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sua beleza, em geral os pobres. Dar uma ordenação ra- mento cada vez mais raro. Paradoxalmente, hoje,
cional e científica à organização urbana. Realizar a an- como nunca, a publicação de livros e textos sobre ar-
títese daquilo pelo qual se critica as cidades medieval e quitetura tem crescido exponencialmente. Evidente-
colonial, que crescem desordenada, orgânica e livre- mente, a questão não se encontra na proliferação viral
mente, de acordo com a vontade e os “caprichos” de de publicações que preenchem as estantes de livrarias
seus moradores, muitas vezes estes bárbaros a que tan- e bibliotecas especializadas, mas no uso de novas for-
to se teme. Este urbanismo que cria a cidade sem criar mas de pensar, no emprego de novas lógicas, de instru-
o cidadão. mental teórico inovador. Regra geral, a quase totalida-
Robert Pechman utiliza de maneira criativa uma de de livros e textos que integram o universo editoral
grande diversidade de fontes: crônicas, folhetins, ro- contemporâneo relacionados com a arquitetura cons-
mances, peças teatrais, revistas de ano, teses de medici- titui um incomensurável catálogo de repetições e reci-
na, correspondência e documentação dos órgãos de clagens conceituais herdado da modernidade.
polícia, manuais de civilidade, tudo isso numa prosa O livro Estética da ginga de Paola Berenstein Jac-
fluente, acessível, às vezes agradavelmente informal (os ques constitui um singular acontecimento no âmbito
tradicionais agradecimentos são substituídos, por exem- da cultura arquitetônica em nosso país. Filosoficamen-
plo, por um carioquíssimo Aquele Abraço), mas sem te, o termo Acontecimento, no sentido empregado por
perder o rigor e a sofisticação da análise. Isso sem con- Deleuze/Guattari, ocorre quando surge um problema,
tar referências culturais variadas, como a poesia con- um questionamento que favorece uma virtualização.
temporânea, o cinema tcheco, do qual empresta o títu- Esse processo imaginativo que constitui o Virtual pres-
lo de seu livro (do célebre filme Trens estreitamente supõe o Atual e visa a sua atualização. Quando o vir-
vigiados, de Jiri Menzel), ao romance policial (cujos se- tual, como entidade, adquire consistência, tal fato
guidores constituem uma seita fiel e que encontrarão constitui um acontecimento, um ato de criação. Pro-
nesta obra uma leitura muito prazerosa), além de um priamente, o acontecimento, como processo, não co-
projeto gráfico excelente. meça nem acaba, pois tem uma parte sombria e secre-
Para terminar vale lembrar que o livro que mu- ta que não pára de se subtrair ou de se acrescentar à sua
dou o rumo de sua vida e inspirou suas pesquisas em atualização. É um real sem ser atual, ideal sem ser abs-
urbanismo foi Londres e Paris no século XIX: o espetácu- trato. O acontecimento, em sua potencialidade, é pu-
lo da pobreza, de Maria Stella Martins Bresciani, ra reserva. A Estética da ginga, como acontecimento,
orientadora deste trabalho apresentado como doutora- possui justamente essa potencialidade criativa. Trata-se
do na Unicamp, que certamente inspirou a muitos ou- de um ensaio teórico/conceitual aberto que procura
tros estudiosos da cidade no Brasil. sua atualização vislumbrando uma nova forma de pen-
sar os fundamentos da arquitetura e, dessa forma, tem
como alvo contrapor-se às formas convencionais e aca-
ESTÉTICA DA GINGA – dêmicas de entender a arquitetura.
A ARQUITETURA DAS A mudança nas formas de pensar constitui um
FAVELAS ATRAVÉS DA OBRA referencial marcante da cultura contemporânea. Tal
DE HÉLIO OITICICA fato é bastante evidente quando se tem presente o pro-
Paola Berenstein Jacques cesso de deconstrução da lógica binária e do modelo
Rio de Janeiro: Editora Casa da Palavra, Rio Arte, 2002. arborescente que lhe corresponde, herança da condição
cultural moderna. Entre as formas de pensar contem-
Pasqualino Romano Magnavita porâneas, o surgimento da lógica da multiplicidade e a
percepção rizomática que lhe corresponde (Deleuze &
No mundo editorial contemporâneo a publica- Guattari) constituem um marco significativo dessa
ção de livros relacionados com aspectos teóricos/con- deconstrução na forma de pensar. Inserindo-se nesse
ceituais inovadores, visando estabelecer parâmetros processo deconstrutivista, a autora optou por adotar
inéditos na formação discursiva da arquitetura e de como ferramenta teórica o repertório conceitual con-
seus fundamentos, tem se demostrado um aconteci- tido na referencial obra Mil platôs escrito em parceria

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por Gilles Deleuze e Felix Guattari. Entretanto, a au- essas formas promovem ao se relacionarem entre si,
tora reconhece que a transposição de noções teóricas e não vacilou, em sua decisão, em optar pela abordagem
filosóficas à arquitetura torna-se quase sempre uma estética, afastando, assim, de seus propósitos, a tirania
questão problemática, particularmente quando essas da racionalidade científica que tanto caracterizou o
transposições se fazem por analogias estritamente for- pensamento moderno e que todavia ainda perdura.
