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A Queda de Gondolin
Um dos textos mais antigos do Legendarium
A presente obra foi traduzida da série History of Middle Earth, publicada e editada por
Cristopher Tolkien, filho do professor Tolkien. Os contos desta série são, na verdade, um grande
apanhado de textos e histórias que Tolkien desenvolveu ao longo dos anos, mas que nunca teve
oportunidade (ou mesmo vontade) de publicar. Algumas destas informações são arcaicas e
podem entrar em conflito com as histórias publicadas em suas edições oficiais.

A narrativa da queda de Gondolin é, sem dúvida, um dos mais antigos textos da mitologia tolkieniana. Não sei exata-
mente quantos, mas acredito que a forma original deste texto foi desenvolvida por Tolkien há mais de quarenta anos, muito
antes mesmo do lançamento de “OHobbit” ou de “O Senhor dos Anéis”. Várias palavras e expressões foram modificadas
durante sua tradução porque eram muito antigas; um bom exemplo seria a palavra “globlins”, que substituímos por orcs;
outro exemplo seria “gnomos”, que substituímos por elfos, mas estes são apenas dois exemplos, houveram dezenas de casos
assim. Outra complicação que tivemos foi o tamanho do texto, quase trinta páginas e, devido justamente ao tamanho, não
traduzimos as anotações de Cristopher Tolkien que somavam outras quinze páginas. Todavia, mesmo sem as notas, a
história é perfeitamente inteligível. Após essas explicações básicas, deixo vocês com a maravilhosa narrativa de “A Queda de
Gondolin”, a mais bela cidade élfica jamais construida em Beleriand.
Daniel De Boni
A Queda de Gondolin
aibam, então, que Tuor era um homem que vivia, em dias muito
antigos, nas terras que ficam ao norte, chamadas Dor Lómin,1 ou
a Terra das Sombras, e a qual os noldor, dentre os eldar, melhor
conhecem. O povo do qual vinha Tuor vagava pelas florestas e
campos e não fazia canções sobre o mar, nem o conhecia. Mas
Tuor não morava entre eles. Tuor vivia sozinho, próximo ao lago
que era chamado Mithrim, 2 ora caçando em seus bosques, ora fazendo música ao lado
de suas costas, com sua harpa rústica, feita de madeira e tendões de ursos. Muitos,
ouvindo do poder das canções de Tuor, vinham para escutar sua harpa, mas Tuor
deixou seu canto e foi-se para lugares solitários. Ele aprendeu muitas coisas estranhas e
adquiriu conhecimento sobre os noldor errantes, que ensinaram-lhe muito da sua lin-
guagem e tradições. Mas ele não estava destinado a morar para sempre naqueles bos-
ques. Conta-se que a magia e o destino conduziram-no, certo dia, a uma abertura
cavernosa 3 na qual um rio escondido fluía a partir do Mithrim. E Tuor entrou naquela
caverna, buscando aprender seu segredo, mas as águas do Mithrim conduziram-no

II
adiante, para dentro do coração da rocha e
ele não pôde mais voltar para a luz. E isto,
conta-se, era a vontade de Ulmo, o Senhor
das Águas, pela sugestão de quem os noldor
haviam feito aquele caminho oculto. Então,
vieram os noldor a Tuor e guiaram-no ao
longo de passagens escuras entre as monta-
nhas até que ele chegasse à luz mais uma vez
e visse que o rio fluía velozmente em um
desfiladeiro de grande profundidade com la-
dos impossíveis de serem escalados. Agora
Tuor não desejava mais retornar, seguiu adi-
ante e o rio o conduzia em direção ao oeste.
O sol subia por detrás de suas costas, pu-
nha-se diante de sua face e, onde a água fazia espuma entre as muitas pedras ou caía em
quedas d’água, havia, às vezes, arco-íris tecidos através do desfiladeiro, mas, ao anoite-
cer, suas paredes lisas brilhavam ao pôr do sol e, por estas razões, Tuor o chamou de
Fenda Dourada ou Ravina do Teto Colorido, que é, na língua dos elfos, Glorfalc 4 ou
Cris Ilbranteloth. Tuor viajou ali durante três dias, bebendo das águas do rio secreto e

III
alimentando-se com seus peixes. Estes eram de ouro e prata, com formas maravilhosas.
Finalmente o desfiladeiro alargou-se. Conforme este ficava mais aberto, seus lados
ficavam mais baixos e mais acidentados, o leito do rio ficava entulhado com pedras
contra as quais as águas espumavam e borbotavam. Por longos períodos, Tuor sentava-
se e contemplava a água espirrando e escutava sua voz. Depois, erguia-se e saltava para
a frente, de pedra em pedra, cantando enquanto prosseguia. Ou, conforme as estrelas
saíam na faixa estreita de céu acima da ravina, ele levantava ecos para responder à
vibração feroz de sua harpa.
Um dia, após uma grande jornada de progresso exaustivo, Tuor ouviu um grito, ao
anoitecer, e não pôde decidir de que criatura vinha. Ora dizia “é uma criatura mágica”,
ora dizia “é apenas algum pequeno animal que geme entre as pedras”. Por vezes lhe
parecia que um pássaro desconhecido falara com uma voz nova e estranhamente triste
aos seus ouvidos. Tuor não havia ouvido a voz de qualquer pássaro em toda sua peram-
bulação ao longo de Glorfalc e ficou feliz pelo som, embora este fosse lamuriento. No
dia seguinte, em uma dada hora na manhã, ouviu o mesmo grito sobre sua cabeça e,
olhando para cima, viu três grandes pássaros brancos batendo suas asas vigorosamente
ravina acima e proferindo gritos como aqueles que ouvira entre o crepúsculo. Aquelas
eram as grandes gaivotas, os pássaros de Ossë.
Naquela parte do leito do rio, havia ilhotas rochosas entre a corrente e rochas caídas

IV
cobertas de areia branca ao pé da parede lateral da ravina, de tal forma que era difícil
caminhar por ali. Procurando, por alguns instantes, Tuor finalmente encontrou um
lugar por onde, com algum trabalho, ele podia escalar a parede da ravina. Então, um
vento fresco soprou contra o seu rosto e ele disse: “isto é bom como um gole de vinho!”
Mas ele não sabia que estava perto dos confins do Grande Mar.
Conforme Tuor prosseguia acima das águas, as paredes do desfiladeiro aproximavam-
se novamente e elevavam-se a uma altura maior, de forma que ele caminhava agora sobre
o topo elevado de um precipício. Ele chegou a um estreitamento cheio de ruídos na
ravina. Olhando para baixo, viu a maior das maravilhas, pois parecia que uma enchente
de água furiosa subia o caminho estreito e
fluía de volta contra a corrente do rio até a
sua fonte, mas aquela água que descera do
Mithrim distante ainda avançava e uma pa-
rede de água levantou-se até perto do topo
do precipício, coroada com espuma e de-
formada pelos ventos. As águas do Mithrim
foram subvertidas e a inundação que se apro-
ximava varreu o canal acima com um rugi-
do e submergiu as ilhotas rochosas, arras-

V
tando a areia branca. Tuor fugiu e ficou temeroso, pois não conhecia os movimentos do
mar. Porém, os ainur haviam posto, em seu coração, o desejo de escalar o canal naquele
momento. Do contrário, teria sido afogado na maré que se aproximava. E aquela maré
estava forte por causa de um vento do oeste. Então, Tuor encontrou-se em uma terra
rústica e despida de árvores, alisada por um vento vindo do pôr do sol. Todos os arbustos
e moitas inclinavam-se para o alvorecer por causa daquele vento. Durante algum tempo,
vagou ali, até que chegasse aos negros precipícios junto ao mar e visse o oceano e suas
ondas pela primeira vez. Àquela hora, o sol mergulhava além da borda do mundo, ele
ficou ereto no topo do precipício com os braços abertos e seu coração foi preenchido com
um desejo, de fato, grande. Alguns dizem que ele foi o primeiro dos homens a chegar ao
Mar e conhecer o desejo que este traz, mas não sei se o dizem acertadamente.
Naquelas regiões ele montou sua habitação, morando em um esconderijo abrigado
por grandes rochas negras, cujo chão era de areia branca, salvo onde a maré alta o cobria
parcialmente com água azul. Nem a espuma chegava lá, a não ser em ocasiões da
tempestade mais forte. Lá, por muito tempo, permaneceu sozinho e vagou na beira da
praia ou caminhou sobre as rochas à maré baixa, maravilhando-se com os lagos e as
grandes algas, as cavernas gotejantes e a estranha ave do mar que viu e veio a conhecer.
Mas a subida e a vazante das águas e a voz das ondas sempre foram, para ele, o maior
dos espetáculos e sempre lhe pareciam uma coisa nova e inimaginável.

VI
Ora, nas águas quietas do Mithrim, sobre a qual a voz do pato selvagem ou do
lagópode chegavam longe, ele viajara em um barco pequeno, com a proa esculpida
como o pescoço de um cisne e este ele perdera no dia da descoberta do rio oculto. No
mar, não se aventurara ainda, embora seu coração estivesse sempre incitando-o com
um desejo ardente por suas águas. Em noites tranqüilas, quando o sol sumia além da
extremidade do mar, esse desejo crescia de forma voraz. Madeira ele possuía que chega-
va até ele, descendo o rio oculto. Uma boa madeira era esta, pois os noldor a cortavam
nas florestas de Dor-Lómin e mandavam-na para ele, flutuando. Mas não construíra
nada ainda além de uma habitação em lugar abrigado em seu esconderijo, cujos con-
tos, entre os eldar, desde então, chamam Falasquil. Este, por trabalho lento, Tuor ador-
nou com belas esculturas dos animais, árvores, flores e pássaros que conhecera perto
das águas do Mithrim e sempre entre estas estava o Cisne, o principal, pois Tuor amava
este emblema. Tornar-se-ia um símbolo para si mesmo, sua família e seu povo, mais
tarde. Lá passou um período muito longo até que a solidão do mar vazio entrasse em
seu coração e, mesmo Tuor, o solitário, ansiou pela voz dos homens. Com isto, os ainur
tinham algo a haver, pois Ulmo amava Tuor.
Eram, então, os últimos dias do verão e, uma manhã, enquanto olhava ao longo da
costa, Tuor viu três cisnes voando alto e vigorosamente da direção norte. Estes pássaros
não haviam estado, antes, nestas regiões e ele tomou-os por um aviso, dizendo: “por

VII
muito tempo meu coração tem sido instigado em uma viagem para longe daqui e, veja!
Agora, afinal, seguirei estes cisnes.” Os cisnes entraram na água do abrigo de Tuor,
levantaram-se novamente e voaram lentamente para o sul, ao longo da costa. Tuor,
portando sua harpa e lança, os seguiu.
Naquele dia, Tuor deixou para trás uma viagem longa. Antes do anoitecer, ele chegou
a uma região onde árvores outra vez apareciam. A maneira daquela terra pela qual agora
viajava diferia grandemente daquelas praias próximas a Falasquil. Naquele lugar, Tuor
vira precipícios poderosos cheios de cavernas e grande cavidades, enseadas profundas e
naturalmente fortificadas.
Mas, dos topos dos roche-
dos, estendia-se uma ter-
ra escarpada, áspera, aplai-
nada e deserta, para onde
uma orla azul distante, ao
leste, falava de colinas lon-
gínquas. Agora, porém,
ele via uma praia longa e
inclinada, trechos areno-
sos. Enquanto as colinas

VIII
distantes marchavam sempre mais próximas à margem do mar, as suas encostas eram
cobertas com pinho ou abeto, sobre os pés dessas encostas cresciam vidoeiros e carvalhos
antigos. Dos pés das colinas, correntes de águas frescas lançavam-se ao longo de fendas
estreitas. Assim, encontravam as praias e as ondas salgadas. Por sobre algumas daquelas
fendas, Tuor não podia saltar e freqüentemente era difícil avançar por tais caminhos.
Entretanto, ainda assim, ele prosseguia, pois os cisnes viajavam sempre adiante dele, ora
girando de repente, ora apressando-se adiante, mas nunca vindo para a terra. O movi-
mento das suas asas, de batida vigorosa, o encorajava. É dito que, desta maneira, Tuor
prosseguiu por um grande número de dias e que o inverno marchou do norte apenas um
pouco mais veloz, ainda que Tuor fosse incansável.
Não obstante, Tuor chegou, sem ferida de animal ou clima, em um tempo de pri-
meira primavera, à foz de um rio. 5 Aqui, a terra era menos setentrional e mais agradá-
vel do que aquela próxima à saída de Glorfalc. Além disso, por uma curva da costa, o
mar estava agora bastante mais ao sul do que ao oeste, tanto quanto podia marcar pelo
sol e pelas estrelas, mas ele mantivera seu lado direito sempre para o mar.
Este rio fluía descendo um canal agradável e, em seus bancos, estavam terras férteis:
gramado e prado úmido de um lado e encostas cobertas de árvores crescidas do outro;
suas águas encontravam o mar preguiçosamente e não lutavam como as águas do Mi-
thrim, no norte. Longas línguas de terra permaneciam espalhadas em seu curso, cobertas

IX
com juncos e moitas fechadas, até que, mais adiante, em direção ao mar, emergiam
trechos arenosos. Estes eram lugares amados por tal multidão de pássaros como Tuor não
encontrara ainda em nenhum lugar. O pio, lamento e assobio deles enchia o ar. Aqui
entre asas brancas, Tuor perdeu de vista os três cisnes, não os viu novamente.

X
ntão, Tuor ficou, por uma estação, cansado do mar, pois a luta da
viagem fora dolorida. Nem foi isto sem o planejamento de Ulmo.
Naquela mesma noite, os noldor vieram a ele. Guiado pelas lanter-
nas azuis dos noldor, Tuor encontrou um caminho ao lado da borda
do rio e progrediu tão firmemente para o interior que, quando o
amanhecer encheu o céu à sua direita, o mar e sua voz estavam
distantes atrás dele, o vento vinha diante de si de forma que nem sequer o seu odor estava
no ar. Assim, em breve, chegou àquela região que fora chamada Arlisgion, 6 o lugar dos
juncos e esta é uma das terras que estão ao sul de Dor-Lómin e separadas de lá pelas
Montanhas de Ferro, 9 cujas pontas correm mesmo para o mar. Dessas montanhas vinha
este rio, de uma grande clareza e frio maravilhoso eram suas águas, mesmo neste lugar.
Agora, este é um dos rios mais famosos das histórias dos eldar e, em todas as línguas, é
chamado Sirion. Aqui, Tuor descansou por algum tempo até que, impelido pelo desejo,
levantou-se mais uma vez para viajar mais e mais adiante, pelas marchas de muitos dias,
ao longo das bordas do rio. A primavera plena ainda não trouxera o verão quando Tuor
chegou a uma região ainda mais graciosa. A canção de pequenos pássaros era como uma
música de encanto, pois não existem pássaros que cantam como as canções dos pássaros
da Terra dos Salgueiros. 7 A esta região de maravilha ele tinha chegado agora. O rio virava,
em curvas largas e com bancos baixos, por uma grande planície da mais verde e doce relva.

XI
Salgueiros de idade incontável estavam próximos às suas bordas, seu seio largo estava
alastrado com folhas de nenúfar, cujas flores não haviam desabrochado ainda, na preco-
cidade do ano. Porém, embaixo dos salgueiros, as espadas verdes dos lírios estavam de-
sembainhadas, os caniços se levantavam, os juncos pareciam ordenados e preparados para
o combate. Residia, naqueles lugares brumosos, um espírito de murmúrios que sussurra-
va para Tuor, de modo que, ao cair do sol, ele não desejava partir e, na manhã, pela glória
dos incontáveis botões-de-ouro, ele tinha ainda menos desejo de ir-se dali. Portanto,
demorava-se.
Aqui, viu ele as primeiras borboletas, a visão alegrou-o. É dito que todas as borbole-
tas e suas famílias nasceram no vale da Terra dos Salgueiros. Chegou o verão, o tempo
das mariposas e noites tépidas, Tuor se surpreendeu ante a multidão de moscas e besou-
ros, o seu zunido, o ruído musical das abelhas, a todas estas coisas ele deu nomes por
conta própria, teceu estes nomes em canções novas em sua velha harpa, estas canções
eram mais suaves do que o seu canto de antigamente.
Ulmo temeu que Tuor morasse para sempre ali e as grandes coisas do seu desígnio
não chegassem a se cumprir. Por isso, temeu confiar a orientação de Tuor apenas aos
noldor por mais tempo, que serviam-no em segredo, e que, por medo de Melkor,
oscilavam muito. Nem eram fortes contra a magia daquele lugar de salgueiros, pois
muito grande era o encanto do lugar. Não é verdade que, mesmo depois dos dias de

XII
Tuor, Noldorin e seus eldar foram até lá, buscando por Dor Lómin, o rio oculto e as
cavernas da prisão dos noldor? Ainda assim, perto do fim da sua demanda, eles pode-
riam abandoná-la? De fato, dormindo, dançando e fazendo bela música dos sons do
rio e do murmúrio da relva, trançando tecidos ricos de fios de teia de aranha e penas de
insetos alados, eles foram varridos pelos orcs despachados por Melkor das Colinas de
Ferro e poucos dos noldor escaparam. Mas estas coisas ainda não haviam acontecido.
O grande Ulmo saltou sobre sua carruagem diante da entrada do seu palácio, sob as
águas tranqüilas do Mar Exterior, e sua carruagem era puxada por narvais e leões mari-
nhos. Ela era, em sua forma, igual a uma baleia e, entre o soar de grandes trompas,
partiu velozmente de Ulmonan. Tão grande era a sua velocidade que em dias, não em
anos sem conta, como poder-se-ia pensar, alcançou a foz do rio. Seu carro não podia
viajar sem dano na água do rio e em meio aos seus bancos, portanto, Ulmo, amando
todos os rios e este mais do que a maioria, foi-se dali a pé, vestido até a cintura em
armadura como as escamas de peixes azuis e prateados. Seus cabelos eram prata azulada
e sua barba, que lhe ia até os pés, era do mesmo tom, não portava coroa. Abaixo da
armadura, desciam as beiras de seu manto de verdes tremeluzentes e de que substância
era este tecido não se sabe, mas qualquer um que olhasse nas profundezas de suas cores
sutis parecia ver os movimentos lânguidos das águas profundas cortadas pelas luzes
furtivas de peixes fosforescentes que vivem no abismo. Ele estava cingido com uma

