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MARX 2014| Seminário Nacional de Teoria Marxista – Uberlândia, 12 a 15 de maio de 2014

Alexandra Kollontai e o amor-camaradagem: por uma


superação do capital e da desigualdade de gênero

Lívia Benkendorf de Oliveira1

O artigo em questão pretende analisar a obra A Nova Mulher e a Moral Sexual,


de Alexandra Kollontai (1872-1953) – militante marxista e líder revolucionária – de
modo a evidenciar as articulações entre os conceitos de classe social e de gênero. É
notável o seu esforço intelectual e o seu engajamento político a fim de compreender e
resistir às consequências de um desenvolvimento industrial que lançou ao mercado
mulheres até então dependentes de pais e maridos, sobretudo aquelas que pertenciam às
classes detentoras dos meios de produção. Segundo Kollontai, trata-se de um
movimento contraditório de libertação dos laços financeiros, mas, em contraposição, de
dependência ao capital. A nova condição de mulher trabalhadora acabou por criar um
conjunto de novas demandas à classe trabalhadora, ao Partido Comunista e às próprias
mulheres. Reivindicando o “amor-camaradagem” e a condição de “mulher celibatária”,
partiu da perspectiva materialista histórica com o intuito de identificar as múltiplas
determinações que transformaram a mulher frágil e passiva em uma “mulher do novo
tipo”, que busca afirmar sua personalidade e independência em relação à figura
masculina e à moral sexual tradicional.

Palavras-chave: classe social; gênero; socialismo; trabalho; educação.

Introdução

Ainda que Alexandra Kollontai seja, nos dia de hoje, um importante nome
dentro do materialismo histórico no tocante ao estudo das mulheres na sociedade

1
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, pós-graduada em curso Lato
Senso sobre o Ensino de História e de Ciências Sociais (UFF), mestranda do Programa de Pós-Graduação
em Educação (UFF) pelo campo de confluência Trabalho e Educação, com orientação da Prof. Dr. Lia
Tiriba, livganesha@yahoo.com
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capitalista, a escritora e militante bolchevique esteve, durante longo período, esquecida


e desconhecida na antiga União Soviética, como afirmou Michèle Barrett em seu
verbete sobre Kollontai no Dicionário Bottomore. Trata-se de perceber as tensões
existentes dentro do marxismo que, ao longo da história, mostrou-se intolerante a
questões subjetivas que pudessem enfraquecer a luta da classe trabalhadora e, por isso, a
sua luta. Refletir sobre a importância da obra de Kollontai dentro de um contexto
revolucionário é também identificar as formas e estratégias comunistas que pretendiam
superar o capitalismo a fim de proporcionar a igualdade entre os homens (e as
mulheres?).
Muitos foram os fatores que me levaram a considerar a obra de Alexandra
kollontai e sua história como fundamentais para a retomada do debate sobre gênero
dentro de uma perspectiva materialista histórica. É bem verdade que sua defesa por um
novo tipo de amor numa sociedade comunista acabou por atribuí-la um caráter idealista
e, por isso, distante das propostas do Partido Comunista russo que se propunha pensar a
superação do capital através de uma elite intelectual preocupada com a racionalidade e
cientificismo da teoria comunista. Afinal de contas, o que teria a ver o amor com a
estrutura produtiva do capital? A desigualdade de gênero e as suas reflexões sobre as
mulheres e sobre o amor coletivo foram renegados ao plano da superestrutura que, para
grande parte do movimento bolchevique, do qual pertencia, não contribuiria para a
transformação da história.
Neste presente artigo tratarei de pensar sobre a escritora e militante comunista
como uma das representantes da nova mulher moderna que, atraída pelo mercado
(comunista ou capitalista, em se tratando da Rússia e Europa respectivamente), é levada
a reorganizar a sua vida de modo a não mais depender de seus pais e maridos, bem
como a não mais considerar as relações amorosas como único objetivo de vida. Ainda
que não se reconheça enquanto uma destas mulheres, como afirma em sua obra
Autobiografia de uma mulher sexualmente emancipada (1980a), Kollontai nos expõe de
forma muito clara as demandas morais da sociedade moderna que impõe às mulheres
uma independência financeira em relação aos homens tendo em vista sua maior
participação no mercado. Desenvolveram, portanto, uma oposição à mulher antiga que,
por sua vez, ostentava como virtude a docilidade, a fragilidade e a submissão aos
homens e ao espaço doméstico.

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Ao longo de sua vida Alexandra Kollontai escreveu mais de dez obras divididas
entre pesquisas científicas, panfletos, artigos políticos e de ficção. Quase todas elas
trataram da transformação da nova mulher e da moral sexual como algo historicamente
irreversível. Tendo em vista a importância deste tema e de sua história buscamos dar
conta de sua trajetória enquanto mulher e revolucionária bolchevique, bem como de
suas teorias que foram tão relevantes para o movimento feminista na década de 1960 e
1970.

