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IRAILDES CALDAS TORRES

ROONEY AUGUSTO VASCONCELOS BARROS

DIOGO GONZAGA TORRES NETO


(Org.)

EPIFANIAS DA

AMAZÔNIA

Relações de Poder, Trabalho e Práticas Sociais

1ª. Edição

2016
EPIFANIAS DA
AMAZÔNIA

Relações de Poder, Trabalho e Práticas Sociais

Iraildes Caldas Torres


Valdenei de Souza Santos
Alexsandro Melo Medeiros
Kelem Rodrigues de Melo Pontes
Celso Augusto Torres do Nascimento
Jocifran Ramos Martins
João Marinho da Rocha
Jéssica Dayse Matos Gomes
Deilson do Carmo Trindade
Rooney Augusto Vasconcelos Barros
Naia Maria Guerreiro Dias
Rosimay Corrêa
Christiane Pereira Rodrigues
Diogo Gonzaga Torres Neto

1ª. Edição

2016
EPIFANIAS DA AMAZÔNIA: Relações de poder, trabalho e práticas sociais.
1ª. Edição, 2016
Iraildes Caldas Torres, Rooney Augusto Vasconcelos Barros, Diogo G.
Torres Neto (Org.),
Este livro foi aprovado e recomendado pela Review of Research ISSN
2249-894X
Mediante o seguinte corpo editorial.
Editorial Board Dr. Ashok Yakkaldevi Dr. Shrikant Yelegaonkar
Dept of Sociology Associate Professor,
A.R.Burla Womens Social College of Arts and
College,Solapur, India. Commerce, Solapur, India

Dr. Ujjwala Sadawarte Dr. Mario Carrassi


Principal, Vivek Verdini Ph.d , Associate of Business
Adhyapika Administration(Economia
Mahavidyalaya,Nanded, Aziendale) SECS P/07,Italy.
India.

Dr. Ludmilla Smirnova Dr. V.V Kulkarni


Dept.of Education. AssociateProfessor, Social
Mount Saint Mary College Science Center
New York, USA. BhartiVidyapeeth, Pune.

Dr. Zhenjiang SHEN. Dr. Tanaji Kolekar


Full Professor,Urban and Assistant Professor in D.B.F.
Regional Planning. School Dayanand College of Arts
of Environmental Design, and Science, Solapur, India.
Kanazawa University,
Japan.
Contact No. : +91 9595 359 435

Website :http://www.isrj.org

Email ID :ayisrj@yahoo.in

General Editor: Dr. Ashok Yakkaldevi


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Laxmi Book Publication (Solapur-Índia) & Lulu Books (USA)
TORRES, Iraildes Caldas (Org.);BARROS, Rooney Augusto Vasconcelos (Org.);
TORRES NETO, Diogo Gonzaga (Org.)
Epifanias da Amazônia: Relações de Poder, Trabalho e Práticas Sociais. 1ª
Edição. Solapur (India) & Lulu Books (USA): 2016.
Bibliografia.
ISBN: 978-1-365-47326-5
1. Sociedade, 2. Cultura, 3. Amazônia, 4. Pensamento Social, 5.
Manifestações
I. Livro. II. 1ª. Edição
Capa: O Guaraná: Fotografia de Günter Engels, In Impressões da Amazônia
(CD-ROM).

Registro: Biblioteca Nacional No.360.916 Livro: 667 Folha 76, Rio de


Janeiro, 2005. Usado com permissão.

O conteúdo expresso em cada capítulo é de responsabilidade de seus


respectivos autores e sua liberdade de expressão.
AGRADECIMENTOS

Aos professores, amigos e colegas do Curso de Pós-


Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade
Federal do Amazonas – UFAM.
Aos colegas e profissionais de excelência que
tornaram essa publicação possível, a saber: Iraildes Caldas
Torres, Valdenei de Souza Santos, Alexsandro Melo Medeiros;
Kelem Rodrigues de Melo Pontes; Celso Augusto Torres do
Nascimento; Jocifran Ramos Martins; João Marinho da Rocha;
Jéssica Dayse Matos Gomes; Deilson do Carmo Trindade; Rooney
A. Vasconcelos Barros; Naia Maria Guerreiro Dias; Rosimay
Corrêa, Christiane Pereira Rodrigues.
Aos professores orientadores que subscrevem nossos
passos como a organizadora Dra.Iraildes Caldas Torres; Dr.
Alexandre Santos de Oliveira; Dr. Nelson Matos de Noronha;
Marilene Corrêa da Silva Freitas; Dr. João Luiz da Costa Barros;
Dra. Renilda Aparecida Costa; Dr. Renan Albuquerque Rodrigues;
Dra. Artemis de Araújo Soares; e Dra. Elenise Faria Scherer.
A todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuem
para o nosso sucesso.

Os organizadores
Aventurar-se nas sendas das relações sociais da
Amazônia e das manifestações simbólicas de seu povo, para
desenvolver pesquisa, constitui-se num dos mais nobres desafios.
Isto porque estamos vivendo um tempo contemporâneo
inovador na medida em que novos temas de pesquisa emergem
na região e novos pesquisadores surgem, com um olhar
singularizante que vê os processos socioculturais por dentro da
configuração regional e das experiências dos povos autóctones.
O Programa de Pós-graduação Sociedade e Cultura na
Amazônia da Universidade Federal do Amazonas, em nível de
mestrado e doutorado, reúne um esforço cientifico-institucional
voltado para a formação de recursos humanos que venham
contribuir para o desenvolvimento regional, nacional e mundial,
com base na investigação cientifica. O programa assume o
compromisso engajado de promover e realizar pesquisas
concentradas nos processos socioculturais da Amazônia, cujo
legado de capital simbólico é de imensurável valor e riqueza.
Esta coletânea Epifanias da Amazônia organizada pela
professora Iraildes Caldas Torres e pelos doutorandos Diogo
Gonzaga Torres Neto e Rooney Augusto Vasconcelos Barros
assenta-se num dos propósitos centrais da pós-graduação no que
diz respeito à divulgação das pesquisas, desenvolvidas neste
Programa e situadas nas temáticas amazônicas em diferentes
matizes. Trata-se de um temário diversificado que reabilita
experiências, tradição, oralidade, literatura, aspectos míticos da
sexualidade, territorialidade e arqueologia, práticas de trabalho,
relações de poder coronelistas, expressões quilombolas, as
relações de gênero e o trabalho das mulheres na Amazônia.
A primeira seção traz o temário das epifanias míticas e
das relações de poder, num diálogo primoroso entre os saberes
tradicionais e o conhecimento ocidental. Iraildes Caldas Torres e
Diogo Gonzaga Torres Neto apresentam a bebida mítica do sakpó
como um elemento feminino presente na contextura da etnia
Sateré-Mawé, lugar epifânico das relações de gênero advindas da
matriz ancestral deste povo, numa reabilitação discursiva e
interpretativa de sua tradição. Valdenei de Souza Santos e
Alexandre Santos de Oliveira discutem a expressão da
sexualidade das mulheres da várzea amazônica, tendo por base o
mito do boto, animal aquático, que transforma-se num rapaz
garboso para enfeitiçar as moças e engravidá-las em noite de lua
cheia.
Alexandro Melo Medeiros e Nelson Matos de Noronha
reabrem o debate sobre o coronelismo e as relações de poder
exacerbadas na Amazônia, encarnadas na figura do coronel de
barranco, jocosamente identificado na região no campo do
mandonismo. Nesta mesma perspectiva das relações
assimétricas de poder, Kelem Rodrigues de Melo Pontes e
Iraildes Caldas Torres, trazem o tema da violência praticada
contra a mulher na cidade de Parintins, no Amazonas. Expõem o
poder da dominação masculina no âmbito da relação conjugal,
sem deixar de reconhecer que se trata de uma dominação mais
ampla no plano da sociedade capitalista e patriarcal.
Celso Augusto Torres do Nascimento e Marilene Corrêa
da Silva Freitas, trazem a discussão inovadora sobre a
etnociência e os saberes tradicionais no trabalho agrícola,
mostrando que é possível o diálogo de ecologia de saberes no
processo da economia solidária que se apresenta, atualmente,
como uma perspectiva viável de geração de renda aos
trabalhadores do campo e da agricultura familiar.
A segunda seção sobre epifanias identitárias reacende o
debate sobre as identidades, colocando em evidência o modo de
ser e estar no mundo de segmentos sociais vulnerabilizados.
Jocifran Ramos Batista e João Luiz da Costa Barros, abrem o
debate indagando sobre a identidade do povo parintinense , o
habitante de Parintins, no Amazonas. Discutem o sujeito na
perspectiva de Foucault, apontando a necessidade de sua
afirmação identitária.
Joao Marinho da Rocha e Marilene Corrêa da Silva Freitas
discutem a identidade quilombola numa comunidade
afrodescendente, reconhecida como terra de quilombo,
localizada no rio Andirá, no Amazonas. Evidenciam o aspecto de
resistência política e os processos socioculturais de pertença e
valorização étnico-racial. Nesta mesma direção Jéssica Dayse
Matos Gomes e Renilda Aparecida Costa, analisam a presença
negra no Amazonas e o papel social de negros em toadas de boi-
bumbá, festa folclórica que exalta a cultura popular.
Naia Maria Guerreiro Dias e Renan Albuquerque
Rodrigues expõem o tema do turismo arqueológico,
apresentando o contexto sócio histórico, econômico e cultural da
Comunidade São Paulo de Valéria, localizada no Amazonas, a qual
encontra-se assentada num sítio arqueológico e atualmente
confecciona artesanato para fins de comercialização com base na
reprodução de objetos arqueológicos.
A última seção sobre as epifanias laborais apresenta as
discussões sobre o trabalho e as condições de trabalho na
Amazonia, chamando a atenção para o aspecto das relações de
gênero nesta última fronteira agrícola. Rooney Augusto
Vasconcelos Barros, Artemis de Araújo Soares e Iraildes Caldas
Torres, apresentam as práticas sociais de trabalho das mulheres
da Comunidade Nossa Senhora de Nazaré, localizada no
Amazonas, mostrando que são elas os sujeitos centrais na
organização do trabalho em suas famílias e comunidade. São
mulheres corpos de trabalho que lutam pela sobrevivência com
racionalidade estratégica e determinação organizativa.
Deilson do Carmo Trindade e Iraildes Caldas Torres,
discutem a expressão do trabalho no galpão do boi-bumbá, em
Parintins, no Amazonas, mostrando a precariedade das relações
de trabalho e os prejuízos para a saúde dos trabalhadores. Nesta
mesma linha Rosimay Correa e Iraildes Caldas Torres, analisam a
expressão do trabalho desenvolvido por ocasião da festa de São
Miguel na Comunidade Paranapanema, localizada em Parintins,
no Amazonas. Expõem os aspectos sociais e simbólicos do
trabalho, apontando o significado religioso que entrelaça este
tipo de trabalho.
Christiane Pereira Rodrigues e Elenise Faria Scherer,
chamam a atenção para a invisibilidade do trabalho das mulheres
pescadoras de camarão numa comunidade, no Amazonas,
pontuando a divisão sexual do trabalho e os aspectos das
relações de gênero no que diz respeito `a dominação neste tipo
de atividade laboral.
Por fim, reafirmo a importância desta coletânea para
todos aqueles que desejam conhecer a Amazonia e seus
processos socioculturais. Há, aqui, uma mostra significativa
destes processos e suas manifestações simbólicas.

Setembro de 2016
Artemis de Araújo Soares
Professora Associada da Universidade
Federal do Amazonas
Sumário

01. SAKPÓ: UMA DIMENSÃO FEMININA NA AMAZÔNIA 2

O ENCANTO DO BOTO: A sexualidade das mulheres das


02 17
várzeas amazônicas

03. CORONELISMO & AS RELAÇÕES DE PODER NA AMAZÔNIA 31

VIOLÊNCIA GERACIONAL & PERVERSIDADE DOMÉSTICA:


04. 50
Quebrando o silêncio na Amazônia

A ETNOCIÊNCIA: & OS SABERES TRADICIONAIS AGRÍCOLAS NA


05. 68
AMAZÔNIA

06. AGORA QUEM FALA SOU EU, PARINTINENSE 83

“NÓS TEMOS AGORA OUTROS VALORES”


07 Ressemantização e emergência étnica quilombola do Rio 103
Andirá, Barreirinha – AM.

PRESENÇA NEGRA: Sociologia das emergências nas toadas de


08 124
boi bumbá na Amazônia

09 TURISMO EM ÁREAS ARQUEOLÓGICAS NA AMAZÔNIA 139

10 CORPOS INVISÍVEIS 153

UM OLHAR INTERPRETATIVO: o trabalho e o trabalhador dos


11 164
galpões de Boi-Bumbá de Parintins

TRABALHO E LABOR A FESTA DE SÃO MIGUEL EM PARINTINS,


12 181
AMAZONAS

MULHERES INVISÍVEIS: O trabalho das pescadoras de camarão


13 200
no baixo amazonas
I
EPIFANIAS MÍTICAS
& DAS RELAÇÕES DE PODER

1
Dra. Iraildes Caldas Torres 1
M.sC. Diogo Gonzaga Torres Neto 2

Este estudotraz o tema da


mulher indígena estabelecendo um
recorte sobre a expressão do feminino
no âmbito da cultura sateré-mawé.
Trata-se de uma presença protagônica
tecida por dentro da sociabilidade e das
relações internas de pertença
identitária, de um povo que se
Figura 1 - Cuia Sagrada contendo o reconhece tributário da potência de uma
Sakpó feita pela etnia Saterés-
Mawé.
mulher.
Fonte : a autora

1Doutora em Ciências Sociais e Antropologia pela Pontífice Universidade Católica


de São Paulo. Professora e Pesquisadora da Universidade Federal do Amazonas –
UFAM. Email iraildes.caldas@gmail.com
2Doutorando e Pesquisador junto ao Programa de Pós-graduação em Sociedade e
Cultura na Amazônia – PPGSCA. Graduado em Administração, Filosofia.
Especialização em Projeto Kantiano da Crítica (UFAM), Metodologia do Ensino
em Filosofia e Sociologia (FAEL/EADCON), Mestre em Ciências do Ambiente e
Sustentabilidade na Amazônia.

