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HIPOTIPOSES1 PIRRÔNICAS

SEXTO EMPÍRICO

NOTA DO TRADUTOR
Esta tradução do Livro I das Hipotiposes de Sexto Empírico foi realizada,
seguindo a sugestão e o apoio do professor Luiz Bicca, durante o primeiro semestre
letivo de 2005, e entregue como trabalho final de uma disciplina de pós-graduação
ministrada pelo professor Danilo Marcondes, a quem devo, evidentemente, não só a
feliz oportunidade de empreender esta tarefa, mas também insights fundamentais a
respeito da terminologia e da “conduta” cética.
Baseei-me nas traduções francesa, de P. Pellegrin (Esquisses pyrrhonienes,
Éditions du Seuil, 1997), e inglesa, de R. G. Bury (Outlines of pyrrhonism, Harvard
University Press, 1993). Nas situações em que as duas traduções apresentavam soluções
muito diferentes para o texto grego, consultei-o diretamente (conforme oferecido na
edição de Pellegrin), e também a tradução de J. Annas e J. Barnes (Outlines of
scepticism, Cambridge University Press, 1994). Segui a numeração do texto original
fornecida por Pellegrin, e inclui notas retiradas das três fontes, especialmente das duas
primeiras. Além disso, nos capítulos I a XII, beneficiei-me, ainda, da tradução do
professor Danilo Marcondes, que foi fonte de importantes sugestões.
No que diz respeito aos termos mais fundamentais para a argumentação de Sexto
Empírico, optei sempre por apresentá-los da forma mais literal possível, tendo em
mente que uma tradução, por si mesma, não pode solucionar problemas filosóficos
através da escolha da palavra correta. Assim, não traduzo “epochée” nem por
“suspensão do assentimento”, que é o equivalente em português para a tradução de
Pellegrin, nem por “suspensão do juízo”, que é a escolha de Bury, mas simplesmente
por “suspensão”, deixando a encargo do esforço particular de cada estudante decidir
sobre o que é, afinal, que a suspensão cética tem efeito. Pelo mesmo motivo, não segui a
tradução inglesa, que sugeriria uma utilização extensiva do termo “objeto” ao longo da
argumentação – para fazer referência, por exemplo, aos objetos das impressões, objetos
do pensamento ou objetos externos –, e tampouco empreguei, com consistência
inabalável, o termo “coisa”, seguindo o “chose” da tradução francesa – o que resultaria,
então, em que se falasse de “coisas externas”, “coisas pensadas”. Parece-me que as
opções por utilizações absolutamente consistentes de “objeto” ou de “coisa” fazem com
que a atmosfera polêmica do texto fique carregada ou por ares de teoria do
conhecimento, ou por humores de ontologia. Então, seguindo mais ou menos
literalmente a língua grega, achei por bem não me decidir nem por coisas nem por
objetos, mas fazer referência simplesmente a “aquilo que é pensado”, ou “aquilo que
aparece”, utilizando, às vezes, o termo “coisa”, mas sem qualquer compromisso
ontológico, ao dizermos, por exemplo: “tem uma coisa que está me preocupando” – ou,
para citar as primeiras palavras das hipotiposes, ao dizermos: “quando investigamos


1
Tanto a tradução francesa quanto a inglesa sugerem, para a palavra grega hypotypoosis, termos que, em
português, seriam equivalentes a “esboço”. No entanto, valeria observar que hypotypoosis passou para o
latim como designação de uma figura retórica que o dicionário Houaiss define da seguinte maneira:
“descrição de uma cena ou situação com cores tão vivas, que faz o ouvinte ou leitor ter a sensação de que
as presencia pessoalmente”.

1

alguma coisa”, sendo que, neste caso, especificamente, a palavra “coisa” (“pragma”)
está presente.
Por outro lado, traduzi “hypokeimenoon” por “substância”, e “ektos
hypokeimenoon” por “substância externa”, e não por “objeto externo”, seguindo Bury,
ou “coisa externa”, como faz Pellegrin. Com isso, intencionei tão somente sensibilizar o
leitor para os momentos em que Sexto Empírico utiliza este termo tão caro à tradição
filosófica e que desempenha, afinal, um papel fundamental em um dos principais
sistemas dogmáticos da época de nosso autor, o estoicismo. Minha opção, quanto a este
caso, se baseou na consideração de que quem acredita que Sexto Empírico não faz uma
utilização técnica ou dogmática do termo, deve concordar, ao mesmo tempo, que é
justamente no fato de utilizar o termo de maneira não-dogmática – visto que
“hypokeimenoon” é uma palavra do idioma grego como tantas outras, e não um
conceito que circula apenas em meios científicos especializados – que está a crítica
cética (se é que ela existe), e que tal crítica talvez não fosse tão visível se o autor
simplesmente optasse por um outro termo.
Por fim, para possibilitar, ainda, uma margem de autonomia por parte do leitor,
ofereço a transliteração de palavras gregas (preferencialmente no nominativo singular,
para os substantivos, e no infinitivo, para os verbos) para alguns dos termos cuja
compreensão me parece mais implicada na interpretação do texto. Penso ter utilizado
um método de transliteração suficientemente claro: utilizei, sempre que possível, letras
obviamente equivalentes (a para alfa, b para beta, g para gama etc.); usei dz para o
dzeta, th para o teta, cs para o csi, ph para o fi, ch para o qui e ps para o psi; indiquei o
espírito fechado (o qual denota um som aspirado) através da letra h no início das
palavras; ignorei os espíritos abertos e toda espécie de acentuação; usei y para
transcrever o ípsilon – exceto nos ditongos ômega-ípsilon, onde utilizei u, tendo em
vista a sonoridade –, ee para transcrever o eta, e oo para o ômega (que, quando
necessário, separo por um traço das suas equivalente curtas, como em ete-ee, épsilon,
tau, épsilon, eta). Com isso, espero ter ocasionado que, dentre todos os problemas
possíveis, esta tradução ao menos não tenha os de ordem computacional.
P. R. de Oliveira
Nota Complementar: O texto a seguir é uma transcrição com alguns ajustes e
correções acrescentadas por Juliomar Marques a partir de indicações de Plínio Smith e
Waldomiro Silva Filho.

2

LIVRO I

CAPÍTULO I
DA PRINCIPAL DIFERENÇA ENTRE AS FILOSOFIAS
[1] Aparentemente, quando empreendemos uma investigação2 sobre alguma
coisa, segue-se que ou fazemos uma descoberta; ou negamos ter feito uma descoberta,
reconhecendo, assim, que a coisa é inapreensível; ou continuamos investigando. [2] E
por isso, provavelmente, que, no que diz respeito ao que é investigado pela filosofia,
alguns afirmam terem descoberto a verdade; outros, que ela não pode ser apreendida; e
outros, ainda, continuam investigando. [3] Aqueles que pensam ter encontrado são os
chamados dogmáticos, em sentido estrito: por exemplo, os seguidores de Aristóteles e
de Epicuro, os estóicos, entre outros. Clitômaco, Carnéades e outros acadêmicos são
partidários do inapreensível. Os que continuam procurando são os céticos3. [4] Assim,
parece razoável manter que há três tipos de filosofia: a dogmática, a acadêmica e a
cética. A respeito das duas primeiras, é melhor que outras pessoas falem, mas, no que
concerne a doutrina ou escola4 cética, apresenta-la-emos aqui em linhas gerais, tendo
sempre em vista o seguinte: não afirmamos que nada do que será dito é exatamente
como dizemos, mas, como o cronista, apenas fazemos, de cada coisa tratada, um relato,
conforme o que nos aparece no momento.

CAPÍTULO II
DOS DISCURSOS5 DO CETICISMO
[5] Uma das maneiras de se expor a filosofia cética chama-se “geral” e, a outra,
“especial”. A geral é aquela na qual expomos as características próprias do ceticismo:
seu conceito, seus princípios, seus argumentos, seu fim6, os modos da suspensão, a
maneira como compreendemos as afirmações céticas, e os pontos que distinguem o
ceticismo das filosofias que lhe são próximas. [6] A especial é aquela na qual fazemos
objeções a cada uma das partes daquilo que se chama filosofia. Em primeiro lugar,
trataremos da maneira de exposição geral, começando nossa descrição com os nomes
usados para designar a escola cética.

CAPÍTULO III
DAS NOMENCLATURAS DO CETICISMO
[7] A escola cética é chamada “inquiridora”7 devido ao fato de que sua atividade
diz respeito à busca e à indagação8; é chamada “suspensiva”9 a propósito da afecção10

2
O verbo é dzeeteoo, que quer dizer, literalmente, “procurar”.
3
skeptikós
4
agoogee
5
Trata-se dos lógoi do ceticismo.
6
telos
7
dzeeteetikee, de dzeeteoo, procurar.
8
skeptesthai
9
ephektikee

3

que advém naquele que empreende tal busca; é chamada “aporética”11, seja porque,
conforme dizem alguns, mantém-se em aporia12 e busca sempre, seja porque diz-se que
ela é incapaz de dizer se deve-se dar o assentimento ou recusá-lo; e é chamada
“pirrônica” porque nos parece que Pirro se aproximou do ceticismo de uma maneira
mais consistente e mais evidente do que seus predecessores.

CAPÍTULO IV
O QUE É O CETICISMO
[8] O ceticismo é a capacidade de colocar frente a frente13 [ou opor], umas com
as outras, da maneira que seja, tanto as coisas que aparecem14 quanto as coisas
inteligíveis15, capacidade esta que, devido à força igual que há nas coisas16 e nos
pensamentos17 opostos, nos faz ter à suspensão18 e, em seguida, à tranquilidade19. [9]
Nós a chamamos “capacidade” não em um sentido elaborado, mas simplesmente no
sentido de “ser capaz de”. Ademais, entendemos por “coisas que aparecem” aquilo que
é sentido20, em contraste com aquilo que é pensado21. E quanto à expressão “da maneira
que seja”, ela pode ser ligada a “capacidade”, se tomamos o termo simplesmente, como
dissemos, ou, também, a “colocar frente a frente tanto as coisas que aparecem quanto as
coisas inteligíveis”. Pois dizemos “da maneira que seja” uma vez que as opomos de
maneiras variadas – seja as coisas aparentes às coisas aparentes, seja as coisas pensadas
às coisas pensadas, seja coisas aparentes às coisas pensadas –, de forma a assegurar a
inclusão de todas as oposições. A expressão “da maneira que seja” pode, ainda, ser
ligada a “tanto as coisas que aparecem quanto as coisas inteligíveis”, para mostrar que
não investigaremos como aparece aquilo que aparece, ou como é pensado aquilo que é
pensado, mas simplesmente tomaremos isso tudo como dado.
[10] E não tomamos os “pensamentos opostos” sempre como afirmação e
negação, mas simplesmente no sentido de pensamentos em conflito. Chamamos de
“força igual” a igualdade no que diz respeito à credibilidade22 ou à falta dela, de modo
que nenhum dos pensamentos em conflito possui qualquer superioridade sobre os outros


10
pathos, que Bury traduz, na maioria das vezes, por “feeling”, e Pellegrin, sempre por “affect”. Minha
opção por “afecção” baseia-se somente em que “afeto” evoca, parece-me, um contexto psicológico um
tanto estrito demais.
11
aporeetikee
12
O dicionário Bailly indica principalmente os seguintes significados para o termo grego aporia:
dificuldade de seguir, falta de recursos, necessidade (no sentido de pobreza ou indigência), problema,
dificuldade, incerteza (particularmente quando se está procurando alguma coisa ou em uma discussão).
13
dynamis antethikee
14
phainomenoon, plural de “o que aparece”.
15
noouménoon, plural de “o que é pensado”.
16
No singular, pragma
17
No singular, logos: pensamento, discurso, raciocínio, argumento, juízo, etc.
18
epoche
19
ataracsia, ausência de agitação, de problemas
20
aistheeta; mas Bury diz: “the objects of sense perception”.
21
noeeta
22
O substantivo é pistos, “o que é digno de fé” (Bailly). Escolhi não manter uma consistência obstinada
na tradução deste termo, oscilei entre seguir o caminho de Pellegrin (que usa sempre “conviction” e, para
o verbo pisto-oo, “emporter la conviction”) e o de Bury (que usa vários termos, desde “probability” até
“belief”). Annas e Barnes oferecem, ainda, “persuasion”.

4

por ser mais convincente. A “suspensão”, ela é a estagnação do pensamento23 que se
deve ao fato de que não rejeitamos nem afirmamos coisa alguma. E quanto à
“tranquilidade”, ela é a ausência contínua de perturbações, a quietude da alma. Como a
tranquilidade é trazida pela suspensão, trataremos dela no capítulo sobre o fim do
ceticismo24.

CAPÍTULO V
DO CÉTICO
[11] A definição da conduta cética dá conta, implicitamente, da expressão
“filósofo pirrônico”: ele é o homem que participa desta capacidade.

CAPÍTULO VI
DOS PRINCÍPIOS DO CETICISMO
[12] Dizemos que o princípio causal do ceticismo é a esperança de atingir a
tranquilidade. De fato, os homens de talento, perturbados pela irregularidade das coisas
e em dificuldades25 a respeito de a quais delas dar seu assentimento, puseram-se a fazer
investigações sobre o que é verdadeiro e o que é falso com relação a elas, pensando que
obteriam a tranquilidade através da distinção entre o verdadeiro e o falso.
O princípio constitutivo cético por excelência é que a todo argumento se opõe
um argumento igual. Pois parece-nos que é como consequência disso que não
dogmatizamos.

CAPÍTULO VII
O CÉTICO DOGMATIZA26?
[13] Quando dizemos que o cético não dogmatiza, não utilizamos o termo
“dogma”, como comumente se faz, no sentido de dizer que um dogma é o fato de aceitar
uma coisa determinada (pois o cético dá seu assentimento27 às afecções que lhe são
impostas através de uma representação28, de maneira que não diria, por exemplo, na
medida que está com calor, ou com frio, que não está com calor, ou com frio), mas no
sentido de acordo com o qual se diz que um dogma é o assentimento a uma coisa
determinada entre as coisas não-evidentes29 que estão sendo investigadas

23
stasis dianoias
24
Livro I, capítulo XII.
25
aporeoo
26
Annas e Barnes: “Do sceptics hold belief?”, “os céticos têm crenças?”.
27
O verbo para “dar assentimento” é sygkatatithemi.
28
phantasia, que Bury traduz quase sempre por “sense impression” e Pellegrin por “impression”. Este
último (p.547) manifesta ainda que phantasia não designa apenas impressões sensíveis, mas também
aquelas que têm lugar na imaginação, em alucinações, etc.
29
O não-evidente é o adeeloon, que Bury traduz por “nonevident” e, Pellegrin, por “obscure”, termo que,
arrisco-me a dizer, não capta a especificidade do que precisa ser indicado, que é o fato de que certas
coisas simplesmente não são óbvias e, diante destas, o cético se vê levado à suspensão.

5

cientificamente30. Pois o pirrônico, com efeito, não dá seu assentimento a nada que seja
não-evidente.
[14] E ele não dogmatiza nem mesmo quando, a respeito das coisas não-
evidentes, o cético enuncia expressões tais como “isto não mais do que aquilo’, ou “eu
nada determino”, ou qualquer uma das outras expressões das quais falaremos adiante31.
Pois aquele que dogmatiza põe como existente32 a coisa a propósito da qual dogmatiza,
enquanto o cético não põe tais expressões como sendo absolutamente existentes. Pois
ele supõe que, assim como a expressão “tudo é falso” anuncia sua própria falsidade
tanto quanto a de todo o resto, como ocorre, também, com “nada é verdadeiro”, também
a expressão “isto não mais do que aquilo” diz que ela mesma, juntamente com todas as
outras coisas, não é mais isto do que aquilo33. E dizemos o mesmo das outras expressões
céticas. [15] Ora, se aquele que dogmatiza põe como existente aquilo sobre o que ele
dogmatiza, e se o cético enuncia suas expressões de maneira que suas limitações recaem
sobre si mesmas, então não se pode dizer que o cético dogmatiza ao enunciar suas
expressões. Mas o essencial é que, ao enunciar suas expressões, o cético diz aquilo que
lhe aparece, e faz um relato de sua afecção sem sustentar opiniões, sem afirmar nada a
respeito das substâncias externas34.

CAPÍTULO VIII
O CÉTICO PERTENCE A UMA ESCOLA?
[16] Seguimos o mesmo caminho ao responder a questão sobre se o cético
pertence a uma escola35. Se dizemos que uma escola é uma inclinação a seguir uma
porção de dogmas que se seguem uns aos outros assim como seguem as coisas
aparentes, e dizemos que um dogma é o assentimento a algo que é não-evidente, então
diremos que o cético não pertence a uma escola. [17] Mas se declaramos que uma
escola é a conduta que segue um raciocínio determinado de acordo com aquilo que
aparece, raciocínio este que mostra como parece possível viver corretamente (e
tomamos corretamente não no sentido de “segundo a virtude”, mas em um sentido mais
amplo), e que tende a nos dar a possibilidade da suspensão, diremos, então, que o cético
pertence a uma escola. Pois nós seguimos um raciocínio determinado que nos mostra,
de acordo com a aparência, como viver segundo os costumes tradicionais, as leis, os
modos de vida e nossas afecções próprias.

CAPÍTULO IX
O CÉTICO TEORIZA SOBRE A NATUREZA?


30
Os termos envolvidos são o verbo dzeeteoo e o substantivo episteemee.
31
Livro I, capítulos 18 a 28.
32
Estão envolvidos o verbo titheemi (colocar, pôr, depor) e o particípio do verbo hyparkoo, hyparkoon
(aquilo que se encontra, que se dá, que existe – Bailly).
33
Especialmente que não é mais certa do que errada.
34
ecsoothen hypokeimenoon
35
airesis, que Bury traduz por “doctrinal rule”, e que Bailly aponta como significando literalmente “uma
preferência por uma doutrina”, e por extensão, a uma escola filosófica, literária, médica ou a um secto
religioso.