2. A trajetória de uma comunista feminista

Alexandra Kollontai nasceu em São Petersburgo no ano de 1872, período em


que a Rússia constituía-se enquanto império e dominava uma extensão territorial e
política consideravelmente maior em relação aos dias atuais. Filha de um general de
origem ucraniana e de mãe finlandesa de origem camponesa, sua família pertencia a
importante camada social e financeira. O sobrenome Domontovich foi substituído pelo
de Kollontai após casar-se com Vladimir Kollontai, filho de um exilado político, mesmo
contra os desejos de sua família. Desta união nasceu Michel. Em 1898 separou-se,
segundo ela, por não aceitar a “tirania do amor” exercida pelo marido. Alexandra não
poderia viver no conforto do lar e ser mãe nunca fora um objetivo de vida.
A escritora presenciou desde muito nova as oposições aos czares realizados
pelos primeiros núcleos organizados do movimento operário. Os narodniks eram
conhecidos como socialistas agrários, haja vista sua inspiração no comunismo e suas
preferências por um controle coletivo nas comunidades rurais. Ainda que não tivesse
tido a oportunidade de ir à escola como outras crianças de sua idade e classe social por
conta da preocupação dos pais com possíveis contatos com ideias libertadoras, foi
educada em sua própria casa pela professora Maria Strakhova. Esta última mantinha
estreitas relações com as camadas revolucionárias da Rússia e, por isso, representou
importante influência para que Kollontai desenvolvesse suas reflexões críticas. Em
1888, concluiu o bacharelado, formando-se como professora. Foi neste mesmo ano que
assumiu a relação com Vladimir a fim de viver uma “grande paixão”. Interessante
destacar que sua irmã havia se casado aos dezenove anos e por conveniência dos pais
com um senhor de setenta anos, fato este que a levou refletir sobre a submissão
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feminina aos interesses econômicos familiares. Contra a vontade de seus pais, ainda
muito jovem, escolheu o primo, um engenheiro jovem e sem meios, cujo nome,
Kollontai herdou (KOLLONTAI, 1980a). O casamento tornou-se uma prisão à medida
que a limitava aos cuidados com o lar e com o filho, impedindo-a de participar das
agitações sociais e políticas daquele momento. A separação tornou-se inevitável.
As primeiras leituras sobre o pensamento marxista foram feitas através de
algumas revistas comunistas que ainda não haviam sido censuradas. O movimento
marxista russo se fortalecia e Kollontai se viu cada vez mais engajada com as lutas
populares. Em 1895, sob orientação de Strakhova, começou a participar de ações
políticas, tendo se filiado à Cruz Vermelha Política onde realizava atividades a fim de
acumular recursos para os presos políticos do império. Foi assim que conheceu
lideranças populistas como Vera Figner e Nicolai Morozov. No ano seguinte teve a
oportunidade de visitar a fábrica têxtil de Kremgolskaia, fato este que a permitiu entrar
em contato direto com as greves proletárias e a luta da classe trabalhadora.
Após a separação de Vladimir Kollontai, Alexandra partiu para Zurique onde
ingressou na universidade local para cursar Ciências Políticas. Foi então que entrou em
contato com as obras de Kautsky e Rosa Luxemburgo, intelectuais que teve a
oportunidade de conhecer posteriormente. Neste período esteve na Finlândia para
acompanhar a situação operária naquele país. Como resultado produziu, em 1903, um
livro intitulado A vida dos operários finlandeses. Encontrava-se cada vez mais engajada
com o movimento comunista e, deste modo, filiou-se ao Partido Operário Social
Democrata Russo (PSDOR) que mais tarde acabou desmembrando-se em dois grupos:
os bolcheviques e os mencheviques.
Aproximou-se das questões relacionadas à luta das mulheres quando conheceu
as obras da marxista alemã Clara Zetkin. Este foi o período da segunda onda feminista
que se desenvolveu em países como França, Inglaterra e Estados Unidos e tinham como
bandeira o direito à escolarização e ao voto feminino. Foi na primeira década do século
XX que Kollontai decidiu somar-se à luta da classe trabalhadora. Tendo em vista o
número crescente de operárias nas indústrias russas, identificou a necessidade de
organização de um movimento operário de mulheres a fim de reivindicar igualdade
salarial, independência financeira de seus pais e maridos, bem como creches,
restaurantes comunitários, edifícios comuns, com lavanderias coletivas e outros
serviços. Segundo Cobisier, “Alexandra Kollontai sabia que só outra organização
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econômica permitiria que mais medidas fossem realmente postas em prática”. Ainda
assim, as dificuldades a serem enfrentadas dentro do próprio movimento operário eram
muitas haja vista sua declaração sobre as resistências do partido:

“...tomei pela primeira vez consciência de quão pouco nosso


partido se interessava pelo destino das mulheres da classe
trabalhadora e pela libertação da mulher. Na Rússia já havia um
movimento feminino burguês bastante forte, mas minha concepção
marxista de mundo me indicava com absoluta certeza que a
liberação da mulher só poderia ocorrer como resultado de uma
ordem social nova e um sistema econômico distinto. Assim, intervi
diretamente na luta entre as defensoras dos direitos da mulher
russa, procurando fazer, com todas as minhas forças, com que o
movimento operário assumisse também o problema da mulher
como um dos objetivos de luta de seu programa. Foi muito difícil
ganhar minhas colegas de partido para esta ideia. Encontrei-me
totalmente isolada com minha ideias e pretensões”. (Kollontai,
1980b, p. 18)

Constitui-se como uma das primeiras mulheres russas a lutar pela emancipação
feminina. Percebia, pois, que tal luta feminista significaria não só a libertação da
mulher, mas também uma maior participação política popular.
Entre 1908 a 1917 foi exilada tendo em vista sua posição revolucionária
frequentemente exposta em artigos e livros, seja no tocante à defesa de levantes
armados2 ou em relação à emancipação feminina. Foi no exílio que se aproximou dos
mencheviques, pois compartilhava com algumas posturas estratégicas, como o fato de
não existir uma elite intelectual compondo o partido comunista. Decepcionada com o
apoio menchevique à Primeira Guerra Mundial aderiu à facção bolchevique em 1914,
passando a fazer parte do Comitê Central do Partido. Sua tentativa de alcançar ganhos à
causa das operárias foi imediata. Propôs que criassem um setor especial voltado ao
trabalho das mulheres, sendo, no entanto, negado. De acordo com Ana Isabel Álvarez
Gónzales:

“...quando [kollontai] aconselhou o partido a criar um setor


especial dedicado ao trabalho com as mulheres sua ideia foi
descartada porque os líderes viam nisso o perigo divisor do
feminismo que levaria as trabalhadoras a se unirem às burguesas

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Em seus escritos políticos sobre a Finlândia conclamou o povo a um levantamento armado contra a
Duma czarista (Kollontai, 1980a).
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esquecendo seus interesses de classes”. (Gónzales apud Barreto,


2002, p. 28)