2
O que ressoa na potência atribuída à mulher mawé não é de
matriz biológica, uterina, é peremptoriamente, da ordem de uma
força ontológica que originariamente vem dela, converge nela, e
volta para ela. Isto conduz à ideia de que é o feminino que emerge
com um rico potencial de significação nesta etnia, aquilo que se
acredita ser uma aura ancestral que tece o tapete da sociabilidade
mawé.
Esta pesquisa de base dialogizante tem o propósito de
desviar o olhar das conceptualizações da ciência moderna, para
escapar de possíveis armadilhas que se interpõem, sobretudo no
âmbito das relações de gênero, embora não deixemos de
condescender com elas. Dialógico é aquilo que junta o que está
separado, diz Morin (2003).
O trabalho de campo foi realizado em duas comunidades
Sateré-Mawé, Simão e Umirituba, ambas localizadas no rio Andirá,
município de Barreirinha, no Amazonas. Para os propósitos deste
capítulo privilegiamos dados de entrevistas profundas realizadas
com mulheres idosas das comunidades em apreço, além de
lideranças masculinas e um indigenista. O corte analítico é feito no
aspecto do sakpó, bebida mítica, protagonizada pelas mulheres
mawé no âmbito do seu papel político dentro da sua etnia. Estou
falando de um canto de trabalho, não no sentido de entonação de
uma cantiga ou de uma canção, mas no sentido de uma lira
melódica de um fazimento ou de um savoir – faire, próprio da
mulher sateré-mawé sem qualquer possibilidade de transferência
deste trabalho para o gênero masculino.
Estas composições do feminino no contexto indígena se
furtam a uma interpretação estritamente ocidentalizada, vindo,
pois, enriquecer o debate de gênero na etnologia que pouco tem se
debruçado sobre as mulheres indígenas.
Sakpó, expressão do feminino na etnia sateré-mawé
O sakpó é um elemento distintivo da autoridade da mulher
na etnia Sateré-Mawé, uma bebida mítica mediadora da política que
ilumina a prática coletiva no que concerne às tomadas de decisão.

3
Trata-se de uma bebida derivada do guaraná, planta nativa, que dá
sustentáculo de trabalho e sobrevivência a este povo étnico.

O guaraná, esta planta


aclimatada na Amazônia pelos
Sateré-Mawé, possui função
social, cultural e econômica. É
um produto denso de valor
simbólico e comercial. O modo
de relacionamento dos mawé

com o guaraná estatui sentidos


Figura 2- Bastão de guaraná e a pedra
utizados no preparo do Sakpó. Fonte : a
e, sob este manto, os Sateré-
autora.
Mawé se autodenominam ‘os
filhos do guaraná’, tendo esta planta primazia na organização social
e econômica deste povo. São eles os inventores da cultura do
guaraná, “domesticaram a trepadeira silvestre e criaram a técnica
para seu beneficiamento” (TEIXEIRA, 2005, s/p).
Observe-se, que o guaraná atravessa suas vidas como um
feixe de luz, uma pedra de toque, que conduz o povo ao caminho do
bem, por isso, o sakpó é fonte iluminadora das decisões que levam
ao bem-comum. Vivaldo Valente (42 anos), índio Sateré-Mawé, é
enfático em afirmar que “o sakpó é sagrado. Bebe-se em conjunto,
coletivamente, para procurar a graça da natureza, a vida em paz na
família. Começa a ser bebido pelo lado direito porque o direito
representa a harmonia, o positivo, a ordem cósmica”
(entrevista/2012).
O guaraná é uma territorialização,
uma identidade, uma relação de pertença
dos mawé, o que “gera um corpo coletivo
e engendra um ethos” (MAFFESOLI, 2005,
p. 110). O desenrolar da vida mawé, seu
modo de ser e estar no mundo, se dá em
torno do guaraná, ainda que esta planta
Figura 3- Dra. Iraildes Torres não se constitua na sua fonte de
bebendo o Sakpó.
4
renda. O guaraná é um ethos, uma ordem social que remete para a
sua ontogênese. A historiografica dá conta de que a origem da etnia
Sateré-Mawé é ligada, visceralmente, à planta guaraná, nascida do
olho direito do herói civilizador3, daí que a ontologia deste povo
imiscui-se com o guaraná e, por conseguinte, com o sakpó.
Para além do sabor de uma bebida revigorante, o sakpó
engendra um significado político, perceptível no seu uso coletivo e
nos tipos de acontecimentos nos quais ele é servido. Política para os
propósitos dos Sateré-Mawé, em uso ritualístico do sakpó, envolve
uma dimensão de pertença tribal em estreita relação com a
natureza, com o cosmos e com a vida em sociedade. O valor e a sua
eficácia, como diz Uggé (1993, p. 28), “estão no momento de tomá-
lo juntos e reviver, reforçar a memória tribal”. É também o que diz
Leonice Souza (50 anos), mulher sateré-mawé da comunidade
Molongotuba: “o sakpó é respeitado, ele é o chefe. Onde tem sakpó
enche de gente porque ele chama o povo pra discutir, contar
história, resolver nossos problemas de forma unida”
(entrevista/2012).
O sakpó é o elo da sociabilidade sateré-mawé, possui um
veio transcendental que se conecta com o universo cosmogônico da
mãe natureza4, com os sonhos, com a esperança. Até a forma como
é servido o sakpó tem o significado vinculado à essa visão
cosmogônica, pois “a cuia que gira pelo lado direito simboliza a
forma positiva de relação com a natureza, o que leva às boas

3
A mitologia sateré-mawé informa que a origem e a humanidade desse povo advêm
da força de uma mulher que, vivendo ainda em uma dimensão encantada pré-
humana, teve seu filho morto por dois irmãos seus que não aceitaram sua gravidez
gerada por uma cobrinha. Expulsa de casa pelos irmãos Anhyã-muasawyp criou
sozinha seu filho longe deles, o qual recebeu o nome de Kahu`ê. Já crescido, o
menino pede à mãe para voltar à região onde viviam seus tios já que os humanos
ainda não tinham sido criados. A mãe não permitiu, mas o menino resolveu ir
sozinho, ocasião em que foi morto pelos tios. A mãe enterrou o filho e do seu olho
direito nasceu o guaraná de onde proliferou o povo mawé.
4
O povo Sateré-Mawé volta a sua crença e a sua utopia para a natureza que é o seu
universo. Os clãs desta grande nação recebem nomes extraídos deste universo
cosmogônico, a saber: largata de fogo, Hwariá (ou Hwí); Gavião; Watunriã (ou
ywaçai-Açaí); Napuwaniã (ou waraná); Guaraná Nhampo- Pássaro do Mato
Koreriwá- Cotia.

5
relações econômicas e de prosperidade” (Vivaldo Valente,
entrevista/2012).
A experiência e a vivência com as coisas tangíveis e dizíveis
brotam de reservas cognitivas efetivas. Heidegger (2012, p. 58),
lembra que “em cada um de seus modos de ser e, por conseguinte,
também em sua compreensão de ser, a presença sempre já nasceu
e cresceu dentro de uma interpretação de si mesma, herdeira da
tradição”. Os Sateré-Mawé são seres nascidos do guaraná, em sua
essência mítico-ôntica, receberam o sopro de Tupana, a anima,
ainda na natureza guaraná, no olho da fruta, de onde brotaram e se
constituíram como povo. É, compreensível, a este propósito, que
eles se autodenominem filhos do guaraná de quem são tributários.
O guaraná ferve em suas veias, pois, como diz Vivaldo
Valente, “é vida, é transcendente. O sakpó que vem do guaraná é
vida dentro de um líquido que é a água e, isso, produz vida”
(entrevista/2012). Tomemos esta indicação como uma composição
estética, a aura5 mawé, que redunda numa perspectiva estético-
política, na medida em que o ‘político’ se passa, como nunca antes,
no âmbito estético”. (RAULET, 2012, p. 57) E, neste sentido, os
Sateré-Mawé possuem no guaraná uma ontologia aurática, a qual
para Benjamin (1984), é uma categoria de percepção sensorial.
É, por isso que, o sakpó, evoca a autoridade, porque ele é
aurático e tem na noção bejaminiana de rastro o “seu entendimento
como um termo de mediação” (GINZBURG, 2012, p. 109). Há duas
dimensões da autoridade que o sakpó evoca. Uma está situada na
figura política do tuxaua que, em alguns casos, serve a bebida às
pessoas presentes do alto de sua autoridade. O Tuxaua evoca as
relações de poder para chegar a resultados positivos e satisfatórios
para o seu povo. O suporte do sakpó de onde o tuxaua serve as
pessoas recebe o nome de patauí “que, na mitologia representa,
junto com a cuia, a estrutura do mundo onde nós vivemos; é a terra

5
É, sugestivo a este propósito a leitura de Walter Benjamin. Origem do drama
barroco alemão (1984).

6
que, com as águas, forma o universo onde vivem os homens”
(UGGÉ, 1993, p. 28).
A outra autoridade do sakpó evoca a figura política da
mulher, numa perspectiva ôntico-aurática, que busca rastrear
aquela mãe que retirou o olho direito de seu filho morto e o
plantou, nascendo dele a planta guaraná, elemento mediador da
etnia Sateré-Mawé. Trata-se de reservas cognitivas da memória
ancestral, de um rastro, que se interconecta com o mundo sensível
das coisas cotidianas num tempo contemporâneo que canta. O
contemporâneo, ensina Agamben (2009, p. 62), “é aquele que
mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes,
mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta
contemporaneidade, obscuros”.
A poética feminina sateré-mawé é, do alto da aura ôntica
desta etnia, um canto contemporâneo que revela sentidos, que
confere poder e faz renascer a força dentro da obscuridade, já que
estas mulheres sempre estiveram na sombra, escondidas
sacralmente do mundo da política tal qual um tabu.
“contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa
obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas
trevas do presente” (AGAMBEN, 2009, p. 63).
O mito fundador do povo Sateré-Mawé dá conta de que há
um princípio feminino na origem deste povo. Trata-se do princípio
primeiro da etnia Sateré-Mawé, sua fonte nascente e geradora do
povo mawé. Uma mulher é banida do seu mundo pelo fato de ter
transgredido as normas de um espaço, ainda não humano. Torna-se
mãe solteira, tem seu filho morto por seus opressores e, num sopro
de sabedoria, ao abençoar o filho antes de o enterrar, proferiu um
discurso pétreo-ancestral dizendo que do seu corpo morto nasceria
um povo forte, destemido, que lutaria pela sua prosperidade, e que,
seu filho voltaria e presidiria as reuniões.
Está aqui a célula fundante do povo Sateré-Mawé, uma
mulher com sua sabedoria, profere um discurso que institui a etnia,
sendo, pois, este, o sentido ôntico-político de criação do povo. Os
espíritos criadores escolheram uma mulher para servir de mediação
7
à sua obra, conferindo ao evento criador uma dimensão de gênero.
Poderíamos, com bom senso supor, ser esta uma etnologia do
sensível que envolve a mulher – historicamente excluída dos
processos e dos grandes feitos – com o intuito de equilibrar as
relações entre homens e mulheres dentro da etnia.
É justamente na nervura desta simbologia do feminino que
podemos pensar com o outro a partir de uma reflexão do sensível,
neste caso o outro é a mulher, vista com o olhar do preconceito.
Esta célula mitológica feminina estabelece conexões entre partituras
do patriarcado que ainda se mostram soltas e até ininteligíveis no
universo indígena. A epifania do feminino no universo sateré-mawé
se sustenta nas coisas que, ao olhar leigo parecem triviais, mas que,
para a etnia, tem um significado diferente, porque remete à sua
origem ontológica.
Viveiros de Castro desenvolve sua noção de perspectivismo
como uma dobra, lembrando Deleuze, a qual nos permite pensar o
feminino no contexto indígena mawé de forma desbordada. Para
este autor, “o perspectivismo ameríndio procede segundo o
principio de que o ponto de vista cria o sujeito, será sujeito quem se
encontrar ativado ou ‘agenciado’ pelo ponto de vista” (VIVEIROS,
1996, p. 127). A estilização, neste caso, é do sujeito mulher que é
início e, ao mesmo tempo, o ponto de fuga de toda a política sateré-
mawé.
Interessa-me ativar esse sujeito
feminino que no âmbito da política
representativa sateré-mawé sempre
ocupou espaço invisível ou de pouca
luminosidade, embora paradoxalmente, a
mulher mawé seja o fulcro cultural para o
qual tudo converge e encontra
significação valoral. Trata-se de cantos
interpretativos de sensibilidade
cognoscitiva que se furta a uma visão

unívoca. Uma percepção sensorial Figura 4– Dra Iraildes Torres


preparando o Sakpó do Guaraná.

