas, que tem circulação tão tranquila entre os
profissionais de saúde. Falamos tanto em autonomia ou promover a
autonomia. Assim, é realmente um exercício trabalharmos com a
noção de corresponsabilidade, fazendo-se possível um protagonismo
de quem usa drogas com relação ao seu projeto terapêutico. A
propósito, a abstinência é atingida por apenas 30% das pessoas que
são internadas (BRASIL, 2004). E o que acontece com os outros 70%?
Que tipo de atenção, de cuidado eles podem encontrar nos serviços?

Redução de Danos: No te percas, tu sabes tu limite!

O debate da corresponsabilização faz lembrar um festival de


música ocorrido em Buenos Aires, no ano de 2008. Chamou a atenção
o telão ao lado do palco que dizia: “no te percas, tu sabes tu limite!”,
campanha bem diferente da brasileira “Diga não às drogas” (máxima
encontrada no rodapé dos documentos de referência e
contrarreferência do SUS). Isso produz um efeito diferente, tal qual um
ato clínico capaz de provocar desvio e reposicionamento subjetivo,
pois quando alguém diz: “tu sabes o teu limite”, imediatamente somos
remetidos a um autoexame: “sei mesmo?” e logo, “qual é o meu

206
limite?”. Ter de se ocupar dessa resposta é bem diferente de toda uma
equipe afirmando categoricamente que quem usa drogas não tem
controle algum sobre seus atos, que se trata de uma doença e que a
única via é a internação.
Corresponsabilizar o outro consigo é trabalho mais difícil e mais
rigoroso do que as políticas que até 2004 executamos no Brasil, em
que prevenção se torna sinônimo de “não faça isso nunca” e
tratamento é igual a “pare para sempre”, segundo a fala de um dos
participantes do Seminário “Outras palavras sobre o cuidado a pessoas
que usam drogas” 2008, Porto Alegre. Por isso a necessidade de não
ocupar esse papel superegóico e, em certo sentido, cômodo, por
anular qualquer necessidade dos sujeitos pensarem sua implicação nos
conflitos que vivem. Daí a importância de quem faz uso ocupar-se
desse prazer, pensar seus desdobramentos no laço social,
responsabilizar-se também pelo próprio projeto terapêutico se por isso
optar.

Análise e Discussão dos Conteúdos:

“Já que se há de escrever, que pelo menos não


se esmaguem com as palavras as entrelinhas”.
Clarice Lispector.

É justamente na aposta de que quanto mais palavras houver


mais entrelinhas se produzirão, que se fundamenta a Análise de
Conteúdo. Em conversa com Clarice, Minayo (2003) diria que como o
analista de conteúdo visa verificar hipóteses e ou descobrir o que está
por trás de cada conteúdo manifesto, quanto mais palavras houver,
mais entrelinhas se produzirão. Assim, trata-se de uma escuta ativa
dos textos enviados pelos participantes no sentido de compreender a
partir de uma leitura intensiva seus pontos de conexão, zonas de
proximidade, diferenças, dissonâncias, mapeando saturações e
delineamentos simbólicos; destacando, desta maneira, linhas e
entrelinhas na direção dos objetivos desta pesquisa.

207
Sempre lembrando que essa projeção de sentidos que
atribuímos às escritas dos participantes não é livre das bem-vindas
“impurezas” da pesquisadora, na medida em que “nada pode ser
intelectualmente um problema se não tiver sido, em primeiro lugar,
um problema da vida prática”. (MINAYO, 2003, p.17). O próprio
surgimento da presente pesquisa se dá por inquietações,
desconfortos, perguntas, encontros e afetos. Impurezas essas que
poderiam ser reduzidas à ordem pessoal, mas que se despersonalizam
quando buscam alteridades na orientação, nos colegas, na rede de
cuidado, no diálogo com os autores e com os participantes da
pesquisa.
É daí que se podem desfiar concepções de saúde, doença,
atenção, cuidado, bem como os modos de estar e operar frente a
alguns temas. Temos presente que não se trata de análises individuais,
mas singulares (BIRMAN, 2000), na medida em que entendemos o
discurso a ser analisado e desmembrado, não como de posse exclusiva
do sujeito que o enuncia, mas como resultado de uma série de vetores
sociais, históricos, ditos científicos, políticos, de formação, do mundo
do trabalho, os quais se traduzem em maior ou menor passagem por
algumas subjetividades. Optamos pelo exercício de categorizar
questões que, mesmo admitindo negativas, pudessem apontar na
direção de um possível.
Assim, a partir das contribuições dos participantes
(representadas a seguir em itálico), da implicação da pesquisadora e
de toda a retomada sobre o tema feita até então, se destacam – em
todo corpo textual das respostas ao questionário - quatro temáticas
que consideramos importantes pontos de análise. São elas: 1)
Intervenção e Projeto Terapêutico Singular, 2) Estratégias
potencializadoras do cuidado: como fazer possível? 3) Contravenção e
4) Atenção Básica à Saúde em Relação.

208
Intervenção e Projeto Terapêutico Singular:

Não estamos falando daquelas drogas que eu cansei


de prescrever (“remedinhos” em geral...) mesmo
para crianças pequenas. Nem mesmo do uso “não
problemático” de álcool ou outros entorpecentes.
Estamos falando de abuso, dependência e coisas
afins, certo? Pois bem, (...) na maioria das vezes as
in(ter)venções positivas foram construídas
artesanalmente, caso a caso, situação a situação.

As noções de Intervenção e Projeto Terapêutico Singular se


diferenciam, mas não se separam, pois se alternam e coabitam as
ações de um mesmo profissional muitas vezes. No entanto, é oportuno
sinalizar a diferença nos discursos dos participantes em relação a essas
duas noções, pois remetem a um tipo de prática. Consideremos aqui a
concepção dos profissionais: como se referem ao fenômeno uso/abuso
de álcool e outras drogas e como se relacionam com os sujeitos que
encontram. O que buscam com suas práticas, para que adotam as
estratégias que adotam, estas questões dizem da dimensão ética: em
que interfere um agir? Que implicações teremos decorrente de tal
prática?

Esta intervenção (...) visa que o profissional da


Atenção Básica consiga manejar melhor estas
pessoas, sem necessitar encaminhar para outro
serviço, e também busque motivar o usuário a se
manter em abstinência.

O verbete Intervenção – Dicionário Aurélio (1998) – significa “1.


Ato de intervir; interferência. 2. Operação. 3. Interferência do poder
central em qualquer unidade da União.” Intervir, por sua vez:
1.“Meter-se de permeio”. A palavra Intervenção, escolhida aqui para
nomear uma categoria de análise, carrega consigo uma noção de
operação vertical de um agente externo que, a partir da sua análise,

209
produz um entendimento e, mediado por uma relação de poder
tensiona para um novo arranjo que atenda melhor às suas
expectativas. Esse fragmento nos traz muitas possibilidades de leituras
que terão sequência na quarta categoria: Atenção Básica em Relação.

Inicialmente, trabalhávamos com o conceito de


abstinência, com o passar dos anos, passamos a
rever nossos conceitos e trabalhávamos com a
delimitação do objetivo individual que cada um dos
usuários se propunha a alcançar. O mais importante
era a expectativa que o próprio usuário tinha em
relação a sua saúde, entendendo saúde em seu
conceito ampliado. Procurávamos encontrar
conjuntamente, novas formas de significar a droga
na vida da pessoa e o afeto associado ao uso.

Aqui, nos é contado de que forma a equipe realizou uma torção


conceitual: no momento em que se amplia o que se entende por saúde
e suas possibilidades, se singulariza o fenômeno saúde/doença que
passa a não mais exigir uma resposta única, como a abstinência.
O Projeto Terapêutico Singular (BRASIL, 2009) é um conjunto de
propostas terapêuticas (geralmente vinculado à saúde mental)
pensadas por uma equipe multidisciplinar em articulação com o sujeito
(individual ou coletivo) que faz uso do serviço de saúde. É estratégia
que só pode ser pensada se há um bom vínculo e, portanto, uma boa
margem para negociação e capacidade constante de se recriar o
projeto se percebida essa necessidade.
Para isso, a equipe precisa estar em constante diálogo e
reposicionamento se assim for avaliado; o apoio matricial (CAMPOS &
DOMITTI, 2007) à equipe de referência pode ser de grande ajuda nesse
processo, na medida em que propõe a reorganização dos serviços e da
gestão do cuidado a partir da corresponsabilização e da
complementaridade ao modelo da referência/contrarreferência,
oferecendo retaguarda assistencial e apoio técnico pedagógico às
equipes de referência. O apoio matricial é recurso transversal que

210
assume a impossibilidade de algum profissional, por mais especialista
ou generalista que seja, saber o que e como fazer diante de todas as
situações que vão se apresentar.
Aposta-se no potencial protagonista que cada pessoa tem para
mudar sua relação com a vida, estando esse ator em construção
permanente e exigindo da equipe um exercício de abertura ao
imprevisível. “O caminho do usuário é somente dele, e é ele quem dirá
se e quando quer ir, negociando ou rejeitando as ofertas da equipe de
saúde” (BRASIL, 2009); trata-se, então, de fazer junto com o outro e
não para/pelo o outro. Essa é uma estratégia que deve contar com a
figura do técnico de referência:

Iniciamos com a definição de dois técnicos de


referência para a organização dos planos
terapêuticos com os UDs [Usuários de Drogas] -
uma técnica de enfermagem e um enfermeiro. Esta
escolha se deu pela maior "abertura" destes à esta
abordagem e também pelo desejo destes de
experienciar novas possibilidades (clínica aberta) de
cuidados aos UDs. Com o passar do tempo, novos
trabalhadores se colocaram como técnicos de
referência - estratégia que aumenta as
possibilidades de vínculo, de corresponsabilização.
Vale destacar que a definição de técnico de
referência não é burocrático-administrativa, mas
construída na relação com os usuários, conforme as
afinidades, empatias e sensibilidades de cada um.

Estratégias Potencializadoras do Cuidado: como fazer/tornar


possível?

Não sendo o nosso objetivo ruminar as dificuldades e


impedimentos das práticas, guiamo-nos pelas possibilidades. Temos a
intenção de afirmar e não de apontar as faltas, os não-
acontecimentos. Acreditamos, porém tratar-se de colocar ênfase,

211
potencializar forças ativas para que elas reverberem, engendrem ainda
outras possibilidades.

Havia muita resistência (...) o cenário muda. Um


exemplo, sinalizador das mudanças, é o início do
acompanhamento homeopático de UD na própria
unidade e o programa semanal na Rádio
Comunitária, recém-iniciado.

A participação de redutores de danos em reuniões


de equipe disparara os primeiros "incômodos".

Levantamento de casos (...) indicação dos Agentes


Comunitários de Saúde; divulgação de cartazes com
a seguinte afirmação: "Saúde é direito de todos.
Quem usa drogas também tem direito". Procure
fulano e ciclana (técnicos de referência) na unidade
de saúde... Esta foi a principal forma de
"divulgação" da ESF como possibilidade de cuidados
aos UDs.

(...) Acredito que a sensibilização de toda a equipe


para a importância das ações frente a esta
problemática. Não foi fácil "trazer a equipe para
perto”.

Fui, insistentemente, trazendo o tema em


discussões de equipe, agendando interconsultas,
pedindo parcerias, fazendo capacitações para a
equipe, o que foi fazendo com que as pessoas
fossem lentamente desmistificando alguns
conceitos e "comprando" esta nova ideia, de
acolhida aos usuários e seus familiares.

Os fragmentos acima representam também outros trechos não


destacados aqui. São trabalhadores que viram necessário, antes de
tudo, um processo junto às suas equipes que denominaram

212
“sensibilização”. Aos poucos, o como fazer dessa sensibilização vai se
traduzindo para o que entendemos por Educação Permanente.
Avisamos de antemão ao leitor que, nessa categoria, denominada por
nós de Como fazer possível, não iremos poupar fragmentos trazidos
pelos participantes, e fazemos o convite para a razão desse trabalho:
as possibilidades.

Interessante essa pergunta, porque fui me


lembrando da prática com tristeza, pensando “mas
que merda, esse troço não tem jeito mesmo”. É
muito difícil trabalhar num sistema que não te dá
ferramentas pra exercer o teu trabalho de forma
digna, que não tá preocupado com as reais
necessidades de saúde das pessoas e usa o discurso
de equidade para a prática descarada da
iniquidade. Acho que a questão do uso de drogas vai
continuar sendo tratada como um problema, mas
no entendimento de “problema” de quem não tem
noção da realidade e, por isso, as pessoas vão
continuar com as suas necessidades de saúde –
pensando na saúde - desassistidas por mais muito
tempo.

Merhy (2009) nos lembra: quando os trabalhadores não se


sentem participantes da gestão do cuidado, há uma forte tendência
em culpar o chefe, o sistema e demais instâncias que representam o
poder deliberativo do qual efetivamente ele não faz parte e tem pouco
acesso. Essa participação real nos espaços coletivos de decisão é
apontada como fundamental para realização pessoal e profissional do
trabalhador. A partir do fragmento, podemos pensar em algumas
questões: em que espaços, na Unidade, se conversa sobre a circulação
de afetos entre usuários e equipes e como essa subjetividade é levada
em conta nos processos de gestão do cuidado? Existe democratização
e publicização dos processos decisórios? Seguimos por outros
possíveis.

213
Inicialmente uma escuta, que poderia ser ao próprio
usuário ou ao familiar que vinha buscar ajuda.
Alguns casos atendíamos em terapia de família, em
coterapia com outros profissionais da equipe, das
diversas áreas da saúde. Fazíamos visitas
domiciliares e o encaminhamento ao grupo de
dependentes químicos, que chamávamos de
GADEQUIM, ou seja, grupo de apoio a dependentes
químicos... Uma atividade que considero de suma
importância era o acesso à rede de apoio intra e
extra familiar.

(...) as equipes – e eu me incluo – têm um mínimo


pra dar conta desta demanda, além de ter pouco
espaço na agenda para discussão franca dos
assuntos relacionados ao uso de drogas. Não
existem ações programáticas a esse respeito.

(...) muitas das intervenções eram "espontaneístas"


- sustentadas no referencial da saúde coletiva, de
um "saber militante", mas não sistematizado pela
equipe. Entretanto, entendo que nesta falta de
planejamento e avaliação, pelo menos não fomos
capturados por planejamentos normativos,
burocratizados.

Sobre os últimos recortes, se insinua uma questão: seria


interessante ter uma ação programática específica para álcool e outras
drogas no primeiro nível de atenção? As intervenções em AB são
marcadas por conselhos, ações programáticas e urgência em se
elaborar projetos, um “ter de dar conta” marcado pela captação e
resolução de problemas na velocidade dos acontecimentos.
Entretanto, também na escuta de AB é necessário um espaço para o
vazio, para outro tempo, para a não pressa, condição para o usuário ir
trazendo os significados, os sentidos e as iniciativas (CAMPOS, 2009).
Para os trabalhadores da AB, a ação programática traz consigo uma

214
ambiguidade: ao mesmo tempo em que é vista como pedido vertical
que muitas vezes passa por cima da autonomia dos profissionais e da
realidade local para eleger as necessidades de saúde da comunidade, é
vista também como uma ancoragem diante de uma problemática, uma
vez que vem acompanhada de orientações, protocolos e respaldo para
incluí-la na agenda como prioridade.

Estou com muitas dificuldades, não sei como


trabalhar, estou com muitas dúvidas, pois acho um
tema difícil para trabalhar, pois não saímos
preparados para este trabalho da Universidade.

De todos os modos, a construção de um vazio se faz necessária


também ao trabalhador de saúde, perguntas que tenham um espaço
possível e cotidiano de circulação de dúvidas, ansiedades, valores,
ideias. Abertura, inclusive para críticas entre a equipe, condição para a
revisão dos objetivos através de uma aprendizagem significativa
concatenada ao desenvolvimento profissional e institucional.
Propostas que não devem ser pensadas de cima para baixo, que
problematizam as realidades locais, envolvendo diferentes segmentos
e atores: nisso consiste a Educação Permanente, dimensão inseparável
do mundo do trabalho tanto na gestão como na produção de cuidado
à saúde (BRASIL, 2005).

Constituímos um espaço permanente de encontro


de escolas, instituições religiosas (...), CAPS AD,
Redução de Danos, coordenação de saúde mental
da SMS, Equipe de Saúde da Família, Unidade
Básica de Saúde com território contíguo, Associação
Comunitária, Pastoral da Criança, Conselho Tutelar,
CRAS (Centro de Referência em Assistência Social) e
pessoas sem vínculos institucionais.

Na Intersetorialidade, mais possíveis...

215
(...) grupo do Centro de Referência de Redução de
Danos da Escola de Saúde Pública.

Uma trabalhadora, técnica de enfermagem, têm


liberação de carga horária para realizar curso de
formação em Terapia Comunitária.
Redutores de Danos do município de Gravataí
combinam e realizam intervenções em conjunto
com trabalhadores da Equipe de Saúde da Família -
oportunidade de formação em serviço

Oficinas de sensibilização de professores e discussão


das responsabilidades desta instituição.

A disponibilidade e preparo da equipe de saúde


mental em capacitar as equipes e o gestor, a boa
escuta do Secretário de Saúde acolhendo as
indicações de fortalecer a rede como um todo e não
só aumentar os leitos hospitalares a coordenação
da atenção primária por entender que este é um
problema importante, ou seja equipe capacitada e
gestor disposto a ouvir os técnicos.

Contravenção

Ser humano é ser trajeto.


Paul Virilio

Partamos da seguinte disposição estabelecida: “não usar


drogas é condição para a boa saúde”. Disposição essa desenvolvida
pela construção histórica da saúde pública em intersecção com
diversos outros setores. A nomenclatura “contravenção”, aqui, nos
serve como ideia de torção, como forma de transgressão a outras
disposições estabelecidas, noção que nos faz um convite a sair das
prescrições. Contravenção enquanto operadora de movimento na

216
contraversão hegemônica, na outra-versão, sem a necessidade de se
recorrer ao polo da ilegalidade para sustentar um encontro singular
entre profissional e usuário.

A ilegalidade interdita, silencia: define regras sobre


quem pode abordar, como, onde(...).

(...)a ilegalidade "atrapalha".

A ilegalidade faz com que o assunto não possa ser


tratado em espaços formais, dificulta a
aproximação do usuário ao serviço de saúde pelo
medo relacionado às consequências de se estar
“infringindo a lei”, dificulta o acompanhamento
domiciliar porque os profissionais se sentem
amedrontados (“batidas” policiais não são
incomuns nas comunidades). Quanto menos se fala
no assunto, menos problemas!

Definimos como moral tudo aquilo que se encontra no registro


das normas, regras, costumes, noção de bem e mal. Já a ética é uma
reflexão acerca das normas vigentes e não pode ser encontrada em
códigos ou leis (MEDEIROS, 2002). Ser ético não significa simplesmente
cumprir o que manda a lei, mas problematizar, refletir sobre normas,
sejam elas sustentadas por hábitos ou por leis do Estado. A maneira
como se concebe a ilegalidade no contexto da saúde acaba por
provocar uma infração grave: rouba da ABS a particularidade do
território e seus caminhos de acesso.

A ilegalidade é uma barreira a mais. É uma barreira


para o usuário chegar ao serviço, trazer o seu
problema e pedir ajuda. É uma barreira – real e
simbólica – para o profissional de saúde e a equipe
lidarem com o problema do usuário. Ilegalidade
lembra crime, que lembra julgamento, que lembra
punição... e tudo isto não lembra saúde.

217
A ilegalidade aqui é dada como barreira real e simbólica. Quais
as repercussões desse sentimento? A partir do momento em que a
impossibilidade de circulação assombra os encontros entre
profissionais e usuários do SUS, é posta em cheque toda a potência do
território já mencionada (trata-se de posto de saúde, não de polícia.)
se vê ameaçada. A AB é convocada a potencializar seu trabalho na
questão das drogas – como parte da rede de serviços – justamente por
ser cenário privilegiado e marcado pela complexidade da vida que nele
circula. A UBS pertence à malha de relações de uma comunidade, não
só se faz mais próxima à vida local como compõe o repertório dessa
vida; suas práticas se dão no território dos acontecimentos e a ilicitude
parece ser tomada como impossibilidade.
Encontramos a seguir um fazer ético (ou seja, de determinadas
repercussões) que busca desvio do bloqueio de passagem, ao mesmo
tempo em que afirma o direito do usuário de drogas de ser usuário dos
serviços de saúde: em mais de um relato a questão da ilegalidade tem
suas repercussões entre as pessoas que usam álcool e outras drogas.
Oportunizar a essa clientela acesso aos demais recursos disponibilizados
pela UBS. (Pergunta da revisora: Por que a frase acima está diferenciada, é um está
subtítulo?)
Mais sobre ilegalidade, transgressão, contravenção; agora, no
sentido de queda de disposições estabelecidas, que possibilita ir além
da mera aceitação de regras e normas (dimensão moral), quebra
decorrente de uma reflexão crítica sobre as mesmas:

O que tornou possível as ações? A informalidade;


uma vez que a gestão municipal tinha postura
centralizadora, e proibia o contato com qualquer
outro secretaria ou setor sem a prévia autorização
do Secretário Municipal de Saúde. Orientação que a
equipe ignorou, até ter dado "corpo" às iniciativas e
ter acumulado força na rede de relações
institucionais que se formou (Associação
Comunitária, escolas, conselho tutelar, serviço da
Assistência Social, Pastoral da Criança, apoiadores

218
não vinculados às instituições, entre outros). Neste
sentido, por exemplo, foi viabilizado um programa
na Rádio Comunitária.

A questão da ilegalidade entre as pessoas que fazem uso


problemático de álcool e outras drogas:

Sentia uma dificuldade entre os próprios usuários do


grupo. Parecia que os alcoolistas, consideravam os
usuários de drogas ilícitas, como "delinquentes, ou
marginais"(...)

Poderíamos reduzir essa problemática ao pragmatismo de


decidir agrupar ou não os que fazem uso de álcool com os que fazem
uso de outra substância. Ou poderíamos dar prolongamento a esse
debate e perguntar sobre as razões pelas quais ocorre tal fenômeno.
Por que se abrasam as relações entre usuários de álcool e os usuários
de outras drogas? “Delinquentes”, “marginais” são construções
exclusivas dos usuários de álcool? Seria objetivo de um grupo colocar
em análise os estigmas? Pensar então num grupo híbrido ou não,
agora parece ganhar outro sentido.

Atenção Básica em Relação:

Um "sinalizador" da desarticulação é a forma de


registro e arquivo dos (prontuários) no CAPS AD:
não tem qualquer registro sobre a unidade básica
de referência.

Em relação sempre se está, mas que tipo de relação a AB está


estabelecendo com outros serviços e setores? Se há o predomínio de
uma articulação piramidal, isso significa dizer que há muitos com
pouco poder e muita responsabilidade. Se o que predomina é uma
articulação em rede, as relações são marcadas pela interdependência e
nenhum ponto da rede é central ou principal, os efeitos são

219
compartilhados e a comunicação (fluxos em todas as direções e
sentidos) é intensa.

Esta intervenção (...) visa que o profissional da


Atenção Básica consiga manejar melhor estas
pessoas, sem necessitar encaminhar para outro
serviço, e também busque motivar o usuário a se
manter em abstinência.

Interessante observar nesse recorte que certa verticalidade não


só se encontra presente na expectativa de uma intervenção que dê
conta de um manejo, como também na menção ao (curto) circuito
referência/contrarreferência, modelo que pressupõe uma organização
piramidal do cuidado se exclusivamente adotado. Não seria por essa
razão que o profissional em questão pensa em uma estratégia que não
coloque em risco o contato, o vínculo com os usuários do serviço? No
recorte abaixo, o pedido é pela capacitação, que segue num formato
mais convencional de aprendizagem através da transmissão de um
conhecimento que daria conta de um não saber.

Há mais ou menos 2 meses um novo serviço foi


inaugurado no mesmo prédio do nosso posto, e
estamos pensando em realizar uma aproximação
maior dos profissionais deste CAPS com os
profissionais da Atenção Básica, para que estes
tenham uma maior capacitação.

O apoio pedagógico, no entanto, diferente da proposta de


capacitações se constitui justamente a partir do não saber em sua
constante e infindável reformulação diante do cotidiano. O apoio não
vem com a promessa de vencer um conteúdo, mas sim de incitá-lo, de
provocar seu advento a partir, principalmente, das trocas.

Os usuários dependentes de drogas são, na grande


maioria das vezes, encaminhados para o CAPS AD.

220
Infelizmente não temos uma adequada articulação
entre os serviços que visem a continuidade do
tratamento destas pessoas (por ex. o usuário é
encaminhado e não ficamos sabendo como está
evoluindo o caso.)

Mesmo quando há serviços substitutivos (ao recurso da


internação), não temos garantia de que a rede será vibrátil. Ainda se
espera pacientemente pela eficiência da referência e
contrarreferência. Em outras experiências a estratégia adotada é
outra, na medida em que o estreitamento das relações entre os
serviços priorizam o vínculo, a continuidade e a instrumentalização a
partir da prática, elementos que introduzem o fazer do apoio matricial:

Creio que "pensar" nesta ação foi possível pela


proximidade com o CAPS, pela boa vontade
demonstrada nos contatos iniciais com os
profissionais do CAPS, e também por já termos um
Grupo de Trabalho em Saúde Mental composto por
profissionais da nossa própria UBS e de profissionais
do CAIS Mental, que ha mais de 1 ano se reúne
regularmente buscando estratégias de melhorar o
acesso das pessoas com sofrimento mental da nossa
UBS.

Desfecho:

A incursão sobre o tema álcool e outras drogas teve um de seus


inícios com o relato de um impossível – o desabafo de um médico que
parecia um tanto solitário na tarefa de ter que lidar com o imprevisível
das consultas de saúde mental. Tendo ele (o médico do desabafo e o
médico enquanto categoria) o poder de prescrever substâncias
psicoativas, não raro ocupa um lugar paradoxal na equipe: ora são os
colegas, que, diante dos impasses de casos-limites, delegam ao médico
todos os poderes de decisão sobre o caso, ora esse mesmo médico é

221
acusado de reduzir o cuidado a uma mera camisa-de-força química.
Esses dois fenômenos costumam coexistir nas relações de saúde e
versam na lógica da não corresponsabilidade.
Contudo, o resgate de práticas, submetidas à Análise de
Conteúdo, levou-nos a considerar principalmente o Projeto
Terapêutico Singular, a Educação Permanente, a Ação Intersetorial e o
Apoio Matricial como sugestões de ferramentas que se orientam para
a possibilidade de cuidado a pessoas que usam álcool e outras drogas
na ABS.
É importante que a tensão entre promoção e reabilitação paire
sobre o profissional da AB, como um alerta constante para que o
trabalho não tenha como foco a doença e sim o usuário e seu processo
saúde-adoecimento numa concepção mais ampla. Ser mais itinerante,
explorar outros territórios e possibilidades que não somente a
Unidade e a problemática das drogas. Em outras palavras, seria
interessante colocar mais potência na exploração de espaços culturais,
profissionais e de lazer.
Faz-se necessário ver de onde vêm as perguntas que sempre
fazemos para entender as respostas e práticas de que sempre
lançamos mão. Produção de conhecimento impossível sem o outro, o
mesmo fenômeno, diferentes autores, novos colegas-participantes. Na
medida em que se afirma a possibilidade, se assume um compromisso
com os novos e inevitáveis problemas, mas que vê nas entrelinhas um
possível que não se amortece.

Referências

Birman, J. (2000). O signo e seus excessos: a clínica em Deleuze. In:


Alliez, É. (Org.) Gilles Deleuze: uma vida filosófica (pp. 463-478). São
Paulo: Ed. 34.

222
Brasil. Ministério da Saúde. A Política do Ministério da Saúde para a
Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas (2004). Brasília:
Ministério da Saúde.

Brasil. Ministério da Saúde. A Política Nacional de Atenção Básica,


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226
Capitulo XI

O CHEIRO DA RUA:
Intervenções e invenções nas ruas de Porto Alegre.
Carmen Lúcia Paz, Mateus Freitas Cunda

É pedra, é porre, é o perfume e o brilho, é a cana no bafo, é a


merda vizinha. São silhuetas, são corpos no meio do caminho, são
lampejos da rua, são cheiros invisíveis. As avenidas preenchidas pelos
fluxos dos veículos que ligam um ponto ao outro pertence aos
apressados. Quem, na borda, assiste ao espetáculo, resta com as
narinas cheias do combustível queimado, dos pneus e freios
desgastados. Além dos narizes, os ouvidos ficam plenos de buzina e
motor, o paladar pasteurizado, os olhos cegos pelas luzes e pela
velocidade.
À margem, a vida acompanha o fluxo de intensidades em
euforias e orgias, em farras e farrapos, em medos e vícios. No efeito
da invisibilidade, identidades se edificam e se constrói uma vida em
comunidade. Ainda que poucos escutem, pode-se falar alto, bradar,
xingar, cantar e rodar a baiana. A bebida se serve farta, a pedra de
crack se fuma com a cerimônia necessária dos cachimbos, o corpo fica
exposto à cidade de modo íntimo. Poucos veem. Melhor dizendo: não
é desejável vê-los. Mas seus cheiros atravessam o passeio, seus corpos
exalam uma vida rueira, uma identidade íntima da cidade. Desse
encontro com a rua, brotam questões.
Qual a beleza que encanta o juiz-clérigo-empresário que
avança as ruas do centro da cidade em busca de um colo perfumado,
de um prazer depravado? A quem ele procura? Que relação íntima ele

227
encontra naquele esconderijo da cidade? Um corpo perfuma a cidade,
impregna os sentidos e altera o fluxo do gozo.
O que tem a dizer o mesmo senhor ao encontrar as fezes
frescas de um morador de rua em frente ao seu comércio no início da
manhã? De onde vieram? Quem seria o proprietário do pacote? Para
qual endereço remeter? A merda para o movimento e muda o fluxo do
capital.
Em meio a esses odores, o cheiro das drogas é componente
cotidiano da rua e, neste artigo, junto com o perfume e a merda, será
também posto no ventilador. São odores-demanda, são ofertas de
cheiro. As narinas, em resposta, propõem indagações sobre as formas
de negociação com os clientes/usuários, sobre o enquadre das
categorias profissional do sexo e população em situação de rua, sobre
o acesso desse público às políticas públicas, sobre, enfim, duas
experiências de intervenções rueiras que o acaso da Rede
Multicêntrica fez aproximar: o Núcleo de Estudos da Prostituição e o
Serviço de Abordagem Social.

Demandas entrecruzadas:

O telefone toca no Centro de Referência Especializado de


Assistência Social e a voz chega nervosa, ansiada: “tem uma pessoa na
frente da minha casa há dois dias”. E você já tentou algum contato
com ela? – se ousa perguntar. “Eu? Isso não é assunto meu. Quando
vocês vêm?” O profissional olha a agenda, calcula que pode demorar
até a equipe se deslocar ao local. “Mas que demora! Eu pago
impostos, tenho direito de ter minha calçada limpa!” O interlocutor
toma o ar, suspira o cheiro de café da mesa e pergunta como é o perfil
da pessoa, idade aproximada, características gerais: “é um vagabundo,
usa droga todo dia, como vou saber? E agora ainda caga e mija! O
fedor ninguém aguenta”. Com um pouco de memória olfativa, o
ouvinte consegue imaginar o cheiro acre de urina e cachaça,
misturado com tons de fumaça e óleo diesel da rua. Esse é o cenário

228
da intervenção. “Guardamos seu contato, vamos falar com esta
pessoa, depois conversamos, tenha um bom dia”.
A equipe de Abordagem Social já está acostumada com a
demanda de higienização, são solicitações costumeiras das grandes
avenidas. Surge um intruso no caminho seguro da cidade, um cheiro
que invade a propriedade e logo a Kombi do CREAS parte para
negociar a situação do rueiro e do proprietário do espaço. O
demandante defende seu território, o morador da rua também: a
equipe defende uma política de garantia de direitos para ambos. Há
um mal entendido sobre o papel que a Assistência Social ocupa na
cena: “- Mas vocês não vão levá-lo?” Vê-se que a conversa pode ser
longa.
Na outra rua, o corpo defende seu charme. “Nós não queremos
saber o número do CPF dele, não queremos que a relação dure para
além do sexo”. Quanto mais rápido, melhor: tempo é dinheiro, diz o
outro. Nesse acordo, o cliente fica vendido às suas vontades, realiza
fantasias que não cabem nas roupas comuns: vestir uma calcinha, ficar
de quatro, inverter os papéis, ter o cu manipulado. Não só o corpo, a
prostituta trabalha a mente humana. Nessa demanda, entre
habilidades de escuta e de exortação dos prazeres, se estabelece a
profissional do sexo, com a oferta de corpos quentes e acolhedores,
sorrisos doces e molhados.
Os clientes podem ser fixos ou esporádicos, o prazer varia em
possibilidades de gozo, o mercado é frenético. A demanda vem
complexa, mas trata-se, como produto, de ter um gozo final. O
comércio durante o dia funciona como qualquer outro. Entre os
hábitos corriqueiros do dia, uma passada no banco, uma ida ao
correio, uma cruzada pela praça e a oferta encanta, sobretudo, aos
trabalhadores de baixa renda. Já à noite, quando as lojas fecham e a
penumbra avança, o comércio sexual é um dos principais produtos,
quando se pode pegar peixes do alto escalão, endinheirados: políticos,
empresários, gente da televisão, juízes, pessoas ligadas ao crime
organizado. A oferta também muda, há mais espaço para travestis e
homossexuais. A noite adensa a cena, torna-se mágica e obscura.

229
Além das ruas, o comércio se espalha em salas, boates,
inferninhos, etc. Entre a negociação e o desfecho, há uma cidade em
pulso, há química dos cheiros nas veias, há um desejo e há uma
profissional. Há, na última linha, a membrana fina do preservativo, que
guarda o esperma do corpo.
Por incrível que pareça, ainda existem casos de clientes
(muitos!) que querem fazer uma relação sem preservativo, dizem: “tu
é uma mulher limpinha, eu sou um homem casado, não tem perigo...”.
Em todo caso, há sempre possibilidade de negociar, de driblar a
resistência inicial e excitar o cliente até o ponto em que o tabu já não
seja importante. “Toda a relação é com camisinha, meu anjo” e todo
gozo é possível. Há muitos modos de satisfazer a demanda e com ela,
ao mesmo tempo, proteger o corpo e o negócio.
Da penumbra das praças às luzes multicoloridas das boates, o
Núcleo de Estudos da Prostituição – NEP – aborda, informa e orienta
as prostitutas no tangente às violências, no cuidado à saúde, na
afirmação da profissão. Então são bilhetes, recados, piscadas de olho,
oficinas e grupos que se colocam entre a força dos perfumes e os
estigmas de uma cidade, com o intuito de garantir a cidadania das
profissionais e o fortalecimento da categoria.
O NEP trabalha para a assunção da prostituta como
protagonista e não como vítima, tirando-a da invisibilidade das
relações de trabalho. Afirma, por outro lado, a visibilidade de seus
encantos e a apropriação desse poder para afirmar um campo de
trabalho: só é prostituta quem assume e quem gosta de ser, quem não
gosta acaba fazendo um trabalho descuidado, como em qualquer
outra profissão, e desgasta a classe.