Logo após a Revolução de Outubro (1917), tornou-se a primeira mulher a


participar do governo de transição de Lênin, assumindo o cargo de Comissária do Povo
para o Bem-Estar Social. Ao longo da apresentação escrita para a obra Oposição
Operária (1980b), Cobisier afirma que

“pode ver transformados em leis alguns princípios que entendia


constituir os fundamentos para as relações entre homem e a mulher
na sociedade comunista do futuro: o aborto foi liberado, o
casamento religioso abolido, a união não legalizada reconhecida da
mesma maneira que o casamento civil, a mulher deixou de ser
obrigada a adotar o nome do marido, salvo no caso em que assim o
desejasse, podendo então haver uma troca de sobrenomes entre
cônjuges, o divórcio era livre”. (Kollontai, 1980b, p.7)

A própria Kollontai apontou como uma das políticas mais importantes do período em
que Lênin esteve no poder a aprovação de uma lei que fez de todas as maternidades
residências gratuitas para qualquer mãe que desejasse ser atendida junto a seus recém-
nascidos. Acreditava ser fundamental produzir “as bases para uma proteção à
maternidade completamente estatal” (1980a, p.34), afirmou Alexandra. Preocupava-se
em proporcionar às mulheres uma vida mais livre no que tange às imposições maternas
e domésticas e, sendo assim, trabalhariam pela revolução. Alguns cartazes da época
diziam: “Mulheres da Rússia, joguem fora panelas e frigideiras!” (Figes apud Barreto,
p. 11, 2002). Desejava, por fim, a dissolução da família monogâmica burguesa, baseada
em uma moral sexual conservadora.
Em 1920, deixou o cargo de comissária e tornou-se diretora do Zhenotdel
(departamento feminino) do partido cujo objetivo era a mobilização política das
operárias. Neste período ingressou para a facção Oposição Operária criada dentro do
Comitê Central do Partido Bolchevique, e que se opunha à política adotada por Lênin.
Preocupavam-se com a burocratização, a falta de democracia dentro do partido, bem
como com a direção de um só homem nas fábricas, fato este contrário ao princípio
comunista de administração coletiva. Tais divergências trouxeram a ela o cargo de
embaixadora na Noruega, em 1922, sendo assim, a primeira mulher da história a
assumir um posto diplomático. Kollontai faleceu aos oitenta anos em Moscou, pouco
tempo de ter sido condecorada pelo próprio governo soviético (BARRETT).

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Muitas são as interpretações sobre a importância de Kollontai para a Revolução


Russa e a luta proletária haja vista seu esquecimento histórico dentro do próprio
materialismo histórico até os dias de hoje. Recuperar esta obra faz-se, portanto,
fundamental para que retomemos e reforcemos que trabalhar com a totalidade dentro do
marxismo significa abarcar todos os tipos de desigualdade visto que são, em alguma
medida, frutos de um capitalismo que busca criminalizar os movimentos sociais e
valorizar a fragmentação das lutas.

3. A Nova Mulher e a sua luta

Para uma análise mais atenciosa sobre a nova mulher de Alexandra Kollontai
nos debruçamos sobre sua obra intitulada A Nova Mulher e a Moral Sexual, cuja
importância se deve a sua capacidade de discutir sobre as principais questões com as
quais se preocupou ao longo de sua vida: o comunismo, o feminismo, o amor e a
revolução.
A Revolução Industrial do século XVIII, bem como as revoluções burguesas
ocorridas na Europa impuseram uma nova ordem econômica juntamente a mudanças
sociais e culturais que afetaram diretamente a organização do público e do privado.
Com isso queremos dizer que a formação do Estado capitalista trouxe consigo a divisão
entre o coletivo e o individual, característica esta não presente na sociedade feudal que,
por sua vez, possuía ambas as instâncias inseparáveis. Nesta nova sociedade, a relação
monogâmica valoriza-se em detrimento das relações poligâmicas haja vista a
necessidade de defesa e manutenção da propriedade privada3. Diferenciam-se então os
papéis entre homens e mulheres através de uma divisão sexual do trabalho desigual que
atribuiu às mulheres o papel de organização da casa e, por isso, dos filhos e marido. O
espaço doméstico restringe-se aos cuidados femininos e o trabalho externo, realizado no
espaço público, impunha-se à figura masculina, responsável, por sua vez, pela conquista

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Engel, em sua obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado, discorre sobre como a
organização familiar se modifica ao longo da história de modo a atingir uma configuração monogâmica
entre homens e mulheres. As relações poligâmicas foram denominadas por ele como família
consanguínea, família panaluana e a família sindiasmática que, embora se baseassem em uma estrutura
monogâmica, a poligamia e a infidelidade eram permitidas para os homens
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da propriedade e, todavia, pelas decisões políticas do Estado. Segundo Barreto, “Essas


ideias estabelecem uma separação sexuada entre as esferas. O público correspondendo
ao masculino e o privado ao feminino – o que exclui as mulheres da política e do poder,
pensados aqui como espaço de gestão da sociedade global”. (p. 30)
Alexandra Kollontai viveu as contradições criadas pelo antigo feudalismo e pela
nova sociedade que depositava no capital a base de todas as relações. Por este motivo
viu nascer a nova mulher moderna fruto de um período histórico que a lançou no
mercado de trabalho como força de trabalho barata e explorada. A independência
financeira contribuiu fundamentalmente para por de cabeça para baixo a antiga divisão e
a moral sexual. O aumento quantitativo da força de trabalho feminina assalariada e seus
baixos salários representaram uma grave tensão dentro do movimento operário, gerando
reações negativas à entrada das mulheres no mercado de trabalho. Sobre a exposição do
corpo, suas vestimentas mais curtas e abertas representavam uma liberdade maior de
movimento. A sexualidade é uma dimensão muito importante da nova mulher, meio
pelo qual afirma sua personalidade. A reconfiguração do papel das mulheres na
sociedade capitalista proporcionou um movimento irreversível no tocante à posição da
mulher na sociedade. No entanto, cabe evidenciar aqui o caráter exploratório desta
absorção do trabalho feminino. Ainda que tivessem seus limites de atuação alargados,
as mulheres se mantinham dependentes, mas agora, do capital, afirmava Kollontai.
O movimento feminista deste período reivindicava maior participação política
das mulheres, bem como o direito de exercer qualquer cargo no Estado. As feministas
norte-americanas alcançaram o direito de voto em 1913, antes mesmo que as européias
que só o conquistaram a partir de 1918, após forte luta empreendida pelas feministas
inglesas. Alexandra Kollontai estava inserida num outro contexto econômico e social. A
Rússia imperial há pouco havia deixado de ser oficialmente feudal. O embate travava-se
entre os desejosos pela manutenção da monarquia dos czares e pela oposição que
defendia adoção de uma democracia direta ou uma sociedade comunista. Naquele
momento, a prioridade do movimento revolucionário era a formação de uma classe
operária consciente. O movimento feminista e a demanda pela igualdade de direitos
entre homens e mulheres pareciam ameaçar a coesão de classe à medida que não
representava a luta contra o capital. A relevância das intervenções e obras de Kollontai
tratava de evidenciar que a nova mulher, com sua forte personalidade, “firmeza” e
“energia”, representava parte considerável da força produtiva e, portanto, tinha,
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também, como objetivo a superação do capitalismo para o alcance de uma nova