XIII
corda de pérolas grandes e calçado com grandes sapatos de pedra.
Para lá levou também seu grande instrumento de música, este era de um desenho
estranho, pois era feito de conchas longas retorcidas e perfuradas com buracos. Soprando
nelas e tocando com os seus dedos longos, fazia melodias profundas de uma magia maior
do que qualquer outro entre os músicos alguma vez já conseguiu em harpa ou alaúde, em
lira ou flauta ou instrumentos de arco. Vindo, então, ao longo do rio, sentou-se entre os
juncos, ao crepúsculo, e tocou em seu aretefato de conchas. Estava próximo daqueles
lugares onde Tuor permanecia. Tuor escutou e ficou emudecido. Lá ficou ele, entre a relva
que lhe chegava aos joelhos, e não escutou mais o zumbido de insetos, nem o murmúrio
da beira do rio, o odor das flores não entrou mais em suas narinas. Mas ouviu o som das
ondas e o lamento dos pássaros do mar, sua alma lançou-se para lugares rochosos e plata-
formas que cheiram a peixe, para o espirrar de água do cormorão mergulhador, para
aqueles lugares onde o mar escava precipícios negros e exclama em alto volume.
Ulmo levantou-se e falou-lhe. Por temor, Tuor chegou perto da morte, pois a pro-
fundidade da voz de Ulmo é das mais intensas, tanto quanto os seus olhos, que são os
mais profundos dentre todas as coisas. E Ulmo disse:
— Ó Tuor do coração solitário, não desejo que vivas para sempre em belos lugares de
pássaros e flores, nem conduzir-te-ia eu por esta terra agradável; mas assim deve ser. Parte
agora em tua jornada destinada e não demora, pois longe daqui fica teu destino. Agora

XIV
deves tu buscar, através
das terras, pela cidade do
povo chamado gondolin-
drim ou os habitantes na
pedra e os noldor escol-
tar-te-ão para lá, em segre-
do, por temor dos espiões
de Melkor. Palavras eu po-
rei em tua boca e lá per-
manecerás tu por algum
tempo. Ainda assim, tal-
vez tua vida se volte nova-
mente para as águas po-
derosas e seguramente um filho virá de ti. Nenhum homem saberá mais do que ele acerca
das maiores profundezas, sejam elas do mar ou do firmamento dos céus.
Contou Ulmo, a Tuor, um pouco do seu desígnio e desejo, mas disso Tuor entendeu
pouco naquele momento e temeu sobremaneira. Ulmo foi envolto em uma névoa,
como se fosse marinha naqueles lugares interiores, e Tuor, com aquela música em seus
ouvidos, de bom grado voltaria às regiões do Grande Mar. Contudo, lembrando-se de

XV
suas ordens, voltou-se e embrenhou-se no interior, ao longo do rio. Assim viajou até
que o dia surgisse. Todavia, aquele que ouviu as trompas de Ulmo ouve o seu chamado
até a morte e isso Tuor acabou descobrindo.
Quando o dia veio, ele estava cansado e dormiu até perto do entardecer. Os noldor
vieram até ele e o guiaram. Viajou muitos dias ao crepúsculo e na escuridão. Dormia de dia
e, por causa disto, veio a acontecer, depois, que não se lembrava muito bem dos caminhos
que atravessara naqueles tempos. Agora Tuor e os seus guias prosseguiam incansáveis e a
terra se tornou uma terra de colinas encrespadas em torno de cujos pés o rio voltava, lá havia
muitos vales de afabilidade extrema. Mas, aqui, os noldor tornaram-se inquietos:
— Estes são os confins das regiões que Melkor infestou com os seus orcs, o povo do
ódio. Distante, ao norte e, contudo, não afastadas o suficiente (quisera que estivessem
há dez mil léguas), ficam as Montanhas de Ferro onde assenta-se o poder e o terror de
Melkor, de quem somos escravos. De fato esta condução de ti nós fazemos em segredo
e, se ele conhecesse todos os nossos propósitos, o tormento dos balrogs cairia sobre nós.
Caindo, então, em tal medo os noldor logo o deixaram e Tuor viajou sozinho entre
as colinas, isto mostrou-se mau, depois, já que “Melkor tem muitos olhos”, dizem.
Enquanto Tuor viajava com os noldor eles o conduziam por caminhos, ao crepúsculo,
e por muitos túneis secretos através das colinas. Mas, agora, estava perdido. Escalava
freqüentemente os topos dos outeiros e colinas, esquadrinhando as terras em volta.

XVI
Contudo, não podia ver sinais de qualquer habitação e, de fato, a cidade dos gondolin-
drim não era encontrada com facilidade, pois nem mesmo Melkor e seus espiões havi-
am-na descoberto ainda. Conta-se, de qualquer modo, que, neste tempo, os espiões
tiveram notícias de que o pé estranho do homem tinha pisado aquelas terras, e que, por
isso, Melkor duplicou suas artes e vigilância.
Quando os noldor, amedrontados, abandonaram Tuor, um certo Voronwë seguiu-
o para longe, apesar de seu medo, depois que a repreensão não adiantou para encorajar
os outros. Agora Tuor caíra em uma grande exaustão, estava sentado ao lado do fluxo
corrente, o desejo do mar estava em seu coração. Estava disposto, uma vez mais, a
seguir este rio de volta para as águas largas e as ondas ruidosas. Mas este Voronwë, o fiel,
chegou até ele novamente e, erguendo-se junto ao seu ouvido disse:
— Ó Tuor, não pense senão que tu contemplarás novamente, um dia, o teu desejo;
levanta agora e vê, eu não te deixarei. Eu não sou dos que conhecem os caminhos entre os
noldor, sendo um artesão e fabricante de coisas feitas à mão de madeira e de metal, não
me uni ao grupo de escolta até que fosse tarde. Todavia, há muito ouvi sussurros e decla-
rações ditas em segredo entre o cansaço da escravidão, a respeito de uma cidade onde os
noldor poderiam libertar-se caso pudessem encontrar o caminho oculto para lá, Nós
podemos, sem dúvida, encontrar a estrada para a cidade de pedra, onde está a liberdade
dos gondolindrim.

XVII
Saibam, então, que os gondolindrim eram aquela família dos noldor que, sozinha,
escapara do poder de Melkor quando, na Batalha das Lágrimas Incontáveis, ele matara
e escravizara seu povo e tecera feitiços sobre este, fazendo com que morasse nos Infer-
nos de Ferro, partindo dali apenas segundo a sua vontade e ordem. Por um longo
tempo, Tuor e Voronwë buscaram pela cidade daquele povo, até que, depois de muitos
dias, descobriram um vale profundo entre as colinas. Aqui seguia o rio, sobre um leito
muito rochoso, com muita velocidade e barulho. Era encoberto com um crescimento
pesado de carvalhos, mas as paredes do vale eram verticais, considerando estarem pró-
ximas a algumas montanhas que Voronwë não conhecia. Lá, na parede verde, aquele
noldo localizou uma abertura como uma grande porta com lados inclinados, esta era
coberta com arbustos espessos e uma vegetação rasteira longa e intrincada. Entrementes,
a visão penetrante de Voronwë não podia ser enganada. Porém, conta-se que tal magia
seus construtores haviam fixado sobre esta (com a ajuda de Ulmo, cujo poder corria até
mesmo naquele rio, mesmo que o medo de Melkor seguisse em seus bancos) que
ninguém, exceto os do sangue dos noldor, poderia enxergá-la assim por casualidade.
Nem Tuor jamais a teria encontrado exceto pela fidelidade daquele noldo, Voronwë.
Agora, os gondolindrim haviam feito sua morada secreta deste modo, por medo de
Melkor. Mesmo assim, não poucos dos mais bravos noldor escapavam, descendo o rio
Sirion a partir daquelas montanhas. Se muitos pereciam desse modo, pelo mal de

XVIII
Melkor, muitos outros, encontrando esta passagem mágica, chegavam, afinal, à cidade
de pedra e aumentavam o número de seu povo.

XIX
uor e Voronwë regozijaram-se muito ao encontrar aquele portão,
contudo, ao lá entrarem, acharam um caminho escuro, de avanço
difícil e cheio de curvas. Durante considerável tempo, prossegui-
ram, hesitantes, dentro de seus túneis. Estava cheio de ecos teme-
rosos, um incontável ruído de passos vinha atrás deles, deixando
Voronwë amedrontado.
— São os orcs de Melkor, os orcs das colinas.
Correram, caindo por cima das pedras na escuridão, até que perceberam que era
apenas a ilusão do lugar. Assim chegaram, depois do que pareceu um tempo imensurá-
vel de apalpadelas temerosas, a um lugar onde uma luz distante brilhava e, dirigindo-se
para este brilho, chegaram a um portão como aquele pelo qual haviam entrado, mas de
modo algum coberto por vegetação. Passaram para a luz e, durante certo tempo não
puderam ver nada, mas imediatamente um grande gongo soou e houve um estrondo
de armadura... Estavam rodeados por guerreiros vestidos em aço. Olharam para cima e
puderam ver! Estavam ao pé de colinas íngremes. Tais colinas faziam um grande círculo
no qual ficava uma planície ampla e firme naquele lugar. Não exatamente no centro,
mas mais próximo àquele lugar onde estavam parados, estava uma grande colina com
um topo nivelado. Naquele ápice, erguia-se uma cidade na nova luz da manhã. Neste
momento, Voronwë falou para a guarda dos gondolindrim e a sua fala estes compreen-

XX
deram, pois esta era a
doce língua dos noldor.
Tuor falou também, ques-
tionou onde estariam e
quem poderia ser aquele
povo em armas que pos-
tava-se em torno, pois es-
tava um tanto espantado
e muito admirado da boa
qualidade de suas armas.
Foi-lhe dito por um da-
quela companhia:
— Nós somos os guar-
diões da saída do Caminho da Fuga. Alegrem-vos que tenham-no encontrado, pois con-
templam diante de vós a Cidade dos Sete Nomes, 11 onde todo aquele que guerreia com
Melkor pode encontrar esperança.
— Quais são esses nomes? – Indagou Tuor.
O líder da Guarda respondeu:
— É dito e cantado: “Gondobar eu sou chamada e Gondothlimbar, Cidade de

XXI
Pedra e Cidade dos Moradores em Pedra; Gondolin a Pedra da Canção e Gwarestrin
eu sou denominada, a Torre da Guarda; Gar Thurion ou o Lugar Secreto, pois estou
escondida dos olhos de Melkor; mas aqueles que mais me amam me chamam Loth,
pois, como uma flor sou eu. Lothengriol, a flor que viceja na planície.” Contudo, –
acrescentou – em nossa fala diária, nós dizemos e a chamamos Gondolin.
— Leve-nos para lá, – disse Voronwë – pois lá entraríamos de bom grado.
— O meu coração desejava muito trilhar os caminhos desta bela cidade. –falou Tuor.
Ao que respondeu o líder da Guarda:
— Nós mesmos devemos permanecer aqui, pois ainda há muito de nossa lua de
vigia para passar, mas vocês podem entrar em Gondolin e, além disso, não precisam de
nenhum guia até lá, pois, vejam! Ela ergue-se bela de se ver e muito clara, suas torres
alcançam os céus sobre a Colina da Guarda, no meio da planície.
Desse modo, Tuor e seu companheiro seguiram sobre a planície que era de uma
suavidade maravilhosa, interrompida aqui e acolá apenas por pedras arredondadas e
lisas que jaziam entre o gramado, ou por lagos em leitos rochosos. Muitos caminhos
bem cuidados havia através daquela planície e chegaram, depois da marcha da luz de
um dia, ao sopé da Colina da Guarda (que é, na língua dos noldor, Amon Gwareth).
Começaram a ascender as escadas sinuosas que subiam até o portão da cidade; nem
podia qualquer um alcançar aquela cidade, salvo a pé e vigiado a partir das muralhas.

XXII
Quando o portão ocidental refletia, dourado, a última luz do sol, eles chegaram ao
amplo topo da escada e muitos olhos contemplavam-nos das ameias e das torres.
Mas Tuor olhou para os muros de pedra, as torres elevadas, os pináculos reluzentes
da cidade e viu as escadarias de pedra e mármore, margeadas por corrimões delgados e
refrescadas pelo salto de cachoeiras finas como fios buscando a planície a partir das
fontes de Amon Gwareth. Prosseguiu, como que em algum sonho dos deuses, pois não
julgava que tais coisas fossem vistas pelos homens nas visões de seu sono, tão grande era
a sua admiração perante a glória de Gondolin.
Assim, chegaram até os portões, Tuor em maravilha e Voronwë em grande alegria de
que, ousando muito, houvesse trazido Tuor até ali segundo a vontade de Ulmo e se
livrado do jugo de Melkor para sempre. Embora não o odiasse de nenhum modo
menos, já não temia aquele mal com o terror que aprisiona. E, de fato, o feitiço que
Melkor mantinha sobre os noldor trazia um medo sem fim. Aquele sempre lhes parecia
próximo mesmo quando estavam distantes dos Infernos de Ferro. Os seus corações
estremeciam e não fugiam nem mesmo quando podiam, nisto Melkor confiava fre-
qüentemente.
Agora, as pessoas correm para fora dos portões de Gondolin e uma multidão rodeia
estes dois em maravilha, jubilando-se que ainda outro dos noldor tivesse fugido de
Melkor e se encantando com a estatura e os membros magros de Tuor, sua lança pesada

XXIII
e guarnecida com ponta de espinha de peixe e sua grande harpa. Rústico era o seu
aspecto, seus cabelos despenteados, vestia peles de ursos. Está escrito que, naqueles
dias, os pais dos pais dos homens eram de menor estatura do que os homens são agora
e os filhos da terra dos elfos de maior porte. Contudo, Tuor era o mais alto de todos os
que estavam lá. Realmente os gondolindrim não eram curvados como alguns de sua
família infeliz se tornaram, labutando, sem descanso, a cavar e martelar para Melkor.
Pequenos eram eles, esbeltos e muito ágeis. Eram de pés rápidos e sobremaneira belos.
Doces e tristes eram os seus lábios, os seus olhos sempre tinham uma alegria que podia
facilmente converter-se em lágrimas, pois, naqueles tempos, os noldor eram exilados
no coração, assombrados com um desejo que não esmorecia pelo seu antigo lar. Mas o
destino e a ânsia incontrolável por conhecimento conduzira-os a lugares distantes e,
agora, estavam todos cercados por Melkor e deviam fazer suas habitações tão belas
quanto podiam através do trabalho e do amor.
Como aconteceu que, entre homens, os noldor tenham sido confundidos com os
orcs, demônios de Melkor, eu não sei, a menos que alguns dos noldor tenham sido
deformados para o mal de Melkor e tenham se misturado entre estes orcs, pois toda
aquela raça havia sido criada por Melkor dos calores subterrâneos e do lodo. Seus
corações eram de granito e os seus corpos deformados; faces asquerosas que não sorri-
am senão risos como o estrondo de metais; nada os alegrava mais do que auxiliar nos

XXIV
mais vis propósitos de Melkor. O maior ódio existia entre eles e os noldor, que os
denominavam Glamhoth, ou “o povo do ódio terrível.”
Agora, os guardiões armados do portão conduziam de volta o povo aglomerado em
torno dos viajantes e um entre eles falou, dizendo:
— Esta é uma cidade de guarda e proteção, Gondolin sobre Amon Gwareth, onde
todos os que são de coração verdadeiro podem ser livres, mas onde ninguém está livre
para entrar sem ser conhecido. Digam, então, seus nomes.
Mas Voronwë nomeou-se Bronweg, dos noldor, ali chegado “pela vontade de Ulmo
como guia deste filho dos homens”. E Tuor disse:
— Eu sou Tuor, filho de Peleg, filho de Indor, da casa do Cisne. Casa esta proveni-
ente dos filhos dos homens no norte, que vivem distantes daqui. Aqui venho pela
vontade de Ulmo, dos Oceanos Exteriores.
Todos que escutaram ficaram silenciosos, a voz profunda e ressonante de Tuor os
mantinha admirados, porque suas próprias vozes eram belas como o respingo das fon-
tes. Nisto, alguém disse entre eles:
— Conduzam-no até o rei.
A multidão retornou para dentro das muralhas, levando os viajantes com eles e Tuor
viu que os portões eram feitos de ferro, de grande altura e força. As ruas de Gondolin
eram extensas e pavimentadas com pedras e mármore, havia belas casas e vielas entre

XXV
jardins de flores que enfeitavam cada local para onde se voltasse o olhar. Existiam torres,
muitas delas de grande esbelteza e beleza, construidas de mármore branco e entalhadas
maravilhosamente, que se erguiam para o céu. Havia praças iluminadas com fontes e
pássaros que cantavam entre os galhos de árvores envelhecidas. De todos estes belos locais,
o maior era aquele onde ficava o palácio do rei e a torre deste era a mais elevada na cidade,
as fontes que brincavam diante de suas portas lançavam a água vinte e sete braças no ar até
que ela caía em uma chuva cantante de cristal. Nesta, a luz do sol cintilava esplendida-
mente e o brilho refletido da lua conseguia ser ainda mais encantador. Os pássaros que
viviam lá eram da brancura da neve e suas vozes mais doces do que uma canção de ninar.
Em cada lado das portas do palácio estavam duas árvores: uma carregava flores de ouro
e a outra de prata. Nem elas alguma vez murchavam, pois eram ramos de tempos antigos,
das gloriosas árvores de Valinor que iluminaram aqueles lugares antes que Melkor e
Ungoliant as secassem. Aquelas árvores os gondolindrim chamavam de Glingol e Bansil.
Tuor foi levado à presença de Turgon, rei de Gondolin, que estava vestido de branco
e usava um cinto de ouro e uma grinalda de pedras vermelhas em sua cabeça. Turgon
ficou de pé diante de suas altas portas e, do topo de seus degraus brancos, falou:
— Bem vindo, ó homem da Terra das Sombras. Veja! Tua vinda foi estabelecida em
nossos livros de sabedoria e escreveu-se lá que viriam a se passar muitas coisas grandio-
sas nos lares dos gondolindrim quando para cá viesses.