Políticas e ações para as profissionais do sexo:

A ocupação de profissional do sexo, conhecida como a mais


antiga das profissões, foi reconhecida no Brasil pelo Ministério do
Trabalho e do Emprego somente em 2002. Mesmo com a conquista, a
profissão apresenta condições de trabalho muitas vezes desiguais,

230
exploratórias, violentas. Com tal situação, o acesso aos direitos
fundamentais fica sobreposto pelos estigmas concernentes à
prostituição, que atrelam o trabalho à criminalidade, ao uso de drogas,
às doenças sexualmente transmissíveis, afastando a profissional de um
olhar de cuidado, tornando invisíveis as violências que sofrem.
A luta para a melhoria nas condições de trabalho iniciou ainda
na década de 1970, e o cume do movimento ocorreu em 1987 com o I
Encontro Nacional de Prostitutas, tendo eixos de discussão em torno
da criação de associações de prostitutas e definição de estratégias
para combater a violência policial (GERSHON, 2006).
Nesse período, surgiu em Porto Alegre o NEP - Núcleo de
Estudos da Prostituição: uma organização da sociedade civil que atua
junto às profissionais do sexo na capital e em outras cidades do Rio
Grande do Sul. A iniciativa veio de um grupo de pessoas, entre elas,
Tina Taborda Rovira - que permanece até hoje na instituição - que se
reuniu para formar uma associação da categoria. Entre as ações,
estava articular e organizar estratégias contra violência policial da
época, pela busca da cidadania, no incentivo à autoestima e à saúde
integral.

(...) Desde 1989, um grupo de prostitutas está


zelando pela saúde e bem-estar de colegas e
clientes. Oferecendo atendimento social e cuidados
médicos, distribuindo camisinhas e desmontando
preconceitos, elas viraram o jogo nas esquinas da
capital gaúcha (MACCA, 2004, p. 28).

A luta é cotidiana. Um dos estigmas mais presentes com as


prostitutas é a associação entre a prostituição e o contágio do HIV. No
Plano Integrado de Enfrentamento da Feminização da epidemia da
AIDS e outras DST (BRASIL, 2007), que contempla as profissionais do
sexo entre o público que pretende abranger, o combate ao estigma e à
violação dos direitos humanos é uma ação estratégica e fundamental
do plano:

231
(...) Historicamente grupos organizados de
mulheres representantes do movimento feminista,
do movimento de prostitutas, do movimento de
lésbicas e do movimento de pessoas vivendo com
HIV/Aids, entre outros, estiveram sempre
presentes na luta pelos direitos das mulheres. A
união dos diferentes movimentos em prol da
realização das ações previstas no Plano possibilitará
a redução do estigma, o fortalecimento da
articulação intersetorial e, por conseguinte a
promoção do acesso aos dispositivos sociais
necessários para o exercício da cidadania (BRASIL,
2007, p. 18).

Em uma versão revisada (BRASIL, 2011), o Plano apresenta


uma agenda afirmativa para as mulheres prostitutas, contendo 34
ações estratégicas. A primeira delas refere-se à

“(...) consideração dos contextos de vulnerabilidade


em sua amplitude, quando se tratar do tema
prostituição, evitando uma identificação simplista
entre o exercício da prostituição e uma maior
vulnerabilidade às DST/HIV/AIDS” (pág.48).

Assim, os fatores principais de exposição ao HIV são “aspectos


advindos das relações afetivas e sociais”, não sendo a realidade do
grupo das profissionais do sexo diferente de outros grupos
populacionais. Esses simplismos trazem uma visibilidade indesejável à
prostituta. Para o NEP, o que se deseja é garantir os direitos
fundamentais inerentes a qualquer pessoa. O Núcleo não trabalha
com o foco na AIDS e sim na saúde integral da mulher, não deseja uma
política específica para as prostitutas, mas políticas públicas de
qualidade que respeitem a diversidade da população e o
profissionalismo de qualquer categoria.
Nesse sentido, o NEP atua diretamente junto à Promotoria de
Direitos Humanos para a garantia da cidadania independente da

232
profissão da mulher, lidando com situações de violação de direitos
pelo simples fato da profissão, bem como atua junto aos Conselhos
Estaduais e Municipais de Saúde da Mulher e de Direitos Humanos na
construção de projetos de intervenção.
Alguns exemplos desses trabalhos foram os projetos Mulher
no Ponto: educação em saúde e direitos para mulheres profissionais
do sexo e seus parceiros; Mulher Cidadã: atividades de reinserção
social de profissionais do sexo em suas comunidades de origem;
Mulher Experta: trabalho educativo-preventivo com profissionais
soropositivas; Esquina na noite: capacitação de 13 organizações da
região sul do Brasil para criação de projetos em municípios; Damas da
Prevenção: capacitação de profissionais do sexo como multiplicadoras
de informações sobre o uso de drogas; Tenda dos Desejos: intervenção
com barracas para informação e distribuição de preservativos em
novos territórios de prostituição em Porto Alegre.
Além disso, o NEP integra a Rede Brasileira de Prostitutas,
cuja Carta de Princípios, produzida no IV Encontro Nacional da Rede
em 2008, entende que a prostituição é uma profissão para maiores de
18 anos, tendo como produto os serviços sexuais. Com isso, entende a
prostituição para meninas com menos de 18 anos como exploração
sexual, defendendo as punições previstas pela legislação brasileira.
Ademais, a rede repudia a vitimização das prostitutas, o controle
sanitário, o oferecimento de exames em locais em que exercem o
trabalho (a não ser que seja uma medida para a população em geral),
a associação das prostitutas com a criminalidade, entre outros pontos.
Defende, enfim, a regulamentação do trabalho da prostituta, a auto-
organização das prostitutas, o acesso aos serviços de saúde integral e
às políticas públicas cidadãs.

Políticas e ações para a população em situação de rua:

Frente à demanda de intervenção com as pessoas na rua não


há resposta pronta. Que poderia ser dito para a solicitante da cena
inicial? Que são pessoas com histórias de vida que se formam de mil

233
pedaços, dos quais conhecemos poucos, mormente os que refletem a
figura da norma? No caso dela, sua posição na comunidade; no caso
do profissional, sua função no estado! As conversas, assim, saem
tortas. Uma relação que pode variar de policialesca a sanitarista,
quase sempre com a clara ideia de que há uma hierarquia entre os
presentes.
Nesse evento, o sujeito da invisibilidade dá o recado que o
presente é engano e afirma que não vive ali faz tempo. De fato, o
passado é repassado no rosto: são rusgas que não se encerram, são
covas que não se descobrem, são remorsos, saudades e intensidades
de uma vida que segue. A rua contorna o desamparo e acolhe esses
sujeitos. De modo geral, possuem desencontros com instituições como
família ou trabalho, afastados no tempo e na geografia dos vínculos
passados. Todavia, lidam presentemente com a polícia, com as
comunidades higienizadas, negociando seu assentamento na cidade.
São populações ameaçadas por sua não representatividade
nos enquadres da vida social. Desse modo:

(...) Permanecem como ameaças ao sucesso da


ordem da família, do trabalho e da comunidade,
embora saibamos que, historicamente, receberam
diferentes classificações e imagens sociais, como,
por exemplo as de clhochard, homeless, sem
abrigo, sem teto, sem domicílio fixo, morador de
rua, pessoa em situação de rua, etc. (SHUCH et. al,
2008, p. 16).

Uma visibilidade pelo enquadre que, ao mesmo tempo em


que sustenta o estigma, garante uma estratégia de intervenção do
estado. No Brasil, a Política Nacional para a População em Situação de
Rua vige desde dezembro de 2009, com o Decreto 7.053 (BRASIL,
2009a). Ela considera esta população (Art. 1º): O grupo heterogêneo
que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares
interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia
convencional regular, e que utiliza logradouros públicos e as áreas

234
degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma
temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento
para pernoite temporário ou como moradia provisória.

Dentre os princípios norteadores da política (Art. 5º), está o


respeito à dignidade da pessoa humana, o direito à convivência
familiar e comunitária, atendimento humanizado e universalizado. A
execução fica a cabo de nove ministérios. No tangente à atuação do
Sistema Único de Assistência Social, prevê-se a atuação dos Centros de
Referência Especializados nos atendimentos à população em situação
de rua, bem como a gestão dos abrigos de permanência temporária.
Conforme previsto na Tipificação Nacional de Serviços
Socioassistenciais (BRASIL, 2009), o Serviço Especializado em
Abordagem Social, competência do CREAS, “deve buscar a resolução
de necessidades imediatas e promover a inserção na rede de serviços
socioassistenciais e das demais políticas públicas na perspectiva da
garantia dos direitos”, além de objetivar “construir o processo de saída
das ruas e possibilitar condições de acesso à rede de serviços e a
benefícios assistenciais”. Ao todo, a política para a População em
Situação de Rua norteia-se pela garantia dos direitos humanos
fundamentais para esta fatia populacional, mas vai além, prevê a
necessidade de “ações educativas destinadas à superação do
preconceito” (Art. 6º - Inciso IX), de modo a formar uma “cultura de
respeito, ética e solidariedade entre a população em situação de rua e
os demais grupos sociais” (Art7º - Inciso V).
Porto Alegre aderiu à Política Nacional de Inclusão da
População em Situação de Rua em julho de 2014, constituindo o
Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da
Política Municipal para a População em Situação de Rua – Comitê
POPRUA, formado por representantes do poder público e da
sociedade civil, com participação do Movimento Nacional da
População de Rua. Na prática, pouco se viu de intersetorialidade,
reduzindo ainda a atenção para esta população à Assistência Social e
ao assistencialismo. Por outro lado, vê-se o ativismo contínuo do

235
MNPR para a construção de uma política intersetorial na cidade, sendo
uma referência na luta pelos direitos do povo da rua.

A negociação:

A efetividade das políticas depende de uma negociação in


loco: uma tarefa cotidiana de diálogo com os velhos preconceitos e
para a garantia da dignidade prevista no papel. Nas intervenções
rueiras, cabe ao agente governamental ou não governamental um
deslocamento da lógica moralista: são cenas que se realizam no front
dos estigmas.

O carro chega luxuoso, marca dessas importadas. Alcança a


penumbra da praça com desejo e desconfiança, o desejo é suspirante.
A abordagem é direta, a profissional recebe com sorriso e perfume,
causa arrepio no cliente. O preço não é barato: nesta cena, diferente
do cotidiano da cidade, a valoração está do lado da prostituta. O
senhor executivo- juiz-gerente faz pechincha e exigências: não quer o
uso de preservativos. A profissional entra no jogo, não abrirá mão da
proteção, nem do cliente: é a hora da sedução. Em minutos a língua já
havia feito os argumentos no corpo do homem, a segurança já estava
garantida e o perfume aliviado os anseios do cliente.
Que merda é essa? Pergunta o dono de banco, o juiz da
avenida. O cheiro azedo de uma merda líquida toma a cena, escorrida
do canto onde dormira um punhado de papéis e dois dedos de
cachaça. Não há pessoa. O tom é de ressentimento do juiz frente aos
vadios, cachaceiros, dezoitos e trezes. Chega a fazer uma consideração
piedosa - “eu sei que eles estão fodidos" - mas deixa claro que merecia
mesmo era uma surra, pois melhor distante desse mundo de famílias,
casas e rendas. Do outro lado, explica-se o sentido do trabalho,
argumenta-se que é preciso conversar com a pessoa, que deve ter
uma história, que merece respeito. Mas a demanda pouco altera, pois
o que caberia a nós era deixa-lo limpo, no alinho. Entre tantos

236
desencontros, estando o autor da façanha invisível na cena, resta
apenas o cheiro da merda.

Álcool e outras drogas na rua:

Os odores oriundos do uso de álcool e outras drogas são


importantes marcas da rua e compõem o quadro dos estigmas. O bafo
da cachaça talvez seja o maior deles. A aguardente mais barata vem
barrigudinha13e se esparrama pelos botecos e armazéns mais
populares da cidade. Na rua ela é oferenda na encruzilhada, é o calor
no peito do cidadão, é a caipirinha dos travestis, o samba dos
estudantes. É bebida com as fumaças do palheiro ou do baseado, estes
queimados em papeis quaisquer, jornais, notas fiscais, livros.
A névoa composta de álcool e fumaça se adensa com o cheiro
químico do crack. A pedra que é fumada no pitíco, como recheio no
baseado, também atravessa latas e cachimbos num craquear
contínuo. O advento dessa droga produziu nas últimas décadas muitos
viciados e, junto com eles, um fenômeno de internação em massa,
sustentado por um discurso midiático que associou o uso de crack às
desordens sociais, sendo a rua seu palco principal.
Esses cheiros também viram números: em Porto Alegre,
segundo o Cadastro da população adulta em situação de rua (PORTO
ALEGRE, 2012), 49,6% dos moradores de rua manifesta que possuem
dependência química/alcoolismo. Na pesquisa, o cigarro é fumado, ao
menos de vez em quando, por 67,6% dos entrevistados; a maconha
queima-se para 33,8%, entre usuários diários e esporádicos; o mesmo
dado chega a 27,8% para usuários de crack; já a cocaína, que perdeu
espaço nas ruas com a chegada da pedra, cheira-se para 9,2%.
Nos anos de trabalho do NEP, pode-se constatar que a maior
vulnerabilidade das prostitutas, assim como de outras mulheres, está
relacionada à ameaça constante de variadas violências, associada ao
consumo e abuso de drogas lícitas e ilícitas, que pode facilitar a não
13
Garrafa de cachaça de meio litro bastante popular cujo formato que se assemelha
ao da barriga.

237
adoção de práticas sexuais mais seguras como o uso de preservativos.
No caso das profissionais do sexo, se acrescenta ainda, a
discriminação, o estigma, o preconceito, etc., vividos na família e nas
comunidades que muitas vezes afastam as mulheres dos serviços de
saúde e de ações sociais de defesa dos direitos humanos.
Mesmo com os esforços, estratégias e projetos desenvolvidos
em parceria com os Programas Federal, Estadual e Municipal para
prevenção das DST/HIV/AIDS, há, muitos desafios se apresentam no
cotidiano da prostituição como também nas comunidades,
principalmente entre as populações mais vulneráveis. Entre os
aprendizados do NEP, descobriu-se que o uso do crack e outras
drogas, também é uma realidade entre as prostitutas, assim como
ocorre entre outras categorias profissionais.
Observam-se relatos do aumento de problemas de saúde, do
estigma, da discriminação e preconceitos, reduzindo a autoestima e a
qualidade de vida. Em geral, tendem a se isolar da família, de amigos e
da convivência social, em alguns casos, passam a viver em situação de
rua e em constante efeito drogas, participando de guetos de usuário.
O preconceito com a prostituta usuária de crack é dobrado, se
multiplica.
Desde 2007, passou-se a organizar grupos de mulheres para
discussão dos danos causados à saúde no uso e abuso de álcool e
outras drogas, entre os temas: prevenção com o uso de preservativos,
hepatites, etc.; o uso de cachimbos individuais para evitar herpes,
tuberculose, leptospirose, em geral, a droga é fumada em latinhas
encontradas na rua e em lixeiras, e evitar os danos das substâncias
químicas liberadas pela lata.
E sempre surge algo novo, como uma droga chamada
“sucesso”, um inalante composto de materiais duvidosos, que
proporciona um barato não caro, a custos de substâncias bastante
impuras. Nessas metamorfoses da rua, como lidar com o sucesso? A
pergunta que se refaz.
Na outra avenida, e eis que com pouca dignidade a Kombi da
Assistência Social chega cotidianamente aos leitos psiquiátricos da

238
cidade. É uma das articulações de rede que se faz: acompanhamento
dos sujeitos que demandaram a seu critério a internação, na maioria
das vezes, ansiosos por conseguir a vaga. No meio do caminho,
enquanto o carro cumpre o fluxo, busca-se informar os usuários sobre
outras possibilidades, construir uma demanda diferente da que estava
estampada na manchete do jornal: caminhos intermediários entre a
abstinência e a dependência total da substância. Mesmo com a
proposta, a internação psiquiátrica segue sendo uma das ações
recorrentes no cuidado de saúde da população de rua.
Esse encaminhamento faz permanecer o estigma histórico
entre a vida rueira e as estratégias de controle manicomiais, a
associação da rua com a loucura. É nessa hora que o cheiro da rua é
coberto de creolina, a pele lavada em sabão, o corpo pleno de
remédios, as costas estendidas ao longo de uma cama, a comida
servida na hora.
A intervenção nesses locais orienta-se, por vezes, pelas
estratégias integrais preconizadas pela Reforma Psiquiátrica, mas
substancia-se mais fortemente pela contenção química e física,
desintoxicando com outras toxicidades. Cumpre, ao fim, uma função
asilar, com pouca eficácia no âmbito terapêutico.
Um pilar fundamental para a nova enxurrada de internações
decorre do fenômeno social do crack: a pedra infiltrou sua resina no
aparato manicomial e reabriu leitos psiquiátricos que haviam perdido
espaço com o movimento de Reforma Psiquiátrica. O diagnóstico
predominante nos prontuários, então, mudou: em vez de alienação
mental, dependência química; em vez do trabalho de desalienação,
desintoxicação (CUNDA, 2011). O crack abriu portas entre a rua e os
hospitais, sendo usado como estratégia de controle dos excessos da
rua.
A internação se torna linha de cuidado quando a toxicidade
na rua parece maior: além de abster-se da droga, o sujeito que deseja
a internação quer afastar-se também do frio, do barulho, do medo, do
excesso. O crack, nesse contexto, muitas vezes é uma chave para
acessar o leito. As tristes e surpreendentes histórias do usuário da

239
pedra são apropriadas para o dia do ingresso: situação de rua,
prostituição, furtos, afastamento da família e do trabalho por uso da
droga são argumentos presentes no roteiro midiático e que
geralmente asseguram um leito psiquiátrico. Assim, a rua se
desencontra com o hospital por longos 21 dias, quando nenhum dos
lados se entende sobre demanda e oferta de serviços, restando a
convivência com os demais, o descanso.
Numa estratégia de extensão do afastamento das toxicidades
da cidade, o plano pós-alta muitas vezes recai nas fazendas ditas
terapêuticas. Esses espaços muitas vezes se formam em casas, sítios,
terrenos, organizam-se em mutualismo, construindo novos leitos na
medida em que a demanda bate na porta; não estão na rede da
assistência social nem da saúde, mas se propõem a curar o mal da
droga. Em toda parte nascem novos trabalhos nesse modelo e, frente
à burocratização do acesso ao cuidado financiado pelo estado, fazem a
oferta de um tratamento revolucionário, onde a lei é divina, o trabalho
regimenta o corpo, a oração alimenta a alma. Acolhem, afinal, pessoas
que em geral não teriam lugar nos fluxos da política pública e seus
papéis de encaminhamento ou diagnóstico. Com tudo, assim como os
hospitais, prisões e conventos têm dificuldades de aceitar o modo de
vida rueiro.
Neste contexto, temos a lamentar que a rede substitutiva ao
manicômio seja escassa – o que fortalece um movimento
antirreforma. Além disso, o modelo de atendimento ofertado em
alguns CAPS AD – Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas – da
cidade, predominantemente na defesa da abstinência, resulta numa
baixa adesão ao trabalho terapêutico. A prevalência das internações
em hospitais ou fazendas é uma verdade cotidiana nos serviços.
A volta à rua é natural e parece ser de fácil explicação: afora
as contenções químicas e afastamentos geográficos, a pessoa
permanece ligada aos seus vínculos e a rede ativa que eles exercem –
como para qualquer pessoa. Ao serviço, cabe o desafio de construir
um plano na efervescência no território, no encontro com o campo,
haja vista o franco desencontro entre demanda e oferta do modelo

240
vigente. As articulações junto à rede de apoio comunitária da pessoa
em situação de rua se revelam como medida simples e respeitadora
dos movimentos da rua, entranhando a cidade e, ao mesmo tempo,
sendo capturada por ela.
Em campo, in loco, buscam-se alternativas, artimanhas de
rede. O NEP busca apoio junto a outras Organizações da Sociedade
Civil – em especial, o Grupo Vhiva Mais, a ARD Poa, a Aborda e o Aspa
–, Redes e programas governamentais de redução de danos, qualificar
a equipe do NEP para desenvolver ações rueiras nas cenas de uso de
drogas. E durante meses a equipe foi até os locais de prostituição e de
consumo de drogas, promovendo o cuidado e a prevenção,
contatando e vinculando usuárias à instituição, encaminhando aos
serviços de saúde disponíveis. No entanto, essa e toda a população
esbarram na burocracia dos fluxos e na falta de serviços de qualidade
que acolham usuários com dignidade.

Função disciplinar e estigmas:

Cheirar e punir, vigiar e sumir. Alinhados no odor, o trabalho


na rua, seja da Assistência Social ou da associação de profissionais do
sexo, procura ser o menos vertical possível, uma abordagem que leve
em conta os movimentos da cidade e suas fugas, as quais todos
estamos submetidos.
Entretanto, no caso dos habitantes da rua, apesar de
estarmos na mesma merda, a igualdade de condição humana não se
transparece no ato: muitas vezes a ação de controle do estado se faz
maior e a tarefa fica resumida a encontrar um meio de disciplinar o
desviante. O método para a docilização, todavia, não é claro, requer
singularizações. O respeito ao atendido previsto na lei nem sempre é
possível. Quando a merda vai para o ventilador o Estado dá as caras
com suas algemas, seus remédios e técnicos sociais. Aí são cassetetes
e palavras que se atravessam numa mensagem esquizofrênica, porém
precisa: “aqui tu não mija mais, aqui tu não chupa nem goza; melhor
curar o porre em outro bairro, fazer ponto em outro lugar”.

241
Infelizmente, como se diz, nem sempre dá tempo de tirar o rabo da
reta.
Este jogo de pega e aquieta não é novo. Está aprimorado, mas
não escapa de comparar-se com as estratégias da sociedade disciplinar
em grandes cidades capitalistas dos séculos XVIII e XIX, estudadas por
Michael Foucault. Na cidade moderna a vida está geometrizada, os
caminhos esquadrinhados e, naturalmente, as pessoas são observadas
e enquadradas conforme a conveniência da norma vigente.

(...) O indivíduo moderno é, assim, o resultado das


estratégias disciplinares que estão colocadas em
jogo na atualidade. Em relação a tais estratégias, a
sua individualidade, objeto dócil-e-útil, adquire
significação (FONSECA, 2003, p.142).

Esse poder disciplinar, todavia, encontrará os que não se


docilizam. Foucault diz:

(...) O ponto em que os sistemas disciplinares que


classificam, hierarquizam, vigiam, etc., vão
esbarrar, consistirá naqueles que não podem ser
classificados, naqueles que escapam da vigilância,
os que não podem entrar no sistema de
distribuição; em suma, vai ser o resíduo, o
irredutível, o inclassificável, o inassimilável. Eis o
que vai ser, nessa física do poder disciplinar, o
ponto-limite. Ou seja, todo poder disciplinar terá
suas margens (2006, p.66).

É quando o perfume fica inassimilável; é quando o corpo fica


enquadrado num preconceito que não pertence mais aos muros das
instituições, mas erige-se na cultura. No caso da prostituição, sendo
avessa às instituições da monogamia, do casamento, da família, sua
representação se dá de forma totalizada, divergente da “boa
sociedade”, atrelada a uma imagem de marginalidade que favorece
toda a ordem de repressão e violação de direitos.

242
Vige ainda, para o profissional do sexo, o estigma de ser uma
“comunidade de risco”, tendo em vista que as prostitutas e os
homossexuais foram aclamados como grandes disseminadores do
vírus HIV no início do contágio nos anos 1980. Para Aquino et. al
(2010), tal endereçamento teve a ver com uma sociedade machista e
moralista, fomentando a ideia de que o mal provém das margens e
não do centro da sociedade. Para Priscila Gershon (2006), esse lugar
de desvio da prostituta é um fenômeno essencialmente urbano, sendo
que em comunidades ditas primitivas a prostituição pode assumir um
valor cultural importante. A autora remonta a ideia de que o conceito
de prostituição no ocidente foi cunhado no século XIX por uma
referência médico-policial, em contraposição às codificações morais
da “união sexual monogâmica, a família nuclear, a virgindade e
fidelidade femininas e o papel reprodutivo da mulher” (GERSHON,
2006, p. 3).
Essa marca está presente mesmo entre as profissionais.
Algumas entendem a profissão como um fardo provisório, período
para comprar o que precisa. Mas a prostituta não percebe que ela
seguirá na profissão se realmente for uma boa profissional. Só é
prostituta quem gosta de ser, quem assume. Assim, pode-se driblar o
estigma, como os olhares de controle, as violências rueiras.
Enfim, tanto a população em situação de rua, quanto as
profissionais do sexo surgem enquanto categoria de acordo com seus
riscos, marcando um lugar nas políticas justamente por serem
insubmissos. São imagens que se estabelecem por contra-imagens,
ocupam posições avessas às instituições vigentes, sendo visíveis
apenas pela sua condição de incômodo.

Posicionamentos:

Qual a posição preferida? Qual a dose certa para o momento?


Por frente ou por trás? Estimulante ou depressor? Com camisinha ou
sem? Ações sádicas ou silêncios masoquistas? O cheiro da merda ou

243
da creolina hospitalar? Os dilemas éticos na intervenção com os
sujeitos da rua surgem de questões simples como essas.
Para respondê-las é necessário ter narinas desobstruídas,
ouvidos atentos, sentidos à flor da pele. Frente aos estigmas sobre as
populações que ocupam a rua para moradia ou sobrevivência, receita-
se uma saída inevitável: uma mudança cultural. De outro modo não há
como evitar as representações médico-policialescas sobre a vida
rueira, os preconceitos que se estendem da mulher zelosa do lar ao
gerente do banco - presentificados a cada cena em que o incomodo
perfumado ou fedorento chega aos sentidos higienizados.
A existência de políticas, portanto, não garante sua execução.
Cabe ao agente que está na rua realizar a negociação entre as
diretrizes de um governo e as marcas de uma cultura preconceituosa.
A luta contra tais representações cria um dilema para o trabalhador:
se de um lado compreende que há uma classificação social “construída
pelos códigos impuros que definem uma identidade merecedora de
repressão” (Gershon, 2006, p. 14), luta por sua integração social,
colocando-se entre a lei e a cidade. Nesse trabalho, a ação é dupla:
garantir que o sujeito possa permanecer em sua condição de
invisibilidade – de modo a evitar o olhar de controle sobre ele – para,
em paralelo, garantir o acesso aos direitos constitucionais previsto a
cada cidadão, direcionando um olhar de cuidado e proteção.
Fica-se desse modo numa linha tênue entre estratégias de
cuidado e controle, entre visibilidade e invisibilidade, entre o tempo
da lei e a pressa da cidade. Em tal corda bamba, para além das
categorias das Pessoas em Situação de Rua e Profissionais do Sexo, a
estratégia deve acompanhar o cambalear do equilibrista, entender a
função dos sumidouros e esconderijos da cidade.
Enfim, acreditamos na cidadania, esperamos que os
profissionais da Saúde, da Assistência Social e de todas as políticas
trabalhem de forma a fortalecer o vinculo humano junto a toda a
população contribuindo para a redução da discriminação, do estigma,
incentivando a prevenção à saúde integral, garantindo o direito das

244
pessoas que acessam os serviços, independente da categoria social em
que esteja enquadrada.

Referências:

AQUINO, Priscila de S.; XIMENES Lorena B.; PINHEIRO, Ana Karina B.


Políticas públicas de saúde voltadas à atenção à prostituta: breve
resgate histórico. In: Revista Enfermagem em Foco. ISSN: 2177-4285;
2010; 1(1): 18-22.

BRASIL. Ministério da Saúde. Plano integrado de enfrentamento da


feminização da epidemia de AIDS e outras DST. Brasília, março de
2007.

_______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.


Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. CNAS/MDS.
Publicado no Diário Oficial da União em 25 de novembro de 2009.

_______. Casa Civil. Decreto Nº 7053 de 23 de dezembro de 2009.


Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu
Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento e dá
outras providências. Diário Oficial da União de 24 de dezembro de
2009 (2009a).

_______. Ministério da Saúde. Plano integrado de enfrentamento da


feminização da epidemia de AIDS e outras DST – Versão revisada.
Brasília, setembro de 2011.

CUNDA, Mateus. Tramas empedradas de uma psicopatologia juvenil.


Dissertação apresentada como requisito para obtenção de Mestre em
Psicologia Social e Institucional. Porto Alegre: UFRGS, 2011.

245
FONSECA, Márcio A. Michel Foucault e a constituição do sujeito. São
Paulo: EDUC, 2003.

FOUCAULT, Michel. [1973-1974] O Poder Psiquiátrico. São Paulo:


Martins Fontes, 2006.

GERSHON, Priscila. Profissionais do sexo: da invisibilidade ao


reconhecimento. In: Revista Sociologia Jurídica. ISSN: 1809-2721;
2006; Número 2 – Janeiro-Junho.

PORTO ALEGRE. Fundação de Assistência Social e Cidadania. Cadastro


da População Adulta em Situação de Rua na cidade de Porto Alegre.
Porto Alegre, março de 2012.

SHUCH, Patrice; MAGNI, Cláudia T.; GEHLEN, Ivaldo; DICKEL, Iara K.


População em situação de rua: conceitos e perspectivas fundamentais.
In: Diversidade e proteção social: estudos quanti-qualitativos das
Populações de Porto Alegre. Porto Alegre: Century, 2008.

246
Capitulo XII

HIV/Aids e Drogas: diálogos a partir de uma


passagem pela Rede Multicêntrica14
Daniel Boianovsky Kveller

Introdução

Tratarei, no presente texto, sobre a minha inserção junto à


Rede Multicêntrica oportunizada pelo Programa de Residência
Integrada em Saúde (RIS) da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do
Sul (ESP-RS), que propõe em sua matriz curricular a circulação de seus
residentes por diversos serviços da cidade além do seu campo de
referência. Esse foi o primeiro local que escolhi para conhecer e,
apesar do período restrito, foi-me possibilitado acompanhar diversas
atividades. Destaco aqui, dentre elas, a coordenação de uma das
turmas do Curso de Atualização em Atenção Integral ao Usuário de
Crack e Outras Drogas e a organização do I Seminário Internacional da
Rede Multicêntrica – Políticas Públicas sobre drogas e
Descriminalização do Cuidado.
A Rede Multicêntrica propiciou um importante contato com os
avanços e desafios da Redução de Danos, da garantia de cuidado
humanizado para usuários de álcool e outras drogas e da educação
permanente como estratégia ética e política para a consolidação de
um paradigma ampliado de saúde e clínica. Habituado à rotina do

14
Este capítulo é baseado no Trabalho de Conclusão de Residência do autor
(KVELLER, 2015), bem como em um ensaio posterior escrito em conjunto com o
Professor Dr. Luiz Felipe Zago (KVELLER; ZAGO, 2015).

247
Ambulatório de Dermatologia Sanitária (ADS), serviço historicamente
reconhecido dentro do campo do HIV/Aids e também meu campo de
referência na Residência, não pude deixar de me inquietar com
algumas questões: passados 30 anos do início da epidemia do
HIV/Aids e quase o mesmo período da implementação da política de
Redução de Danos no Brasil, que semelhanças ainda guardam entre si
o Cuidado nesses dois campos? Que aproximações permanecem não
só possíveis, mas pertinentes e complementares? Com base na
experiência que a RIS me proporcionou entre os anos de 2013 e 2015,
tentarei levantar algumas hipóteses para respondê-las nas próximas
páginas.
Meu ponto de partida é o próprio ADS, órgão da Secretaria
Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul, fundado em 1920, que
atende ambulatorialmente em quatro eixos de atenção: Dermatologia,
Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), HIV/Aids e Hanseníase. O
ADS está vinculado, quanto à assistência, ao Departamento de
Coordenação dos Hospitais; e, quanto ao ensino, à Escola de Saúde
Pública. Em relação ao tratamento do HIV/Aids, meu foco nestas
reflexões, é conhecido por ter abrigado o primeiro COAS (Centro de
Orientação e Apoio Sorológico) do Brasil, hoje renomeado como CTA
(Centro de Testagem e Aconselhamento), que há mais de 25 anos vem
prestando serviços de testagem para HIV e outras IST. Além dos testes,
o ADS oferece também atendimento multiprofissional a pessoas
soropositivas, incluindo a clínica médica, atendimentos psicológicos,
acompanhamento nutricional e assistência social.

O cenário atual: espaços e tempos para o cuidado

A proposta de análise sincrônica entre o campo da Aids e da


Redução de Danos não é meramente casual, uma vez que ambos
compartilham boa parte de suas histórias. Não seria equivocado
afirmar, inclusive, que a estratégia de Redução de Danos no Brasil teve
sua própria origem nas práticas de prevenção ao HIV, nos anos 1980,
com as trocas de seringas junto aos usuários de drogas injetáveis

248
(MARLATT, 1999). Desde então, a Redução de Danos deixou de ser
apenas um conjunto de práticas para se tornar um referencial ético
(MACHADO; BOARINI, 2013) e se consolidou como diretriz
fundamental da Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e
Outras Drogas (2003). Como princípio, norteia as ações em saúde para
um cuidado sustentado na garantia da autonomia do sujeito frente a
sua saúde, na construção de vínculos sólidos de corresponsabilidade
entre serviços e usuário e na busca de estratégias singulares que
possam extrapolar as normativas da abstinência.
A resposta à epidemia da Aids também passou por diversas
transformações durante esse período (GALVÃO, 2000; PAIVA, 2002):
houve, por exemplo, um considerável aprimoramento do tratamento
medicamentoso, que permitiu controlar o avanço da doença com cada
vez menos prejuízos em consequência de efeitos colaterais. Do ponto
de vista sociológico, a atenção voltada à epidemia foi fundamental
para a consolidação do Movimento LGBT e a asseguração de inúmeros
direitos dessa população. Durante os anos 1990 e 2000, superaram-se
as ideias de “grupo de risco” e “comportamento de risco” enquanto a
epidemia se direcionava rumo a movimentos epidemiológicos de
heterossexualização e feminização.
Na medida em que se materializavam as políticas públicas
nestas duas áreas, pode-se dizer que elas foram se distanciando
gradualmente e ganhando independência. Atualmente, em termos de
gestão e assistência, os pontos de convergência são relativamente
escassos e na maioria das vezes aparentemente “sobras” de um
passado comum, mas já não muito operativas.
Seria correto afirmar que o tema “Álcool e Outras Drogas” está
presente na rotina de atenção ao HIV/Aids, surgindo em alguns
espaços até mesmo como um tensionamento da rotina de
atendimentos. Nesses casos e na maioria dos outros, no entanto,
pode-se dizer que as drogas estão relegadas a um plano se não
secundário, restrito a uma necessidade técnica decorrente do
tratamento ou da prevenção ao HIV/Aids. O que é muito diferente,
claro, dos princípios da Política de Redução de Danos, que privilegia

249
um cuidado integral, amplo e que abarca a complexidade dos diversos
usos que se pode fazer de uma droga ou mais drogas em primeiro
plano. No ADS, quando tratamos da adesão ao tratamento, por
exemplo, a droga visibiliza-se como uma potencial dificuldade aos
usuários que por alguma razão não conseguem conjugar seu uso com
a rotina de medicamentos prescritos. É uma situação realmente
bastante delicada, visto que a interrupção inadequada do tratamento
pode “queimar” um medicamento, ou seja, torná-lo ineficaz dali em
diante para aquela pessoa. Em alguns casos, várias combinações do
“coquetel” acabam sendo desperdiçadas, deixando o indivíduo
imunologicamente mais vulnerável a doenças oportunistas (BRASIL,
2008).
Outra situação em que é comum o uso de drogas surgir
enquanto problemática é a sessão de aconselhamento pré e pós-
testagem. Nesses momentos, além de serem prestadas orientações
sobre o uso do preservativo, informações sobre IST e apoio emocional,
também é realizada uma espécie de gerenciamento de riscos, quando
o aconselhador avalia junto ao usuário os momentos em que está mais
exposto e as relações que o deixam mais vulnerável a contrair alguma
infecção sexualmente transmissível (BRASIL, 1998). Até algum tempo
atrás, as drogas injetáveis eram as principais preocupações nesse
sentido, mas, com a progressiva “substituição social” dessas por
outras como o crack, que oferece um risco inferior de transmissão
direta do HIV, elas deixaram de ser protagonistas tanto nas sessões de
aconselhamento quanto do ponto de vista epidemiológico (BRASIL,
2013a). Comparado ao compartilhamento de seringas, o
compartilhamento de cachimbos oferece risco inferior de transmissão
de HIV, apesar de ser bastante perigoso para outras doenças
infecciosas como a Hepatite B. O maior risco associado ao crack e ao
HIV atualmente, como mostra a pesquisa realizada pela Fiocruz
(BRASIL, 2013b), é bastante similar ao que acontece com outras
drogas: quando, em função do uso, um indivíduo acaba tendo relações
sexuais desprotegidas ou se colocando em situações de maior
vulnerabilidade (OLIVEIRA; PAIVA, 2007; SANTOS; PAIVA, 2007).