sociedade onde seria possível a igualdade de gênero.
A modernidade construiu aquilo que a autora denominou por mulher celibatária,
“consequência natural e inevitável da participação da mulher na corrente da vida
econômica” (1979, p.15). As mulheres trabalhadoras constituíam a vanguarda das
mulheres porque, transformadas em suas mentalidades, possuíam como luta a afirmação
da sua personalidade somada aos interesses da classe operária. Com isso, Kollontai
pretendeu demonstrar que não se tratava de uma individualidade isolada e egoísta,
como assim defendem os liberais.

“O novo tipo de mulher, que é interiormente livre e independente,


corresponde, plenamente à moral que elabora o meio operário no
interesse da sua própria classe. A classe operária necessita para a
realização da sua missão social de mulheres que não sejam
escravas. Não quer mulheres sem personalidade, no matrimônio e
no seio da família, nem mulheres que possuam as virtudes
femininas – passividade e submissão. Necessita de companheiras
com uma individualidade capaz de protestar contra qualquer
servidão, que possam ser consideradas como um membro ativo, em
pleno exercício dos seus direitos e, consequentemente, que sirvam
a coletividade e a sua classe”. (Kollontai, 1979, p. 19,20)

Ao afirmar que são as mulheres trabalhadoras as responsáveis por dar ritmo à


vida caracterizando uma determinada época, Kollontai torna inseparáveis os princípios
marxistas da luta feminista, pois passa a entender a mulher como ser que trabalha e,
portanto, produz o sentido da vida, seja em sua forma econômica, política ou cultural.
Ela se constitui enquanto ser ativo na luta de classes quando se esforça para se
desvencilhar das amarras da moral capitalista que torna privado o seu trabalho,
alienando-a e submetendo-a a uma exploração ainda maior do que aquela sofrida pelos
homens. A mulher celibatária deve ser livre.
Na obra em questão, a escritora feminista Meisel-Hess é citada com elogios.
Kollontai traz dela a análise sistemática de três formas fundamentais da união entre os
sexos: o matrimônio legal, a livre união e a prostituição. Segundo Hess, todas estas
formas “deformam a alma humana” quando dentro do sistema capitalista, não sendo
possível a solução para a “crise sexual”. Tal pessimismo corrobora a visão de Alexandra
à medida que enxerga na propriedade privada a causa primeira para as relações
individualistas e egoístas e, sendo assim, não seria possível uma felicidade sólida visto

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que não é coletiva. Para ambas, somente a transformação da psicologia humana


proporcionará o “potencial do amor”, “dotadas de uma afinidade real, em uniões sexuais
que nos tornem felizes”. Contudo, uma transformação estrutural só se dará com o
estabelecimento de novas relações econômico-sociais baseadas no princípio do
comunismo. O matrimônio legal estaria fundado na indissolubilidade e na propriedade
da posse absoluta de um sobre o outro – do homem sobre a mulher. O equívoco na
escolha do companheiro não é permitido e quando quem se equivoca é a mulher, a
sociedade a condena em seu anseio por liberdade. “A delicada flor da moral sexual é
uma felicidade adquirida à custa da escravidão da mulher à sociedade”, explicita
Kollontai. E, no tocante à propriedade, esta não permite a liberdade do eu, não há
momento de vontade própria. Somado isto à dependência econômica não resta sequer
“um pequeno recanto próprio”. Esta consideração por parte da autora poderia nos fazer
pensar que o ser mulher atinge um ponto de alienação tal que a impede de criar ela
mesma o seu próprio canto de resistência em relação às explorações e opressões
sofridas. No entanto, verificamos ao longo de sua obra que não é esta a lógica defendida
por Kollontai à medida que apreende o movimento pela busca de autonomia. Estas
mesmas mulheres são retratadas, inclusive, pela literatura daquela época, que, por sua
vez, as descrevia enquanto profissionais liberais, solteiras e sem filhos, despreocupadas
com o casamento e com a sagrada família tão valorizada pela moral burguesa (1979).
O empobrecimento de espírito provocado por uma moral sexual conservadora
não permitia o desenvolvimento do que Hess chamou de “o grande amor”. O tamanho
desconforto e infelicidade de um matrimônio legal equivocado acabam por facilitar
relações extraconjugais que, em grande maioria, utilizava a prostituição para a
satisfação do corpo. Nas palavras de Kollontai,

“A prostituição deforma as ideias normais dos homens, empobrece


e envenena o espírito. Rouba o que é mais valioso nos seres
humanos, a capacidade de sentir apaixonadamente o amor, essa
paixão que enriquece a personalidade pela entrega dos sentimentos
vividos. (...) A vida psicológica das sensações na compra de
carícias tem repercussões que podem produzir consequências
muito graves na psicologia masculina. (...) Acostumado com as
carícias submissas e forçadas, nem sequer, tenta compreender a
múltipla atividade a que se entrega a mulher amada durante o ato
sexual. Esse tipo de homem não pode perceber os sentimentos que
desperta na alma da mulher”. (Ibdem., p. 29)

