Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Walter O. Kohan1
Tremo cada vez que escrevo sobre a infância. A preposição que antecede à
infância o diz tudo: a língua chama a escrever de cima para baixo. A sensação de
cegueira abismal é persistente, incontrolável. É precisa muita ousadia para escrever,
aliada à cega quebra de um respeito tal que nos parece projetar para além do humano.
Talvez esses sentimentos surjam por que, como sugere Lyotard no epigrafe, a infância é
uma dimensão para além do humano, que nos remete ao outro inumano. Assim, a tarefa
da escrever a infância constitui um ato político, uma manifestação de resistência:
testemunhar o esquecimento do outro do humano, da infância. Não anima este trabalho
qualquer pretensão de reunir esses autores, mas apenas a sugestão de quatro linhas,
diferentes mas igualmente potentes, para pensar a infância em nossos dias.
Hybris
Os gregos antigos diziam uma palavra que se aproxima desse sentimento perante
a escrita acerca da (essa preposição é menos ruim do que “sobre”, nomeia um “dar
voltas”, “em torno de”) infância: hybris. Ela designa o excesso ou desmesura dos
humanos, a violência que põem em ato quando pretendem competir com a divindade.
Escrever sobre a infância é uma espécie de hybris, um ato desmedido, insolente, não
particularmente por que a infância diga respeito às crianças, os pequenos, os que estão
1
Professor Titular de Filosofia da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Pesquisador do CNPq e do Programa Prô-Ciencia (UERJ/FAPERJ).
2
J.-F. Lyotard. “Palabras preliminares”. In: Lo inhumano. Buenos Aires: Manantial, 1998, p. 14-5.
se iniciando na palavra; também não por que ela seja ausência de palavra, mas sim e,
sobretudo, diria J.-F. Lyotard, por que ela é testemunho de um esquecimento inicial do
inumano que nos constitui para poder instalarmo-nos na comunidade da língua. Com
efeito, a infância não é apenas ausência de palavra, mas a palavra que não pode ser dita,
um resto de palavra indizível que habita toda palavra dita. Um fundo esquecido, e cujo
esquecimento foi essencial para que a palavra pudesse ser dita. Assim, soltar ao mundo
palavras sobre a infância é se entremeter com o que torna a própria palavra, toda e
qualquer palavra, dizível e, ao mesmo tempo, não pode ser dito por ela.
Não deve ler-se esse esquecimento desde a perspectiva do bem e do mal.
Estamos num plano ontológico, quase transcendental, do que nos constitui como seres
humanos, um plano que diz o próprio das condições que tornam possível a humanidade
dos seres que falamos. Também aquela hybris que rompe o silêncio não deve ser
percebida com a lógica do bem e do mal: estamos ali situados num universo grego,
trágico, estético, político, prévio ao moralismo da religião cristã. Nesse contexto, a
hybris é também o que permite a exploração e a perturbação dos limites do humano, o
que dá sentido a uma vida, como na própria Tragédia. Edipo e Medeia são bons
exemplos dessa hybris: matar o pai e desposar a mãe, ou matar os próprios filhos para
castigar o amante infiel são ações que exploram os limites de uma vida humana que já
não pode mais ser vivida como tal. A questão, repito, não é se é bom ou ruim fazer o
que um herói (!) trágico faz, mas explorar os limites de uma vida vivível (ou já não mais
vivível) para um ser humano.
Assim, escrever sobre a infância é também uma oportunidade para explorar os
limites das palavras pronunciados em torno da infância mais literal e que têm um efeito
silenciador sobre a outra infância, a mais constitutiva. Nesse sentido, se ainda encontro
sentido em escrever sobre a infância, é na tentativa de encontrar palavras que
denunciem esse esquecimento das palavras mais habituais, dos modos em que
descrevemos a infância mais literal, a maneira como a sabemos, e o lugar que (não)
propiciamos para a (outra) infância, em particular, em nossas instituições educacionais.