250
Nessas duas situações, a adesão ao tratamento e o
gerenciamento de riscos, o uso “problemático” de drogas parece
demandar uma intervenção técnica, um manejo das situações a fim de
possibilitar o bom uso dos medicamentos e a prevenção adequada
durante a relação sexual. Na prática, a urgência de seguir o
tratamento e o receio de que o indivíduo possa vir a fazer parte da
cadeia de transmissão do vírus dão a sensação de haver pouco tempo
para a discussão ética proposta dentro do paradigma da Redução de
Danos. Mesmo quando existe espaço, parecem faltar as ferramentas
teórico-operacionais para esse diálogo acontecer de maneira integral
e produtiva do ponto de vista da autonomia do sujeito.
Talvez o fato de ter trabalhado em um ambulatório de
especialidades, bastante centrado em um modelo biomédico, tenha
me tornado um pouco mais pessimista em relação a essas questões.
Provavelmente, com a progressiva descentralização dos atendimentos
em direção à atenção básica e a constituição de uma linha de cuidado,
essa distância entre os dois campos seja atenuada de alguma forma.
Ainda assim, o modelo ambulatorial deve continuar sendo levado em
conta nesta discussão, visto que provavelmente continuará a atender
a parcela da população impossibilitada de acessar as Unidades Básicas
de Saúde devido ao estigma da doença e que permanecerá servindo
de referência para casos de maior complexidade, em geral (RIO
GRANDE DO SUL, 2014).
Para além dos níveis de assistência e dos equipamentos de
cuidado, o distanciamento entre os campos em questão também pode
ser entendido do ponto de vista das estratégias de gestão e da
construção de políticas públicas. Nos últimos anos, é notório que os
investimentos públicos na área do HIV/Aids vêm sendo canalizados
para o método testar-e-tratar: isto é, ampliar a oferta de testagem,
seja em direção à atenção básica ou associada a grandes eventos,
oferecer a profilaxia pré-exposição (PReP) e pós-exposição (PEP) e
encaminhar todos os indivíduos com resultado positivo para HIV ao
tratamento medicamentoso independentemente dos exames de CD4

251
e Carga Viral15. Em termos de prevenção e promoção de saúde ligadas
à garantia de direitos e à visibilização política de minorias, estratégias
essas que marcaram o início da resposta brasileira à epidemia, pouco
ou quase nada de magnitude comparável foi feito. Os grupos em
situação de maior vulnerabilidade como homens gays, travestis,
transexuais e profissionais do sexo, por exemplo, vêm sendo
constantemente ignorados, quando não têm suas pautas
simplesmente barganhadas em prol de uma controversa
“governabilidade”. São casos recentes como o embargo do Kit Anti-
homofobia em 201116, sob a desculpa de que a então presidenta não
faria propaganda de “opção sexual”; a campanha de prevenção ao
HIV/Aids para profissionais do sexo, de 2013, vetada na última hora
pelo Ministério da Saúde17; o lento processo de criminalização da
homofobia, que perdeu visibilidade e agilidade ao ser apensado à
proposta de reforma do código penal, em 201318; e o Plano Nacional
de Educação, sancionado em 2014 sem as cláusulas de incentivo à
promoção da igualdade de gênero e orientação sexual nas escolas19. Já
está descrita ampla e fartamente na literatura a necessidade
intransferível de debatermos esses temas para o avanço e o sucesso
das políticas de prevenção em grupos de maior vulnerabilidade
(PAIVA; AYRES; BUCHALLA, 2012). Furtar-se a esse enfrentamento não
é só um atentado aos direitos básicos dessas populações, como
também uma grave omissão do ponto de vista da saúde pública.

15
Os exames de CD4 e de Carga Viral são pedidos regularmente a todos os usuários
em tratamento para HIV/Aids e têm como objetivo monitorar a atuação do vírus e
a resposta do sistema imunológico.
16
Mais informações em http://g1.globo.com/educacao/noticia/2011/05/dilma-
rousseff-manda-suspender-kit-anti-homofobia-diz-ministro.html
17
Mais informações em
http://agenciaaids.com.br/home/noticias/noticia_detalhe/20864#.V1Wn7fkrK70
18
Mais informações em http://g1.globo.com/educacao/noticia/2011/05/dilma-
rousseff-manda-suspender-kit-anti-homofobia-diz-ministro.html
19
Mais informações em http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2015-12-
26/exclusao-de-genero-do-plano-nacional-de-educacao-e-retrocesso-diz-
educador.html

252
Se parece ser sempre melhor driblar os enfrentamentos morais
e os tensionamentos políticos nessa temática, não é difícil
imaginarmos porque as discussões sobre o uso de drogas, pelo viés da
autonomia do usuário e da Redução de Danos, tampouco têm
recebido o devido valor. Não parece haver investimento suficiente em
uma perspectiva ética do cuidado, digamos assim, ou uma aposta na
capacidade de cada sujeito de medir por si danos e riscos para poder
melhor optar. Tomemos as campanhas publicitárias como exemplo: no
ADS, há diversos cartazes espalhados pelos corredores com
afirmações, orientações e sugestões aos usuários. Há alguns novos,
mais abertos, tratando da não discriminação por raça, identidade de
gênero ou orientação sexual; mas predominam ainda aqueles mais
ameaçadores (“Hepatite B: sem saber, você pode ter”) ou
catastróficos (“Ter aids não é bom. Ter e não saber é pior”). Estão
expostas também peças que explicam como se pega e como não se
pega, que são indubitavelmente necessárias, mas que raramente usam
algum tipo de escala de risco, ou sugerem alternativas em uma
perspectiva de Redução de Danos. Na esteira dessa lógica, não
poderíamos supor que para o uso de drogas haveria um espaço
especial e ético além do manejo técnico rotineiro.

Convergências biopolíticas

A intensificação da estratégia testar-e-tratar após a divulgação


dos últimos boletins epidemiológicos (BRASIL, 2013a, 2014, 2015), que
conferem tons de epidemia concentrada e generalizada ao cenário do
Rio Grande do Sul, pode ser entendida e discutida a partir da ideia de
biopolítica. Com este conceito, Foucault (2012) visava explicitar um
novo conjunto de estratégias políticas e relações de poder surgido na
passagem para a modernidade e que tem como seu objeto principal
de intervenção a própria vida. Em suas análises, a transição das
sociedades de disciplina, nas quais o poder disciplinar organizava
temporal, espacial e politicamente a individualização e a
produtividade dos corpos (nas escolas, nas fábricas, no exército etc.)

253
se deu em direção às sociedades de segurança, nas quais o biopoder
atua no controle-estimulação da população por meio de um conjunto
heterogêneo de práticas biopolíticas.
Fundamental para se entender a emergência do campo da
saúde pública e sua lógica de governamentalidade, o biopoder age
através de dois polos de exercício simultaneamente: de um lado
centra-se na anátomo-política do corpo humano, “no seu
adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas
forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua
integração em sistemas de controle eficazes e econômicos”
(FOUCAULT, 2012, p.151). De outro lado, desenvolve-se como um
controle regulatório da população, levando em conta “nascimento e a
mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com
todas as condições que podem fazê-los variar” (p.151). Corpo-máquina
e corpo-espécie: dois elementos de uma tecnologia que, como nos
mostra Foucault (2012), “caracteriza um poder cuja função mais
elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a
baixo” (p. 152).
É importante sublinhar que o conceito de biopolítica emerge
nos estudos de Foucault a partir de análises voltadas para pensar as
mutações históricas das racionalidades do campo da saúde. O autor
(1984) propõe que o capitalismo primeiramente investiu no controle
da realidade somática (o corpo), enquanto veículo e instrumento de
produção de riquezas por meio do trabalho. Esse controle aconteceu
sobretudo através da incipiente medicina social do Século XIX, isto é,
tomando o conjunto de corpos que constituem a população como alvo
de um conjunto de estratégias de regulação. Daí a já célebre
proposição: “O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma
estratégia bio-política” (p. 80).
A biopolítica pode também ser entendida como um conjunto
heterogêneo de “tecnologias políticas que (...) vão investir sobre o
corpo, sobre a saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as
condições de vida, todo o espaço da existência” (FOUCAULT, 2012, p.
152). Na “gestão calculista da vida”, o corpo surge como a carne

254
regulada, uma realidade a ser administrada; e quando falamos do
corpo, falamos tanto do corpo individual – esse que é meu corpo,
diferente do seu corpo – como também falamos do corpo da
população, ou do corpo social, do corpo coletivo. Corpo individual e
social são, pois, produzidos e administrados pela biopolítica, que se
utiliza de técnicas disciplinares, por um lado, que visam docilizar os
corpos individuais, e técnicas de regulação populacional, por outro,
que focam na gestão da vida das massas, da vida da espécie humana.
A apropriação e normalização da vida, dos corpos e das
subjetividades pelo biopoder se dão exatamente numa tentativa de
penetrar, sujeitar e controlar desde o global à capilaridade da vida
humana. Para isso, o biopoder atua cada vez ampliando mais seus
territórios de intervenção: geográficos, sociais, culturais, simbólicos,
existenciais, planetário. Estamos falando de “um controle que se
estende pelas profundezas da consciência e dos corpos da população –
e ao mesmo tempo através da totalidade das relações sociais” (HARDT
& NEGRI, 2006, p. 43-44). De um governo da “mobilização total”
(PELBART, 2011), em que se dá a passagem da ênfase na fabricação de
corpos dóceis para o foco na fabricação de cérebros flexíveis e
articulados, os quais, por sua vez, comandam corpos também
maleáveis. De uma tecnologia de poder que em vez de muros, forja-se
num campo não territorial atravessado por práticas de sujeição.
O conceito de biopolítica nos ajuda a entender como as
concepções de “população” e “indivíduo” caminham juntas,
interdependentemente, enquanto tecnologia política de regulação
demográfica e disciplina dos corpos. E, se o campo da saúde pública é
exemplo categórico dessa estratégia de governamento20 (GADELHA,
2009), as novas estratégias de prevenção ao HIV explicitam
precisamente, a partir do seu interior, os tensionamentos que lhe são
próprios. Quando se define que os medicamentos antirretrovirais
serão indicados a qualquer pessoa diagnosticada como soropositiva,

20
A distinção entre os termos “governamento” e “governo” não é apenas um
preciosismo semântico, mas uma tentativa de seguir com rigor a lógica conceitual
da crítica foucaultiana (VEIGA-NETO, 2005).

255
independentemente da sua situação imunológica, por exemplo, há,
acima de tudo, uma tentativa de diminuir a transmissão do vírus.
Como a medicação restaura o sistema de defesa do indivíduo e tende
a minimizar a carga viral, a possibilidade de essa pessoa transmitir o
vírus é reduzida exponencialmente. É o chamado “tratamento como
prevenção”, que funciona ao reduzir a carga viral total em circulação.
Sobrepõem-se, claramente, as duas camadas, população e indivíduo,
enquanto estratégia de governamento e controle.
Se essa estratégia é eficaz, se ela diminuirá a taxa de incidência
de transmissão do HIV, isso não é possível se apontar precisamente de
antemão. Ademais, não se trata de julgar se ela deve ou não ser posta
em prática, mas pensar porque a via biopolítica, o controle que incide
diretamente sobre os corpos, acaba sendo a estratégia que
“aparentemente” resta, a estratégia que surge como uma solução
mágica em um clima de urgência. Depois de anos de negligência em
relação à garantia de direitos das populações vulneráveis – que
certamente poderiam ter nos levado a um cenário mais otimista do
que o atual, cabe reiterar – são propostas ações desse tipo; as quais
além de serem passíveis de problematizações históricas, acarretam
perigos diretos à saúde física, como o decorrente da própria
toxicidade dos medicamentos, elevada com o tempo de uso.
Precisamos pensar se frente a essa política, a esse novo protocolo, o
usuário conseguirá manter sua opção de iniciar o tratamento quando
quiser, se ele terá informações e liberdade para tanto e que ações são
necessárias para garantir esses direitos.
Foucault (2012) define a diferença do biopoder para o poder
soberano mediante o cruzamento de duas fórmulas: Fazer morrer e
deixar viver compõem o emblema do velho poder soberano, que
representa basicamente o direito de matar; enquanto fazer viver e
deixar morrer, o inverso simétrico, seria a marca do biopoder
moderno, da estatização da vida e do investimento sobre o seu caráter
primariamente “biológico”. Agamben (2008) destaca ainda uma
terceira proposição que seria mais específica da biopolítica no Século
XX: já não fazer morrer, tampouco fazer viver, mas fazer sobreviver. De

256
acordo com este autor, haveria na matriz das relações de poder
próprias à modernidade uma estratégia de cisão sobre seu objeto. O
objetivo seria fazer sobreviver, atuar no sentido de distender e
modular a “vida” por meio de um movimento de ruptura: de um lado
a vida como fato, o simples ato de existir, denominado pelos gregos
como zoé; e de outro lado as formas de vida, sua singularidade
peculiar derivada de cada sujeito, bíos.

Nem a vida nem a morte, mas a produção de uma


sobrevivência modulável e virtualmente infinita
constitui a tarefa decisiva do biopoder em nosso
tempo. Trata-se no homem, de separar cada vez a
vida orgânica da vida animal, o não-humano do
humano [...] A ambição suprema do biopoder
consiste em produzir em um corpo humano a
separação absoluta entre o ser vivo e o ser que fala,
entre a zoé e o bíos, o não-homem e o homem: a
sobrevivência (AGAMBEN, 2008, p.155-156).

As novas propostas de enfrentamento à epidemia da Aids


evidenciam claramente a cisão zoé/bíos quando apostam na
ampliação do uso de medicamentos, mas praticamente deixam de
lado os princípios que nortearam a luta pelos direitos humanos e pela
cidadania que caracterizou a resposta brasileira nos anos 80 e que
teve influência direta na construção de um modelo de saúde universal
e igualitário. A estratégia biopolítica age, em suma, quando desnuda a
suposta vida biológica de suas singularidades e direitos políticos para
operar diretamente sobre a vida nua.
É a mesma estratégia que vemos no campo das drogas com a
proposta da internação compulsória, por exemplo, quando certos
saberes, alicerçados ao nível de verdade, despem o sujeito de sua
autonomia, de sua capacidade de decidir sobre sua trajetória e do seu
próprio direito de pensar. As imagens de usuários de crack parecendo
zumbis, que tanto circulam pela mídia, são atravessadas por este
mesmo discurso, produzindo um efeito muito parecido com o descrito

257
por Agamben (2008), e indicam um momento, uma fronteira, onde
vemos algo que já não é mais humano, que perdeu completamente
sua humanidade e em relação qual, portanto, já não podemos mais
nos reconhecer. Pesquisas “científicas”, campanhas publicitárias, o
alarme e o medo: peças de um dispositivo que cinde, desumaniza, e
reduz o outro à existência sem qualidades, dessubjetivada e, portanto,
sem direito algum a ser considerado. Reduz-se a vida a zoé para assim
sobre ela intervir sem receios. E tudo isso, ironicamente, como aponta
Peter Pál Pelbart (2011), em nome da própria vida.
O uso exacerbado do conceito de risco, analisado por Castiel
(2011) como uma hiperprevenção biopolítica, também está
atravessado nos dois campos. De acordo com o autor, esta palavra-
chave crucial nas pesquisas epidemiológicas e importante ferramenta
para o campo da saúde pública, vem sendo super-explorada dentro de
nossa sociedade de segurança e controle, onde se cristaliza cada vez
mais a necessidade de administrar as possibilidades e evitar desordens
e imprevistos. As pesquisas acadêmicas são ávidas em calcular – e a
mídia em divulgar, diga-se de passagem – as chances de viciar-se em
uma determinada droga logo no primeiro uso, as chances de que
experimentar uma droga leve um usuário a experimentar outras, as
chances de drogas provocarem esquizofrenia e outros agravos; e
também as chances de contrair HIV em cada via sexual, a partir de
cada orientação, por idade, sexo, raça etc.
Crawford (2000) propõe a expressão “rituais de risco” para
definir práticas simbólicas sociais que, por meio da incitação de
sequências estereotipadas de comportamento, visam gerar uma
espécie de espiral gradativa de ansiedade e controle. Dentro do
contexto da saúde pública – e da Aids, em especial -, essa tecnologia
caberia perfeitamente como estratégia biopolítica de prevenção e
promoção da saúde, tendo como seu principal efeito a produção de
um sujeito auto-consciente e auto-regulador. Nesse sentido, Seixas
(2010) entende o conceito de risco como um operador importante da
governamentalidade liberal. Nas sessões de aconselhamento, citada
como um exemplo, o fato de que a busca pela testagem seja

258
voluntária e não coercitiva é fundamental para que cada sujeito
entenda-se como principal responsável pelo gerenciamento dos seus
riscos. Não é preciso entregar preservativos, pois, se o
aconselhamento for bem-sucedido, é certo que o próprio usuário irá
pegá-lo por si mesmo. Torna-se, assim, menos visível o poder
disciplinar e mais visível o sujeito que a ele se submete.
O processo de auto-responsabilização pode facilmente derivar
em uma auto-culpabilização quando o sujeito percebe ter sido ele
próprio o motivador do risco corrido, ainda mais quando a busca pela
testagem decorre de algum tipo de relacionamento extraconjugal.
Retomando a relação com a problemática do uso de drogas, cabe
lembrar que a “auto-vigilância” gerada pela culpa é uma das
estratégias terapêuticas bastante usadas nos “tratamentos de base
religiosa” de diversas adições, sendo o exemplo mais emblemático o
dos Alcóolicos Anônimos (Seixas, 2010).
Eis aqui um dos paradoxos a ser pensado criticamente pela
Redução de Danos, uma vez que a “autonomia” e a “liberdade”, que
são princípios tão caros a essa estratégia – da mesma forma como o
conceito de “empoderamento” (ZAGO; SANTOS, 2013) –, tornam-se
justamente as tecnologias de controle mais eficientes sob o regime de
governamento neoliberal (FOUCAULT, 2008). Como podemos
diferenciar esses dois tipos de liberdade e autonomia a nível teórico e
prático? Como garantir que uma escala de risco facilite ao sujeito o
processo de apropriação da própria saúde e impeça o contrário, seu
assujeitamento e dominação pelas normativas epidemiológicas? Onde
há poder, há resistência (Foucault, 2012); daí a dificuldade de se tentar
separar claramente as duas facetas da mesma moeda. Não obstante, é
inegável que a hiper-capilaridade do biopoder na contemporaneidade
parece cada vez menos suscetível às formas tradicionais de
resistência, o que não deixa de ser preocupante.
Castiel (2010) descreve como “epidemiopoder” o novo papel
que assumem as normativas epidemiológicas, baseadas no conceito
de risco, em nossa sociedade, regendo “os preceitos e recomendações
que pretendem disciplinar as populações humanas no interior dos

259
discursos de promoção da saúde centrados no comportamento
saudável” (p.162). De acordo o autor, os preceitos epidemiológicos
ocupariam certo espaço e funções sociais na modernidade outrora
desempenhados pelas religiões: “pode-se enunciar que haveria uma
liturgia e um conteúdo religioso de fundo cristão modelando os
discursos da promoção da saúde ao equivalerem a uma utopia da
saúde perfeita” (p. 172).

Em suma, a promoção individualista da saúde


possuiria aspectos religiosos, quase como uma seita
no interior da religião capitalista na qual está
subsumida, sob a égide de seus cânones liberal-
eclesiásticos: liberdade de decidir com prudência,
capacidade de atuar responsavelmente com
fortaleza, direito de escolher e consumir com
temperança os objetos e deleites da vida mundana,
com o propósito de não comprometer os ideais de
vitalidade e longevidade. A grande meta não
disfarça sua feição paradoxal: uma vida terrena a
mais eterna possível (p. 177-78).

Talvez a semelhança entre os lugares ocupados pelos preceitos


religiosos e normativas epidemiológicas, enquanto matrizes de
produção de subjetividade em diferentes momentos históricos, seja
um indicativo dos motivos pelos quais ainda temos de lutar contra
uma extensa rede de moralismos que permanece sufocando a saúde
pública em campos como o das drogas e do HIV/Aids. Afinal, não é
difícil encontrarmos profissionais e serviços de saúde tratando
Infecções Sexualmente Transmissíveis como punições para uma vida
sexual “promíscua” ou a “dependência química” como sinal de
“vagabundagem”. E não são apenas os usuários que sofrem com isso,
carregando muitas vezes sentimentos de culpa e vergonha, omitindo
aspectos de sua vida com receio de serem julgados por aqueles que
deveriam cuidar; os profissionais que buscam conduzir seu trabalho
para além de julgamentos morais, valorizando o saber do usuário e

260
rejeitando a abstinência enquanto única via de tratamento, acabam
também sofrendo o efeito desses atravessamentos morais no seu
próprio trabalho. É neste sentido que Nardi e Rigoni (2005) sugerem
que a precarização e instabilidade do trabalho dos redutores de danos
(onde estão eles mesmo?), muitas vezes sem garantia salarial e isentos
de direitos trabalhistas básicos, estão diretamente relacionadas aos
discursos moralistas e conservadores que ainda pesam sobre os
sujeitos-alvo de suas práticas, os usuários de drogas ilícitas e as
populações mais vulneráveis ao HIV/Aids, como homossexuais e
travestis.

Considerações finais

Desumanização, estigma e higienismo: marcas de um biopoder


contra o qual parece haver cada vez menos possibilidade de oposição,
e que atravessa fortemente os campos do uso de drogas e do
HIV/Aids. Se, de fato, vivemos um tempo em que essas áreas estão
distantes em termos de gestão e assistência, talvez a invenção de
novas formas de resistência seja um bom motivo para se buscarem
reaproximações.
É preciso lembrar, no entanto, que os dois campos apresentam
conjunturas políticas bastante distintas para suas militâncias. A saúde
mental conhece a Reforma Psiquiátrica e as práticas de Redução de
Danos há mais de 20 anos e hoje vive claramente uma disputa política
entre dois modelos de cuidado divergentes. Ainda que se tenha
avançado na estruturação de uma rede para o cuidado fora do
manicômio, vivemos às voltas com discursos pedindo internações
compulsórias e um embate público entre essas propostas. No campo
da Aids não há uma polarização tão evidente, como tampouco existem
modelos de atenção distintos e bem definidos em oposição ideológica.
Nesse caso, pode-se pensar que as relações de poder estão mais
naturalizadas e menos problematizadas a nível institucional, o que
configura, de certa forma, obstáculos ainda mais difíceis de serem

261
transpostos em nível macropolítico, mas que podem se revelar mais
flexíveis a nível micro.
Se o cenário é menos polarizado, menos rígido, torna-se
possível operar micropolíticas nos próprios serviços, na rotina de
atendimento aos usuários e nos encontros das equipes. Os princípios
da Redução de Danos podem ajudar a pensar formas de cuidado em
que a autonomia do usuário esteja acima das normativas
epidemiológicas e além dos controles biopolíticos das liberdades
reguladas. Também se podem pensar ações de saúde que não apenas
prescrevam o “melhor” tratamento, mas que abram espaço para o
profissional construí-lo junto ao usuário na direção que aponta para a
prática ética do cuidado, descolando o profissional de saúde de seu
caráter enquanto agente biopolítico de controle da população. Em
termos práticos, é possível pensarmos na ampliação do conceito de
“adesão ao tratamento”, de forma que se possa pensar o uso de
drogas para além da clínica estrita do HIV; o fortalecimento de
vínculos com a atenção básica e com serviços como os Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS); atividades de educação permanente etc.
Certamente teremos de seguir refletindo sobre os melhores
caminhos para resistir, mas algumas pistas estão dispostas sem
maiores mistérios ao longo da história: a garantia de direitos, o
diálogo com movimentos sociais e a sociedade civil, os movimentos
coletivos de afirmação de redes solidárias e de desindividualização, a
democracia como princípio básico. Como coloca Peter Pál Pelbart
(2011), em sua reflexão sobre as contaminações positivas que a Aids
produziu nos anos 80 e 90: “É intolerável que um corpo, individual ou
coletivo, seja separado de sua potência. E como recusar o intolerável,
e como reconectar um corpo com sua potência?” (p. 246). Partamos
daí.

262
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266
Capitulo XIII

Casa, família e emprego: o cuidado de usuários de


álcool e outras drogas no território como um
contraponto aos rumos da política pública sobre
drogas no Brasil
Luciana Barcellos Fossi

A questão do consumo abusivo de drogas, ultimamente, vêm


sendo atrelada às questões de vulnerabilidade social. Discursos sobre
a fragilização e o rompimento de vínculos diversos, relacionados à
família, escola, emprego, são apontados como causas e consequências
do consumo abusivo de drogas, especialmente o crack. Nos últimos
anos, houve um aumento significativo de reportagens nos meios de
comunicação, referenciando o crack como a

(...) droga que escraviza em segundos, que


zomba das esperanças de recuperação, que
corrói famílias, que mata mais do qualquer
outra droga e que afunda dependentes na
degradação moral e no crime (ROMANINI;
ROSO, 2012, p. 86).

Em resposta a tal demanda, a atual política pública para drogas


no país, trouxe a lógica da internação de longa duração em
comunidade terapêutica como dispositivo de cuidado na rede de
saúde.

267
Na contramão de tais generalizações que homogeneízam os
modos de consumo de drogas e seus efeitos, este capítulo apresenta
outras possibilidades de modos de subjetivação do sujeito usuário de
drogas. Em um grupo terapêutico para usuários de álcool e outras
drogas realizado no Centro de Atenção Psicossocial (tipo I) da cidade
de Dois Irmãos (RS), orientado pela perspectiva da Redução de Danos,
a população atendida, em sua maioria, segue vinculada à família e ao
emprego, e não são consumidores de crack, exclusivamente. Portanto,
estes não são os sujeitos-alvo das atuais medidas governamentais que
preconizam a internação em comunidade terapêutica. Estes são,
justamente, os sujeitos que reforçam a potência da lógica territorial de
cuidado, proposta pela Reforma Psiquiátrica.
Desta forma, apresentaremos o contexto de vida destes
usuários, e a proposta atual do tratamento para álcool e drogas no
CAPS a fim de problematizar os rumos da política pública brasileira
para questão das drogas, que vem preconizando a inserção na rede
pública e o financiamento de comunidades terapêuticas como recurso
de tratamento através das medidas propostas pelo plano “Crack, é
possível vencer”.
A experiência aqui descrita é resultante do trabalho de uma
equipe de saúde mental que participou de dois (dentre quatro) cursos
promovidos pela Rede Multicêntrica em 2012 (Atualização sobre
Intervenção Breve e Aconselhamento Motivacional voltados ao uso de
Crack e outras Drogas e Atualização em Gerenciamento de Casos,
Reinserção Social de Usuários de Crack e outras Drogas) e que, a partir
dos conhecimentos produzidos na experiência destes cursos, pôde
problematizar e reorientar suas práticas de atenção aos usuários de
álcool e outras drogas, conforme descrito a seguir.

Atendimento de usuários de álcool e outras drogas em CAPS I: a


demanda pelo cuidado no território:

A implementação da Reforma Psiquiátrica em 2001 (Brasil,


2001) estabeleceu uma nova rede de atenção à saúde mental. Antes,

268
composta praticamente apenas por hospitais psiquiátricos, passou a
ser orientada por uma lógica territorial: atendimento mais próximo
possível do local onde o usuário mora. Serviços como os Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS), Oficinas de Geração de Renda, leitos de
internação em saúde mental em hospitais gerais, atendimento em
saúde mental na Atenção Básica e Estratégia de Saúde da Família,
Serviços Residenciais Terapêuticos e Núcleos de Apoio à Saúde da
Família podem ser apontados como tecnologias adotadas para o
cuidado em saúde mental no SUS.
Desde a implementação dos CAPS com a Portaria GM 336
(Brasil/MS, 2002), houve a preocupação com o atendimento de
usuários de drogas. Dentre os cinco tipos de CAPS existentes, um deles
é específico para o problema do uso de álcool e outras drogas, sendo
denominado Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS
AD). No entanto, os CAPS possuem critérios populacionais para sua
implementação. Os CAPS AD possuem como critério um número
mínimo de setenta mil habitantes para que este serviço possa fazer
parte da rede municipal de saúde, segundo a portaria 336/02 do
Ministério da Saúde (Brasil/MS, 2002).
Em função do critério populacional, o município de Dois Irmãos
conta com um CAPS tipo I. Trabalhar em um CAPS I é um grande
desafio, visto que a equipe precisa estar atenta às diversas demandas
de saúde mental que devem ser atendidas neste dispositivo,
considerando que o sofrimento psíquico também é resultante das
condições de vida e, e especialmente, das relações sociais, do modo
como os sujeitos se constituem, como são e estão no mundo.
Portanto, a configuração do sofrimento psíquico se modifica e se
reconfigura no mesmo passo em que o mundo se transforma. Mais do
que enrijecer a compreensão de sofrimento psíquico com base nos
manuais de transtornos mentais, os profissionais de saúde mental
devem compreender como se produz o sofrimento psíquico na vida de
uma determinada população. Sendo assim, os cursos da Rede
Multicêntrica possibilitaram que praticamente todos os membros da
equipe (somente dois profissionais não participaram dos cursos, por

269
dificuldades pessoais) pudessem repensar o cuidado para os usuários
de álcool de drogas no município de Dois Irmãos (RS), bem como,
compreender como este uso problemático se produz e se apresenta
como demanda de cuidados em saúde mental.
Dentre as possibilidades terapêuticas de cuidado a usuários de
álcool e drogas, cabe destacar dois grupos terapêuticos realizados
neste CAPS: grupo de familiares de usuários de álcool e outras drogas
e grupo para usuários de álcool e outras drogas. O grupo de familiares,
realizado semanalmente se propõe a escutar a demanda daqueles que
são os cuidadores de pessoas com problemas relacionados ao uso
abusivo de alguma substância psicoativa, ou, que apresentam
sofrimento diante do consumo de álcool e drogas de seu familiar.
Este grupo é aberto à comunidade em geral, não há
necessidade de encaminhamento ou de acolhimento prévio no CAPS
nem em nenhum outro serviço da rede. O acolhimento dos
participantes se dá no próprio grupo e o familiar que está com
problemas decorrentes do uso de álcool ou drogas não precisa estar,
necessariamente, fazendo tratamento no CAPS. De acordo com
Schmidt e Figueiredo (2007), o acolhimento sem fila de espera em
CAPS é uma condição facilitadora do acesso, ou seja, acesso e
acolhimento estão atrelados e são inseparáveis. O acolhimento é o
dispositivo de porta de entrada do serviço.
O grupo específico para usuários de álcool e outras drogas
também acontece semanalmente e também é aberto à comunidade:
qualquer pessoa que declare ter algum problema devido ao uso
abusivo de substâncias psicoativas pode participar do grupo. No
espaço do grupo não existe a diferenciação diagnóstica de
uso/abuso/dependência química. É consenso dentre os participantes
que alguns têm mais dificuldades ou sofrem mais do que outros, mas
não é o objetivo deste grupo tratá-los de acordo com prerrogativas
diagnósticas, mas parte-se da premissa de que todos ali presentes
estão com um problema.
Desde a origem deste espaço de escuta, a questão do horário
foi uma preocupação por parte dos profissionais da equipe. Muitas

270
pessoas deixam de buscar atendimento para evitar problemas
profissionais, evitando saídas durante o horário da jornada de
trabalho. Este grupo já mudou de dia e horário algumas vezes, mas
sempre se manteve fora do horário da jornada de trabalho das
fábricas do município, que são os principais empregadores desta
população.
De acordo com Sousa, Pinto e Jorge (2010), o dispositivo grupal
pode ser considerado como um meio de intervenção importante, na
medida em que possibilita a desnaturalização do sofrimento e a
construção de modos coletivos de existência, deslocando o sujeito das
situações de exclusão e de negação do potencial de vida. Sendo assim,
as abordagens terapêuticas em grupos nos CAPS viabilizam,
principalmente, a promoção de autonomia dos usuários.
Considerando estes aspectos, tanto o grupo para familiares como o
grupo para usuários, além de serem dispositivos terapêuticos e de
cuidado, também são espaços de produção de novos sentidos para a
questão do consumo de substâncias psicoativas, não só para os
sujeitos usuários, mas para a comunidade como um todo.