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Não é possível, por isso, atingir o êxtase erótico à medida que não se envolve
apaixonadamente. É claro que poderíamos aqui nos questionar o que significaria o
“êxtase erótico” e a “paixão”, no entanto, trata-se de tentar compreender que para a
escritora, a paixão deve ser entendida como algo positivo a priori e que, potencialmente,
pode provocar no ser humano um maior sentimento de coletividade. Por isso, tal fato
interferiria diretamente na forma com que ambos se conectam e, deste modo, torna-se
impossível viver uma relação verdadeira, uma relação de camaradagem. Como veremos
mais adiante, a autora consegue identificar o amor como resultado de um momento
histórico e, tendo o capitalismo desenvolvido uma sociedade individualista, seus amores
também estarão vinculados ao mesmo sentimento de posse sobre todas as coisas. O que
se evidencia nesta obra é a formação de uma psicologia e de uma cultura influenciadas
pela estrutura produtiva.
A terceira forma de relação sexual é a união livre. Pressupomos, finalmente, um
tipo de amor positivo. No entanto, a liberdade do amor na sociedade, é condicionada por
um conjunto de demandas que nos impede de termos tempo para nos dedicarmos ao
amor-paixão, ainda que fora de uma relação matrimonial. Constitui-se enquanto
obstáculo para a realização dos objetivos masculinos de vida: a conquista de um cargo
reconhecido no mercado de trabalho, de um capital, de um emprego seguro, do sucesso
e glória, entre outros. Viver uma livre união, dentro das condições modernas, o
separaria deste fim maior haja vista a perda de tempo e as forças morais dispendidas
que, são, por sua vez, maiores do que em um matrimônio legal ou do que em uma
relação com prostitutas. No matrimônio já não existe mais a necessidade da conquista,
da manutenção do amor através de encontros e longas conversas. A esposa, pelo
contrário, ocupa uma posição de responsável pelos afazeres domésticos e com os
cuidados com os filhos para que, assim, seu marido não perca tempo para dedicar-se a
sua carreira profissional. É, por este motivo, que, segundo Kollontai, a grande maioria
das esposas era extremamente dependente do marido, financeira e emocionalmente, fato
este que persiste ainda nos dias de hoje. As mulheres celibatárias veem-se também neste
dilema entre amor e profissão. A maternidade torna-se um agravante quando se
transforma em mais um obstáculo. Deste modo, o amor livre acaba por configurar-se
como um problema. A união livre, bem como o matrimônio legal e a prostituição
representam dentro da moral contemporânea uma crise sexual que só será solucionada,
segundo Kollontai, dentro de uma nova sociedade. Hess aponta como solução o amor
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jogo. Trata-se de uma difícil, mas “enobrecedora escola de amor”, pois são relações
livres de obrigações, que esperam um do outro a “amabilidade e o sorriso da vida”. Não
poderiam permitir, portanto, o esquecimento de suas personalidades individuais, nem
que se ignore seu mundo interior. Esse tipo de relação poderia estimular uma maior
atenção, delicadeza e sensibilidade para se perceberem enquanto indivíduos coletivos,
que sentem e percebem um ao outro, não tendo como princípio a propriedade privada.
Citando Hess, Kollontai concorda que “O amor em si é uma grande força
criadora. Engrandece e enriquece a alma daquele que o sente, tanto como a alma de
quem o inspira”. Imediatamente faço uma aproximação do amor com o trabalho como
princípio educativo. Se este último representa, numa perspectiva materialista histórica, a
atividade que faz de homens e mulheres seres humanos, o amor, de acordo com o
raciocínio de ambas, seria um impulsionador deste trabalho e interferiria diretamente na
forma com interpretam o mundo e dão sentido a ele. Por conseguinte, quando o trabalho
é alienado tornamo-nos alienados de nós mesmos e dos outros e, deste modo, o amor
está comprometido. O amor baseado na posse é também alienador de si e da nossa
relação com o outro quando não conseguimos nos perceber em nosso potencial coletivo
e em nossa capacidade de nos sentir enquanto seres sociais. “Cada um dos sexos busca
o outro com a única esperança de conseguir a maior satisfação possível de prazeres
espirituais e físicos para si” (1979, p. 46). Na medida em que o trabalho deixa de ser
alienado o amor também o deixa, o mesmo efeito não se dá caso o amor seja
transformado primeiramente, já que a propriedade privada não teria se desfeito.

“A educação contemporânea só tende a limitar, na mulher, os


sentimentos de amor. Esta educação é uma causa dos corações
destroçados, das mulheres desesperadas, que se afogam na primeira
tempestade. É preciso que se abram para a mulher as múltiplas
portas da vida. É preciso endurecer o seu coração e forjar a sua
vontade. Já é hora de ensinar à mulher a não considerar o amor
como a única base da sua vida e sim como uma etapa, como um
meio para revelar o seu verdadeiro eu. É necessário que a mulher
aprenda a sair dos conflitos do amor, não com asas quebradas e sim
como saem os homens, com a alma fortalecida”. (Ibid., p. 39)