8
aurática, como situa Janz (2012) no campo dos estudos
benjaminianos. “Perceber a aura de uma coisa significa investí-la do
poder de revidar o olhar” (BENJAMIN, 1989, p. 140).
As mulheres, como venho sinalizando neste estudo, são as
guardiãs da cultura mawé em face das raízes mitológicas que
conferem a elas força sobre os destinos da etnia. São elas que se
ocupam da feitura do sakpó e que introduzem o recipiente
contendo a bebida (cuia) no lugar onde são realizadas as reuniões
ou outros encontros coletivos. O guaraná é o elemento nucleador
do espaço público, aqui compreendido como o lugar da política, do
protagonismo, das negociações e da tomada de decisão. “É
justamente nesse ritual, pelo qual é criada a esfera pública regida
por uma ética do discurso, que a mulher indígena atua como
responsável pelo suporte político da comunidade” (MATOS, 2012, P.
142).
O sakpó não é só uma bebida, é uma prática coletiva
conduzida pelas mulheres e, esta prática, permeia e está presente
em todas as ações e atos políticos desse povo. Não se toma
nenhuma decisão política e nem tem fim nenhuma reunião sem o
uso coletivo do sakpó. Estamos falando do poder aurático desta
bebida mítico-transcendental que remete para o horizonte da
esperança e dos bons dias que virão. Felicidade Lopes dos Santos
(72, anos), índia mawé ouvida nesta pesquisa, revela que “quando
se rala o sakpó é no silêncio, é na calma, não tem agonia, é pra
conversar coisas boas, projetos, trabalho. O sakpó traz esperança,
prosperidade e dias bons pra nós” (entrevista, 2013).
Atente-se para o fato de que, é o sakpó, que chama as
pessoas. Ele é o tapete que tece a sociabilidade, que costura as
relações, que introniza o discurso, a palavra, e que abre o debate. É
o sakpó que ilumina a palavra, que inspira o debate e que dá
sustentáculo para o coletivo tomar as decisões que necessita.
Tem-se aqui uma urdidura, algo que se funda ombreado
com a ideia de dobra, em que devemos ver o mito por intermédio
de sua inscrição, uma inscrição da história indígena, que se conta
através da escrita do desvio que abre pontos de fuga. O ponto de
9
fuga é uma tentativa deliberada de conseguir o deslumbre do valor
feminino na etnia Sateré-Mawé. Ou seja, é preciso sair daepisteme
moderno-ocidental que ilumina as relações de gênero para
compreendermos o feminino mawé, sendo, pois, este o ponto de
fuga. Como diz Deleuze (2006, p. 103), “há como que uma
‘abertura’, uma ‘fenda’, uma ‘dobra’ ontológica que remete o ser e a
questão um ao outro. Nesta relação, o ser é a própria diferença”.
A mulher é este ser da diferença e “esta diferença não é
‘entre’, no sentido ordinário da palavra. Ela é a dobra” (DELEUZE,
2006, p. 104). A decodificação assume, por assim dizer, a forma de
transformação ou inovação simbólica, pois, não é o propósito aqui,
perceber a diferença de gênero entre mulher e homem, mas sim
encontrar o desvio como o fio da meada ou dobra. O feminino
mawé é visto como uma forma de possibilidade, uma dobra que o
mito dá na sua ontogênese. Uma possibilidade de potência, não no
sentido de superioridade competitiva com o outro gênero, mas
como campo cognitivo de criação, estalos criativos da imaginação,
capaz de se inventar dentro da sombra, do obscuro, já que o mundo
é um caos dançante (NIETZSCHE, 1985).
O feminino mawé como possibilidade de potência aparece
no mito fundador como uma inscrição, a qual se manifesta por
rastro, por traços. A mulher proferiu um discurso “em cima” do filho
que jazia morto, dizendo que do seu olho transformado em
guaraná, surgiria um povo forte e livre que alcançaria a
prosperidade. Este discurso é, pois, uma evidência, um rastro, que
dá vazão a um limiar. O limiar é a porta que se abre para a
experiência inteligível, é uma penumbra, uma fresta, onde se acha o
rastro que leva à inscrita. O limiar borra a fronteira, mas não se
mistura com ela. Não é o limite, “é um mundo intermediário,
entremundo, talvez também semi-mundo” (BEHRENS, 2010, p. 96).
O limiar não elimina a ontologia das coisas. O menino
kahu’ê continua sendo visto como herói civilizador do povo Sateré-
Mawé, o limiar borra essa fronteira, quando remete ao rastro da
inscrita que vai esbarrar na mulher que preferiu o discurso que
instituiu o povo. O discurso é a inscrita. O limiar se dá na relação
10
com os dois outros, com o sujeito-sujeito. Neste caso, entre o
discurso proferido pela mulher e o guaraná que brotou do olho do
menino.
O mito utiliza-se de uma dobra para explicar como
determinada coisa surgiu, ele funda alguma coisa, é uma
possibilidade visionária que busca explicar uma situação. A isto
chamamos dobra porque é preciso que saiamos do real para deixar
o mito existir. A inscrição, para a qual o mito remete, precisa de um
suporte, de uma coisa que se apresente e que lhe dê substância,
então, aparece a mulher como guardiã do sakpó transvestido numa
prática social “sacralizante”, canonicamente conduzida por elas.
Este é o desvio encontrado para compreendermos de forma
intempestiva a condição feminina e o seu valor dentro da etnia
Sateré-Mawé.
O teor desta questão, a forma como foi captada em uma
leitura nietzscheana, nas suas Considerações Intempestivas, supõe
que o povo Sateré-Mawé, traz no seu nascedouro um princípio
feminino e, com a prática do sakpó, faz guarda de uma cultura da
diferença, em que o outro expõe seu saber, a partir da
differance(DERRIDA, 2001). E, neste sentido, é claro, trafegamos no
campo do perspectivismo. Um mundo diferente é proposto, a partir
de perspectivas que traduzem o mundo indígena de outra forma.
Interessa- me a ideia do desvio, não o confronto, mas a ideia de
dobra para fazer delirar o intempestivo.
Bernardino Ferreira (63 anos), liderança sateré-mawé da
comunidade Simão, revela que “antigamente a mulher não tinha
valor. Hoje ela tem valor, estão no mesmo tamanho que o homem”
(entrevista, 2013). Nesta mesma ordem de fala o nosso informante
situa o fato de que “quando a mulher oferece o sakpó ela está
oferecendo o filho dela que saiu do guaraná” (Bernardino Ferreira,
entrevista, 2013). Damo-nos conta, com assombro, de que o mito
faz o seu trabalho, cumpre a sua função social na cultura sateré-
mawé porque ele dispõe de um caldo cultural, de uma ambiência
onde ele pode se espraiar, ser adornado.

11
As palavras de Bernardino de que no sakpó a mulher
oferece o filho, remete para a inscrita do discurso de Anhyã-
muasawyp, no sentido de que era preciso “doar o filho para fazer
prosperar a etnia” (YAMA, 2007, p. 56). Este é, pois, um libelo
intempestivo “porque procura compreender como um mal, um
inconveniente e um defeito, algo do qual a época justamente se
orgulha, isto é, a sua cultura histórica [...], tem exigência de
atualidade” (NIETZSCHE, apud AGAMBEN, 2009, p.58). E, o próprio
Agamben (2009, p. 58-59), nos ensina que
É verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide
perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é,
portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso,
exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é
capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo.
Toda a contextura da tradição sateré-mawé está ligada a
esse princípio feminino do discurso que criou o povo e fez a sua
epifania vinculada ao Waranã ou guaraná. E, esse princípio feminino
“sacraliza” a mulher dentro da tribo, sitiando-a estritamente ao
mundo mitológico. À luz desta genealogia arquetípica pode-se dizer
que a submissão da mulher é mítica neste contexto indígena. Uggé
(71 anos), indigenista ouvido nesta pesquisa, é enfático em dizer
que “a mulher tem tempo específico para falar. Ela quase não fala,
mas quando fala todo mundo escuta. Isto porque ela é depositária
da tradição, da memória da tribo” (entrevista, 2013).
As mulheres sateré-mawé possuem um valor étnico
insuprimível no campo político, pois, “sem elas e o sakpó, a reunião
não começa. São elas que comandam o sakpó. Elas estão, afinal de
contas, no comando da reunião” (Sônia Vilácio, 38 anos, índia
sateré-mawé, entrevista, 2012). Essa percepção das mulheres como
sujeitos políticos nasce do desvio, pois, na ode hodierna da política,
amiúde, concreta e revestida de poder, é o homem que aparece e a
ele é dado o cetro que conduz o povo. É essa a dobra que o mito faz
em si mesmo, colocar a mulher no centro da política, mas no plano
mítico, ou seja, “é uma maneira de oferecer uma ‘solução concreta’
para um determinado problema que se manifesta na sua forma
12
abstrata [...], um elemento de vital importância para o cotidiano e
para a cosmologia indígena” (FONSECA, 2013, p.37).
As mulheres, sob o manto mitológico, permanecem em
silêncio durante toda a reunião, só falam se os homens as
autorizarem, são invisibilizadas, sitiadas ou exiladas no próprio mito.
Paradoxalmente, ela é alfa e ômega dentro da etnia, está no
principio e no fim das práticas sociais. Suas práticas sociais estão
presentes em todas as ações e atos de seu povo. São protagonistas,
mas ao mesmo tempo, não aparecem na ode, não são empoderadas
e incentivadas a tomarem a frente dos acontecimentos.
É, pois, exatamente, por causa deste paradoxo que procuro
a dissipação, que procuro refugiar-me no desvio. Como sugere
Agamben (2009), para ser contemporâneo tem que ser
intempestivo, ver não só a luz, mas também trafegar nas trevas. É
preciso abrir a fenda do buraco, fazer escavação no escuro, fazendo
uma antropoesia.
O riso não vem depois do pensamento, ele complementa o
pensamento, assim como o índio não existe, não é nada, é uma
invenção. Esse ser aclimatado é homem, mulher, criança, povo,
gente, humano. A etnologia produziu o índio, segregando-o e
reificando-o, uma espécie de galáxia da interpretação. O mundo é
pequeno e sombrio, por isso, busco um amanhã que canta, um
desejo de ambivalência, evitando a clarividência em tudo.
Considerações finais
Para podermos compreender o
alcance simbólico do sakpó, é preciso
termos presente o principio feminino que
há nele. Primeiramente é preciso
compreendermos que o tempo mítico
tece o tempo presente, o Kairós, grávido
de ação (TORRES, 2009). Depois, é
interessante e sugestivo percebermos a
constituição das relações de gênero por
dentro da ontogênese do povo Sateré- Figura 5- Cuia contendo sakpó.
Fonte : os autores. 2016
13
Mawé. Está na narrativa sobre a origem desse povo o eclipse de
gênero, que só enxergamos se adotarmos o limiar e estabelecermos
um desvio, o que nem sempre o fazemos e assim contribuímos para
que o corte de gênero permaneça imperceptível ou pouco visível no
contexto étnico. Anhyã-muasawyp é a mulher da qual se desdobrou
a criação do povo Sateré-Mawé, aquela que, no princípio de tudo,
antes da existência da humanidade, vivia no nusoquén, que é o
paraíso dos seres encantados inumano propriamente dito.
Anhyã-muasawyp também era um ser encantado que, de
característica feminina, também se transformava em pássaro para
voar e chegar mais rápido nos lugares, possuindo também qualidade
de xamã na medida em que sabia manipular ervas da floresta.
Mostra-se performática e multifacetada tal qual as mulheres deste
planeta Terra que executam várias tarefas ao mesmo tempo,
possuindo, pois, uma visão periférica das coisas que as rodeia, além
do foco principal.
A decodificação assume, por assim dizer, a forma de
reabilitação da simbologia feminina no contexto indígena Sateré-
Mawé. O feminino é o início e, ao mesmo tempo, o ponto de
convergência e união da tribo presente no ritual do sakpó,
elaborado e comandado pelas mulheres. No sakpó, como pontua
Nascimento (2010, p. 30), “as mulheres têm um espaço que é
exclusivamente seu e não pode ser substituído pelo homem porque
isto implicaria numa ruptura natural daquilo que é próprio de cada
um dentro *...+ das relações que se travam na sociedade étnica”.
Inexiste, a meu ver, uma partilha dos bens simbólicos dos
Sateré-Mawé sem a presença do princípio feminino. Não existe a
partilha sem o objeto simbólico, sem a ontologia das criaturas, esse
(com) sentir originário que estatui os Sateré-Mawé. A voz autoral
dos sujeitos que vivem a experiência cotidiana com o mito confirma
a inscrita ontológica das relações de gênero, fecundando a vida do
povo Sateré-Mawé. Os sujeitos da pesquisa identificam no sakpó o
princípio feminino que conduz a política, iluminando a palavra e as
decisões tomadas pela etnia, este é, pois, um furo ou um desvio
pelo qual se pode compreender a importância valoral das mulheres
14
mawé dentro de sua tribo étnica, a despeito de elas permanecem
silenciadas e sitiadas na ode masculinizada da política
representativa.
Referências
1. AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros
ensaios. Traduzido por Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC:
Argos, 2009
2. BEHRENS, Roger. Seres limiares, tempo limiares, espaços
limiares. In: OTTE, Georg; SEDLMAYER, Sabrina; CORNELSON,
Elcio (org). Limiares e paisagens em Walter Benjamin. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2010
3. BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São
Paulo: Brasiliense, 1984
4. _________________.Charles Baudelaine: um lírico no auge do
capitalismo. Traduzido por João Carlos Martins Barbosa e
Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989
5. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Traduzido por Luiz
Orlandi e Roberto Machado. 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006
6. DERRIDA, Jacques. Posições. Traduzido por Tomaz Tadeu da
Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001
7. FONSECA, Mário Geraldo Rocha da. A cobra e os poetas: uma
mirada selvagem na literatura brasileira. Tese de Doutorado.
Universidade Federal de Minas Gerais (Programa de Pós-
Graduação em Letras: Estudos Literários). Belo Horizonte:
UFMG, 2013
8. GINZBURG, Jaime. A interpretação do rastro em Walter
Benjamin. In: SEDLMAYER, Sabrina; GINZBURG (org). Walter
Benjamin: rastro, aura e história. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2012
9. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Traduzido por Márcia Sá
Cavalcante Schuback. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança
Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2012