6

[18] Dizemos algo similar ao responder a questão sobre se o cético deve
teorizar sobre a natureza: não as estudamos de maneira a poder fazer afirmações
convictas a respeito dos pontos dogmaticamente tratados por elas. Mas, com o objetivo
de colocar diante de todo argumento36 um argumento igual, e tendo em vista a
tranquilidade, estudamos as teorias físicas. É também desta maneira que lidamos com a
parte lógica e a parte ética daquilo que se chama filosofia.

CAPÍTULO X
O CÉTICO REJEITA AQUILO QUE APARECE?
[19] Parece-me que aqueles que dizem que os céticos rejeitam o que é aparente
não prestam atenção a o que dizemos. Pois, como dissemos antes37, não recusamos
aquilo que nos conduz ao assentimento involuntariamente38, e em conformidade com
uma impressão passiva39, e isto que assim nos conduz é precisamente aquilo que
aparece. Mas, quando investigamos se aquilo que é real40 é tal como aparece, aceitamos
que ele aparece, e o que investigamos não é aquilo que aparece, mas aquilo que se diz
sobre o que aparece. Ora, isso é diferente de se fazer uma investigação sobre aquilo
mesmo que aparece. [20] Por exemplo, o mel nos parece ter uma ação adoçante: isto
admitimos, pois é algo que percebemos através dos sentidos. Mas se, além disso, o mel
é doce, de acordo com o que se segue do argumento precedente, continuamos buscando,
e isto não é o que é aparente, mas algo que é dito sobre o que é aparente. E se propomos
argumentos diretamente contra o que é aparente, não o fazemos com a intenção de
rejeitar aquilo que é aparente, mas sim de mostrar a precipitação dos dogmáticos. Pois
se o raciocínio é tão enganador a ponto de quase arrancar aquilo que é aparente de sob
nossos olhos, quanto não temos que desconfiar dele no que diz respeito às coisas não-
evidentes, para que não sejamos, por ele, levados à precipitação?

CAPÍTULO XI
DO CRITÉRIO DO CETICISMO
[21] Que aderimos àquilo que é aparente, isto está claro a partir do que dizemos
a respeito do critério da conduta cética. Falamos de critério em dois sentidos: o critério
que se adota para nos convencermos da existência41 ou não-existência de qualquer
coisa, do qual trataremos quando discutirmos sua refutação, e o critério que se adota
para a ação, e de acordo com o qual fazemos, em nossas vidas, certas coisas, e deixamos
de fazer outras. É deste último tipo de critério que trataremos agora.


36
logos, que Pellegrin traduz aqui por “raison” e, Bury, por “proposition”.
37
Livro I, 13 e 17.
38
Pellegrin: “sans que nous le voulions”; Annas e Barnes: “without our willing it”; Bury: “involuntarily”.
A ideia é que não precisamos fazer qualquer esforço específico para concordar com o que nos é oferecido
através das impressões.
39
phantasian patheetikeen, que Bury traduz, aqui, por “affective sense impression”. Tratam-se de
impressões pelas quais, poder-se-ia dizer, somos vitimados, que simplesmente se dão em nós, e que não
causamos de maneira alguma.
40
hypokeimenon
41
hyparcsis

7

[22] Dizemos que o critério da conduta cética é a coisa aparente, implicitamente
designando, assim, a impressão. Diz respeito a algo que, por ser um afeto42 ou afecção
involuntária43, não pode ser objeto de investigação. Por isso, ninguém estaria disposto a
discutir se as substâncias reais44 têm esta ou aquela aparência, o que se investiga é se
elas são de fato tal como aparecem.
[23] Portanto, ao nos prendermos àquilo que aparece, vivemos em observância
não-dogmática das regras da vida quotidiana45, já que não podemos permanecer
completamente inativos. Esta observação das regras da vida quotidiana parece ter quatro
aspectos: um consiste na direção da natureza, outro na necessidade das afecções, outro
na tradição das leis e dos costumes e outro na instrução das artes. [24] Pela direção da
natureza somos naturalmente dotados de sensação e de pensamento; pela necessidade
das afecções, a fome nos leva à comida e a sede à bebida; pela tradição das leis e dos
costumes, consideramos a piedade46 como boa e a impiedade como má; pela instrução
das artes47, não permanecemos inativos nas artes que adotamos. Mas dizemos tudo isso
de maneira não-dogmática.

CAPÍTULO XII
QUAL É O FIM DO CETICISMO?
[25] Trataremos, em seguida, do fim da conduta cética. Ora, um fim é aquilo em
vista do que tudo é feito ou pensado, mas que, em si mesmo, não se dá em vista de
nenhuma outra coisa. É, também, o objeto último de nossos desejos. Dizemos, ainda,
que o fim do ceticismo é a tranquilidade no que diz respeito às opiniões e a moderação
dos afetos no que diz respeito ao que nos é imposto48. [26] Pois, uma vez que se começa
a filosofar tendo em vista decidir-se entre as impressões e saber quais são verdadeiras e
quais são falsas, de maneira a alcançar a tranquilidade, chega-se ao desacordo entre
partes de igual força e, diante da incapacidade de decidir-se, tem lugar a suspensão49. E,
para aquele que foi ter à suspensão, a tranquilidade quanto às opiniões segue-se
fortuitamente.


42
peisis, um termo utilizado, segundo Bailly, especialmente no contexto da medicina (no qual designa
uma “affection”, algo de que se é o efeito e, também, de que se sofre ou padece) e da filosofia (na qual
designa uma “affection de I’ame”, uma afecção da alma. Bury traduz assim o trecho onde este termo está
implicado: “this lies in feeling and involuntary affection”.
43
páthei keiménee. O verbo keimai, segundo Bailly, possui, entre outras, as seguintes significações: estar
estendido e imóvel, ser abandonado, estar inativo ou desocupado, estar infeliz, ser abatido por depressão,
estar situado, encontrar-se (quando referindo-se a depósitos de líquidos), encontrar-se em tal ou tal estado.
44
hypokeimonon, que Bury traduz, aqui e em algumas outras situações, também por “underlying object”,
o objeto subjacente (às impressões, quiçá).
45
Diz Pellegrin: “nous vivons em observant les régles de l avie quotidienne sans soutenir d’opinions”, ou
seja, “vivemos de acordo com as regras da vida quotidiana sem sustentar opiniões”.
46
eusebees, a piedade religiosa. Vale lembrar, incidentalmente, que alguns diziam que Pirro era sacerdote
de Hades.
47
technee, que tem o sentido de “ofício”.
48
Diz Bury, “o inevitável”.
49
Nas traduções para a língua inglesa e francesa que consultei, se traduz epochee por suspensão de algo,
seja do assentimento, seja do juízo, e não há a preocupação em ressaltar o aspecto passivo envolvido
nessa operação. A suspensão, parece, é simplesmente um estado de indecisão: portanto, a rigor, não é algo
que se realiza. Daí minha opção por fazer referência à suspensão como algo que “tem lugar”, que
simplesmente ocorre.

8

[27] De fato, aquele que afirma dogmaticamente que tal coisa é naturalmente
boa ou má está exposto à uma intranquilidade ininterrupta. Quando lhe faltam as coisas
que ele considera boas, ele estima que está perseguido pelos males naturais e, portanto,
põe-se a perseguir aquilo que pensa serem os bens. Contudo, tão logo os obtém, passa a
sofrer de inquietações ainda maiores, pois é tomado de exaltação sem razão nem medida
e, temendo que sua sorte mude, faz tudo para não perder aquilo que lhe parece serem os
bens. [28] Mas aquele que nada determina sobre o que é naturalmente bem ou mal, nem
busca nem evita coisa alguma avidamente. Consequentemente, fica tranquilo.
De fato, ao cético sobrevém aquilo que se conta a respeito de Apeles50. Diz-se
que, uma vez, enquanto pintava um cavalo, e tentava imitar a espuma do cavalo, diante
de seu contínuo insucesso, atirou sobre a pintura a esponja que utilizava para limpar as
tintas de seu pincel. Ora, ao atingir a pintura, a esponja provocou, nela, a imitação da
espuma do cavalo. [29] Da mesma maneira, os céticos esperavam alcançar a
tranquilidade decidindo-se a respeito da irregularidade daquilo que aparece e que são
pensadas e, sendo incapazes de fazê-lo, foram ter à suspensão. Mas quando enquanto
estavam em suspensão, a tranquilidade seguiu-se fortuitamente, como uma sombra
segue um corpo.
Não pensamos, contudo, que o cético é completamente isento de perturbações,
mas dizemos que ele é perturbado por aquilo que se lhe é imposto, visto que sente frio,
sede e diversas coisas deste tipo. [30] Mas, mesmo nestes casos, as pessoas comuns são
afligidas duplamente: pelas afecções mesmas e, também, pela crença em que tais
afecções sejam más por natureza, o que não contribui pouco para seu sofrimento. Já os
céticos, por recusarem-se a adicionar, a uma circunstância, uma opinião de que ela é má
por natureza, atravessam51-na de forma mais comedida. É por isso que dizemos que o
fim do ceticismo é a tranquilidade com respeito às opiniões e a moderação das afecções
com respeito às coisas que nos são impostas.
Certos céticos eminentes mencionam, ainda, a suspensão nas investigações.

CAPÍTULO XIII
52
DOS MODOS GERAIS QUE LEVAM À SUSPENSÃO
[31] Tendo dito que a tranquilidade se segue à suspensão do juízo, nossa
próxima tarefa será explicar como chegamos a esta suspensão. Pode-se dizer, de forma
geral, que ela é o resultado de se colocar coisas em oposição. Podemos opor ou coisas
que aparecem a coisas que aparecem ou coisas pensadas a coisas pensadas, ou estas
àquelas. [32] Por exemplo, opomos o que aparece ao que aparece quando dizemos: “A
mesma torre parece redonda de longe, mas quadrada de perto”; e coisas pensadas a
coisas pensadas, quando, em resposta àquele que afirma a existência da providência a
partir da ordem dos corpos celestes, opomos o fato de que, muitas vezes, aos bons
sucede o mal e aos maus sucede o bem, e tiramos, daí, a inferência de que não há
providência. [33] Também opomos pensamentos a aparências, como quando


50
Pintor da corte de Alexandre o Grande (cerca de 350-300 a. C.) (Bury).
51
apalasoo
52
No singular, tropos

9

Anaxagoras53 argumentou assim contra a noção de que a neve é branca: “A neve é água
congelada, e a água é preta; portanto, a neve também é preta”. De outro ponto de vista,
opomos coisas presentes54, às vezes, a coisas presentes, como no exemplo precedente e,
às vezes, a coisas passadas ou futuras, como, por exemplo, quando alguém nos propõe
uma teoria que somos incapazes de refutar, [34] e replicamos: “assim como, antes do
nascimento do fundador da escola à qual você pertence, a teoria que ela mantém ainda
não estava aparente como uma teoria consistente, muito embora já existisse, também é
possível que a teoria oposta àquela que você propõe agora já exista, embora não seja
aparente para nós, de modo que não deveríamos, por hora, assentir a esta teoria que, no
momento, parece ser válida”.
[35] Mas, para que possamos ter um entendimento mais exato destas antíteses,
descreverei os modos através dos quais se realiza a suspensão, mas sem fazer qualquer
declaração afirmativa a respeito seja de seu número ou de sua validade. Pois é possível
que eles não sejam consistentes, ou que haja mais deles do que enumerarei aqui.

CAPÍTULO XIV
DOS DEZ MODOS
[36] A tradição usual entre os céticos mais antigos é a de que os “modos” através
dos quais supõe-se que a “suspensão” do juízo seja realizada são dez em número, e,
também, que recebem as designações sinônimas de “argumentos” ou “tipos”55. São eles:
o primeiro, baseado na variedade dos animais; o segundo, nas diferenças entre os seres
humanos; o terceiro, nas diferentes estruturas dos órgãos dos sentidos; o quarto, nas
circunstâncias exteriores; o quinto, em posições, distâncias e lugares; o sexto, em
misturas; [37] o sétimo, nas quantidades e formações das substâncias; o oitavo, no que é
relativo; o nono, na frequência ou raridade de ocorrência; o décimo, nos modos de vida,
costumes, leis, nas crenças em lendas e convicções dogmáticas. [38] Esta ordem,
entretanto, adotamo-la sem preconceito.
Por sobre estes modos, há três outros: um que diz respeito àquele que julga,
outro baseado naquilo que é julgado56 e outro que deriva dos dois. Sob o modo que diz
respeito a quem julga, ficam os quatro primeiros modos, pois quem julga pode ser ou
um animal, ou um ser humano, ou um sentido, e todos estes existem em circunstâncias
determinadas; sob aquele que diz respeito ao que é julgado, ficam o sétimo e o décimo;
e, sob aquele que é composto dos dois, estão subsumidos o quinto, o sexto, o oitavo e o
nono. [39] Estes três modos, por sua vez, relacionam-se com o modo da relatividade, e
isso de tal maneira que a relatividade é o gênero mais alto, do qual os três supracitados
são espécies às quais, então, estão subordinados os dez. Oferecemos este relato como
sendo o provável no que diz respeito a seu número. Quanto à sua força argumentativa, o
que dizemos é o seguinte:


53
Cerca de 500-428 a.C. Mantinha que todos os objetos naturais são compostos de partículas minúsculas
que contém uma mistura de todas as qualidades, e que a mente ou a inteligência (nous) atua sobre massas
destas partículas para criar objetos (Bury).
54
paronta, do verbo pareimi
55
logous e typous
56
Bury fala de “um sujeito que julga” e “um objeto julgado”.

10

[Primeiro Modo]
[40] O primeiro argumento (ou tropo), como dissemos, é aquele que mostra que,
devido às diferenças entre os animais, as mesmas impressões não são produzidas pelas
mesmas coisas. Isto, inferimos tanto das diferenças quanto à geração57 dos animais
quanto da variação de composição de seus corpos.
[41] No que diz respeito à geração, alguns animais são produzidos sem união
mas, outros, através da cópula. Daqueles que são produzidos sem cópula, alguns vêm do
fogo, como os animálculos que aparecem nas fornalhas; outros da água pútrida, como os
mosquitos; outros do pântano, como os sapos; outros da lama, como os vermes; outros
dos jumentos, como os besouros; outros dos vegetais, como as lagartas; outros das
frutas, como os insetos que põe ovos nos figos selvagens; outros de animais em
putrefação, como as abelhas que vêm dos touros, e as vespas que vêm dos cavalos.
[42] Dos animais gerados através da cópula, alguns – de fato, a maioria – vêm de
pais homogêneos, outros de pais heterogêneos, como as mulas. Novamente, dos animais
em geral, alguns nascem vivos, como os homens; outros nascem sob a forma de ovos,
como os pássaros; outros, ainda, sob a forma de massas de carne, como os ursos. [43] É
natural, então, que estes modos dissimilares e variados de nascimento possam produzir
muita contrariedade no que diz respeito a serem afetados, e que esta seja uma fonte de
seu caráter divergente, discordante e conflituoso.
[44] Além disso, as diferenças encontradas nas partes mais importantes do
corpo, e especialmente naquelas cuja função natural é decidir ou perceber, são capazes
de produzir uma grande quantidade de divergência nas impressões, devido à variedade
entre os animais. Assim, pessoas que sofrem de icterícia dizem, das coisas que nos
parecem ser brancas, que são amarelas, enquanto que aquelas cujos olhos estão
inflamados dizem-nas vermelho-sangue. Uma vez que, então, alguns animais têm olhos
amarelos, outros, cor de sangue, outros, brancos e outros, de outras cores, suponho que
é razoável58 que tenham diferentes percepções de cores. [45] Além disso, se nos
curvarmos sobre um livro depois de ter olhado por muito tempo e fixamente para o sol,
teremos a impressão de que as letras são de cor dourada e que estão movendo-se em
círculos. Uma vez, então, que alguns animais possuem um brilho natural em seus olhos,
e emitem deles um fluxo de luz claro e móvel, de modo que podem ver até mesmo à
noite, parecemos obrigados a supor que aquilo que é externo59 nos afeta os sentidos da
mesma maneira que a eles. [46] Os ilusionistas, também, por sujar os pavios das
lanternas com a ferrugem do cobre ou com a tintura da lula, fazem com que os
espectadores pareçam ser ora cor de cobre, ora pretos – e isso unicamente salpicando
um pouco de matéria extra. Certamente, então, temos ainda mais razão em supor que,
quando diferentes líquidos são misturados na visão dos animais, suas impressões dos
objetos tornam-se diferentes. [47] Além disso, quando pressionamos o olho, as formas,
figuras e tamanhos dos objetos parecem ser oblongas e estreitas. Assim, é razoável que
todos os animais que possuem a pupila do olho oblíqua ou alongada, tais como cabras,
gatos e animais similares, tenham impressões diferentes das impressões dos animais que


57
genesis. Bury oferece: “quanto às suas origens”.
58
O verbo grego é eikoo, e o sentido é semelhante ao do nosso verbo “parecer” quando dizemos: “parece
que vai chover”. Bury usa diferentes termos para traduzir os termos relacionados com este verbo:
“reasonable” e “probable”, entre eles. Pellegrin opta quase sempre por “vairsemblable”.
59
ektos