XXVI
Então, Tuor sentiu que era hora de falar e Ulmo colocou poder em seu coração e
majestade em sua voz:
— Observe, ó pai da Cidade de Pedra, eu fui mandado por aquele que faz música
nas profundezas do Abismo e que conhece a mente dos elfos e homens, para dizer-te
que os dias da libertação se aproximam. Chegaram aos ouvidos de Ulmo sussurros de
sua morada e sua colina de vigilância contra o mal de
Melkor. Ele está satisfeito com sua obra, mas seu cora-
ção está enfurecido e os corações dos valar estão furio-
sos, vendo o sofrimento do cativeiro dos noldor e dos
homens. Melkor os cercou na Terra das Sombras, além
de colinas de ferro. Por isso fui trazido por um caminho
secreto, para dizer que deves chamar suas hostes e pre-
parar-te para a batalha, pois o tempo é vindo.
— Isso eu não farei, embora estas sejam as palavras
de Ulmo e de todos os valar. Não levarei meu povo
contra o terror dos orcs, nem arriscarei minha cidade
contra o fogo de Melkor. – retorquiu Turgon.
— Não, se tu não ousas agora grandemente, então,
os orcs habitarão no exterior para sempre, possuirão, no

XXVII
fim, a maior parte das terras de Arda e não cessarão de importunar elfos e homens,
mesmo que, por outros meios, os valar planejem, adiante, libertar os noldor. Mas se tu
confiares agora nos valar, embora terrível seja o encontro, os orcs deverão sucumbir e o
poder de Melkor será diminuído para uma pequena fração do que é hoje. Porém,
Turgon disse:
— Sou rei em Gondolin e nenhuma vontade deveria forçá-lo, contra o seu conse-
lho, para por em perigo o caro trabalho de longas eras idas.
Mas Tuor disse, porque assim ele havia sido mandado por Ulmo, que temera a
relutância de Turgon:
— Então, fui mandado para dizer que homens dos gondolindrim sejam mandados
rapidamente e secretamente descer o rio Sirion até o mar e lá construam barcos e
busquem voltar a Valinor. Veja! Os trajetos a esta estão nebulosos e a estrada desvane-
ceu-se do mundo, contudo, ainda residem lá os elfos e os valar ainda sentam-se em
Valinor. Embora sua alegria esteja minorada pelo sofrimento causado por Melkor e eles
escondam sua terra e teçam sobre ela uma magia inacessível para que nenhum mal
chegue às suas praias. Todavia, se ainda puderem seus mensageiros chegar lá, eles irão
incendiar os corações dos poderes para que se levantem em ira, castiguem Melkor e
destruam os Infernos de Ferro sob as Montanhas da Escuridão.
— A cada ano, na despedida do inverno, mensageiros partem, rapidamente e em

XXVIII
segredo, descendo o Sirion até à costa do Grande Mar. Ao lá chegarem, constroem
barcos nos quais atrelam cisnes e gaivotas, ou as asas fortes do vento e estes procuram
além da lua e do sol chegar a Valinor. Mas os trajetos a esta estão bloqueados e as
estradas desvaneceram-se do mundo. Os que sentam em Valinor preocupam-se pouco
com o terror de Melkor ou os sofrimentos do mundo, mas escondem sua terra e tecem
sobre ela uma magia inacessível, nenhuma notícia do mal alguma vez chega a seus
ouvidos. Não. Muitos do meu povo têm, por anos incontáveis, partido para as águas
largas e nunca retornaram. Eles pereceram nos lugares profundos ou vagueiam agora
perdidos nas sombras que não possuem caminhos e, na vinda do próximo ano, ne-
nhum mais deve viajar para o mar. Porém, antes, confiaremos a nós mesmos e à nossa
cidade a precaução contra Melkor. Nisto os valar foram de parca ajuda.
O coração de Tuor ficou pesado e Voronwë lamentou a recusa de seu conselho. Tuor
sentou-se perto da grande fonte do rei e seu esguicho recordou-lhe a música das ondas,
sua alma estava perturbada pelas trompas de Ulmo e, pelo som delas, ele retornaria,
descendo as águas do Sirion até o mar. Mas Turgon, que reconheceu em Tuor, mortal
como era, alguém merecedor do favor dos valar, distinguindo seu olhar resoluto e o
poder de sua voz, enviou a ele uma oferta para que ficasse residindo em Gondolin em
seu favor e habitasse mesmo dentro dos salões reais se assim o desejasse.
Então, Tuor decidiu ficar, pois estava cansado e aquele lugar era belo, daí veio a

XXIX
permanência de Tuor em Gondolin. De todas as ações dele entre os gondolindrim os
contos não falam, mas é dito que muitas vezes teria ele ido e vindo secretamente daque-
le lugar, ficando cansado dos ajuntamentos do povo, pensando na floresta vazia e nos
prados solitários ou ouvindo a longínqua música do mar de Ulmo, se não houvesse
sido preenchido seu coração com amor por uma mulher dos gondolindrim. E ela era a
filha do rei.

XXX
ra, Tuor aprendeu muitas coisas naquele reino, sendo, às vezes, ensi-
nado por Voronwë, a quem amava e que o amava em retorno, ou
mais. Foi instruído pelos homens mais hábeis da cidade e pelos sábi-
os do rei. Por conseguinte, transformou-se em um homem muito
mais poderoso do que antes e a sabedoria estava em seus conselhos.
Muitas coisas, antes não evidentes, tornaram-se claras para ele e muitas
coisas tornaram-se, para ele, conhecidas que são ainda ignoradas pelos homens mortais.
Lá ouviu a respeito da fundação de Gondolin e de como o trabalho sem pausa, através de
eras e anos, não bastara para sua construção e seu embelezamento, pois ainda trabalhava
o povo de Turgon e Gondolin, a cada dia, era mais enriquecida. Tuor ouviu sobre aquele
túnel oculto que o povo chamava de Caminho de Fuga e de como os conselhos haviam
divergido a respeito, até que a piedade pelos fugitivos noldor havia finalmente prevaleci-
do. Ouviu também da guarda sem cessar que era mantida em armas em certos lugares
baixos de Echoriath e como os sentinelas ficavam sempre vigilantes nos picos mais eleva-
dos daquela área, ao lado de faróis construidos prontos para o fogo, porque nunca aquele
povo cessou de esperar um ataque dos orcs à sua cidade.
Agora, entretanto, a guarda das colinas era mantida mais pelo costume do que por
necessidade, pois os gondolindrim tinham outrora, com inimaginável trabalho, nivela-
do, limpado e cavado toda a planície próxima a Amon Gwareth, de modo que qual-

XXXI
quer elfo, animal ou víbora que pudessem se aproximar eram espiados de muitas léguas
de distância. Entre os gondolindrim estavam muitos cujos olhos eram mais aguçados
do que os das águias de Manwë Súlimo e, por esta razão, chamam esse vale Tumladen,
ou o Vale da Suavidade. Agora, este grande trabalho estava terminado e o povo ocupa-
va-se mais com a extração dos metais e o forjamento de toda espécie de espadas, ma-
chados, lanças, bastões, a moldagem de cotas de malha, armaduras de escamas, arma-
duras para as pernas, armaduras de placas para proteger o antebraço, elmos e escudos.
Foi dito a Tuor que, se o povo de Gondolin atirasse com arcos sem parar dia ou noite,
nem assim poderiam despender todas as flechas armazenadas em muitos anos de labu-
ta e que, a cada ano, seu medo dos orcs ficava menor devido a essas providências.
Tuor lá aprendeu da construção com pedra, de alvenaria e da lavragem de rocha e
mármore; dos ofícios de tecelagem e fiação, bordadura, pintura e habilidade em me-
tais. Músicas as mais delicadas ouviu e, nestas, eram aqueles que residiam na parte sul
da cidade os mais hábeis, pois lá brincava uma profusão de fontes e nascentes murmu-
rantes. Muitas destas sutilezas Tuor dominou e aprendeu a entretecer com suas canções
para a maravilha e alegria dos corações dos ouvintes. Histórias estranhas do Sol e da
Lua e das Estrelas, da maneira da Terra e seus elementos e das profundezas do céu
foram-lhe contadas. Dos elfos, aprendeu suas falas, velhas línguas e modos de escrita.
Ouviu contar de Ilúvatar, o Senhor para Sempre, que habita além do mundo, da

XXXII
grande música dos ainur aos pés de Ilúvatar, nas mais absolutas profundezas do tempo
de onde veio a criação do mundo, da maneira deste, de tudo nele e de seu governo.
Devido a seu talento e grande maestria sobre toda a sabedoria e arte, também por sua
grande coragem de coração e corpo, Tuor tornou um conforto sua presença para o rei sem
filhos homens e ele era muito amado pelo povo de Gondolin. Em um tempo, o rei fez
com que seus artífices mais astutos talhassem uma armadura de placas para Tuor como
um grande presente, feita do aço dos noldor e recoberta de prata. Mas seu elmo era
adornado com um emblema de metais e jóias como duas asas de cisne, uma em cada
lado. Outra asa de cisne fora lavrada em seu escudo, mas ele carregava um machado em
vez de uma espada e, a este, na fala dos gondolindrim, chamou Dramborleg, pois seu
golpe aturdia e sua borda talhava a mais espessa armadura.
Uma casa foi construida para ele sobre as muralhas do sul, pois amava os ares livres e
não gostava da proximidade de outras moradias. Lá, para seu prazer, freqüentemente
ficava parado nas ameias, ao alvorecer, e o povo regozijava-se a ver a nova luz refletindo
nas asas de seu elmo. Muitos murmuravam que de bom grado apoiá-lo-iam na batalha
com os orcs, vendo que o diálogo daqueles dois, Tuor e Turgon, diante do palácio, era
conhecido por muitos. Contudo, esta questão não foi adiante por reverência a Turgon e
porque o pensamento das palavras de Ulmo no coração de Tuor parecia ter-se tornado
remoto e obscurecido.

XXXIII
Vieram os dias em que Tuor
habitara entre os gondolindrim
por muitos anos. Por muito tem-
po tinha conhecido e guardado
um amor pela filha do rei e, ago-
ra, estava o seu coração preenchi-
do daquele amor. Grande amor
também tinha Idril por Tuor e os
cordões dos destinos de ambos
foram entretecidos naquele dia
em que primeiramente ela olhou por cima dele, de uma janela elevada, enquanto este
estava alí de pé como um suplicante extenuado diante do palácio do rei. Pouco motivo
tinha Turgon para opor-se ao amor deles, pois via em Tuor um parente que traria
conforto e grande esperança. Assim, pela primeira vez, foi unido um filho dos homens
com uma filha dos elfos... E Tuor não foi o último. Menos glória muitos tiveram do
que eles, e o pesar daqueles, no fim, foi grande. Contudo, grande foi a alegria daqueles
dias quando Idril e Tuor casaram-se diante do povo em Gar Ainion, o Lugar dos
Deuses, próximo aos salões do rei. Um dia de alegria foi esse casamento para a cidade
de Gondolin e da maior felicidade para Tuor e Idril. Depois disso, ambos residiram, em

XXXIV
alegria, naquela casa acima das muralhas que olhava para o sul, sobre Tumladen, e isto
foi bom para os corações de todos na cidade, salvo Maeglin. Ora, aquele noldo era
vindo de uma casa antiga, embora agora seus números fossem menores do que os de
outras, mas ele mesmo era sobrinho do rei por sua mãe, Aredhel, a irmã do rei. Porém,
a história dela e de Ëol não se pode contar aqui.
O símbolo de Maeglin era uma Toupeira Negra. Ele era grande entre os mineiros e um
chefe dos escavadores atrás de minério, muitos destes pertenciam à sua casa. Era menos
belo do que a maioria deste povo, moreno e de humor muito instável. De modo que
alcançasse pouco amor entre os que com ele viviam. Havia sussurros de que corria sangue
orc em suas veias, mas não sei como isto poderia ser verdadeiro. Propusera-se ao rei
freqüentemente para a mão de Idril, todavia, Turgon, considerando-a muito avessa, dis-
sera não, pois lhe parecia que os pedidos de Maeglin eram causados tanto pelo desejo de
estar em poder elevado ao lado do trono real quanto pelo amor daquela donzela tão
formosa. Ela era bela e corajosa, as pessoas a chamavam Idril dos Pés de Prata, pois ela
permanecia sempre descalça e com a cabeça descoberta, filha do rei como era, exceto em
pompas dos ainur. Maeglin corroeu-se de raiva, vendo Tuor suplantá-lo.
Nestes dias, veio a cumprir-se o tempo do desejo dos valar e da esperança dos Eldalië,
pois, em grande amor, Idril deu à luz um filho de Tuor e ele foi chamado Eärendil.
Agora, para isso há muitas interpretações entre elfos e homens, mas, segundo parece,

XXXV
este era um nome tirado de alguma língua secreta entre os gondolin-
drim e essa pereceu com eles nas moradias da Terra.
Este bebê era da maior beleza, sua pele de um branco radiante e seus
olhos de um azul superando o do céu nas terras meridionais, mais
azuis do que as safiras do traje de Manwë. A inveja de Maeglin foi
profunda em seu nascimento, mas a alegria de Turgon e todo o povo
foi muito grande de fato.
Muitos anos se passaram desde que Tuor estivera perdido entre os
sopés das colinas e abandonado por aqueles noldor. Contudo, muitos
anos também haviam passado desde que aos ouvidos de Melkor chega-
ram, pela primeira vez, aquelas notícias estranhas (vagas elas eram e vári-
as na forma) de um homem vagando entre os vales das águas do Sirion.
Melkor não estava muito receoso da raça dos homens naqueles dias de
seu grande poder e, por esta razão, Ulmo trabalhou, por meio de um
desta família, para melhor iludir Melkor, vendo que nenhum valar e
poucos dos eldar ou dos noldor podiam movimentar-se desapercebidos
de sua vigilância. Apesar de tudo, um pressentimento atingiu aquele
mau coração, conforme as informações lhe chegavam, e ele reuniu um
exército poderoso de espiões: filhos dos orcs estavam lá, com olhos ama-

XXXVI
relos e verdes como gatos, que poderiam perfurar todas as trevas e ver através de névoa ou
bruma ou noite. Serpentes que poderiam ir a todos os lugares e procurar em todas as
fendas, dos poços mais profundos aos picos mais elevados, escutar cada sussurro que
corresse na grama ou ecoasse nos montes. Lobos, cães vorazes e grandes doninhas cheias
da sede de sangue, cujas narinas poderiam captar aromas de luas antigas através da água
corrente, ou cujos olhos encontram, entre os pedregulhos, pegadas com uma vida inteira
de idade. Corujas vinham e falcões, cujo olhar aguçado podia enxergar no dia ou na noite
o esvoaçar de pássaros pequenos em todas as florestas do mundo. O movimento de cada
camundongo ou ratazana que rasteje ou habite por toda a Terra. Todos estes ele chamou
a seu Salão de Ferro e eles vieram em multidões. Dali, enviou-os sobre a Terra para buscar
este homem que escapara da Terra das Sombras, mas ainda mais cuidadosamente para
procurar a habitação dos noldor que haviam escapado de seu cativeiro, pois, estes, seu
coração queimava por destruir ou escravizar.

XXXVII
nquanto Tuor residia, feliz, em Gondolin e seu conhecimento e
poder cresciam, aquelas criaturas incansáveis de Melkor procura-
ram entre as pedras e rochas, caçaram nas florestas e nas urzes,
espiaram os ares e os lugares elevados, trilharam todos os caminhos
próximos dos vales e planícies. Desta caçada trouxeram uma ri-
queza de informações a seu senhor. Certamente, entre muitas coi-
sas escondidas que trouxeram à luz, descobriram aquele Caminho da Fuga, no qual
Tuor e Voronwë haviam outrora entrado. Mas nem isso teriam descoberto sem cons-
tranger, com ameaças de tortura, alguns noldor dentre os de vontade menos firme a
participar naquele grande saque, visto que, devido à magia daquele lugar, povo ne-
nhum de Melkor, sem a ajuda dos noldor, podia chegar. No entanto, agora eles tinham
caminhado longe dentro daquele túnel e ali haviam capturado muitos noldor que
fugiam do cativeiro. Tinham escalado também Echoriath, em determinados lugares, e
olhado para a beleza da cidade de Gondolin e a força de Amon Gwareth à distância.
Porém, não podiam avançar até a planície pela vigilância de seus guardiões e a dificul-
dade daquelas montanhas. De fato, os gondolindrim eram grandes arqueiros e os arcos
que faziam eram uma maravilha de poder. Esses arqueiros podiam disparar uma flecha
para o céu sete vezes tão distante quanto pode o melhor arqueiro entre os homens atirar
a um alvo em cima da terra. Não teriam admitido que nenhum falcão voasse sobre sua

XXXVIII
planície ou serpente rastejasse sobre esta, pois não gostavam de criaturas sanguinárias,
produtos de Melkor.
Naqueles dias, Eärendil tinha um ano de vida quando estas más notícias chegaram, de
como os espiões de Melkor circundavam o vale de Tumladen. Com isso, o coração de
Turgon ficou entristecido, recordando as palavras de Tuor, em anos passados, diante das
portas do palácio. Mandou que a vigília e a guarda fosse fortalecida três vezes em todos os
pontos e que instrumentos de guerra fossem projetados por seus artífices e postos sobre o
monte. Fogos venenosos e líquidos quentes, flechas e grandes rochas, estavam preparados
para disparar sobre qualquer um que atacasse aqueles muros brilhantes. O rei finalmente
deu-se por satisfeito, tanto quanto podia ser, mas o coração de Tuor estava mais pesado do
que o de Turgon, porque agora as palavras de Ulmo vinham sempre à sua mente. Seu
significado e gravidade agora compreendia mais profundamente do que em tempos an-
tigos. Sequer encontrava ele qualquer conforto em Idril, porque o coração dela trazia
presságios ainda mais negros do que o seu próprio.
Sabe-se que Idril tinha um grande poder de penetrar, com seu pensamento, a escu-
ridão dos corações dos elfos e homens e as trevas do futuro ali, mais do que é o poder
comum das famílias dos Eldalië. Conseqüentemente ela falou, um dia, a Tuor:
— Saiba, meu marido, que meu coração está apreensivo pela dúvida com relação a
Maeglin e temo que este trará mal sobre nosso belo reino, embora, de nenhuma manei-