mais, como se constata em vertentes da chamada ar- Em relação às figuras conceituais empregadas, há
quitetura pós-moderna. uma explícita advertência: elas devem ultrapassar a es-
A obra em pauta constitui um trabalho teóri- fera do formal para alcançar o conceitual. Não há preo-
co/conceitual e tem na obra do artista Hélio Oiticica, cupação da autora em estudar as formas, mas sim os
à guisa de um fio condutor, uma ferramenta teórica, e processos que as [trans]formam. Para ela, essas figuras
isso, em razão de que o referido artista procurou resga- não são metáforas arquitetônicas, nem simples figuras
tar a estética própria do espaço das favelas cariocas e, formais, afirmando, pois, que “só quando se chega ao
paralelamente ao seu trabalho de criação artística, não puramente conceitual, à abstração de uma teoria, é que
se limitou à dimensão físico-espacial, transbordou a se pode fazer um retorno ao real; só a partir desse mo-
sua criação para a dimensão social. Importante assina- mento será possível avançar algumas idéias ligadas à
lar que se trata de um artista que concedeu um status prática da arquitetura e do urbanismo”. Prefere, por-
estético às favelas. É justamente com base nessa expe- tanto, ir do real ao abstrato, do formal ao conceitual,
riência singular do artista que a autora formula a hipó- partindo sempre de percepções da realidade, e isso,
tese principal do seu trabalho: “as favelas têm uma es- através de mudança de escala. No Fragmento, passa do
tética própria”. Para tanto, a autora trabalha em dois corpo físico à arquitetura; no Labirinto, da arquitetura
níveis de compreensão: em primeiro lugar, o questio- ao urbano; no Rizoma, do urbano ao território. São
namento dos fundamentos da arquitetura e do urba- três momentos de análise: a favela real, a concernente à
nismo racionalistas que tradicionalmente são transmi- obra de Oiticica e a puramente conceitual.
tidos nas nossas academias, questionamento este que Sem dúvida, Rizoma constitui o capítulo mais
subjaz ao longo de todo o texto; em segundo, a ”tenta- inovador do livro. Associando Rizoma à idéia de cres-
tiva de decifrar o dispositivo arquitetônico e urbanísti- cimento, de ocupação de territórios e formação de ter-
co das favelas, espaço desconhecido da maioria dos ar- ritórios urbanos, a autora procura demonstrar o que
quitetos e urbanistas”. diferencia o processo de territorialização, de ocupações
Atendendo a sua principal hipótese, e procuran- informais, “selvagens”, de terrenos vagos, das ocupa-
do demonstrá-la, a autora usa três figuras conceituais: ções formais que emanam de leis e modelos codifica-
o Fragmento, o Labirinto e o Rizoma, particularmente dos por especialistas. E, igualmente, estabelece a dife-
as duas primeiras mais explícitas e presentes na obra de rença entre a forma de pensar a complexidade na
Oiticica e em seus relatos e escritos sobre suas vivências multiplicidade, isto é, no âmbito da percepção rizomá-
no morro da Mangueira; ao passo que a figura concei- tica, contrapondo-a à lógica binária, ao modelo arbo-
tual Rizoma traduz a familiaridade que a autora possui rescente, da árvore raiz. Para tanto, traz à tona as for-
com a lógica da multiplicidade. Foi inspirada nessa es- mulações de Chistopher Alexander em A city is not a
tética destilada da obra de Hélio Oiticica que a autora tree, de 1965, procurando mostrar que o autor, apesar
denominou o seu trabalho estética da ginga. Contudo, de suas preocupações em superar o modelo arborescen-
vale observar que a decisão pela abordagem estética é te, seus diagramas matemático-geográficos, continua-
justificada pela autora como alternativa ao racionalis- ram racionais, cartesianos, arborescentes.
mo ainda hegemônico na forma de pensar e criar. Acei- A transformação da metáfora vegetal do rizoma
tando, portanto, as formulações filosóficas de Deleuze em conceito filosófico, por Deleuze e Guattari, pressu-
e Guattari que, contrariando as concepções convencio- põe um processo que pode ser distinguido por um
nais do positivismo científico, demonstram não existir conjunto de “características aproximativas”, a exemplo
nenhuma predominância, hegemonia, entre as diferen- dos de conexões e heterogeneidade; de multiplicidade; da
tes formas de pensar e criar, isto é, entre a Ciência, a ruptura a-significante; da cartografia e da decalcomania.