11

possuem pupilas redondas. [48] Os espelhos, também, devido às diferenças em sua
construção, às vezes mostram as coisas externas60 muito reduzidas – quando o espelho é
côncavo – e, às vezes, alongadas e estreitas – quando o espelho é convexo. Outros,
ainda, mostram, na parte de baixo, a cabeça daquele que é refletido, e, na parte de cima,
os pés. [49] E como, então, alguns órgãos da visão chegam a projetar-se para além do
rosto devido à sua convexidade, enquanto outros são mais côncavos, e outros, por sua
vez, têm forma plana, também é razoável, por isso, que suas impressões sejam
diferentes, e que os cães, peixes, leões, homens e gafanhotos não vejam as mesmas
coisas nem como tendo tamanho igual nem como sendo de forma similar, e que a visão,
que recebe a coisa aparente, que produz uma impressão própria para cada coisa.
[50] Este mesmo raciocínio vale igualmente para os outros sentidos. Assim, com
relação ao tato, como é possível manter-se que criaturas cobertas de conchas, pele,
espinhos, escamas, são todas afetadas de maneira similar? E, no que diz respeito ao
sentido da audição, como poderíamos dizer que as percepções são semelhantes em
animais com um canal auditivo muito estreito e em ouros onde o mesmo é muito largo,
ou em animais com ouvidos peludos e naqueles que têm orelhas lisas? Pois, no que diz
respeito a este sentido, até nó mesmos verificamos que nossa audição é afetada de uma
determinada maneira quando nossas orelhas estão tampadas e de uma outra maneira
quando as usamos simplesmente como são. [51] O olfato também pode diferir devido à
diversidade dos animais. Pois, se nós somos afetados de uma maneira quando estamos
resfriados e nosso catarro interno é excessivo, e de outra maneira quando vários lugares
de nossa cabeça estão cheios com excesso de sangue – quando, então, sentimos aversão
a cheiros que parecem agradáveis a todos, considerando-os nocivos – é razoável que as
coisas que os animais sentem pelo olfato pareçam diferentes a cada um deles, uma vez
que alguns são flácidos por natureza, e ricos em catarro, outros ricos em sangue, outros
marcados por um excesso predominante de bile amarela ou preta. [52] E assim também
é com os objetos do paladar; pois alguns animais têm línguas ásperas e secas, enquanto
outros têm línguas extremamente úmidas. E até nós mesmos, quando estamos com a
língua muito seca, em casos de febre, temos a impressão de que a comida que nos é
oferecida está terrosa e mal temperada, ou amarga – uma afecção que se deve à variação
nos sucos predominantes que, conforme se diz, temos dentro de nós. E uma vez,
portanto, que os animais também têm órgãos do paladar que são diferentes e que têm
diferentes líquidos em excesso, eles receberão, no que diz respeito ao seu paladar,
diferentes impressões das substâncias. [53] Pois, assim como a mesma comida, quando
digerida, torna-se em um lugar, uma veia, em outro, uma artéria, em outro, um osso, em
outro, um tendão, ou algum outro pedaço do corpo, exibindo uma potência diferente de
acordo com as diferenças entre as partes que a receberem; de maneira idêntica, a mesma
água não-misturada, quando absorvida por uma árvore, e dividida em seu interior, torna-
se, em um lugar, casca em outro, galho, em outro, flor, e também, finalmente, figo e
marmelo, e cada uma das outras frutas [54]; de maneira idêntica, o fôlego de um
músico, sendo em e idêntico, quando soprado dentro de uma flauta, torna-se, aqui, uma
nota aguda e, lá, uma nota grave, e a mesma pressão da mão na lira produz, aqui, uma
nota grave e, ali, uma aguda; e assim, também, é provável que as substâncias externas
pareçam diferentes devido às diferenças na estrutura dos animais que experimentam as
impressões dos sentidos.


60
ektos

12

[55] Mas pode-se apreender isto mais claramente a partir das preferências e
aversões dos animais. O óleo doce parece muito agradável aos homens, mas intolerável
aos besouros e abelhas; e o óleo de oliva é benéfico ao homem, mas, quando derramado
sobre vespas e abelhas, destrói-nas; e a água do mar é uma poção desagradável e
venenosa para os homens, mas os peixes bebem-na e acham-na agradável. [56] Assim,
também, os porcos preferem chafurdar na lama mais fedorenta do que na água limpa e
transparente. E enquanto alguns animais comem grama, outros comem arbustos, outros
alimentam-se nas florestas, outros vivem de sementes ou carne ou leite; além disso,
alguns preferem sua comida levemente decomposta, outros gostam dela fresca e, alguns
preferem-na crua, outros preferem-na cozida. Assim, de maneira geral, aquilo que é
agradável a alguns é, para outros, desagradável, repugnante e mortal. [57] De fato, as
codornas são engordadas com cicuta, e os porcos com meimendro; e os porcos também
gostam de comer salamandras, da mesma maneira como os cervos gostam de criaturas
venenosas, e engolem mosquitos. E as formigas e cupins, quando engolidas pelos
homens, causam terríveis dores cólicas, enquanto que o urso, quando adoece, cura a si
mesmo capturando-os com a língua. [58] O mero toque de um bastão de carvalho
paralisa a víbora e, o da folha de plátano, o morcego. O elefante foge do carneiro, o leão
do galo, monstros marinhos, do estalido de vagens rebentando e, o tigre, do som do
tambor. Seria possível, de fato, citar muitos outros exemplo, mas – para não parecer
indevidamente prolixo –, se as mesmas coisas são desagradáveis para alguns, mas
agradáveis para outros, e o prazer e o desprazer dependem das impressões, então os
animais recebem diferentes impressões das substâncias.
[59] Mas se as mesmas coisas parecem ser diferentes devido à diversidade dos
animais, seremos, de fato, capazes de declarar nossas próprias impressões a respeito da
substância, mas, no que diz respeito à sua natureza, devemos suspender o juízo. Pois
não podemos decidir-nos entre nossas próprias impressões e aquelas dos outros animais,
uma vez que estamos nós mesmas envolvidos na disputa e, portanto, estamos mais
necessitados de um juiz do que capacitados para julgar. [60] Ademais, somos incapazes,
seja com ou sem demonstração61, de preferir nossas próprias impressões àquelas dos
animais irracionais. Pois, além da impossibilidade de que a demonstração não exista,
como veremos62, a própria assim-chamada demonstração será ou aparente ou não-
aparente. Se for não-aparente, não a aceitaremos com convicção; enquanto que, se nos
for aparente, na medida em que o que está em questão é aquilo que é aparente para os
animais, e tratar-se-á de uma demonstração aparente para nós que somos animais, a
demonstração será ela mesma objeto da investigação a respeito dela ser verdadeira ou
não enquanto aparente. [61] É, de fato, absurdo tentar estabelecer aquilo que está em
questão por meio daquilo que está em questão, uma vez que, neste caso, a mesma coisa
será objeto de convicção e de falta de convicção: de convicção, na medida em que ela
pretende provar algo, e, da falta de convicção, uma vez que a coisa requer
demonstração, e isso é impossível. Em consequência, jamais disporemos de uma
demonstração que nos permita dar às nossas próprias impressões dos sentidos a
preferência sobre aquelas dos assim-chamados animais irracionais. Se, então, devido à
diversidade dos animais, suas impressões sensíveis diferem, e é impossível julgar entre


61
apodeicsis, que Bury traduz sempre por “proof”. Pellegrin usa sempre “demonstration” e justifica-se
por ser o termo apodeicsis relacionado com a esfera da argumentação.
62
Alusão ao livro II, 134ss (Pellegrin).

13

elas, somos necessariamente levados à suspensão no que diz respeito às substâncias
externas.
[62] também, de forma suplementar, fazemos comparações entre os homens e os
assim-chamados animais irracionais, no que diz respeito às suas impressões sensíveis.
Pois, depois de nossa eficiente argumentação, consideramos adequado fazer troça dos
dogmáticos, arrogantes presunçosos que são. Via de regra, nossa escola compara os
animais irracionais com a espécie humana; [63] mas, uma vez que os dogmáticos
capciosamente afirmam que a comparação é desigual, nós apresentaremos um
argumento suplementar – uma ocasião a mais de escarnecer os dogmáticos –, o qual
será baseado, então, em um animal apenas: se vos apraz, o cachorro, por exemplo, o
qual, segundo se mantém, é o mais desprezível dos animais. Pois, mesmo neste caso,
verificaremos que os animais que estamos discutindo não são de maneira alguma
inferiores a nós mesmo no que diz respeito à credibilidade que pode ser atribuída ao que
aparece.
[64] É concedido pelos dogmáticos que este animal, o cachorro, nos supera em
sensação: no que diz respeito ao olfato, ele apreende mais do que somos capazes:
através deste sentido, ele segue o rastro de animais que não pode ver; e, com seus olhos,
ele os pode ver com mais rapidez do que nós, e sua percepção auditiva também é muito
aguda. [65] Vejamos, então, sua faculdade do raciocínio. Da razão, uma parte é interna,
implantada na alma, e a outra é verbal e externa63. Consideremos, primeiramente, a
razão interna. De acordo com os dogmáticos que são nossos principais oponentes no
momento, os Estóicos, a razão interna ocupa-se, supostamente, com o seguinte: a
escolha de coisas congeniais e a evitação do que é prejudicial; o conhecimento das artes
que contribuem para tanto; a apreensão das virtudes que pertencem à natureza própria
de cada um e daquelas que dizem respeito às afecções. [66] Pois bem, o cachorro – o
animal no qual, através do exemplo, decidimos basear nosso argumento – exerce a
escolha do congenial e a evitação do prejudicial, pois que caça em busca de alimento e
esquiva-se de um chicote erguido. Além do mais, possui uma arte que o abastece do
congenial, a saber, a arte da caça. [67] E tampouco é destituído de virtude pois,
certamente, se a justiça consiste em dar a cada um o que é devido, ao cachorro, que
acolhe seus amigos e benfeitores, mas expulsa estranhos e malfeitores, não pode faltar a
justiça. [68] Mas se ele possui esta justiça, então, uma vez que as virtudes são
interdependentes64, ele possui também todas as outras virtudes; e estas, dizem os
filósofos, a maioria dos homens não possuem. Que o cachorro é corajoso, vê-se bem
pela maneira como ele repele ataques. Que é, também, inteligente, o próprio Homero o
testemunhou65 ao cantar sobre como Odisseu passou desapercebido por todas as pessoas
de sua própria casa e foi reconhecido apenas pelo cachorro, Argos, que não foi
enganado nem mesmo pela alteração física do herói, nem perdeu sua impressão
cognitiva66 original, a qual, de fato, ele evidentemente reteve melhor que os homens.
[69] E, de acordo com Crisipo67, que demonstra uma hostilidade especial aos animais
irracionais, o cachorro até mesmo compartilha da tão famosa “dialética”. Este filósofo,

63
Em grego, temos um termo único, propherikos, “produzido do lado de fora pela palavra, verbal”
(Bailly).
64
Trata-se de uma doutrina socrática mantida pelos estóicos (Pellegrin).
65
Odisseia, XVII, 300 (Bury).
66
phantasia kataleeptikee
67
Cerca de 280 a 206 a. C. Filósofo Estóico grego que era considerado, juntamente com Zenão, o
fundador da academia Stoa em Atenas (Bury).

14

de fato, declara que o cachorro faz uso do quinto silogismo, complexo e
indemonstrável68, quando, ao chegar em um ponto em que três caminhos se encontram,
depois de cheirar as duas estradas pelas quais sua caça não passou, investe
imediatamente pela terceira, sem sequer parar para cheirá-la também. Pois, como diz o
velho autor, o cachorro implicitamente raciocina assim: “A criatura caça foi ou por este
caminho, ou por aquele, ou por aquele outro: mas não foi nem por este nem por aquele:
portanto, foi por aquele outro”. [70] Além disso, o cachorro é capaz de compreender e
satisfazer seus próprios afetos; pois, quando um espinho fica preso ao seu pé, ele se
apressa em retirá-lo, seja esfregando o pé no chão, seja usando os dentes. E, se está
ferido em algum lugar, dado que feridas sujas são difíceis de curar, enquanto que feridas
limpas curam-se facilmente, o cachorro gentilmente lambe a secreção acumulada. [71]
E mais, o cachorro admiravelmente observa a prescrição de Hipócrates69: uma vez que o
remédio para um pé machucado é a imobilidade, o cachorro, sempre que machuca o pé,
mantém-no erguido e tão livre quanto possível de todo esforço. E, quando se sente
agoniado por humores insalubres, ele come grama, com a ajuda da qual vomita o que é
insalubre, e fica bom novamente. [72] Se, então, demonstrou-se que o animal no qual,
sob forma de exemplo, baseamos nosso argumento, não apenas escolhe o saudável, e é
capaz de compreender e satisfazer suas afecções, e não é destituído de virtudes, então –
sendo estas as coisas em que consiste a perfeição das razões internas – o cachorro é, até
agora, perfeito. E isso, eu suponho, é o porquê de certos professores de filosofia terem
adornado a si mesmos com o título deste animal70.
[73] No que diz respeito à razão expressiva, verbal, qualquer investigação é
desnecessária no momento; pois alguns dogmáticos até rejeitavam-na como um
obstáculo à aquisição da virtude e, por esta razão, costumavam praticar o silêncio
durante o período de instrução. Ademais, supondo que um homem seja mudo, ninguém
o chamará, por isso, de irracional. E se deixamos isto de lado, vemos certamente que
alguns animais – os quais, são, afinal, o objeto de nossa argumentação – por exemplo,
os gaios, por exemplo, e certos outros. [74] Mas se deixamos de lado também este
ponto, mesmo que não compreendamos as falas dos chamados animais irracionais,
ainda assim não seria improvável que eles conversassem; pois, de fato, quando ouvimos
a fala de bárbaros, não a podemos entender, e a cremos indecifrável. [75] Além do mais,
entendemos71 que os cachorros proferem um som quando estão expulsando alguém,
outro som quando estão uivando, outro ainda quando alguém lhes bate, e um outro bem
diferente quando estão abanando a cauda. E assim, em geral, no caso de todos os
animais, bem como no do cachorro, quem quer que examine a questão cuidadosamente,
descobrirá uma grande variedade de sons de acordo com as diferentes circunstâncias, de
modo que, consequentemente, pode-se dizer que, provavelmente, o assim-chamados
animais irracionais participam da razão externa.
[76] Mas se eles não ficam atrás do ser humano na acuidade de seus sentidos72,
nem no que diz respeito à razão interna, e tampouco (para ir ainda mais longe) à razão
expressiva, então eles não merecem menos crédito do que nós no que diz respeito às

68
Os Estóicos tinham cinco silogismo que denominavam anapodeiticos, ou “indemonstráveis”, uma vez
que não exigiam prova, mas serviam para provar outros. O silogismo “complexo” tinha a forma: “Ou A
ou B ou C existem; mas nem A nem B existem; portanto, C existe” (Bury).
69
Famoso médico de Cos (por volta de 460-400 a. C.).
70
Tratam-se dos cínicos, kynikos, cujo nome deriva de kuoon, cão.
71
O verbo é akouoo, que significa tanto entender quanto ouvir.
72
aistheeseoon, que Bury traduz por “perceptions”.

15

suas impressões. [77] Além disso, provavelmente, poderíamos chegar a esta conclusão
baseando nosso argumento em cada tipo determinado de animal racional. Assim, por
exemplo, quem negaria que os pássaros distingue-se por sua rapidez de discernimento73,
ou que empregam a razão expressiva? Pois eles entendem não apenas os eventos
presentes, mas também o futuro, que manifestam previamente àqueles que são capazes
de compreendê-los, seja através de seus gritos proféticos, seja por outros meios.
[78] Realizei esta comparação (como havia previamente indicado74) de forma
suplementar, já tendo provado suficientemente, conforme me parece, que não podemos
preferir nossas próprias impressões àquelas dos animais irracionais. Se, entretanto, os
animais irracionais não são menos dignos de crédito do que nós no que diz respeito ao
valor das impressões, e tais impressões variam conforme a diversidade dos animais,
então, embora eu seja capaz de dizer como a natureza de cada uma das substâncias me
parece ser, serei levado, de acordo com o que foi dito, à suspensão no que concerne sua
natureza real.

[Segundo modo]
[79] Este, portanto, é o primeiro dos modos que induzem à suspensão. O
segundo modo é, como havíamos dito, aquele baseado nas diferenças entre os homens;
pois, mesmo se admitirmos, por hipótese, que os homens são mais dignos de crédito do
que os animais irracionais, verificaremos que mesmo nossas próprias diferenças, por si
mesmas, levam à suspensão. Pois diz-se que o ser humano é composto de duas coisas,
alma e corpo, e que, com base em cada uma delas, os homens se distinguem uns dos
outros. Assim, no que diz respeito ao corpo, diferimos no que diz respeito ao nosso
aspecto e no que diz respeito às nossas peculiaridades constitutivas75. [80] O corpo de
um indiano é diferente em forma daquele de um cita; e diz-se que o que causa a
variação é uma diferença nos humores predominantes. Devido a esta diferença nos
humores predominantes, as impressões tornam-se diferentes, elas mesmas, conforme
indicamos em nosso primeiro argumento76. Assim, no que diz respeito à escolha e
evitação dos objetos externos, os homens exibem grandes diferenças: os indianos
gostam de algumas coisas, outros povos, de outras, e o gostar de coisas diferentes é uma
indicação de que recebemos impressões variadas das substâncias.
[81] No que diz respeito às nossas peculiaridades constitutivas, nossas diferenças
são tais que alguns de nós digerem a carne de boi mais facilmente do que a dos peixes
que vivem entre as pedras, ou ficam com diarreia por causa do vinho fraco de Lesbos.
Uma velha parteira da Ática, dizem, engoliu, sem qualquer consequência danosa, trinta
dracmas de cicuta, e Lísis tomou quatro dracmas de suco de papoula sem se prejudicar.
[82] Demofon, empregado de Alexandre, costumava sentir calafrios quando estava ao
sol ou em um banho quente, mas sentia-se quente quando à sombra. Atenágoras, o
Argonauta, não era prejudicado pela picada de escorpiões e aranhas venenosas; e
aqueles que são chamados de psileanos77 não podem ser feridos pelas mordidas de


73
Ou “vivacidade de espírito” que é o equivalente da expressão que Pellegrin usa para agchinoia.
74
Livro I, 62.
75
idiosygkrisiais
76
Livro I, 52.
77
Uma tribo da África do Norte (Bury).