XXXIX
ra, eu possa ver como ou quando. Todavia, temo que tudo que ele saiba de nossas ações
e preparações se torne conhecido ao inimigo, possibilitando que este planeje meios
novos de nos derrotar contra os quais não pensamos em nenhuma defesa. Veja! Sonhei,
uma noite, que Maeglin construía uma fornalha e, vindo a nós inesperadamente, nela
arremessava Eärendil, nosso bebê e depois empurrava, dentro dela, a ti e a mim. Mas a
isto, por tristeza pela morte de nossa bela criança, eu não resistiria.
Tuor respondeu:
— Há uma razão para o teu medo, pois também não está meu coração tranqüilo
para com Maeglin. A despeito disso, ele é sobrinho do rei e teu próprio primo. Nem
existe acusação contra ele e não vejo nada a fazer além de me conformar e vigiar.
— Este é meu conselho: reúnas tu, em segredo profundo, aqueles escavadores e
mineiros que, por julgamento cuidadoso, sejam considerados por ter menos amor a
Maeglin, em razão do orgulho e arrogância de suas transações entre eles. Destes, deves
tu escolher homens de confiança para manter guarda sobre Maeglin quando ele for
para os montes exteriores. No entanto, eu aconselho-te a empregar a maior parte da-
queles em cuja discrição tu possas confiar em escavação escondida e, para projetar, com
sua ajuda, cauteloso e lento que seja esse trabalho, um caminho secreto da tua casa,
aqui sob as rochas deste monte, até o vale abaixo. Este caminho não deve conduzir para
o Caminho da Fuga, pois o meu coração me diz para não confiar nele, mas sim para a

XL
passagem longínqua, a Fenda das Águias, nas montanhas meridionais. Quanto mais
longe esta escavação alcançar para lá abaixo da planície, mais a estimarei. Contudo,
deixe todo este trabalho ser mantido secreto, exceto para alguns poucos. Não há
escavadores da terra ou da rocha como os noldor (isto Melkor sabe), mas, naqueles
lugares, a terra é de uma grande dureza.
— As rochas do monte de Amon Gwareth são como ferro e somente com muito traba-
lho podem ser rachadas. Mas, se isto for feito em segredo, então, grande tempo e paciência
devem ser adicionados. Mas a pedra do solo do Vale de Tumladen é como o aço forjado,
nem pode ele ser cortado sem o conhecimento dos gondolindrim salvo em luas e anos.
— Verdade isto pode ser, mas tal é meu conselho e ainda há tempo disponível.
Então Tuor disse que não podia ver todo o propósito disto, mas acrescentou:
— É melhor qualquer plano do que a falta de conselho. E farei mesmo como tu dizes.
Aconteceu, assim, que, não muito tempo depois, Maeglin foi para as colinas, para
conseguir minério e, perdido nas montanhas, sozinho foi tomado por alguns dos orcs
que perambulavam por lá. Lhe fariam mal e terrível dano, reconhecendo-o como um
dos gondolindrim. Isto foi, entretanto, desconhecido dos sentinelas de Tuor. Mas o
mal veio no coração de Maeglin e este disse a seus captores:
— Saibam que eu sou Maeglin, filho de Ëol, que teve por esposa Aredhel, irmã de
Turgon rei dos gondolindrim.

XLI
Mas disseram os orcs:
— O que é isso para nós?
— Muito é isto para vocês, pois, se me matarem, seja isto de forma rápida ou lenta,
vocês perderão grandes informações da cidade de Gondolin que seu mestre regozijar-
se-ia ao ouvir.
Os orcs pararam suas mãos e disseram que dar-lhe-iam a vida se as questões que lhes
esclarecesse parecessem merecer isso. Maeglin contou-lhes de toda a forma daquela
planície e cidade, de suas muralhas e sua altura, da espessura e do valor de seus portões;
da hoste de homens em armas que agora obedeciam Turgon; do incontável mealheiro
de armas reunido para seu equipamento; dos instrumentos de guerra e dos fogos.
Os orcs ficaram enfurecidos e, tendo ouvido estes assuntos, estavam ainda dispostos
a matarem-no lá, como a alguém que ampliou imprudentemente o poder de seu povo
miserável ao escárnio do grande poder e potência de Melkor. Mas Maeglin pegou-se
em uma última esperança e disse:
— Não penseis vós que preferiríeis agradar o seu mestre se trouxesseis aos seus pés
um cativo tão nobre, de modo que ele poderia ouvir minhas informações por si mesmo
e julgar sua verdade?
Agora isto pareceu bom aos orcs e retornaram das montanhas perto de Gondolin
para as Montanhas de Ferro e aos salões escuros de Melkor. Para lá arrastaram Maeglin

XLII
e, agora, estava este em um horror dolorido. Mas quando se ajoelhou diante do trono
negro de Melkor, em terror e repugnância das formas em cerca dele, dos lobos que se
sentavam debaixo daquela cadeira e das cobras que se entrelaçavam em volta das suas
pernas, Melkor mandou-o falar. Em seguida, lhe contou aquelas informações e Me-
lkor, escutando, falou-lhe, de modo tão justo, que a insolência de seu coração em
grande medida retornou.
O fim disto foi que Melkor, ajudado pela astúcia de Maeglin, criou um plano para
a destruição de Gondolin. Para isto, a recompensa de Maeglin era de ser nomeado um
alto capitão entre os orcs. Contudo, Melkor não tencionava, em seu coração, cumprir
tal promessa. Mas, a Tuor e Eärendil, Melkor deveria queimar e Idril ser dada aos
braços de Maeglin. Tais promessas aquele ser maligno estava disposto a cumprir. Toda-
via, como aviso, caso se mostrasse novamente desleal, Melkor ameaçou Maeglin com o
tormento dos balrogs. Estes eram demônios com chicotes de chama e garras de aço
com que Melkor atormentava aqueles dos noldor que ousassem oporem-se-lhe em
qualquer coisa. Os eldar chamavam-nos valaraukar. Mas o conselho que Maeglin deu
a Melkor foi que nem toda a hoste dos orcs nem os balrogs em sua ferocidade podiam,
por ataque ou cerco, esperar derrubar os muros e portões de Gondolin. Todo esse
exército iria, no máximo, tomar as planícies exteriores. Conseqüentemente aconselhou
a Melkor que planejasse, de suas feitiçarias, um socorro para seus guerreiros, em sua

XLIII
diligência. Da grandeza de sua riqueza de metais e de seus poderes de fogo, disse-lhe
que fizesse bestas como serpentes e dragões de poder irresistivel, que deveriam rastejar
sobre Echoriath, cobrindo aquela planície e sua bela cidade de chamas e morte.
Após tudo isso, Maeglin foi ordenado a ir para casa a fim de que não suspeitassem
por sua ausência. Melkor teceu sobre ele um encanto de terror sem fundo e este não
teve, depois disso, nem alegria nem sossego em seu coração. Apesar de tudo, vestiu uma
bela máscara de boa amizade e alegria, de modo que os homens dissessem: “Maeglin
está suavizado.” Foi considerado em menos desfavor. Mas, Idril temeu-o mais. Agora,
Maeglin dizia: “eu trabalhei muito, penso em descansar e juntar-me à dança, à canção
e aos divertimentos do povo.” E não foi mais extrair pedra ou minério nas colinas.
Porém, na verdade, buscou nisto afogar seu medo e inquietude. Um pavor possuía-o
de que Melkor estivesse sempre perto e isto vinha do encanto. Nunca ousou vagar
outra vez entre as minas, com receio de que encontrasse outra vez com os orcs e fosse
mandado novamente para os terrores dos salões da escuridão.
Os anos passaram e, instigado por Idril, Tuor se manteve sempre em sua escavação
secreta. Mas, observando que a vigia dos espiões de Melkor diminuíra, Turgon vivia
mais na tranqüilidade e em menor medo. Não obstante, estes anos foram ocupados
por Melkor na máxima excitação de trabalho e todo o povo escravizado dos noldor teve
que escavar incessantemente por metais enquanto Melkor sentava, projetava fogos e

XLIV
evocava chamas e fumaças dos mais profundos lugares da terra. Nem permitia ele que
os noldor se apartassem sequer um passo de seus lugares de cativeiro e trabalho.
Então, Melkor reuniu todos os seus mais astutos ferreiros e feiticeiros e, de ferro e
chama, construíram uma hoste de monstros como somente naquele tempo foram
vistos e não o serão novamente até o Grande Fim. Alguns eram de ferro tão
astuciosamente ligado que podiam mover-se como rios lentos de metal ou serpearem-
se ao redor e por cima de todos os obstáculos diante deles. Estes foram preenchidos, em
suas profundezas, com os mais severos dentre os orcs, munidos de cimitarras e lanças.
A outros monstros de bronze e cobre foram dados corações e espíritos de fogo flame-
jante. Eles destruíam tudo o que estivesse diante deles com o terror de seu urro ou
pisavam o que quer que escapasse ao ardor de seu hálito. Todavia, outros eram criaturas
de pura chama que retorciam-se como cordas de metal fundido. Traziam a ruína a
qualquer material de que se aproximassem e ferro e pedra derretiam-se diante deles,
tornando-se como água. Em cima deles, cavalgavam balrogs, às centenas e, estes, eram
os mais horrendos de todos aqueles monstros que Melkor enviou contra Gondolin.
Quando o sétimo verão passara desde a traição de Maeglin e Eärendil ainda de muito
tenra idade, embora criança valorosa, Melkor retirou todos os seus espiões, porque cada
trajeto e canto das montanhas era-lhe conhecido agora. Os gondolindrim pensaram, em
sua falta de cautela, que Melkor não mais buscaria por eles, percebendo seu poder e a

XLV
força impregnável de sua morada. Mas
Idril caiu em um humor sombrio e a luz
de sua face estava obscurecida, muitos se
surpreenderam com isso. Mesmo assim,
Turgon reduziu a sentinela e a guarda a
seus números antigos, ainda para um tan-
to a menos. Quando o outono veio e a
colheita de frutos terminou, o povo vol-
tou-se ,com corações contentes, para as
festas do inverno. Mas Tuor ficou de pé sobre as muralhas e olhou por sobre Echoriath.
Idril estava ao lado dele e o vento estava em seu cabelo. Tuor observava o quanto ela era
extraordinariamente bela e inclinou-se para beijá-la, mas seu rosto estava triste. Ela disse:
— Agora vêm os dias quando tu deves fazer a escolha. – e Tuor não soube do que ela
falava. Então, Idril, levando-o para dentro de seus salões, disse-lhe como seu coração a
fazia temer a respeito de Eärendil seu filho, pressentindo que algum grande mal estava
próximo e que Melkor estaria no fundo dele. Tuor tentou confortá-la, mas não conse-
guiu e ela questionou-o a respeito da escavação secreta. Ele disse como esta agora esten-
dia-se por uma légua sob a planície, isso foi a única coisa que abrandou o medo em seu
coração. Mas ela ainda aconselhou que a escavação fosse avançada e que, doravante,

XLVI
dever-se-ia acelerar. A determinação passara a ser mais valiosa que o segredo:
— Porque agora o tempo está muito próximo.
E um outro conselho ela lhe deu, e este ele tomou também, de que certos homens, dos
mais bravos e verdadeiros entre os senhores e guerreiros dos gondolindrim, fossem esco-
lhidos, com cuidado, e informados daquele caminho secreto e de sua saída. Destes, ela
aconselhou-o a fazer uma guarda destemida e dar-lhes o seu emblema, de forma que eles
se tornassem o seu povo. Para agir assim, sob o pretexto do direito e da dignidade de um
grande senhor, parente do rei.
— Além disso – ela disse – conseguirei a permissão de meu pai para tais ações.
Ela segredou também ao povo que, se a cidade chegasse à sua última resistência ou
Turgon fosse morto, que se reunissem, em volta de Tuor e Eärendil, e a isto eles disse-
ram sim entre gracejos, dizendo, porém, que Gondolin resistiria por tanto tempo quanto
Taniquetil ou as montanhas de Valinor.
Porém, para Turgon, ela não falou abertamente, nem permitiu que Tuor o fizesse,
como ele desejava. A despeito do amor deles e reverência pelo rei (pois ele era grande,
nobre e glorioso) vendo que este acreditava em Maeglin e mantinha, com obstinação
cega, sua crença no poder impregnável da cidade e em que Melkor não mais empenha-
va-se contra esta, não percebendo nenhuma esperança nisso. Ora, em tudo isto, Tur-
gon era sempre fortalecido pelas afirmações argutas de Maeglin. A astúcia daquele

XLVII
noldo era muito grande, pois trabalhava nas sombras, de modo que o povo dizia: “Ele
faz bem em usar o símbolo de uma toupeira negra.”
Por razão das palavras vagas de certos homens do grupo de Tuor, a quem este falara
com descuido, ele coletou algum conhecimento do trabalho secreto e estendeu contra
este um plano de sua própria autoria.
O inverno se intensificou, ficou muito frio por aquelas regiões, de modo que a geada
cobria a planície de Tumladen, o gelo repousava em seus lagos. Não obstante, as fontes
brincavam sempre em Amon Gwareth. As duas árvores floresciam e o povo festejou
alegre até o dia do terror que estava escondido no coração de Melkor. Aquele inverno
amargo passou e as neves ficaram mais profundas do que nunca antes em Echoriath.
Entretanto, neste tempo, uma primavera de glória surpreendente derreteu a margem
daquelas capas brancas e o vale tragou as águas, se abrindo em flores. Veio e passou, com
festas, o festival de Nos-na-Lothion, ou o Nascimento das Flores, e os corações dos gon-
dolindrim foram elevados pela boa promessa do ano. Agora, finalmente a grande festa de
Tarnin Austa, As Portas do Verão, chegara, pois saiba que era costume dos noldor come-
çar uma cerimônia solene à meia-noite continuando-a até que o alvorecer de Tarnin
Austa rompesse. Nenhuma voz era proferida na cidade, da meia-noite até o romper do
dia. Mas, na madrugada, este povo saudava, com canções antigas, o nascer do sol. Por
anos incontáveis, a chegada do verão fora assim comemorada, com música de coros

XLVIII
situados acima de sua muralha oriental. Chega a noite de vigília e a cidade está cheia de
lâmpadas prateadas, enquanto, nos arvoredos em cima das árvores, luzes de pedras preci-
osas coloridas balançam, músicas suaves prosseguem ao longo das ruas, sem nenhum
sinal de vozes até o amanhecer.

XLIX
sol desceu além das colinas e o povo arrumou-se para o festival,
muito alegre e ansioso, olhando em expectativa para o Leste. Mes-
mo quando estava tudo escuro, uma nova luz repentinamente apa-
receu e houve uma incandescencia avermelhada, mas essa luz esta-
va além dos cumes, na direção norte, os homens maravilharam-se
e houve uma aglomeração nos muros e ameias. Então, a admira-
ção transformou-se em dúvida conforme aquela luz cresceu e se tornou ainda mais
vermelha e, depois, em medo quando os noldor viram que a neve nas montanhas
tingia-se como se estivesse manchada de sangue. E foi assim que as serpentes de fogo de
Melkor chegaram a Gondolin. Foi assim que chegaram sobre a planície cavaleiros que
traziam notícias apressadas daqueles que mantinham guarda nos picos e contaram das
hostes ardentes, das formas como dragões, dizendo: “Melkor está sobre nós!”
Grande foi o medo e angústia dentro daquela bela cidade, e as ruas e caminhos
estavam cheios com o pranto de mulheres e os gemidos de crianças e as praças com a
reunião de tropas de soldados e o ressoar de armas. Lá estavam os estandartes resplan-
decentes de todas as casas dos gondolindrim.
Poderosa era a presença dos homens da casa do rei, e suas cores eram branco, dourado
e vermelho. Seus emblemas, a lua, o sol e o coração escarlate. No centro destes, estava
Tuor, acima de todos os líderes, e sua armadura de prata reluzia. Em torno dele, havia

L
uma multidão dos mais
destemidos dentre o
povo. Todos os guerrei-
ros de Tuor usavam asas
como que de cisnes ou
gaivotas em seus elmos,
estando o emblema da
Asa Branca em seus es-
cudos. Mas o povo de
Maeglin estava reunido
no mesmo lugar, seus
adornos eram negros e
não portavam nenhum
símbolo ou emblema,
porém, seus capacetes
redondos, de aço, eram cobertos com pele de toupeira e lutavam com machados de duas
cabeças semelhantes a picaretas. Lá, Maeglin, príncipe de Gondobar, reuniu em torno de
si muitos guerreiros de semblante escuro e olhar ameaçador. Um brilho vermelho res-
plandecia em suas faces e refletia sobre as superfícies polidas de seus trajes. Todas as colinas

LI
para o norte estavam inflamadas, era como se rios de fogo corressem, descendo as encos-
tas que conduziam à planície de Tumladen. O povo já podia sentir o calor das chamas.
Muitas outras casas estavam lá. As casas da Andorinha e do Arco Celestial, e deste
povo vinha o maior número e os melhores dentre os arqueiros, foram arrumadas nos
lugares largos dos muros. Ora, o povo da Andorinha portava um leque de plumas em
seus elmos e estava adornado em branco e azul escuro, em púrpura e preto, exibindo
uma ponta de flecha em seus escudos. O senhor desta Casa era Duilin, mais rápido de
todos os homens para correr e saltar, o mais certeiro dos arqueiros em sua ou em
qualquer outra casa. Mas os guerreiros do Arco Celestial, sendo um povo de riqueza
incontável, estavam revestidos em glorioso colorido e suas armas eram ornamentadas
com pedras preciosas que resplandeciam na luz que cobria o céu.
Cada escudo daquele batalhão era de azul celeste e o centro destes escudos era como
uma jóia formada de sete gemas, rubis, ametistas, safiras, esmeraldas, crisóprasos, topázios
e âmbar, mas uma opala grande estava fixada em seus elmos. Egalmoth era seu líder, que
vestia um manto azul com estrelas bordadas em cristal, sua espada era curvada. Além
deste, ninguém mais, entre os noldor, portava espadas curvas. Contudo, ele confiava mais
em seu arco e, com ele, disparava mais longe do que qualquer um dentre aquele exército.
Lá também estavam a Casa do Pilar e da Torre da Neve, ambas estas famílias eram
dirigidas por Pengolod, o mais alto dos noldor. Havia também a Casa da Árvore e esta era