Arte e a Filosofia. A autora, ciente da heterogênese que Aderente a esse instrumental conceitual, a exemplo de

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uma rede aberta, a autora compara o processo de fave- mentos da arquitetura e urbanismo, a Estética da ginga
lização – de ocupações informais – com o mato que pode ser considerado um ponto de inflexão.
nasce discretamente nas bordas e que logo acaba ocu- Para concluir, valeria acrescentar que, no caso es-
pando a totalidade dos vazios deixados pela máquina pecífico do processo de ocupação de terrenos e criação
imobiliária. Estabelece, assim, um confronto entre a de favelas, questão chave do trabalho, os processos ur-
lógica do mato (da “erva daninha”) e a lógica da árvo- banos, especificamente as produções de arquitetura e
re, ou seja, entre o sistema erva/rizoma do pensamen- urbanismo, podem vir a ser considerados tanto “má-
to da multiplicidade e aquele configurado no pensa- quinas abstratas” de sobrecodificação efetuadas pelo
mento binário ainda dominante. Insiste na oposição “aparelho de Estado” quanto “máquinas de guerra” que
entre uma cultura acentrada, não-hierárquica, instável, procuram escapar à sobrecodificação e resistir aos “apa-
e uma cultura arborescente, hierárquica e enraizada. relhos de captura” que se encontram a serviço do
Explica, assim, como um rizoma, a exemplo do mato, aparelho de Estado. Essa situação extremamente con-
da erva, está sempre no meio, não têm começo nem flitante em nosso país acaba por exigir, compulsoria-
fim, transborda, e evoca a idéia de infiltração, de um mente, ao lado das realizações de natureza estética, no
escoamento que preenche vazios. O processo de faveli- espaço físico da percepção urbana, um inadiável posi-
zação, na surpreendente comparação ao mato, escapa à cionamento ético, passando inevitavelmente pelo viés
idéia de projeto, cresce onde não se espera, formando político, que poderá promover uma melhor qualidade
encraves no território urbano. de vida, hoje tão aviltada e insegura sob a hegemonia
Na parte final do trabalho, apropriando-se da do paradigma científico/tecnológico.
proposição criativa “jardins em movimento” do paisa-
gista Gilles Clément e contestando ao mesmo tempo
sua idéia de “arte involuntária” e sua aplicação às fave- MODERNIDADE E MORADIA.
las, refere-se à suposta intenção da prefeitura do Rio HABITAÇÃO COLETIVA
de Janeiro de “preservar” as favelas. Contrariando o NO RIO DE JANEIRO NOS
senso comum e o consenso generalizado dos responsá- SÉCULOS XIX E XX
veis pelas intervenções do programa oficial “Favela- Lílian Fessler Vaz
Bairro”, a autora propõe: em lugar de preservar as fa- Rio de Janeiro: 7 Letras, 2002.
velas o que “seria necessário preservar é o seu próprio
movimento”, ou melhor, “territórios em movimento”, Eloísa Petti Pinheiro
ainda melhor, “bairros em movimento”, procedendo
através de quase não-intervenções, ou seja, interven- Partindo das primeiras habitações coletivas no
ções mínimas. Rio de Janeiro – os cortiços e as estalagens do século
Depois dessas breves considerações sobre o traba- XIX – até chegar ao edifício de apartamentos con-
lho à guisa de resenha, ocorre perguntar que lição o lei- temporâneo, e aos arranha-céus dos anos 30 do século
tor de Estética da ginga poderá tirar? Sem dúvida, a ati- XX, a autora analisa não apenas as diversas manifesta-
tude de ousar, de contrapor-se à forma de pensar ções de habitação coletiva como também as mudanças
consensual, lançando no intercâmbio de idéias, ima- tipológicas e populacionais ao longo do período abor-
gens conceituais novas que podem receber um desejá- dado. Lílian demonstra de que forma as habitações co-
vel acolhimento em relação aos fundamentos da arqui- letivas surgem como habitação popular, transforman-
tetura e do urbanismo. Como ato criativo, o trabalho do-se, ao final do período estudado, em habitação das
constitui um singular acontecimento, pois, como tal, classes média e alta, compreendendo os diferentes es-
pressupõe ainda um processo de atualização, isto é, co- paços construídos como produtos dos sistemas econô-
mo sistema aberto, propício a conexões e heterogenei- mico, político e cultural.
dades sob a égide da lógica da multiplicidade, instru- Considerando a habitação coletiva como mani-
mental teórico extremamente rico em noções e festação própria da modernidade, a autora percorre os
conceitos. Sem dúvida, no âmbito dos estudos teóricos distintos tipos de moradia propondo-se a fazer uma
produzidos no País e que se relacionam com os funda- leitura da modernidade, ultrapassando os limites da ar-

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