16

cobras ou áspides; [83] e tampouco são os tentiritas78 do Egito feridos pelo crocodilo.
Além disso, os etíopes que vivem perto do Lago Meréoe79, às margens do rio Ástapos,
comem impunemente escorpiões, cobras, e animais similares. Rufino de Chalcis,
quando bebia heléboro, nem vomitava nem sofria qualquer efeito do purgante, mas
engolia-o e digeria-o como qualquer outra bebida ordinária. [84] Crisermos, o médico
hierofíleo, estava sujeito a ter um ataque cardíaco sempre que ingeria pimenta;
Sotéricos, o cirurgião, era atacado de diarreia sempre que sentia o cheiro de sardinhas
fritas. Ândron, o Argonauta, era tão imune à sede que cruzou as secas terras da Líbia
sem precisar nada beber. Tibério César podia ver no escuro; e Aristóteles nos conta de
uma pessoa de Tasos que imaginava que a imagem de um homem continuamente
andava diante dele.
[85] Observando, portanto, que os homens variam tanto no que diz respeito a
seus corpos – para nos contentar com apenas alguns dos exemplos dentre os muitos
coletados pelos dogmáticos –, é razoável que eles difiram também uns dos outros no
que diz respeito à própria alma; pois o corpo é um tipo de expressão da alma, como é
provado pela ciência da fisionomia. Mas a maior prova das vastas infindáveis diferenças
quanto à inteligências dos homens é o desacordo entre as afirmações dos dogmáticos a
respeito de diversos assuntos, mas especialmente dos objetos que convém escolher ou
evitar. [86] Quanto a isso, os poetas, também, expressaram-se adequadamente. Assim,
diz Píndaro:

As coroas e troféus de seus corcéis com pés de tempestade


A alguns, dão alegria, enquanto, outros, encontram-na
Habitando em quartos suntuosos de ouro ornados;
Alguns até se deleitam com viagens
Sobre as vagas do oceano em um barco veloz.

E o poeta80 diz: “Uma coisa é agradável para um homem, outra coisa para outro”.
Também a tragédia é cheia de tais depoimentos; por exemplo:
Se o belo e o sábio fossem em tudo uma só coisa
Não haveria disputas contenciosas.

E novamente:
É estranho que a mesma coisa abominada por alguns
Possa dar, a outros, prazer.


78
Tentira era uma cidade no alto Egito (Bury).
79
Ao sul do Egito.
80
Homero, Odisseia, XIV, 228 (Bury).

17

[87] Visto, então, que escolher ou evitar depende do prazer e do desprazer, e que o
desprazer e o prazer dependem da sensação e das impressões sensíveis, sempre que
alguém escolhe precisamente aquelas coisas que são evitadas por outros, é lógico, para
nós, concluir que também é diferentemente afetado pelas mesmas coisas, uma vez que,
fosse de outra maneira, todos escolheriam ou evitariam as mesmas coisas de forma
semelhante. Mas se as mesmas coisas81 afetam os homens de maneira diferente devido
às diferenças entre os homens, então, também com base nisto, poderemos ser
razoavelmente levados à suspensão do juízo. Pois, ainda que sejamos, sem dúvida,
capazes de afirmar o que cada uma das substância parece ser, relativamente a cada
diferença, somos incapazes de explicar o que ela é na realidade. [88] pois temos que
acreditar ou em todos os homens ou em alguns. Mas se acreditarmos em todos,
estaremos esforçando-nos em fazer o impossível, e aceitando contradições; e se
acreditarmos apenas em alguns, então que nos seja dito a quem devemos seguir. Pois os
plantonistas dirão: “Platão”; os epicuristas: “Epicuro”; e assim por diante com todos os
demais; e, desta forma, com suas disputas não-decididas, eles nos levarão novamente
para um estado de suspensão. [89] Além disso, aquele que mantém que deveríamos
assentir à maioria está fazendo uma proposta pueril, uma vez que ninguém é capaz de
visitar a humanidade inteira e determinar o que agrada a maioria dela; pois,
possivelmente, há raças a respeito das quais nada sabemos, e entre as quais condições
que consideramos raras, são comuns, e condições que consideramos comuns, são raras.
É possível, por exemplo, que certos povos não sintam dor devido às picadas de aranhas,
ainda que alguns, em raras ocasiões, sintam tal dor; e assim por diante com o resto das
“idiossincrasias” mencionadas acima. Necessariamente, portanto, as diferenças entre os
homens proporcionam uma razão adicional para sermos levados à suspensão.
[90] Quando os dogmáticos, homens que praticam sempre a estima a si mesmos,
afirmam que, ao julgar as coisas, devem dar preferência a si próprios em lugar dos
outros, sabemos que sua alegação é absurda. Afinal, eles mesmos são uma das partes da
controvérsia, e se, ao julgar aparências, já dão preferência a si mesmos, então,
encarregando-se desta maneira do julgamento, estão tomando como provado um
questionamento que nem começou. [91] Não obstante, de maneira a que possamos
chegar a uma suspensão de juízo baseando nosso argumento em uma pessoa – tal como,
por exemplo, o “sábio” que existe em seus sonhos – adotamos o modo que vem em
terceiro lugar.

[Terceiro modo]
Este terceiro modo é, conforme dizemos, baseado nas diferenças dos sentidos.
Que os sentidos diferem uns dos outros é evidente. [92] assim, para o olho, as pinturas
parecem ter recessos e projeções, mas não para o tato. Também o mel, a alguns, parece
agradável à língua, porém desagradável aos olhos; de modo que é impossível dizer se
ele é absolutamente agradável ou desagradável. O mesmo se aplica ao óleo perfumado,
pois ele agrada o sentido do olfato mas desagrada o sentido do paladar. [93] Assim
também com a eufórbia: uma vez que ela é dolorosa para os olhos, mas não causa dor a
nenhuma outra parte do corpo, não podemos dizer se, em sua natureza real, ela é pura e
simplesmente dolorosa ou não-dolorosa para os corpos. A água da chuva, também, é
benéfica para os olhos, mas irrita a traqueia e os pulmões; como também o óleo de

81
Bury diz “objects”.

18

oliva, apesar de molificar a epiderme. A raia elétrica, quando aplicada às extremidades,
produz câimbras, mas pode ser aplicada ao resto do corpo sem causar danos. É por isso
que não somos capazes de dizer qual é a real natureza de cada uma destas coisas,
embora seja possível dizer o que cada coisa em cada momento parece ser.
[94] Uma lista maior de exemplos poderia ser dada mas, para evitar a
prolixidade, em vista do plano de nosso trabalho, diremos apenas o que se segue. Cada
uma das coisas que aparecem percebidas pelos sentidos parecem nos afetar de diversas
maneiras82: a maçã, por exemplo, parece lisa, fragrante, doce e amarela. Mas o fato de
que ela realmente possui apenas estas características não é evidente; e tampouco se ela
tem apenas um qualidade, parecendo variada apenas devido à constituição variada dos
órgãos sensoriais; ou, novamente, se ela tem mais qualidades do que as aparentes,
algumas das quais escapam à nossa percepção. [95] Que a mação tem apenas uma
qualidade poderia ser afirmado com base no que dissemos acima83 a respeito da comida
absorvida pelos corpos, e a água sugada pelas árvores, e o sopro dentro das flautas e
instrumentos similares; pois a maçã, da mesma forma, pode ser inteiramente de um
único caráter, aparecendo diferente devido a diferenças nos órgãos sensoriais nos quais
a percepção tem lugar. [96] E quanto à possibilidade de que a maçã tenha mais
qualidades do que aquelas que nos são aparentes, argumentamos da seguinte maneira:
imaginemos um homem que possui, de nascença, os sentidos do taro, paladar e olfato,
mas que não possa nem ouvir nem ver. Este homem, então, tomará por certo que nada
visual ou audível tem qualquer existência, mas apenas aqueles três tipos de qualidades
que ele é capaz de apreender. [97] Possivelmente, então, nós também, que temos apenas
nossos cinco sentidos, percebemos apenas aquelas qualidades da maçã que somos
capazes de apreender; e é possível que ela tenha outras qualidade que afetariam outros
órgãos dos sentidos, embora nós, que não somos dotados destes órgãos, falhemos em
apreender os objetos dos sentidos que vêm através deles.
[98] Pode-se, contudo, discordar disso, alegando-se que a natureza fez os
sentidos comensuráveis às coisas sentidas. “Que tipo de natureza?”, perguntamos,
considerando quantas controvérsias irresolvidas há entre os dogmáticos no que diz
respeito à realidade da natureza. Pois aquele que pretender decidir as questões relativas
à existência da natureza será desacreditado [pelos dogmáticos] se for uma pessoa
comum, enquanto que, se for um filósofo, será parte da controvérsia e, portanto, estará
sujeito ao julgamento, não podendo ser juiz [99]. Se, entretanto, é possível que apenas
aquelas qualidades que parecemos perceber subsistam na maçã, ou que um número
maior delas exista ou, então, que nem mesmo as qualidades que nos afetam subsistam,
então não será evidente para nós qual é realmente a natureza da maçã. E o mesmo
argumento aplica-se a todas as outras coisas sensíveis. Mas se os sentidos não
apreendem coisas externas84, tampouco pode o pensamento85 apreendê-las; portanto,
também por causa deste argumento, parece que seremos levados à suspensão no que diz
respeito ao julgamento sobre as substâncias externas.


82
Segui a tradução de Annas e Barnes. Bury e Pellegrin dizem, respectivamente, que cada uma das coisas
parece “um complexo” (“a complex”).
83
Livro I, 53.
84
ektos
85
Bury diz: “a mente” (“mind”).

19

[Quarto modo]
[100] Para alcançarmos a suspensão baseando nosso argumento em cada um dos
sentidos, individualmente, ou mesmo desconsiderando-os de todo, adotamos, ainda, o
quarto modo de suspensão. Este baseia-se, como dizemos, nas “circunstâncias” e, com
este termo, queremos indicar condições ou disposições. Este modo, dizemos, lida com
estados que são ou naturais ou não-naturais, tais como estar acordado ou estar
dormindo; com condicionamentos devido à idade, ao movimento ou ao repouso, ao
amor ou ao ódio, ao vazio ou ao preenchimento, à embriaguez ou à sobriedade; com
predisposições tais como confiança ou medo, sofrimento ou alegria. [101] Assim, sendo
o estado mental natural ou não-natural, as coisas não afetam nossos sentidos da mesma
maneira, como quando os homens, em delírio ou em estado de êxtase, acreditam que
ouvem as vozes de demônios, enquanto, conosco, isso não se dá. De forma similar, tais
homens dizem, frequentemente, que percebem um odor de resina ou de incenso, ou
algum odor deste tipo, e muitas outras coisas, embora nós não as consigamos perceber.
Além disso, a mesma água que parece estar muito quente quando derramada sobre
pontos inflamados, a nós parece morna. E a mesma vestimenta, para um homem com
olhos inflamados, parece amarela, mas não parece ser assim para mim. E o mesmo mel
parece ser doce para mim, mas amargo para homens com icterícia. [102] E se alguém
disser que é apenas uma mistura de certos humores que, nos homens que estão em um
estado não-natural, produz impressões impróprias das substâncias, temos que responder
que, uma vez que as pessoas saudáveis também possuem humores misturados, também
estes humores devem ser capazes e fazer com que as substâncias externas pareçam,
àqueles que dizemos estar em um estado não-natural, como são naturalmente, e
diferentes de como são para as pessoas saudáveis. [103] Pois atribuir aos humores dos
primeiros, e não aos dos últimos, o poder de alterar as substâncias, é questão de puro
capricho, já que, assim como os homens saudáveis estão em um estado que é natural
para os homens saudáveis e não-natural para os doentes, também os homens doentes
estão em um estado que é não-natural para os saudáveis mas natural para os doentes, de
maneira que somos obrigados a crer que também estes últimos, relativamente falando,
estão em um estado natural.
[104] Os estados de sono e vigília também dão origem a diferentes impressões,
pois não imaginamos, quando estamos acordados, o que imaginamos quando estamos
dormindo, e tampouco, quando dormindo, o que imaginamos quando acordados, de
sorte que a existência ou não-existência das impressões86 não é absoluta, mas relativa, e
relativa à nossa condição de estarmos dormindo ou estarmos acordados. É, portanto,
razoável que, nos sonhos, vejamos coisas que, para nosso estado desperto, são irreais,
embora não completamente irreais, uma vez que existem em nossos sonhos da mesma
maneira como as realidades da vigília existem, embora sejam inexistentes nos sonhos.
[105] A idade é uma outra causa de diferença. Pois o mesmo ar pode parecer frio
para os velhos, porém agradável para os que estão em sua mocidade; e a mesma cor
parece débil para homens mais velhos, mas vívida para homens jovens; e, da mesma
forma, o mesmo som parece, aos primeiros, indistinto, porém claramente audível para
os últimos. [106] Além disso, aqueles que diferem em idade são afetados
diferentemente no que diz respeito à escolha ou à evitação. Pois enquanto crianças –

86
Passagem confusa. Para Bury, trata-se da existência ou inexistência das impressões, para Pellegrin e
Annas e Barnes, dos objetos.

20

para citar um caso – são ávidas por bolas e aros, os homens maduros escolhem outras
coisas e, os mais velhos, ainda outras. E, daí, concluímos que as diferenças em idade
também causam impressões diferentes advindas das mesmas substâncias.
[107] As coisas também parecem diferentes por estarem em movimento ou em
repouso. Pois as mesmas coisas que, quando estamos parados, vemos como sendo
imóveis, parecem estar em movimento quando estamos navegando.
[108] Também parecem diferentes devido ao amor e ao ódio, pois alguns sentem
uma aversão extrema à carne de porco, enquanto outros gostam muitíssimo de comê-la.
Por isso, disse Menandro:

Olhai agora seu semblante, que mudança ali se deu


Depois de se ter assim tornado! Como uma fera.
Não cometer a injustiça nos torna belos.

E, também, muitos homens que possuem amantes feias acham-nas muito belas.
[109] As coisas também parecem diferentes devido à fome e à saciedade; pois a
mesma comida parece agradável aos famintos, porém desagradável aos fartos.
Também parecem diferentes devido à embriaguez e à sobriedade; pois as ações
que achamos ser vergonhosas quando estamos sóbrios não parecem ser vergonhosas
quando estamos ébrios.
[110] Também parecem diferentes devido às predisposições; pois o mesmo
vinho que parece azedo àqueles que previamente comeram tâmaras ou figos, parece
doce àqueles que há pouco consumiram nozes ou grão-de-bico; e o vestíbulo da casa de
banhos, que esquenta aqueles que entram, vindos de fora, esfria aqueles que vêm do
salão de banhos, se param muito tempo nele.
[111] Também parecem diferentes devido ao medo e à coragem; pois aquilo que
parece, ao covarde, ser pavoroso e temível, não se parece assim em nada ao corajoso.
Também parecem diferentes devido à tristeza e à alegria; pois as mesmas
ocupações são penosas para aqueles que estão tristes, porém aprazíveis para aqueles que
regozijam-se.
[112] Vendo que as disposições também são causa de desigualdade, e que os
homens são diferentes conforme suas diferentes disposições, é, sem dúvida, fácil dizer
que natureza cada substância parece possuir para cada homem, mas não podemos ir
adiante e dizer o que é a natureza real, uma vez que a irregularidade impede uma
decisão. Pois a pessoa que tenta decidir-se quanto a isso ou é de alguma das disposições
mencionadas acima, ou não é de disposição nenhuma. Mas declarar que ela não é de
disposição alguma – como, por exemplo, nem saudável nem doente, nem em
movimento nem em repouso, de nenhuma idade, e destituída de todas as demais
disposições também – é o cúmulo do absurdo. E se tal pessoa deve julgar as impressões
sensíveis enquanto está em alguma disposição, ela será mais uma parte no desacordo,
[113] e não será capaz de julgar de maneira imparcial as substâncias externas, uma vez
que será confundido pela disposição na qual está. Aquele que está em vigília, por

21

exemplo, não pode comparar as impressões dos que dormem com as dos que estão em
vigília, e tampouco, a pessoa saudável, aquelas dos doentes com aquelas dos saudáveis;
pois damos mais prontamente nosso assentimento a coisas que estão presentes, e que
nos afetam no presente, do que a coisas que não estão presentes.
[114] Também de ainda outra maneira, a irregularidade de tais impressões não
admite resolução. Pois aqueles que preferem uma impressão a outra, ou uma
“circunstância” a outra, o faz ou sem crítica e sem provas ou criticamente e com provas;
mas não pode fazê-lo nem sem estes meios (pois, neste caso, seria desacreditado) nem
através deles. Pois, se proferir um juízo a respeito das impressões, precisa certamente
julgá-las por um critério. [115] Este critério, então, deve ser declarado verdadeiro ou
falso. Se for falso, não proporcionará qualquer convicção, enquanto que, se declarar
verdadeiro, estará afirmando que o critério ou é verdadeiro com demonstração, ou o é
sem demonstração. Mas, se o for sem demonstração, não proporcionará convicção, e se
o for com demonstração, tal critério será certamente necessário também para que a
prova seja verdadeira. Dirá, então, que é verdadeira a demonstração adotada para tornar
convincente o critério depois de tê-la julgado ou sem julgá-la? [116] Se o fizer sem
julgar, não será convincente, mas se o fizer depois de julgar, evidentemente dirá que
julgou com um critério; e, para tal critério, pediremos uma demonstração, bem como
um critério para tal demonstração. Pois a demonstração sempre exige um critério para
confirmá-la, e o critério também requer uma prova para demonstrar sua verdade; e
tampouco pode uma demonstração ser confiável sem a existência prévia de um
verdadeiro critério, ou o critério ser verdadeiro sem a confirmação prévia da
demonstração. [117] Desta maneira, tanto o critério quanto a prova estão envolvidos no
processo circular de raciocínio – o dialelo – e, por isso, constata-se que ambos são
indignos de confiança; pois, uma vez que cada um deles depende do outro para ser
convincente, cada um é tão pouco capaz de proporcionar convicção quanto o outro.
Consequentemente, se não se pode preferir uma impressão a qualquer outra, nem sem
provas e sem critério, nem com eles, então as impressões que se revelam diferentes
segundo diferentes condições serão indecidíveis; de forma que, como resultado deste
modo, somos também levados a suspender o juízo no que diz respeito à natureza das
realidades externas.