LII
uma grande casa, sua vestimenta era verde. Eles lu-
tavam com fundas e clavas cravadas com ferro. Seu
senhor, Galdor, era considerado o mais destemido
de todos os gondolindrim salvo apenas Turgon. A
Casa da Flor Dourada trazia um sol com raios em
seus escudos, seu líder, Glorfindel, usava um manto
bordado com fios de ouro e decorado com celidôni-
as, se asemelhando a um campo primaveril. Suas
armas também eram adornadas com ouro.
Chegando da parte sul da cidade, veio o povo
da Fonte, Ecthelion era o seu senhor. Prata e dia-
mantes eram o seu deleite, além de espadas muito
longas e pálidas por eles empunhadas, indo para a
batalha à música de flautas. Atrás deles, veio a hos-
te da Harpa, esta era um batalhão de bravos guer-
reiros, mas o líder deles, Salgant, era um covarde
que procedia servilmente para com Maeglin. Eles
eram adornados com borlas de prata e de ouro,
uma harpa de prata brilhava no seu brasão, em um

LIII
campo negro. Salgant trazia uma harpa de ouro, apenas ele cavalgava para a batalha
dentre todos os filhos dos gondolindrim. Era pesado e atarracado.
Agora o último dos batalhões foi provido pelo povo do Martelo da Ira e, destes, vinham
muitos dos melhores ferreiros e artífices de Gondolin. Toda aquela casa reverenciava Aulë, o
Ferreiro, mais do que qualquer outro dos valar. Eles lutavam com maças grandes, como
martelos, seus escudos eram pesados, pois seus braços eram muito fortes. Em dias antigos
tinham sido recrutados pelos noldor que escapavam das minas de Melkor. O ódio dessa casa
pelos trabalhos do inimigo e suas criaturas era excessivamente grande. Seu líder era Rog, o
mais forte dos noldor de Gondolin, segundo em valor, seguindo-se a Galdor da Casa da
Árvore. O símbolo desse povo era a Bigorna Ferida, um martelo que golpeava centelhas em
volta de si estava colocado em seus escudos, ouro vermelho e ferro negro eram seu encanto.
Muito numeroso era aquele batalhão, nem havia qualquer um, entre eles, cujo coração fosse
fraco. A Casa do Martelo da Ira ganhou as maiores glórias dentre todas aquelas belas hostes
na luta contra a destruição, contudo, foram infortunados e nenhum deles escapou, mas
caíram fielmente ao redor de seu líder, Rog, e desapareceram da Terra. Com eles, muita
habilidade de forja se perdeu para sempre.
Esta era a maneira e a ordem das onze casas dos gondolindrim com os seus símbolos e
emblemas, e a guarda de Tuor, a Casa da Asa, era considerada a décima segunda. A face
daquele líder estava sombria e ele não esperava viver muito. Nas muralhas de sua casa,

LIV
sobre os muros, Idril veste-se em uma cota de malha e busca Eärendil. A criança estava em
lágrimas pelas luzes estranhas e vermelhas que brincavam de um lado a outro das paredes
da câmara onde dormia. As histórias que sua ama, Meleth, lhe contara sobre Melkor
vinham a ele e o assustavam. Mas sua mãe vestiu-lhe uma cota de malha que mandara
fazer em segredo e, naquele momento, Eärendil ficou mesmo alegre e extremamente
orgulhoso. Ele exclamou de prazer. Todavia Idril lamentou, pois muito ela apreciara, em
seu coração, sua bela cidade e sua casa agradável, o amor de Tuor e dela que habitara ali,
mas, agora, via sua destruição próxima e temia que seu plano falhasse contra o poder
opressivo do terror das serpentes.
Eram ainda quatro horas antes da meia-noite e o céu estava vermelho a norte, leste e
oeste. As serpentes de ferro haviam alcançado o nível de Tumladen, e esses vermes faiscantes
estavam entre os mais baixos declives das colinas, de forma que os guardas foram pegos e
postos em tormento maligno pelos balrogs que estavam em toda parte, exceto na extre-
midade sul do vale, onde estava Cristhorn, a Fenda das Águias.
Diante disso, Turgon chamou um conselho. Para lá foram Tuor e Maeglin, como
príncipes reais, e Duilin veio com Egalmoth e Pengolod, o alto. Rog foi para lá, a passos
largos, com Galdor, da Árvore, e Glorfindel junto a Ecthelion, da voz de música. Para lá
também foi Salgant, trêmulo devido às notícias, além de outros nobres de menos sangue
porém melhor coração.

LV
Tuor falou e este foi seu conselho: que um ataque repentino e poderoso fosse feito
em seguida, antes que a luz e o calor aumentassem na planície. Muitos o apoiaram em
tal plano, estando em desacordo apenas sobre se a investida deveria ser feita pela hoste
inteira com as donzelas e crianças em meio aos homens, ou por diversos bandos bus-
cando em muitas direções. À esta última Tuor inclinou-se.
Mas Maeglin e Salgant propuseram outro conselho, de que a cidade fosse defendida e
que se buscasse guardar os tesouros que estavam dentro desta. Por malícia, Maeglin falou
assim, temendo que algum dos noldor escapasse à destruição que trouxera sobre Gondo-
lin, pois ele temia que sua traição fosse conhecida e de alguma maneira, algum dia, a
vingança o encontrasse. No entanto, Salgant falou tanto ecoando Maeglin quanto estan-
do tristemente amedrontado de sair da cidade, pois ele estava disposto antes a batalhar de
dentro de uma fortaleza inconquistável do que se arriscar a golpes no campo.
O senhor da casa da Toupeira tocou na única fraqueza de Turgon, dizendo:
— Veja! Ó Rei, a cidade de Gondolin contém uma riqueza de jóias, metais, matéri-
as-primas e de coisas forjadas pelas mãos dos noldor de extrema beleza. Todos estes teus
senhores, mais valentes do que sábios, me parece, abandonariam tudo isso ao Inimigo.
Até mesmo se a vitória fosse vossa na planície, tua cidade seria pilhada e os balrogs
partiriam dela com um saque imensurável.
Turgon suspirou. Maeglin conhecia seu grande amor pela riqueza e encanto daquela

LVI
cidade sobre o Amon Gwareth. Mais uma vez falou Maeglin, pondo fogo em sua voz:
— Veja! Tens tu para nada labutado por anos incontáveis na construção de paredes
de espessura inconquistável e na fabricação de portões cuja força não pode ser subver-
tida. É o poder do monte Amon Gwareth tão baixo quanto o vale profundo, ou o
mealheiro de armas que repousam ali e suas flechas inumeráveis de tão pequeno valor,
que na hora de perigo porias tu todo o teu trabalho de lado e irias desnudo, em campo
aberto, contra inimigos de aço e fogo, cujo tropel estremece a terra e faz Echoriath
ressoar com o clamor de seus passos?
Salgant tremeu ao pensar nisto e falou ruidosamente, dizendo:
— Maeglin fala bem, Ó Rei, ouça-o tu.
Nisto, o rei tomou o conselho daqueles dois, embora todos os outros senhores aconse-
lhassem o contrário e mais ainda por esta razão. Finalmente, ao seu comando, todo
aquele povo preparou-se para defender Gondolin contra o ataque que viria da planície.
Mas Tuor lamentou, deixou o salão do rei e, reunindo os homens da Asa, atravessou as
ruas, buscando sua casa. Por aquela hora, a luz estava grande e lúrida, havia calor sufocan-
te, fumaça negra e odores fortes surgiam sobre todos os caminhos da cidade.
Vinham os Monstros de Ferro através do vale e as torres brancas de Gondolin
avermelharam-se diante deles. Até os mais destemidos ficaram amedrontados, vendo
aqueles dragões de fogo e aquelas serpentes de bronze e ferro que chegavam. Dispara-

LVII
ram flechas sobre eles, sem sucesso. Mas hou-
ve um grito de esperança, pois viu-se, as co-
bras de fogo não podiam escalar o monte por
sua declividade e por sua superfície lisa como
vidro. Devido às águas que caíam por seus
lados, apagava-lhes o fogo. Contudo, elas pos-
taram-se ao pé do monte e um vasto vapor
surgiu onde os rios de Amon Gwareth e as
chamas das serpentes se encontravam. O ca-
lor era tal que as mulheres desmaiavam e os
homens transpiravam à exaustão sob suas ar-
maduras. Todas as fontes da cidade, salvo so-
mente a fonte do rei, tornaram-se quentes e
borbulhantes.
Mas agora Gothmog, senhor dos balrogs,
capitão das hostes de Melkor, tomou conse-
lho e reuniu todas as criaturas de ferro que
poderiam empilhar-se ao redor e acima de
todos os obstáculos. A estas ele ordenou que

LVIII
se amontoassem diante do portão norte. Seus grandes pináculos alcançaram o limiar
dos portões e apoiaram-se sobre as torres e bastiões em torno deles. Devido ao peso de
seus corpos, aqueles portões caíram, grande foi o barulho de sua queda. Mas a maior
parte das muralhas, ao redor, ainda ficou firme. As máquinas e as catapultas do rei
despejaram dardos, pedras e metal fundido naquelas bestas cruéis. Seus ventres ocos
ecoavam sob o impacto. Não resultou em nada, pois eles não poderiam ser destruídos
e torrentes de fogo rolavam deles. Nisto, as criaturas que estavam no topo abriram-se
pelo meio e uma hoste inumerável de orcs, demônios de ódio, verteu de lá para dentro
da brecha. Quem contará do vislumbre das suas cimitarras ou do reluzir das lanças de
lâmina larga com as quais apunhalavam? Nesse momento, Rog gritou em uma voz
poderosa e todos os guerreiros do Martelo da Ira e da Casa Árvore, com Galdor, o
valoroso, arremessaram-se ao inimigo. Lá os golpes dos seus grandes martelos e a pan-
cada das suas clavas ressoaram até Echoriath e os orcs caíram como folhas. Aqueles da
Andorinha e do Arco Celestial arremessaram flechas como as chuvas escuras de outono
sobre os orcs e, ambos, orcs e gondolindrim, sucumbiram sob aquelas setas devido à
fumaça e à confusão. Grande foi aquela primeira batalha, mas, mesmo com todo o seu
valor, os gondolindrim foram lentamente empurrados para trás pelo número crescente
de inimigos, até que os orcs tomassem parte do norte da cidade.
À essa altura, Tuor estava na liderança do povo da Asa, lutando no tumulto das ruas

LIX
e, agora, ele alcança sua casa e descobre que Maeglin chegara lá antes dele. Confiando
na batalha agora começada em torno do portão setentrional e no alvoroço na cidade,
Maeglin acreditava que essa seria uma boa hora para a consumação de seus desígnios.
Sabendo muito da escavação secreta de Tuor (contudo somente no último momento
ele adquirira este conhecimento e não pôde descobrir tudo), não disse nada ao rei ou a
qualquer outro, pois ele julgava que aquele túnel iria, no fim, para o Caminho da Fuga.
Este sendo o mais próximo à cidade. Ele teve o pensamento de usá-lo para o seu bem
e para o mal dos noldor. Maeglin despachou mensageiros com grande cautela a Melkor
para estabelecer uma guarda na outra saída daquele Caminho quando o ataque fosse
feito. Mas ele mesmo agora considerava tomar Eärendil, lançá-lo no fogo ao pé das
muralhas e tomar Idril, obrigando-a a guiá-lo até a passagem secreta pela qual iria fugir
daquele terror de fogo e matança. Arrastaria ela consigo para as terras de Melkor. Ora,
Maeglin estava receoso de que mesmo o símbolo secreto que Melkor lhe dera como
proteção falharia naquele terrível saque. Pretendia ajudar aquele ainu no cumprimento
de suas promessas de que lhe daria segurança. Sem dúvida, tinha a morte de Tuor como
certa naquele grande incêndio, pois a Salgant ele confiara a tarefa de tardá-lo nos salões
do rei e incitá-lo dali diretamente para a mais mortal das lutas. Mas Salgant sucumbira
a um terror mortal e cavalgara para sua casa, onde desabara trêmulo em seu leito.
Tuor fora para sua própria casa com o povo da Asa. Ele fizera isso (embora sua

LX
coragem se agitasse ao ruído das batalhas) para despedir-se de Idril e Eärendil. Também
queria expedi-los, com um guarda-costas, pelo caminho secreto, antes que ele mesmo
retornasse ao tropel da batalha para morrer, se tivesse que ser assim. Mas ele encontrou
uma barreira do povo da Toupeira próxima à sua porta, formada pelos indivíduos mais
sinistros e de menor boa vontade que Maeglin pudera encontrar na cidade. Ainda
assim, aqueles eram noldor livres, não sob o encanto de Melkor como o seu mestre e,
embora eles tenham ajudado Idril, por lealdade a Maeglin, em nada além participaram
do que este pretendia, a despeito de todas as suas maldições.
Maeglin tinha Idril presa pelos cabelos e buscava arrastá-la para as ameias, por cru-
eldade, para que ela pudesse ver a queda de Eärendil, às chamas. Mas foi atrapalhado
pela criança. E Idril lutou, sozinha como estava, como uma tigresa em toda a sua beleza
esbelta. Maeglin se demorou entre juramentos e maldições enquanto o povo da Asa se
aproximava. Tuor os avista e dá um grito tão poderoso que mesmo os orcs, à distância,
ouvem-no e tremem ao som deste. Como o estrondo da tempestade, a guarda da Asa
avança contra os homens da Toupeira. Quando Maeglin viu isto tentou apunhalar
Eärendil com uma faca curta que levava à cintura, mas a criança mordeu sua mão
esquerda até os dentes lhe afundarem na carne. Maeglin cambaleou atingindo-o debil-
mente, a pequena cota de malha desviou a lâmina. Nesse entretempo, Tuor chegou
junto a ele, sua ira era terrível de se ver. Tuor agarrou Maeglin pela mão que segurava a

LXI
faca e quebrou-lhe o braço, com um puxão. Tomando-o pela cintura, pulou com ele
sobre as muralhas e o lançou dali. Grande foi a queda de Maeglin e seu corpo golpeou
Amon Gwareth três vezes antes de cair em meio às chamas. Deste dia em diante, esse
nome tornou-se um sinônimo de vergonha entre o povo dos eldar.
Os guerreiros da Toupeira, sendo mais numerosos que aqueles poucos da Asa e leais a
seu senhor, vieram a Tuor e houve grandes golpes, mas nenhum elfo poderia pôr-se de pé
diante da ira de Tuor. Foram atingidos duramente e impelidos a fugir para quaisquer
buracos escuros que pudessem encontrar, ou atirados de cima da muralha. Tuor perce-
beu, então, que deveriam retornar rapidamente para a batalha do portão, pois o alarido
desta tornara-se muito forte. Contudo, com Idril ficou Voronwë, a contragosto, e mais
alguns outros, para guardá-la até que ele retornasse ou pudesse mandar notícias da cidade.
A batalha naquele portão corria muito mal, de fato, e Duilin, da Andorinha, enquanto
atirava das muralhas, fora atingido duramente por um raio chamejante dos balrogs que
agrupavam-se em torno da base de Amon Gwareth. Ele caiu das ameias e pereceu entre as
chamas. Os balrogs continuaram a atirar dardos de fogo e flechas flamejantes como
pequenas cobras no céu, e estas caíram nos telhados e jardins de Gondolin até que todas
as árvores ardessem e as flores com a grama fossem completamente queimadas. A brancu-
ra daquelas paredes e colunas foi enegrecida e marcada. Mas, muito pior foi que uma
companhia daqueles demônios escalou as costas das serpentes de ferro e, dali, estavam

LXII
atacando incessantemente com arcos e fundas até que um incêndio começou a queimar
na cidade, à retaguarda do exército principal dos defensores.
Rog disse, então, em uma grande voz:
— Quem agora temerá os balrogs por todo seu horror? Vejo diante de mim os amal-
diçoados que por eras atormentaram os filhos dos noldor e que, agora, ateiam fogo à bela
Gondolin. Venham vós do Martelo da Ira! Nós os golpearemos por sua crueldade.
Logo após, Rog ergueu sua maça, com o longo cabo, e avançou, abrindo uma trilha
diante de si pela ira de seu ataque, chegando mesmo até o portão caído. Mas todo o povo
do Martelo da Ira foi atrás como uma cunha. Faíscas saíam de seus olhos pela fúria que
sentiam. Um grande feito foi aquele ataque, como ainda cantam os noldor, muitos dos
orcs foram acossados de volta para dentro dos fogos abaixo, mas os homens de Rog
lançaram-se até mesmo sobre as costas das serpentes e aproximaram-se dos balrogs, gol-
peando-nos dolorosamente. Mesmo que tivessem chicotes de chamas e garras de aço e
fossem temíveis em estatura, eles foram reduzidos a nada. Os do Martelo tomaram seus
chicotes e serviram-se deles contra os balrogs, de modo que estes lhes ferissem assim como
antes haviam ferido os noldor. O número destes monstros que pereceu foi uma maravi-
lha. Diante disso, o medo tomou conta das hostes de Melkor, pois, antes daquele dia,
nunca nenhum dos balrogs fora morto pelas mãos de elfos ou homens.
Vendo aquilo, Gothmog, juntou todos os demônios que estavam em torno da cida-

LXIII
de e os ordenou da seguinte maneira: um grande número destas criaturas atacou o
povo do Martelo da Ira e fugiu diante deles, mas a maior companhia, movendo-se em
direção ao seu flanco, chegou à sua retaguarda, por cima das costas dos dragões e mais
próximo aos portões, de forma que Rog não pudesse voltar a não ser com grande
matança entre seu povo. Porém Rog, vendo que o cerco se fechava não tentou recuar
como era esperado, mas com toda sua hoste caiu sobre o inimigo que estava diante
dele. Estes, fugiram agora realmente apavorados com a fúria do Martelo da Ira. Foram
perseguidos até a planície e seus gritos rasgavam o vale de Tumladen. O povo de Rog ia
de um lado a outro, golpeando e derrubando os bandos atordoados de Melkor até que
foram finalmente cercados por novas legiões de orcs e balrogs e um dragão de fogo
arremessou-se sobre eles. Lá, todos pereceram ao lado de Rog, golpeando até às últimas
forças, até que o ferro e a chama os sobrepujassem. Ainda canta-se que cada homem do
Martelo da Ira levou as vidas de sete inimigos para pagar a sua própria.