Trabalhadores-usuários e seus contextos de vida e de uso: para além


do discurso da fragilização e da vulnerabilidade:

A maioria dos participantes do grupo de usuários de álcool e


outras drogas possui vínculo empregatício, moradia e família, e são
adultos. A partir das histórias de vida narradas por estes sujeitos,
alguns aspectos chamam a atenção. O problema com o uso abusivo de
drogas não surgiu na adolescência, apesar de nesta fase, já terem
experimentado a substância que hoje lhes causa problema. Sendo
assim, a partir da experiência deste grupo, o problema do consumo
abusivo de substâncias psicoativas surge na idade adulta, quando a
maioria, já se estabeleceu profissionalmente. Este consumo abusivo,
por sua vez, não rompe com os vínculos empregatícios e familiares
destes sujeitos. Muito antes pelo contrário: chama a atenção que,

271
muitas vezes, estes usuários relatam o uso de drogas como uma
ferramenta para melhorar o desempenho profissional.
Tal realidade se apresenta como um descompasso ao discurso
midiático sobre o consumo de drogas na contemporaneidade. As
peças midiáticas sobre drogas, publicitárias ou informativas, conforme
Vedovatto (2010) desenham a figura de um sujeito fraco, sem
autonomia, empobrecido, que tem a atitude impensada de usar uma
substância descontroladamente, destruindo sua família, sua vida
profissional e seus vínculos sociais. A forma como é apresentada o
usuário de droga generaliza o uso de substâncias, colocando tal uso
sempre como problemático, destruidor e desagregador de valores
morais e éticos. O efeito disso é a construção de uma imagem do
‘drogado’ responsável por todos os males da sociedade. Este retrato
produzido pela mídia não corresponde ao contexto de vida
apresentado pelos usuários participantes do grupo terapêutico em
questão.
Conforme Melcop (2004), o consumo de drogas nas sociedades
modernas reflete as mudanças sociais e econômicas dos últimos
séculos, que modificaram costumes e deslocaram os mecanismos de
controle comunitário para as grandes corporações e instituições
anônimas. No polo oposto ao do vegetal (cânhamo, coca)
transformado artesanalmente em substância psicoativa (maconha,
cocaína), hoje se tem a droga em série, produto de fabricação
laboratorial e que é produzida, lícita ou clandestinamente, em escala
repetitiva como qualquer outro bem de consumo generalizado.
Durante os encontros do curso Atualização sobre Intervenção
Breve e Aconselhamento Motivacional voltados ao uso de Crack e
outras Drogas da Rede Multicêntrica, os modos de consumo de drogas
dos usuários do CAPS de Dois Irmãos também pareciam diferir da
realidade de outros municípios, em especial, dos grandes centros
urbanos. Evidentemente que dentre os sujeitos atendidos pelo CAPS,
existem sim usuários de álcool e/ou drogas que se encontram em
situação de vulnerabilidade, que se relacionam de forma intensa com
o mercado do tráfico de drogas como possibilidade de ganhos

272
financeiros e de acesso às substâncias psicoativas - que caracterizavam
ser a maior parte das situações descritas pelos colegas de curso
oriundos de grandes centros urbanos. Contudo, estes casos, em Dois
Irmãos, ainda são exceções diante dos usuários de drogas
trabalhadores das fábricas.
A caracterização do consumo de drogas da maioria dos
participantes do grupo terapêutico do CAPS se alia justamente, ao
ritmo fabril. Portanto, é um consumo de drogas que se instaura de
modo a positivar a lógica de trabalho dos sujeitos, que possibilita a
coexistência do abuso de drogas com o exercício profissional, e que,
além de coexistirem, parecem estar engendrados a tal lógica, que
conformam modos de subjetivação. A subjetividade, de acordo com
Silva e Méllo (2011), é o resultado do processo de produção contínuo
investido na conformação de modos de existência, incluindo as
maneiras de agir e sentir. Portanto, a subjetividade é resultante de
uma processualidade decorrente de um plano histórico-político.
Estes sujeitos usuários de drogas, aqui descritos, não são os
mesmos sujeitos da atual Política Pública do Brasil, que vem
preconizando a internação de longa duração em comunidades
terapêuticas como medida de cuidado em saúde. A internação de
longa duração não condiz com a demanda dos sujeitos com vínculos
empregatícios e familiares, que configura a realidade da maioria dos
usuários do CAPS I de Dois Irmãos.
Segundo Doneda (2009) a Redução de Danos apresentou o
usuário de drogas como protagonista das ações a ele endereçadas,
contribuindo para outra conceituação da autonomia do usuário e seus
significados diante da substância, do modo de uso e administração da
droga, seus determinantes culturais, econômicos e sociais. O grupo
terapêutico do CAPS opera nesta lógica, levando os usuários a
problematizarem, por exemplo, alguns conceitos advindos dos grupos
de Alcoólicos Anônimos que determinam a abstinência total como
meta única para o tratamento, e que determina que qualquer
consumo seja encarado como um fracasso no tratamento.
Eventualmente, os usuários comparecem ao CAPS após iniciar o uso

273
de drogas e ter dificuldade em interromper este uso, ultrapassando os
limites impostos por eles mesmos. Nestas situações, estes usuários
são acolhidos imediatamente no serviço pelo profissional que estiver
disponível no momento.
De acordo com Petuco (2011), a Redução de Danos é um
paradigma que institui tecnologias de intervenção que consideram as
diferentes formas de ser e estar no mundo, se constituindo como um
paradigma que oferece outro olhar sobre a questão das drogas.
Portanto, a Redução de Danos é uma possibilidade clínica e política
que responde às dimensões políticas, sociais e culturais do consumo
de substâncias psicoativas.
Cabe, então, a partir da experiência e das características dos
usuários deste grupo, uma problematização do consumo de drogas
atravessado pela lógica neoliberal, de produção-consumo e de
inserção no mercado de trabalho.
Para além da fragilização dos vínculos e dos conflitos
familiares, a preocupação dos participantes do grupo passa pelo receio
de que os colegas e os chefes venham saber que estes são usuários de
drogas, principalmente quando o consumo acontece dentro do local
de trabalho, pelo temor de serem demitidos. Sendo assim, esta
população se caracteriza por sujeitos economicamente ativos,
inseridos no mercado formal de trabalho. Sujeitos que se beneficiam
da proposta de cuidado preconizada pela Reforma Psiquiátrica, pelo
cuidado no território e pela diretriz da Redução de Danos. A
perspectiva do cuidado para usuários de álcool e outras drogas no
CAPS busca contemplar as vicissitudes e os desdobramentos que o
consumo de substâncias psicoativas produz no contexto de vida de
tais sujeitos.
Algumas vezes, os usuários demandam por internação
hospitalar para desintoxicação quando estes não conseguem reduzir o
consumo. Em algumas situações, há a dificuldade no acesso ao leito
clínico em hospital geral para desintoxicação. Já houve a experiência
de desintoxicação no CAPS, sob o regime de cuidados intensivos
conjugados com internação domiciliar. Nestas experiências, o usuário

274
passava o dia no serviço sob cuidado em modalidade intensiva, onde a
medicação era administrada e o sujeito poderia participar de algumas
atividades, se assim desejasse. Durante o período em que o CAPS
estava fechado, os cuidados continuavam em casa, onde o usuário
ficava sob a responsabilidade da família. Atualmente, essa modalidade
de cuidado não vem sendo implementada por questões de
infraestrutura física e de composição da equipe.
Tivemos, contudo, algumas experiências exitosas de internação
domiciliar que não podem ser esquecidas. Se a família compreende o
problema e se propõe a dar continuidade aos cuidados dispensados no
CAPS, esta modalidade de desintoxicação deve ser considerada. No
caso de intercorrência clínica, as famílias e os usuários podem contar
com o SAMU e com a unidade de pronto-atendimento 24 horas do
município.
No entanto, a mídia e a atual configuração da política pública
para questão das drogas, conformam modos de subjetivação, e diante
do discurso de que a internação é única saída para os usuários de
álcool e outras drogas, a demanda tende a ser sempre, pela
internação. Cabe ressaltar aqui a importância do grupo de familiares
citado anteriormente, que se propõe a desconstruir as verdades
produzidas pelos discursos veiculados na mídia, já que as famílias,
inicialmente, buscam o CAPS para solicitar a internação hospitalar, ou
em comunidade terapêutica, para o familiar que faz uso de
substâncias psicoativas.
Este grupo, assim como o grupo para usuários de álcool e
outras drogas, também opera tendo como base, a diretriz da Redução
de Danos. Sendo assim, alguns participantes hoje, conseguem
considerar como um avanço o fato de um familiar que, costumava
tomar bebida destilada diariamente, tenha passado a tomar cerveja,
por exemplo. Este apoio das famílias tem sido fundamental para
sustentar e legitimar a proposta de cuidado para os usuários de álcool
e outras drogas no município de Dois Irmãos.

275
Os rumos da atual Política Pública no Brasil: que ‘cuidado’ e para
quem?

A partir de 2010, (Brasil, 2010) o governo brasileiro passou a


investir intensamente na questão das drogas, propondo novas
estratégias e reforçando outras já existentes, bem como
incrementando o orçamento para as ações propostas a fim de
solucionar o ‘problema’, ou pelo menos, minimizá-lo. Dentre as
propostas, está a ampliação dos serviços de atenção à saúde para os
usuários de drogas, trazendo para rede serviços que inicialmente não
faziam parte dela. As comunidades terapêuticas, serviços de
internação na modalidade de moradia para usuários drogas, passaram
a compor a rede de saúde pública através do financiamento estatal.
As comunidades terapêuticas em sua natureza social, que
segue a lógica do internamento, são uma das tantas formas históricas
contemporâneas do jogo de exclusão dos seres humanos, onde
eclodem rituais de segregação e purificação por meio das práticas
terapêuticas e dos discursos morais. As comunidades terapêuticas
possuem um “híbrido” de concepções morais e éticas, conjugando
“velhas” e “novas” visões e valores acerca do indivíduo e da
sociedade. (CASTRILLÓN VALDERRUTÉN, p.81, 2008).
A lógica que opera na comunidade terapêutica é da ordem
privada, de moral religiosa. Esta lógica das comunidades terapêuticas
concorre e ao mesmo se engendra a lógica vigente pós-reforma
psiquiátrica para o cuidado à saúde dos usuários de drogas. No
momento em que as comunidades terapêuticas se vinculam à rede
pública, fica estabelecido o fluxo que o usuário de drogas irá percorrer
pela rede de serviços, que incluem os CAPS, os leitos em hospital geral,
dentre outros. Uma conciliação de lógicas, que seriam distintas
originariamente, mas que no percurso traçaram trajetórias que se
convergiram, e se entrelaçaram numa só rede, conformando modos
de subjetivação.
A experiência de si, que se pode chamar de experiência
subjetiva, está engendrada pelas relações de saber e poder, e sendo

276
assim, tal experiência passa pela análise das condições de emergência
de verdades produzidas sobre os sujeitos. Conforme Duarte (2008), o
sujeito, para Foucault, é pensado como um produto resultante de uma
multiplicidade de relações horizontais de saber-poder que o
caracterizam como sujeito assujeitado e disciplinado. Nesta
conciliação das lógicas da comunidade terapêutica e dos serviços
pautados pela Reforma Psiquiátrica há um novo modo de manejo
sobre o sujeito usuário de drogas, através de novas intervenções
estatais que interferem no problema-droga, apontado como
fenômeno populacional (GUARESCHI, LARA e ADEGAS, 2010).
O atual governo do país tem como plano governamental o
‘enfrentamento ao crack’, sob a campanha “Crack, é possível vencer”,
com significativo investimento financeiro para contemplar a demanda
da sociedade por alguma medida que dê conta de tal problemática.
Em 2010 foi publicado o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack
(BRASIL, 2010) que conveniou formalmente as comunidades
terapêuticas com o SUS. A publicação do plano gerou repercussões
com diferentes vieses. Se por um lado a opinião pública vê com bons
olhos a medida governamental, por outro, parte dos trabalhadores da
área da saúde, especialmente aqueles implicados com a manutenção
do SUS e da Reforma Psiquiátrica em seus preceitos fundamentais,
não entende que a medida seja o melhor caminho para abordar o
problema social do uso de crack.
Existem, assim, movimentos contrários, motivados por lógicas
distintas. De um lado, os militantes da Reforma Psiquiátrica e do SUS,
que entendem o conveniamento das comunidades terapêuticas como
um retrocesso político. De outro, aqueles favoráveis à lógica
manicomial, que há muito tempo questionam o modelo vigente e
apontam os avanços da Reforma Psiquiátrica como um retrocesso no
cuidado em saúde mental.
De acordo com Andrade (2011), proposição de leitos em
hospitais e comunidades terapêuticas, preconizados pelos que se
opõem à Reforma Psiquiátrica, e em particular aos CAPS, encontra eco
no imaginário popular, o qual espera por soluções imediatas de cura e

277
de afastamento das atividades marginalizadas e ilegais por parte dos
usuários de drogas. O autor afirma que o internamento nesses
serviços vai na direção contrária das práticas desses usuários de
drogas, dificultando a possibilidade de um novo percurso por vieses
socialmente mais aceitáveis e produtivos.
Os espaços fechados de tratamento para pessoas com
problemas com o uso de drogas como as comunidades terapêuticas
podem ser consideradas como espaços onde se estabelecem relações
de dominação daquele que exerce um poder dito terapêutico sobre
um sujeito desprovido de seus direitos, “abandonado à arbitrariedade
institucional” (Alarcon, Belmonte e Jorge, p.73, 2012).
As ações de desinstitucionalização decorrentes da Reforma
Psiquiátrica são direcionadas para este tipo de situação. A
institucionalização é o artifício para a anulação da subjetividade dos
sujeitos, tornando-os meros objetos. Por isso, as críticas feitas aos
hospitais psiquiátricos se estendem às instituições como as
comunidades terapêuticas (dentre outras) que nasceram à sombra da
racionalidade manicomial, pois entendem saúde pela simplificação
unicausal e institucionalizam o sujeito (ALARCON, BELMONTE e JORGE,
2012).
A partir do contexto de vida dos usuários do CAPS I do
município de Dois Irmãos, a priorização da internação de longa
duração em comunidades terapêuticas e o incremento financeiro em
instituições do setor privado podem ser problematizadas. Conforme
citado anteriormente, o CAPS deixou de fazer a desintoxicação na
modalidade de cuidado intensivo aliada à internação domiciliar por
questões de infraestrutura, que perpassam também por questões de
respaldo financeiro. A configuração da demanda dos usuários deste
CAPS está muito aquém do contexto de vulnerabilidade atribuído aos
usuários de drogas. Sendo assim, os rumos da atual política pública
brasileira para a questão das drogas contemplam uma demanda
específica, caracterizada pelas situações de vulnerabilidade atreladas
ao consumo de drogas, mas que, podemos pensar também, pode ser

278
decorrente de questões muito anteriores ao consumo abusivo de
álcool e outras drogas.
Portanto, através da apresentação do modelo de cuidado deste
serviço de saúde mental e de seus usuários, surge uma brecha para
repensar as prioridades de uma política pública que investe
prioritariamente em uma determinada população, inserida em um
contexto específico, que evidentemente necessita de cuidados.
Contudo, os usuários de álcool e outras drogas que não necessitam de
internação de longa duração, que não são os sujeitos-alvo destas
medidas governamentais, também devem ser considerados nos planos
governamentais, tanto do ponto de vista do investimento financeiro
em serviços que já compõem a rede pública de saúde, como nas
tecnologias e saberes produzidos e construídos na experiência da
Reforma Psiquiátrica Brasileira.
Estes saberes e tecnologias podem auxiliar na construção de
novos serviços para a rede de cuidados para usuários de álcool e
outras drogas, de modo que ela possa dar conta, também, das
situações de vulnerabilidade encontradas especialmente nos grandes
centros urbanos, sem necessariamente, serem institucionalizados em
comunidades terapêuticas.

Considerações finais:

A rede da Reforma Psiquiátrica se mostra eficaz diante da


experiência descrita neste trabalho. Contudo, é necessário resgatar o
histórico de institucionalização da loucura do século passado como
única possibilidade de tratamento. A Reforma Psiquiátrica propõe
desconstruir não apenas os manicômios, mas toda a lógica de
‘cuidado’ baseada na segregação e no isolamento em instituições
totais. A institucionalização de usuários de drogas deve ser
problematizada a partir dos princípios da Reforma Psiquiátrica, de
modo que o respeito aos direitos humanos dos sujeitos com
sofrimento psíquico advindo do consumo de substâncias psicoativas
seja garantido.

279
Dificilmente, mesmo em casos onde o consumo de drogas é
extremamente problemático, os sujeitos atendidos no CAPS I de Dois
Irmãos se propõem de fato, a serem internados em comunidades
terapêuticas. O rompimento dos vínculos familiares e a
impossibilidade de trabalhar no mercado de trabalho formal são, na
maioria das vezes, a justificativa para que esta modalidade de
internação não ocorra. E estes são, justamente, os fatores que
possibilitam uma reorganização do consumo de substâncias
psicoativas, de modo que, a família e o trabalho se estabelecem como
aspectos de vida a serem priorizados nos projetos terapêuticos para a
redução dos danos causados pelo consumo de álcool e drogas destes
usuários.
Durante o percurso da escrita deste trabalho, em busca de
referências teóricas e outras experiências de Centros de Atenção
Psicossocial que pudessem sustentar a discussão proposta, nenhuma
referência sobre o tratamento de usuários de álcool e outras drogas
em CAPS tipo I foi encontrada.
Uma das contribuições que este trabalho tem a oferecer é
pensar e legitimar o cuidado para estes usuários em serviços de saúde
que, necessariamente, não sejam especializados na atenção à
demanda relativa ao consumo de substâncias psicoativas. Se de um
lado, os CAPS AD estão localizados nos municípios com pelo menos
setenta mil habitantes, por outro, as comunidades terapêuticas
localizam-se, especialmente, nas zonas rurais dos municípios de médio
e pequeno porte. Sendo assim, a consolidação de uma rede de
atenção para usuários de álcool e outras drogas permeada pelos
princípios da Reforma Psiquiátrica, passa, necessariamente, pelo
fortalecimento dos dispositivos da atenção básica enquanto serviços
que também se responsabilizam por esta demanda.
O curso da Rede Multicêntrica possibilitou avanços nos
discursos e nas práticas dos profissionais do CAPS, bem como, auxiliou
na conformação de um entendimento da questão do consumo abusivo
de substâncias psicoativas por parte da equipe aliançado na Redução
de Danos, que alcançou legitimidade junto aos gestores e à população

280
em geral. Os tencionamentos seguem e os embates são diários.
Contudo, os saberes produzidos na construção coletiva das aulas deste
curso se consolidaram como peças-chave para a manutenção de um
cuidado pautado pela Redução de Danos e, sobretudo, pelo respeito à
cidadania e pela dignidade dos sujeitos usuários de drogas.

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281
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– nem tão feios, nem tão sujos, nem tão malvados: pessoas de bem
também usam drogas! In: SANTOS, L. M. B. (org.) Outras palavras
sobre o cuidado de pessoas que usam drogas. Porto Alegre:
ideograf/Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, 2010.

283
284
EXPERIÊNCIAS

285
286
Capitulo XIV

PROJETO SEMEAR: uma proposta de reabilitação


psicossocial do Hospital Sanatório Partenon para
pessoas com tuberculose e outras comorbidades
Marta Conte, Cíntia Germany, Denise Bastos, ElisaneCoutinho, Jarbas
Osório, Rebeca Litvin, Simone Meyer Rosa, Carla Adriane Jarczewski.

O mundo dos excluídos é um mundo sem-


desejo, enquanto o homem, como diz
Bachelard, é uma criação do desejo e não se
reduz à dimensão única da necessidade
(1990).

Este capítulo trata do relato sobre a elaboração e implantação


de um projeto de reabilitação psicossocial, denominado Semear,
voltado para pacientes com tuberculose e comorbidades (HIV/Aids,
hepatites virais, portadores de sofrimento psíquico, uso problemático
de substâncias psicoativas e/ou vulnerabilidade social), internados no
Hospital Sanatório Partenon (HSP), em Porto Alegre, RS. O projeto foi
elaborado por uma equipe de profissionais do HSP que frequentou o
Curso III da Rede Multicêntrica21, no mês de novembro de 2012 e que
concorreu, na ocasião, ao Edital do Ministério da Saúde - III Chamada
para Elaboração e Seleção de Projetos de Reabilitação Psicossocial:
trabalho, cultura e inclusão social na rede de atenção psicossocial. E foi

21
A Rede Multicêntrica é um centro de referência em Educação Permanente no tema da atenção integral dos
usuários de álcool e outras drogas estimulando o pensar estratégico e as práticas a partir da diretriz de
trabalho da Redução de Danos e reúne serviços de Porto Alegre e da Região Metropolitana.

287
desenvolvido de 2013 a 2015.
O Projeto Semear22 teve como objetivo contribuir para a
adesão ao tratamento da tuberculose, por meio de ações que
abordem as comorbidades e possibilitem a construção de novos
lugares sociais, pela inserção nos campos da educação, trabalho e
geração de renda, cidadania e cultura. Pretendeu com isto criar
condições para a reabilitação psicossocial, na perspectiva da atenção
integral e da redução de danos.
O Projeto propôs também ações de educação permanente
voltadas aos profissionais do hospital e da rede intersetorial. Contou,
para tanto, com uma equipe multidisciplinar que atuava no HSP, bem
como com oficineiros contratados pelo Projeto e outros profissionais e
parceiros para desenvolver suas ações.
A metodologia utilizada para alcançar o objetivo proposto
envolveu: oficinas, grupos, saraus temáticos, cine-debate, cursos de
curta duração, rodas de conversa, musica, teatro, terapia comunitária,
entre outras. A proposta desta metodologia enfatizou o acolhimento, o
vínculo, a responsabilização e o empoderamento dos pacientes,
familiares e servidores participantes das ações do Projeto. O principal
desafio do processo de implantação do Semear foi garantir sua
sustentabilidade, bem como monitorar e avaliar a pertinência de
algumas novas abordagens propostas.

O contexto hospitalar:

O Hospital Sanatório Partenon é composto por um conjunto de


serviços com unidades de internação, totalizando 65 leitos (ala
feminina, ala masculina e Unidade de Cuidados Especiais); Unidade de
Saúde Sanatório Partenon (referência para tratamento ambulatorial de
pacientes com tuberculose multirresistente (TBMR), com tratamento
diretamente observado (TDO) compartilhado para todo estado, e

22
Agradecemos aos oficineiros Paula Emilia Adamy, Samantha Torres, Giuliano Soares e Leo pelas
importantes contribuições oferecidas nas oficinas com pacientes, familiares, servidores e comunidade
em geral.

288
tratamento de esquema básico para os bairros Partenon, Agronomia e
Lomba do Pinheiro; Serviço de Atenção Terapêutica (SAT: Hospital-Dia
e Serviço de Atendimento Especializado (SAE), Centro de Testagem e
Aconselhamento, Sistema de Informação e Controle Logístico de
Medicamentos (SICLOM); Ambulatório Geral: Centro de Aplicação e
Monitoramento de Medicamentos Injetáveis (CAMMI), Centro de
Referência de Imunobiológicos Especiais (CRIE), Ambulatório de
Hepatites, Ambulatório de Pequenas Cirurgias, Ambulatório de
Odontologia, Fibrobroncoscopia, Espirometria, Radiologia, Fisioterapia,
Ambulatório de Profilaxia da Raiva; Campo de estágio curricular para
Universidades e Instituições Conveniadas (UFRGS, FFFCMPA, PUCRS,
IPA, entre outras); Residência Integrada em Saúde (RIS) com ênfase em
Pneumologia Sanitária (Enfermagem, Fisioterapia, Serviço Social,
Psicologia e Terapia Ocupacional, com possibilidade de ampliar para
outras áreas e/ou ênfases), no entanto, foi interrompida ano passado.
O HSP é referência estadual para o tratamento da tuberculose,
desenvolvendo ações de promoção, prevenção, recuperação e
reabilitação da saúde dos usuários.
Com o advento da Aids e do consumo de drogas, especialmente
o crack, surgem novas demandas para a atenção e por conta disto o
hospital vem se adaptando tanto na área física quanto no escopo de
suas ações, modificando as já executadas e criando outras, com
ênfase, especialmente, ao tratamento de um olhar integral às questões
psicossociais.

Da Doença:

A tuberculose (TB) é uma doença infectocontagiosa causada


pelo Mycobacterium tuberculosis, que pode acometer qualquer órgão
do corpo, sendo mais comum e mais importante do ponto de vista
epidemiológico a forma pulmonar. A TB é transmitida por via aérea, a
partir da inalação de núcleos secos de partículas contendo bacilos
expelidos pela tosse, fala ou espirro da pessoa com TB ativa de vias
respiratórias (pulmonar ou laríngea). Os doentes bacilíferos, isto é,

289
cuja baciloscopia de escarro é positiva, são a principal fonte de
infecção. De acordo com o Ministério da Saúde (Brasil, 2011) as formas
exclusivamente extrapulmonares não transmitem a doença. Sua
evolução e gravidade estão relacionadas à concentração de bacilos no
ambiente, ao tempo de exposição aos bacilos e à imunocompetência
da pessoa exposta. Apresenta como sintomas iniciais mais frequentes
tosse produtiva, hipertermia, sudorese noturna, anorexia e perda de
peso. O diagnóstico é feito pela história clínica e, na maioria dos casos,
pelo exame de baciloscopia (pesquisa de bacilos álcool acido
resistentes - BAAR - no escarro) e por radiografia de tórax. Em
situações especiais o diagnóstico pode ser feito por exame laboratorial
de líquidos ou secreções aspiradas ou por exame anatomopatológico
de órgãos ou tecidos biopsiados. A cultura para micobactérias tem
maior sensibilidade do que a baciloscopia de escarro e, mais
recentemente, o Brasil acrescentou ao seu arsenal diagnóstico o teste
molecular rápido, ainda em fase de implantação no país.

Do tratamento:

No contexto acima descrito o Ministério da Saúde definiu três


esquemas de tratamento: 'esquemabásico'(EB) – composto por quatro
fármacos - com duração de seis meses; 'esquema especial'(EE),
utilizado nos casos de hepatotoxicidade ou de intolerância a algum
fármaco do EB - composto por três ou quatro drogas, com duração de
12meses, e esquema para o tratamento de 'tuberculose
multirresistente'(TBMR), com duração de 18meses. A mudança do
esquema básico para o esquema especial ou para o de
multirresistência pode acontecer em um mesmo período de
internação, aumentando significativamente o tempo de permanência
no hospital, independente do esquema de tratamento utilizado
(BRASIL, 2011).
As condições associadas à TB compõem o quadro de
vulnerabilidade biopsicossocial no qual se encontram os pacientes
internados no HSP. Estas condições determinam o aumento do tempo

290
de permanência dos mesmos no hospital, considerando que
favorecem o uso irregular dos medicamentos, a não adesão e
abandono dos tratamentos anteriores, com consequente falência aos
diversos esquemas terapêuticos, especialmente no âmbito
ambulatorial. Juntam-se a estas, outras condições para a falência, tais
como: a fragilidade dos vínculos entre pacientes e equipes
profissionais e a ausência de supervisão na administração dos
medicamentos, a dificuldade de acesso aos serviços, o modelo de
atenção que pratica a adesão centrada no período de tratamento sem
a ênfase a uma autonomia para o exercício de autocuidado, entre
outros (BRASIL, 2011; BERGEL e GOUVEIA, 2005; CHIRINOS e
MEIRELLES, 2011; VIERA, A.A.; RIBEIRO, S.A., 2011; COSTA, 2013).
Além das sequelas provenientes das patologias tratadas
durante a internação podem ser observadas outras consequências em
razão da longa permanência no ambiente hospitalar, agravadas pelo
impedimento de saída dos pacientes hospitalizados durante o período
da internação (exceto para questões de saúde), visto que não há
respaldo legal para tanto. No entanto, a instituição está em fase de
experiência de novos fluxos para garantir a acessibilidade aos
recursos/equipamentos sociais necessários para inserção social da
população atendida.
Entre as consequências da longa permanência, constatam-se a
privação de hábitos cotidianos, de convívio social e familiar. E por
outro lado, com frequência, o espaço terapêutico transforma-se em
cenário de conflitos de relacionamento entre os pacientes, com
dificuldade de manejo por parte das equipes, resultando, muitas
vezes, em "alta contra iniciativa médica". Tais situações ocorrem
frequentemente e, muitas vezes, apresentam desfechos indesejados
como o abandono e alta a pedido e, consequentemente, a não adesão
ao tratamento.
Pesquisas que investigam a adesão/não-adesão sob a ótica dos
sujeitos que a vivenciam - pacientes, família, profissionais - trazem
subsídios para a compreensão dessa problemática. Nas definições
descritas pelos autores, a ideia recorrente é a de que o paciente deve

291
obedecer às recomendações dos profissionais de saúde e que seu
comportamento deve coincidir com os conselhos e indicações médicas
e dos demais profissionais dos serviços (Annelita Almeida Oliveira
Reiners et alli, 2007).
Essa ideia sugere que o papel do paciente é ser submisso àquilo
que o profissional determina. Na medida em que o paciente deixa de
observar as indicações prescritas é considerado como não aderente ao
tratamento, nesse sentido os profissionais tendem a abordar a
questão da adesão/não-adesão somente sob essa perspectiva,
ignorando outros pontos de vista do paciente, deixando de considerar
a legitimidade dos comportamentos que diferem das suas prescrições.
Agindo assim, distanciam-se das razões dos pacientes,
julgando-os e rotulando-os, em vez de conhecê-las, entendê-las para
incorporá-las no Plano Terapêutico Singular como estratégias que
viabilizariam a adesão. Por isso, há que se considerar essa questão sob
outra ótica, levando em conta a subjetividade do paciente, suas
necessidades, contradições e dificuldades, bem como suas demandas,
sem nunca esquecermos de que a tuberculose é uma doença cuja
transmissão é aérea e não consentida, sendo sua cura
responsabilidade dos serviços de saúde e só terá resolutividade a
partir da consciência do paciente, dos serviços de saúde e de toda a
sociedade.
De acordo com dados fornecidos pelo Serviço de Arquivo
Médico do HSP, no ano de 2012 o número total de altas, excetuando
os óbitos, foi de 293. Destas, 168 (57,3%) ocorreram Contra Iniciativa
Médica (a pedido, abandono, fuga, indisciplina). Nesse mesmo período
ocorreram 125 (42,7%) altas por iniciativa médica (tratamento
ambulatorial, cura, transferência). Observa-se por esses dados que,
em 2012, o total de altas contra iniciativa médica foi superior ao total
de altas por iniciativa médica, projetando-se, nestas circunstâncias,
um número significativo de tratamentos pós-internação que cursaram
com irregularidade ou mesmo abandono. Deve-se considerar que as
altas, nestas circunstâncias, dificultam a preparação e o adequado
encaminhamento dos pacientes para a rede.

292
Já a partir de 2014, com a pesquisa do PPSUS (CONTE et all,
2015) desenvolvida no hospital foi possível analisar dados, conforme
quadro abaixo, para comparar uma série histórica de 2012 a 2015
(TEIXEIRA, PAVIM, 2015). Cabe ressaltar que em 2013 iniciou a
implantação do Plano Terapêutico Institucional.
Comparativo: Altas do Hospital Sanatório Partenon,
Porto Alegre/RS, nos anos de 2012, 2013, 2014 e 2015

Dados Comparativos de 2012, 2013, 2014 e 2015 - Motivos


em categoria
A favor na iniciativa médica Conta iniciativa médica
56,90% 56,60%
53,40% 52,60%
46,60% 47,40%
43,10% 43,40%

2012 2013 2014 2015

Os resultados evidenciam mudanças no perfil das altas


hospitalares, com diminuição das altas contra iniciativa médica,
incluem o abandono, as altas a pedido e a indisciplina. Já nas altas a
favor da iniciativa médica estão incluídas a cura, a sequencia do
tratamento ambulatorial, a transferência para outro hospital. Nesta
categoria de motivo o aumento da alta por cura é significativo. Uma
das hipóteses explicativas é justamente a implantação do PTI,
planejado para interferir positivamente sobre a internação e que pode
estar, consequentemente, influenciando os motivos de alta hospitalar.
Confirmou-se que a significativa participação dos pacientes em
atividades terapêuticas e culturais têm criado melhores condições
para a adesão ao tratamento.
Como desdobramento desse processo a Direção Técnica do
HSP promoveu informalmente o grupo de trabalho que, no segundo

293
semestre de 2012, iniciou a elaboração do Plano Terapêutico
Institucional (PTI), em um espaço de construção coletiva, aberto à
participação voluntária de todos os profissionais que atuam na
instituição.
Tratando-se de um hospital que oferece cuidado em saúde a
uma população em situação de vulnerabilidade social, as necessidades
e demandas são diversas e, por vezes, sem possibilidade efetiva de
resolução, por conta de processos de trabalho defasados, a não escuta
dos pacientes e posturas prescritivas de alguns profissionais, ante à
mudança do perfil dos pacientes, além das situações que não estão
sob a ingerência da equipe envolvida diretamente com o paciente,
como a situação, anteriormente mencionada da impossibilidade de
sair das dependências do hospital, exceto para questões de saúde,
uma vez que havendo uma internação, do ponto de vista legal, a saída
de um indivíduo e a cobrança de uma AIH neste período constitui
fraude perante o SUS.

Das comorbidades e condições associadas à TB:

Entre as comorbidades e condições associadas mais frequentes


à tuberculose podemos citar: HIV/AIDS; transtornos mentais, entre
eles os decorrentes do uso problemático de substâncias psicoativas;
hepatite C e as vulnerabilidades sociais.
Em relação ao HIV/Aids pode-se afirmar que, em um número
significativo de casos, a TB é uma das primeiras manifestações da
doença, cursando de forma concomitante. O tratamento da Aids utiliza
um elenco de medicamentos fornecidos pelo Ministério da Saúde e
prescritos de acordo com protocolos e consensos estabelecidos,
existindo a orientação de que se inicie o referido tratamento quinze
dias após o início do tratamento da TB, desde que não haja
contraindicações para tal. Não há recomendação do Ministério da
Saúde para o tratamento da hepatite C concomitante com o
tratamento da TB e HIV/AIDS.
Ainda sobre a hepatite C, sabe-se que a incidência na

294
população em geral é dez vezes maior e a mortalidade é quatro vezes
maior que o HIV, sendo a principal causadora de cirrose hepática e
carcinoma e principal demandante de transplante de fígado.
Considerando que um número significativo de pacientes com
tuberculose e HIV positivo são também portadores de hepatite C, a
investigação e o diagnóstico desse agravo passa a ser importante na
medida em que o tratamento da TB utiliza medicamentos com
importante potencial hepatotóxico. Essa mesma avaliação pode ser
feita para os pacientes alcoolistas que também podem evoluir para um
quadro de doença hepática.
Entre as comorbidades psiquiátricas ligadas ao uso de drogas
(ABEAD, 2006) e associadas à TB deve-se mencionar: hiperatividade
(33% em adultos utilizam mais álcool e maconha); transtornos de
ansiedade (23 a 70% com uso de álcool, especialmente nos quadros de
fobia e estresse pós-traumático); transtorno afetivo bipolar (30 a 70%,
e apresenta o maior risco em relação à comorbidades de uso de álcool
e outras drogas, e uso de álcool e cocaína para aumentar ou atenuar
sintomas da mania e depressão e ainda duas vezes maior o risco de
suicídio na fase depressiva); depressão (30 a 50% com alto risco de
suicídio bem maior do que na população em geral (60 a 120 X);
transtorno de personalidade (50% em borderline); demência alcoólica,
transtorno psicótico (47%) e transtorno alimentar (especificidades
femininas no tratamento).
O consenso no tratamento das toxicomanias, a partir de um
diagnóstico diferencial entre comorbidade psiquiátrica e abuso de
substância psicoativa, é a abordagem integrada, que tem como fio
condutor o Plano Terapêutico Singular. A integração da intervenção
inclui apoio psiquiátrico, psicoterápico, psicossocial, familiar,
medicamentoso, programas grupais psicoeducacionais e grupos
terapêuticos que trabalhem autoestima, corpo e gênero, entre outros
(ZALESKI, Marcos; LARANJEIRAS, Ronaldo Ramos; Marques, Ana Cecília
P.R.; RATTO, Lilian; ROMANO, Marcos et al, 2006, p. 144).
Acrescentamos à abordagem integral desenvolvida no HSP, os eixos da
educação e do trabalho e renda.

295
A realidade epidemiológica da tuberculose:

A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2012) dimensiona a


magnitude da tuberculose no mundo a partir dos seguintes dados: um
terço da população está infectada; há 5,8 milhões de casos notificados
em 2011; 80% dos casos em 22 países; 1 milhão de mortes por ano
(HIV negativo); 430 mil óbitos tuberculose (TB)/HIV; 630 mil casos de
MDR; 10 milhões de crianças órfãs como resultado da morte dos pais
por tuberculose.
Em 2014, o total de casos de TB foi de 7.000 casos, desses
5.000 foram casos novos no RS. Porto Alegre, com 1.470 casos novos
no período, é a 3ª capital do país com maior número de casos. Isto
contrasta com outros momentos, nos quais o RS foi referência no
controle da Tuberculose. É a 1ª causa de mortes dentre as doenças
infecciosas definidas dos pacientes com AIDS e a taxa de coinfecção
TB-HIV é o dobro do país (20%).
Para melhorar a adesão ao tratamento, com melhor índice de
cura e, consequentemente, a diminuição do aparecimento de cepas
resistentes, a OMS propôs o uso da estratégia do tratamento
diretamente observado (TDO) em 1999.
Os municípios prioritários para controle da tuberculose no RS
são 15 e neles encontram-se 65,9% dos casos novos, sendo que 10
deles localizam-se na região metropolitana (Alvorada, Cachoerinha,
Canoas, Guaíba, Gravataí, Novo Hamburgo, Porto Alegre, São
Leopoldo, Sapucaia do Sul e Viamão).
O Projeto Semear desenvolve-se no Hospital Sanatório
Partenon que interna, principalmente, pacientes oriundos desses
municípios prioritários.