[Quinto modo]
[118] O quinto modo (ou tropo) é baseado nas posições, distâncias e
localizações; pois, devido a cada um destes, os mesmos objetos parecem diferentes. Por
exemplo, o mesmo pórtico, quando visto de uma de suas extremidades, parece menor na
parte de cima, mas, quando visto de frente, parece simétrico em todos os lados; e o
mesmo barco parece, à distância, ser pequeno e estacionário mas, de perto, grande e
móvel; e a mesma torre, parece redonda: porém, de um ponto próximo, parece
quadrangular.
[119] Isto quanto aos efeitos que se devem às distâncias. Já quanto aos efeitos
devido às localizações, temos o seguinte: a luz de uma lanterna parece débil sob o sol,
mas brilhante no escuro; e o mesmo remo parece dobrado quando está dentro d’água,
porém reto quando fora dela; e o ovo, mole quando dentro da ave, porém, duro quando
no ar; e o som parece diferente conforme seja produzido em uma flauta de Pan, uma
flauta, ou simplesmente no ar.

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[120] Os efeitos devidos à posição são os seguintes: a mesma pintura, quando
vista em um plano, parece lisa, mas, quando inclinada para a frente a um certo ângulo,
parece ter recessos e proeminências. Os pescoços das pombas, também, parecem ser de
diferentes colorações quando se inclinam de diversas maneiras.
[121] Uma vez que, então, tudo que aparece é observado em um certo lugar, e de
uma certa distância, ou em uma certa posição, e cada uma destas condições produz uma
grande variação nas impressões, conforme mencionado acima, seremos compelidos,
também por este modo, à suspensão. Pois, de fato, qualquer um que pretender dar a
preferência a alguma dessas impressões estará tentando o impossível. [122] Pois, caso
seu juízo seja proferido sem demonstração, não proporcionará qualquer convicção; mas,
se tal pessoa, por outro lado, desejar recorrer a uma demonstração, ela refutará a si
própria se disser que a demonstração é falsa, enquanto, se afirmar que a demonstração é
verdadeira, uma demonstração disto ser-lhe-à solicitada, e novamente uma
demonstração desta última demonstração, uma vez que também ela deve ser verdadeira,
e assim por diante ao infinito. [123] Mas produzir provas ao infinito é impossível; de
modo que nem através das provas será tal pessoa capaz de dar preferência a uma
impressão em lugar de qualquer outra. Mas se não se pode decidir a respeito das
impressões mencionadas, nem com demonstração, bem sem demonstração, então somos
levados à suspensão; pois, enquanto podemos, sem dúvida, declarar que natureza cada
objeto parece possuir na medida em que é visto numa certa posição ou em uma certa
distância ou em um certo lugar, não somos capazes de declarar qual é sua natureza real,
pelas razões precedentes.

[Sexto modo]
[124] O sexto modo é aquele baseado nas misturas, e por ele concluímos que, já
que nenhumas das substâncias afeta nossos sentidos por si mesma, mas sempre em
junção com alguma outra coisa, então, mesmo que, possivelmente, sejamos capazes de
afirmar a natureza da mistura resultante formada pela substância exterior junto a que ela
é percebida, não seremos capazes de dizer qual é a natureza da substância externa pura e
simplesmente. Que nenhumas das substâncias externas afetam nossos sentidos por si
mesma, mas sempre em conjunção com alguma outra coisa, e que, consequentemente, é
observada de maneira diferente é, conforme imagino, bastante óbvio. [125] Assim,
nossa própria fisionomia assume uma determinada totalidade no ar quente, e outra no
frio, e não somos capazes de dizer como realmente é nossa fisionomia, mas apenas com
o que ela se parece em junção com cada uma destas condições. E o mesmo som parece
de um tipo em junção com o ar rarefeito, de outro com o ar denso; e os aromas são mais
pungentes em uma quente sala de banhos, ou ao sol, do que no ar frio; e o corpo fica
leve quando imerso na água, porém pesado circundado de ar.
[126] Mas, sigamos adiante, para além da questão da mistura externa. Nossos
próprios olhos contém, dentro de si, membranas e líquidos. Dado que, então, as coisas
que vemos não são percebidas separadamente de tais membranas e líquidos, elas não
serão apreendidas com exatidão, pois o que percebemos é a mistura resultante e, por
causa disso, quem sofre de icterícia vê tudo amarelo, e aqueles cujos olhos estão
inflamados, vêem tudo avermelhado como o sangue. E, uma vez que o mesmo som
parece ser de uma qualidade nos locais abertos, e de outra em locais apertados e
sinuosos, e diferente no ar puro e no ar perturbado, é razoável que não apreendamos o

23

som em sua pureza real; pois os ouvidos possuem passagens tortas e estreitas, as quais
também são enevoadas por diversos eflúvios vaporosos os quais, diz-se, são emitidos
pelas regiões da cabeça. [127] Além disso, uma vez que certas substâncias reside nas
narinas e nos órgãos do paladar, apreendemos os objetos do paladar e do olfato em
conjunção com eles, e não em sua pureza real. De modo que, por causa destas misturas
os sentidos não apreendem a qualidade exata das substâncias externas.
[128] Mas tampouco apreende-as o pensamento, conquanto seus guias, que são
os sentidos, já estejam enganados; pois verifica-se que há certos humores presentes em
cada uma das regiões que os dogmáticos vêem como a sede do princípio governante da
alma – seja o cérebro ou o coração, ou qualquer que seja a parte do animal em que se
escolha alojá-lo. Assim, de acordo com este modo, também verificamos que devido a
nossa inabilidade de fazer qualquer afirmação a respeito da natureza real dos objetos
externos, somos compelidos a suspender o juízo.

[Sétimo modo]
[129] O sétimo modo é aquele baseado, como dissemos, na quantidade e na
constituição das substâncias, sendo que, por “constituição”, queremos designar as
composições. E é evidente que, por meio deste modo, também somos compelidos à
suspensão relativamente à natureza real das coisas. Assim, por exemplo, as partículas
limadas do chifre de uma cabra parecem brancas quando vistas simplesmente por si
mesmas e sem combinação mas, quando combinadas no chifre real, parecem pretas. E a
limalha de prata parece preta quando as partículas são vistas por si mesmas mas, quando
unidas à massa total, são sentidas como brancas. [130] E pedacinhos do mármore de
Tenaro parecem brancos quando fragmentados pela plaina mas, combinados em um
bloco completo, parecem amarelos. Separados uns dos outros, os grãos de areia parecem
ásperos mas, em quantidade, afetam nossos sentidos com suavidade. E o heléboro, se
aplicado em um estado fino pulverizado, produz sufocamento, mas não o faz quando
sob a forma de partículas mais grossas. [131] E o vinho nos fortalece quando bebido em
quantidades moderadas mas, quando tomado em exagero, paralisa o corpo. E a comida
apresenta diferentes efeitos de acordo com a quantidade que é consumida; por exemplo,
o consumo em abundância frequentemente perturba o corpo com a ingestão e ataques
purgativos. [132] Assim, também nestes casos, seremos capazes de dizer como se
apresenta a raspa do chifre e o composto feito de várias raspas, a partícula de prata e o
composto de muitas partículas, e a pedra de mármore de Tenaro e do composto de
muitos pequenos pedaços deste tipo, e igualmente os grãos de areia, o heléboro, o vinho
e a comida – mas, quando se tratar da natureza independente e real dos objetos, seremos
incapazes de descrevê-la, em razão da divergência nas impressões que se devem às
combinações.
[133] De maneira geral, parece que coisas saudáveis tornam-se prejudiciais
quando usadas em quantidades excessivas, e coisas que parecem ser prejudiciais quando
tomadas em excesso não causam danos quando em quantidades muito pequenas. O que
observamos com relação aos efeitos dos remédios é a melhor comprovação deste fato;
pois, nestes casos, a exata combinação das drogas simples torna o composto saudável
mas, quando comete-se o menor descuido na medição, como às vezes ocorre, o
composto [resultante] não apenas torna-se insalubre mas, frequentemente, bastante
nocivo. [134] Assim, o argumento das quantidades e composições causa confusão no

24

que diz respeito à natureza real das substâncias, uma vez que somos incapazes de fazer
qualquer declaração absoluta concernente à natureza das substâncias externas.

[Oitavo modo]
[135] O oitavo modo é aquele baseado na relatividade; e, através dele,
concluímos que, como todas as coisas são relativas, devemos suspender o juízo no que
diz respeito a o que as coisas são absolutamente, quer dizer, por natureza. E é necessário
observar que, aqui, e em toda parte, usamos o termo “são” no sentido do termo
“parecem”, significando, potencialmente, o seguinte: “todas as coisas parecem
relativas”. E esta é uma dupla afirmativa. Ela refere-se, em primeiro lugar, a uma
relação com a coisa que julga (pois a substância externa que é julgada aparece em
relação a esta coisa), e, em segundo lugar, a uma relação com o que é observado
conjuntamente87: por exemplo, como o lado direito é relativo ao lado esquerdo. [136]
De fato, já afirmamos que todas as coisas são relativas. Por exemplo, no que diz
respeito àquele que julga, cada objeto só aparece em relação a algum animal ou homem
ou sentido particular, ou então a tal e tal circunstância; e, ao que é observado ao mesmo
tempo, cada coisa aparece em relação a alguma mistura ou modo ou combinação ou
quantidade ou posição particular.
[137] Mas também é possível concluir particularmente que todas as coisas são
relativas. Por exemplo: as coisas que existem distintamente diferem ou não das coisas
relativas? Se não diferem, então também são relativas: mas, se diferem, então, uma vez
que tudo o que difere é relativo a alguma coisa (pois, de fato, é dito sempre em relação
àquilo do que difere), as coisas diferenciadas são relativas. [138] De acordo com os
dogmáticos, das coisas existentes, algumas são gêneros, outras espécies, outras, tanto
gênero quanto espécies; e todos estes são relativos; portanto, todas as coisas são
relativas. Além disso, algumas coisas são evidentes, conforme se diz, e outras não-
evidentes; e as coisas aparentes são significantes, mas as não-evidentes são significadas
pelas aparentes; pois, de acordo com elas, “as coisas aparentes são as visões das coisas
não-evidentes”88. Mas o significante e o significado são relativos; portanto, todas as
coisas são relativas. [139] Além do mais, as coisas que existem se dividem em
semelhantes e dessemelhantes, e entre iguais e desiguais; mas estas [classes de coisas]
são relativas; portanto, todas as coisas são relativas. E mesmo aquele que afirma que
nem todas as coisas são relativas confirma a relatividade de todas as coisas, uma vez
que, por seu argumento contra nós, mostra que a própria afirmação “nem todas as coisas
são relativas” é relativa ela mesma, e não universal.
[140] Quando, entretanto, estabelecemos que todas as coisas são relativas, somos
claramente levados à conclusão de que não somos capazes de dizer qual é a natureza
pura e simples das substâncias, mas apenas que natureza elas parecem possuir
relativamente a outras coisas. Assim, segue-se que devemos realizar a suspensão com
relação à natureza das coisas.


87
syntheseooroumena
88
Anaxágoras (cf. Pellegrin, p. 131, n. 1)

25

[Nono modo]
[141] O modo que, como dissemos, vem em nono lugar, é baseado na constância
ou na raridade de ocorrência, e explica-lo-emos da seguinte maneira. O sol é, sem
dúvida, muito mais maravilhoso que um cometa; contudo, devido ao fato de vermos o
sol constantemente mas, o cometa, raramente, ficamos tão maravilhados com este corpo
celeste que até o vemos como um presságio divino, enquanto que isto em nada se aplica
ao sol. Se, entretanto, concebêssemos o sol como aparecendo raramente, ou pondo-se
raramente, e iluminando tudo de uma vez, e jogando tudo subitamente à sombra, então
ficaríamos muito maravilhados. [142] Um terremoto também não causa o mesmo temor
naqueles que o experimentam pela primeira vez e naqueles que com ele já se
acostumaram. Quanto maravilhamento, também, exerce o mar sobre o homem que o vê
pela primeira vez! E, de fato, a beleza do corpo humano nos impressiona mais na
primeira visão súbita do que quando se torna um espetáculo costumeiro. As coisas raras,
ademais, temos em conta como preciosas, e não o que nos é familiar e facilmente
obtido. [143] Assim, se supuséssemos que a água é rara, quão mais preciosa ela nos
pareceria do que todas as coisas que são consideradas preciosas! Ou, se imaginássemos
que o ouro está simplesmente espalhado em quantidade sobre a terra, como as pedras, a
quem, então, suporíamos que ele pareceria precioso e digno de se trancar a chave?
[144] Mas, devido à frequência ou raridade de sua ocorrência, as mesmas coisas
são vistas como maravilhosas ou preciosas em um determinado momento, e, em outro
momento, como desprovidas de tais qualidades e, por isso, inferimos que, ainda que
sejamos capazes de afirmar como parece ser cada uma destas coisas, em virtude de sua
ocorrência rara ou frequente, não somos capazes de afirmar que natureza pertence
absolutamente a cada uma das substâncias externas. Assim, devido a este modo,
também suspendemos o juízo no que diz respeito a elas.

[Décimo modo]
[145] Há um décimo modo, o qual diz respeito, principalmente, à ética, sendo
baseado nas regras de conduta, nos hábitos, leis, crenças nos mitos e concepções
dogmáticas. Uma regra de conduta é a escolha de uma maneira de viver, ou de uma ação
particular, adotada por uma pessoa ou por muitas – por Diógenes89, por exemplo, ou
pelos Lacônicos. [146] Uma lei é um contrato escrito entre membros de um Estado,
sendo que qualquer um que o transgredir é punido. Um hábito ou costume (os termos,
aqui, são equivalentes) é a aceitação comum de um certo tipo de ação por um
determinados número de homens, sendo que a transgressão, aqui, não acarreta realmente
em punição; por exemplo, a lei condena o adultério, e o costume, entre nós, proíbe a
relação sexual com uma mulher em público. [147] A crença em mitos é a aceitação de
eventos não-históricos e fictícios, tais como, as lendas a respeito de Cronos, entre
outras; pois muitos são os que dão crédito a tais histórias. Uma suposição dogmática é a
aceitação de um fato que parece ser estabelecido por analogia ou por algum tipo de
demonstração, como, por exemplo, que os átomos são elementos formadores das coisas
existentes, ou, então, os homeômeros ou partes últimas, ou alguma outra coisa.
[148] Cada um destes, opomos ora a si mesmo, ora a cada um dos demais. Por
exemplo, opomos um hábito a um hábito da seguinte maneira: alguns dos etíopes

89
O filósofo Cínico (cerca de 400-325 a.C.) (Bury).

26

tatuam seus filhos, mas nós não o fazemos; e enquanto os persas pensam ser gracioso
vestir-se com roupas brilhantes que lhes chegam até os pés, nós achamos isso
indecoroso; e enquanto os indianos têm relações [sexuais] com suas mulheres em
público, a maioria das outras raças encara este hábito como vergonhoso. [149] Também
opomos uma lei a uma lei: entre os romanos, um homem que renuncia a propriedade de
seu pai não paga os débitos dele, enquanto que, entre os rodésios, deve sempre pagá-los;
e entre os citas Tauri90, era lei que estrangeiros deveriam ser sacrificados a Ártemis,
mas, entre nós, é proibido oferecer um ser humano em sacrifício religioso. [150] E
também opomos uma conduta a uma conduta, como quando opomos a conduta de
Diógenes àquela de Aristipo, ou a dos lacônicos à dos italianos. E opomos uma crença
em um mito a uma crença em um mito quando dizemos que, enquanto em determinada
história afirma-se que o pai dos homens e dos deuses é Zeus, em outra, diz-se que é
Oceano – “Oceano, senhor dos deuses, e Tétis, a mãe que os concebeu”91. [151] E
opomos concepções dogmáticas umas às outras quando dizemos que alguns declaram
que há apenas um elemento enquanto que, outros, dizem que há um número infinito
deles; alguns, que a alma é mortal, outros, que é imortal; que alguns dizem que as coisas
humanas são controladas pela providência divina e, outros, que não há providência
alguma.
[152] E opomos, também, o hábito às outras coisas: por exemplo, à lei, como
quando dizemos que, entre os persas, é hábito ter relações [sexuais] com outros homens,
enquanto que, entre os romanos, fazê-lo é proibido por lei; e que, enquanto o adultério é
proibido para nós, entre os Massagetas92 ele é tradicionalmente visto como um hábito
indiferente, como Eudoxo de Cnido93 narra no primeiro livro de suas Viagens; e que,
enquanto ter relações [sexuais] com a própria mãe é proibido em nosso país, na Pérsia é
costume geral formar tais casamentos; e também, entre os egípcios, os homens casam
com suas irmãs, algo proibido por lei entre nós. [153] E um hábito ou costume é
colocado em oposição a uma conduta quando, enquanto a maioria dos homens têm
relações [sexuais] com suas esposas em segredo, Crates94 fazia-o em público com
Hipárquia e Diógenes andava por aí com um dos ombros descobertos, enquanto nós nos
vestimos da maneira usual. [154] E um costume pode também ser colocado em
oposição à crença em um mito, como quando as lendas dizem que Cronos devorou seus
próprios filhos, enquanto que é nosso hábito proteger nossos filhos; e enquanto é um
costume, entre nós, reverenciar os deuses como sendo bons e imunes ao mal, eles são
apresentados pelos poetas como sofrendo ferimentos e invejando uns aos outros. [155]
E um hábito é oposto a uma concepção dogmática quando, enquanto é nosso hábito orar
para os deuses por coisas boas, Epicuro declara que a divindade não nos dá atenção; e
quando Aristipo95 considera que usar roupas femininas é uma questão indiferente, ao
mesmo tempo que nós consideramos tal coisa uma ignomínia
[156] E opomos uma conduta a uma lei quando, apesar de haver uma lei que
proíbe que se golpeie um homem livre e bem-nascido, os que praticam o pancrácio
batem-se uns aos outros porque esta é a conduta que adotam; e quando, apesar do


90
Habitantes da Criméia (Bury).
91
Ilíada, XIV, 201 (Pellegrin).
92
Antiga tribo indo-europeia do Turquestão Russo (Bury).
93
Cerca de 360 d.C. Famoso como astrônomo, geômetra, legislador e médico (Bury).
94
Filósofo Cínico, tendo vivido por volta de 320 a.C. (Bury).
95
Cerca de 435-366 a.C. Filósofo grego e fundador da escola Cirenaica de hedonismo (Bury).