Uma das contribuições desta obra em específico, mas também de todas as outras
que abordam a questão de gênero, é o fato de Kollontai identificar a formação de
subjetividades dentro de um modo de produção específico. Entende, portanto, que há
uma totalidade, que é o capitalismo, que se estende por todas as dimensões da vida
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humana, interferindo até mesmo no modo como as pessoas vivem o amor e a família.
Engels, em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, influenciou a
autora neste movimento. Ainda que a submissão da mulher não seja uma característica
própria do sistema vigente, este impõe a elas a possibilidade do trabalho nas indústrias,
potencialmente libertador, mas, ao mesmo tempo, continua por mantê-la
hierarquicamente inferior à medida que é usurpada de parte de seu trabalho fundamental
ao capital. Salários mais baixos em relação à força de trabalho masculina não as fazem
imediatamente inferiores. É necessário manter e construir um conjunto de ideologias
sobre sua posição social para, aí sim, legitimar seus salários, seus cargos e os
tratamentos a elas dirigidos. Vemos, ainda hoje, as inúmeras propagandas que reforçam
o estereótipo da família burguesa e feliz e do papel da mulher que, mesmo tendo
alcançado seu espaço no mercado, mantém suas obrigações domésticas, incluindo os
cuidados com o esposo e filhos (sem considerar o tanto de vezes que o nosso corpo é
tratado como objeto sexual a fim de satisfazer os prazeres masculinos que continuam
por ser estimulados numa infinita afirmação de sua virilidade). Somos levadas a uma
condição de dependência emocional, insegurança e, por isso, precisamos da aprovação
masculina para que nos sintamos verdadeiramente aprovadas – evidente que tal fato não
pode ser generalizado. Trata-se, portanto, de abalar as estruturas de um patriarcalismo4 e
de um capitalismo que necessitam desta fragilidade para otimizar seus lucros.

“Mesmo para a mulher dos nossos dias é muito difícil libertar-se da


tendência, formada no decorrer de séculos, de assimilação ao
homem que o destino lhe deu por amo e senhor. Quão difícil é
convencer-se de que para a mulher é também um crime renunciar a
si mesma, ainda que em favor do homem amado, em nome do
amor!” (Ibid., p. 76)

Ao longo do capítulo três, Alexandra aborda as relações entre os sexos e o


problema sexual que, indiscutivelmente, configura-se como um dos principais

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De acordo com o Dicionário Crítico do Feminismo, o patriarcado, na sua acepção mais recente
influenciada pelo movimento feminista da segunda onda, “designa uma formação social em que os
homens detêm o poder, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens. Ele é assim, quase sinônimo
de ‘dominação masculina’ ou de ‘subordinação’ ou ‘sujeição’ das mulheres, ou ainda, da ‘condição
feminina’ (2009, p.173).
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problemas sociais daquele período haja vista seu caráter “violento” e “doloroso”. A
crise sexual pela qual passara seria para ela uma das mais graves e difíceis de resolver.
A fim de entender a crise sexual pela qual passavam traçou uma linha histórica
de modo a identificar as características e permanências do feudalismo na nova
sociedade. O velho código moral feudal baseava-se numa economia comunal e em
princípios de castas, que se sobrepunham à vontade individual de seus membros. No
período de transição entre uma ordem e outra o choque com a moral da nova burguesia
provocou uma aguda crise sexual. As castas foram substituídas por uma severa
individualização, a colaboração pela concorrência. Eram, por conseguinte, “dois
códigos sexuais de espírito” totalmente distintos um do outro. As transformações, no
entanto, se deram em diferentes ritmos segundo as classes. Aquelas mais adaptadas e
interessadas na nova moral – a classe burguesa – sofriam maiores impactos da crise
tendo em vista à rápida e radical mudança. Tornou-se importante defender os princípios
da nova família burguesa na qual o homem ocupava o papel de provedor financeiro e
conquistador da propriedade privada e a mulher preservava esta propriedade seja com os
cuidados com limpeza e manutenção, seja com as economias necessárias para que fosse
possível a acumulação. Deste modo e como já colocado anteriormente, o privado
tornou-se instância feminina em oposição ao público, espaço este onde as mulheres,
sobretudo as burguesas, não poderiam transitar livremente. De acordo com a militante
russa, “É um profundo erro acreditar que a crise sexual só alcança os representantes das
classes que têm uma posição econômica e materialmente segura” (1979, p. 44). O grupo
mais resistente às transformações foi o dos camponeses, pois se mantinham apegados as
suas tradições, mantinham a coletividade. Na sociedade moderna, com princípios
liberais mais definidos e arraigados, a crise sexual se faz para todas as classes sociais. A
relação monogâmica, religiosa e “até que Deus os separe” fortalece o sentimento de
posse e, portanto, de alienação do casal, destruindo o potencial de amor que promoveria
uma sociedade de iguais. Ainda que este problema se expanda “entre os habitantes da
cidade provinciana burguesa da Europa, como nos úmidos sótãos, onde se amontoa a
família operária, e nas enegrecidas choças do camponês”, é da classe trabalhadora que
se elevam novas possibilidades de relação. Sendo esta a classe revolucionária, é ela a
responsável por propôs também um novo código moral baseado em princípios
igualitários e verdadeiramente libertadores. A luta pela superação da propriedade
privada deveria coincidir com a luta pela igualdade de gênero. A transformação não se
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realizaria caso estas outras lutas fossem deixadas de lado. O medo da fragmentação do
movimento com reivindicações aparentemente distintas foi criticado por Kollontai que
defendia que todas estas demandas pertenciam a um mesmo obstáculo. Ela sabia que o
machismo não era provocado única e somente pelos princípios do capital. No entanto,
conseguiu perceber que a desigualdade de gênero e a moral sexual tomavam diferentes
formas de acordo com o momento histórico e, portanto, com o modo produtivo ali
desenvolvido. Cabia à classe proletária perceber a importância desta causa para a luta de
classes.