A quem se destina o Projeto:

O projeto está voltado para pacientes internados do HSP, seus


familiares/cuidadores e trabalhadores do Hospital, bem como da rede
de saúde e intersetorial.

296
Em levantamento realizado nos prontuários da internação do
HSP, em 2012, (Serviço de Arquivo Médico e Estatística/SAME, 2013),
encontramos o seguinte panorama: 70% dos pacientes apresentavam
diagnóstico de transtornos mentais, prévio à internação, sendo que a
maioria associava-se ao uso problemático de substâncias psicoativas.
As consequências relatadas pelos pacientes são as mesmas descritas
em literatura: perda de vínculo familiar, abandono de emprego,
negligência com a saúde e outras situações de risco e violência.
Se o indivíduo é um sujeito e suas circunstâncias, não há como
implantar um projeto que não leve em consideração os familiares que
lhe servem de referência, bem como os profissionais implicados direta
ou indiretamente na linha de cuidado que prioriza o vínculo no
cotidiano de tratamento. Cabe salientar que muitos pacientes têm
seus vínculos familiares e sociais rompidos o que demanda parceria
com diversos pontos de apoio formais e informais da rede de saúde e
intersetorial.
Considerando que há, desde 2002, um setor de qualificação
profissional voltado para os trabalhadores e que desenvolve
capacitação a partir da demanda de cada setor ou da instituição como
um todo, buscou-se através do Semear potencializar o trabalho
desenvolvido por esse setor, agregando alternativas inovadoras dentro
de propostas conjuntas.

Preparando o terreno:

O Projeto Semear veio para somar e dar sequência às ações que


vinham sendo executadas no hospital, como a criação de fóruns de
discussão do PTI; implantação de Plano Terapêutico Singular (PTS)
como ferramenta de trabalho na internação; acréscimo de
profissionais em diversas áreas, alguns com experiência em saúde
mental e no cuidado com pessoas que fazem uso problemático de
substâncias psicoativas; investimento em parcerias com a equipe do
Centro de Referência em Redução de Danos da Escola de Saúde
Pública do Rio Grande do Sul e a equipe da Seção de Saúde Mental e

297
Neurológica da Secretaria de Saúde do Estado; saraus como
intervenção do Clube da Atenção Integral (CAI), cujo objetivo era
contribuir com o processo de atenção integral e de reabilitação
psicossocial por meio da mediação e compartilhamento de vivências e
experiências entre pacientes, trabalhadores e demais atores sociais,
bem como fomentar a formação em serviço através de estágios e
Residência Integrada em Saúde, com ênfase em pneumologia sanitária.

A Aprendizagem Significativa, Clínica Ampliada, Redução de Danos,


Educação Permanente em saúde, Trabalho e Geração de Renda:

Para situar a operacionalização e o desenvolvimento de cada


eixo do Projeto Semear, citaremos os respectivos enfoques teóricos e
metodológicos e as ações planejadas para sua execução.
A Aprendizagem Significativa, na perspectiva da educação,
entende que "o sentido do crescimento humano envolve além da
cognição, a percepção, a afetividade e a emoção" (MACÊDO, 2000, p.
53), em outras palavras, a subjetividade. Esta experiência "só pode ser
vivida se o processo ensino-aprendizagem for levado a efeito por uma
intenção pedagógica que possibilite um encontro entre o educador e o
educando" (ibid.), estendendo-se ao encontro entre os pares, no
sentido da ampliação das relações interpessoais e das trocas.
Portanto, a partir de

(...) uma prática pedagógica livre e sistemática,


ocorre uma dinâmica no sentido de o aluno (e em
nosso caso os pacientes) ir conhecendo-se a si
mesmo, escolher a própria direção e ter um
posicionamento crítico diante da realidade (...) em
um processo de construção de conhecimentos com
liberdade para desenvolver sua capacidade criadora
e transformadora da realidade social (Ibid).

Assim, também, a clínica ampliada compartilha com essa


abordagem uma vez que se propõe, ao trabalhar com pessoas e

298
coletivos, a considerar as singularidades, incorporando o subjetivo e o
social, sem desconsiderar a doença.
Quanto ao objetivo do trabalho, além de curar, reabilitar e
prevenir, também se engaja em apoiar o desenvolvimento da
autonomia dos sujeitos, de sua capacidade de pensar, agir e criar
novos modos de vida, novas soluções em um processo de construção
de cidadania. Em relação aos meios de trabalho, a clínica ampliada
tem exigido a diversificação do repertório de ações para lidar com
problemas sociais e subjetivos, com famílias, grupos e comunidades. E,
nessa perspectiva, a prática desta clínica envolve a construção de
relações baseadas no diálogo, na negociação, no compartilhamento de
saberes e poderes, no vínculo e na responsabilização e, em especial,
no trabalho em equipe e em rede (FIGUEIREDO, 2012).
A Clínica Ampliada é um compromisso radical e ético com os
usuários nos serviços de saúde e que busca auxílio intersetorial, pois
reconhece os limites dos saberes dos profissionais de saúde e das
tecnologias utilizadas. Exige uma reflexão diária acerca de seus valores
pessoais e sociais que interferem nas práticas cotidianas. Cabe à
Clinica Ampliada assumir a situação de doença como uma
possibilidade de transformação e de produção de vida ou seja, de
valorização das potencialidades da pessoa.
A Educação Permanente em Saúde, como um processo
constitutivo de formação em serviço que visa a responder de forma
qualificada às necessidades de atenção integral à saúde, através de
processo e prática interativa de construção/produção do
conhecimento, da saúde e da vida. Os processos estruturantes da
educação permanente em saúde implicam uma formação profissional
que invista no empowerment dos profissionais; no desenvolvimento
Institucional da gestão do conhecimento de forma horizontal e nos
processos de trabalho. Neste sentido, está inserida no espaço e no
cotidiano do trabalho como parte do trabalho: formar-se é trabalhar.
A Redução de Danos (RD) pode ser entendida como
metodologia, no sentido de methodos = caminhos, no plural e,
portanto, não é excludente a outras metodologias. A RD coloca na

299
centralidade do tratamento o sujeito e não a droga. Aqui, tratar
significa aumentar o grau de liberdade, de corresponsabilidade
daquele(a) que está se tratando. Implica no estabelecimento de
vínculos, de corresponsabilidade entre usuários, profissionais de uma
instituição e da rede e com os colegas de consumo, envolvendo mais
do que um somente nos caminhos a serem construídos na vida de
cada usuário(a), e “pelas muitas vidas que a ele(ela) se ligam e pelas
que nele(a) se expressam” (MS, 2003, p. 10), pois a saúde se afirma
em coletivos.
A Redução de Danos vem embasar este projeto, como diretriz
de trabalho, no sentido do reconhecimento de cada usuário(a) em
suas singularidades, traçando com ele (ela) estratégias singulares e
coletivas voltadas, não necessariamente para a abstinência como o
primeiro e único objetivo a ser alcançado, mas para a defesa de sua
vida, através do reconhecimento dos riscos, dos desejos que podem
sustentar um projeto e das possibilidades de realização em várias
dimensões dos modos de viver e trabalhar. A construção de
estratégias singulares e sociais contam com os recursos formais e
informais da rede e visam fortalecer fatores de proteção, a partir da
realidade e da complexidade dos contextos de vida e não a partir do ideal
difícil de ser alcançado, de uma sociedade livre das drogas.
Considerando os determinantes de saúde, o trabalho e a
geração de renda desempenham função significativa no cotidiano das
pessoas, em seus modos de vida e de inserção social, destacando-se
em um papel central na constituição da identidade (LACMAN;
GHIRARDI, 2002) dos usuários. Desta forma, o trabalho permite o
confronto entre o mundo externo e interno da pessoa, oferece-se
como palco de trocas e é mediador central da construção,
desenvolvimento e processo de constituição das subjetividades.
As atividades produtivas, de trabalho e geração de renda,
empreendimentos solidários e cooperativas sociais possibilitam de
forma prática e concreta a ampliação de estratégias da Rede de
Atenção Psicossocial – RAPS, no âmbito do Sistema Único de Saúde –
SUS, no que é cerne da Reabilitação Psicossocial.

300
A importância e os objetivos do Projeto Semear:

O projeto Semear teve como estratégia facilitar a reconstrução


de novos lugares sociais para os usuários, pela inserção no campo da
educação e saúde, do trabalho e renda, cultura e cidadania,
contribuindo para a adesão ao tratamento da tuberculose e
comorbidades. Estabeleceu como imprescindível favorecer a qualidade
do processo de tratamento e, para tanto, apostou na manutenção das
já existentes e implantação de novas iniciativas que fomentassem
ações de reabilitação psicossocial, de atenção integral à saúde do
usuário, criando condições para o aumento da adesão ao tratamento e
são de responsabilidade de uma equipe multidisciplinar do HSP, com
parcerias intersetoriais e com recursos humanos contratados com
verba do próprio projeto.
Sabe-se que a adesão ao tratamento é facilitada pelo vínculo
do usuário com a rede de recursos formais, mas, sobretudo, com a
rede informal – tecida pelo próprio usuário, a partir de suas
referências, vivenciadas em seu território, traçando uma linha
subjetiva de cuidado. Cabe aqui lembrar que a Linha de Cuidado
preconizada pela Política de Saúde Mental da Secretaria do Estado da
Saúde do Rio Grande do Sul é um dispositivo que se destina a
acompanhar o itinerário da pessoa em uma rede, de forma que faça
sentido para ela. Levou-se em conta essa linha de cuidado, uma vez
que apostou-se em uma maior autonomia dos pacientes, em um maior
engajamento no tratamento, propondo uma corresponsabilização
entre diferentes atores, e contando, sobretudo, com a colaboração do
próprio usuário.
Analisadores avaliativos e de monitoramento foram sendo
implantados, permitindo que suas produções tivessem visibilidade e
fossem compartilhadas pelos diversos setores da instituição e que,
assim, diferentes atores pudessem vir a se engajar nesse tipo de
proposta. As estratégias utilizadas para dar sustentabilidade às ações
no pós-projeto, possibilitaram que a filosofia do mesmo fosse

301
incorporada aos processos de trabalho e metas da instituição.

Eixo Educação:

As ações do Eixo Educação foram divididas em: educação


formal; educação em saúde; Inclusão digital e ações de Redução de
Danos (RD). As ações do campo educação formal foram direcionadas
exclusivamente aos pacientes. Parcerias interinstitucionais foram
firmadas, tais como com a Secretaria Estadual e Municipal da
Educação de Porto Alegre e Universidades.
Um dos focos desse processo foi a alfabetização, a partir de
uma abordagem inicial que constou de um levantamento de
necessidades, demandas e expectativas junto aos próprios usuários. A
estrutura do programa foi montada pela equipe, os temas trabalhados,
durante o processo de aprendizagem significativa, foram sugeridos
pelos participantes.
Outro foco dizia respeito à complementação escolar, ou seja,
processo de nivelamento e de certificação de escolaridade, com a
oferta de alfabetização de adultos, que teria por objetivo oferecer
oportunidade de resgate da cidadania e, consequente, preparação
para o trabalho e geração de renda e/ou continuação dos estudos
formais. Nesse aspecto não conseguimos encaminhar demanda formal
à Secretaria Estadual de Educação para trazer esta ação ao hospital e
fizemos uma experiência com o Programa Brasil Alfabetizado, voltado
à alfabetização, em parceria com a SMED (Secretaria Municipal de
Educação de Porto Alegre).
Essa ultima ação não se sustentou por falta de demanda no
HSP, já que a maioria dos pacientes tem primeiro grau incompleto. No
que diz respeito ao acompanhamento desta ações foram alocados
recursos humanos do quadro de servidores do HSP e estagiários.
A educação em saúde foi oferecida por profissional enfermeiro,
médico, psicólogo e terapeuta ocupacional, exclusivamente aos
pacientes, sob a modalidade de grupo de estudo semanal com
conteúdos referentes ao processo saúde-doença, tais como

302
tuberculose, HIV/Aids, hepatites virais, consumo prejudicial de álcool e
outras drogas, tabagismo e outros a partir das necessidades tanto de
pacientes quanto da equipe.
Nesse campo, a inclusão digital (ID), sendo um dos ramos do
eixo educação, carregou um sentido bem mais amplo, constituindo-se
em uma ferramenta para a vida e para um novo tempo, o da Cidadania
Digital. Essa proposta consistiu no 'espaço multimídia: tempo de arte',
inspirado no projeto didático “Galeria Virtual de Arte” (Nova Escola,
2011). A ação foi desenvolvida por três profissionais (psicólogo,
terapeuta ocupacional e técnico com experiência em informática e
arte).
As oficinas, voltadas aos pacientes, tiveram frequência semanal
e, foram integradas a outras ações, objetivando ampliar a autonomia e
o cuidado de si, estimulando o protagonismo terapêutico e a
corresponsabilização no tratamento.
Os encontros com familiares buscaram resgatar os laços
afetivos, a rede de apoio e trabalhar as responsabilidades
compartilhadas por meio do estabelecimento de um contrato
terapêutico. A participação foi multiprofissional e a frequência
semanal.
As Rodas de Conversa, direcionadas aos servidores,
oportunizaram vivências de educação permanente em saúde que
qualificaram as práticas e, consequentemente, os processos de
trabalho na rede acessada para o acompanhamento pós-alta dos
usuários do hospital. A frequência foi mensal, e foram inseridas nas
capacitações da enfermagem, que passou a reunir profissionais,
estagiários dos diferentes setores, residentes e matriciadores da rede
de saúde e intersetorial, quando possível, com planejamento,
monitoramento e avaliação do processo.
Outra ação no campo da educação em saúde, que dependerá
de uma parceria com profissionais capacitados e que estão nos
serviços municipais de saúde do nosso território é a Terapia
Comunitária (TC), voltada para pacientes e familiares e pode ser
utilizada, também, com servidores em parceria com a saúde do

303
servidor. É uma ferramenta de trabalho útil para abordar questões de
conflito no ambiente hospitalar, procurando promover um espaço
acolhedor e propositivo às problemáticas do cotidiano do convívio
entre servidores, e entre pacientes e pacientes e familiares.
As ações de Redução de Danos (RD) destinaram-se a três
públicos distintos: pacientes, familiares e/ou cuidadores e servidores.
Foram oferecidas no formato de oficinas, encontros e rodas de
conversa, facilitadas por equipe multiprofissional do HSP e contratada
pelo Projeto.
Acreditamos que a estratégia de RD, que estamos chamando de
Cuidado com as pessoas que consomem álcool e outras drogas, e que
trabalhamos a partir de Rodas de Conversa, siga contribuindo como
ação de educação permanente, para a sustentabilidade do projeto,
garantindo a continuidade das atividades propostas e a possibilidade
de invenção de outras, inserindo esta diretriz na pratica de diferentes
grupos desenvolvidos e nas abordagens individuais, tendo em vista
uma população prioritariamente envolvida com o consumo prejudicial
de álcool e drogas.

Eixo: Trabalho e Renda:

Esse eixo do projeto ofereceu oficinas profissionalizantes e


cursos de curta duração de preparação para o trabalho, ou seja,
aquelas que o sujeito aprendeu a confeccionar determinado objeto ou
a realizar determinada tarefa a fim de ter renda, bem como
possibilitar a inclusão social por meio do trabalho.
Segue-se buscando estabelecer parcerias com diferentes
instituições, tais como o SESC Comunidade, Banco Social, SENAI, Casa
do Artesão, SINE, Galpões de Reciclagem, entre outras. As áreas dos
cursos para os quais há interesse entre os pacientes são: informática,
estética, artesanato, escultura em madeira, corte e costura,
nutrição/culinária, jardinagem, construção civil, entre outras.
No início do projeto foi feita uma aproximação com a equipe
do projeto chamado INSERE, cujo eixo, CAPACITA, proporciona

304
inserção social por meio do trabalho. O projeto original contaria com o
apoio da Incubadora Tecnológica da UFRGS, mas não chegou a
efetivar-se. O Programa Somos Todos Porto Alegre, através do Centro
Administrativo Regional (CAR) do Partenon, da Governança Local, tem
aproximado alguns pacientes da realidade do programa, mas o acesso
tem sido difícil, assim como o acompanhamento no pós alta. Esse
programa depende do encaminhamento dos CRAS (Centro de
Referência da Assistência Social) nos locais para onde os pacientes se
alocam no pós-alta, e, do que os pacientes desejam, uma vez que nem
sempre, eles conseguem mudar sua condição de morador de rua,
dificultando o acesso a diferentes iniciativas e a manutenção do
cuidado.
Outra atividade deste eixo são as trocas solidárias no contexto
de gincanas ou festas e, também, quando favorecem usuários, que já
possuem habilidade na confecção de produtos artesanais, no sentido
de atender necessidades concretas de aquisição de produtos para si e
para familiares e amigos, gerando renda.

Eixo: Cultura;

As intervenções desse eixo destinaram-se a pacientes,


familiares e/ou cuidadores e servidores e buscaram sustentar o
processo de reabilitação psicossocial por meio da mediação de
vivências/experiências inovadoras, tanto no ambiente hospitalar,
quanto no território; proporcionaram um espaço/tempo de
compartilhamento entre pacientes, servidores do HSP e demais atores
sociais, e fomentaram o processo de educação permanente em saúde
e de formação em serviço, contribuindo para a qualificação da atenção
aos usuários do SUS.
Historicamente, desenvolvia-se no HSP, a partir da coordenação
de uma Terapeuta Ocupacional, uma intervenção denominada Clube
de Atenção Integral (CAI), cuja ação tinha uma interface importante
com a cultura. Os encontros seguem ocorrendo mensalmente, em
geral à noite, sob a modalidade de sarau.

305
A partir desse projeto, passamos a contar com parcerias como
a Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre - Projeto
Descentralização da Cultura, setores da sociedade civil (associações
comunitárias e organizações da sociedade civil), bem como o Clube de
Cinema de Porto Alegre, entre outras, a fim de trabalhar na realização
de oficinas de arte e cultura para pacientes, familiares e servidores, no
âmbito hospitalar.
Outra ação que se desdobrou desta parceria foi o Sabado
Cultural, com oficina de hip hop e seus quatro elementos que será
ofertado para a população do hospital e da coetividade através da
Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, viabilizada pelo
Orçamento Participativo.

Atividades de sustentabilidade do Projeto:

Entre as atividades para a sustentabilidade ao Projeto Semear


encontram-se as reuniões de equipe, que visam a dar sustentabilidade
e respaldo teórico, metodológico, avaliativo e relacional para as
pessoas envolvidas no Projeto e articulações necessárias.
A supervisão pedagógica, que visa ao acompanhamento do
processo de aprendizagem através da supervisão dos envolvidos nas
ações de educação formal, informal e de inclusão digital, seria
fundamental, mas não tem sido realizada dentro da instituição.
Outra forma de acompanhar as várias ações em
desenvolvimento é através dos indicadores do Plano Terapêutico
Institucional. Entre os indicadores selecionados, citamos: adesão,
número de pacientes que frequentam as diversas oficinas, parcerias
estabelecidas, vários momentos do PTI instalados, estratégias de
redução de danos inseridas nos Planos Terapêuticos Singulares, tipo
de alta, rede de apoio e proteção articulada na preparação para alta e
no acompanhamento pós-alta.

Considerações Finais:

306
O Projeto Semear visou fortalecer e impulsionar, através dos
seus eixos, o Plano Terapêutico Institucional em implantação no
hospital, entre esses: educação e saúde, trabalho e geração de renda,
cultura e cidadania, contribuindo de forma inequívoca para a
qualidade da atenção prestada.
Uma das principais potencialidades do Projeto Semear,
considerando o contexto social da população atendida, consistiu em
complementar as ações já oferecidas pelo hospital, com alternativas
que mobilizassem recursos pessoais e de rede, no sentido de diminuir
riscos e favorecer estratégias para a construção de projetos de vida
singulares. No âmbito ainda do trabalho são valorizadas tanto as
condições de preparação para o trabalho quanto à aprendizagem de
técnicas específicas que permitem a inclusão ao trabalho formal e
informal. Está no nosso horizonte ampliar as parcerias com incubadora
tecnológica, programas de inclusão pelo trabalho, qualificação
profissional gratuita e as diversas iniciativas de economia solidária.
Como fragilidade situamos a articulação com a rede que auxilie
nas várias dimensões da vida dos usuários. Entre as principais
demandas para articular com a rede, citamos: abrigamento, rede de
apoio formal e informal, tratamento às toxicomanias e redução de
danos através dos consultórios na rua e, trabalho/geração de renda.
Como dificuldade a ser superada caberia ajustar as demandas
de aquisição desse tipo de projeto com os requisitos e exigências do
Fundo Estadual de Saúde (FES) e da Central de Licitações (Celic), uma
vez que há um descompasso entre o que planejamos no projeto a ser
adquirido ou contratado e as inúmeras exigências e o tempo gasto no
processo do Projeto Semear dentro dos fluxos do Fundo Estadual da
Saúde. Isto é, constatamos, que a complexidade institucional é maior
do que as condições que se têm para agir nos fluxos dos processos de
compra, seja de equipamentos ou material de consumo, bem como
relativo aos editais de contratação de oficineiros.
Consideramos, ainda, entre os principais desafios: a baixa
adesão dos profissionais ao projeto PTI, o que dificulta a
sustentabilidade de diferentes ações do mesmo. Após definida a

307
proposta de cada oficineiro, um ou dois profissionais do HSP passavam
a acompanhar para qualificar-se e/ou aprender técnicas e
metodologias e, posteriormente, como multiplicador, dar sequência às
oficinas; o debate interdisciplinar ainda se dá de forma desordenada e
com pouca comunicação, o que reproduz a fragmentação e
desencontros, apesar dos movimentos de parcerias que têm se
espalhado pelo hospital.
Apesar da evidência de tais dificuldades e/ou fragilidades, a
equipe do Semear percebeu que a discussão e implementação desse
projeto favoreceu que ações semelhantes fossem desenvolvidas no
hospital, de forma permanente, fruto de um plano terapêutico
definido institucionalmente, no qual os eixos previstos no Semear
passaram a ser preocupação de muitos setores e profissionais,
durante o processo de reabilitação psicossocial dos pacientes, e que
essas ações foram sendo reconhecidas como meios a serem utilizados
para a adesão ao tratamento da tuberculose e comorbidades.
Para finalizar, constatou-se que a várias ações realizadas
mobilizaram diferentes dimensões, tais como orgânicas, subjetivas,
laborativas, educacionais e sociais, no sentido da integralidade. O
número significativo de pacientes e de servidores que se aproximaram
das ações e dos momentos de interação indicaram a qualidade dos
enlaces que se produziu. Além de qualificar as ações existentes, por
meio da integração interdisciplinar e da aquisição de equipamentos e
contratação de recursos humanos, foi possível, com este projeto,
ampliar a atenção à população vulnerável, internada neste
equipamento de saúde. Esse projeto gerou movimentos e
desacomodações importantes, tanto entre usuários quanto entre
profissionais e gestor, portanto tem servido como dispositivo de
mudanças institucionais, entre elas a construção de alternativas para
ampliar a adesão dos usuários ao tratamento da tuberculose e
comorbidades. As potencialidades apontaram para uma maior
integração, colaboração e responsabilidades compartilhadas dos
vários segmentos e setores da instituição e da rede intersetorial,

308
especialmente o comprometimento do próprio usuário, família
ampliada (23) e rede social.

Referências

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imagens da intimidade. [La terre et les reveries du repos, tradução de
Paulo Neves da Silva]. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

BERGEL, Fernando Skazufka and GOUVEIA, Nelson. Retornos


freqüentes como nova estratégia para adesão ao tratamento de
tuberculose. Rev. Saúde Pública [online]. 2005, vol.39, n.6
[cited 2014-06-03], pp. 898-905. Available from:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
89102005000600005&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0034-
8910. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102005000600005.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde.


Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de
recomendações para o controle da tuberculose no Brasil, Brasília:
Ministério da Saúde, 2011 (284 p.).

CHIRINOS, Narda Estela Calsin and MEIRELLES, Betina Hörner


Schlindwein. Fatores associados ao abandono do tratamento da
tuberculose: uma revisão integrativa. Texto contexto -
enferm. [online]. 2011, vol.20, n.3 [cited 2014-06-03], pp. 599-606.
Available from:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
07072011000300023&lng=en&nrm=iso>. ISSN 0104-
0707. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072011000300023.

23
Família ampliada não se restringe aos laços de sangue, e sim os laços afetivos com
todas as pessoas que servem de referência, constituindo rede social, de apoio e
proteção.

309
CONTE, Marta; SILVA, E.C.; LITVIN, R.; MORESCO, F. M.; PAVIM, B.O.;
TEIXEIRA, L.B. Desafios na implantação do Plano Terapêutico
Institucional no Hospital Sanatório Partenon: análises da pesquisa
PPSUS. In: CONTE, Marta (org.) Caiu na rede, mas não é peixe:
Vulnerabilidades Sociais e Desafios para a Integralidade. Porto Alegre:
Pacartes, 2015. ISBN 978-85-8437-018-4.

COSTA, G. S. Fatores associados ao abandono do tratamento da


tuberculose no Brasil. Trabalho de Conclusão de Curso Bacharelado
em Farmácia. Ministério da Educação/Secretaria de Educação
Profissional e Tecnológica/Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio de Janeiro/Campus Realengo, Rio de Janeiro, 2013.

FIGUEIREDO, Mariana Dorsa. Lembrete e sugestões para orientar a


prática da clínica ampliada e compartilhada. Material construído em
parceria com os alunos do “Curso de Especialização em Saúde da
Família: Atenção e Gestão do Cuidado na Atenção Básica”, oferecido
entre 2008 e 2009 pela Faculdade de Ciências Médicas/Unicamp para
profissionais da rede SUS-Campinas. Parte da tese de doutorado “A
construção de práticas ampliadas e compartilhadas em saúde: Apoio
Paidéia e formação”. 2012.

HOSPITAL SANATÓRIO PARTENON. Prontuários de 2012, Serviço de


Arquivo Médico e Estatística/SAME, 2013.

LACMAN, S; GHIRARDI, M. I. G. Pensando novas práticas em Terapia


Ocupacional, Saúde e trabalho. Rev. Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v.13,
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MACÊDO, Shirley Martins de. Psicologia Clínica e aprendizagem


significativa: relatando uma pesquisa fenomenológica colaborativa.
Psicologia em Estudo. v.5, n.2, p. 49-76, 2000.

310
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VIEIRA, Maria Aparecida e ARRUDA, Anna Lucia Gawlinski de. Produção
bibliográfica sobre adesão/não-adesão de pessoas ao tratamento de
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SINAN. Sistema de Informação de Agravos e de Notificação.


Disponível no site
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TEIXEIRA, Luciana Barcellos; PAVIM, Bibianna. Perfil das altas do


Hospital Sanatório Partenon, nos anos de 2012 e 2013. Porto
Alegre/RS: Pesquisa PPSUS/Hospital Sanatório Partenon, 2015.

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a instituição da estratégia de tratamento supervisionado no município
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P.R.; RATTO, Lilian; ROMANO, Marcos et al. Diretrizes da Associação
Brasileira de Álcool e outras Drogas (ABEAD) para o diagnóstico e
tratamento de comorbidades psiquiátricas e dependência de álcool e
outras substâncias. Rev. Bras. Psiquiatr., 2006; 28 (2): 142-8.

311
312
Capitulo XV

Oficinas de Escrita: narração e produção de


cuidados no contexto da rede de atenção ao uso
prejudicial de drogas
Rita Pereira Barboza, Marília Silveira,
Tanise Kettermann Fick, Analice de Lima Palombini

Este escrito narra as experiências metodológicas vividas a


partir das Oficinas de Escrita realizadas nas duas edições do “Curso de
Atualização em gerenciamento de casos e reinserção social de
usuários de crack e outras drogas”, promovido, em 2012, pela Rede
Multicêntrica para educação permanente e apoio institucional às
políticas de cuidado aos usos e abusos de drogas. O narrar, tanto na
proposta da oficina quanto neste texto, pretende produzir outros
olhares sobre a experiência vivida, dando a ver suas potências e
amplitude. Nossa escolha de escrever aposta também em disseminar,
ao modo como nos oferta Despret:

(...) não ser nem o mestre, nem o único autor, mas


um vetor de disseminação e de memória daquilo
que pede para ser preservado no ser. (...) aprender
a fazer memória com aquilo que aprendemos, ao
mesmo tempo, aceitar de vê-lo desaparecer. E
pensá-lo (DESPRET, 2011, não publicado).

A proposta dos cursos da Rede Multicêntrica surge a partir do


edital 002/2010 da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do

313
Ministério da Justiça e tem como objetivo a educação permanente na
área de drogas voltada para trabalhadores da saúde e assistência
social e outros serviços de acolhimento e cuidado a pessoas que usam
drogas dos municípios da 1ª, 2ª e 18ª Coordenadoria Regional de
Saúde de Rio Grande do Sul. Conforme o edital foram desenvolvidos
quatro cursos. O curso do qual nos ocupamos era voltado para
técnicos trabalhadores do SUS e do SUAS e teve duas edições. Em
ambas as edições, realizamos uma oficina de escrita, com duração de
três horas e cerca de trinta participantes a cada vez. A primeira oficina
aconteceu em Porto Alegre, e a segunda em Canoas.
Apesar da proposição do edital apresentar um caráter mais
vertical de capacitação e informação para os cursos, a Rede
Multicêntrica tomou como desafio desenvolver as atividades de
maneira horizontal, apostando na implicação dos alunos e em sua
potência de problematizar as suas práticas para construir outros
olhares sobre o cuidado de pessoas que usam drogas. Os cursos da
Rede Multicêntrica se caracterizaram pela metodologia baseada na
Redução de Danos, paradigma também da ética e da estratégia de
cuidado propostas, na perspectiva do trabalho em Rede.
Cabe ressaltar que o exercício de oficinas de escrita já
acompanhava o grupo de oficineiras, aqui autoras, em uma trajetória
anterior. Marília, psicóloga, na época dos cursos desenvolvia seu
mestrado em Psicologia Social e Institucional na Ufrgs com dissertação
na área da escrita e clínica, tendo vivenciado experiências de
coordenação de oficinas de escrita com alunos do curso de psicologia
e trabalhadores da Atenção Básica de Novo Hamburgo (RS) (SILVEIRA,
2010; 2013). Já Rita e Tanise, também psicólogas, haviam participado
de um projeto de pesquisa e extensão de oficinas de escrita com
trabalhadores dos Serviços Residenciais Terapêuticos Morada São
Pedro e Morada Viamão no período de 2008 a 2010 (PALOMBINI;
BARBOZA; FICK; BINKOWSKI, 2010).
Para as três oficineiras o percurso em psicologia foi
acompanhado por incursões na dança, teatro e psicodrama. Em 2011,
o trio desenvolveu oficinas de escrita junto à Escola de Supervisores

314
Clínico-institucionais da Rede de Atenção em Saúde Mental, Álcool e
outras Drogas, vinculada à Escola de Saúde Pública do Rio Grande do
Sul (ESP/RS), experiência que trouxe contribuições e modificações
importantes na sua metodologia de trabalho. Acompanhando esses
trabalhos, seja como coordenadora e integrante da equipe executora
do projeto de pesquisa e extensão, orientadora de mestrado ou ainda
como supervisora, esteve a quarta autora desse texto, Analice
Palombini – docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Escolhemos narrar neste texto alguns fragmentos do percurso
metodológico de nossa oficina nas duas edições da Rede Multicêntrica
e os conceitos/autores que inspiram nossa prática. Para isso
tomaremos o roteiro que criamos para as oficinas como fio condutor
desta escrita, de modo a convidar o leitor a se aproximar dessa
construção e de algumas reflexões acerca da experiência.

Apresentação da Oficina:

Uma oficina nunca se repete nem é antecipável. Ainda que tenha


um roteiro pré-estabelecido, ela acontece de acordo com a
singularidade de cada grupo. Nossa proposta de oficina pressupunha
um fazer artesanal e coletivo, tendo como condição a participação
ativa e implicada de cada um de seus atores – encontrava-se afinada,
portanto, com a direção da metodologia do curso, que pretendia
desafiar as relações de saber e poder provocando os alunos a
construírem o seu trajeto de conhecimento.
O primeiro momento da oficina consistia em nossa apresentação
como oficineiras e uma contratação essencial para a atividade que
desenvolvíamos: a partir de uma conversa sobre a diferença entre
aula e oficina, estabelecíamos com todos interessados o acordo de
participar ativamente da proposta. Contrato feito, cada um
apresentava-se e já aquecia a narração lançando ao grupo uma
palavra que lhe remetesse ao trabalho com pessoas que fazem uso
prejudicial de drogas.

315
Esses momentos, em ambas as turmas, se caracterizaram por
estranhamento e desacomodação dos grupos, desde a tarefa de
organizarem-se em um círculo para que todos pudessem enxergar-se,
até a apresentação de seu nome e uma palavra. Essa desacomodação
é parte importante no processo da oficina que pretende um
deslocamento também de posições subjetivas e de discursos sobre
trabalho, cuidado, drogas, entre outras temáticas, sobretudo para
produzir o que chamamos de cuidado de si – conceito que
desenvolveremos no decorrer dessa narração (FOUCAULT, 2004).

Resgatar o corpo para narrar histórias:

No caminho de nossos oficinares, ainda antes da Rede


Multicêntrica, descobrimos a potência do corpo para “torcer” o tempo
(BERGSON, 2006). Produzir outro estado de relação dos participantes
com a proposta da oficina era algo que marcava a entrada no trabalho
após a conversa inicial.
Para os grupos da Rede, nesse momento, o convite era para
fechar os olhos – quem não quisesse, podia apenas relaxar os olhos.
Alguns iam deitando-se sobre a cadeira a fim de olhar para o teto,
outros encontravam nas paredes uma direção para o seu olhar, outros
ainda fechavam os olhos, e o burburinho da sala ia acalmando. A partir
daí, o exercício era dar atenção para o próprio corpo: “que partes do
seu corpo estão apoiadas na cadeira? No chão?”, “como está sua
respiração?”. Essas eram algumas perguntas de que nos servíamos
para guiar o exercício de percepção de si naquele instante, apostando
que aqueles corpos guardavam histórias. Uma espécie de preparo, de
saída da rotina apressada dos serviços, o habitar de outro tempo – que
não era parado, mas ofertava outro ritmo, uma certa lentidão.
Algo importante neste momento, inspirado no psicodrama
argentino (FERNÁNDEZ, 2009): uma de nós guiava o exercício falando
pausadamente, sem deixar em meio ao silêncio as pessoas de olhos
fechados, ofertando um fio de condução que permitia um conforto,
uma direção e não apenas o largar-se na escuridão de cada um. Para

316
que nós também não nos perdêssemos, escrevemos um roteiro que
mantínhamos à mão, caso as palavras nos faltassem. Imprimíamos,
assim, um ritmo semelhante ao da contação de histórias ao desenrolar
da atividade. Um exercício de respiração era evocado também, uma
pequena sequencia de respirações profundas a fim de alterar o estado
daqueles corpos:

(...) Agora experimentem respirar um pouco mais


profundamente e deixem que o corpo faça
pequenos movimentos exigidos pela respiração. O
ar ocupa espaço em nós, então, quando
aumentamos o volume de ar que entra e sai do
nosso corpo, é preciso fazer pequenos ajustes para
permitir que o ar entre. Na expiração, o corpo
relaxa, mas não cai. Tentaremos manter o espaço
conquistado na inspiração.
Nesse exercício de encher e esvaziar o corpo,
vamos abrindo um espaço que pode ser preenchido
com a criação. Nós estamos buscando um estado
criador de vasos comunicantes entre o corpo e o
pensamento, um estado de atenção capaz de nos
manter abertos para as demandas que podem
surgir do corpo (trecho de nosso roteiro).