27

homicídio ser proibido, os gladiadores destroem uns aos outros pela mesma razão. [157]
E opomos a crença em um mito a uma conduta quando dizemos que as lendas relatam
Heracles, na casa de Omfale, “labutava fiando lã, suportando o fardo da escravidão”, e
fez coisas que ninguém teria escolhido fazer mesmo em grau moderado, enquanto que a
conduta de Heracles era nobre. [158] E opomos uma conduta a uma concepção
dogmática quando, enquanto os atletas que cobiçam a glória como algo bom em si
mesmo e, em nome dela, aceitam uma conduta penosa, muitos dos filósofos afirmam
dogmaticamente que a glória é uma coisa má. [159] E opomos uma lei à crença em um
mito quando os poetas representam os deuses entregando-se ao adultério e às relações
homossexuais, enquanto que a lei, entre nós, proíbe tais ações; [160] e opomos uma lei
a uma concepção dogmática quando Crísipo diz que relações sexuais com mães e irmãs
são uma questão indiferente, enquanto que a lei proíbe tais coisas. [161] E opomos a
crença em um lenda a uma concepção dogmática quando os poetas dizem que Zeus
desceu e teve relação com uma mulher mortal, mas, entre os dogmáticos, mantém-se
que tal coisa é impossível; [162] e, novamente, quando o poeta relata que, devido à sua
dor por Sarpedon, Zeus “deixou cais sobre a terra grandes bolhas de sangue”96,
enquanto que é um dogma dos filósofos que a divindade é impassível; e estes mesmos
filósofos demolem a lenda dos centauros, sugerindo-nos que estes últimos não existem.
[163] Poderíamos, de fato, ter utilizado muitos outros exemplos em conexão
com cada uma das antíteses mencionadas acima; mas, em um relato conciso como o
nosso, o que dissemos será suficiente. Deve-se acrescentar somente que, uma vez que
através deste modo põe-se em evidência o fato de que há diversas irregularidades entre
as coisas, não seremos capazes de dizer que características pertencem às coisas no que
diz respeito à sua essência real, mas apenas o que pertence a ele em relação a uma dada
conduta, ou lei, ou hábito, e daí por diante, com cada um dos restantes. Assim, por
causa deste modo, também somos compelidos a suspender o juízo no que diz respeito à
natureza real dos objetos externos. E, portanto, através de todos os dez modos, somos,
ao final, levados à suspensão.

CAPÍTULO XV
DOS CINCO MODOS
[164] Os céticos mais recentes97 nos deixaram cinco modos que levam à
suspensão, a saber: o primeiro, baseado do desacordo; o segundo, baseado no regresso
infinito; o terceiro, na relatividade; o quarto, na hipótese; o quinto, no raciocínio circular
ou dialelo.
[165] Modo baseado no desacordo é aquele que nos leva a descobrir que, no que
diz respeito à coisa examinada, surge, tanto entre pessoas comuns, quanto entre
filósofos, uma dissenção interminável, por razão da qual somos incapazes tanto de
escolher uma coisa quanto de rejeitá-la, caindo, assim, na suspensão.
[166] O modo baseado no regresso ao infinito é aquele através do qual
afirmamos que a coisa apresentada para proporcionar convicção sobre o que foi
proposto precisa de uma garantia e, esta, de uma outra, e esta, de uma outra, e assim


96
Ilíada, XVI, 459 (Pellegrin).
97
Tratam-se de Agripa e seus seguidores, segundo Diógenes Laércio (Pellegrin),

28

sucessivamente ao infinito, de maneira que se segue98 a suspensão, uma vez que não
possuímos ponto de partida para estabelecer coisa alguma.
[167] O modo baseado na relatividade, como já dissemos, é aquele através do
qual a coisa que aparece de uma certa maneira relativamente a quem julga e àquilo que
é concomitantemente percebido, mas, no que diz respeito à natureza real, suspendemos
o juízo.
[168] Tem-se o modo baseado na hipótese quando os dogmáticos, sendo
forçados a recuar ao infinito, tomam como ponto de partida algo que não estabeleceram
através da argumentação, e que julgam por bem tomar simplesmente, sem
demonstração.
[169] O modo do dialelo ou raciocínio circular é a forma utilizada quando aquilo
que deveria assegurar a coisa sobre a qual se está pesquisando requer esta coisa para
proporcionar convicção; neste caso, uma vez que não podemos tomar uma para
estabelecer a outra, suspendemos nosso juízo sobre as duas.
Demonstraremos agora, brevemente, que toda questão sendo pesquisada admite
ser colocada sob um destes modos. [170] Aquilo que se propõe só pode ser ou sensível
ou inteligível mas, em ambos os casos, é um objeto de desacordo; pois alguns dizem
que apenas o que é sensível é verdadeiro; outros que, apenas o que é inteligível; outros
que algumas sensíveis e algumas inteligíveis são verdadeiras. Afirmarão, então, que o
desacordo pode ser resolvido, ou que não o pode ser? Se disserem que não pode ser
resolvido, a necessidade da suspensão nos será concedida; pois, no que diz respeito a
coisas sendo discutidas que não admitem qualquer decisão, é impossível afirmar algo.
Mas, se disserem que a controvérsia pode ser decidida, então perguntaremos pelo que
ela pode ser decidida. [171] Por exemplo, no caso de algo sensível (pois em uma coisa
deste tipo apoiaremos nosso argumento, primeiramente), deve a controvérsia ser
decidida por algo sensível ou por algo inteligível? Se por algo sensível, uma vez que
estamos justamente pesquisando algo sensível, a outra coisa [sensível que, em tese,
resolveria a questão] exigirá outra ainda, que a possa confirmar; e se esta, também, deve
ser sensível, então exigirá, da mesma forma, ainda outra para sua confirmação, e assim,
ao infinito. [172] Mas se deve-se decidir quanto à coisa sensível por meio de algo
inteligível, então, uma vez que as coisas inteligíveis também são parte do desacordo ou
da controvérsia, a coisa inteligível deverá ser julgada e precisará nos proporcionar
alguma convicção. A partir de que, então, poderá ela nos proporcionar convicção? Se de
algo inteligível, dar-se-á novamente um regresso ao infinito; e, se de objeto sensível,
uma vez que algo inteligível foi apresentado para estabelecer algo sensível, e algo
sensível para estabelecer algo inteligível, caracterizar-se-á o modo do raciocínio
circular, o dialelo.
[173] Se entretanto, aquele com que discutimos, para escapar desta conclusão,
quiser afirmar, por simples consentimento e sem demonstração, alguma coisa que
desejará utilizar a demonstração dos próximos passos do seu argumento, então ficará
caracterizado o modo da hipótese, e chegar-se-á a um impasse. Pois, se o autor da
hipótese é digno de confiança, nós mesmos não seremos menos dignos de confiança
cada vez que construirmos uma hipótese oposta. Além disso, se o autor da hipótese põe


98
akoloutheoo: seguir por um caminho, acompanhar, caminhar em seguida de, deixar-se conduzir, seguir
o exemplo. O sentido é claramente passivo, em conformidade com a conduta cética.

29

como hipótese alguma coisa verdadeira, faz com que ela se torne suspeita ao tomá-la
como hipótese, ao invés de demonstrá-la; mas, se a toma como falsa, o fundamento de
seus argumentos será imprestável. [174] Além disso, se a hipótese conduz mesmo à
convicção, então que se assuma logo como hipótese aquilo mesmo que a pesquisa tenta
determinar, e não alguma outra coisa que é meramente um meio para se estabelecer o
que a pesquisa tenta determinar; mas, se é absurdo tomar como hipótese o objeto da
investigação, também será absurdo tomar como dado aquilo de que ela depende.
[175] Também está claro que tudo o que é sensível é relativo; pois é relativo a
quem tem as sensações. Portanto, parece que qualquer coisa sensível que se apresente
pode ser facilmente referida a um dos cinco modos. E, no que diz respeito ao que é
inteligível, argumentamos da mesma forma. Pois, caso se diga que uma coisa deste tipo
é uma questão impossível de ser decidida, então a necessidade de suspender o juízo terá
que nos ser concedida. [176] E se, por outro lado, a controvérsia admitir decisão, então,
se a decisão estiver amparada em algo inteligível, seremos levados a uma regressão ao
infinito, ou, se estiver amparada em algo sensível, ao raciocínio circular; pois, uma vez
que o sensível é, novamente, controverso, e não pode ser decidido através de si próprio,
por causa do regresso ao infinito, exigirá aquilo que é inteligível, assim como, da
mesma forma, aquilo que é inteligível exigirá aquilo que é sensível. [177] Por estas
razões, novamente, aquele que assumir qualquer coisa por hipótese estará agindo
absurdamente. Além disso, tudo que é inteligível é relativo; pois é dito relativo àquele
que tem uma atividade intelectual, e, se realmente possuíssem a natureza que se diz que
possuem [ou seja, se tal relatividade não fosse o caso], então não haveria controvérsia a
seu respeito. Assim, o inteligível também é enviado aos cinco modos, de tal forma que
somos compelidos, em todos os casos, a suspender o juízo no que diz respeito à coisa
apresentada.
Estes, portanto, são os cinco modos difundidos entre os céticos mais recentes,
que os propõem não de maneira a substituir os dez modos, mas sim para refutar a
precipitação dos dogmáticos com mais variedade e completude, através dos cinco em
conjunto com os demais.

CAPÍTULO XVI
DOS DOIS MODOS
[178] Também nos foram legados dois outros modos relacionados à suspensão.
Uma vez que tudo aquilo que apreendemos parece ser apreendido, ou através de si
mesmo, ou através de alguma outra coisa, pela sugestão de que nada é apreendido, nem
por si mesmo, nem por outra coisa, introduz-se, conforme se supõem, a dúvida a
respeito de tudo.
Que nada é apreendido através de si mesmo, dizem os céticos, está claro,
conforme penso, a partir da controvérsia que existe entre os fisicistas a respeito de todas
as coisas, tanto as sensíveis quanto as inteligíveis; controvérsia esta que não admite
qualquer resolução, uma vez que somos incapazes de empregar tanto um critério
sensível quanto um critério inteligível, e uma vez que todo critério que adotamos é
controverso e, portanto, não proporciona convicção. [179] E a razão pela qual os céticos
não consentem que algo seja apreendido através de outra coisa é a seguinte: se aquilo
através do que um objeto é apreendido deve sempre, em si mesmo, ser apreendido

30

através de alguma outra coisa, então tem um processo de raciocínio circular, ou de
regresso ao infinito. E se, por outro lado, escolhe-se assumir que a coisa através da qual
um outro objeto é apreendido é, ela mesma, apreendida através de si mesma, isso é
refutado pelo fato de que, devido às razões já citadas, nada é apreendido através de si
mesmo. Mas permanecemos em dúvida sobre como é que aquilo que está em conflito
consigo mesmo pode possivelmente ser apreendido, ou através de si mesmo, ou através
de alguma outra coisa, uma vez que o critério de verdade ou de apreensão não está
aparente, e os sinais, mesmo separados da demonstração, são rejeitados, como ver-se-á
adiante99.
Por hora, entretanto, é suficiente dizer apenas isso a respeito dos modos que
levam à suspensão.

CAPÍTULO XVII
DOS MODOS ATRAVÉS DOS QUAIS REFUTA-SE OS ETIOLOGISTAS
[180] Assim como ensinamos os modos tradicionais que levam à suspensão,
alguns céticos também propõem modos através dos quais levamos os dogmáticos à
aporia no que diz respeito a suas etiologias, devido ao fato de que sentem especial
orgulho com relação a estas teorias. Assim, Enesidemo nos fornece oito modos pelos
quais, de acordo com ele, é possível testar e expor a falta de valor de toda teoria
dogmática da causalidade.
[181] Dentre estes modos, o primeiro, ele diz, é aquele que demonstra que, uma
vez que a etiologia, como um todo, lida com o que não é aparente, ela não pode ser
confirmada por qualquer evidência derivada das aparências à qual se possa assentir. O
segundo modo mostra que, muitas vezes, embora aquilo que se pesquisa possa
facilmente ser explicado causalmente de muitas maneiras, alguns [etiologistas]
explicam-no apenas de uma forma100. [182] O terceiro mostra como, a eventos
ordenados, os dogmáticos atribuem causas que não exibem ordem alguma. O quarto
mostra que, uma vez que tenham apreendido a maneira como se dão as coisas aparentes,
[os etiologistas] assumem que também apreenderam como as coisas não aparentes se
dão, a despeito do fato de que, embora seja possível que o não-aparente se dê de
maneira similar à das aparências, também é possível que [o não-aparente] não se dê de
maneira similar [à maneira como se dão as aparências], mas sim de uma maneira que
lhe seja peculiar. [183] No quinto modo, demonstra-se como praticamente todos estes
teóricos atribuem causas de acordo com suas próprias hipóteses particulares sobre os
elementos, e não de acordo com procedimentos comumente admitidos. No sexto,
mostra-se como os dogmáticos frequentemente admitem apenas aqueles fatos que
podem ser explicados por suas próprias teorias, e afastam os fatos que estão em conflito
com elas, ainda que tais fatos sejam igualmente razoáveis. [184] O sétimo mostra como
eles muitas vezes atribuem causas que não apenas estão em conflito com as aparências,
mas também com suas próprias hipóteses. O oitavo mostra que, muitas vezes, a respeito
das coisas que se considera aparentes, e a respeito das coisas que estão sendo

99
Livro II, capítulos 3 a 15 (Pellegrin).
100
O ponto é que, a uma dada coisa, uma miríade de causas lhe pode ser atribuída, de maneira que é
arbitrário, da parte de um etimologista, escolher uma única causa e apresenta-la como explicando
fundamentalmente qualquer coisa (cf. P. Pellegrin, n.3, p.151).

31

investigadas, há uma dúvida igual, de maneira que [os etiologistas] explicam coisas
igualmente duvidosas através de coisas igualmente duvidosas. [185] Mas tampouco é
impossível, acrescente Enesidemo, que a contestação de certas teorias da causalidade
dos dogmáticos devam ser referidas a modos misturados baseados nos que já
discutimos.
Também é possível que os cinco modos da suspensão sejam suficientes contra as
etiologias. Pois se uma pessoa propõe uma causa, ela estará ou não estará de acordo
com todos os sistemas filosóficos, com o ceticismo e com aquilo que é aparente.
Provavelmente, contudo, é impraticável propor uma causa que concorde com tudo isso,
uma vez que tanto as coisas aparentes quanto as não-evidentes são questão de
controvérsia101. [186] E se a causa proposta não estiver em acordo, será solicitada [ao
teórico] a causa desta causa, e se ele assumir uma causa aparente para algo aparente, ou
uma não-evidente para uma não-evidente, então precipitar-se-á no regresso ao infinito,
ou, então, se basear cada causa, por sua vez, em uma causa do outro tipo, será reduzido
à argumentação circular. E se, em qualquer ponto, ele se detiver, então ou afirmará que
a causa está bem-fundamentada no que diz respeito a admissões anteriores,
introduzindo, desta maneira, a relatividade e destruindo sua pretensão de realidade
absoluta, ou fará alguma suposição por hipótese, tornando, de qualquer forma,
necessária a suspensão.
Assim, por estes modos, também é, sem dúvida, possível expor a precipitação
dos dogmáticos com suas etiologias.

CAPÍTULO XVIII
DAS EXPRESSÕES OU FÓRMULAS CÉTICAS
[187] E uma vez que, ao fazer uso dos modos que levam à suspensão,
pronunciamos certas expressões que indicam a afecção e a disposição céticas, tais como
“não mais”, “nada deve ser determinado”, e outras como estas, será nossa próxima
tarefa discutir tais expressões, em ordem. Comecemos pela expressão “Não mais”.