15
10. MAFFESOLI, Michel. A transfiguração do político: A tribalização
do mundo. Traduzido por Juremir Machado da Silva. 3 ed. Porto
Alegre: Sulina, 2005
11. MATOS, Maria Helena Ortolan. Mulheres no movimento
indígena: do espaço de complementariedade ao lugar da
especificidade. In: SACCHI, Ângela; GRAMKON, Márcia Maria
(org). Gênero e povos indígenas: coletânea de textos produzidos
para o “Fazendo Gênero 9” e para a “279 Reunião Brasileira de
Antropologia”. Rio de Janeiro, Brasília: Museu do
Índio/Giz/Funai, 2012
12. MORIN, Edgar. O método 5: A humanidade da humanidade.
Traduzido por Juremir Machado da Silva. 2 ed. Porto Alegre:
Sulina, 2003
13. NASCIMENTO, Solange Pereira. Baku: Uma Tuxaua na Amazônia.
Manaus: Edua, 2013
14. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: ou prelúdio de
uma filosofia do futuro. Traduzido por Márcio Pugliesi. São
Paulo: Hemus, 1985
15. RAULET, Gérard. Aura e auctoritas. In: SEDLMAYER, Sabrina;
GINZBURG, Jaime (org). Walter Benjamir. Rastro, aura e história.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012
16. TEIXEIRA, Pery (org). Sateré-Mawé: retrato de um povo
indígena. Relatório de pesquisa. Manaus: UFAM, 2005
17. UGGÉ, Henrique. As bonitas histórias sateré-mawé. Manaus:
Secretária de Educação do Estado do Amazonas, 1993
18. VIVEIROS, Eduardo de Castro. Os pronomes cosmológicos e o
perspectivismo ameríndio. Rio de Janeiro: Mana, 1996
19. TORRES, Iraildes Caldas. Arquitetura do poder: memória de
Gilberto Mestrinho. Manaus: Edua, 2009
20. YAMÂ, Yaguerê. Sehaypório: o livro sagrado do povo sateré-
mawé. São Paulo: Petrópolis, 2007.

16
Valdenei de Souza Santos6
Dr. Alexandre Santos de Oliveira7

Introdução
A cultura amazonense é
um santuário repleto de
encantos e belezas inefáveis,
cada lugar possui seus cantos,
mitos, lendas que povoam de
mistérios as vivencias do povo
amazônico. Toda população
que mora à beira do rio, os que
moram no beiradão, que são os habitantes da área de várzea
desenvolvem sua vida baseada na cíclica da natureza.
Para o objeto de analise foi escolhido as histórias do boto,
narradas pelos moradores da comunidade do Sagrado Coração da
Costa da Águia, município de Parintins-AM, o boto faz parte do
universo simbólico das comunidades amazônicas. A mulher por ele
6
Graduada em Filosofia, formada pela Universidade Federal do Amazonas. Possui
ampla experiência em docência, atua principalmente na área de Gestão Escolar.
7
Doutor em Design, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-
Rio, com doutorado Sanduíche no Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra sob a orientação do sociólogo Boaventura de Souza Santos. Professor e
Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia –
PPGSCA/UFAM.

17
abordadas se enamora do mesmo, chegando ao ponto de
engravidar e adoecer durante suas visitas noturnas.
Os moradores da comunidade da Costa da Águia carregam
uma característica muito forte dos povos da Amazônia, a crença no
sobrenatural. Acreditam fortemente nas narrativas do boto, que se
desenrolam com a moça que engravidou e não tem marido, com a
mulher casada que o marido esta viajando e até com as viúvas.
As relações amorosas do boto acontecem quando a mulher
está envolvida no ciclo menstrual. Para os comunitários o período
menstrual da mulher atribui à mesma característica de impura e
atrai coisas negativas para a mesma e a comunidade.
No período menstrual que demora cerca de 05 a 07 dias, as
mulheres da comunidade devem evitar ir à beira do rio, sair de casa,
devem fazer o resguarde.Assim, para que a mesma possa tomar
banho, lavar roupa e fazer comida, durante seu ciclo, marido, filho,
pai e irmãos carregam água com a finalidade de manter a mulher
em descanso e não permitir que ela vá até a beira do rio.
Ela deve evitar os horários que são tidos como perigosos por
todos, jamais ir à beira do rio sozinha às seis da manhã, ao meio dia,
as três e às seis horas da tarde.O boto costuma assumir a forma
humana para exercer seu poder de sedução, torna-se um homem
irresistível, depois de toda sedução o mesmo abandona seu amor,
deixando o filho e a saudade.
O pensamento da mulher guerreira e sedutora sexualmente
aparece nas crônicas dos primeiros viajantes no século XVI, quando
foi registrado por Francisco Orellana na foz do rio Amazonas, o que
o mesmo denominou de icamiabas.
Para que o boto não venha praticar a malinesa com as
mulheres, as mesmas devem cumprir as normas estabelecidas para
esse período, isso garantirá que ela e os comunitários passem pelo
período menstrual da mulher sem atrair para si e para os outros a
malinesa do boto.

18
A influência do mito do boto
A comunidade do Sagrado Coração da Costa da Águia,é uma
área de várzea, no Baixo Amazonas, município de Parintins, constrói
parte do seu patrimônio cultural com as histórias do boto, que se
fazem no dia-a-dia local.
A Costa Águia foi fundada a mais de 100 anos, e desde a sua
fundação as narrativas do boto participam da vida de seus
moradores. Essas narrativas fantásticas e maravilhosas traduzem o
patrimônio cultural baseado nas experiências vividas na beira do rio
e nos caminhos da comunidade. As peripécias desse cetáceo são
contadas na comunidade ao longo do tempo de pai para filhos.
A pesquisa busca compreender como o caboco de várzea da
Costa da Águia do Município de Parintins é influenciado pelas
narrativas imaginárias do boto e através dela busca para sua
vivência o sentido mítico simbólico, tendo como ponto de partida as
relações e as experiências vividas com a natureza em sua prática
cotidiana.
Para os moradores da comunidade, o boto não é somente
um mamífero ou golfinho marítimo, que nada nas águas
amazônicas. Para a população amazonense e da Águia o mesmo
carrega um simbolismo (signos) significativo para a vida e cotidiano
das pessoas, principalmente das mulheres que estão no ciclo
menstrual.
Com a presença do boto no imaginário dos moradores da
região as mulheres são as principais protagonistas dos contos
apresentados, pois, nelas recaem regras simbólicas que as expõem
em contato com esse ser místico.
A mulher deve evitar o desencadeamento dos efeitos da sua
impureza, para se resguardar durante o ciclo menstrual e o parto.
Nesse simbolismo de mulher impureza, encontramos a porta de
entrada para o agir do boto. Com isso, o simbólico ocorre através do
processo natural, tornando-se real e racional a todos.
O simbolismo apresentado nas histórias contadas pelas
pessoas da comunidade descreve como o boto incorpora em

19
homem e quais as atitudes, ações e comportamento que ele
provoca nas pessoas. Ao incorporar-se em homem, o boto
estabelece relação com o perspectivismo de Viveiros de Castro
(1996, p. 117) na medida em que nos coloca diante da teoria que
“os animais são gente, ou se vêem como pessoas”.
Laplantine e Trindade (2003) ressalva dizendo que o símbolo
comporta de componente racional real e representa o real, ou tudo
aquilo que é indispensável ao homem, tornando-se presente na vida
social, familiar, econômica, religiosa, política.
Para os comunitários da Costa da Águia o boto é um
elemento cultural que interfere nas experiências vividas, pois,
quando a mulher desobedece às regras simbólicas da comunidade,
recai sobre os moradores um castigos ou punição.
Neste caso, as experiências sociais não esgotam, pelo fato
dos signos serem presente na vida das pessoas, onde todos os
elementos que caracterizam a lenda do boto estão associadas na
vida social e as redes simbólicas (LAPLANTINE E TRINDADE, 2003).
Percurso Metodológico
Para o levantamento da pesquisa realizamos uma viagem de
recreio para a comunidade do Sagrado de Jesus da Costa da Águia,
distante duas horas e meio da sede do município de Parintins,
localizada a margem direita do rio Amazonas, estando assentada
geograficamente em área de várzea.
A localização da comunidade vai além do espaço econômico
e geográfico, das relações culturais, possui uma dimensão do
imaginário mitológico, simbólico. As populações tradicionais, como
os moradores da Águia, eles têm intimidade com o ambiente vivido.
Domina perfeitamente os ciclos a que esta exposto, como os
períodos de seca e subida dos rios, suas estações de escassez e
fartura, tanto do rio como da terra.
Respeitam os mistérios do rio e da floresta, que possibilita
ao mesmo o cuidado com o ambiente onde habitam. No caso do rio,
o respeito e o cuidado são redobrados, pois o rio carrega consigo
dois seres bastante respeitados a cobra grande e o boto.

20
A pesquisa foi feita através de entrevista semiestruturada. A
chegada ao campo de pesquisa deu-se por conversa informal,
preliminar aos moradores, com intenção de estabelecer laços de
confiança. Falou-se com o presidente da comunidade onde foi
esclarecido o objetivo do trabalho e a importância da contribuição
dos mesmos.
Passamos três dias na comunidade para fazer as entrevistas,
pois em conversa com os entrevistados os mesmos marcaram o
melhor momento para a entrevista, sempre após o trabalho do dia.
Durante a espera visitamos a comunidade e conversou-se com
alguns moradores de forma informal sobre o assunto da pesquisa.
Fomos bem recebidos por todos.
O boto se faz presente no cotidiano da comunidade, pois é
visto várias vezes durante o dia passando diante da comunidade,
chamando a atenção com seus zunidos. Todos respeitam esse ser
aquático, pois qualquer gesto ou fala que desagrade tal ser, provoca
punições para aquele que ousou desafiá-lo.
Na comunidade o boto é conhecido e temido como um ser
malino, por isso é respeitado, nos dizeres de Galvão (1978, p. 67)
“os botos têm hábitos muitos peculiares. Quando um deles segue a
canoa o melhor é ignorá-lo, pretender-se que não se viu o boto.
Fazer zoada ou simplesmente observá-lo é atrair sua malignidade”.
O boto é particularmente atraído pelo cheiro de sangue de
mulheres menstruadas, na comunidade sua presença passa a ser
mais forte se houver alguma moça menstruada. Ele fica mais
agitado, passando a toda hora, qualquer moça que vá a beira do rio
lavando roupa ou pegando água (carregando), então como dizem os
moradores, ele mais busca chama a atenção.
O caboco da beira do rio tem a crença em seres que
possuem a capacidade de se ingerar, em outros seres, como em
gente, por exemplo, acreditam que alguns seres aquáticos e da
floresta devem ser temidos, pois possuem a capacidade de encantar
as pessoas fazendo com as mesmas fiquem desnorteadas.