Um corpo que não é mera organização, mero organismo, mero


conjunto de órgãos, contra os quais Artaud (1947) tanto guerreara –
guerra não aos órgãos, explicam Deleuze e Guattari (1976), mas ao
organismo, a essa organização imutável e surda. Guerreamos com
Artaud na direção de escutar esses trabalhadores, para além do
conjunto de órgãos. O trabalho com o usuário de drogas é um trabalho
tenso, um embate constante com a diferença, um embate que
provoca turbulências no corpo do trabalhador. E o trabalhador guarda
as marcas desse embate, no silêncio, no choro contido, na dúvida, no
não saber onde nem com quem partilhar essas sensações.
Nossa oficina teve esta proposta de encontro com o corpo,
sustentado também no conceito de corpo afetivo (ROLNIK, 1989,
317
1993). Suely Rolnik (1989) diz que um corpo sensível ou afetivo pode
ser produzido na medida em que é afetado e se permite modificar
pelos afectos. Há um corpo presente que vive e sente a passagem das
intensidades – um mal-estar, uma euforia... – às vezes sem conseguir
nomeá-la. O corpo, por estar sensível às passagens dos afectos,
modifica-se neste processo. Daniel Lins (2010) faz uma leitura que
distingue os dois termos, afecto e afeto:

(...) afecto é da ordem do desejo, ao qual nada


falta: nem falta nem excesso, nem faltada falta, é o
conatus de Espinosa. Afeto é da ordem do trauma,
da falta, da demanda constante de amor, é uma
produção psicológica de um sujeito atrelado à
árvore, à origem, à estrutura, ao começo e ao fim. É
o sujeito linear por excelência (LINS, 2010, p. 58).

A produção desse corpo está diretamente relacionada à


produção de subjetividade: um corpo que, do afeto, aproveita o
sentido, para produzir potência, afecção... um corpo que não paralisa
diante dessa experiência. Procuramos, nesses encontros, provocar a
produção desse corpo afectivo, sabendo das limitações que uma
oficina de três horas de duração nos impõe. De todo modo, nosso
objetivo era provocar, desacomodar... Então, dizíamos:

(...) nosso corpo não é feito somente de órgãos, é


feito também de memórias, de histórias, de
desejos, de hábitos, valores, erros e acertos,
alegrias, tristezas. É no corpo que nossos afetos se
atam e de repente se exprimem, mas nele também
os afetos se desatam, entram em luta, apagam-se
uns aos outros e continuam seu insuperável
conflito. O corpo não para, mesmo que pareça em
repouso, tudo no corpo se desloca. E, se sentimos
um cheiro, ou escutamos uma música, olhamos
uma fotografia, esses eventos... (trecho de nosso
roteiro).

318
Apostávamos na experiência que opera microscopicamente.
Queríamos conexão com um estado de presença capaz de perceber
que o movimento continua em silêncio no fundo dos corpos. Esse
modo de perceber o mundo, por alguns instantes, pelos sentidos do
corpo abre passagem. Corpos de passagem para sensações,
sentimentos que ainda não foram classificados, cheiros, cores, formas,
vozes: é com isso que entramos numa cena.

(...) Vamos focar agora numa dessas sensações,


num cheiro, num som, numa lembrança afetiva, de
um momento em que estávamos envolvidos no
contexto de trabalho com o uso e abuso de
substâncias psicoativas. Que sensação marcou
vocês nesse campo? Que marcas o corpo de vocês
traz? O que essas marcas (uma tensão, uma
sensação, um incômodo...) fazem vocês
lembrarem? (trecho de nosso roteiro).

Essas marcas são afectivas, produzem sentidos em múltiplas


direções, seja para sua parte “significativa – sentidos do texto –,
imagens veiculando referências ao mundo” (LINS, 2010, p. 67), seja
para aquilo que não é “diretamente representativo: ritmo,
sonoridades, visualização imaginária (...)” (idem p. 57). Os afectos
provocam o corpo que já

(...) não é mais o obstáculo que separa o


pensamento de si mesmo, aquilo que ele deve
superar para conseguir pensar, mas aquilo em que
ele “mergulha” ou “deve mergulhar” para atingir a
vida. (...) [Deleuze, (1998)] afirma que o corpo força
a pensar, e força a pensar o que escapa ao
pensamento. O pensar se dá sob a intrusão de um
lado de fora que aprofunda o intervalo e nos faz
mergulhar num interstício entre ver e falar
(LAZZAROTTO, 2009, p.23).

319
Entre ver e falar, guardamos memórias, sentidos, provocados a
ganhar contorno aqui, pela escrita.

Entrar na cena: escrever

(...) Agora, “possuídos” desses afetos, busquem, a


partir dessa memória do corpo, alguma cena de
trabalho que se conecte com essa sensação que
vocês evocaram neste instante...
Segurem a primeira cena que vier e entrem nela,
vejam quem está ali, quais as sensações, sons,
cheiros que pairam no ar...
Com quem vocês estão? Que lugar é esse? O que
está acontecendo? (trecho de nosso roteiro).

Provocávamos os participantes a encontrar uma cena que os


tivesse marcado, inquietado, que os tivesse colocado em conflito com
as coisas que haviam estudado ou em que acreditavam para que,
então, ao abrir os olhos, encontrassem no papel em branco um lugar
onde verter a cena

(...) Tendo montado então imaginariamente a cena


e os elementos que a compõem, junto com todas
as sensações que vocês lembraram dela, agora
podem ir abrindo os olhos e, com as sensações
presentes em vocês, experimentem NARRAR a cena
na folha que está já na frente de vocês. Narrar no
sentido de contar para todos nós aqui presentes o
que se passou na cena que vocês lembraram
(trecho de nosso roteiro).

Escrever para cuidar de si:

Entendemos que escrever sobre si e sobre o seu trabalho para os


outros é escrever também para si, num processo de construção de

320
subjetividade como trabalhador. Quando propomos que escrevam
uma cena, não tratamos, pois, de escrever um diário íntimo, mas de
passar, através de uma história pessoal, algo que toca outras pessoas.

(...) Foucault não emprega a palavra sujeito como


pessoa ou forma de identidade, mas os termos
“subjetivação”, no sentido de processo, e “Si”, no
sentido de relação (relação a si). (...) Trata-se de
uma relação da força consigo (ao passo que o poder
era a relação da força com outras forças), trata-se
de uma “dobra” da força. Segundo a maneira de
dobrar a linha de força, trata-se da constituição de
modos de existência, ou da invenção de
possibilidades de vida que também dizem respeito
à morte, a nossas relações com a morte: não a
existência como sujeito, mas como obra de arte
(DELEUZE, 1992, p.116).

Uma obra de arte feita no lapidar das palavras: Foucault situa a


escrita como uma das técnicas próprias ao cuidado de si. É assim que,
no contexto de nossa oficina, entendemos o exercício da escrita
referente à produção de narrativas como fortemente concernido à
ideia de cuidado (cuidado de si, cuidado dos outros).
Em 1983, no texto “A escrita de si”, Foucault conta que na
história greco-romana a escrita era tratada como exercício para
aprender a arte de viver. A leitura como meditação permitia a
elaboração e assimilação dos discursos operando na transformação da
verdade em “ethos”, ou seja, em instrumento de ação para viver em
sociedade. Esta prática, denominada “etopoiética” aparece de duas
formas: os “Hypomnêmata”e a correspondência.
O primeiro formato define-se por anotações que buscam a
complementaridade entre leitura e escrita para um exercício de “bem
viver”. Consiste em uma “memória material das coisas lidas, ouvidas
ou pensadas”, (FOUCAULT, 2004), com o objetivo de servir de
instrumento para meditação e releitura posterior, seja para

321
elaboração de textos mais sistemáticos ou para apropriação de ideias.
A noção de memória aqui remete à subjetivação de um discurso e não
a uma simples enumeração de lembranças. A finalidade é a
constituição de si sem a necessidade de realizar descobertas, inventar
ideias novas, mas captando e compreendendo aquilo que já foi dito e
escrito. Indispensável é, para a escritura, a prática de leitura, pois a
ajuda dos outros é necessária para se extrair princípios racionais de
condução de vida.
Já as correspondências funcionavam como um exercício
meditativo compartilhado, importando mais a ação de registrar e
dividir do que o conteúdo em si dos escritos, que variavam de
conselhos a anotações e notícias cotidianas da vida dos remetentes. A
carta possui o poder de repousar os olhos sobre o destinatário, ao
mesmo tempo em que desnuda o autor numa prática de cumplicidade
e generosidade.
O que temos nessas práticas etopoiéticas é uma profunda
ligação entre teoria e prática – a escrita servindo para a ação cotidiana
e a memória tendo importância como um livro aberto o qual seria
imprescindível consultar antes de planejar algo para o futuro.
Escrever, portanto, vai além da função de registro para ocupar a
função de experiência, de exercício, no qual se combina o já-dito com
a singularidade do sujeito e da circunstância. Sendo um princípio de
ação, a escrita passa à dimensão de corpo vivo.
Assim, trabalhando com uma escrita que se aproxima daquilo
que Foucault chama de Escrita de si, visamos à transformação da
verdade em éthos, ou seja, buscamos operar mudanças nas ações. A
escrita é o dispositivo que nos leva a pensar sobre nossas práticas. No
deslocamento do sujeito com relação ao que ele é por efeito do
pensamento, a escrita e a leitura tornam-se elementos de um
“cuidado de si”. Podemos chamar dispositivo, no sentido de promover
o disparo de uma cadeia de processos que atinge a cada integrante de
uma maneira distinta, própria.
Escrever desencadeia um processo de atenção em nós. O que
passa? Que caminhos isso faz? Como nos toca? Que relação se

322
estabelece? Que marca deixa? Escrever é registrar, é dar corpo ao que
se experimenta no universo das sensações. Enquanto escrevemos,
damos pausa, que não está congelada; pelo contrário, é o momento
em que o corpo se expande no instante – instante em que se detém
para se perceber, em que se respira, abre-se, deixa-se existir, sem
querer ser isso ou aquilo.
Buscamos pensar a escrita como agenciamento, um encontro
com a cena vivida e não uma representação dela. Não buscamos que a
cena seja “reconstruída”. A cena rememorada carrega uma versão do
acontecido (cheia de buracos, de lapsos de memória), e nela a escrita
encontra seus limites. Buscamos, antes, que a cena possa ser
inventada ou desenvolvida, no sentido proposto por Naffah Neto:

(...) Des-envolvimento significa aqui exatamente o


que a origem etimológica explicita, ou seja, des-
enredamento, diferenciação; portanto, nada que
tem a ver com a ideia de evolução ou progresso, no
sentido de uma direção pré-determinada ou de
uma sequencia de configurações. A vida doente é a
vida enredada por valores que a intoxicam,
obstruem, empobrecem, necessitando des-
envolvimento, soltura, liberdade, para recuperar a
sua potência criadora e produzir novas formas
(NAFFAH-NETO, 1994 p. 23).

A tarefa de escrever sobre o trabalho também ajuda a des-


envolver as tramas dos encontros, colocar no papel a raiva e a
angústia que muitas vezes ficam em nós, produzindo uma distância
que alivia e permite pensar.

Compartilhar: impasses na entrega dos textos

Após o exercício de transformar algum resto de memória na


escrita de uma narrativa, nossa proposta era compartilhar essa
produção. De acordo com Benjamin (1994), uma história vivida só tem

323
o status de experiência a partir do momento em que pode ser
compartilhada com outros. A vivência é solitária, a experiência é
coletiva. Interessa compartilhar a história na medida em que ela traz
elementos que transformam as histórias individuais e legitimam o que
se viveu. Para isso, sentimos a necessidade de preparar o corpo para
abrir-se, para escutar e acompanhar a leitura do texto do outro.
Propusemos um exercício com o objetivo de facilitar nosso corpo a ser
acompanhante e acompanhado – seguir-nos no compartilhamento dos
textos construídos. Tentamos tornar os participantes do grupo
sensíveis ao silêncio e à comunicação que ocorre em uma linguagem
sem as palavras.
Nossa proposta era caminhar livremente pela sala. E nessa
caminhada buscar um estado de prontidão, um estado de jogo.
Tínhamos a intenção de trazer a atenção para sentir como está nosso
corpo: como estamos respirando, se temos alguma tensão, peso,
resistência. Como meu corpo pisa o chão? E como se desloca?
Aproveitamos para observar que essa caminhada não precisava ser
circular, temos muitas opções de trajetos a fazer. Vamos aos poucos
fabricando a energia de um grupo que caminha livremente pela sala.
No primeiro encontro de oficina de escrita da Rede, depois que
os participantes escreviam os textos, estes eram recolhidos e logo
depois entregues de forma aleatória. Tínhamos a intenção de produzir
um gesto de desprendimento do autor em relação ao seu texto. Dessa
forma o escrito poderia ser lançado a outros olhares e interpretações.,
Percebemos, no entanto, que muitos participantes mostravam-se
angustiados quando escutavam seu texto lido por alguém. Alguns se
aproximavam e ofereciam-se para decifrar a letra, outros estavam
afoitos para traduzir o que haviam escrito e, não raro, tínhamos longas
explicações que extrapolavam o texto. Então, para a oficina da
segunda edição do curso, decidimos dar mais atenção ao momento de
separar o autor do texto. Trabalhamos no sentido de criar condições
de fazer a entrega, deixar o texto ir e dizer o que ele tem a dizer,
sozinho, sem nenhuma explicação. Pensamos que a caminhada
poderia acontecer com o texto em mãos; conectamos ao exercício da

324
caminhada a tarefa de perceber o estado em que se encontravam
depois de escrever cada um seu texto; e propusemos que esse estado
pudesse ir-se junto com o texto, entregue a um colega.
Durante a caminhada, pedimos que os participantes olhassem
os colegas e escolhessem para quem gostariam de entregar o seu
texto. A única regra era que o escolhido quisesse também partilhar
seu texto com essa pessoa. Teria que ser uma escolha recíproca.
Ficariam algum tempo se olhando e se escolhendo. Quando
percebessem que haviam encontrado a pessoa, deveriam passar a
andar juntos, lado a lado (ainda sem entregar o texto), para ganhar
confiança um no outro. Confiança é algo que se constrói num
processo, não se dá logo de cara. Nesse momento, não havia nada a
ser dito, nada a explicar, os participantes deveriam escolher o colega
e, de forma silenciosa, construir uma relação de confiança para a
entrega do seu texto. Um ritmo era criado, um acompanhar e ser
acompanhado que promovia uma atmosfera de cumplicidade. Até a
hora em que se tornasse possível fazer a troca dos textos.
Ao receber o novo texto, os participantes recebiam uma ideia
nova e deviam seguir caminhando com essa ideia nova. Tomavam
contato com ela, que podia ser uma ideia estranha ou uma ideia com a
qual se reconheciam. Cada oficineira reunia-se com aproximadamente
oito duplas e propunha a leitura silenciosa dos textos recebidos. Os
participantes escolhiam então o trecho que mais os havia marcado
para tentar compor, a partir dessas escolhas, um texto coletivo a ser
construído e narrado ali, naquele momento. Alguém que se sentisse à
vontade iniciava a leitura do seu trecho, e os demais iam percebendo
em que momento o seu texto escolhido se encaixava na narrativa
coletiva. Essa nova narrativa coletiva era lida ao sabor do momento,
não ganhava registro escrito no papel, mas se inscrevia na experiência
de cada pequeno grupo. Essa tentativa de deixar a experiência falar
por si se aproxima daquilo que Foucault (2004) denomina de
apagamento ou morte do autor. Foucault evoca Samuel Beckett
quando este diz: "Que importa quem fala, alguém disse, que importa
quem fala". Assim, para além de uma autoria individual, os grupos da

325
Rede puderam partilhar uma experiência coletiva, produzida no
encontro inesperado de fragmentos de suas escritas.
Após a leitura e a partilha dessa narrativa coletiva,
promovíamos uma conversa nos pequenos grupos sobre o texto
coletivo e as impressões que causavam – se perpassava o cotidiano de
todos, se dizia algo de si ou se era algo distante.

Finalizar:

Ao final do trabalho nos pequenos grupos, abrimos uma roda


para fazer passar pelo grande grupo os afetos do encontro. Neste
momento também conversamos sobre os autores que nos inspiraram
nessa produção, e que, aqui, optamos por fazer aparecer ao longo do
texto. As palavras ditas no início pelos participantes eram lembradas e
se encontravam com as sensações advindas da experiência da oficina.
Alguns se surpreendiam por encontrar na narrativa do outro algo que
parecia ser só seu. Descobrir a prática do outro, aproximar-se do
sofrimento e da dificuldade alheia eram temas que apareciam nessa
conversa final. Era algo importante também do ponto de vista político,
posto que o curso da Rede reunia os diversos serviços de um mesmo
município, produzindo essa escuta entre os profissionais que, às vezes,
não tinha outro lugar para acontecer.
Que marcas esse trabalho deixou? Que construções possíveis?
Provocamos aqui uma aproximação com o que Foucault desenvolve
em seu texto, “A vida dos homens infames”, de 1977. Este escrito
reúne fragmentos de discursos provenientes de arquivos de polícia, de
petições ao rei e das “lettres de cachet”¸ na França, no período de
1660-1760 aproximadamente. O que esses fragmentos têm em
comum é o encontro do discurso popular, sem voz, com o poder. São
cartas das quais a população se servia para comunicar-se com o rei ou
outras instâncias de poder e denunciar as mazelas do seu cotidiano,
buscando punir sujeitos considerados desajustados para o convívio. A
linguagem viva do dia-a-dia confunde-se com formas pomposas,
tornando único o discurso presente nestas cartas. Assim como as

326
cartas julgam e condenam, o encontro com o poder dá luz a essas
vidas infames, marcando seu lugar na história. Ao mesmo tempo, o
nome do autor não é categorizado como nada além do próprio rosto
da infâmia. As palavras são utilizadas como instrumento direto de
interferência na realidade. A linguagem toma vida a partir das relações
de poder.
Assim como nas lettres de cachet, na oficina de escrita
promovemos um encontro de discursos, dando visibilidade àquilo que
são as histórias comuns dos nossos homens infames – usuários de
drogas, seus familiares e comunidade – envolvidos na rede de uso,
abuso de drogas e atenção às suas vulnerabilidades e necessidades.
Fragmentos de histórias, dores, dificuldades, sensação de impotência
e fracasso, alegrias, que, por vezes, o trabalho produziu nos
participantes puderam aparecer. Eram partilhadas e reconhecidas pela
escuta-testemunho do grupo. Testemunha, segundo Gagnebin (2006)
é aquele que não vai embora, que escuta a narrativa insuportável do
outro e aceita suas palavras.
Diante do caos que permeia a experiência de cuidado às
pessoas que fazem uso prejudicial de drogas, faz-se necessário a
possibilidade de sustentar o afeto e o incômodo que acompanham as
narrativas. Assim entendemos a função da nossa oficina de escrita
com esses grupos. Como testemunha do que é quase inenarrável,
como insistência em fazer falar e fazer ouvir os ecos de uma história
que tende a ser apagada pela ansiedade de acomodar e produzir.
Dessa maneira percebemos uma aproximação com a figura do Anjo da
História que nos é apresentada por Benjamin,

(...) Há um quadro de Klee intitulado Angelus


Novus. Representa um anjo que parece preparar-se
para se afastar de qualquer coisa que olha
fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca
escancarada e as asas abertas. O anjo da história
deve ter este aspecto. Voltou o rosto para o
passado. A cadeia de factos que aparece diante dos
nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim,

327
que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e
lhes lança aos pés. Ele gostaria de parar para
acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus
fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do
paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas
suas asas, e que é tão forte que o anjo já as não
consegue fechar. Este vendaval arrasta-o
imparavelmente (?, ver se esta palavra está
correta) para o futuro, a que ele volta costas,
enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até
ao céu. Aquilo a que chamamos o progresso é este
vendaval (BENJAMIN, 1994, p. 226).

Nosso texto sopra fagulhas de um modo de produzir cuidado


em saúde mental. Nossa oficina, assim como este escrito, pretende
apresentar a história como um relâmpago. Algo que pode ser trazido à
luz e que pode ser novamente amontoado pelo “vento do progresso”
de Walter Benjamin. Algo a ser soterrado nas ruínas da produção
capitalista ou tomado como impulso a um novo olhar e um novo fazer
nas práticas cotidianas de cuidado, que precisará ser trabalhado em
sua constante construção e desconstrução.

Referências:

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 7.ed. São Paulo:


Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas I).

__________________. Sobre o conceito de história. In: _______.


Magia e técnica, arte e política. 7. ed. São Paulo: Brasiliense,1994.
(Obras Escolhidas I)

BERGSON, Henri. O Pensamento e o Movente. São Paulo: Martins


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Rio de Janeiro: Imago, 1976.

DESPRET, V. Experimentar a disseminação. Não publicado, 2011.

FERNÁNDEZ, Alicia. Psicopedagogia em psicodrama: habitando el


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________. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979

__________________. O que é um autor? Lisboa: Vega/Passagens,


1992.

__________________. A vida dos homens infames (1977). In: O que é


um autor?Lisboa: Passagens. 1992, pp. 89-128.

GAGNEBIN, J. M.. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Ed. 34,


2006.

LAZZAROTTO, G. Pragmática de uma Língua Menor na Formação em


Psicologia: um diário coletivo e políticas juvenis. Tese de Doutorado.
Programa de Pós-graduação em Educação. Universidade Federal do
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fundam., São Paulo, v. 13, n. 2, June 2010 . Disponível em
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contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.

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ético/estético/política no trabalho acadêmico. Cadernos de
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SILVEIRA, M. Escritas de si, escritas do mundo: um olhar clínico em


direção à escrita. Monografia de Conclusão de Curso. Curso de
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____________. Vozes no Corpo, territórios na mão: loucura, corpo e


escrita no PesquisarCOM. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-
graduação em Psicologia Social e Institucional. Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, 2013.

330
Capitulo XVI

Circulação e controle: ambivalências das redes nas


cidades de Porto Alegre, Brasil, e Amsterdam,
Holanda.
Rafaela de Quadros Rigoni

O campo das políticas sobre drogas é multidisciplinar e a


colaboração entre trabalhadores de diferentes áreas é considerada
importante para a efetivação e sucesso das políticas. Para além da
construção de um sistema integral através de documentos oficiais e
diretrizes para guiar as políticas, o papel dos trabalhadores da ponta é
fundamental. As propostas teóricas que embasam este estudo trazem
um entendimento diferenciado da análise das políticas publicas e do
papel do trabalhador na construção destas políticas. Entende-se a
formulação e aplicação das políticas como processo. Tanto a politica
no papel, quanto a política cotidiana (da prática), passam pela
negociação de significados, objetivos e interesses entre diferentes
atores.
A análise das políticas públicas, portanto, deve considerar
como as negociações entre os diferentes atores se constrói no
cotidiano, ou seja, como ocorre o processo da politica (Colebatch,
2004). Neste contexto, os trabalhadores da “ponta” assumem um
papel fundamental enquanto realizam o seu trabalho diário. Mais do
que alguém que simplesmente reproduz ou implementa a política no
papel, aquela formalizada nos documentos legais, o trabalhador se
configura como um formulador de políticas públicas (Lipsky, 1980).

331
Cotidianamente, trabalhadores da ponta precisam encontrar maneiras
de lidar com as dificuldades, faltas e excessos que diferenciam o
contexto da politica cotidiana do contexto ideal da política no papel. À
medida em que encontram alternativas possíveis para colocar as
políticas em prática os trabalhadores da ponta reinventam as políticas
públicas.
Neste contexto, a formação de redes entre trabalhadores para
o cuidado das pessoas que usam droga também deve ser analisada
como um processo. Nesta construção, negociações diárias são
realizadas entre os diferentes entendimentos sobre como abordar o
uso de drogas e as diferentes atividades que compõe o trabalho de
cada equipe.
Historicamente a formação de redes para o cuidado das
pessoas que usam drogas é debatida, principalmente, como relação à
integração entre os setores de saúde e assistência social. Para além da
formação destas redes de cuidado, também o papel dos trabalhadores
em segurança tem sido considerado importante na abordagem da
pessoa que usa drogas. Projetos de integração entre cuidado e
segurança vêm sendo postos em pratica em diversas partes do mundo
(Hammett et al., 2005; Hunter, McSweeney, & Turnbull, 2005;
Vermeulen & Walburg, 1998). Estes trazem potências e desafios que
se somam aqueles que atravessam a formação das redes em cuidado.
A inserção das políticas de redução de danos e o debate do
papel da segurança no cuidado às pessoas que usam drogas vêm, nas
últimas décadas, produzindo modificações nas redes. As políticas de
redução de danos trazem uma nova forma de olhar a atenção ao uso
de drogas que se coloca como alternativa ao modelo centrado na
internação e na abstinência. Essa nova proposta gera um debate em
relação aos modelos anteriores de atendimento e entendimento de
como lidar com o uso de drogas na área do cuidado. A inserção da
segurança neste debate traz à rede um olhar que visa à prevenção de
possíveis problemas de conflito com a lei relacionados com o uso,
ampliando o debate já existente entre as áreas de cuidado.

332
Cada setor envolvido nas políticas sobre drogas possui
diferenças inerentes às instituições e organizações que
representam. A diversidade destes contextos, por sua vez, produz
diferentes opiniões e atitudes destes trabalhadores na política
cotidiana, que se traduzem em uma heterogeneidade de expectativas
com relação ao papel dos trabalhadores na abordagem do uso de
drogas. Ainda assim, a formação das redes envolve o contato e a
negociação de objetivos, atividade e significados nas práticas diárias.
Como os trabalhadores atualizam tal negociação? Em outras
palavras, como ocorrem as redes relacionadas à abordagem da pessoa
que usa drogas nas políticas sobre drogas no cotidiano? E o que tais
redes produzem em termos de potências e desafios para os diferentes
atores envolvidos?
O presente artigo parte das experiências de formação de redes
nas cidades de Porto Alegre, no Brasil, e Amsterdam, na Holanda, para
analisar essas questões. Os dados debatidos derivam de uma pesquisa
de doutorado que enfoca a produção cotidiana da política sobre
drogas pelos trabalhadores das áreas de saúde, assistência social e
segurança nestas duas cidades (Rigoni, 2015). Entre Abril de 2010 e
Abril de 2011 foram entrevistados 80 trabalhadores e realizadas 800
horas de observação de suas práticas, divididos igualmente entre
Amsterdam e Porto Alegre. A comparação entre cidades pertencentes
a países com distintas politicas sobre drogas, e configurações de rede
bastante diversas, proporciona um interessante contexto para analisar
diferentes fatores operantes na formação de redes.
Antes de partir para a análise, porém, é fundamental definir:
como entendemos rede? No senso comum, rede pode ser definida
como a troca de informações e serviços entre indivíduos, grupos ou
instituições. Na legislação brasileira e holandesa (Ministério da Saude,
1990; van der Gouwe, Ehrlich, & van Laar, 2009), bem como na
literatura que discute as redes em cuidado (Plomp, Hek, & Ader, 1996;
Zambenedetti & Silva, 2008) o conceito de rede é utilizado para
veicular ideias de integralidade no atendimento à pessoa que usa

333
drogas a partir da colaboração entre trabalhadores de diferentes
setores.
Na politica cotidiana, a coordenação entre os diferentes
serviços que abordam as pessoas que usam drogas é fundamental
para colocar em prática os conceitos de abordagem integral (integrale
aanpak) e colaboração (samenwerking) holandeses, bem como os
conceitos de integralidade e rede brasileiros. Na legislação e nas
diretrizes nacionais e locais referentes às politicas publicas, o desenho
de uma rede começa com a organização ou (divisão) de serviços entre
os territórios. A seguir, o desenho parte para definir a circulação
espacial e as formas de contato entre serviços dentro e entre
diferentes territórios.
O conceito de rede proposto pelo teórico Pierre Musso (2004)
traz a organização espacial dos serviços e os fluxos traçados entre eles
como um dos fatores fundamentais para a análise da circulação dos
trabalhadores nos territórios. Além disso, Musso agrega ao conceito
da rede a racionalidade: as ideias por trás da forma como a
organização espacial é planejada. Para Musso, as redes têm uma
estrutura (uma forma de organização), uma dinâmica (conexões e
movimento entre os atores) e uma racionalidade que representa e
determina a estrutura e as possibilidades de conexões. A rede,
portanto, define a organização geográfica e comunicação entre os
trabalhadores e serviços e também a produção de sentidos que parte
de e que permite tais comunicações (Musso, 2004).
Antes de entrar na análise de como organizações e sentidos
atravessam a produção das redes em Amsterdam e Porto Alegre vale
enfatizar um último e importante ponto: a ambivalência das redes.
De acordo com Musso (2004) o conceito de rede traz na sua
essência uma identidade dupla, uma ambivalência inicial: podem
servir tanto para circular como para controlar. Em linhas gerais, o
contato entre os trabalhadores em um território pode se dar de forma
colaborativa, conflitiva, ou simplesmente distante, quando um ou
ambas as partes ignoram as atividades ou mesmo a existência dos
outros. O conceito de rede é, geralmente, entendido na primeira

334
forma: como a construção de colaboração; porém, como veremos
aqui, há outras interpretações possíveis.
A proposta de Pierre Musso de entender a rede também como
potencial produtora de controle abre novas portas para pensar sobre
o papel e os efeitos das redes nas políticas sobre drogas. A construção
de redes pode trazer não só a possibilidade de facilitar o trabalho na
ponta e promover uma assistência integrada para as pessoas que
usam drogas, como normalmente concebido; pode também tornar a
vida de ambos os atores mais complicada através de um aumento de
controle sobre suas atividades. Mas quando e como controle ou
circulação operam nas políticas cotidianas em Amsterdam e Porto
Alegre? E quais seriam os fluxos e racionalidades que levam ao
controle ou à circulação de trabalhadores e usuários? Tais questões
serão debatidas nas próximas duas seções, que descrevem,
respectivamente, as redes nas cidades de Amsterdam e de Porto
Alegre. Por fim, a última seção deste texto trará alguns comparativos e
análises.

As redes em Amsterdam:

Na cidade de Amsterdam, trabalhadores em saúde, assistência


e segurança mencionam trabalhar juntos para atender a pessoa que
usa drogas. A circulação promovida pela rede ocorre tanto em termos
de trabalhadores que se deslocam ao longo dos territórios para
contatar pessoalmente outros trabalhadores, quanto em termos de
troca de informações sobre os serviços e usuários. A circulação de
trabalhadores inclui visitas a outros serviços, abordagens conjuntas de
usuários, e reuniões com outros profissionais para debater sobre
planos de tratamento para pessoas assistidas por ambos. A circulação
de informações inclui, para além das trocas face a face, o
conhecimento dos serviços e atividades oferecidas por outros setores,
contatos telefônicos com serviços e trabalhadores, e acesso às
informações de serviços e usuários através de sistemas informatizados
de cadastro.

335
A formação de redes entre os setores da assistência e saúde é
bastante desenvolvida na cidade de Amsterdam. Serviços em
assistência social como abrigos, albergues, casas de passagem e
acolhimento, e serviços específicos para o gerenciamento de
benefícios e inserção no mercado de trabalho (DWI) possuem
conexões fortes entre si no sentido de coordenar atividades e
benefícios oferecidos as pessoas que usam drogas. No setor da saúde,
clínicas para o tratamento com substituição (metadona) e prescrição
de heroína, salas de uso e equipes de trabalho de campo também
operam a formação de redes entre si e com os serviços em assistência
social.
Em vários destes serviços da rede de cuidado existe a figura do
case manager (ou gestor de casos) onde os trabalhadores são
responsáveis pelo acompanhamento do tratamento/assistência de um
dado número de usuários. É parte das atividades destes trabalhadores
o contato com diferentes serviços da rede em saúde e assistência que
já estejam abordando ou que possam vir oferecer algo que a pessoa
em atendimento necessite. Os contatos são realizados por meio de
reuniões, ligações telefônicas, visitas aos serviços, acompanhamento
dos usuários aos serviços, encaminhamentos, entre outros. Em muitos
serviços, o papel do gerente de casos é realizado por aqueles
trabalhadores que fazem a busca ativa dos usuários no trabalho de
campo. Praticamente todos os serviços, incluindo as clínicas, abrigos e
albergues, possuem a figura do trabalhador de campo (equivalente às
atividades dos redutores de danos, agentes comunitários de saúde, e
educadores sociais de rua no Brasil).
Para além do gerenciamento integrado do atendimento as
redes incluem o acesso facilitado a um determinado número de vagas
e benefícios nos serviços parceiros, bem como a informações sobre a
pessoa atendida. Através das redes, trabalhadores em cuidado
entendem que seu trabalho se torna mais eficiente, à medida que
evita que diferentes serviços promovam a mesma atividade com um
dado usuário ou, pior, que promovam atividades contraditórias. Desta

336
forma tanto seu trabalho se torna mais leve e mais eficaz, como se
previne o gasto desnecessário de tempo e dinheiro público.
A troca de informações é parte importante deste processo.
Circulam informações tanto sobre os serviços e atendimentos
possíveis, quanto sobre os usuários e os contatos que estes fazem com
a rede, o tipo de atendimento que possuem ou já possuíram no
passado, bem como informações pessoais. Segundo os trabalhadores,
o contato próximo e coordenado com trabalhadores de outros
serviços permite um maior controle do usuário e previne a
manipulação do sistema. Quando os diferentes serviços conversam
entre si não é mais possível para a pessoa em atendimento mentir
sobre os benefícios que ganha ou não em outros serviços, os motivos
pelos quais não possui mais um dado benefício ou atendimento, e os
tipos de atividade e planos de tratamento que vem seguindo. Neste
sentido, a rede opera tanto na circulação de usuários e informações
quanto no controle das mesmas. Os trabalhadores em Amsterdam não
só reconhecem esse duplo sentido da rede, como veem ambos,
circulação e controle, como positivos e funcionais.
Além da diversidade de serviços em saúde e assistência, outra
importante característica diferencial da rede em Amsterdam, com
relação a Porto Alegre, é que os trabalhadores em segurança têm uma
participação intensa na rede de abordagem à pessoa que usa drogas.
Pelas atividades da profissão que possuem trabalhadores da
segurança de ambas as cidades entram, frequentemente, em contato
com pessoas que usam drogas e que se encontram em situações de
vulnerabilidade e/ou conflito com a lei: situação de
moradia/sobrevivência na rua; uso de drogas em espaço aberto;
vinculação com o tráfico de drogas, entre outros. A maneira como a
segurança responde a esses eventos, no entanto, é diferente nas
cidades estudadas. Em Amsterdam, o contato de trabalhadores
policiais com pessoas que usam drogas costuma desencadear a
produção de redes com o setor de cuidado. A rede inclui não só o
encaminhamento verbal a serviços de assistência social ou saúde, mas
também abordagens conjuntas; acompanhamento em pessoa do

337
usuário aos serviços; e visitas aos serviços para reuniões previamente
agendadas e/ou para reforçar as conexões de rede já estabelecidas.
A própria estrutura da rede ajuda a definir esta dinâmica: tanto
a descrição de cargo dos trabalhadores, quanto os programas
projetados nas diretrizes nacionais e locais especialmente para
promover a formação de parcerias. A polícia de Amsterdam possui
uma figura especial que é a do policial comunitário (o buurtregisseur,
literalmente, “diretor do bairro”), que é adscrito a um determinado
território na cidade. Faz parte da descrição de cargo deste trabalhador
o conhecimento e o contato colaborativo com serviços em assistência
social e em saúde dos territórios pelos quais são responsáveis.
Programas especiais de integração entre segurança e cuidado foram
construídos especialmente para a população portadora de sofrimento
psíquico (como o Vangnet & Advies) e/ou com contatos freqüentes
com a polícia (Keten Units e ISD). Apesar de esses programas não
serem especificamente dirigidos às pessoas que usam drogas, grande
parte das pessoas atendidas são usuárias de drogas como crack,
heroína ou álcool.
No caso do programa Vangnet & Advies, quando trabalhadores
da segurança entram em contato com uma pessoa que usa drogas e
que tenha problemas com a vizinhança, seja agressiva ou que cause
algum transtorno a comunidades no espaço aberto, eles podem contar
com um trabalhador da saúde (no caso um “enfermeiro psicossocial”)
para auxiliar no atendimento. Nas Keten Units e na medida ISD, a
polícia convida pessoas que usam drogas e que estão cometendo
delitos para uma reunião conjunta com trabalhadores do cuidado, a
fim de decidir sobre um plano de ação. A orientação principal é a
decisão em favor de uma pena alternativa ou a troca da prisão pela
inserção no sistema de cuidado, o que inclui tratamentos que podem
visar tanto à abstinência quanto à redução de danos.
Aqui se faz interessante desvelar as ideias ou racionalidades
(Musso, 2004) que atravessam essas redes entre diferentes atores do
cuidado e os atores da segurança. Como eles justificam a formação de
redes?