CAPÍTULO XIX
DA EXPRESSÃO “NÃO MAIS”102
[188] Esta expressão, então, algumas vezes a enunciamos na forma empregada
acima mas, algumas vezes, também na forma “de nenhuma maneira mais”. Pois não é
verdade que, como se supõe, adotamos a forma “não mais” em investigações especiais,
e “de nenhuma maneira mais” em questão genéricas, mas enunciamos ambas as formas,
“não mais” e “de nenhuma maneira mais” indiferentemente, e vamos discuti-las, agora,
como expressões idênticas. Esta expressão é, portanto, elíptica. Pois, da mesma maneira
que, quando dizemos “um duplo”, dizemos implicitamente “um casaco duplo”103, e
quando dizemos “a principal”, estamos implicitamente dizendo “a rua principal”,

101
A oposição é entre phainomena e adeela, e não entre prodeela e adeela, que é, geralmente, o que se
tem, mostrando, então, uma equivalência entre “aquilo que aparece” e “aquilo que é percebido”.
102
ou mallon, “pas plus”, “not more”.
103
Em português, um exemplo equivalente seria a situação de se pedir bebidas como uísque ou café, ou,
então, a utilização dos termos “meia” e “inteira” para designar entradas de cinema.

32

também quando dizemos “não mais”, estamos implicitamente dizendo “isso não mais
que aquilo, de nenhuma maneira”. [189] Alguns céticos, contudo, em lugar do “não”,
adotam a forma “por que isto mais do que aquilo”, considerando que o “que” denota,
neste caso, uma causa, de modo que o significado é “por que razão isto mais do que
aquilo?” E é comum utilizarmos perguntas ao invés de afirmativas, como, por exemplo:
“a esposa de Zeus: que mortal não a conhece?” E também afirmativas em lugar de
perguntas, como, por exemplo: “estou perguntando onde vive Dion”, ou “eu lhe
pergunto que razão pode haver para admirar com um poeta”. E, além disso, o uso de
“que” ao invés de “por que razão” é encontrado em Menandro, “por que fui deixado
para trás?” [190] E a expressão “isto não mais que aquilo” indica também aquela nossa
afecção, através da qual chegamos a um equilíbrio, devido à equivalência dos objetos
opostos; e por “equivalência” ou força igual, queremos dizer igualdade no que diz
respeito ao que parece provável para nós, enquanto que, por “oposto”, queremos indicar
qualquer conflito em geral, e, por “equilíbrio”, a recusa de se admitir qualquer das
alternativas.
[191] Então, quanto à fórmula “não mais”, ainda que ela apresente um caráter de
assentimento ou de negação, não a empregamos desta maneira, mas a tomamos em um
sentido amplo e inexato, seja em lugar de uma interrogação ou em lugar da frase “eu
não sei a qual destas coisas eu deveria assentir, e a qual não deveria fazê-lo”. Pois o que
propomos é indicar o que aparece para nós; e somos indiferentes quanto à expressão
pela qual indicamos isto. E também este ponto deveria ser observado: que usamos a
expressão “de nenhuma maneira mais”, não para afirmar positivamente que algo é
realmente verdadeiro e certo, mas para declarar em face a algo o que também nos
aparece ou nos parece ser.

CAPÍTULO XX
DA “AFASIA”, OU NÃO-ASSERÇÃO
[192] A respeito da não-asserção, temos a dizer o que se segue. O termo
“asserção”104 tem dois sentidos, um sentido geral e um sentido especial. Usado em seu
sentido geral, indica afirmação ou negação, como, por exemplo, “é dia”, “não é dia”; em
seu sentido especial, indica apenas afirmação, de modo que, de acordo com ele, as
negações não são designadas asserções. A não-asserção, portanto, é a ausência de
asserção no sentido geral, sentido este que inclui tanto a afirmação quanto a negação, de
maneira que a não-asserção é uma condição mental devido à qual nos recusamos, seja a
afirmar, seja a negar qualquer coisa. [193] Assim, está claro que adotamos a não-
asserção, não como se as coisas fossem, na realidade, de tal modo a nos levarem à não-
asserção, mas para manifestar que, no momento em que enunciamos tal expressão, nos
encontramos nesta condição [a condição afásica], no que diz respeito ao problema
diante de nós. Também devemos nos lembrar que só dizemos não afirmar nem negar o
que é dogmaticamente afirmado a respeito do que não é aparente; pois assentimos
àquelas coisas que nos colocam em movimento e nos afetam e conduzem
necessariamente ao assentimento.


104
phasis

33

CAPÍTULO XXI
DA EXPRESSÃO “TALVEZ”, “POSSIVELMENTE” E “PODE SER”105
[194] As fórmulas “talvez” e “talvez não”, e “pode ser” e “pode ser que não”, e
“possivelmente” e “possivelmente não”, nós as adotamos em lugar de “talvez seja,
talvez não seja”, e “pode ser que seja, pode ser que não seja”, e “possivelmente é o caso,
possivelmente não é o caso”, de maneira que, em nome da concisão, adotamos a frase
“possivelmente não” ao invés de “é possível que não seja”, e “pode ser que não” ao
invés de “pode ser que não seja”. [195] Mas aqui, novamente, não discutirmos a
respeito de frases, nem nos perguntamos se as frases indicam realidades, mas as
adotamos, como já indiquei, em um sentido amplo. Ainda assim, é evidente, penso eu,
que estas expressões indicam a não-asserção. Certamente, a pessoa que diz “talvez seja”
está implicitamente afirmando também a frase que estaria em conflito com ela, a saber,
“talvez não seja”, através de sua recusa a fazer a asserção positiva: “é”. E o mesmo se
aplica às outras expressões.

CAPÍTULO XXII
DA EXPRESSÃO “EU SUSPENDO O JUÍZO”
[196] A frase “eu suspendo o juízo”, adotamo-la em lugar da frase “não sou
capaz de dizer em qual dos objetos presentes eu deveria acreditar e em qual eu não
deveria acreditar”, indicando que os objetos nos aparecem iguais no que diz respeito à
credibilidade ou incredibilidade. Quanto à questão de se são iguais, não fazemos
qualquer asserção positiva; mas o que afirmamos é o que aparece para nós em relação a
eles no momento da afirmação. E o termo “suspensão” é derivado do fato de que o
pensamento é mantido em suspense, de maneira a nem afirmar nem negar nada, devido
à força igual das coisas sendo investigadas.

CAPÍTULO XXIII
DA EXPRESSÃO “EU NADA DETERMINO”
[197] Com respeito à frase “eu nada determino”, dizemos o seguinte. Mantemos
que “determinar” não é simplesmente afirmar uma coisa, mas enunciar algo a respeito
de uma coisa, combinado, a isto, o assentimento. Pois, neste sentido, sem dúvida, é
necessário concordar que o cético nada determina, nem mesmo a própria proposição “eu
nada determino”; pois esta não é uma suposição dogmática, quer dizer, não dá
assentimento a algo não-evidente, mas é uma expressão que indica nossa própria
afecção. Desta forma, sempre que o cético diz “eu nada determino”, o que ele quer dizer
é “eu, agora, estou afetado de tal maneira que nem afirmo dogmaticamente nem nego
qualquer dos objetos em questão”. E, isto, ele diz, para anunciar, sem dogmatismo, e de
forma descritiva, o que aparece a ele mesmo com relação aos assuntos propostos, sem
fazer quaisquer declarações dogmáticas e confiantes, mas apenas relatando a maneira
como seus sentidos foram afetados.


105
tacha, ecsesti, endechetai; “peut-être”, “il est permis”; “perhaps”, “possibly”, “maybe”.

34

CAPÍTULO XXIV
DA EXPRESSÃO “TODAS AS COISAS SÃO INDETERMINADAS”
[198] A indeterminação é uma afecção do pensamento pelo qual nem negamos
nem afirmamos nada de não-evidente, ou seja, nenhum dos objetos que são assunto de
pesquisas dogmáticas. Assim, sempre que o cético diz “todas as coisas são
indeterminadas”, ele toma a palavra “são” no sentido de “parecem-lhe”; ademais, com
“todas as coisas” ele não quer indicar coisas existentes, mas aquelas coisas não-
evidentes investigadas pelos dogmáticos; enfim, “indeterminadas” quer dizer que as
coisas em questão não são mais convincentes ou menos convincentes do que aquelas
que se opõe ou estão em conflito com elas. [199] E assim como aquele que diz “ando
por aí” está, potencialmente, dizendo “sou eu que ando por aí”106, aquele que diz “tudo é
indeterminado” exprime também, conforme pensamos, o significado “relativamente a
mim”, de modo que, no fundo, se está dizendo o seguinte: “todas as questões de
investigação dogmática que examinei pareceram-me ser tais que, do ponto de vista da
convicção ou ausência de convicção, nenhuma delas é preferível a nenhuma outra em
conflito com ela”.

CAPÍTULO XXV
DA EXPRESSÃO “TODAS AS COISAS SÃO INAPREENSÍVEIS”
[200] Adotamos uma atitude similar quando dizemos “todas as coisas são
inapreensíveis”. Pois damos uma explicação similar à expressão “todas as coisas” e, da
mesma forma, ajuntamos as palavras “para mim”, de maneira que o significado
transmitido é este: “todas as questões não-aparentes de pesquisa científica que
investiguei parecem-me inapreensíveis”. E esta é a declaração, não de alguém que está
positivamente afirmando que as questões investigadas pelos dogmáticos têm realmente
uma natureza tal que os faz inapreensíveis, mas de alguém que está anunciando sua
própria afecção, em virtude da qual diz o seguinte: “suponho que, até agora, devido à
equivalência dos contrários, eu mesmo não apreendi nada”. Portanto, tudo aquilo que
for proposto para reverter nossa posição parece-me estar em desacordo com o que
anunciamos.

CAPÍTULO XXVI
DAS EXPRESSÕES “NÃO TENHO APREENSÃO” E “NÃO APREENDO”
[201] Ambas as expressões, “não tenho apreensão” e “não apreendo” indicam
uma afecção pessoal, na qual o cético, por um dado momento, evita afirmar ou negar
qualquer questão não-evidente, como se segue claramente do que dissemos acima a
respeito de outras expressões.

CAPÍTULO XXVII


106
As sentenças gregas são “peripatoo” e “egoo peripatoo”. Em grego, mais ou menos como no
português, a terminação verbal já indica a pessoa gramatical, e o pronome pessoal, quando aparece, tem
uma função enfática (Annas e Barnes).

35

DA FRASE “A TODO ARGUMENTO OPÕE-SE UM ARGUMENTO
IGUAL”
[202] Quando dizemos “a todo argumento opõe-se um argumento igual”,
queremos indicar, com “todo”, aqueles argumentos que já foram investigados por nós; e
não empregamos a palavra “argumento” em seu sentido absoluto, mas querendo indicar
um argumento que estabelece algo dogmaticamente (quer dizer, com referência ao que
não é evidente), e o estabelece não necessariamente através de premissas e uma
conclusão, mas por qualquer método que se queira. Ademais, dizemos “igual” em
referência à credibilidade ou incredibilidade, e empregamos a palavra “oposto” no
sentido geral de “conflitante”; e subentendemos, ainda, a frase “conforme me parece”.
[203] Assim, sempre que digo “a cada argumento, opõe-se um argumento igual”, digo
implicitamente o seguinte: “a todo argumento sobre o qual voltou-se minha pesquisa, e
que procura estabelecer algo dogmaticamente, parece-me que se opõe um outro
argumento que também procura estabelecer algo dogmaticamente, o qual é igual ao
primeiro no que diz respeito à credibilidade ou à falta dela”; de maneira que não é
dogmático proferir este discurso, pois ele apenas anuncia uma afecção humana que é
aparente para a pessoa que a experimenta.
[204] Alguns também anunciam aquela expressão da seguinte maneira: “para
todo argumento, deve opor-se um argumento igual”, pretendendo dar, a ela, a seguinte
forma imperativa: “para cada argumento que estabelece um ponto dogmaticamente,
ofereçamos em oposição um argumento que também sirva a uma pesquisa dogmática, e
que seja igual ao primeiro no que diz respeito à credibilidade ou incredibilidade, e
conflitante com ele”. Para direcionar suas palavras ao cético, empregam o infinitivo
“opor-se” ao invés do imperativo “ofereçamos em oposição”. [205] E direcionam esta
injunção ao cético para que não desista de sua busca cética, por ter sido
desencaminhado pelo dogmático, perdendo, assim, por precipitação, a tranquilidade
aprovada pelos céticos, a qual, como dissemos acima, eles acreditam ser dependente da
suspensão universal.

CAPÍTULO XXVIII
NOTAS SUPLEMENTARES SOBRE AS EXPRESSÕES CÉTICAS
[206] Em um esboço107 como o presente, será o bastante explicar as expressões a
serem apresentadas agora, especialmente uma vez que é possível falar, a partir delas, de
todas as demais. Pois, no que diz respeito a todas as expressões céticas, temos que
compreender, em primeiro lugar, que não dizemos que elas são verdadeiras em todos os
casos, pois dizemos que deve ser possível anulá-las a partir delas mesmas, juntamente
com aquilo a propósito do que elas foram enunciadas, da mesma maneira como os
purgantes não apenas eliminam os humores do corpo, mas também expelem a si
mesmos juntamente com os humores. [207] E também dizemos que empregamo-las não
de maneira a explicar absolutamente as coisas às quais elas se aplicam, mas de maneira
indiferente e aproximada; pois não cabe ao cético discutir sobre expressões e, além
disso, é vantagem nossa que estas expressões não signifiquem nada pura e
simplesmente, mas tenham somente um significado relativo, e relativo aos céticos.
[208] Além disso, devemos também nos lembrar de que não as empregamos

107
hypotypoosei

36

universalmente sobre todas as coisas, mas apenas àquelas que são não-evidentes e que
são objetos da pesquisa dogmática; e que declaramos o que nos parece, e não fazemos
quaisquer declarações positivas a respeito da natureza das substâncias externas; pois
penso que, como resultado disso, pode-se refutar todo o sofisma direcionado a uma
expressão cética.
[209] E, agora que podemos tratar da ideia ou propósito do ceticismo e de suas
partes, e do critério, e do fim, e também dos modos, da suspensão, e discutimos as
expressões céticas, e assim colocamos em evidência o caráter distintivo do ceticismo,
nossa tarefa é, suponho, explicar brevemente a distinção que existe entre ele e os
sistemas filosóficos que estão próximos dele, de modo a podermos entender mais
claramente, a conduta suspensiva. Comecemos com a filosofia heraclítica.

CAPÍTULO XXIX
COMO A CONDUTA CÉTICA DIFERE DA FILOSOFIA HERACLÍTICA
[210] Que a filosofia heraclítica difere de nossa conduta é evidente. Pois
Heráclito faz declarações dogmáticas a respeito de muitas coisas não-evidentes,
enquanto nós, como foi dito, não o fazemos. É verdade que Enesidemo e seus
seguidores costumavam dizer que a conduta cética era uma estrada que levava à
filosofia heraclítica, uma vez que a tese de que os opostos parecem dizer respeito à
mesma coisa leva à tese de que os contrários realmente dizem respeito à mesma coisa, e
enquanto os céticos dizem que os contrários parecem pertencer à mesma coisa, os
heraclitianos vão além disso e afirmam que os contrários realmente dizem respeito à
mesma coisa. Mas, em resposta a eles, declaramos que o fato de que os contrários
parecem dizer respeito à mesma coisa não é um dogma dos céticos, mas um fato que se
dá aos sentidos não apenas dos céticos, mas também de todos os outros filósofos e de
toda a humanidade; [211] pois, certamente, ninguém diria que o mel não tem gosto doce
para pessoas saudáveis, ou que ele não tem gosto amargo para os que sofrem de
icterícia; assim, os heraclitianos partem de um preconceito geral sobre o ser humano,
assim como nós e, provavelmente, todos os outros filósofos. Consequentemente, se eles
derivaram sua teoria de que realidades opostas referem-se a uma mesma coisa de uma
das fórmulas céticas, como, por exemplo, da que diz que “todas as coisas são
inapreensíveis” ou “eu nada determino”, ou de alguma expressão similar, talvez
pudessem estabelecer aquilo que dizem; mas, uma vez que seus pontos de partida são
impressões experimentadas não por nós, apenas, mas por todos os outros filósofos e
pessoas comuns, por que alguém declararia que nossa maneira de pensar é uma estrada
para a filosofia heraclítica, mais do que qualquer outra filosofia, ou mesmo do que o
ponto de vista ordinário, uma vez que todos fazem uso do mesmo material em comum
[a experiência humana ordinária, as impressões sensíveis em sua multiplicidade]?
[212] Ao contrário, o fato é que a conduta cética, longe de ser uma ajuda para o
conhecimento da filosofia heraclítica, é, de fato, um obstáculo a ela, uma vez que o
cético condena todas as afirmações dogmáticas de Heráclito como sendo afirmadas
precipitadamente, contradizendo sua conflagração108, e opondo-se a que os contrários
pertencem à mesma coisa, e, diante de cada dogma de Heráclito, escarnecendo de sua
precipitação dogmática, e constantemente repetindo, como eu disse antes, “eu nada

108
ekpyroosei, a conflagração do mundo através da qual tudo se dissolveria no fogo primordial (Bury).

37

apreendo” e “eu nada determino”, o que está em conflito com os heraclitianos. É
absurdo dizer que uma conduta conflitante é uma estrada para o sistema com o qual está
em conflito; portanto, é absurdo dizer que a conduta cética é uma estrada que leva à
filosofia heraclítica.

CAPÍTULO XXX
EM QUE O CAMINHO CÉTICO DIFERE DAQUELA FILOSOFIA
DEMOCRÍTICA
[213] Mas também se diz que a filosofia democrítica tem algo em comum com o
ceticismo, uma vez que parece usar o mesmo material que usamos; pois, do fato de que
o mel parece doce a alguns e amargo a outros, Demócrito, conforme se diz, infere que
ele, na realidade, não é nem doce nem amargo e pronuncia, consequentemente, a
fórmula “não mais”, que é uma fórmula cética. Entretanto, os céticos e a escola de
Demócrito empregam a expressão “não mais” de maneira diferente; pois, enquanto
aqueles a utilizam para expressar a irrealidade de ambas as alternativas, nós
exprimimos, por ela, nossa ignorância no que diz respeito a se ambas, ou cada uma
delas, é real. [214] De sorte que nisso somos diferentes. Mas a distinção mais evidente
aparece quando Demócrito diz “mas, de fato, átomos e vácuo” (pois ele diz “de fato”109
e não “na verdade”110). Parece-me supérfluo dizer que ele difere de nós quando diz que
os átomos e o vazio verdadeiramente existem, embora parta da irregularidade entre as
aparências, é supérfluo, acho eu, defender.