“É imperdoável a nossa atitude de indiferença diante de uma das


tarefas essenciais da classe trabalhadora. É inexplicável e
injustificável que o vital problema sexual seja relegado,
hipocritamente, ao arquivo das questões puramente privadas. Por
que negamos a este problema o auxílio da energia e da atenção da
coletividade? As relações entre os sexos e a elaboração de um
código sexual que regulamente estas relações aparecem na história
da humanidade, de maneira invariável, como um dos fatores da luta
social. Nada mais certo do que a influência fundamental e decisiva
das relações sexuais de um grupo social e determinado no resultado
da luta dessa classe com outra de interesses opostos”, (Ibid., p. 45)

Naquele contexto histórico já demonstrava que a solidão moral era uma das
características predominantes entre os indivíduos das grandes cidades que, em meio a
uma população numerosa, sentia-se sozinho. A moral da propriedade individualista
impulsionava o homem a buscar sua “ilusória alma gêmea” visto que seria o amor o
único responsável por trazer conforto e segurança numa sociedade onde o trabalho só
reforça a fragmentação e competição. Deste modo a mulher passa a ser considerada em
relação às características que contribuirão para a formação de uma família, uma família
burguesa. Não é, portanto, valorizada como uma personalidade dotada de
particularidades, mas sim como “acessório do homem”. O marido ou amante projeta
sobre sua companheira a sua vontade e, sendo assim, o tomamos como determinante da
estrutura espiritual e moral da mulher. A personalidade feminina é percebida de acordo
com sua atuação sexual – mais comedida, mais submissa ou mais livre e independente –
e tal encontra-se presente ainda nos dias de hoje. Kollontai utilizou a literatura para
demonstrar estas representações sobre o papel a ser exercido pela mulher, namorada,
filha, esposa e mãe. As personagens das obras contemporâneas à escritora começavam a
representar as mulheres de modo mais independente. Retratam, deste modo, a mulher-
emancipada, resultado destes novos tempos. Distinta da mulher de tipo antigo,
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ciumenta, desconfiada e vingativa, a mulher celibatária não reivindicava a propriedade


do seu amor e, ainda, assumia um papel revolucionário na conquista de uma sociedade
comunista.

3. O amor e a história

Em sua Carta à Juventude Operária, trecho da mesma obra até então analisada,
Alexandra Kollontai preocupou-se em esclarecer a um jovem camarada qual seria o
lugar do amor na ideologia da classe trabalhadora. Tratou de pensar o modo pelo qual o
amor deveria ser vivido numa proposta socialista e, para isso, precisava entender como
se daria uma revolução da concepção de mundo vigente e dos sentimentos entre os
futuros camaradas. Durante o período da Guerra Civil na Rússia eram outras as paixões
vividas pelos trabalhadores. O amor daquele momento deveria constituir-se enquanto
uma força estimuladora para o conflito e, sendo assim, não comprometeria a atuação de
seus participantes.

“Diante do sombrio aspecto da enorme luta, a revolução, o


delicado Eros, Deus do amor, tinha que desaparecer
apressadamente. Não havia tempo nem forças psíquicas para se
abandonar às alegrias e às torturas do amor. A humanidade
responde sempre a uma lei da conservação da energia social e
psíquica. E esta energia é aplicada sempre ao fim essencial e
imediato do momento histórico”. (Ibid., p. 102)

Dois tipos de união eram vivenciados neste contexto, segundo Kollontai. O matrimônio
duradouro conservado por um sentimento de amizade e camaradagem, bem como as
relações matrimonias para a satisfação de uma necessidade biológica para ambas as
partes, desfazendo-se sem lágrimas e dor, afinal o objetivo era “a luta pelo triunfo da
revolução”. Quando se consolidou a revolução, a necessidade por uma postura
autodisciplinar já não se fazia tão necessária e, portanto, o amor antes desprezado
reapareceu: o amor-sentimento passou a prevalecer, por ora, sobre o amor-reprodução.
O amor é um fato social, uma parte indispensável da cultura de cada época.
Segundo a autora, mesmo a burguesia que reconhece o amor como um assunto
particular, sabe, na realidade, condicionar os amores as suas normas com o objetivo de
alcançar seus interesses.
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“Referimo-nos ao amor considerado como um fator do qual se


podem tirar benefícios da coletividade, da mesma forma que
qualquer outro fenômeno de caráter social psíquico. Que o amor
não é de modo algum um assunto privado, que interessa
unicamente a dois corações isolados, mas, pelo contrário, que o
amor supõe um princípio de união de um valor incalculável para a
coletividade, isto evidencia-se no fato de que em todos os graus do
desenvolvimento histórico, a humanidade estabelece regras que
determinavam quando em que condições o amor era considerado
legítimo (...), e quando teria de ser considerado como culpado (ou
seja quando o amor se encontrava em contradição com a
sociedade” (Ibid., p.106)

Sendo o amor um fato social possui, então, uma história. Kollontai faz uma
análise histórica de como este sentimento foi se transformando de acordo com cada
época. Segundo ela, durante a Antiguidade, a virtude maior dos homens era o amor
dedicado a vínculos sanguíneos, sobretudo o amor entre irmãos. No período das
sociedades patriarcais e da criação das formas de Estado, o sentimento que prevalecia
era aquele que deveria gerar um amor coletivo, fortalecendo os laços do grupo. O amor-
amizade correspondia à emoção que deveria ser estimulada, possuindo inclusive
vínculos espirituais entre os membros de uma mesma tribo, por exemplo. Privilegiava-
se, portanto, a acumulação de laços psíquicos entre todos os membros do grupo em
detrimento da união matrimonial que, por sua vez, representava “um luxo que se podia
permitir a um cidadão depois de haver cumprido os seus deveres para com o Estado” e
estava restrito a sentimentos particulares que não deveriam se sobrepor ao interesse
coletivo capaz de manter o organismo social. O amor-amizade pressupunha uma
fidelidade até a morte, sendo, deste modo, considerado uma virtude cívica, levando
aquele que expunha sua vida pelos amigos a uma condição de herói.
Com a chegada do feudalismo, as tradições culturais mantidas pela família
tomaram a centralidade. A ausência de um Estado centralizador e a fragmentação do
poder entre os senhores feudais distribuídos em seus feudos acabou por estabelecer
novas formas de relacionamentos e, logo, de sentimentos. A amizade entre os
indivíduos não era percebida enquanto virtude, mas sim a obediência aos interesses
familiares. Por esse motivo, o casamento entre duas pessoas só poderia ocorrer de forma
positiva com o aval da família. Os sentimentos pessoais não deveriam se sobrepor aos
desejos da tradição. No entanto, foi ainda neste mesmo sistema feudal que o amor-
paixão passou a ser considerado como um fato social, pois as guerras trouxeram uma
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nova demanda. O sentimento do amor por sua “inconquistável dama” impulsionava o