A tentativa é de que as palavras mostrem esse fundo inexplorado e impensado dos
discursos que dizem conhecer a infância. Assim, se ainda consigo vencer esse silêncio
sublime que merece a infância é no intuito de afirmar palavras que explorem e afirmem
essa outra infância invisível e, a partir dessa nova visibilidade, encontrar um novo lugar
para a infância, a infância de um novo lugar.
Vamos a proceder através de quatro interlocuções que afirmam outras tantas
infâncias e põem em questão diversas dimensões da infância escolarizada. A primeira,
com Sócrates, chama a uma infância que aparece como língua da verdade, mas também
como língua de abertura para a morte; a segunda, com Rainer M. Rilke chama a
explorar implicações pedagógicas da afinidade entre infância e arte, vistas desde a
lógica de um artista; o terceiro, com Gilles Deleuze, propõe uma infância afirmativa, na
forma de um conceito a-subjetivo, a-pessoal, afastado em certo modo da cronologia da
infância, das crianças; finalmente, J.-F. Lyotard tira completamente a infância do seu
lugar até o encontro com o inumano.
Arte
3
R. M. Rilke. Cartas do poeta sobre a vida. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 123.
A justiça pairava sobre elas”.4 O mundo infantil é não apenas infinitamente mais intenso
e esplendoroso que o mundo adulto, mas também infinitamente mais justo. A infância é
verdade, diz Sócrates; a infância é justiça, diz Rilke. Os problemas, sugere o poeta
tcheco que escreveu sobre tudo em alemão e francês, começam com as pretensões
educacionais dos genitores: “Os pais jamais deveriam querer nos ensinar a vida, pois
eles nos ensinam a vida deles.”5 Fazem isso, agrega, por que partem do pressuposto
errado de se considerarem superiores à criança sem perceber que o gênio dos grandes
seres humanos foi justamente serem iguais que as crianças e aprenderem delas. Em vez
de dar espaço à potência de uma vida, os pais querem que uma vida, a sua, seja
reproduzida.
Em se oponde a essa atitude, Rilke traça os princípios de uma educação escolar
que merecesse o nome: “Cada pessoa deveria ser conduzida apenas até o ponto em que
é capaz de pensar sozinha, trabalhar sozinha, aprender sozinha.”6 ou seja a escola
deveria estar menos preocupada em ensinar coisas aos outros do que em ajudar a
encontrar o lugar onde o pensar do outro possa se fortalecer a si próprio, para que possa
aprender por si o que ninguém pode lhe ensinar; a escola deveria estar mais atenta a
deixar que a infância se faça a si própria em vez de pretender fazer da infância algo pré-
determinado, diferente do que ela é.
Contudo, as contribuições mais interessantes chegam na hora de relacionar
escola e vida. Alguém poderia pensar que estamos perante um anti-escolista, a favor da
abolição das instituições, mas não: “Por mais estranho que isso possa soar nas
circunstâncias atuais, na escola a vida deve se transformar; pois se há um lugar em que
ela deveria se tornar mais vasta, profunda, humana, esse lugar tem de ser a escola.” De
forma tal que a crítica do que se faz na escola aponta a um se fazer de outro modo, a um
dar lugar a uma “outra” escola. Ainda mais interessante é a continuação: “Mais tarde,
ela [a escola] se enrijece rapidamente em profissões e destino, não tem mais tempo de
mudar, tem de atuar como é. Na escola, porém, há tempo e silencio e espaço; tempo
para todo desenvolvimento, silencio para toda voz, espaço para a vida inteira e todos
seus valores e coisas.”7. Segundo o poeta, então, o tempo e o espaço e a própria
possibilidade da palavra e do silencio são diferentes na escola infantil e na escola
adolescente, juvenil. Se nesta as determinações exteriores parecem condicionar ao limite
4
Ibid, p. 125.
5
Ibid, p. 126 (itálico do autor).
6
Ibid, ibidem.
7
Ibid, p. 128.
o que é possível fazer e pensar, o tempo e o espaço da primeira infância parecem, ao
contrário, infinitos.