21
O homem da várzea amazônica é católico, ele possui um
santo de sua devoção, mas também acredita em outros seres
sobrenaturais. Seu universo mítico é constituído por muitos mitos,
lendas, narrativas, crendices, superstições e simpatias, seu universo
de vivencia é mítico, ele é ao mesmo tempo religioso e temeroso às
punições da natureza por algum ato intencional ou não sobre a
mesma.
O homem da várzea amazônica vai ao culto dominical, reza
para o santo de sua preferência, porém é adepto da pajelança
caboca que é praticada pelo curador da comunidade. Na
comunidade da Costa da Águia todos professam a religião católica.
Esse catolicismo tem origem ibérica, com a prática particular de
culto aos santos.
O caboco tem uma relação de profundo respeito com os
santos que são considerados como divindades, Galvão (1976, p. 31)
relata que
Os santos podem ser considerados como divindades que
protegem o individuo e a comunidade contra os males e infortúnios.
A relação entre o individuo e o santo baseia-se num contrato mútuo,
a promessa. Cumprindo aquele sua parte do contrato, o santo fará o
mesmo.
A crença nos poderes dos santos não garante toda a
necessidade que a comunidade e o homem precisam no ambiente
local e nos setores da vida de cada um, eles buscam outras formas
crenças que são incorporadas as suas práticas cristãs. Nas
sociedades amazônicas o catolicismo popular se sobrepõe como um
sistema ideológico que suplanta as crenças locais, porém não
consegue satisfazer as exigências da comunidade.
O controle da igreja católica quanto à prática da pajelança
não impede que ela seja praticada, pois o homem amazônico
incorporou em sua sessão de cura os santos católicos. Maués (1995,
p.482) relata que
mesmo o pajé ou curador, ao participar de missas,
procissões, ladainhas e outras práticas do catolicismo,

22
momentaneamente “esquece” os encantados e se mostra católico,
para atualizar o culto dos santos. Todavia, o mesmo não se dá
quando ocorre uma sessão de cuja pajelança, pois os santos
católicos estão presentes, como imagens, ou invocação (inclusive
dos próprios encantados).
As experiências religiosas cotidianas desse amazônida são
acompanhadas de ritos. O homem da várzea amazônica se benze
diante do rio ao descer para o banho e para apanhar água para os
afazeres domésticos, ao sair para o roçado ou para a pescaria,
quando vê um morto, um velório, um enterro, nas missas do
domingo, etc.
Quando ele ritualiza os fatos míticos religiosos, o mesmo faz
a atualização dos casos que ocorreram em um passado distante,
quando tudo começou,casos que se fazem presentes na história da
existência humana, e que são marcadas por fases, que o ser humano
vai passando ao longo da vida.
O homem amazônico tem profundo respeito e temor pelo
sobrenatural. Esse temor é herdado do seu ancestral ameríndio, que
possuía uma concepção de universo carregada de crenças, e através
delas procurava explicar o que estava ao seu redor, mas não
compreendia.
Esse respeito carregado de temor que os
Eduardo Galvão (1976, p. 3) lembra que “essa maneira de
ver o mundo não representa o simples produto da amalgação de
duas tradições, a ibérica e a do indígena. Essas duas fontes supriram
o material básico de que envolveu a forma contemporânea da
religião do caboclo amazônico”.
As populações do interior de várzea do Amazonas estão
localizadas as margens do rio, organizados em pequenas
comunidades, que através da religião reproduzem seu padrão
cultural de acordo com o local da região em que está inserida, cada
comunidade faz devoção a um santo da hierarquia católica.
O Santo escolhido pela comunidade no momento de sua
fundação é chamado de “Padroeiro”, ou seja, o santo de devoção da

23
comunidade. De acordo com o calendário católico, são organizadas
as festas em homenagem ao referido santo.
Sobre as festas de santo Wagley (1988, P. 201) considera
que
As festas que se realizam dentro da área da comunidade,
entretanto congregam a “nossa gente”, como diz eles. Tais festas
não só proporcionam distrações para os habitantes da cidade e das
aldeias, como ainda contribuem para unificar a comunidade,
estabelecendo, com essas relações sociais, um elo entre a gente da
cidade e os habitantes das zonas rurais.
No dia a dia da comunidade a igreja fica fechada, só abrindo
aos domingos para o culto dominical, que é proferido pelo
presidente da comunidade, ou por pessoas mais velhas de prestigio
e respeito na comunidade. Aos domingos os moradores se reúnem
para rezarem juntos o culto em honra ao Sagrado Coração de Jesus,
que é o santo protetor da comunidade,
O mundo mítico da várzea amazônica
O Estado do Amazonas é rico em biodiversidade e
diversidade cultural. Cada pedaço de chão possui características
próprias e singulares do lugar. Em sua corrente cíclica da várzea
amazonense, o homem ribeirinho vive sob a égide de duas estações:
o verão e o inverno.
No verão a temperatura é quente e o clima muito úmido.
Nesse período a pesca do peixe liso se intensifica. No inverno as
chuvas molham a terra, provocam a subida das águas e a inundação
das terras baixas chamadas de várzea.
O morador da comunidade de várzea faz culto para o santo
de sua devoção e para o santo da comunidade nos dias de festas e
durante o ano. Os cultos aos santos não se constitui para esse
ribeirinho como o único elemento de referencia à religião, ele
possui outras entidade a quem dedica também sua atenção.
Geralmente cada morador possui em sua casa um pequeno
oratório com o santo de sua preferência, que nem sempre é o

24
padroeiro da localidade. Muitas vezes as promessas são feitas para
o santo de sua devoção e não para o santo da localidade.
Maués (1995, p.16) caracteriza o catolicismo popular como
“aquele conjunto de crenças e práticas socialmente reconhecidas
como católicas, de que partilham sobretudo os não especialistas do
sagrado, quer pertençam às classes subalternas ou as classes
dominantes”.
Nas comunidades ribeirinhas de várzea o mito é bastante
presente como o curupira, a cobra grande, a matintaperera, os
encantados, as mães de bicho, bichos visagens, etc. Eliade (1986, p.
84) situa no espaço e no tempo a narrativa mítica
O mito é pois história que se passou in illo tempore, a
narração daquilo que os deuses ou os Seres divinos fizeram no
começo do tempo. ‘dizer’ um mito é proclamar o que se passou ab
origine. Uma vez ‘dito’, quer dizer, revelado, o mito torna-se verdade
apodítica: funda a verdade absoluta.
Existe uma centena de conceito sobre o mito. Outro
conceito para é que ele é uma narrativa popular que não consegue
distinguir sua origem, são denominados de estórias imaginárias.
Melo (2002, p. 45) dá ao mito a seguinte versão
O mito e uma narrativa alegórica, que em geral procura
explicar acontecimentos anteriores aos fatos históricos. A mitologia
indígena, por exemplo, e rica em formulações sobre a origem dos
homens, dos bichos, das árvores, das coisas. Por outro lado, há uma
serie de mitos populares de procedência europeia, introduzidos
durante a colonização que ainda sobrevivem em muitas
comunidades. São aquelas assombrações, tipo lobisomem, moura-
encantada, mula sem cabeça, etc.
Como a característica da religiosidade do homem de várzea
é católica, ele é fortemente influenciado pela sua formação
ameríndia, portuguesa e africana que ele expressa através das
crenças e das praticas religiosas que remontam sua origem.
O imaginário do homem de várzea é permeado por uma
série de crenças locais como visagens e narrativas como do boto

25
que acredita ser encantado, pois para ele o mesmo se ingera em
homem e sobe na comunidade para fazer suas conquistas.
Para o morador da várzea o boto é um animal encantado
que habita o fundo do rio e dos igarapés, que seduz e atrai em
especial às mulheres com quem coabita e gera filhos e tem o poder
de malinar daqueles que dele zombam.
O homem da várzea acredita em outros seres sobrenaturais,
que são os bichos visagens, que se localizam em lugares específicos
da floresta ou do rio, pois para esse amazônida os rios, os igarapés e
a floresta possuem seus protetores.
Todos esses contos e lendas formam o imaginário do
homem da várzea que mora na beira do rio, o mesmo baseia sua
vida na maioria das vezes por essas narrativas místicas. O homem da
várzea Amazônica vive em equilíbrio com a natureza, sua vida e
totalmente regida por ela.
No mundo sobrenatural do homem de várzea podemos
encontrar os bichos visagentos, os companheiros do fundo -
também denominados de encantados-, ás mãe de bicho, a crença na
panema e na pajelança.
A panema quase sempre é provocada pela mulher em seu
período menstrual ou grávida atribui às pessoas e objetos deixando,
nos mesmos uma má sorte. Quando a panema afeta a pessoa a
mesma passa por uma fase em que nada dá certo em sua vida de
modo geral. Nas palavras de Galvão (1976, p.81)
[...] a panema passou ao linguajar popular de Amazônia com
o significado de “má sorte”, “desgraça”, “infelicidade”.
Incapacidade, talvez a melhor interpretação. Não se trata
propriamente de infelicidade ocasional, má sorte, azar, mas de uma
incapacidade de ação, cujas causas podem ser reconhecidas,
evitadas e para as quais existem processos apropriados.
O contato de mulheres menstruadas com os instrumentos
de trabalho e de pesca pode empanemá-los. Para a cura da panema
seja retirada é preciso que se façam defumações e banhos com

26
ervas, alho e pimenta. Esse procedimento não causa qualquer
aquele que produziu a panema.
Os caruanas, também conhecidos por companheiros do
fundo, moram em um reino encantado, no fundo do rio, que são
descritas como grandes cidades submersas. O homem ribeirinho
detalha esse o reino do fundo como a cidade material que
habitamos. Geralmente na comunidade eles conhecem alguém que
quase foi encantado, que sumiu por horas e até dias voltou, e passa
a contar o que viu, mas ressalta que nada comeu, pois se comesse
não poderia mais voltar para o mundo dos vivos.
É nessas cidades que habitam os encantados. Os encantados
são seres que passaram para o mundo espiritual sem passar pela
experiência da morte. O boto se enquadra nacategoria de seres
encantados. Os habitantes do fundo tem a forma humana quando
estão na sua cidade submersa.
O homem ribeirinho conhece duas espécies de boto, o tucuxi
e o vermelho. Os botos costumam acompanhar as embarcações
nadando ao lado das mesmas, são brincalhões e saltam das águas
chamando a atenção de quem viaja de barco. São extremamente
inteligentes, tem uma audição apurada, se comunicam com um
barulho característico e se alimentam de peixes. No imaginário do
homem amazônida o boto tucuxi é um boto bom que ajuda o
homem, se ele necessitar; o boto vermelho é tido como malvado,
alaga canoa, malina das pessoas.
Quando um boto acompanha a embarcação o melhor que
se faz é não dar atenção a ele, fazer de conta que não esta vendo,
não zombar, evitar barulho e piadas, pois a simples observação do
mesmo atrai a sua malinesa. O boto malina das pessoas provocando
febre, dor no corpo, palidez e dor de cabeça.
A moça menstruada é seu ponto fraco, portanto a mulher
deve evitar andar de canoa e se aproximar de igarapés e rios. Um
ataque de boto pode leva a moça a buscar incessantemente o rio,
na tentativa de ir à busca do mesmo. O período do menstrual da
mulher atrai a impureza, e tudo o que ela toca também passa para
esse estado de pecado. A impureza nas palavras de Caillois (1963, p.
27
56) a “impureza reúne em si a doença, a fraqueza, a cobardia, a
imperícia, a enfermidade, o azar, a miséria, o infortúnio, a danação”,
deixando a mesma vulnerável, enfraquecida, presa fácil para a
maldade do boto.
Uma que a mulher tenha sido atacadapelo boto, sua mazela
sóterá fim se houver a intervenção do curador através da pajelança
cabocla, os ataques de boto médico não cura só o curador.Essas
crenças são esclarecidas por Galvão (1976, p. 4) que nos coloca “a
maioria das crenças não católicas do caboclo amazônico deriva do
ancestral ameríndio. Foram, entretanto, modificadas e influenciadas
no processo de amalgação com outras com outras de origem ibérica
e mesmo africana”.
Considerações finais
O universo simbólico cultural amazonense é povoado por
seres imaginários que habitam os mais variados recantos, dando a
esta região um imaginário que carrega consigo uma beleza
imensurável em toda sua plenitude.
Grande parte desse universo simbólico cultural é resultado
da herança indígena tupi-guarani que ocuparam de parte da região
e seus afluentes. No período da colonização os tupi foram aldeados
nas missões e sua língua foi adaptada para ser de língua geral dos
aldeamentos e utilizada por comerciantes e colonizadores que por
aqui chegavam.
Essa herança indígena foi se fundindo com a herança
europeia trazida pelos colonizadores e a negra que veio com os
imigrantes africanos que eram trazidos como escravos e que fugiam
de seus donos, nesta região desenvolviam seus ritos culturais para
lembrar sua terra distante.
As crenças católicas e não católicas do caboco de várzea do
baixo Amazonas resultam dessa miscigenação de crenças a santos e
a seres sobrenaturais. O homem de várzea vivencia sua cultura
através de danças, contos, poesias, lendas, estórias, mitos,
crendices, superstições, artesanatos, usos, costumes, narrativas,

28
emfim uma serie de tradições transmitidas de gerações em
gerações.
Uma das características das crenças cabocas é que elas são
de origem mítica, foram criadas por alguém cujo nome é ignorado,
incorporando-se nas manifestações populares da região e da
comunidade, isto é, passam a fazer parte davida cotidiana da
localidade, sendo entendida como verdade absoluta.
Um dos mais importantes exemplos desse tipo de mútua
influencia é representado pelos africanos trazidos como escravos
para o Brasil. No principio formavam agrupamentos isolados, o que
favorecia a manutenção das suas tradições com bastante fidelidade,
e quando esses grupos desfizeram-se os mesmos encarregaram-se
de espalhar Brasil a fora sua influencia cultural.
O colonizador trouxe para Brasil muitas manifestações do
folclore lusitano que, por sua vez encontrou aqui um folclore
riquíssimo, contado pelos indígenas, principalmente hábeis
contadores de estórias, que possuíam lendas para explicar a origem
de todos os fatos importantes com que conviviam. Essa mistura de
saberes cultural deu origem à pluralidade da religião brasileira.
A Cobra Grande e o boto vivem nas águas dos nossos rios e
seus afluentes e exigempor parte do caboco especial atenção, visto
que os feitos desses dois seres aquáticos permeia a vida dos povos
que moram as margens do rio Amazonas.
Essas crenças são incorporadas a religião e fazem parte da
vivencia das comunidades de várzea amazônica, visto que exprimem
relações com o sobrenatural. Muitas dessas crenças adentraram o
imaginário caboclo a partir da colonização, GALVÃO (1976, p. 66)
nos esclarece que
Algumas crenças derivam de tradições européias
conservadas e transmitidas pelos colonos dos primórdios do
povoamento ou mesmo por imigrantes recentes, outras, trazidas
pelos escravos africanos e, finalmente, muitas que se atribuem ao
ancestral ameríndio”.