homem apaixonado a se lançar com maior coragem nos conflitos militares. O amor
entre marido e mulher não promovia maiores inspirações e não constituía a base da
família feudal. O amor só era valorizado quando se tratava de um sentimento pela
mulher do outro, pela mulher inacessível, que o fazia criar forças para sobreviver às
guerras. As mulheres solteiras não eram objeto de desejo. Reconhecia-se, por
conseguinte, o amor espiritual como “um estado emocional útil para as finalidades da
classe feudal” e, por isso, foi colocado numa posição de destaque.
As insatisfações sociais constantes entre servos e comerciantes levaram, aos
poucos, à transformação das antigas relações econômicas e também morais. Os
princípios do individualismo e da concorrência demandam novas emoções muito
diferentes daquela do amor amizade e do amor espiritual. A sociedade capitalista
baseava-se agora na dedicação ao trabalho para a acumulação do capital. Para que estas
riquezas fossem mantidas em segurança e gastas com economia, sem desperdícios,
fazia-se fundamental uma boa dona de casa, amiga e comprometida com este acúmulo.
A família passou a constituir-se enquanto unidade econômica do regime burguês. A
união por verdadeiros laços espirituais e de carinho corresponderia à nova virtude
moral, mudando, deste modo, as noções de amor e matrimônio: o novo ideal moral era
uma fusão de uma sadia atração carnal com uma afinidade psíquica. Compreendendo a
família como guardiões do capital, o matrimônio deveria ser para sempre a fim de não
colocar em perigo a sua propriedade privada. O amor ficava restrito às relações do casal,
sendo condenada qualquer relação extraconjugal. Os limites impostos pela moral sexual
burguesa aprisionavam os cônjuges de tal modo a desenvolver conflitos amorosos,
expressos nos romances da época. Segundo Kollontai, a contradição deste novo tipo de
amor não corresponde às necessidades da classe trabalhadora, já que não têm como
objetivo primeiro o acúmulo de capital, e nem às aspirações dos intelectuais. Esta
inquietação por um novo tipo de amor está diretamente relacionada com os anseios por
uma nova sociedade. A militante lança tal pergunta à juventude russa: “Como será
possível estabelecer relações entre os sexos que contribuam para tornar os homens mais
felizes, mas que ao mesmo tempo não destruam os interesses da coletividade?”.
Enfim, desenvolve o que para ela seria a nova proposta de amor: o amor-
camaradagem. A sociedade socialista, estando edificada sobre os princípios da
camaradagem e da solidariedade, deverá desenvolver entre os indivíduos a capacidade
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do potencial de amor. O amor não mais se situaria no domínio das relações


matrimoniais e da família, mas sim estender-se-ia às relações entre a própria classe
operária. Kollontai afirma que

“A multiplicidade da alma constitui precisamente um fato que


facilita o desenvolvimento e a educação dos laços do coração e do
espírito, mediante os quais se consolidará a coletividade
trabalhadora. Quanto mais numerosos são os fios que se estendem
entre as almas, entre os corações e as inteligências, mais solidez
adquire o espírito de solidariedade e com maior facilidade pode-se
realizar o ideal da classe operária: camaradagem e união” (Ibid., p.
124).

O ideal de amor da nova sociedade estaria baseado na colaboração no trabalho e na


solidariedade de espírito. Sendo assim, não importa o formato das relações – união
estável ou união passageira -, mas sim o sentimento de coletividade e independência
promovido por ela.
São, portanto, os objetivos da sociedade comunista: a igualdade nas relações
(igualdade de gênero), o reconhecimento mútuo de seus direitos (fim da propriedade
privada) e a sensibilidade fraternal, que desenvolve, também no homem, um cuidado
maior com as questões subjetivas que envolvem o casal (antes atribuída à mulher).
Desta maneira, Kollontai pretendeu evidenciar mais um importante aspecto da luta de
classes que, sem a igualdade entre homens e mulheres não seria possível.

4. Conclusão

Este presente trabalho é fruto dos nossos recentes estudos sobre gênero dentro da
perspectiva do materialismo histórico. Faz parte, inclusive, das reflexões desenvolvidas
para a nossa dissertação de mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal Fluminense (UFF).
A vida e obra de Alexandra Kollontai, esquecida dentro do próprio movimento
de esquerda, nos representou uma possibilidade de trazer novamente ao marxismo o
debate sobre o papel da mulher dentro da sociedade capitalista, bem como o potencial
revolucionário desta questão. A autora evidenciou a impossibilidade de qualquer
transformação histórica que não contemple as reivindicações femininas. Para o capital,

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as mulheres constituem-se enquanto guardiãs da propriedade privada da família,


enquanto propriedade privada em si, assim como mão de obra frágil e submissa ao
poder masculino. A mulher celibatária surge como resultado da industrialização
provocada pela burguesia e, num movimento contraditório, acaba por promover as
condições de sua destruição. A mulher emancipada, independente emocional e
financeiramente, impõe sua personalidade em detrimento da virilidade e
autossuficiência masculina, renegando o amor paixão e a maternidade como principal
objetivo de vida. Aproximam-se das características até então exclusivamente
masculinas.
Kollontai nos atenta, portanto, que o amor é um fato social e produto de um
período histórico. Tal afirmação nos faz entender que as questões culturais são, também,
de interesse do materialismo histórico e devem ser tratadas com a devida atenção. Trata-
se de pensarmos continuamente sobre as estratégias teóricas e práticas que nos levarão à
superação da propriedade privada e, por isso, da divisão social e sexual do trabalho
responsáveis pela alienação de homens e mulheres, seja através da rotina do trabalho ou
através das morais sexuais criadas de acordo com o interesse das classes dominantes.
Negar a importância deste debate é cair num equívoco que pode aproximarmos dos
princípios pós-modernos que buscam inserir as questões sociais de maneira a esvaziá-lo
de sentido e força, fragmentando as lutas.

Referência bibliográfica

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