338
Para os trabalhadores da segurança o que justifica a rede com
os serviços e trabalhadores do cuidado são os resultados percebidos
em termos da diminuição da criminalidade e dos problemas nas ruas,
bem como da quebra do círculo vicioso de prender, repetidamente, as
mesmas pessoas sem resultados. Fornecer necessidades básicas e a
possibilidade de tratamento em saúde, inclusive para o uso de drogas,
é visto pelos trabalhadores da segurança como sendo mais eficaz do
que prender ou aplicar multas. Ao invés de ser percebido como uma
tarefa a mais, o investimento nas parcerias é tido como atividade que
diminui a carga de trabalho e traz a sensação de efetividade.
Especialmente os programas que trabalham com diretrizes de redução
de danos - como as salas para o consumo de drogas, as clínicas de
terapia de substituição (metadona) e prescrição de heroína, as casas
de passagem e os abrigos e albergues que permitem o uso de drogas
dentro de suas premissas, e o benefício financeiro concedido às
pessoas que usam drogas - são muito bem vistos e acolhidos pela
polícia. Para eles, tais serviços permitem que as pessoas utilizem
drogas fora do espaço aberto da rua, e que tenham condições
financeiras de comprar sua própria droga e não precisam cometer
crimes ou vincular-se ao tráfico para tal.
E tudo isto também é percebido como melhorias na qualidade
de vida das pessoas que usam drogas, permitindo que saiam da
situação de rua, paguem suas dívidas, e reconstruam uma identidade
de cidadania e trabalho integrada à comunidade em geral.
Semelhante à polícia, os trabalhadores em saúde e assistência
acreditam que a colaboração traz bons resultados para todos: melhora
a qualidade de vida e aumenta o acesso ao cuidado para as pessoas
que usam drogas, ao mesmo tempo em que diminui a perturbação da
ordem pública e a criminalidade nas ruas. A repressão policial é vista
como um dispositivo para trazer usuários, que de outra forma não
procurariam tratamento ou benefícios, para o sistema de cuidado.
Na visão dos trabalhadores, a abordagem policial também
pode ajudar a garantir a continuidade do tratamento, através da
localização de pessoas que evadiram dos serviços e o

339
reencaminhamento das mesmas. A colaboração serve ainda para
garantir o bom funcionamento dos serviços principalmente no que se
refere à prevenção do abuso de autoridade policial. Acordos são
realizados para impedir que policiais façam abordagens, busca ou
apreensão - de drogas e/ou pessoas que estejam sendo procuradas
pela justiça - dentro dos serviços e nas suas premissas, prevenindo
assim que os usuários se afastem do sistema de cuidado. Atenção
especial neste sentido é dedicada a garantir o vinculo de confiança
construído entre usuários e trabalhadores.
Fundamental para que esta parceria entre cuidado e segurança
seja vista com bons olhos pelos trabalhadores do primeiro setor é a
importante oferta de benefícios às pessoas que usam drogas que é
atrelada ao sistema. Estratégias de redução de danos e serviços de
baixa exigência são prioritárias neste sentido: salas de uso; clínicas de
tratamento de substituição e prescrição de heroína - onde as drogas
são prescritas e fornecidas pelo governo; abrigos e albergues que
permitem o uso de drogas dentro de suas premissas; casas de
passagem; cuidados básicos em saúde; auxilio financeiro – benefício- e
auxílio na gestão do dinheiro recebido; inserção no mercado de
trabalho; foco na busca ativa, dentre outros. Sabendo que os usuários
possuem acesso a todos estes serviços, uma intervenção mais
repressiva pode ser justificada na visão dos trabalhadores: usuários
não se encontram em situação de vulnerabilidade ou conflito com a lei
por falta de oportunidades e apoio. Assim, desde que a repressão seja
vinculada a entrada do usuário neste sistema de cooperação, ela é
vista como estando o a serviço do bem estar do próprio usuário, e não
contra ele.
Ao final, para os trabalhadores em saúde, assistência e
segurança, a formação das redes tanto aumenta as chances dos
usuários de serem acessados e acolhidos pela rede de cuidado, como
também aumenta o nível de controle dos trabalhadores sobre os
mesmos. Desta forma, se atualizam na política cotidiana as duas
vertentes da rede propostas por Musso (2004): a circulação e o
controle. Se por um lado o controle facilita a gestão dos recursos e do

340
processo de trabalho por parte dos trabalhadores da “ponta”, ele deve
ser observado com cuidado. De acordo com pessoas que usam drogas
em Amsterdam e suas associações contatadas durante a pesquisa,
muitas vezes a relação estreita estabelecida entre os trabalhadores
acaba por limitar a participação do usuário nas decisões sobre o rumo
que quer tomar em sua vida. Nas reuniões conjuntas, onde o plano de
ação é discutido e a proposta de atendimento integrada formulada, há
muitas vezes, pouco espaço para a escolha de um caminho diferente
por parte da pessoa que usa drogas. Se por um lado grande parte dos
usuários está satisfeita com o nível de benefícios e atendimentos
recebidos, muitos sentem que, uma vez parte do sistema de cuidado,
sua autonomia fica comprometida pelos rumos ditados pelas regras e
requisitos impostos por serviços e trabalhadores.

As redes em Porto Alegre:

Em Porto Alegre a colaboração entre os trabalhadores se


mostrou de forma diferente: enquanto existe um esforço para formar
uma rede de cuidado entre trabalhadores em saúde e assistência, a
segurança se encontra completamente fora desta rede. Para a maior
parte dos trabalhadores cuidado e repressão não são compatíveis, e
tanto os trabalhadores da rede de cuidado como os da rede de
segurança acreditam ser melhor manterem-se distantes.
As redes entre os setores de cuidado são desenhadas entre
serviços sociais como CREAS, abrigos, albergues, casas de passagem e
equipes do programa Ação Rua; e serviços de saúde como Caps ads,
clínicas de desintoxicação, emergências hospitalares, Estratégias de
Saúde da Família, redutores de danos e comunidades terapêuticas. Em
termos de estrutura, as redes são desenhadas por fluxos entre
serviços de maior ou menor complexidade divididos em territórios
geográficos. Os contatos são feitos através de telefonemas, reuniões
para debater sobre os usuários assistidos por ambos, e atividades
conjuntas como grupos, abordagens de rua, ou visitas domiciliares. Em
geral, as razões que levam os trabalhadores em saúde a promover

341
redes com a assistência giram em torno da obtenção de recursos para
os usuários: passagens de ônibus para ir ao tratamento, abrigo para as
pessoas em situação de rua, benefícios como vale alimentação, e
ajuda com a confecção de documentos pessoais. Trabalhadores em
assistência, por sua vez, procuram seus colegas da saúde
principalmente para referir pessoas que usam drogas para algum tipo
de tratamento com relação ao uso, mas também para obter consultas
de atenção básica em saúde e maiores informações ou suporte em
como lidar com o uso, abuso e dependência de drogas.
Especialmente esta ultima atividade - o matriciamento - vem
sendo gradualmente desenvolvida, incentivada por uma portaria
governamental (Ministério da Saúde, 2010). O matriciamento, porém,
ainda encontra desafios como a falta de tempo dos trabalhadores dos
setores especializados em saúde, geralmente pelo foco no
atendimento a um maior número de usuários (devido a grande
demanda e insuficiente número de trabalhadores e recursos), em
detrimento do investimento na formação de redes. O investimento em
contatos e conexões com outros serviços é, muitas vezes, visto como
uma carga a mais, e apesar de entendido como necessário e
importante, fica relegado ao segundo plano. Se, por um lado, a falta
de recursos pode prejudicar a formação de redes, por outro esta
mesma escassez pode servir como dispositivo de busca das redes
como solução. Como objetivo de compartilhar os poucos meios
disponíveis, trabalhadores de diferentes serviços buscam uns aos
outros para fazerem visitas domiciliares conjuntas para dividir meios
de locomoção, partilham espaços e cotas de exames ou benefícios, e
convidam trabalhadores de outros serviços para participar de grupos
com pessoas que usam drogas e para fazerem circular informações
sobre novos recursos disponíveis.
Um dos fatores mais importantes que influencia a participação
dos trabalhadores nas redes diz respeito a sua função como
trabalhador de campo. Apesar de que em Porto Alegre nem todos os
serviços contam com trabalhadores que fazem busca ativa -
semelhante à Amsterdam - estes trabalhadores são os que mais

342
dedicam tempo à produção de conexões e circulação na rede. Agentes
redutores de danos, agentes de saúde, e educadores sociais de rua
têm como centro de sua função ser um elo entre a comunidade que
assistem e os serviços disponíveis para sua assistência. Neste sentido,
são figuras extremamente importantes na dinâmica das redes, e as
primeiras que sofrem com os desafios postos pela estrutura e
racionalidade das redes.
Os trabalhadores do cuidado também encontram dificuldades
para formação de rede entre si. Um desafio importante se refere à
comunicação e circulação de usuários entre os diferentes níveis de
cuidado: em geral, trabalhadores dos níveis mais básicos possuem
dificuldades de encaminhar usuários para níveis mais complexos,
sejam eles da área da saúde ou assistência. Especialmente aqueles
trabalhadores que fazem a busca ativa das pessoas que usam drogas –
trabalhadores de campo de serviços como Estratégias de Saúde da
Família, programas do Ação Rua, Programas de Redução de Danos, e
Consultório de Rua – sentem dificuldade de encaminhar as pessoas
que atendem e desenvolver seu trabalho para além dos atendimentos
de nível básico. Regras excessivas e critérios muito rígidos de entrada
para as pessoas que usam drogas nos serviços especializados – como
Caps ad, abrigos e albergues, clinicas de desintoxicação e emergências
- são entendidos como sendo as barreiras fundamentais. Nos serviços
especializados, por sua vez, os trabalhadores sentem-se pressionados
a atender uma crescente demanda que ultrapassa em muito suas
capacidades de pessoal e recursos. Critérios de entrada e permanência
são gerados na tentativa de controlar a demanda incessante.
Um interessante ponto de análise para desvelar os desafios
desta dinâmica é a observação das racionalidades (Musso, 2004) que
atravessam a produção deste afunilamento entre os níveis de
complexidade.
Duas questões centrais nesta dinâmica de rede constituem-se
no entendimento, por grande parte dos trabalhadores dos níveis
básicos de que: 1) para atender uma pessoa que usa drogas é central
encaminhá-la ao tratamento do uso de drogas (como passo

343
fundamental, e muitas vezes antecedente a qualquer outro
atendimento); e 2) que a internação em hospitais e clínicas de
desintoxicação é a primeira (e às vezes única) ação /solução possível
para o problema. O uso da droga é visto como o problema central, e
como algo que deve ser abordado por serviços especializados.
Trabalhadores dos serviços especializados em tratamento são vistos
como únicos detentores de um saber que possibilita e legitima a
abordagem do uso de drogas. Assim, perdem-se excelentes
oportunidades de trabalhar o uso de drogas num nível básico, o que
operaria tanto como prevenção ao abuso e dependência quanto como
melhor direcionamento da demanda dos trabalhadores e usuários
com relação ao tratamento especializado.
No caso da relação entre os setores de cuidado e segurança em
Porto Alegre, o afastamento e evasão são as formas de
comportamento geralmente presentes nas dinâmicas da não-rede.
Além da falta de estrutura no sentido de incentivar iniciativas de
integração entre os setores, as racionalidades e experiências de
contatos conflitivos dos trabalhadores de ambas as áreas impedem ou
rechaçam tal conexão como positiva. Em geral, trabalhadores da
segurança se sentem julgados e não reconhecidos pelos seus colegas
dos setores do cuidado em seu papel de proteção à comunidade. Ao
mesmo tempo acreditam que seus objetivos de ordem e segurança
não são compatíveis com os objetivos de ajuda e proteção às pessoas
que usam drogas que seus colegas dos setores de saúde e assistência
social possuem. Neste sentido, acreditam que a aproximação, além de
não trazer benefícios, pode prejudicar sua prática, posto que tais
visões contraditórias repercutiriam em choques de atividades na
prática, onde trabalhadores do cuidado não conseguiriam entender as
práticas necessárias para garantir a segurança da população.
Outro desafio apontado pelo setor da segurança,
especialmente pela polícia militar, é a demanda por parte dos
trabalhadores do cuidado de que a segurança aja em situações onde
não possui preparo e materiais adequados, ou, ultimamente, onde
não seria seu papel. Um exemplo são as chamadas para abordar

344
pessoas em surto psicótico ou agressivo e sob efeito de substâncias
psicoativas. Segundo os policiais pode ser esperado de um profissional
de saúde ter as técnicas para lidar com estas situações, mas não faz
parte do treinamento e formação dos policiais dar atendimento
adequado neste sentido. Ao mesmo tempo em que aceitam esse
papel, já que não há outro órgão para fazê-lo, sentem que não
deveriam ser responsáveis por tal, e acabam sendo julgados por
exercer este papel de uma maneira vista como desrespeitosa aos
direitos do cidadão.
Tal visão é corroborada pelos trabalhadores do cuidado, que
entendem o setor da segurança como demasiadamente repressivo e
violento. A racionalidade (Musso, 2004) que guia o afastamento do
setor da segurança se constrói no argumento de que, qualquer
movimento de aproximação destes trabalhadores, poderá romper o
vínculo construído com as pessoas que usam drogas. Já que a polícia é
vista como “inimigo” por parte dos usuários, acordos de trabalho
entre cuidado e segurança produziriam inevitavelmente o
afastamento das pessoas que usam drogas e outros usuários
estigmatizados pela falta de confiança, e, por outro lado, pelo medo
que teriam de uma abordagem repressiva e/ou punitiva.
Trabalhadores que fazem busca ativa, especialmente aqueles
que assistem a população em situação de rua, sentem que o trabalho
de repressão policial dificulta o seu trabalho por operar um constante
deslocamento territorial dos usuários. Isto aumenta a dificuldade de
encontrar as pessoas para desenvolver uma abordagem continuada, e
fomenta a desconfiança das pessoas atendidas por trabalhadores e
ações governamentais. A percebida violência policial com relação às
pessoas que usam drogas, especialmente aquelas estigmatizadas por
sua condição de vulnerabilidade social, é um ponto fundamental de
conflito.
Por outro lado, a mesma repressão criticada pelos
trabalhadores do cuidado pode ser muitas vezes utilizada e esperada
pelos mesmos para lidar com situações limite onde não veem outra
solução. Em situações de violência ou risco percebidas como extremos

345
os trabalhadores do cuidado contam com o setor de segurança para o
manejo do conflito. Interessante notar aqui o papel, não só da polícia,
como também dos Conselhos Tutelares. Apesar de estes serviços
terem sido criados com a função de proteger o direito das crianças e
adolescentes, na prática acabaram muitas vezes por terem uma
imagem mais ligada à repressão e à segurança nas comunidades e nos
próprios serviços e outros setores de cuidado. Esta visão possibilita
com que trabalhadores em saúde e assistência utilizem o Conselho
Tutelar como ameaça nas comunidades na tentativa de modificar
comportamentos dos usuários, o que reforça a visão deste órgão
como repressor mais do que garantidor de direitos.

O que as redes produzem?

A formação de redes, em ambas as cidades, trouxe tanto


potências quanto desafios. Como potência encontra-se o acesso
ampliado ao sistema de bem estar social, o aumento da integralidade,
equidade e universalidade no atendimento à pessoa que usa drogas.
No campo dos desafios, aparecem as dificuldades de negociação entre
os diferentes objetivos, linguagem profissional e modelos de ação
adotados pelos trabalhadores e serviços das diversas áreas. Em geral,
as redes tanto entre as áreas de cuidado, quanto entre cuidado e
segurança se encontram mais desenvolvidas em Amsterdam que em
Porto Alegre. Isto, no entanto, não significa que em Amsterdam não
há desafios. Variações na estrutura da rede – desenho de fluxos, tipos
de serviços, diretrizes, histórico das politicas e disponibilidade de
recursos - explicam parcialmente as diferenças. Mais importante, a
dinâmica e a racionalidade que operam nas redes definem o caráter
da interação entre os diferentes atores. A circulação de trabalhadores
e as conexões realizadas dependem em grande parte das justificativas
que os levam a construírem redes, e dos conceitos de cuidado,
redução de danos e segurança empregados.
Racionalidades onde o tratamento e a desintoxicação assumem
o papel principal no imaginário das soluções para o uso de drogas

346
acabam por produzir dificuldades na formação de redes em cuidado
entre os diferentes níveis de complexidade. Da mesma forma,
racionalidades que percebem cuidado e segurança como não
compatíveis, produzem extremas dificuldades ou ausência de redes
entre cuidado e segurança. Em ambos os casos, o sistema de rede
produzido possui demasiados furos, por onde as pessoas que usam
drogas ‘escapam’. Muito frequentemente tais furos fazem com que
usuários se mantenham à margem do cuidado, e fiquem presos a
diferentes curtos-circuitos que não auxiliam para uma melhora na sua
qualidade de vida (ex: situação de rua  desintoxicação  situação
de rua; envolvimento com o tráfico  prisão  envolvimento com o
tráfico).
De outra forma, quando as racionalidades focam na percepção
do trabalho integrado como benéfico, e as soluções para o uso de
drogas como variadas (assistência social e trabalho, serviços de baixa
exigência, e diferentes formas de tratamento), a formação de redes
pode significar um maior acesso aos benefícios disponíveis tanto para
trabalhadores quanto para usuários. A integração e divisão das
atividades entre os setores melhora a gestão dos recursos, e auxilia na
prevenção de atividades conflitivas e/ou repetidas por diferentes
serviços, tornando o sistema de bem-estar social e segurança mais
efetivos. Neste sentido, as redes intra e intersetoriais operam na
promoção da circulação de informações, conhecimento e recursos,
facilitando a utilização de serviços por parte de usuários e
trabalhadores de acordo com as necessidades de ambos.
Por outro lado, redes de cuidado e segurança bastante
desenvolvidas podem também produzir um controle excessivo da
circulação das pessoas que usam drogas, bem como das atividades dos
trabalhadores. Quando a racionalidade para a construção de redes
foca demasiadamente no controle que ela produz, as próprias redes
podem dificultar a invenção de novas formas de trabalho, produzindo
um engessamento por combinações e regras previamente traçadas.
Para as pessoas que usam drogas, se por um lado a rede representa
maior acesso ao cuidado, por outro traz um maior controle de suas

347
ações. Em caráter excessivo, este controle pode levar ao afastamento
do cuidado e produzir práticas repressivas dentro de uma pretensa
logica de redução de danos.

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349
350
Capitulo XVII

CAPS AD III: cotidiano, avanços e desafios


Karine Zenatti Ely

Com a Reforma Psiquiátrica a Rede de Saúde Mental passou a


ser constituída por vários dispositivos assistenciais que possibilitam a
atenção psicossocial aos portadores de transtornos mentais e usuários
de álcool e outras drogas, envolvendo atenção básica, Centros de
Apoio Psicossocial (CAPS), serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) e
leitos em hospitais gerais. Estes serviços devem funcionar de forma
organizada, e os CAPS ocupam posição estratégica na organização e
regulação da rede.
De acordo com o Ministério da Saúde e a Política Nacional de
Atenção aos Usuários de Álcool e Outras Drogas, a rede deve ser
articulada entre os CAPS AD e leitos para internação em hospitais
gerais (para desintoxicação e outros tratamentos). Estes serviços
devem trabalhar na lógica da redução de danos como eixo central ao
atendimento dos usuários1.
A Redução de Danos, no conceito da Associação Internacional
de Redução de Danos, se refere a políticas, programas e práticas que
visam, primeiramente, reduzir as consequências adversas para a
saúde, sociais e econômicas do uso de drogas lícitas e ilícitas, sem
necessariamente reduzir o seu consumo. Redução de Danos beneficia
pessoas que usam drogas, suas famílias e a comunidade2.
Desta forma, os CAPS AD caracterizam-se como um
instrumento da Redução de Danos, o que significa que a abstinência
não é a única opção de tratamento, sendo esta situação discutida

351
conjuntamente com os usuários e familiares no plano de
acompanhamento. As recaídas, mesmo daqueles que buscam a
abstinência são frequentes, e são consideradas como parte integrante
do processo de acompanhamento.
Esta situação, grande parte das vezes, gera desconforto entre
os profissionais, que no trabalho com Dependência Química, também
sofrem preconceitos e são estigmatizados, tanto quanto os usuários.
Assim, poucos são os profissionais que optam por trabalhar na rede de
saúde mental que envolve o cuidado aos usuários de álcool e outras
drogas. O perfil do trabalhador é traçado considerando a tolerância a
frustração como principal característica.
A tolerância, considerada como competência fundamental, diz
respeito à capacidade de tolerar o desânimo perante os problemas e
os resultados não alcançados. Assim, sendo a frustração um
sentimento impeditivo da ação, é importante que o técnico de Apoio
Psicossocial aprenda a tolerar, munindo-se de força e capacidade para
vencer as dificuldades que possam surgir ao longo do desenvolvimento
de um projeto3.
Percebe-se que a tolerância à frustração é uma competência
importante, mas não única. O profissional deveria desenvolver
habilidades para motivar, capacidade de comunicação, empatia e
adaptação, maturidade emocional, imaginação, criatividade e
iniciativa, entre outras. Mas, como exigir tantas qualidades quando há
poucos profissionais no mercado de trabalho dispostos a esta
vivência? E como motivar os usuários do serviço quando os próprios
profissionais não se motivam ou não tem o desejo de permanecer no
serviço?
Percebe-se que, historicamente, o preconceito é formado ainda
na academia, onde a saúde mental é pouco valorizada, especialmente
nos cursos de medicina e enfermagem. A nova proposta de assistência
tem bases consolidadas. No entanto, o engajamento das pessoas tem
sido insuficiente. Contribui para isso a formação desses indivíduos,
geralmente voltada para o modelo médico hospitalocêntrico e com
base numa filosofia cartesiana de especialidades. Tais características se

352
refletem na dificuldade em manter relações horizontais com os
usuários, no desinteresse em intervenções na comunidade e com a
forma desconexa de atuação dos profissionais e, por conseguinte, dos
serviços4.
Assim, a luta por uma assistência psiquiátrica mais humanizada
necessita da ruptura de paradigmas ideológicos, que não reproduza o
modelo manicomial nos espaços de acompanhamento e tratamento,
regulamentados nos moldes da Reforma Psiquiátrica. Para tanto,
buscou-se primeiramente o entendimento das políticas públicas para
cuidado dos usuários de álcool e outras drogas e o comprometimento
da equipe como unidade na busca de avanços técnicos, estruturais e
políticos locais.

Contribuições da Rede Multicêntrica – discussão política e


administrativa:

É nesta conjuntura que surge a Rede Multicêntrica5 e o curso


de atualização em atenção integral aos usuários de Crack e outras
drogas para profissionais atuantes nos hospitais gerais, porém com
vagas também destinadas para profissionais do CAPS AD.
A participação no curso possibilitou o repensar de algumas
práticas, motivando várias discussões em reuniões de equipe
principalmente para reavaliação do Projeto Terapêutico do Serviço de
um CAPS AD III de um município do Rio Grande do Sul.
O CAPS AD III é um dispositivo de atenção psicossocial para
atendimento de usuários com transtornos decorrentes do uso de
álcool e outras drogas, com funcionamento diário, 24 horas por dia, 7
dias por semana, inclusive domingos e feriados. A estrutura conta com
10 leitos de acolhimento noturno para manejo de situações de crise,
desintoxicação e proteção social. O serviço é apoiado por leitos em
Hospital Geral e leitos Hospital Psiquiátrico para tratamento de casos
graves de alcoolismo. Existe uma boa relação entre os serviços, com
possibilidade de visita aos usuários internados e encaminhamento dos

353
mesmos no pós-alta para o CAPS de referência, permitindo o
planejamento terapêutico conjunto.
O CAPS AD III dispõe de serviço de enfermagem nas 24 horas
do dia e, pelo menos um Técnico de Referência por turno de trabalho,
caracterizados como profissionais de nível superior (enfermeiro,
assistente social ou psicólogo). Não há cobertura médica nas 24 horas
de funcionamento do serviço, contando-se com uma médica clínica e
duas psiquiatras.
No serviço são desenvolvidas atividades como atendimentos
individuais (consultas médicas, atendimentos de referência,
atendimentos de escuta, acolhimentos), atendimento em grupos
(grupo de intervenção breve para usuários e familiares, grupo de apoio
para usuários e familiares, grupo de vivências, rodas de conversa,
grupo de redução de danos, grupo motivacional, grupo de prevenção à
recaída, grupo de mulheres), oficinas terapêuticas (música, artesanato,
atividade física, jardinagem, arteterapia, foto na lata), visitas
domiciliares, visitas e discussões de casos nas instituições que
integram a rede de saúde mental do município e atualmente os
profissionais do CAPS têm participado de Círculos Restaurativos,
trabalho conjunto da rede de saúde, assistência social e Poder
Judiciário.
A estrutura física do serviço apresenta vários problemas, porém
o espaço é amplo, suficiente para atendimento da demanda. Dentre as
dificuldades, se destaca a questão do CAPS AD III estar instalado no
prédio de uma antiga escola aberta, no qual todos os atendimentos e
oficinas são desenvolvidos em sala de aula, o que causa uma
conotação de professor-aluno. Novamente a dificuldade de
horizontalização das relações com os usuários que frequentemente
chamam os profissionais da enfermagem e oficineiros de professores.
A equipe de trabalho é composta por mais de 40 profissionais,
quase insuficiente pelo quantitativo de atendimentos do serviço. Em
alguns dias são realizados mais de 100 atendimentos e, em média, 28
usuários permanecem no CAPS durante as refeições.

354
Os avanços em relação aos processos de trabalho sempre se
dão por meio de discussões nas reuniões de equipe e as decisões são
tomadas conjuntamente. Há dois espaços de reunião de equipe, um
turno de reunião administrativa e um turno para discussão de casos. A
pedido da equipe iniciou-se um processo de estudo, ocupando parte
da reunião administrativa. O estudo foi iniciado com questões
normativas, leis e portarias e evoluiu para o estudo da Política
Nacional de Humanização, momento no qual os profissionais puderam
entender e identificar a teoria da prática já realizada, o que tornou o
trabalho mais coeso e prazeroso.
As leis estudadas incluem Lei Orgânica da Saúde6 (Lei 8080/90),
Lei da Reforma Psiquiátrica7 (Lei 10.216/01), Lei que institui o Sistema
Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas8 (Lei 11.343/06) e portarias
ministeriais que regulamentam os Centros de Atenção Psicossocial.
Para garantir o cumprimento às Leis que regulamentam a saúde
no país o Ministério da Saúde lançou a Carta dos Direitos dos Usuários
do SUS9, cujos princípios assegurados são: acesso ordenado e
organizado aos sistemas de saúde, visando a um atendimento mais
justo e eficaz; tratamento adequado e efetivo do seu problema,
visando à melhoria da qualidade de vida; atendimento acolhedor e
livre de discriminação, visando à igualdade de tratamento e uma
relação mais pessoal e saudável; atendimento que respeite os valores
e direitos do paciente, visando preservar sua cidadania durante o
tratamento; as responsabilidades que o cidadão também deve ter para
que seu tratamento aconteça de forma adequada e o
comprometimento dos gestores para que os princípios anteriores
sejam cumpridos.
A Portaria Nº 1.028/0510 regulamenta as ações que visam à
redução de danos sociais e à saúde, decorrentes do uso de produtos,
substâncias ou drogas que causem dependência, sejam dirigidas a
usuários ou dependentes que não podem, não conseguem ou não
querem interromper o uso, tendo como objetivo reduzir os riscos
associados sem, necessariamente, intervir na oferta ou no consumo.

355
As ações de informação, educação e aconselhamento tem por
objetivo o estímulo à adoção de comportamentos mais seguros no
consumo de produtos, substâncias ou drogas que causem
dependência, e nas práticas sexuais de seus consumidores e parceiros
sexuais, além da distribuição de insumos destinados a minimizar os
riscos. Devem ser preservadas a identidade e a liberdade de decisão
sobre qualquer procedimento relacionado à prevenção, ao diagnóstico
e ao tratamento. O CAPS AD III trabalha na lógica da redução de danos,
os objetivos são traçados conjuntamente com o usuário, não se
exigindo abstinência para atendimento, acompanhamento e
participação nas atividades. O porte e o uso de drogas e armas dentro
do serviço não são autorizados, sendo contratualizado com o usuário
questões referentes a esta restrição enquanto permanecer no serviço.
A portaria Nº 2.841/1011 Institui no âmbito do Sistema Único de
Saúde, o Centro de Atenção Psicossocial de álcool e outras drogas – 24
horas – AD III. De acordo com esta portaria, entende-se por CAPS AD
III aquele estabelecimento destinado a proporcionar atenção integral e
contínua a pessoas com transtornos decorrentes do uso abusivo e da
dependência de álcool e outras drogas, com funcionamento durante as
24 horas do dia, inclusive nos feriados e finais de semana.
Caracteriza-se como serviço aberto, de base comunitária e que
funcione segundo a lógica do território; com responsabilização pela
organização da demanda e rede de cuidados em saúde mental, álcool
e outras drogas; regulação e articulação das ações de atenção integral
aos usuários de Crack e outras drogas; coordenação,
acompanhamento e supervisão das internações em hospital geral e
unidades especializadas, no âmbito de seu território; e cadastramento
dos usuários que utilizam medicamentos essenciais para saúde mental.
Deve funcionar de forma articulada com o Serviço Móvel de
Urgência – SAMU – com a rede de urgência e emergência, e com a
rede de proteção social. A atenção integral aos usuários inclui as
seguintes atividades: atendimento individual, atendimento em grupos,
oficinas terapêuticas, visitas e atendimentos domiciliares, atendimento
à família, atividades de integração com a comunidade, refeições,

356
acolhimento noturno e estratégias de redução de danos. A equipe do
CAPS AD III presta os atendimentos referenciados na portaria, porém,
as questões gerenciais que envolvem a regulação de internações
hospitalares, a atenção farmacêutica e o matriciamento na atenção
básica vem sendo realizadas por outras instâncias da Secretaria
Municipal da Saúde, seja o núcleo de saúde mental, farmácia central
ou equipes específicas.
A portaria Nº 2.841/10 também faz referência à equipe mínima
de trabalho no serviço. Atualmente, o quantitativo de profissionais é
suficiente para o atendimento diurno, durante a semana. Nos plantões
de finais de semana e à noite trabalham um técnico de enfermagem e
um técnico de referência, não há apoio administrativo e,
frequentemente, profissionais de outros serviços vêm até o CAPS para
compor a equipe. Quando outros profissionais vêm ao CAPS perde-se
na questão do vínculo e na unicidade das decisões da equipe, porém,
ganha-se quanto à desmistificação do atendimento aos usuários de
álcool e outras drogas, diminuindo as questões de preconceito,
principalmente, com as Unidades Básicas de Saúde. Também não deixa
de ser uma forma de matriciamento, realizada às avessas, mas que
tem um bom resultado, pois este técnico de enfermagem passa a ser
multiplicador das práticas desenvolvidas no serviço.
A Portaria Nº 130/1212 redefine o Centro de Atenção
Psicossocial e traz mais clareza quanto ao funcionamento, da atenção
integral ao usuário, amplia a equipe mínima, determinando acréscimo
de pessoal para plantão de acolhimento noturno e plantões de
sábados, domingos e feriados e amplia o incentivo financeiro,
modificando o sistema de cobrança. O descumprimento desta portaria
continua, pois nos plantões da noite e finais de semana trabalham no
máximo 3 profissionais: dois técnicos de enfermagem e um
profissional de nível superior, faltando sempre o técnico de apoio para
questões administrativas e o terceiro técnico de enfermagem para
sábados, domingos e feriados. A consequência disso é que os usuários
que estão em Acolhimento Noturno permanecem com muito tempo
ocioso nos finais de semana, pois não há oficinas ou outras atividades.

357
Às vezes, acontece uma caminhada até a pracinha próxima ao CAPS,
filmes e acesso livre a televisão. Esta situação acaba por desmotivar os
usuários e muitos desistem do Acolhimento Noturno durante o final de
semana.
Pala Portaria Nº 854/1213 foram alteradas as tabelas de
procedimentos, as APACs (Autorização para Procedimento de Alto
Custo) foram substituídas pelas RAAS (Registro das Ações
Ambulatoriais em Saúde) com formulário próprio para atendimento
psicossocial no CAPS e para Atenção Domiciliar e códigos específicos
dos serviços, alterando também as modalidades de atendimento. Para
APAC os códigos permitiam apenas pacotes de procedimento:
Intensivo, Semi-Intensivo, Não Intensivo, Terceiro Turno e Acolhimento
Noturno. Com a RAAS o registro deixa de ser por pacote e passa a ser
por atividade incluindo oficinas terapêuticas, atendimentos aos
familiares, grupos, visitas domiciliares, substituindo as modalidades
anteriores que se referia a quantidade de dias que o usuário
frequentava o CAPS. A operacionalização desta portaria foi muito
discutida no serviço e ainda ocorrem mudanças quanto a forma de
registro destes procedimentos.
Dentre as dificuldades apresentadas no cumprimento às
portarias, além da equipe mínima, a maior delas está na garantia da
territorialidade e equipes de referência. Há uma grande resistência
administrativa em garantir o cuidado em saúde com lógica territorial
aos indivíduos que usam, abusam e dependem de substâncias
psicoativas, visto que, ao constituir-se como serviço aberto, o
entendimento no espaço macropolítico perpassa a lógica da
territorialidade. Para facilitar o acesso dos usuários existe outro serviço
com características semelhantes em localização geográfica oposta. O
principal problema encontrado é o de manter a equipe de referência,
pois os usuários utilizam ambos os serviços conforme a conveniência
do momento. No espaço micropolítico, trabalha-se com equipes de
referência e cada usuário tem seu técnico de referência, que pode ser
um psicólogo, enfermeiro ou assistente social.