29
A maioria das crenças amazônicas tem origem ameríndia na
maioria dos autores analisados. Galvão (1976, p. 66) constata que
A origem ameríndia, e mais particularmente, tupi-guarani,
de crenças e concepções de sobrenaturais como as que se referem
ao currupira, a matintaperera, ao boto, e outros seres, que na
concepção do caboclo habitam a água, o fundo dos rios, ou da
floresta. Essas identificações merecem crédito.
Todas essas manifestações relacionadas ao imaginário
caboclo falam muito do seu modo de ser e de viver, devem ser
respeitadas, pois para o mesmo elas possuem enorme significado de
orientação familiar e social. A religião tem forte impacto na vivencia
do caboco que reverencia o santo de sua devoção, mas não esquece
os seres sobrenaturais que acredita também habitar a comunidade
seja nas matas seja nos rios.
Referências
1. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano/Mircea Eliade; [tradução
Rogério Fernandes]. – São Paulo: Martins Fontes, 1986.
2. CAILLOIS, Roger. O homem e o sagrado. 3. ed. Lisboa: Edições
70, 1963.
3. GALVAO, Eduardo. Santos e visagens: um estudo da vida
religiosa de Itá, baixo Amazonas. 2ª ed. São Paulo, Ed. Nacional;
Brasilia, INL, 1976.
4. LAPLATINE; TRINDADE, François; Liana. O que é o imaginário. Ed.
Brasiliense. 2003.
5. MAUÉS, Raymundo Heraldo. Padres, pajés, santos e festas:
catolicismo popular e controle eclesiástico. Um estudo
antropológico numa área do interior da Amazônia/ Raymundo
Heraldo Maués. – Belém :Cejup, 1995.
6. MELO, Luiz Gonzaga de. Antropologia Cultural: Iniciação Teoria e
Temas. 9ª ed. Petrópolis, Editora Vozes, 2002.
7. WAGLEY, Charles. Uma comunidade amazônica: estudo do
homem nos trópicos/ Charles Wagley; tradução de Clotilde da
Silva Costa. – 3. ed. – Belo Horizonte : Itatiaia; São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1988.
30
M.sC. Alexsandro Melo Medeiros 8
Dr. Nelson Matos de Noronha9

A figura do coronelismo
tem estado presente na vida social
e política do Brasil, inclusive na
Amazônia. Leal (1978) afirma que o
termo coronel designava o chefe, o
mandão, o grande senhor de terras,
a base da organização da República
Velha. Um símbolo de poder local
(FORTUNATO, 2000; FAORO, 2000).
O coronelismo buscava legitimar as
relações políticas e sociais como
institucionais e hierárquicas, a
partir de uma concepção de poder
Figura 1 – Os Coronéis – In Gabriela
(Atores : Paulo Gracindo, Castro Gonzaga como exercício de dominação e
e Francisco Dantas). Acervo de Orias Elias.
apropriação por parte de uma
classe dominante. Alguns historiadores denominavam os coronéis
de senhores feudais, pois eram eles que comandavam a família, a

8Master in Philosophy by Federal University of Pernambuco (Brazil). Doctor degree student


in Society and Culture in Amazonia - PPGSCA by Federal University of Amazonas – UFAM.
Actually is Professor and Researcher at UFAM (Brazi)
9Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas com estágio doutoral (bolsa
sanduíche) na École Normale Supérieure de Paris, em 1997/1998, sob a direção de Claude
Imbert. Atualmente é Professor e pesquisador da UFAM junto ao Programa de Pós-
Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia – PPGSCA/UFAM.

31
parentela, os escravos, os agregados, os capangas e, no caso da
Amazônia, os seringais. De acordo com Fortunado (2000, p. 02),
O conceito de coronelismo e a imagem do coronel, criados
para designar o domínio do ‘poder local’ pelas elites políticas
brasileiras e legitimados continuamente como um saber dominante
e imutável adquiriram positividade que perpassa os diversos
discursos sobre o exercício do ‘poder local’ no Brasil.
Para Leal (1978) o coronelismo é um sistema político datado
historicamente na Primeira República (1889-1930), também
chamada de República dos Coronéis. Carone (1978) e Janotti (1989),
por sua vez, ressaltam que o fenômeno do coronelismo se constituiu
desde o Império. De acordo com a visão desses autores, o que se
verifica com a República é uma ampliação do papel do coronel na
nova estrutura política, permanecendo o Brasil com uma forma de
poder centralizada, onde permaneceram as antigas oligarquias
representadas por antigos proprietários de terra aliado agora aos
banqueiros e produtores de café.
Não é propósito deste artigo entrar nesta discussão sobre as
origens históricas do coronelismo, mas sim entender este fenômeno
como elemento que define as relações de poder, um poder que
produz e é produzido permanentemente nas relações sociais
(FOUCAULT, 1979), relações que são simultaneamente políticas e
econômicas, valorizando as hierarquias sociais, escamoteando as
diferenças e considerando como o coronelismo esteve presente em
várias regiões do Brasil e em várias épocas e se constituiu numa
oligarquia dominante nos conchavos políticos.
Neste artigo pretendemos utilizar este referencial teórico
que tem como base as relações de poder que são produzidas
permanentemente nas relações sociais tomando também como o
base o projeto de doutorado de um dos autores deste artigo, onde é
feito uma análise dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas no
município de Parintins, sobretudo o Conselho Municipal de Saúde, a
partir das relações que se estabelecem nestes espaços
demonstrando como tais relações também podem ser consideradas

32
como relações hierárquicas, de dominação, manutenção e até
mesmo abuso de poder.
Coronelismo sem coronéis
O coronelismo como fenômeno historicamente situado e
sistema de poder entrou em declínio em meados da década de
1930, contudo, o poder dos coronéis não desapareceu, assim como
não desapareceu as oligarquias rurais que permaneceram como
classes dominantes nas suas áreas de influência. Atualmente
existem várias discussões de teóricos das ciências sociais sobre
como o fenômeno do coronelismo se manteve após o seu declínio.
Alguns autores falam de coronelismo urbano (QUEIROZ, 1976),
novos coronéis (SÁ, 1979) e até em neocoronelismo (REIS, 1978;
ANDRADE, 1985 e 1988).
Com o tempo tornou-se costumeiro, mesmo sem o título
oficial, agregá-lo ao nome de alguns proprietários de terra. Esse
coronel se tornou em muitos casos chefe político e para ele se
pediam votos em tempos de eleição. Além disso a sua influência era
patente para fazer com que as decisões do poder público se
direcionassem para seus interesses. Foi o coronel quem criou a
figura do voto de defunto e voto de cabresto, situação na qual o
coronel impunha sua autoridade e comandava o seu eleitorado
influenciando a todos que viviam sob sua jurisdição, sem o mínimo
critério político-partidário. Torres (2009, p. 104) aponta que esse
tipo de prática é bem antigo na região amazônica: “Cédulas
preenchidas e entregues ao eleitor para votar, reabilitação dos
mortos nas urnas, sumiço de urnas, de atas de eleição, nada é
novidade”. O coronelismo é utilizado para fazer barganha com o uso
de bens públicos, apropriação privada da coisa pública com fins
pessoais que se aproveita da necessidade e da condição sócio
econômica das pessoas como moeda de troca. Fortunato (2000, p.
179-180) assinala que,
No código cultural do coronel, a lei tem a função de
satisfazer suas ambições e seus objetivos pessoais. Nas relações
entre os coronéis e seus correligionários, assim como nas relações
entre os coronéis e os poderes estadual e federal, as alianças e
33
rupturas se dão de acordo com as conveniências e os interesses
pessoais.
A imagem tanto do coronel quanto do coronelismo está
relacionada com as noções de poder e as grandes propriedades de
terra, embora para Carone (1978), Faoro (2000), Fortunato (2000)
só a propriedade de terra não seja elemento suficiente para explicar
o fenômeno do coronelismo, devendo, pois, serem acrescentados
outros fatores, como o elemento familiar, um sistema eleitoral
baseado na troca de favores, a formação política brasileira
patrimonialista10e até mesmo o carisma.
Ressalte-se que além do debate em torno de cientistas
sociais e historiadores, a literatura regionalista da década de 1930
(AMADO, 1982a e 1982b; GOMES, 1981) também utilizou como
suporte de suas criações ficcionais estas relações de poder ajudando
a reforçar uma concepção de coronelismo que caracteriza uma
particular concepção de lei e de norma.
No caso da Amazônia, e sem nos determos
demasiadamente neste ponto, a figura do coronel aparece
representada na literatura através de obras como: Coronel de
Barranco de 1970, de Cláudio de Araújo Lima (2002); Seringal de
1972, de Miguel Jeronymo Ferrante (2007); e Terra Caída de 1961,
de José de Potyguara (2007).
O romance Seringal traz a figura do coronel Fábio e do
seringueiro Chico Xavier. Em Coronel de Barranco, coronel Cipriano
representa a figura paradoxal de um ex-seringueiro que roubou do
patrão para enriquecer. Na posição de coronel era o elo entre o
seringal e as casas aviadoras de Belém e Manaus – as financiadoras
das mercadorias do barracão e as compradoras da borracha. Eis
uma breve descrição que é feita do coronel Cipriano: “Vaidoso

10
Segundo Faoro (2000), o conceito de patrimonialismo caracteriza um elemento
estrutural da sociedade brasileira: uma relação entre Estado e sociedade em que o
primeiro oprime a segunda pela reprodução de um sistema de privilégios em favor
de uma burocracia estatal. A administração política brasileira, reflexo da política
adotada em Portugal, baseava-se em um estamento burocrático centralizado no
poder do Estado atuando em favor dos interesses dos próprios governantes.

34
convicto da sua importância [...] o dente de ouro sempre à mostra,
‘farol’ de brilhante enfiado no indicador direito, Cipriano encarnava
o símbolo da abastança naquela época de arrivismo e desvario”
(LIMA, 2002, p. 100).
Coronelismo na Amazônia
Como já tivemos a oportunidade de frisar, se a figura oficial
do coronel deixou de existir, a prática coronelista não desapareceu.
E na Amazônia também é comum fazer referência a essa prática
utilizando como sinônimo de coronéis a expressão: caciques. São os
caciques da política amazonense que determinam, de modo geral, o
rumo que as políticas na região devem tomar.
Mas como e em que condições históricas surgiu a
construção de um poder local baseado em relações de poder
hierárquicas e dominantes no Brasil em geral e na Amazônia de
forma mais específica? Nossa hipótese é a de que foram as
condições históricas coloniais que permitiram que tal fato ocorresse.
Como afirma Becker (2005), o fundamento do povoamento
na Amazônia, desde o tempo colonial, se deu a partir das relações
entre poder e espaço geográfico. Um processo de colonização que
foi, na verdade, uma invasão pelos povos europeus, conforme
Gambini (2000), que não reconhecia um mínimo de valor na cultura
e tradição dos povos ameríndios e que, ao invadir suas terras, negou
que os indígenas tivessem alma, negou sua alma ancestral, negou
seu modo de sobrevivência, suas línguas, seus vínculos sociais, sua
mitologia, sua religião e que dizia à criança índia: “Esqueça quem
você é, quem são seus pais e de onde você veio. Isso tudo não vale
nada. Abandone sua identidade, desvencilhe-se de sua alma, olhe
para mim, espelhe-se em mim, queira e fique igual a mim”
(GAMBINI, 2000, p. 174).
O contato do colonizador com os povos ameríndios se deu,
desde o início, baseado em relações de poder e, para ser mais exato,
relações de saber e poder em que o colonizador, que detém mais
poder e mais saber, impõe ao outro a condição de colonizado e
descoberto.