Entre alguns filósofos de nosso tempo, renasce essa hybris infantil, curiosamente
naquelas filosofias que dão lugar ao que chamou-se de descentramento ou perda do
sujeito. De maneira tal que a infância afaste-se das crianças. G. Deleuze, por exemplo,
propus uma noção impessoal, a-subjetiva, que chamou, dentre outros nomes, de devir-
criança e também de bloco de infância. O devir-criança, que Deleuze continuamente
ilustra como funciona em figuras literárias, opera como um espaço de transformação,
revolucionário. Não há idade para entrar nele, mas intensidades e fluxos a habitar em
qualquer idade. São as linhas de fuga, os quebres, as perturbações ao estado de coisas
por parte daquilo que não pode se acomodar e ser engolido pelo sistema; movimentos
dissimiles, mudanças de ritmo, segmentos que interrompem a lógica de um mundo sem
espaço para a infância, e que traçam rotas e trajetos num plano de imanência.
O devir-criança é também uma máquina de guerra contra o Estado e as
instituições do mundo adulto. Ele é um espaço e um tempo de resistência,
revolucionário: circula numa outra temporalidade que a habitada pela infância
cronológica. O devir-criança não sabe de modelos, totalizações, normativas. É uma
força de encontro que abre espaço a um mundo novo, ainda inabitado.
Qual é o tempo do devir criança? Voltemos mais uma vez aos gregos. Em grego
clássico há várias palavras para dizer o tempo. A mais conhecida é khrónos, a
continuidade de um tempo sucessivo. Aristóteles define khrónos como “o número do
movimento segundo o antes e o depois” (Física IV, 220a); O tempo é, nesta concepção,
quantidade; há mais ou menos tempo; falta mais ou menos tempo; temos mais ou menos
tempo: a totalidade do tempo é a soma do passado e do futuro, sendo o presente um
8
G. Deleuze; F. Guattari. Mil Platôs. Vol. IV. São Paulo: Editora 34, p. 92.
limite entre o que já foi e não é mais (o passado) e o que ainda não foi e, portanto,
também não é mas será (o futuro).
Outra palavra é kairós, que significa ‘medida’, ‘proporção’, e, em relação com o
tempo, ‘momento crítico’, ‘temporada’, ‘oportunidade’.9 Se khrónos é a quantidade de
tempo, kairós é sua oportunidade: este momento e não aquele outro, como no ditado
popular que diz que “a sorte não bate duas vezes na mesma porta”. Uma terceira palavra
é aión que designa, já em seus usos mais antigos, a intensidade do tempo da vida
humana, um destino, uma duração, uma temporalidade não numerável nem sucessiva,
intensiva, qualitativa10. É o tempo da experiência e do acontecimento.
O inumano da infância
Com as crianças é como com os mortos, sempre. Uns e outros são dois aspectos do que,
na própria tradição, pode fazer apelo ao intransmissível.11
20
Ibid, p. 83-4.
21
Ibid, p. 86.
Eis quatro linhas para pensar a infância. Sócrates coloca a infância no reino de
uma verdade tão estrangeira quanto inaudível. Rilke reforça esse lugar, identifica arte e
infância, e oferece uma visão crítica das instituições educacionais. Deleuze e Lyotard
trabalham, de forma diversa, a infância não apenas para além do sujeito, mas para além
da vida em khrónos. Instauram assim a infância numa outra temporalidade. Em certa
forma, se existe uma ligação entre as quatro linhas, trata-se de uma ligação política: as
quatro leituras da infância são modos de resistência ao totalitarismo.
Paramos por aqui. Mais uma vez: não é fácil. Ainda doem as palavras, mesmo
que a proximidade do fim alivie a dor. Doe também a quebra do silêncio provocada.
Sentimos o peso de uma certa hybris, menor, tênue, discreta, mas finalmente igualmente
hybris. Se algum leitor do texto encontra nele inspiração para colocar em questão sua
relação com a infância e os lugares que dispõe para ela, a hybris, pelo menos, encontrará
novos sentidos para continuar a impulsionar a escrita. Que será escrita infantil e já não
mais escrita sobre a infância.
Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. Física. Trad. Cast. Alejandro Vigo. Libros III-IV, Buenos Aires,
Biblos, 2001.
RILKE, Rainer Maria. Cartas do poeta sobre a vida. São Paulo: Martins Fontes, 2007.