LXIV
medo caiu mais pesadamente ainda sobre os gondolindrim, à morte
de Rog e à perda de seu batalhão. Retiraram-se mais ainda para
dentro da cidade. Lá, em uma alameda, pereceu Pengolod, de costas
voltadas para a muralha externa e, em volta de si, caíram muitos dos
homens do Pilar e da Torre de Neve.
Agora, os orcs controlavam o portão e uma grande parte das
muralhas ao lado do mesmo, de onde numerosos homens da Andorinha e do Arco
Celestial foram empurrados para a morte. Mas, dentro da cidade, tinham conquistado
um grande espaço, chegando bastante próximo do centro, até mesmo no Lugar da
Fonte, contíguo à Praça do Palácio. Próximo àqueles caminhos, e ao redor do portão,
seus mortos estavam uns sobre os outros em montes incontáveis. Eles pararam e toma-
ram conselho, vendo que, pelo valor dos gondolindrim, haviam perdido muitos mais
do que esperavam e muito mais do que os defensores. Também estavam apreensivos
pela matança feita por Rog entre os balrogs, pois era principalmente a força destes
demônios que dava confiança aos orcs.
Fizeram, então, um plano para manter o que haviam ganho. Aguardaram enquanto as
serpentes de bronze, com grandes pés, escalavam lentamente por cima das serpentes de
ferro e, alcançando os muros, abriram uma brecha, através da qual os balrogs poderiam
entrar montados nos dragões de chama. Porém, sabiam que isto devia ser feito com

LXV
rapidez, pois os calores daqueles dragões não duravam para sempre e somente podiam ser
restaurados nos poços de fogo que Melkor fizera na solidez de sua própria terra.
Entrementes, mesmo enquanto seus mensageiros foram despachados às pressas, eles
ouviram uma música doce que era tocada entre a hoste dos gondolindrim e temeram o
que aquilo poderia significar. Lá vinha Ecthelion e o povo da Fonte, que Turgon man-
tivera em reserva, pois este assistia à maior parte daquele tumulto das alturas de sua
torre. Agora este povo marchava ao toque de suas flautas, o cristal e prata de suas roupas
eram adoráveis de se ver entre a luz vermelha dos fogos e o negrume das ruínas.
De súbito, a música cessou e Ecthelion, da bela voz, gritou para que sacassem as
espadas. Antes que os orcs pudessem prevenir-se do ataque, o reluzir daquelas lâminas
estava entre eles. Diz-se que o povo de Ecthelion matou lá mais orcs do que os que
sucumbiram alguma vez em todas as batalhas dos Eldalië com aquela raça e que o seu
nome ainda inspira terror entre este povo vil, servindo de grito de guerra para os eldar.
Afinal, Tuor e os homens da Asa foram para a luta, alinhando-se ao lado de Ecthelion.
Os dois capitães infligiram poderosos golpes e repeliram, cada um, muitos inimigos. O
ataque combinado foi tão poderoso e inesperado que os orcs recuaram quase até o portão.
Mas ouviu-se um trepidar lá e um tropel, pois os dragões lutavam poderosamente para
subir o improvisado caminho até Amon Gwareth e derrubar as muralhas da cidade. Já
existia uma fenda nas muralhas externas e um confuso monte de ruínas onde, antes,

LXVI
estavam as torres da guarda. Alguns grupos sobreviventes da Andorinha e do Arco Celes-
tial estavam lá e ainda lutavam amargamente entre a destruição, disputando os muros a
leste e a oeste com o inimigo. Porém, no momento em que Tuor se aproximava atacando
os orcs, uma das serpentes de bronze levantou-se contra o muro ocidental e uma grande
parte deste treme e cai. Atrás, vem uma criatura de fogo, com balrogs sobre si. Chamas
jorram das mandíbulas daquele verme e o povo sucumbe diante dele. As asas do elmo de
Tuor ficam enegrecidas, mas este permanece de pé e reúne, em volta de si, sua guarda e
todos os do Arco e da Andorinha que pode encontrar. Enquanto que, à sua direita,
Ecthelion reúne os homens da Fonte, da parte sul da cidade.
Os orcs, outra vez, tomam ânimo com a vinda dos dragões e se misturam com os
balrogs que se lançam sobre a brecha. Eles atacam os gondolindrim gravemente. No
atrito, Tuor matou Othrod, um senhor dos orcs, partindo seu elmo, e a Balcmeg ele
cortou em pedaços. Golpeou Lug com o seu machado de modo que as pernas deste
fossem cortadas abaixo dos joelhos. Ecthelion sustentou, sozinho, uma luta com dois
capitães orcs e, em um golpe tão rápido como um raio prateado, rachou a cabeça de
Orcobal, o principal deles, até os dentes. Devido à grande valentia desses dois senhores,
a hoste avançou mesmo até os balrogs. A luta com os balrogs foi terrível, mas os orcs
estavam amedrontados e fugiram sem lutar, os próprios balrogs estavam experimen-
tando o medo pela primeira vez.

LXVII
Desses demônios de poder Ecthelion, matou
três, pois o brilho da sua espada partiu seu ferro,
feriu seu fogo e se retorceram moribundos. En-
tretanto, o machado que Tuor brandia de um
lado a outro. Dramborleg causava ainda mais
terror, pois este cortava o ar zunindo com um
ímpeto que lembrava as asas das águias e carre-
gava a morte quando caía. Cinco balrogs sucum-
biram perante ele.
Mas poucos não podem lutar sempre contra
muitos e o braço esquerdo de Ecthelion foi atin-
gido por um chicote de chamas dos balrogs, seu
escudo caiu por terra no momento em que aque-
le dragão de fogo se aproximava por entre as ruí-
nas das muralhas. Ecthelion teve que se apoiar
em Tuor. Este, não podia deixá-lo, mesmo que os
pés da besta estivessem diante deles, de modo que
corriam perigo de serem pisoteados. Mas Tuor feriu
um pé da criatura de forma que suas chamas es-

LXVIII
guicharam adiante. Aquela serpente ferida gritou, chicoteando com sua cauda, e muitos
de ambos os lados, orcs e noldor, tiveram sua morte naquele lugar. Agora, Tuor reuniu
suas forças e ergueu Ecthelion. Juntando todos os que restavam de suas casas, escapou do
dragão. Mas, medonha foi a matança que a besta operou e os gondolindrim foram dolo-
rosamente abalados.
Assim foi que Tuor, filho de Huor, cedeu diante do inimigo, lutando enquanto
recuava e trazendo da batalha Ecthelion da Fonte. Mas os dragões mantinham agora
metade da cidade e toda a parte norte desta. De lá, bandos de saqueadores passeavam
livremente de rua em rua, fazendo muita pilhagem, matando, a esmo, homens, mulhe-
res e crianças. Se a ocasião permitisse, alguns eram amarrados, conduzidos de volta e
arremessados nas câmaras de ferro entre os dragões, de modo que pudessem ser levados
para serem escravos de Melkor.
Naquele momento, Tuor alcançou a Praça da Fonte por um caminho lateral, en-
trando pelo norte, e encontraram lá Galdor, negando a entrada ocidental pelo Arco de
Inwë a uma horda de orcs. Mas, em volta de si, restavam apenas alguns daqueles ho-
mens da Casa da Árvore. Ali, Galdor tornou-se a salvação de Tuor, pois este havia
ficado para trás, tropeçando, sob o peso de Ecthelion, num corpo caído na escuridão.
Os orcs teriam matado a ambos se não fosse o ataque súbito daquele herói e os golpes
de sua clava.

LXIX
Havia guerreiros dispersos da guarda da Asa e das casas da Árvore, da Fonte, da
Andorinha e do Arco unidos em um bom batalhão. Pelo conselho de Tuor, saíram da
Praça da Fonte, vendo que a Praça do Rei, que ficava ao lado, era a mais defensável.
Aquele lugar tinha previamente contido muitas árvores bonitas, carvalhos e álamos, ao
redor de uma grande fonte de profundidade vasta e bastante água pura. Naquele mo-
mento, estava cheio de desordem e maculado pela presença do povo horrendo de
Melkor. Assim, tomou posição a última companhia dos defensores na Praça do Palácio
de Turgon. Entre eles, estavam muitos feridos e fracos. Tuor estava exaurido pelo traba-
lho da noite e pelo peso de Ecthelion, que estava em uma debilidade mortal.
Mesmo enquanto conduzia aquele batalhão pela Estrada dos Arcos vindos de noroeste
(e os mesmos dispenderam muito esforço para evitar que qualquer inimigo se posicionas-
se em sua retaguarda) um barulho surgiu ao leste da praça. Glorfindel chegava com os
últimos dos homens da Flor Dourada. Ora, estes haviam sustentado um terrível conflito
no Grande Mercado, para o leste da cidade, onde uma força de orcs, conduzida por
balrogs, viera sobre eles inesperadamente conforme marchavam por um caminho indire-
to para a luta próxima ao portão. Isto fizeram para surpreender o inimigo em seu flanco
esquerdo, mas foram eles mesmos emboscados. Lá lutaram amargamente, por horas, até
que um Dragão de Fogo, recém chegado através da brecha, os subjugara. Glorfindel
conseguiu retirar-se muito duramente e, com poucos homens. Mas aquele lugar, com

LXX
suas provisões e mercadorias de bom artesanato, era agora um mar de chamas.
A história conta que Turgon enviara os homens da Harpa em seu auxílio por causa
dos pedidos urgentes de Glorfindel, mas Salgant ocultou deles sua real missão, dizendo
que deviam guarnecer a praça do Mercado Menor, onde ele habitava. Os homens da
Harpa remoeram-se à ordem. Finalmente, abandonaram Salgant e chegaram perante
os salões do rei. Isso foi mesmo oportuno, pois uma horda de inimigos estava nos
calcanhares de Glorfindel. Sobre estes, os homens da Harpa, sem serem comandados,
caíram com grande ânsia e redimiram a covardia do seu senhor, expulsando o inimigo
de volta para o mercado. Estando sem líder, foram mesmo além colericamente, de
modo que muitos deles foram apanhados nas chamas ou arruinados perante o hálito
da serpente que ali festejava.
Tuor bebeu da grande fonte, sentiu-se aliviado e, soltando o elmo de Ecthelion, deu-
lhe de beber. Espirrava água em sua face, para que seu desmaio o deixasse. Aqueles
senhores, Tuor e Glorfindel, limparam a praça, retiram todos os homens que podiam
das entradas e as bloquearam com barreiras, todas menos as que davam para o sul.
Justamente daquela região vinha agora Egalmoth. Ele fora responsável pelas máquinas
de guerra das muralhas, mas, desde então, julgando que a situação estava mais para a
luta corpo a corpo nas ruas do que para se atirar das ameias, reuniu alguns da Casa do
Arco e da Andorinha em volta de si e jogou fora o seu arco. Então, eles foram pelos

LXXI
arredores da cidade, distribuindo bons golpes sempre que se encontravam com bandos
do inimigo. Assim, ele salvou muitos bandos de cativos e reuniu não poucos homens
perdidos e perseguidos. Chegou à Praça do Rei após muita luta e os homens estavam
satisfeitos ao cumprimentá-lo, pois receavam-no morto. Agora, todas as mulheres e
crianças que tinham se reunido lá ou sido levadas por Egalmoth foram alojadas nos
salões do rei e os postos das casas foram preparados para o ataque final. Naquela hoste
de sobreviventes estavam remanescentes, ainda que poucos, de todas as casas, salvo
apenas do Martelo da Ira. A Casa do Rei ainda estava intocada. Agora, a Casa do Rei
não ter sofrido nenhuma baixa não era motivo de vergonha, pois sua parte na batalha
era manter-se forte e descansada até o último momento afim de defender o Rei.
Mas, agora, as criaturas de Melkor haviam juntado suas forças e sete dragões de fogo
surgiram cercados por orcs e montados por balrogs. A horda de inimigos vinha de
todos os caminhos do norte, leste e oeste, buscando a Praça do Rei. Então houve uma
luta sangrenta nas barreiras. Egalmoth e Tuor iam de um lugar a outro da defesa, mas
Ecthelion permaneceu próximo à fonte. Aquela resistência é lembrada como a mais
obstinada e valorosa de todas as canções e contos. Não obstante, finalmente um dragão
derruba a barreira ao norte, onde ficava, em outros tempos, a saída da Alameda das
Rosas. Outrora, era um belo lugar de se ver ou para se passear, mas agora se transforma-
ra em uma senda de escuridão cheia de gritos.

LXXII
Tuor pôs-se no caminho daquela besta, mas foi separado de Egalmoth e ambos obri-
garam o Dragão a recuar para o centro da praça, próximo à fonte. Lá, Tuor ficou exausto,
devido ao calor sufocante, e foi derrubado por um grande demônio, o próprio Gothmog,
filho de Melkor. Mas Ecthelion, cuja face era da palidez de aço cinzento e cujo braço do
escudo pendia flácido a seu lado, avançou a passos largos por cima de Tuor assim que este
caiu. Aquele Noldo atacou o demônio, ainda assim não deu-lhe a morte, sendo atingido
no braço da espada de tal modo que sua arma caiu-lhe da mão. Então lançou-se Ectheli-
on, Senhor das Fontes, mais belo dos noldor, em cheio contra Gothmog, mesmo quando
este levantava de novo o chicote e atacou-o com a ponta do seu elmo, cruzando as pernas
em torno das coxas do inimigo. O balrog gritou e caiu adiante, mas caíram ambos no
tanque da fonte do Rei, que era muito profunda. Lá encontrou aquela criatura sua ruína.
Ecthelion afundou, estando carregado de aço, em direção às profundezas. Assim pereceu
o Senhor das Fontes, após uma batalha flamejante, em águas frias.
Tuor levantou-se, quando o ataque de Ecthelion deu-lhe espaço. Vendo aquele grande
feito, muito lamentou a morte de Ecthelion, mas, estando envolvido pela batalha,
apenas com dificuldade escapou dali para junto do povo que se reunia em torno do
palácio. Vendo a hesitação do inimigo pelo medo devido à morte de Gothmog, seu
general, a Casa do Rei atacou, com o próprio Turgon descendo em esplendor e atacan-
do com eles de modo que quase limparam a Praça do Rei.

LXXIII
Duas vintenas de balrogs foram mortos no ataque, e isso não é pouca coisa. Mas o
maior dos feitos da Casa do Rei ainda estava por vir, pois os noldor cercaram um dos
Dragões de Fogo e o pressionaram até que ele caísse dentro da Fonte do Rei, onde pere-
ceu. Este foi o fim daquelas belas águas, seus espelhos d’água transformaram-se em vapor
e sua fonte secou. Não se lançava mais em direção ao céu, mas, em vez disso, uma vasta
coluna de vapor ergueu-se. A nuvem desta flutuou sobre todo o vale de Tumladen. O
medo caiu sobre todos pela destruição da fonte, a praça foi preenchida com névoas de
calor fervente e brumas opacas, o povo da casa real foi morto naquele lugar pelo calor,
pelo inimigo e pelas serpentes, até mesmo pelos próprios companheiros. Mas um grupo
deles salvou o rei e houve uma rápida reunião ao pé de Glingol e Bansil. Disse o rei:
— Grande é a queda de Gondolin.
E os homens estremeceram, pois estas eram as palavras de Amnon, o profeta de
antigamente. Mas Tuor, falando de modo inflamado, por piedade e amor ao rei, gritou:
— Gondolin ainda resiste, e Ulmo não permitirá seu perecer!
Naquele momento, estavam como em seu primeiro encontro, Tuor ao pé das árvores e
Turgon nos degraus, como quando havia sido o embaixador de Ulmo. Mas Turgon disse:
— Mal eu trouxe sobre Lothengriol, a despeito dos conselhos de Ulmo e, agora, ele
a abandona para definhar no fogo. Veja! A esperança não está mais em meu coração por
minha cidade, mas os filhos dos noldor não serão derrotados para sempre.

LXXIV
Os gondolindrim bateram suas espadas e escudos numa saudação de guerreiros,
pois muitos permaneciam ali perto, mas Turgon disse:
— Não lutem contra a destruição, ó meus filhos! Buscai, quem de vós puder, a
segurança da retirada, se ainda houver tempo, e deixem Tuor ter sua lealdade.
Mas Tuor disse:
— Tu és rei
E Turgon respondeu:
— Contudo, nenhum golpe desfiro mais – e lançou sua coroa às raizes de Glingol.
Então, Galdor, que estava lá, a apanhou. Turgon não a aceitou de volta e, com a cabeça
descoberta, subiu ao pináculo mais alto da torre branca que ficava próxima a seu palácio.
Lá, gritou, em uma voz como uma trombeta soprada entre as montanhas, e todos aqueles
que estavam reunidos abaixo das árvores e os inimigos nas névoas da praça o escutaram:
— Grande é a vitória dos noldor!
E as lendas dizem que, naquele momento, era meia-noite e orcs gritaram em derrisão.