35
No domínio do saber, a ideia criada sobre a Amazônia foi,
desde o início, uma construção social forjada a partir das narrativas
dos viajantes, cronistas, sacerdotes e historiadores que se
aventuraram pelo chamado Novo Mundo. Soranz (2010, p. 123)
chama a atenção para o fato de que,
Fundada sob a égide da colonização, a identidade brasileira
ficou marcada pelos conflitos e contradições oriundas das relações
problemáticas dos colonizadores e colonizados, marcadas por vários
conflitos de interesse e troca desigual, que se objetivam em
construções conceituais e categóricas que cristalizam verdades
preconcebidas e classificações arbitrárias, que marcam a história do
desenvolvimento social e cultural das colônias, assim como marcam
a história das ideias e conceitos elaborados sobre essas regiões.
No domínio do poder, as relações que se criaram na
Amazônia, estreitamente vinculadas ao domínio do saber, foi a de
tomada de posse de terras e dos recursos naturais aí existentes,
como afirma Ugarte (2009) ao analisar o contato do capitão
Francisco de Orellana com os povos indígenas. Para este autor
(2009, p. 397),
Aproveitando a situação amistosa que se lhe apresentava, o
capitão Orellana pediu àquele cacique/ senhor que convidasse
outros caciques/ senhores das regiões próximas, a fim de lhes falar
sobre a causa de sua estadia naquela terra [...] Na verdade, a
presença dos caciques/senhores era uma necessidade de caráter
político, uma vez que Francisco de Orellana preparava o ritual da
tomada de posse, em nome da Coroa espanhola, dos territórios
governados por aqueles.
Atos de posse que, em casos como o relatado por Ugarte, só
foram possíveis devido a uma confusão linguística, pois na visão do
autor, os caciques só se tornaram vassalos de um rei cujo nome nem
se quer deveriam ter identificado nas palavras verbalizadas por
Orellana e que habitava uma terra muito distante, devido à falta de
entendimento entre os conceitos políticos próprios de uma
realidade cultural europeia que nada tinha a ver com a realidade
dos povos indígenas. Quando Orellana pronunciou as palavras
36
“tomar posse em nome de Sua Majestade”, tornou-se um
consentimento por parte dos indígenas em razão do silêncio, não
por reconhecerem a autoridade do rei espanhol em suas terras, ou
seja, por não saberem, de fato, o que isto significava na prática,
conforme podemos perceber:
quaisquer que tenham sido as palavras dos 26 caciques, elas
se transformaram em ‘silêncio’ e, desse modo, em ‘consentimento’
para que Francisco de Orellana tomasse ‘posesión en nombre de Su
Majestad en todos’. O ato inovador nessa nova tomada de posse foi
a elevação de uma alta cruz, que se tornou objeto de curiosidade
dos índios (ibidem, p. 407).
Esse interesse da Coroa Portuguesa pelas terras indígenas e
da riqueza nela produzida aparece também no relato de Alexandre
Rodrigues Ferreira em sua Viagem Filosófica ao Rio Negro (2007).
Ao longo de sua obra Alexandre Rodrigues vai tomando nota dos
fatos que ele narra ao longo de sua viagem do que ele observa nas
povoações indígenas pelas quais vai passando. Da dificuldade que
alguns diretores tinham de manter a mão de obra indígena para
realizar o trabalho nos aldeamentos, “*...+ seja para extração de
madeira ou para atividade da agricultura e colheita de plantas e, não
havendo índios, que trabalhem, não há que esperar delas [das
povoações+ progresso nas lavouras” (2007, p. 72). E isso não era,
sem dúvida, por falta de recomendações por parte da Coroa
Portuguesa, e sim por falta de observância das leis existentes, como
o Regimento das Missões e as Cartas Circulares que faziam as mais
diversas recomendações e advertências para a administração dos
povoados.
O objetivo era claro: tornar os negócios lucrativos e
abundantes na região da Amazônia com o cultivo do arroz, anil,
algodão, café, entre outras atividades, para fazer prosperar a Coroa
Portuguesa. Como é o caso da advertência recomendada aos
diretores com a Carta Circular de 15 de setembro de 1773, que
afirma ser mais conveniente plantar cacoais na terra, do que ir ao
longe colher o cacau com “perigos de vida, gastos e muita demora”
(FERREIRA, 2007, p. 78). Se estas advertências tivessem sido
37
observadas, afirma Alexandre Rodrigues, as povoações estariam na
opulência e com muitos lucros nas negociações.
Por que ir tão longe para falar da prática do coronelismo nas
relações de poder na Amazônia? Porque como foi afirmado mais
acima e que constitui uma das hipóteses deste artigo é a ideia de
que a prática coronelista surge, na realidade, a partir das condições
históricas que se estabeleceram desde o Brasil colônia. Foram as
condições históricas do colonialismo que permitiram que o
coronelismo surgisse como um sistema político datado
historicamente como afirmam Carone (1978) e Janotti (1989), ou
seja, no período da República Velha e o que se observa na realidade
é uma ampliação do papel do coronel na nova estrutura política,
mas bem antes disso o Brasil já possuía uma estrutura de poder de
forma centralizada, hierárquica e oligárquica.
Considerando, de modo mais recente, o contexto
amazonense do final do século XIX e início do século XX, Torres
(2009, p. 62) destaca como as oligarquias políticas tiveram um papel
decisivo no período áureo da economia amazonense e como esse
arranjo de forças políticas e “de forças econômicas agiu re-
estruturando as classes e suas formas de poder”. É importante notar
como essa estrutura de relações de poder que se evidencia neste
contexto amazonense é o reflexo de uma estrutura mais ampla a
nível nacional que se personifica na figura de Getúlio Vargas e
repercute em vários centros do país, como na Bahia com Antônio
Carlos Magalhães e no Rio Grande do Sul, com Leonel Brizola
(TORRES, 2009, p. 64). Tais relações de poder podem facilmente ser
observadas também, no município de Parintins, interior do Estado
do Amazonas, distante 369 kmda cidade de Manaus, como veremos
agora.
Relações de Poder no Município de Parintins/AM
Depois de lançar um olhar para o passado vamos agora
deter o nosso olhar no tempo presente.
Embora o coronelismo em seu sentido restrito tenha
terminado em meados da década de 1930, sobreviveu a ele a
prática do mandonismo e dos coronéis (LEAL, 1978). É o que
38
podemos chamar de um coronelismo sem coronéis, representado
hoje em dia por uma estrutura burocrática representada por um
funcionalismo de Estado ligado aos poderes oligárquicos da nossa
sociedade. E por mais que existam hoje mecanismos para coibir
estas práticas, como o sistema do voto secreto ou a proliferação de
partidos políticos, os tais coronéis sempre procuram um jeito de
manter o seu curral eleitoral e o voto de cabresto, fazendo com que
o coronelismo se adapte a sucessivos momentos históricos
(JANOTTI, 1989).
Com base nestas ideias, o nosso intento é destacar neste
artigo como a prática coronelista, entendida como uma forma de
mando em que uma classe política controla as relações de poder em
uma sociedade, tem se reproduzido nas relações de poder no
contexto amazonense e, mais especificamente, na cidade de
Parintins. Os dados aqui apresentados foram coletados seguindo
uma orientação metodológica de pesquisa de tipo qualitativa,
utilizando como técnicas e instrumentos de pesquisa: pesquisa de
campo, observação sistemática e participante (uma vez que um dos
pesquisadores é conselheiro do Conselho Municipal de Saúde de
Parintins – CMS/PIN) e entrevistas semiestruturadas.
A atuação de um dos pesquisadores como conselheiro
permitiu uma observação sistemática das relações de poder que se
estabelecem no espaço do CMS/PIN, de forma participativa. A
observação participante é utilizada em pesquisa qualitativa para
coleta de dados onde o pesquisador não apenas observa de forma
passiva, mas, participa no cenário pesquisado (BECKER, 1994;
MINAYO, 2004). Nesse sentido, os dados obtidos para análise dos
resultados aqui apresentados advêm da conjugação da tríade:
“participação do pesquisador, ação dos sujeitos observados e
situação contextual” (FERNANDES; MOREIRA, 2013, p. 520).
Contribuíram também para a análise presente neste artigo quatro
entrevistas realizadas com quatro indivíduos que de alguma forma
tem uma vivência direta na esfera pública, seja como político
partidário ou como membro de movimentos sociais. Vamos chamar

39
cada um dos entrevistados por um nome fictício: Nicolau, Michel,
Paulo e Simone.
Nicolau iniciou sua vida pública em 1996, tentou ser
candidato a prefeito por duas vezes sem êxito, e foi vereador por
dois mandatos em um dos quais assumiu a presidência da Câmara
Municipal de Parintins por 02 anos. Michel e Paulo foram
presidentes de Conselhos de Políticas Públicas, atuando no Conselho
de Saúde e Educação, respectivamente. E Simone é uma educadora
popular, ativista social, representante de movimentos de mulheres
e acostumada a participar de movimentos e manifestações
populares, tendo atuado também como representante no Conselho
Municipal de Saúde. Cada um dos entrevistados apontou, de alguma
forma, as relações de poder que se evidenciam no cenário
parintinense como veremos a seguir.
Perguntado sobre os fatores determinantes da política
municipal Nicolau respondeu, utilizando a nomenclatura de pseudo
líder político, que:
O líder político manda e desmanda é aquele que tem
dinheiro que enricou com o dinheiro público, por isso que ele é líder,
ele é forte e lamentavelmente essas pessoas têm o controle sobre
determinados cargos. Por exemplo, um deputado estadual hoje que
é do município e está em Manaus ele sempre vai ao governador para
pedir a cabeça do gestor de uma escola estadual, de alguém que
trabalha em determinado lugar mas que exerce cargo de confiança
ou mesmo de alguém que seja concursado mas que ele pede para
que seja deslocado para outro município. Ou seja, tudo gira em
torno desse poder que a pessoa adquire, desse pseudo líder político
(PESQUISA DE CAMPO, 2016).
Paulo concorda com Nicolau no que diz respeito à forma de
atuação do governo municipal que se assemelha neste caso ao
modus operandis do governo estadual, ou seja, a de que tanto
governadores e prefeitos adotam como práticas políticas a sua
influência e autoridade como fator determinante das relações
sociais na esfera pública.

40
[...] quem está no comando do poder executivo, ele acaba
comandando também todas as outras organizações. As associações
de moto taxistas, de taxistas, carroceiros... isso eu tenho visto que
todas essas organizações hoje que tem eleição normalmente as
pessoas querem ser presidente. Por quê? No fundo, no momento das
eleições eles são procurados para tentar convencer suas classes que
é justamente para dar sustentação ao prefeito, seja o eleito ou
aquele que está concorrendo. E aí é claro que se reflete muito em
toda vida parintinense [...] Quando eu penso por exemplo nos
gestores de escola: é urgente nós pensarmos uma política para
gestor dentro daquela ideia da gestão democrática tendo uma
eleição a cada dois anos, pois hoje o que define ser gestor de uma
escola? Que o cara esteja na campanha balançando a bandeira. Ele
pode não ter nenhum requisito para ser gestor, mas se ele estava na
campanha então ele vai ser gestor. Isso nós precisaríamos de certa
forma acabar porque caso contrário nós vamos ficar gritando,
batendo, dizendo que está errado, mas ele precisa ser discutido
dentro de uma política pública para a educação (PESQUISA DE
CAMPO, 2016).
É o tipo de prática remanescente do velho esquema da
política de favores, como aponta Torres (2009, p. 83) “de concessão
de vagas disponíveis no magistério do interior do Estado às famílias
oligárquicas, feitas pelo chefe do Executivo Estadual”. Tanto as
vagas do magistério como também as das magistraturas eram
reservadas principalmente aos filhos de poderosos coronéis e das
famílias oligárquicas, ocasionando “uma situação de prática política
viciada em que o governante era obrigado a atender a vontade dos
aliados” (2009, p. 102), chegando mesmo ao extremo da nomeação,
na gestão de Álvaro Maia, “de um professor de grego, que não sabia
grego” (2009, p. 102).
Esse tipo de prática coronelista e mandonista parece ser
algo bem presente ainda hoje nas relações de poder locais e pode
ser evidenciada no espaço público dos Conselhos de Políticas
Públicas. Um bom exemplo disto tem a ver com o papel que os
gestores (prefeitos, secretários de saúde e educação, diretores de