CAPÍTULO XXXI
EM QUE O CETICISMO DIFERE DO CIRENAICISMO
[215] Alguns alegam que a conduta cirenaica é idêntica ao ceticismo, uma vez
que também ela afirma que somente as afecções111 são apreendidas. Mas ela difere do
ceticismo quando diz que o fim é o prazer e a movimentação suave da carne, enquanto
que nós dizemos que o fim é a “tranquilidade”, a qual é o oposto do fim deles; pois
esteja ou não presente o prazer, o homem que afirma que o prazer é o fim sofre
perturbação, conforme sugeri em meu capítulo “Sobre o Fim”112. Além disso, enquanto
realizamos a suspensão no que diz respeito à essência dos objetos externos, os
cirenaicos declaram que estes possuem uma natureza real que é inapreensível.

CAPÍTULO XXXII
EM QUE O CETICISMO DIFERE DA DOUTRINA PROTAGÓRICA
[216] Protágoras também mantém que “o homem é a medida de todas as
realidades, do que existe, que existe, e do que não existe, que não existe”; e por
“medida” ele entende “critério”, e por “realidades”, as coisas, de modo que está
implicitamente afirmando que o homem é o critério de todas as coisas, do fato de que

109
ete-ee
110
aletheia
111
Diz Bury: “mental states”, os estados mentais.
112
Livri I, 25-30.

38

são, para aquelas que são, e do fato de que não são, para aquelas que não são. E,
consequentemente, ele afirma apenas o que aparece para cada indivíduo, introduzindo,
assim, a relatividade. [217] Por esta razão, ele parece ter algo em comum com os
pirrônicos. Porém, difere deles, e percebemos a diferença quando tivermos explicado
exatamente o que pensa Protágoras.
Ele diz que a matéria está em fluxo, e que, porquanto ela escoa continuamente,
ocorrem adições que substituem as partes [que se deslocam], e que a ordem dos sentidos
experimenta modificações e alterações de acordo com os momentos da vida e com as
outras diferentes constituições dos corpos. [218] Ele também diz que as “razões”113 de
todas as aparências subsistem na matéria, de modo que a matéria, na medida que
depende de si mesma, é capaz de ser todas aquelas coisas que aparecem para todos. E os
homens, eles dizem, apreendem diferentes coisas em diferentes momentos, devido às
suas diferentes disposições; pois aquele que está em um estado na matéria114 aquilo que
pode aparecer para quem está em estado natural, e aqueles que estão em estado não-
natural afirmam aquilo que pode aparecer para quem está em um estado não-natural.
[219] Além disso, o mesmo argumento se aplica à idade, e aos estados de sono e vigília,
e para cada um dos muitos tipos de condições. Assim, de acordo com Protágoras, o
homem se torna o critério do que é; pois aquilo que aparece, para o homem, existe, e
aquilo que não aparece para o homem não têm, tampouco, qualquer existência.
Vemos, então, que Protágoras dogmatiza sobre a fluidez da matéria e também
sobre a presença, nela, das razões de todas as aparências, as quais são coisas não-
evidentes diante das quais somos levados à suspensão.

CAPÍTULO XXXIII
EM QUE O CETICISMO DIFERE DA FILOSOFIA ACADÊMICA
[220] Alguns, de fato, dizem que a filosofia acadêmica é idêntica ao ceticismo;
consequentemente, será nossa próxima tarefa discutir esta afirmação.
De acordo com muitos, teriam havido três academias: a primeira e mais antiga é
aquela de Platão e de sua escola; a segunda, ou média Academia, a de Arcesilau, pupilo
de Polemo, e sua escola; a terceira, ou nova Academia, aquela da escola de Carnéades e
Clitômaco. Alguns, entretanto, adicionam uma quarta Academia, aquela da escola de
Filo e Charmidas; alguns até contam a escola de Antíoco como uma quinta. [221]
Começando com a velha Academia, consideramos como as filosofias mencionadas
diferem da nossa.
Platão foi descrito, por alguns, como “dogmático”, por outros, como “aporético”,
e, por outros, ainda, como parcialmente dogmático e parcialmente aporético. Pois, em
seus diálogos de exercício, onde Sócrates é introduzido, ora falando de maneira
brincalhona com seus ouvintes, ora discutindo contra sofistas, ele mostra, dizem, um
caráter exercitante e aporético; mas mostra, também, um caráter dogmático, quando está
falando seriamente, ou pela boca de Sócrates, ou de Timeu, ou de algum personagem
semelhante. [222] Agora, no que diz respeito àqueles que o descrevem como um
dogmático, ou como parcialmente dogmático e parcialmente aporético, seria supérfluo

113
logos, que Pellegrin, aqui, traduz pelo termo francês equivalente a “formas”.
114
hylee

39

dizer qualquer coisa: pois eles mesmos reconhecem sua diferença em relação a nós. A
questão sobre o fato de Platão ser ou não um cético genuíno, nós a discutimos mais
completamente em nossos “Comentários”115; mas, presentemente, em oposição a
Menodotus e Enesidemo, os principais defensores desta visão, declararemos brevemente
que, ao fazer afirmações sobre ideias ou sobre a realidade da providência, ou sobre a
vida virtuosa enquanto à vida viciosa, dando assentimento a essas coisas, Platão
dogmatiza, e se as considera mais prováveis do que improváveis, dando preferência a
uma coisa sobre outra, no que diz respeito à sua plausibilidade, distancia-se, também, da
característica distintiva do cético. Pois é evidente que uma atitude deste tipo é estranha a
nós, tendo em vista o que foi dito acima.
[223] E se Platão realmente faz algumas declarações à maneira cética, quando
está, como se diz, promovendo um exercício, isso não o torna um cético; pois o homem
que dogmatiza sobre uma única coisa, ou até prefere uma impressão a alguma outra, no
que diz respeito à sua credibilidade ou incredibilidade, ou faz qualquer afirmativa a
respeito de qualquer coisa não-evidente, assume o caráter dogmático, assim como
demonstra Tímom através de suas observações sobre Xenófanes. [224] Pois, após
elogiá-lo repetidas vezes, de modo que até dedicou-lhes suas Sátiras, ele repreentou-o
como proferindo a seguinte lamentação:
Ah, que eu também pudesse participar do pensamento perspicaz,
Para ambos os lados lançando o olhar; mas o caminho traiçoeiro
enganou-me,
Por velho que eu fosse, privado de toda
Investigação. Pois, qualquer a direção a que eu voltasse meu espírito,
Tudo se resolvia em um todo único e idêntico. E tudo existe sempre
Em uma natureza autoidêntica onde, então, se detém.

Assim, ele também o chama de “semi-modesto”, e não de perfeitamente modesto,


dizendo:

Xenófanes, semi-modesto, desvendador dos logros de Homero,


Que forjou um deus separado dos homens, a si mesmo igual em tudo,
Imóvel, impassível, mais espiritual que o espírito.

Chamou-o “semi-modesto” no sentido de ser livre de vaidade parcialmente, e


“desvendador dos logros de Homero” pois censurou os erros na obra de Homero. [225]
Xenófanes, ao contrário dos preconceitos dos outros homens, afirmava dogmaticamente
que tudo é um, e que o deus se confunde com todas as coisas, e é esférico, impassível,
imutável e racional. Por isso, é fácil mostrar como Xenófanes difere de nós. Entretanto,
está claro, a partir do que foi dito, que mesmo que Platão seja aporético no que diz
respeito a algumas questões, ele não pode, ainda assim, ser um cético, uma vez que,

115
Os cinco livros Contra os Dogmáticos (Bury).

40

certas vezes, faz afirmativas sobre a realidade de objetos não-evidentes, preferindo uma
coisa não-evidente a alguma outra, e achando-as umas mais dignas de confiança que
outras.
[226] Os aderentes da nova Academia, embora afirmem que todas as coisas são
inapreensíveis, ainda diferem dos céticos, sem dúvida nenhuma, e justamente no que
dizem que todas as coisas são inapreensíveis, pois afirmam isto positivamente, enquanto
que o cético se limita a achar possível que tais e tais sejam inapreensíveis; e ainda
diferem de nós tão claramente devido à sua distinção entre o que é bom e o que é mal.
Pois os acadêmicos não descrevem uma coisa como boa ou má da mesma maneira que
fazemos, mas a convicção de que é mais plausível que o que eles chamam de bom seja
realmente bom, e não o contrário, e o mesmo no caso do mal, enquanto que, quando
descrevemos uma coisa como boa ou má, não o alegamos como uma opinião de que o
que afirmamos é provável, mas, sem opiniões, nos conformamos à vida e seguimos suas
regras não-dogmaticamente, de modo a não ficarmos impossibilitados de agir. [227] E,
no que diz respeito às impressões sensíveis, podemos dizer que são iguais, quanto à sua
capacidade ou incapacidade de proporcionar convicção, no que depende do pensamento,
enquanto que eles afirmam que algumas impressões são plausíveis e, outras,
implausíveis.
E, entre impressões plausíveis, eles fazem distinções: algumas, veem como
simplesmente prováveis, outras, como prováveis e examinadas, e, outras, como
prováveis, examinadas e indubitáveis. Por exemplo, quando uma corda está enrolada
dentre de um quarto escuro, para aquele que entre no quarto apressadamente, a corda
pode apresentar a aparência simplesmente plausível de que é uma serpente. [228] Mas
para o homem que olhou cuidadosamente ao redor de si, e investigou as condições, tais
como a imobilidade da coisa e sua colocação, e cada uma de suas outras peculiaridades,
a coisa aparecerá como uma corda, de acordo com uma impressão que é plausível e
examinada. E a impressão que é, além disso, indubitável ou incontroversa é assim:
conta-se que, quando Alceste morreu, Heracles, trouxe-a de volta do Hades e mostrou-a
a Admeto, que recebeu uma impressão de Alceste que era simplesmente plausível.
Entretanto, como Admeto sabia que ela estava morta, seu pensamento recuou diante do
assentimento e desviou-se para a ausência de convicção. [229] Assim, os filósofos da
nova Academia preferem a impressão plausível e examinada diversas vezes à impressão
simplesmente plausível e, às duas, preferem a impressão que é plausível, examinada
diversas vezes e indubitável.
E embora tanto os Acadêmicos quanto os céticos afirmem estar persuadidos de
certas coisas, a diferença entre as duas filosofias não é menos óbvia. [230] Pois “estar
persuadido” tem diferentes significados: significa, por um lado, não resistir, mas
simplesmente seguir sem nenhuma inclinação forte, como se diz que o garoto é
persuadido pelo seu tutor; mas, algumas vezes, significa assentir a uma coisa devido a
uma vontade clara de fazê-lo e com um tipo de simpatia, como quando o homem
incontinente acredita naquele que aprova um modo de vida extravagante. Uma vez,
portanto, que Carnéades e Clitômaco tenham declarado que são persuadidos por uma
forte inclinação e que qualquer coisa pode ser plausível, enquanto que nós mesmos
dizemos que nossa crença é uma questão de simplesmente ceder sem inclinação, há,
também aqui, uma diferença entre nós e os acadêmicos.

41

[231] Além disso, no que diz respeito ao fim ou objetivo da vida, também
diferimos da nova Academia; pois, enquanto os homens afirmam conformar-se a esta
recorrem ao plausível ao longo de sua vida, nós vivemos de maneira não-dogmática
seguindo as leis, os costumes e nossas afecções naturais. E poderíamos dizer mais ainda
sobre esta distinção se não estivéssemos buscando concisão.
[232] Arcesilau, entretanto, que era, como se sabe, líder e fundador da média
Academia, certamente parece-me ter compartilhado das doutrinas de Pirro, de modo que
sua conduta é quase idêntica à nossa. Pois não o encontramos fazendo qualquer asserção
sobre a realidade ou irrealidade de nada, e nem tampouco ele prefere qualquer coisa a
qualquer outra com base na convicção ou na falta dela, mas, a respeito de tudo,
suspende o juízo. Ele também declara que o fim é a suspensão, à qual se segue,
conforme dissemos, a tranquilidade. [233] Ele declara, também, que a suspensão a
respeito do que é particular é boa, mas que o assentimento ao que é particular é ruim.
Deve-se dizer apenas que, enquanto fazemos estas declarações apenas de acordo com o
que nos aparece, sem nada afirmar, ele as faz como afirmações a respeito da natureza
das coisas, de modo que afirma que a suspensão é, em si mesma, realmente boa, e, o
assentimento, ruim. [234] E, se fôssemos dar crédito ao que é dito sobre ele, à primeira
vista, parece ser um pirrônico, mas era, no fundo, um dogmático. E, por que costumava
testar seus companheiros através da dúvida, para ver se eram naturalmente aptos à
recepção de dogmas platônicos, pensava-se que era um filósofo aporético, mas, na
realidade, passava, para seus companheiros naturalmente dotados, os dogmas de Platão.
E era por isso que Ariston116 o descrevia assim: “Platão na frente, Pirro no fim e, no
meio, Diodoro”117; pois ele empregava a dialética de Diodoro, embora fosse, na
verdade, um platônico.
[235] Os seguidores de Filo afirmam que as coisas são inapreensíveis do ponto
de vista do critério estóico, quer dizer, da “impressão cognitiva”, mas são apreensíveis
na medida que consideramos sua natureza real. Além disso, Antíoco introduziu o
estoicismo na Academia, e se dizia dele, de fato, que “na Academia, ensinava a filosofia
Estóica”; pois tentava mostrar que os dogmas dos Estóicos já estavam presentes em
Platão. De modo que é evidente como a conduta cética difere daquilo que se chama de
quarta Academia, e também de quinta.

CAPÍTULO XXXIV
SE O EMPIRISMO MÉDICO É A MESMA COISA QUE O CETICISMO
[236] Uma vez que alguns afirmam que a filosofia cética é idêntica ao empirismo da
escola médica118, deve ser dito que, a despeito do fato de que o empirismo
positivamente afirma a inapreensibilidade do que é não-evidente, ele não é idêntico ao
ceticismo, e tampouco seria consistente, para um cético, abraçar esta doutrina. Em
minha opinião, ele poderia, mais facilmente, adotar o assim-chamado “método”. [237]

116
Aluno de Zenão e fundador da escola estóica e filósofo mais influente na Atenas de seu tempo (Bury).
117
Professor de Zenão e Arcesilau (Bury).
118
As escolas tardias de medicina eram as seguintes: (1) a escola dogmática ou lógica, que teorizava
sobre as causas “não-evidentes” da saúde e da doença; (2) a empírica, que via tais causas como
impossíveis de serem descobertas e limitavam-se à observação de fatos evidentes; (3) a metódica, que
adotava uma posição intermediária, recusando-se tanto a afirmar quanto a negar causas “não-evidentes”
(Bury).

42

Entre os sistemas médicos, somente a escola metodista parece evitar a precipitação a
respeito das coisas não-evidentes, por não pretender fazer asserções a respeito da
apreensibilidade ou inapreensibilidade delas, mas seguindo as aparências, quer apenas
derivar delas o que parece benéfico, de acordo com a prática dos céticos. Pois
afirmamos acima que a vida comum, da qual o cético também compartilha, tem quatro
partes, uma dependendo da força direcionadora da natureza, uma outra dependendo da
compulsão das afecções, uma outra da tradição das leis e costumes, e uma outra do
aprendizado nas artes. [238] Desta maneira, assim como o cético, em virtude da
compulsão das afecções, é guiado pela sede por bebida e a fome por comida e, de
maneira semelhante, em outros casos, o médico metodista é guiado pelas afecções
patológicas para os remédios correspondentes: por exemplo, da contração à dilatação –
como quando procuramos, no calor, refúgio de uma contração que foi produzida pelo
frio – ou da fluxão à sua interrupção – como aqueles que, estando em um banho quente,
relaxados e cobertos de suor, para interromper a transpiração, correm para o ar fresco. É
evidente, também, que as condições que são naturalmente estranhas nos compelem a
tomar medidas para sua supressão, uma vez que até o cachorro, quando é espetado por
um espinho, tenta removê-lo. [239] E, para evitar transpor os limites próprios a um
esboço como a presente obra, falando de casos particulares, suponho que todos os fatos
descritos pela escola metodista podem ser classificados como exemplos da compulsão
ou necessidade das afecções naturais.
Além disso, a utilização de termos em um sentido não-dogmático e
indeterminado é comum a ambas as condutas [a cética e a metódica]. [240] Pois, assim
como o cético usa as expressões “eu nada determino” e “eu nada apreendo”, como
dissemos, em um sentido não-dogmático, o metodista fala de “comunidade” e
“invasão”, e de termos semelhantes, sem buscar mais além. Ele também emprega o
termo “indicação” em um sentido não-dogmático, para denotar o fato de se ser guiado
pelas afecções, tanto naturais quanto não-naturais, para proceder em direção àquilo que
lhes corresponde – conforme sugeri a respeito da fome, da sede e de outras afecções.
[241] Julgando por estas indicações e outras similares, deveríamos dizer que a
escola metódica de medicina tem alguma afinidade com o ceticismo; e que, quando
vista não apenas em si mesma, mas em comparação com as outras escolas médicas, tem
mais afinidades com o ceticismo do que elas.
E, agora que já dissemos isto a respeito das escolas que parecem estar mais
próximas da conduta cética, chegamos, aqui, à conclusão, tanto da exposição geral119
sobre o ceticismo, quanto do primeiro livro de nosso esboço.


119
Ver livro I, capítulo II.

43

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