LXXV
queles homens falaram em um ataque repentino e eram de duas
opiniões. Muitos consideraram que era impossível passarem pelos
inimigos, nem poderiam mesmo que escapassem dali atravessar a
planície ou as colinas, e que era melhor, portanto, morrer perto do
rei. Mas Tuor não podia pensar bem da morte de tantas mulheres
e crianças, fosse pelas mãos do seu próprio povo, em último recur-
so, ou pelas armas do inimigo. E falou da escavação e do caminho secreto. Por essa
razão, aconselhou a que implorassem a Turgon que mudasse de opinião e que, vindo
entre eles, conduzisse aqueles remanescentes em direção ao sul para os muros e a entra-
da daquela passagem. Ele mesmo queimava com desejo de ir para lá e saber como Idril
e Eärendil poderiam estar ou conseguir enviar-lhes notícias daquele lugar e mandá-los
partir rapidamente, já que Gondolin estava tomada. Agora, o plano de Tuor realmente
parecia, aos outros senhores, algo desesperado, dada a estreiteza do túnel e a grandeza
da companhia que devia atravessá-lo. No entanto, iriam, de bom grado, aceitar este
conselho, dadas as circunstâncias. Turgon não escutou e ordenou que partissem antes
que fosse tarde demais:
— Deixem Tuor – disse – ser seu guia e seu comandante. Pois eu, Turgon, não
deixarei minha cidade e queimarei com ela.
Despacharam, às pressas, mensageiros, outra vez, para a torre, dizendo:

LXXVI
— Majestade, quem são os gondolindrim se pereceres? Conduza-nos!
Mas ele disse:
— Observem! Eu permaneço aqui.
E ainda acrescentou:
— Se sou rei, obedeçam minhas ordens e não ousem mais discutir os meus comandos.
Depois disso, não enviaram mais nenhum mensageiro e prepararam-se para a tenta-
tiva desesperada de abandonar a cidade. Mas o povo da casa real que ainda vivia não
moveu um pé, antes reuniu-se densamente próximo a base da torre do rei e diziam:
“aqui nós ficaremos, se Turgon não for adiante.” De maneira alguma esses leais súditos
puderam ser persuadidos.
Agora, Tuor estava extremamente dividido entre a sua reverência para com o rei e o
amor por Idril e seu filho, com que o seu coração estava doente. Mas as serpentes já
seguiam pela praça pisando sobre os mortos e agonizantes. O inimigo preparava-se
entre a neblina para o ataque derradeiro, a escolha devia ser feita. Finalmente, devido
ao lamento das mulheres nos corredores do palácio e ao amor e à piedade de Tuor por
aquele triste remanescente dos povos de Gondolin, reuniu toda aquela companhia
infeliz. As donzelas, crianças e mães, e colocou ordenadas no centro, tão bem quanto
pôde, com seus homens ao redor, protegendo-as. Colocou-as bem entre os homens,
nos flancos e na parte traseira, porque pretendia recuar para o sul, lutando o melhor

LXXVII
que pudesse com a retaguarda conforme avançassem. Assim, se fosse possível, desceria
a Estrada das Pompas para o Lugar dos Deuses antes que qualquer grande força fosse
enviada para cercá-lo. De lá, era seu pensamento ir pelo Caminho das Águas Corren-
tes, depois das Fontes do Sul, até os muros e à sua casa. Mas a passagem do túnel secreto
ele duvidava muito de que fosse possível. Com isso, espionando os movimentos de
Tuor, o inimigo, vindo do leste e do norte, fez um grande assalto em seu flanco esquer-
do e na retaguarda mesmo enquanto ele começava a retirada. Mas sua direita estava
coberta pelo salão do rei e a vanguarda da companhia já se aproximava da Estrada das
Pompas.
Alguns dos maiores dragões surgiram brilhantes na névoa e, por isso, Tuor ordenou
que a companhia se apressasse, lutando à sua esquerda, a esmo. Glorfindel defendeu a
retaguarda com valentia e muitos mais da Flor Dourada caíram lá. Assim foi que
atravessaram a Estrada das Pompas e alcançaram Gar Ainion, o Lugar dos Deuses. Este
era muito aberto e sua parte central era o lugar mais alto de toda a cidade. Ali, Tuor
esperava por uma amarga resistência, pois não tinha esperança de conseguir mais avan-
çar adiante. Porém, o inimigo pareceu diminuir de velocidade e cessar de segui-los. Isto
os intrigou. Vinha Tuor, à sua liderança, ao Lugar do Casamento. Lá estava Idril, diante
dele, com seu cabelo solto como no dia de seu matrimônio. Grande é seu espanto. Ao
lado dela estava Voronwë e nenhum outro. Mas Idril não via nem mesmo Tuor, pois o

LXXVIII
olhar dela estava fixo na Praça do Rei, que agora estava um pouco abaixo deles. Então,
a hoste inteira parou e olhou para trás, onde os olhos dela fitavam, e seus corações
ficaram inertes, pois agora viam porque o inimigo não mais os pressionava e o motivo
de sua salvação. Um dragão estava enrolado nos degraus do palácio, maculando sua
brancura. Aglomerados de orcs saqueavam e arrastavam para fora as mulheres e crian-
ças deixadas para trás ou feriam guerreiros solitários. Glingol foi calcinada até o tronco
e Bansil completamente enegrecida. A torre do rei foi totalmente cercada. No topo,
todos podiam enxergar a forma do rei. Mais, perto da base, uma serpente, jorrando
chama, chicoteava e golpeava com a sua cauda, balrogs estavam à sua volta. A casa do
rei estava em grande angústia e gritos terríveis subiam até os sentinelas. Assim foi que o
saque dos salões de Turgon e aquela última resistência da casa real sustivera a atenção do
inimigo, de forma que Tuor conseguira escapar de lá com a sua companhia, que agora
estava mergulhada em lágrimas no Lugar dos Deuses. Idril disse:
— Pesar eu sinto por meu pai que aguarda a desgraça, mesmo em seu pináculo mais
alto, mas sete vezes maior é o meu pesar pelo senhor que tombou diante de Melkor e
não mais caminhará resoluto para sua casa! – Pois ela estava desesperada com a agonia
daquela noite.
— Veja, Idril! Sou eu, e ainda vivo! Vou buscar teu pai, mesmo que seja nos Infernos
de Melkor! – bradou Tuor. Com isso, Tuor desceria a colina, sozinho, enlouquecido

LXXIX
pela aflição de sua esposa. Mas ela, vindo a si em uma tempestade de pranto, agarrou
seus joelhos, dizendo:
— Meu senhor! Meu senhor! – o retardando. Contudo, mesmo enquanto falavam,
um grande alarido e um grito ergueu-se daquele lugar de angústia. A Torre do Rei
lançou-se em uma chama e, em uma punhalada de fogo, desabou, pois os dragões
haviam esmagado sua base e todos os que estavam lá. Grande foi o clangor daquela
terrível queda. Nisso passou Turgon, Rei dos gondolindrim. Naquele momento, a
vitória era de Melkor.
— Triste é a cegueira do sábio – disse Idril pesadamente.
— Triste também é a teimosia daqueles que amamos, todavia, foi uma falta valorosa
– retrucou Tuor.
Se inclinando, Tuor a ergueu e a beijou, pois ela era mais para ele do que todos os
gondolindrim. Mas ela lamentou amargamente por seu pai. Então, Tuor se voltou aos
capitães, dizendo:
— Vejam, temos que nos retirar daqui com rapidez para que não sejamos cercados.
Em seguida, eles seguiram adiante tão rapidamente quanto puderam e chegaram
longe, antes que os orcs se cansassem de pilhar o palácio e regozijarem-se à queda da
torre de Turgon. A hoste de Tuor chegara na parte sul da cidade, encontrando pela
frente apenas bandos dispersos de saqueadores que fogem diante deles, contudo, en-

LXXX
contram também fogo e destruição em todos lugares pela desumanidade daquele ini-
migo. Mulheres eles encontram, algumas com bebês e algumas carregadas com posses,
mas Tuor não as deixava carregar objeto algum, salvo um pouco de comida.
Chegando, afinal, a uma maior tranqüilidade, Tuor pediu notícias a Voronwë, pois
Idril não falava e estava bem próxima de um desmaio. Voronwë lhe falou de como ela
e ele tinham esperado perante as portas da casa, enquanto o ruído daquelas batalhas
crescia e estremecia seus corações e Idril lamentou pela falta de notícias de Tuor. Final-
mente ela expedira a maior parte de sua guarda ao longo do caminho secreto com
Eärendil, constrangendo-os a partir com palavras imperiosas. A aflição dela foi grande
àquela separação. Ela mesma esperaria, dizia, e não buscaria viver depois de seu senhor
e saiu ao redor, reunindo mulheres e andarilhos e enviando-os pelo túnel abaixo e
derrubando saqueadores com seu pequeno bando, ninguém pôde dissuadi-la de portar
uma espada. Eles acabaram, por fim, encontrando um bando de orcs numeroso de-
mais e Voronwë (apenas pela graça dos deuses) conseguira arrastá-la dali para um local
mais seguro, pois todos os seus companheiros pereceram. O inimigo queimou a casa de
Tuor, sem, no entanto, encontrar o caminho secreto.
— Com isso – disse Voronwë – vossa senhora ficou desesperada de fadiga e aflição,
entrou na cidade de modo selvagem, com que eu muito me afligi. Nem pude eu
convencê-la a fugir do incêndio.

LXXXI
No momento em que assim conversavam, chegaram às muralhas meridionais e perto
da casa de Tuor. Esta havia sido completamente queimada e seus destroços eram apenas
fumaça. Com isso, Tuor ficou amargamente enfurecido. Mas houve, então, um barulho
que pressagiava a aproximação de orcs. Tuor despachou sua companhia, tão rapidamente
quanto pôde, pelo caminho secreto abaixo. Agora, há grande tristeza naquela escadaria
enquanto os exilados dão adeus a Gondolin. Também não têm eles muita esperança de
vida ulterior além das colinas, pois como alguém escaparia da mão de Melkor?
Satisfeito ficou Tuor quando todos passam pela entrada e seu temor foi mitigado.
De fato, somente pela sorte dos valar, todo aquele povo consegue entrar pela passagem
sem ser percebido pelos orcs. Alguns agora atiram de lado as armas e trabalham com
picaretas bloqueando a entrada da passagem e indo atrás da hoste conforme podem.
Mas, quando aquele povo tinha descido a escada até o nível do vale, o calor cresceu a
um tormento, devido aos dragões que estavam à volta da cidade e os vermes de Melkor
que se achavam realmente próximos. A escavação ali não era muito profunda. Pedras
soltavam-se pelos tremores do piso acima e, caindo, esmagavam muitos. Havia fumaça
no ar de forma que suas tochas e lanternas apagaram-se. Aqui, eles caíam por cima dos
corpos de alguns que tinham partido antes e perecido. Tuor temia por Eärendil. Apres-
saram-se então, em grande escuridão e angústia. Já por aproximadamente duas horas
estavam naquele túnel, no seio da terra. Este, perto do seu final, não havia sido de todo

LXXXII
terminado, estando suas paredes ainda ásperas e seu teto baixo. Afinal chegaram à boca
do túnel, diminuídos em número em cerca de um décimo dos que haviam entrado.
Este desembocava astutamente em uma bacia larga, onde outrora existira água, mas
que agora estava cheia de arbustos espessos. Ali estava reunido um ajuntamento nume-
roso do povo que Idril e Voronwë tinham enviado pelo caminho adiante deles. Eles
estavam lamentando suavemente em cansaço e sofrimento, mas, Eärendil não estava
lá. Com isso, ficaram Tuor e Idril em angústia de coração. Lamentação havia lá tam-
bém entre todos aqueles outros, pois, no meio da planície em torno deles, assomava a
colina de Amon Gwareth coroada com chamas, onde estivera de pé a cidade cintilante
de sua habitação. Dragões de fogo estavam em torno desta e monstros de ferro entra-
vam e saiam pelos seus portões, grande foi o saque dos balrogs e orcs. Mas até mesmo
esta desgraça tinha um pouco de conforto na visão dos líderes, pois significava que a
planície estava quase vazia do povo de Melkor, salvo perto da cidade, pois para lá
tinham ido todas as suas criaturas malignas para festejar sua destruição.
— Agora então – disse Galdor – devemos ir tão longe daqui em direção às encostas
de Echoriath e atravessar Cristhorn tão presto quanto for possível antes do alvorecer e
isso não nos dá muito tempo, pois o verão está próximo.
Naquele lugar, ergueu-se uma dissensão, pois muitos falaram que era loucura passar
por Cristhorn, a Fenda das Águias, como Tuor pretendia. “O sol” – disseram – “estará

LXXXIII
no alto muito antes que alcancemos os contrafortes e seremos mortos na planície por
aqueles dragões e demônios. Vamos para Bad Uthwen, o Caminho da Fuga, pois este
fica a apenas metade da distância, nossos cansados e feridos talvez consigam alcançá-lo,
se não puderem ir mais longe.” Todavia Idril falou contra isto e persuadiu os senhores
que não confiassem na magia daquele caminho que outrora o protegera da descoberta:
“pois, que magia permanece se Gondolin sucumbir?” Não obstante, um grande grupo
de homens e mulheres separou-se de Tuor e foram para Bad Uthwen e, de lá, para
dentro das mandíbulas de um monstro que havia sido posto por Melkor a esperar lá, a
conselho de Maeglin, para que ninguém escapasse por ali. Mas os outros seguiram para
Cristhorn, conduzidos por um certo Legolas Greenleaf, da casa da Árvore, que conhe-
cia aquela planície de dia ou na escuridão e enxergava à noite. Muito velozmente cami-
nharam através do vale, apesar de todo seu cansaço, e só pararam depois de uma grande
marcha. Então, a terra se viu iluminada por um amanhecer cinzento e triste que não
mais iluminava a beleza de Gondolin; mas a planície estava cheia de névoas e isso era
extraordinário, pois nenhuma névoa ou bruma alguma vez chegara lá antes, isso certa-
mente devia-se ao fim que tivera a fonte do rei. Novamente eles se ergueram e, cobertos
pelos vapores, prosseguiram, por muito tempo depois de passado o alvorecer, em segu-
rança, até que já estivessem longe demais para qualquer um vislumbrá-los da colina ou
das muralhas arruinadas naqueles ares nublados.

LXXXIV
Agora, as montanhas, ou melhor, suas colinas mais
baixas estavam a sete léguas menos uma milha de Gon-
dolin e Cristhorn, estava a duas léguas de subida a partir
do início das montanhas, pois ficava a uma grande altu-
ra. Portanto, eles ainda tinham duas léguas e parte de
uma terceira para atravessar entre montes e contrafor-
tes. Estavam muito cansados. Ora, o sol erguia-se bem
acima de uma brecha entre as colinas orientais e ele esta-
va iluminado com um vermelho vivo como sangue. As
névoas próximas a eles subiam, mas as ruínas de Gon-
dolin estavam totalmente envoltas como que em uma
nuvem. Então, conforme a neblina subia, eles viram
um grupo de homens que fugia a pé, e era perseguidos
por uma estranha cavalaria. Mas não eram cavalos. Os orcs, ao que parecia, montavam
grandes lobos e brandiam lanças. Terrivelmente angustiado, Tuor disse:
— Vejam! Lá está Eärendil, meu filho. Observem, sua face brilha como uma estrela
na devastação e meus homens da Asa estão a sua volta, estão em grandes dificuldades.
Em seguida, ele escolheu cinqüenta dos homens que estavam menos exaustos e,
deixando a companhia principal, foi através da planície com aquela tropa tão rapida-

LXXXV
mente quanto permitiam suas forças. Chegando agora ao alcance da voz, Tuor gritou
aos homens em volta de Eärendil para pararem e não fugir, pois os montadores de
lobos estavam dispersando-os e matando-os um por um. A criança estava nos ombros
de Hendor, um membro da tropa pessoal da casa de Idril e parecia que este ia restar
sozinho com a sua carga. Eles pararam e todos ficaram de costas uns para os outros com
Hendor e Eärendil no centro do grupo. Mas Tuor logo se aproximou com sua tropa,
embora estivessem todos ofegantes.
Dos montadores de lobos havia cerca de uma vintena e dos homens que estavam em
volta de Eärendil havia apenas seis vivos. Tuor abriu seus homens na formação de uma
única fileira em lua crescente, esperando assim envolver os orcs, para que nenhum
escapasse levando notícias ao inimigo e trouxesse a ruína sobre os exilados. Nisto obte-
ve sucesso, de forma que apenas dois escaparam, feridos e sem as suas bestas, portanto
somente muito tarde suas informações chegaram à Melkor.
Feliz ficou Eärendil ao cumprimentar Tuor e, este, muito satisfeito por sua criança.
Porém, disse Eärendil:
— Estou sedento, pai, porque corri longe. Hendor não precisou me carregar.
A isto seu pai não disse nada, não tendo nenhuma água e pensando na necessidade
de toda aquela companhia que ele guiava, mas Eärendil disse novamente:
— Foi bom ver Maeglin morrer daquela forma, pois ele queria colocar os braços em

LXXXVI
volta de minha mãe e eu não gostava dele. Mas eu não queria viajar em nenhum túnel
mesmo seguido por todos os montadores de lobos de Melkor.
Tuor sorriu e o colocou sobre seus ombros. Pouco depois disso a companhia princi-
pal surgiu e Tuor deu Eärendil a sua mãe, que estava em grande alegria. Eärendil não
queria ser carregado em seus braços, pois disse:
— Mãe, tu estás exausta e guerreiros em cota de malha não cavalgam entre os gondo-
lindrim, salvo o velho Salgant! – Sua mãe riu em meio à tristeza. Continuou Eärendil: –
Onde está Salgant? – Pois Salgant lhe contara muitas lendas curiosas ou brincara com ele
às vezes. Eärendil divertia-se muito com o velho noldo, naqueles dias, quando este vinha,
com freqüência, à casa de Tuor, amando o bom vinho e a bela refeição que lá recebia. Mas
ninguém pôde dizer onde estava Salgant. Talvez ele tenha sido morto pelo fogo em sua
cama. Mas alguns achavam que teria sido levado cativo para os salões de Melkor e trans-
formado em seu bufão, um destino ruim para um nobre da boa raça dos noldor. Eärendil
ficou triste e caminhou ao lado de sua mãe, em silêncio.