358
O Técnico de Referência é definido como aquele que tem como
responsabilidade o monitoramento do usuário, o projeto terapêutico
singular, o contato com a família e a avaliação das metas traçadas no
projeto terapêutico singular14. Estas ações encontram-se prejudicadas
quando o usuário não tem clareza de quem é sua equipe de referência,
mesmo que os técnicos de referência do CAPS AD III conhecem as suas
responsabilidades e estão comprometidas em realizá-las. A
regionalização evita a duplicidade de recursos com a mesma
finalidade, facilita o acesso dos usuários e o referenciamento entre os
serviços de saúde. Desta forma, considera-se relevante a discussão
para convergência e complementaridade entre os planos macro e
micropolíticos como dispositivos de integração da rede assistencial em
saúde mental. A reavaliação administrativa foi extremamente
importante para ratificar os pontos positivos e coesos com a legislação
e para rever e propor alternativas para as inconformidades.

Avanços na aplicação da Política Nacional de Humanização:

A Política Nacional de Humanização é definida com base na


valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de
produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores. Os valores que
norteiam esta política são a autonomia e o protagonismo dos sujeitos,
a corresponsabilidade entre eles, o estabelecimento de vínculos
solidários e a participação coletiva no processo de gestão15.
A operacionalização da Política Nacional de Humanização busca
a troca e a construção de saberes, o trabalho em rede com equipes
multiprofissionais, a identificação das necessidades, desejos e
interesses dos diferentes sujeitos do campo saúde; o pacto entre os
diferentes níveis de gestão, entre a gestão e a atenção e entre
gestores, trabalhadores e usuários; reconhecimento do protagonismo
dos diferentes sujeitos; construção de redes solidárias e interativas,
participativas e protagonistas do SUS.
Para tanto, a Clínica Ampliada objetiva a compreensão
ampliada do processo saúde-doença, a construção compartilhada dos

359
diagnósticos e terapêuticas, a ampliação do “objeto de trabalho”,
considerando o ser humano como um todo, sem a fragmentação das
especialidades e a transformação dos “meios” ou instrumentos de
trabalho que privilegiem a comunicação transversal na equipe e entre
equipes. A Clínica Ampliada busca integrar várias abordagens para
possibilitar um manejo eficaz da complexidade do trabalho em saúde,
que é, necessariamente, transdisciplinar. Trata-se de colocar em
discussão a fragmentação do processo de trabalho e criar um contexto
favorável para que se possa falar desses sentimentos em relação aos
temas e às atividades não restritas à doença e ao núcleo profissional.
Neste sentido, no CAPS AD III o usuário que busca atendimento
não encontra barreiras ou situações dificultadoras para a adesão ao
tratamento. Os acolhimentos e atendimentos de referência são
agendados por telefone sem nenhuma restrição de acesso do usuário
com seu técnico de referência. Há sempre um técnico de referência no
serviço no chamado “plantão de escuta” para atender todos aqueles
que procuram o serviço sem agendamento prévio. Todos os técnicos
de referência passam pelo plantão de escuta ao menos uma vez na
semana, e o objetivo é a realização da escuta sensível.
A escuta sensível da demanda espontânea nos serviços de
saúde significa acolher toda queixa ou relato do usuário mesmo
quando, aparentemente, não interessar de forma direta para o
diagnóstico e tratamento. É preciso ajudá-lo a reconstruir e respeitar
os motivos que ocasionaram o seu adoecimento e as correlações que o
usuário estabelece entre o que sente e a vida. Assim, o usuário poderá
perceber que o adoecimento não está isolado na sua vida e não
poderá ser “resolvido” por condutas mágicas e unilaterais do serviço
de saúde, o que evita a infantilização e atitudes passivas diante do
tratamento16. A escuta sensível implica, necessariamente, ouvir os
vestígios, ver os movimentos, envolvendo uma disponibilidade
subjetiva de afetar e ser afetado pelo outro, colocar em análise nossos
preconceitos, endurecimentos, indiferenças, intolerâncias17.
Todos os usuários têm garantia de informação, decisão e
corresponsabilização sobre o seu tratamento e Projeto Terapêutico

360
Singular (PTS). O PTS é um conjunto de propostas e condutas
terapêuticas articuladas, para um sujeito individual ou coletivo,
resultado da discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar, na qual
todas as opiniões são importantes para ajudar a entender o sujeito
com alguma demanda de cuidado em saúde e para definição de
propostas de ação. Foi bastante desenvolvido em espaços de atenção à
saúde mental como forma de propiciar uma atuação integrada da
equipe valorizando outros aspectos, além do diagnóstico psiquiátrico e
da mediação18. No CAPS AD III o Projeto Terapêutico Singular é
realizado com a participação do usuário e familiares quando estes
estiverem presentes. O usuário é convidado a desempenhar o papel de
protagonista e o técnico de referência é responsável pelo
gerenciamento do caso, pelo acompanhamento do usuário, pelo
planejamento e avaliação conjunta das metas propostas.
Além disso, os usuários participam quinzenalmente das
Assembleias do CAPS, onde são discutidas, conjuntamente com os
familiares e profissionais do serviço, as dificuldades encontradas e
alternativas para melhorias, as reinvindicações dos usuários e as
possibilidades em atendê-las, críticas e elogios ao serviço, além do
planejamento de atividades como passeios, festas, cinema. Nas
assembleias são definidas as regras de convivência dentro do serviço,
não são os profissionais que definem o limite, mas sim os próprios
usuários e sempre que alguém descumpre regras estabelecidas
conjuntamente, os próprios usuários questionam e reorientam. A
equipe observa e intervém quando há necessidade, alguma situação
de desrespeito ou risco de agressão.
As assembleias representam um espaço instituído para
participação dos usuários, para alguns a única forma de exercício de
cidadania, pois muitos chegam aos CAPS sem documentos, perderam o
direito ao voto por serem interditados pela família, e as únicas regras
que seguem são as regras da rua, de violência e opressão. O CAPS
mostra uma realidade diferente, que os documentos podem ser
refeitos, há possibilidade de encaminhamento para cursos
profissionalizantes, trabalho e albergagem. O poder de decisão, de

361
autonomia, dignidade e respeito voltam a fazer parte da vida do
sujeito, e este, tem a oportunidade de reorganização a sua rotina e
buscar a reinserção social.

Considerações finais:

A Rede de Saúde Mental encontra-se estruturada pela Política


Nacional de Atenção aos Usuários de Álcool e Outras Drogas e
amparada por Leis e Portarias que Consideram a Redução de Danos, a
Clínica Ampliada, as Equipes de Referência e o Projeto Terapêutico
Singular como principais dispositivos de atenção aos usuários
vinculados aos Centros de Apoio Psicossociais, o que caracteriza um
grande avanço na área de tratamento e acompanhamento das pessoas
que usam, abusam ou dependem de substâncias psicoativas.
Ainda apresentam-se muitos desafios nos planos macro e
micropolíticos. A luta constante, característica do movimento
antimanicomial, é reproduzida a nível local, quando se busca
condições dignas de trabalho, aplicação prática das portarias
ministeriais, garantia da territorialidade, gestão compartilhada,
buscando atenção de maior qualificação aos usuários, o trabalho em
rede e o protagonismo dos atores sociais envolvidos no processo.
Apesar das dificuldades encontradas no processo de trabalho,
percebe-se no campo da saúde mental a aplicação dos princípios de
um SUS de utopias, as teorias que deveriam ser aplicadas na saúde
como um todo se efetivam na saúde mental e é isso que motiva os
trabalhadores, que desperta o encantamento e faz acontecer.

Referências:

Ministério da Saúde (Br). Saúde Mental e atenção Básica: O vínculo e o


diálogo necessários. Coordenação de Saúde Mental e Coordenação da
Gestão da Atenção Básica, nº 01/03. 2003.

362
International Harm Reduction Associatio. O que é Redução de Danos?
Uma posição oficial da Associação Internacional de Redução de Danos,
Londres, Grã Bretanha, 2010. Disponível em:
http://www.ihra.net/files/2010/06/01/Briefing_what_is_HR_Portugue
se.pdf. Acesso em: 17 de maio de 2013.

Guimarães J, Freire P, Valinho R. Animação Sociocultural: Técnico de


Apoio Psicossocial, Módulo II. Ed.: Porto, 2011.

Souza J, Kantoraski LP, Gonçalves SE, Mielke FB, Guadalupe DB. Centro
de Atenção Psicossocial álcool e Drogas e Redução de Danos: novas
propostas, novos desafios. R. Enferm UERJ. Rio de Janeiro, 2007
abr/jun; 15(2):210-7.

Rede Multicêntrica. União de parceiros para educação permanente no


enfrentamento aos usos e abusos de crack e outras drogas. [citado em:
18 mai. 2013]. Disponível em
http://redemulticentrica.wordpress.com/author/redemulticentrica/

BRASIL. Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990. Lei Orgânica da Saúde.


Brasília, 19 set. 1990.

BRASIL. Lei 10.216 de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e


os direitos das pessoas portadoras de transtornos mantas e
redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Brasília, 06 abr.
2001.

BRASIL. Lei 11.343 de 23 de Agosto de 2006. Institui o Sistema


Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve
medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social
de usuários e dependentes de drogas, estabelece normas para
repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas;
define crimes e dá outras providências.

363
Ministério da Saúde. Carta dos Direitos dos Usuários do SUS. 2ª ed.
Brasília, DF, 2007.

Portaria Nº 1.028, de 1º de Julho de 2005. Determina que as ações que


visam à redução de danos sociais e à saúde, decorrentes do uso de
produtos, substâncias ou drogas que causam dependência, sejam
regulamentadas por esta Portaria.

Portaria Nº 2.841, de 20 de Setembro de 2010. Institui, no âmbito do


Sistema Único de Saúde – SUS, o Centro de Atenção Psicossocial de
Álcool e outras drogas – 24 horas – CAPS AD III.

Portaria N º 130, de 26 de Janeiro de 2012. Redefine o Centro de


Atenção Psicossocial de Álcool e outras Drogas 24 h (CAPS AD III) e os
respectivos incentivos financeiros. Brasília, DF, 2012.

Portaria Nº 854, de 22 de Agosto de 2012.

BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde mental no SUS: os Centros de


Atenção Psicossocial. Brasília, DF, 2004.

BRASIL. Ministério da Saúde. HumanizaSUS: Política Nacional de


Humanização. Brasília, DF, 2004.

BRASIL. Ministério da saúde. HumanizaSUS: Clínica Ampliada e


Compartilhada. Brasília, DF, 2009.

HECKERT, A. L. C. Escuta como cuidado: o que se passa nos processos


de formação e de escuta? In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (org.).
Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor.
1 ed. Rio de Janeiro. ABRASCO/CEPESC, 2007, v. 1. P. 199-212.

BRASIL. Ministério da Saúde. Clínica ampliada, Equipe de Referência e


Projeto Terapêutico singular. 2ª ed. Brasília, DF, 2007.

364
Capitulo XVIII

Os usuários de crack em Amsterdã e medidas de


baixa exigência e de redução de danos
Alberto Oteo

O uso de crack apareceu em Amsterdã na década de 80,


especialmente entre usuários de drogas pesadas e foi, lentamente, se
estabelecendo como droga habitual neste grupo, muitas vezes em
combinação com a heroína. Hoje em dia segue sendo bastante popular
entre grupos de usuários de drogas marginalizados, como entre os que
não possuem moradia, os que comentem pequenos crimes e os
usuários de heroína. O uso, porém, tem sido sempre limitado a estes
grupos, e não é relevante na população em geral. Estimamos que
exista cerca de 2.500 usuários de crack em Amesterdã, o que significa
aproximadamente 0,4% da população.

Tratamento de baixa exigência:

Na Holanda, 60% dos pacientes em tratamento para


dependência de cocaína usam o crack. Muitos destes pacientes são
tratados também por sua dependência em heroína. Este fato deve
sempre ser levado em conta quando se fala sobre a dependência do
crack e seu tratamento, já que para muitos pacientes o tratamento em
relação aos opióides é o principal. Normalmente, o tratamento para
opióides é um tratamento de substituição e manutenção com base no
fornecimento de metadona, cujo fim não é a abstinência total, mas
alcançar uma estabilidade em termos de doses diárias, a melhoria da

365
qualidade de vida e a redução da criminalidade. A “vantagem” da
metadona em termos de adesão ao tratamento é reduzir os sintomas
de abstinência de heroína, porém, os sintomas reaparecem quando
você para de tomá-la. Isto significa que os pacientes não podem
facilmente parar o tratamento porque, embora muitos prefiram
heroína, a metadona pode ser obtida gratuitamente todos os dias. Há
também um tratamento baseado em heroína em combinação com a
metadona, que tem sido bem sucedido e está se espalhando para mais
pacientes. O importante aqui não é o consumo em si, mas a melhoria
da saúde e funcionamento social.
Não existe um tratamento como este para a dependência em
cocaína, já que ainda não foi encontrado nenhum substituto
adequado. No entanto, por estar em contato com muitos dos
consumidores de cocaína (e crack) quase diariamente, através do
tratamento com metadona, os trabalhadores podem trabalhar com
estes usuários nas áreas de saúde e funcionamento social, ou
prescrever outros medicamentos e tratamentos. O uso de cocaína é
permitido normalmente, durante o tratamento, mas se tenta reduzir a
quantidade. A filosofia por trás desta ação é que primeiro é necessário
que um usuário de drogas tenha um lugar estável, reduza suas dívidas
e seus problemas com a justiça. Depois de controlar esses problemas,
pode-se trabalhar na abstinência, embora em muitos casos,
principalmente nos casos crônicos, se tenta apenas reduzir os danos
associados ao consumo de drogas.
Para executar este tipo de intervenção é necessária uma boa
colaboração entre os serviços sociais, de saúde, justiça e fiscais; e nisto
a Holanda tem uma grande vantagem. Em geral, é fácil para um
usuário de drogas entrar em um trajeto integrado, onde lhe será
oferecido tratamento, permanência em um abrigo, e pagamento de
suas dívidas. Geralmente se começa com o mais básico: se a pessoa
está sem um lugar para morar, se procura um abrigo e, na medida em
que se avança no trajeto, vai-se buscando um local mais estável,
conforme suas possibilidades. A maioria dos usuários consegue obter
um subsídio do governo por incapacidade para o trabalho ou doença.

366
Embora isso possa parecer injusto para algumas pessoas, é algo que
impede que esses indivíduos se envolvam em atividades criminosas, e
parte deste subsídio é direcionado diretamente para pagar as dívidas
que eles contraíram. Se o indivíduo não é capaz de manejar este
benefício de maneira controlada, sua conta será controlada tanto
quanto possível, dando-lhe apenas uma pequena quantidade de cada
semana para despesas pessoais.

Salas de uso:

Outro marco do cuidado com dependentes de substâncias


psicoativas na Holanda são as salas de uso. A Holanda foi um dos
primeiros países a implementar estes serviços e, atualmente, cada
cidade do país tem pelo menos um. Nestas salas os usuários de drogas
mais problemáticos podem consumir sob supervisão profissional de
forma segura e confortável. Além disso, estas salas tendem a possuir
outros serviços disponíveis, já que elas tendem a ser integradas em
centros onde se pode passar o dia (como casas de acolhimento) ou
clínicas de metadona. Assim, se um usuário de drogas está causando
problemas na rua ele pode ser encaminhado a este serviço; ali ele será
avaliado por assistentes sociais e, conforme a necessidade poderá ser
oferecido a ele serviços assistenciais específicos. O usuário de drogas
tende a achar atrativa a sala de uso, pois ele pode consumir a droga
sem o stress de ser perseguido pela polícia e sem as intempéries do
clima. Além disso, ali ele pode socializar com outros usuários e possui
fácil acesso a suas drogas de preferencia (embora seja proibida a
venda de drogas dentro das salas). Esta medida pode ser controversa,
mas a verdade é que ela serve para evitar os problemas de abuso de
drogas nas ruas e serve para muitos usuários como uma ponte para a
entrada em outros serviços de baixa exigência. Além disso, este
serviço destina-se apenas para os consumidores que são dependentes
há muitos anos, e que causam problemas de ordem pública.
Além destes serviços, existem outros destinados à
desintoxicação e abstinência, mas os serviços de baixa exigência,

367
desde uma abordagem pragmática, são os que ajudam a reduzir os
danos associados ao uso de drogas pesadas, tanto para o consumidor
quanto para a sociedade. Durante minha participação na conferência
falarei mais destes serviços e de como, sobretudo os usuários de crack
os utilizam, e do grau de satisfação que possuem com os mesmos.

Referências:

Pérez, A. O., Cruyff, M. J., Benschop, A., & Korf, D. J. (2013). Estimating
the prevalence of crack dependence using capture-recapture with
institutional and field data: a three-city study in the
Netherlands.Substance use & misuse, 48(1-2), 173-1.

368
Posfácio

Paixões e químicas 24
Sandra Djambolakdjian Torossian

As paixões são morada da juventude. Há paixões maduras que


rejuvenescem quem avança na idade. Apaixonamo-nos pelas pessoas,
pelo trabalho, pelos livros, pelo esporte, pelo ócio. Apaixonamo-nos,
também, pelo que conseguimos consumir. Aliás, é esse um modo
contemporâneo da paixão. Somos capazes, e cada vez mais
incentivados, a apaixonar-nos pelas coisas, por objetos de mercado.
Vislumbramos aí espectros da felicidade.
Fórmulas e pílulas mágicas nos indicam o caminho do sucesso e
da realização. Tristezas, decepções e frustrações, comunas à vida de
qualquer um, são rapidamente remediadas com medicações ou
objetos a consumir. O fármaco, lembram os filósofos, é remédio e
veneno. Remédio e veneno se alternam na dança do consumo.
Qualquer medicação, prescrita para a cura, pode se tornar nociva
dependendo do uso que dela se faça. E qualquer fármaco
antecipadamente “nocivo” pode ser usado como medicação para os
males da alma.
A química é um dos nomes da droga. Mas a química é,
também, um dos nomes da atração. “Não tem química”, diz quem
busca explicações para a falta de paixão.
24
Texto publicado no Jornal Sul21- Coluna Appoa em 24 de abril de 2012 e na edição
realizada pelo Ministério da Saúde do Caderno do Aluno: Caminhos do Cuidado,
Brasília, 2013.

369
Há vários modos de se ligar passionalmente ao outro. Há o
ficar eventual, o ficar habitual e o ficar mais constante. Há, também,
vários modos de se ligar às drogas.
A experimentação eventual é um início de exploração que pode
durar uma vida inteira. Como há quem se relacione eventualmente
com a mesma pessoa durante anos.
O hábito nas relações é, por outro lado, um tipo de relação
comumente encontrada no amor e em quem consome drogas. Hábito
para momentos ou circunstâncias específicas, de lazer, trabalho,
ansiedade, solidão.
“Ficar” habitualmente com alguém em festas; consumir drogas
para aproveitar a balada. Sair com alguém nos momentos de solidão;
usar alguma substância que faça companhia. Sair rapidamente com
o(a) colega de trabalho; dar uma “cheiradinha” para enfrentar uma
árdua jornada. Compartilhar com alguém um casamento; casar com
alguma droga.
Não se assuste caro leitor, amor e consumo não são
equivalentes. São relações. Relações amorosas, relações de consumo.
Por vezes o amor torna-se relação de consumo. O inverso é também
verdadeiro.
Uma paixão ou um amor se cura com outra/o, diz a sabedoria
popular. Raramente sugerimos a alguém que sofre um “mal de amor”
que restrinja suas relações. Ao contrário, oferecemos várias outras
possibilidades. Apresentamos-lhe novas pessoas, o convidamos para
eventos, atividades. Tentamos abrir outras possibilidades de escolha.
Curiosamente, até agora, temos feito diferente com as paixões
químicas. Temos achado que a única solução para ela está na restrição
das atividades. Temos fechado as pessoas em hospitais ou clínicas,
limitando suas possibilidades de amizade, limitado suas outras
relações. E muitas vezes sem sequer saber qual é mesmo o modo de
relação no qual se encontra. Internamos trabalhadores consumidores
de droga, quando muitas vezes o trabalho é uma das únicas relações

370
que mantém a pessoa com um laço comunitário. Decretamos um
casamento com a droga quando se trata simplesmente de um ficar
eventual.
Do mesmo modo que um amor se cura com outro, a saída para
as paixões químicas está na criação de outras relações passionais. E
não na limitação das possibilidades de se apaixonar.
Há vezes em que um casamento intenso ou de longa duração
implica em recaídas. Idas e vindas comuns a quem viveu um amor
intenso ou uma relação de hábitos comuns. Especialmente para quem
estabeleceu relações de dependência com seu parceiro ou parceira.
Idas e vindas no consumo e dependência às drogas são
também comuns. Há que suportá-los.
Às vezes os casais em processo de separação precisam se
distanciar, sem manter qualquer tipo de contato. Também isso
acontece com as paixões químicas. Mas precisa ser uma escolha e não
uma imposição. Na imposição, o efeito é breve. Uma escolha
acompanhada pela amizade, pela paciência e pela parceria de quem
disponibiliza um suporte abre caminho para novas escolhas.
Internações compulsórias e repressão exclusiva da oferta são
lógica exclusiva da limitação, uma política de restrição, sem a criação
simultânea de outras possibilidades. Precisamos urgentemente de
soluções que abram possibilidades de novas paixões e não que
limitem ainda mais os recursos dos apaixonados.

371
372
Sobre os autores:
Alberto Oteo - Psicólogo, especialista em Psicologia Clínica e Psicologia da
Saúde (U. Complutense de Madrid). Mestre em Adições (U. Complutense de
Madrid) e Administração e Direção de Recusos Sanitários (U. Pompeu Fabra
de Barcelona). Doutor em Criminologia (U. de Amsterdam). Vem trabalhando
no Observatório Europeu de Drogas e Adições e é Responsável pela
Formação na Fundação Gaspar Casal em Madrid.
E-mail: a.oteoperez@gmail.com

Ana Carolina Rios Simoni - Psicóloga, mestre e doutora em Educação


(UFRGS), especialista em saúde da SES/RS. E-mail: anacarolrs@gmail.com

Analice de Lima Palombini - Doutora em Saúde Coletiva pela UERJ, docente


do Instituto de Psicologia da UFRGS, vinculada ao Departamento de
Psicanálise e Psicopatologia e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Social e Institucional, com atuação também junto ao Programa de Residência
Integrada Multiprofissional em Saúde Mental Coletiva - EducaSaúde UFRGS.
E-mail: analice.palombini@gmail.com

Camila Maggi Rech Noguez - Psicóloga, Especialista em Saúde Coletiva com


ênfase em Atenção Básica pela Escola de Saúde Publica do RS. Mestre em
Saúde Coletiva pela Escola de Enfermagem da UFRGS. Psicóloga do
Departamento de Atenção em Saúde da UFRGS.
E-mail: canoguez@gmail.com

Carla Adriane Jarczewski - Médica Pneumologista, Mestre em Medicina


Pneumologia pela UFRGS, Coordenadora do Programa Estadual de Controle
de Tuberculose RS, Diretora Técnica do Hospital Sanatório Partenon/SES/RS.
E-mail: carla.jarczewski@gmail.com

Carlinhos Guarnieri - Acadêmico de Serviço Social na UFRGS, Redutor de


Danos e Educador Social, 14 anos de trabalho na rua com pessoas com uso
problemático de drogas, Supervisor Clínico Institucional da Fiocruz/SENAD

373
em Porto Alegre, Região Noroeste, Humaitá, Navegantes e Ilhas, e
trabalhador da Rede Multicêntrica da UFRGS. Ah, esqueci!... poeta!
E-mail: carlinhosguarnieri@hotmail.com

Carmen Lúcia Paz - Cientista Social, prostituta, integrante do NEP – Núcleo


de Estudos da Prostituição – especialista em Direitos Humanos pela
UFRGS/ESPM. E-mail: carmenluciapaz@hotmail.com

Carolina Nunes Port - Fisioterapeuta, especialista em Saúde Coletiva,


especialista em saúde da SES/RS. E-mail: carolafisio@yahoo.com.br

Cíntia Germany - Terapeuta ocupacional, especialista em Vigilância em


Saúde pela Escola Nacional de Saúde Pública, vinculada ao Centro de
Testagem e Aconselhamento Caio Fernando Abreu (CTA) e ao projeto
Semeardo Hospital Sanatório Partenon/SES/RS.
E-mail: cintiagermany@gmail.com

Daniel Boianovsky Kveller Psicólogo pela Universidade Federal do Rio


Grande do Sul (UFRGS). Concluiu o Programa de Residência Integrada em
Saúde pela Escola de Saúde Pública (ESP-RS) e atuou como consultor técnico
junto à Coordenação Estadual de DST-Aids da Secretaria Estadual de Saúde
do Rio Grande do Sul. Atualmente é mestrando no Programa de Pós-
Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS).
E-mail: dkveller@gmail.com

Daniel Dall'Igna Ecker - Psicólogo (PUCRS), Mestre em Psicologia Social e


Institucional (PPGPSI/UFRGS). Doutorando no Grupo Travessias: Narrações
da Diferença - Clínica, Pesquisa e Intervenção, coordenado pela Profª. Drª.
Analice de Lima Palombini (PPGPSI/UFRGS). Atua, principalmente, nos
seguintes temas: Psicologia, Psicologia Social, Políticas Públicas, Direitos
Sociais, Direitos Humanos, Assistência Social e Educação. E-mail:
daniel.ecker@hotmail.com

Denise Soares Bastos - Bacharel em Letras e Especialista em Museologia e


Patrimônio Cultural pela UFRGS. denisebastos2001@gmail.com

374
Dênis Roberto da Silva Petuco - Cientista Social (UFRGS), Mestre em
Educação (UFPB), doutorando em Ciências Sociais (UFJF). Professor-
pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio / Fundação
Osvaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz). E-mail: denis.petuco@gmail.com

Elisane Coutinho - Enfermeira, especialista em administração hospitalar,


vinculada à pesquisa, à atenção e ao projeto Semear do Hospital Sanatório
Partenon/SES/RS. E-mail: elisanecoutinho@gmail.com

Fátima de Barros Plein - Psicóloga, Mestre em Letras pela UFRGS,


coordenadora do setor de formação em saúde e políticas públicas na Escola
de Saúde Pública (SES/RS). E-mail: fatimaplein@ig.com.br

Gilberta Acselrad - Enfermeira, Especialista em Saúde Pública e Nutrição


pelo Institut d'Études Developpement Economique et Social - Université Paris
I(1977), Mestre em Letras Modernas pela Faculté de Lettres - Université de
Paris VI (1975) e Mestre em Educação pelo Instituto de Estudos Avançados
em Educação (1989). Organizadora do Livro "Avessos do Prazer: Drogas, Aids
e Direitos Humanos". E-mail: gacsel@uol.com.br

Jaqueline da Rosa Monteiro - Psicóloga, Mestre em Serviço Social, Doutora


em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), especialista em saúde da
SES/RS. E-mail: jaque_monteiro@hotmail.com

Jarbas Figueira Osório - Médico, cardiologista, residência em medicina


interna, diretor clínico vinculado ao projeto Semear do Hospital Sanatório
Partenon/SES/RS. E-mail: jarbasosorio@hotmail.com

Karine Szuchman - Psicóloga, Mestranda em Psicologia Social e Institucional


pela UFRGS. Integrante do Programa Interdepartamental de Práticas com
Adolescentes e Jovens em Conflito com a Lei (PIPA) da UFRGS. E-mail:
karineszuchman@gmail.com

Karine Zenatti Ely - Enfermeira, sanitarista, gestora estadual, Departamento


de Ações em Saúde, 13ª CRS, Santa Cruz do Sul.
E-mail: karine-ely@saude.rs.gov.br

375
Károl Veiga Cabral - Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e Institucional
(UFRGS), Doutora em Antropologia Médica (Universidade Rovira i Virgili –
Barcelona/Espanha). E-mail: karolveigacabral@gmail.com

Luciana Barcellos Fossi - Psicóloga, Especialista em Saúde Coletiva com


ênfase em Pneumologia Sanitária e em Gestão e Formação em Saúde Mental
pela Escola de Saúde Publica do RS. Mestre em Psicologia Social e
Institucional pela UFRGS. Psicóloga no Centro de Atenção Psicossocial de
Dois Irmãos (RS). Docente do curso de Psicologia da UNIVATES.
E-mail: lubfossi@hotmail.com

Magda Martins de Oliveira - Pedagoga, Mestre em Educação pela UFRGS,


coordenadora do Programa de Prestação de Serviços à Comunidade (PPSC)
da UFRGS. E-mail: magda.oliv@gmail.com

Maria Gabriela Curubeto Godoy - Médica psiquiatra e professora adjunta do


Bacharelado de Saúde Coletiva da UFRGS. Supervisora clínico-institucional do
Consultório na Rua Centro de Porto Alegre. Participou da implantação do PSF
em Quixadá/Ceará, da transformação do CAPS AD do Grupo Hospitalar
Conceição em CAPS AD III e foi consultora da Área Técnica de Saúde Mental,
Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde.
E-mail: gabriela.godoy@ufrgs.br

Marília Silveira - Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e Institucional pela


UFRGS, doutoranda em Psicologia na UFF e professora substituta no
Departamento de Psicologia Geral e Experimental da UFRJ.
E-mail: mariliasilveira.rs@gmail.com

Marta Conte - Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP, Pós


Doutora no tema da violência, adolescência e saúde mental pela FIOCRUZ,
vinculada à internação e ao projeto Semear no Hospital Sanatório
Partenon/SES/RS.E-mail: martacte@gmail.com

Mateus Freitas Cunda - Psicólogo, técnico da Fundação de Assistência Social


e Cidadania de Porto Alegre, Especialista em Saúde Mental Coletiva pela

376
Escola de Saúde Pública/RS, Mestre em Psicologia Social e Institucional pela
UFRGS. E-mail: mateuscunda@yahoo.com

Míriam Thais Guterres Dias - Assistente Social. Especialista em Saúde Mental


Coletiva pela UFSM, e em Supervisão em Serviço Social, pela PUC/RS. Mestre
e Doutora em Serviço Social pela PUC/RS. Docente do Curso de Serviço Social
da UFRGS.Docente do Mestrado Política Social e Serviço Social da UFRGS.
Pesquisadora em saúde mental, álcool e outras drogas pelo CNPq.
Coordenadora de projetos na área de integração Ensino-Serviços de Saúde.
Tutora de núcleo nos Programas de Residência Multidisciplinar Saúde da
Criança, HMMIPV-UFRGS e da Saúde Coletiva, UFRGS. Projetos de extensão
na área de saúde mental e direitos humanos, e saúde mental e trabalho
profissional. E-mail: miriam.dias@ufrgs.br

Paula Emília Adamy - Psicóloga, Especialista em Saúde Coletiva com ênfase


em Pneumologia Sanitária e em Atenção Básica - Redução de Danos pela
Escola de Saúde Pública do RS. Mestre em Psicologia Social e Institucional
pela UFRGS. E-mail: paula.adamy@gmail.com

Paula Flores - Psicóloga, Professora e Contadora de Histórias. Integrante do


Programa Interdepartamental de Práticas com Adolescentes e Jovens em
Conflito com a Lei (PIPA/UFRGS). E-mail: florespset@gmail.com

Pedro Augusto Papini - Psicólogo, Mestre em Psicologia Social e Institucional


pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Experiência em gestão e
educação permanente na área de drogas e saúde mental. Participa da Rede
Multicêntrica. E-mail: pedroaugustopapini@gmail.com

Rafaela de Quadros Rigoni - Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e


Institucional pela UFRGS e Doutora em Estudos em Desenvolvimento, com
ênfase em políticas públicas, pela Universidade Erasmus de Rotterdam,
Holanda. Consultora em políticas sobre drogas na Fundação Mainline,
Amsterdã, Holanda. E-mail: rqrigoni@gmail.com, Twitter: @RigoniRafaela;
Website:www.rafaelarigoni.com;

377
Rebeca Litvin - psicóloga, psicanalista, Especialista em álcool e outras drogas,
membro da equipe do Hospital Sanatório Partenon/SES/RS.
E-mail: rebeca.litvin@gmail.com

Rita Pereira Barboza - Psicóloga e Palhaça. Mestre em Psicologia Social e


Institucional pela Ufrgs. Membro do colegiado gestor da Rede Multicêntrica.
Coordenadora do Núcleo de Estudos e Intervenções de Palhaço (NEIP).
E-mail: ritapereirabarboza@gmail.com

Rosane Azevedo Neves da Silva - Psicóloga, Doutora em Educação pela


UFRGS, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e
Institucional do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, participando da Linha de Pesquisa "Clínica, Subjetividade e
Política". E-mail: rosane.neves@ufrgs.br

Rose Teresinha da Rocha Mayer - Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e


Institucional pela UFRGS. Trabalhadora da saúde, do Centro de Referência
em Redução de Danos da Escola de Saúde Pública RS.
E-mail: centrodereferenciard@gmail.com

Samantha Torres - Psicóloga formada pela PUCRS e Educadora Popular.


Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Psicóloga do Centro
de Atenção Psicossocial Alcool e Drogas da cidade de Viamão/RS.
Participante do grupo “Ideologia, Comunicação e Representações Sociais”,
coordenado pelo Dr. Pedrinho Guareschi (UFRGS). Membro do colegiado
gestor do CRR-Rede Multicêntrica/UFRGS.
E-mail: torres.samantha@gmail.com

Sandra Djambolakdjian Torossian - Doutora em Psicologia. Professora do


Instituto de Psicologia / Depto. de Psicanálise e Psicopatologia/UFRGS e do
PPG em Psicanálise: clínica e cultura/UFRGS. Vice-diretora do Instituto de
Psicologia UFRGS. Coordenadora do CRR- Rede Multicêntrica/UFRGS. Equipe
de Coordenação da Casa dos Cata-ventos UFRGS/APPOA.
E-mail: djambo.sandra@gmail.com

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Sandra Maria Sales Fagundes - Psicóloga, psicanalista, especialista em Saúde
Comunitária, mestre em Educação (UFRGS), Secretária de Saúde do RS no
ano de 2014, Superintendente do Grupo Hospitalar Conceição/RS.
E-mail: sandrafagundes@cpovo.net

Simone Alves Almeida - Psicóloga, Especialista em Saúde Coletiva.


E-mail: simone.smcoletiva@gmail.com

Simone Meyer Rosa - Terapeuta ocupacional pelo Centro Universitário


Metodista (2000), residência Integrada em Saúde Coletiva com ênfase em
Saúde Mental pela Escola de Saúde Pública, Sanitarista pela Escola de Saúde
Pública, Especialista em Ativação de Processos de Mudança na Formação
Superior do Profissional de Saúde pela FIOCRUZ, vinculada ao setor de
Recreação do Hospital Sanatório Partenon/SES/RS.
E-mail: simeyer2012@gmail.com

Tanise Kettermann Fick - Psicóloga, Pós-graduada em Residência Integrada


Multiprofissional em Saúde Mental Coletiva - EducaSaúde UFRGS e
mestranda em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Atua nos campos
da Saúde Mental e do Trabalho. E-mail: taniseke@gmail.com

Vanessa Bettiol Oliveira - Advogada, assessora técnica da SES/RS.


E-mail: vanbetti@hotmail.com

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Diagramação:
Numeração dos capítulos: Fonte Arial Black, 20
Título dos capítulos: Fonte Calibri, 16 Negrito
Nome dos autores: FonteCalibri, 12 itálico
Texto dos capítulos: Fonte Calibri, 12

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