LXXXVII
gora, eles se aproximavam dos contrafortes, era plena manhã, mas
ainda cinzenta. Junto ao início da estrada superior, a hoste de Tuor
estirou-se e descansou em um pequeno vale orlado com árvores e
com aveleiras. Muitos dormiram apesar do perigo, pois estavam
totalmente exaustos. Todavia, Tuor estabeleceu uma vigilância rí-
gida e não dormiu. Ali fizeram uma pequena e escassa refeição.
Eärendil saciou a sua sede e brincou ao lado de um pequeno riacho. Disse ele à sua mãe:
— Mãe, eu queria que nós tivéssemos o bom Ecthelion da Fonte aqui para tocar
para mim sua flauta ou fazer-me apitos de salgueiro! Por acaso ele seguiu à frente?
Idril informou-lhe que não e contou o que ouvira falar de seu fim. O menino disse
que não se preocupava em nunca mais ver as ruas de Gondolin e chorou amargamente.
Mas Tuor disse a Eärendil que ele não mais as veria, pois Gondolin não existe mais.
Depois disso, perto da hora do sol pôr-se atrás das colinas, Tuor ordenou que a compa-
nhia se erguesse e estes avançaram através de caminhos ásperos. Logo a grama desapare-
ceu e deu caminho a pedras musgosas, as árvores ficaram para trás e até mesmo os pinhei-
ros e abetos ficaram esparsos. Por volta da hora do por do sol o caminho se curvava atrás
das colinas de forma que não poderiam mais olhar para Gondolin. Toda aquela compa-
nhia, então, se voltou e viram... A planície estava limpa e sorrindo na última luz como
antigamente, mas ao longe. Enquanto olhavam, uma grande chama ergueu-se contra o

LXXXVIII
norte escurecido: a queda da última torre de Gondolin, aquela mesma que permanecera
firme junto ao portão meridional e cuja sombra caía freqüentemente sobre as paredes da
casa de Tuor. Depois, o sol mergulhou e não mais viram Gondolin.
Agora a passagem de Cristhorn é de avanço perigoso e aquela hoste não se aventura-
ria nela pela escuridão, sem lanternas e sem tochas, muito cansados e sobrecarregados
com mulheres, crianças, doentes e feridos, não fosse pelo grande medo dos espiões de
Melkor, pois era uma grande companhia e não podia viajar em grande segredo. A
escuridão veio rapidamente enquanto se aproximavam daquele lugar alto e tiveram
que se estirar em uma fila longa e dispersa. Galdor e um bando de homens armados
com lanças ia na frente. Com eles estava Legolas, cujos olhos eram como olhos de gato
na escuridão. Podiam enxergar ainda mais longe. Depois deles, seguiam as menos
cansadas das mulheres, apoiando os doentes e os feridos que poderiam ir a pé. Idril
estava com estes e Eärendil suportava bem o perigoso caminho, mas Tuor estava no
meio, atrás deles, com todos os seus homens da Asa. Carregavam consigo alguns que
estavam gravemente feridos e Egalmoth estava com ele, tendo sido ferido na fuga da
praça. Atrás novamente vinham muitas mulheres com bebês, meninas e homens man-
cando. O progresso era lento o bastante para eles. Por último, vinha o maior bando de
guerreiros aptos a combater e, com eles, estava Glorfindel dos cabelos dourados.
Assim chegaram a Cristhorn, que é um mau lugar por razão de sua altura, pois esta

LXXXIX
é tão grande que nem a primavera nem o verão jamais chegam até lá e é muito frio. De
fato, enquanto o vale dança ao sol, lá a neve reside o ano todo naqueles lugares desertos
e, quando chegaram lá, o vento uivava, vindo do norte por trás deles, ferindo-os dolo-
rosamente. A neve caía e rodopiava em redemoinhos, entrava em seus olhos. Isto não
era nada bom, pois o caminho era estreito. Do lado ocidental, à sua direita, uma parede
vertical erguia-se por cento e quarenta metros, a partir do caminho, antes de terminar,
acima deles, em pináculos denteados, nos quais existiam muitos ninhos. Lá habitava
Thorondor, Senhor do povo das Águias, a quem os eldar chamam Sorontur.
Do outro lado, existe uma queda menos inclinada, mas ainda terrivelmente íngre-
me, com longos dentes de rocha apontando para o alto, de modo que pode-se descer,
ou cair, mas, por nenhum meio, subir. Daquela profundeza não há nenhuma fuga em
qualquer extremo mais do que pelos lados. O Thorn Sir corre em seu fundo. Este cai
naquele lugar, vindo do sul, por cima de um grande precipício, mas com pouca água,
pois é um riacho estreito naquelas alturas. Ele surge mais ao norte, depois de fluir por
uma milha rochosa sobre a superfície e descer por uma passagem estreita que entra na
montanha, pela qual mesmo um peixe teria dificuldade em forçar passagem.
Galdor e seus homens chegavam agora ao extremo de onde o Thorn Sir cai no abismo.
Os outros desgarraram-se, apesar de todos os esforços de Tuor, através da maior parte da
milha de caminho perigoso entre o precipício e a parede rochosa, de forma que o povo de

XC
Glorfindel mal havia chegado ao
seu começo quando houve um
grito, na noite, que ecoou naquela
região severa. Os homens de Gal-
dor foram atacados repentinamen-
te, no escuro, por formas saltando
de trás das pedras onde tinham per-
manecido escondidos até mesmo
do olhar de Legolas. Tuor imagi-
nou que eles tinham encontrado
uma das companhias móveis de
Melkor e temeu não mais do que
uma luta rápida no escuro. Mes-
mo assim, ele rapidamente trouxe as mulheres e doentes para o centro da longa fila e
juntou seus homens aos de Galdor. Houve grande tumulto naquele perigoso caminho.
Rochas caíam de cima e as coisas pareceram ruins, porque elas provocaram grande dano.
Mas a situação pareceu a Tuor ainda pior quando um ruído de armas veio da retaguarda
e chegaram notícias a ele, por um homem da Andorinha, de que Glorfindel estava sendo
acossado por orcs, em desvantagem, e que um balrog estava com eles.

XCI
Tuor ficou receoso de uma armadilha. Foi mesmo isso o que ocorreu, pois observa-
dores haviam sido colocados, por Melkor, em Echoriath. Contudo, tantos orcs haviam
sido atraídos pelo valor dos gondolindrim para o assalto antes que a cidade caísse, que
os espiões estavam esparsamente colocados, sobretudo aqui no sul. Apesar disso, um
destes espiara a companhia enquanto eles iniciavam a subida a partir do vale das avelei-
ras, e juntaram-se contra eles tantos bandos de orcs quanto foi possível, planejando cair
sobre os exilados pela frente e por trás, mesmo sobre o perigoso caminho do Cristhorn.
Ora Galdor e Glorfindel mantinham suas posições, a despeito da surpresa do assal-
to, e muitos dos orcs foram lançados para dentro do abismo. Mas era provável que a
queda das rochas terminasse com todo o seu valor e que a fuga de Gondolin se transfor-
masse em ruína. A lua, naquela hora, ergueu-se acima da passagem e a escuridão se
levantou um tanto, por sua luz pálida filtrada em lugares escuros; contudo esta não
iluminava o trajeto pela altura das paredes.
Levantou-se, então, Thorondor, Rei das águias, que não amava Melkor. Este, captu-
rara muitos de sua família e acorrentara-os contra rochas afiadas para arrancar deles as
palavras mágicas por meio das quais ele acreditava que poderia aprender a voar, pois
Melkor sonhava em contender mesmo contra Manwë, no ar. Quando estes não fala-
ram nada, Melkor cortou fora suas asas e procurou formar destas um par poderoso para
seu uso, mas isso de nada lhe serviu.

XCII
Agora, quando o clamor vindo da passa-
gem ergueu-se até seu grande ninho, Tho-
rondor disse:
— Por que estas coisas imundas, estes orcs
das colinas, subiram próximos a meu tro-
no? E por que os filhos dos noldor gritam
em lugares baixos por temor dos filhos de
Melkor, o amaldiçoado? Levante-se, ó thorn-
hoth, cujos bicos são de aço e cujas garras
são espadas!
Então, houve uma corrida, como um
grande vento, em lugares rochosos, e o povo
das águias caiu sobre os orcs que haviam es-
calado acima da trilha e laceraram suas faces
e suas mãos, arremessando-os às rochas do
distante Thorn Sir abaixo. A esperança vol-
tou forte nos corações dos gondolindrim. Fa-
riam da águia, em dias posteriores, um sinal de sua família e em símbolo de sua alegria.
Idril o utilizaria sobre si, mas Eärendil amava mais a asa de cisne de seu pai. Ora, desobs-

XCIII
truídos, os homens de Galdor acossaram para trás
aqueles que os bloqueavam, pois não eram mui-
tos e o ataque dos thornhoth os deixara muito
amedrontados. A companhia seguiu adiante ou-
tra vez, embora Glorfindel tivesse muita luta na
parte traseira. Metade da companhia atravessara
já o caminho perigoso e as quedas do Thorn Sir,
quando o balrog que estava com os inimigos, na
retaguarda, lançou-se, com grande salto, sobre
algumas rochas elevadas que ficavam no lado es-
querdo da trilha, na borda do precipício. Dali
pulou, em fúria, atrás dos homens de Glorfindel
e entre as mulheres e os doentes adiante deste,
golpeando com seu chicote de chama. Glorfin-
del saltou para a frente sobre ele. Sua armadura
dourada resplandeceu estranhamente ao luar. Ele
golpeou o demônio, fazendo-o saltar outra vez em cima de um grande pedregulho. Glor-
findel pulou atrás. Houve um combate mortal naquela rocha alta, acima do povo e este,
detido adiante e pressionado por trás, ficou tão perto que todos podiam assistir a luta de

XCIV
Glorfindel. Contudo, ela acabou antes que os homens pudessem saltar a seu lado. A fúria
de Glorfindel impeliu aquele balrog de um ponto a outro e sua cota de malha o defendia
do chicote e da garra. O valente noldor infligiu-lhe um golpe pesado em seu capacete de
ferro e cortou-lhe fora o braço do chicote, na altura do cotovelo. Então, saltou o balrog,
no tormento de sua dor e medo, diretamente sobre Glorfindel que, aproveitando as
defesas abertas de seu oponente, apunhalou-o com o movimento de uma serpente. Mas
Glorfindel encontrou apenas o ombro do balrog e foi agarrado. Ambos cambalearam
para uma longa queda sobre o topo do rochedo íngreme. A mão esquerda de Glorfindel
buscou um punhal e, este, ele empurrou para cima de modo a perfurar o ventre do balrog
perto da sua própria face, pois aquele demônio tinha o dobro de sua estatura. Este gritou
e caiu da pedra, de costas, Ao cair, segurou as mechas de cabelos amarelos de Glorfindel
que escapavam de seu elmo, caindo ambos no abismo.
Isso foi muito doloroso, pois Glorfindel era extremamente querido. O golpe da
queda de seus corpos ecoou por entre as colinas e o abismo de Thorn Sir ressoou. Ao
grito de morte do balrog, os orcs da frente e de trás hesitaram e foram mortos ou
fugiram para longe. O próprio Thorondor, um pássaro poderoso, desceu para o abis-
mo e trouxe para cima o corpo de Glorfindel. Mas o balrog ficou onde havia caído e a
água de Thorn Sir correu negra por muitos dias em Tumladen.
Ainda nos dias de hoje, os eldar dizem, quando vêem o bem lutando em grande

XCV
desigualdade de poder contra uma fúria maligna: “Ai! Isto é Glorfindel e o balrog” e
seus corações ainda dóem pela sua morte. Devido ao amor dos exilados por Glorfindel
e apesar da pressa e do medo de que ali chegassem novos inimigos, Tuor deixou ergue-
rem um grande monumento de pedras sobre Glorfindel, além daquele caminho peri-
goso junto ao precipício do riacho da Águia. Thorondor nunca permitiu qualquer
dano ao monumento. Todavia, flores amarelas chegaram até ali e, ainda agora, crescem
em torno do monumento, naquele lugar pouco hospitaleiro. O povo da Flor Dourada
chorou durante a sua construção e não pôde secar suas lágrimas.

XCVI
uem contará das andanças de Tuor e os exilados de Gondolin na
vastidão que jaz além das montanhas, ao sul do vale de Tumladen?
Miséria era a sua possessão e morte, frio e fome, e vigílias incessan-
tes. Que os exilados de Gondolin conseguissem passar por aquelas
regiões infestadas pelo mal de Melkor vinha, em parte, da matança
e do dano feito ao poder deste naquele assalto e da velocidade e
cautela com que Tuor os liderava. Melkor, com certeza, sabia daquela fuga e isto o
deixava furioso. Ulmo ouvira notícias, nos oceanos distantes, dos atos que foram feitos,
mas ainda não podia ajudá-los, pois estavam longe de águas e rios. Na verdade, sofriam
extremamente de sede e não conheciam aqueles caminhos.
Mas, depois de mais de um ano de vagar, no qual, muitas vezes, viajaram longo
tempo envolvidos na magia daquelas vastidões somente para chegar novamente até
seus próprios rastos, mais uma vez o verão chegou e, perto de seu auge, chegaram,
afinal, até um córrego. Seguindo-o, chegaram a terras melhores e foram um pouco
confortados. Aqui, Voronwë os guiava, pois captara um sussurro de Ulmo naquele
riacho, em uma das últimas noites de verão. Ele sempre obtia muita sabedoria do som
das águas. Voronwë os conduziu até que alcançaram o Sirion, que aquele córrego ali-
mentava. À essa altura, ambos, Tuor e Voronwë, viram que não estavam distantes da
antiga saída exterior do Caminho da Fuga e que estavam, mais uma vez, naquele pro-

XCVII
fundo vale de carvalhos. Aqui, se achavam todos os arbustos pisoteados, as árvores
queimadas e as paredes do vale marcadas com chamas. Muito lamentaram, pois julga-
ram saber agora o destino daqueles que haviam se separado deles na saída do túnel.
Viajavam, descendo aquele rio, mas estavam novamente em temor de Melkor. Com-
bateram lutas com seus bandos de orcs e estavam sempre em perigo devido aos monta-
dores de lobos. Mas os seus dragões de fogo não os buscavam, tanto devido à grande
exaustão de seus fogos, na tomada de Gondolin, quanto ao poder crescente de Ulmo,
conforme o rio crescia. Assim, chegaram, depois de muitos dias, pois caminhavam
lentamente e conseguiam seu alimento com muita dificuldade, àquelas grandes matas
e pântanos acima da Terra dos Salgueiros e Voronwë não conhecia aquelas regiões.
Aqui, segue o Sirion por um caminho longo, debaixo da terra, mergulhando na grande
caverna dos Ventos Tumultuosos 8 e correndo livre novamente sobre os Lagos do Cre-
púsculo,10 o mesmo lugar onde Tulkas lutou com Melkor mais tarde. Tuor viajara
através destas regiões pela noite e, no crepúsculo, depois que Ulmo viera até ele entre os
juncos. Não se lembrava das trilhas. Em alguns lugares, aquela terra é cheia de armadi-
lhas e muito pantanosa. Aqui, a hoste demorou-se longo tempo, sendo atormentada
por moscas desagradáveis, pois era outono ainda. Além disso, sezões e febres caminha-
vam entre eles. Por tal sofrimento, eles amaldiçoaram Melkor.
Todavia, chegaram, afinal, aos grandes lagos e às extremidades daquela suave Terra dos

XCVIII
Salgueiros. O próprio sopro dos ventos lhes trouxe descanso e paz. Pelo conforto daquele
lugar, a aflição foi suavizada daqueles que lamentavam os mortos na grande queda. Lá,
mulheres e donzelas tornaram-se novamente belas, seus doentes foram curados e velhas
feridas cessaram de doer. Ainda assim, temendo, com razão, que seu povo ainda vivesse
em cativeiro amargo nos Salões de Ferro, eles não cantavam nem sorriam.
Aqui permaneceram muito tempo e Eärendil já era um menino crescido antes que
a voz das trompas de Ulmo atraísse o coração de Tuor e seu desejo pelo mar retornasse
com uma ânsia mais profunda após anos sendo reprimida. Toda aquela hoste levantou-
se a seu comando e desceram o Sirion, em direção ao mar.
O povo que entrara em Cristhorn e vira a queda de Glorfindel era próximo de oito
centenas. Um grupo grande. Mas eram apenas um triste remanescente de tão bela e
populosa cidade. Entretanto, os que se levantaram das relvas da Terra dos Salgueiros, nos
anos seguintes, e partiram para o mar, quando a primavera postou celidônias nos prados,
fizeram um triste festival em memória de Glorfindel. Estes, contavam apenas três cente-
nas e uma vintena de homens e meninos. Duas centenas e três vintenas de mulheres e
meninas. Agora, o número de mulheres era pequeno por terem sido escondidas ou aloja-
das por seus parentes em lugares secretos na cidade. Lá foram queimadas ou mortas ou
levadas e escravizadas. Os grupos de resgate muito raramente as encontravam e é o maior
sofrimento pensar nisto, pois as donzelas e mulheres dos gondolindrim eram tão belas

XCIX
quanto o sol, tão adoráveis quanto a lua e mais radiantes que as estrelas.
A glória habitava naquela cidade, Gondolin dos Sete Nomes, e sua ruína foi a mais
terrível de todas e o maior dos saques de cidades sobre a terra. Nem Bablon, nem
Ninwi, nem as torres de Trui, nem todas as muitas tomadas de Rûm que é a maior
entre os homens, viram tal terror como aquele que caiu sobre Amon Gwareth, entre a
parentela dos noldor. Este é considerado o pior trabalho de Melkor no mundo.
Não obstante, os exilados de Gondolin habitavam, agora, à foz do Sirion, 5 próximo
às ondas do Grande Mar. Naquele lugar, assumiram o nome de Lothlim, o Povo da
Flor, pois gondolindrim é um nome doloroso demais para seus corações. E belo, mes-
mo entre aquele povo, Eärendil cresce na casa de seu pai e a grande história de Tuor
chega ao seu fim.
Então, disse Littleheart, filho de Bronweg: “eu lamento por Gondolin.” E ninguém,
no Salão das Achas, falou ou se moveu por um longo tempo.

C
11

10 5
8
6
7

9
1

2
3

1 Lago Mithrin
2 Dor Lómin
3 Cavernas de Androth
4 Glorfalc
5 Foz do Sirion
6 Arlisgion
7 Terra dos Salgueiros
8 Caverna dos Ventos Tumultuosos
9 Colinas de Ferro
10 Lagos do Crepúsculo
11 Echoriath (Localização de Gondolin)
N

Oeste de Beleriand
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As ilustrações aqui utilizadas foram obtidas de diversos sites na Internet,sendo elas da autoria de: John Howe (pags. 8, 15, 36, 51,
53, 58, 91, 93, 101,); Ted Nasmith (pags. 3, 5, 21, 27, 34, 46, 49, 68, 94) e Cleber Giovani Soares (pag. 101).

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