41
hospital ou de escolas) têm desempenhado no âmbito dos
Conselhos de Saúde e Educação.
O papel dos gestores na definição de quem participará dos
conselhos tem sido um dado explorado por vários pesquisadores
como Oliveira e Pinheiro (2010), Paiva, Stralen e Costa (2014, p.
490), sendo que estes últimos revelam que,
[...] os representantes do poder executivo buscam articular
parcerias que melhor representem seus interesses. Neste sentido, a
proximidade do ator estatal com alguns segmentos sociais poderá
significar suas indicações para a composição do conselho, sendo,
portanto, estrategicamente inseridos nos espaços públicos mais em
razão de sua aliança com o ator estatal do que de fato por
representarem a diversidade existente na esfera da sociedade civil.
Nosso entrevistado Michel destaca como este tipo de
prática política se reflete inclusive na falta de autonomia dos
Conselhos de Políticas Públicas, criando dificuldades e obstáculos
para que o Conselho Municipal de Saúde, por exemplo, possa tomar
decisões independentes da gestão pública ou, pelo menos, sem
sofrer qualquer tipo de coerção social para aprovar determinada
política pública. “Eu passei por experiência no conselho que era
visível que conselheiros representantes dos usuários tava ali
incitando, sabe, movimentando o conselho para ajudar as decisões
que os secretários queriam, que as secretárias queriam, que a
gestão queria” (PESQUISA DE CAMPO, 2016). Michel mencionou
ainda um fato que aconteceu com um dos funcionários da Secretaria
Municipal de Saúde (SEMSA), que havia sido indicado para exercer a
função de secretário executivo do Conselho Municipal de Saúde e
que, para obedecer aos princípios da ética na pesquisa, iremos usar
nomes fictícios para designar tanto o funcionário, quanto um
candidato a prefeito que é mencionado na citação:
O Hipócrates é um funcionário da SEMSA, que tem vínculo
familiar com o candidato que perdeu as eleições, ele é cunhado do
Odorico Paraguaçú, alguma coisa assim, e ele já trabalhou antes no
conselho municipal de meio ambiente. Então ele tinha uma
experiência em conselhos e a gente pediu a remoção do Hipócrates
42
pro conselho. O que que acontece? Ele foi acuado, ele foi intimidado
dentro da SEMSA. Depois eu descobri que fizeram um documento e
entregaram pra ele na presença da gerente de atenção básica da
Secretaria de Saúde pra ele assinar o documento. Que dizia, que
tava escrito na pessoa dele: eu, Hipócrates, fulano de tal, não posso
porque exerço a função tal, tal, tal, na atenção básica. Quer dizer, é
um sistema que serve pra quê, pra acuar o funcionário que possa
tentar ajudar o conselho. E isso daí eu fiquei sabendo da própria
pessoa, do próprio Hipócrates (PESQUISA DE CAMPO, 2016).
A figura do coronel não existe mais no município de
Parintins, mas a vida social e política do município está permeada
por grupos políticos locais que representam e simbolizam um saber
dominante e um “poder local” (FORTUNATO, 2000; FAORO, 2000). O
objetivo é claro: a manutenção das relações institucionais e
hierárquicas, a partir de uma concepção de poder como exercício de
dominação e apropriação por parte destes grupos.
É evidente como as relações de poder estão presentes no
espaço público municipal. E nossa observação de campo só tende a
corroborar esse ponto de vista ao analisarmos, por exemplo, a
última eleição para presidente do Conselho Municipal de Saúde de
Parintins realizada em meados de 2015. Os fatos observados
sugerem uma articulação do poder público para determinar: 1) a
saída do então presidente do CMS/PIN (representante da sociedade
civil organizada) que, ao ser demitido do seu trabalho, não poderia
mais atuar no conselho por não mais representar a categoria pela
qual tinha sido eleito; 2) e uma articulação em torno da eleição para
presidente do CMS/PIN para eleger a então Secretária Municipal de
Saúde, que, como representante da gestão municipal, seria alguém
de confiança e subordinada ao chefe do Executivo.
O interesse da gestão municipal nessa articulação do poder
executivo se justificaria em razão da postura do então presidente do
Conselho Municipal de Saúde de Parintins, representante da
sociedade civil organizada, postura de “enfrentamento” e conflitos
com os interesses da Secretaria Municipal de Saúde. E, embora não
tenhamos provas materiais para afirmar que houve algum tipo de
43
interferência por parte do poder público municipal nas relações de
trabalho do então presidente, que chegou a receber um
comunicado de desligamento de suas funções no seu emprego,
parece uma coincidência muito grande que este fato tenha ocorrido
exatamente a partir do momento em que o mesmo adotou uma
postura crítica nas plenárias do CMS/PIN.
O episódio em torno da eleição do novo presidente do
CMS/PIN também revela uma possível articulação por trás dos
bastidores para eleger presidente o representante da gestão
municipal: se candidataram ao cargo de presidente um outro
representante dos usuários (sociedade civil organizada) e a então
Secretária Municipal de Saúde. Chegado o dia da eleição e iniciada a
reunião ordinária do CMS/PIN, os dois candidatos fazem um
discurso onde se colocam à disposição para assumir o cargo de
presidente e tem início a eleição. Estavam presentes 15, dos 16
conselheiros titulares aptos a votar. A então Secretária Municipal de
Saúde vence a eleição por 10 votos a 5 e, até aqui, tudo aconteceu
normalmente, como manda um processo eleitoral e democrático.
Quais são, portanto, os fatores que nos levam a analisar este fato a
partir das relações de poder que temos dado ênfase ao longo do
nosso artigo?
Chama a atenção o fato de conselheiros que raramente
apareciam nas reuniões ordinárias, comparecerem na reunião de
eleição do presidente. Algo que inclusive poderia ter sido
questionado na reunião, já que pelo Regimento Interno do
CMS/PIN, o conselheiro que faltar a 3 reuniões seguidas, ou 6
reuniões intercaladas, sem justificativa, automaticamente deixa de
exercer a função de conselheiro. E o que mais chamou a atenção:
um destes conselheiros chegou para a reunião, participou do pleito,
e logo em seguida se retirou, demonstrando claramente que tinha
comparecido àquela reunião única e exclusivamente para votar e,
muito provavelmente, não foi para votar no representante da
sociedade civil. Ademais, dos 15 conselheiros presentes, 08 eram
representantes da sociedade civil, já que para obedecer ao princípio
da paridade, 50% dos membros de um Conselho de Políticas

44
Públicas deve ser composto por representantes da sociedade civil
organizada. O que significa dizer que, dos 08 votos possíveis de
representantes da sociedade civil, pelo menos 03 deles votaram no
representante da gestão pública, ao invés de votar no representante
da sociedade civil o que, mais uma vez, pode ser indício de práticas
de trocas de favores no âmbito do CMS/PIN e articulações em torno
de interesses no espaço público.
A partir dos dados aqui apresentados, não seria exato dizer
que estamos presenciando um tipo de neocoronelismo como o
entende Reis (1978) e Andrade (1985 e 1988)? Uma forma de
coronelismo urbano (QUEIROZ, 1976) cujo fenômeno não está mais
associado aos grandes senhores de terra, mas a grupos políticos que
exercem seu poder e influenciam a vida da cidade (e do campo, por
conseguinte), com um único propósito e objetivo: chegar ao poder e
nele permanecer?
Não é improvável que tenha ocorrido no período das
eleições para presidência do CMS/PIN troca de favores,
caracterizando uma política clientelista, ou até mesmo de cunho
coronelista, já que muitos funcionários dependem do poder público
para sustentar suas famílias e caso não rezem conforme dita a
cartilha, terão seus empregos tirados, como foi o caso do ex
presidente do Conselho narrado mais acima.
Por fim vale destacar a denúncia feita por Simone, em sua
carta de renúncia à representação no Conselho Municipal de Saúde,
onde a mesma explica as razões que a levaram a pedir o seu
afastamento das atividades do CMS/PIN pelo que Simone chama de
balcão de negócios particulares e táticas de silenciamento, como
podemos ver na carta lida publicamente em sessão ordinária do
CMS/PIN:
A tática de silenciamento configurada na ausência de
interlocução para o efetivo enfrentamento às contradições
vivenciadas no Conselho Municipal e Saúde, de Parintins, forçam-me
ao afastamento do referido Conselho [...] tais vícios estão
impregnados na lógica do atual e perverso Estado Democrático, em
cuja dinâmica, Conselhos e outros instrumentos ditos de
45
“participação social” caracterizam-se a um “balcão de negócios
particulares” sob total comando de interesses politiqueiros a partir
de sutis acordos entre Secretários de Saúde, Mesas Diretoras e
Prefeitos (CARTA DE RENÚNCIA, 26 de maio de 2015).
Os dados aqui apresentados reforçam a ideia de Torres
(2009) de como tudo depende dos interesses políticos que estão em
jogo a partir de uma dialética fundante das relações de poder. Não
estaríamos aqui diante da parábola hegeliana presente na Dialética
do Senhor e do Escravo, que extrapola o terreno da alegoria para o
campo da ideologia, “tornando-o momento do itinerário dialético
que conduz a Razão à claridade do pleno conhecimento de si
mesma”? (VAZ, 1981, p. 09). Em caso positivo, este tema daria
ensejo a uma nova e profunda discussão, mas é chegada a hora de
por termo a este artigo.
Considerações Finais
A herança do passado colonial na Amazônia não deixa
dúvidas de como as relações que se estabeleceram na região foram
construídas a partir de relações de poder hierárquicas e
dominantes. A partir de um processo de colonização que não
reconhecia o valor cultural dos povos ameríndios o contato entre
colonizador e colonizado impôs uma condição de subordinação e
inferioridade para este último. O processo de colonização é
marcado por conflitos, contradições oriundas das relações entre
colonizadores e colonizados, interesses políticos que marcam a
história do desenvolvimento social e cultural na Amazônia.
No domínio do poder é marcante também a figura do
coronel: símbolo de poder local e base da organização da República
Velha. Um sistema político datado historicamente, presente no
contexto amazonense em fins do século XIX e início do século XX,
mas que ainda faz sentir os seus efeitos sobre os dias atuais.
O poder dos coronéis e das oligarquias políticas teve um
papel decisivo no arranjo de forças políticas e econômicas do
cenário amazonense e os fatos aqui analisados e relatados nos
levam a ponderar que as práticas políticas de cunho coronelista,
mandonista e clientelista permanecem bastante atuais: as práticas
46
coronelistas de relações de poder continuam vivas e ditam as
normas do jogo político. Relações de poder que permeiam as
disputas políticas, eleitorais, e que estão presentes também no
espaço público dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas. Uma
série de fatores coercitivos podem influenciar no modus operandis
destas novas ágoras, determinando que os projetos e as demandas
apresentados nos Conselhos podem não ser o resultado de uma
criação coletiva e, por conseguinte, objetivar interesses políticos e
particulares.
O coronelismo como fato histórico entrou em declínio. Mas
hoje ainda vivemos sob a égide de um coronelismo sem coronéis. De
uma política baseada no mando dos novos coronéis. De um
neocoronelismo que caracteriza uma concepção particular de lei e
norma, cuja função é satisfazer a ambição e os desejos pessoais e
particulares de quem está no poder, criando e estabelecendo
alianças, rupturas e relações de dominação de acordo com suas
próprias conveniências e interesses.
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ew/2175>. Acessado em 22/04/2016.

49
Kelem Rodrigues de Melo Pontes 11
Dra. Iraildes Caldas Torres 12

1. Introdução
Este estudotraz uma análise da violência doméstica em uma
abordagem geracional. A análise, mesmo que limitada, introduz um
neologismo conceitual que foge ao conceito estabelecido pela
psicologia que entende esta tipologia de violência como um
comportamento patológico transmitido dos pais aos filhos.
Dados da violência doméstica do município de Parintins
foram utilizados como bases empíricas para sedimentar e fortalecer
o neologismo conceitual utilizado na análise. Ao mesmo tempo os
dados também mostram o lado perverso dessa mazela no contexto
da mulher no Estado do Amazonas que pode ter sua origem no
patrimônio hereditário e cultural da família, sem deixar de lado o
histórico de violência doméstica que permeou a mulher desde a
colonização portuguesa no Estado.
2. Um conceito de violência doméstica geracional

11
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Sustentabilidade
na Amazônia; Membro do Grupo de Estudo, Pesquisa e Observatório Social: Gênero,
Política e Poder – GEPOS (Email: pmrkelem@hotmail.com).
12
Doutora em Ciências Sociais e Antropologia pela Pontífice Universidade Católica
de São Paulxo. Professora e Pesquisadora da Universidade Federal do Amazonas –
UFAM (Email iraildes.caldas@gmail.com).

50
A dificuldade de se encontrar literaturas no âmbito do
Serviço Social que tragam conceitos relativos à violência doméstica
geracional se apresenta como um dos primeiros entraves a ser
vencido para a consecução de trabalhos que tratem deste tema. A
violência doméstica tem sido objeto de estudos de diversos autores
do Serviço Social assim também como os estudos sobre as gerações,
porém verifica-se que esses estudos não fazem conexão entre
ambos os conceitos, tratando-os como unidades conceituais
separadas.
Estudos mais profícuos sobre a violência doméstica
geracional foram encontrados no campo da psicologia e eles buscam
compreender a problemática a partir de um processo de
transmissão de comportamentos dos pais aos filhos. Para a
psicologia
filhos que testemunharam violência entre os pais tem maior
risco de apresentar problemas de adaptação social, delinquência e
transtornos mentais, e posteriormente na vida adulta tornarem-se
perpetradores ou vítimas de violência conjugal (MIRANDA, et al.,
2010, p. 301).

A psicologia compreende que a violência doméstica


geracional é transmitida pela exposição dos filhos a um ambiente
familiar conflituoso sendo caracterizada como um tipo de patologia.
Hiller (2010, p.60) assinala que “*...+ sujeitos que foram vítimas ou
testemunharam comportamentos de violência na família de origem
apresentam uma maior probabilidade de virem a desenvolver
comportamentos violentos no futuro em suas relações conjugais”.
Infere-se, portanto, que no campo da psicologia se compreende que
essa transmissão geracional ocorre porque os filhos não tiveram
outros modelos de famílias que os conduzissem a atitudes e ações
diferentes das transmitidas pelo ambiente doméstico violento.
Não obstante, este estudo não teve a finalidade de enfocar
a violência doméstica geracional como uma transmissão onde pais
violentos levam os filhos a serem violentos na fase adulta.
Pretendeu-se verificá-la como uma emergência que brota das
51
interações entre os membros da família e destes com o sistema
social onde se inserem atrelados às suas heranças hereditárias.
Assim, tomou-se a violência doméstica geracional como
uma tipologia de violência que se caracteriza por um círculo vicioso
na medida em que se buscou entende-la a partir de um neologismo
conceitual apoiado nos estudos sobre geração e hereditariedade a
partir de duas abordagens teóricas: a abordagem sociológica sobre
gerações de Karl Mannheim e a dialética da complexidade de Edgar
Morin.
Para se compreender o termo geração e o seu sentido
tomado neste estudo, é primordial que apresentemos alguns
significados deste conceito, mesmo limitados, em razão de suas
características polissêmicas. Forquin (2003) apresenta três formas
de acepção do conceito de geração. A primeira acepção se traduz na
compreensão do termo no sentido genealógico envolvendo as
relações de filiação ou grau de filiação a partir da origem de um
indivíduo; A segunda acepção se refere ao uso do termo no sentido
de classe ou categoria de idade como: jovem geração, geração
adulta, antiga geração, dentre outras. E por último, a acepção de
geração no sentido histórico e sociológico quando se designa um
conjunto de pessoas que nasceram em um mesmo período de
tempo tendo em comum uma experiência histórica idêntica ou
alguma proximidade cultural.
O termo geração, segundo Motta e Weller (2010), ganhou
popularidade a partir de manifestações culturais e políticas (geração
hip-hop; geração dos caras pintadas); e dos desenvolvimentos
tecnológicos (geração Y; geração Net) conferidos pelos meios de
comunicação. O sociólogo Karl Mannheim13 foi quem realmente se
debruçou nos estudos do termo geração. Para este autor o termo
deveria ser compreendido no âmbito da dimensão histórica e
sociológica o que levaria ao entendimento de como são formadas as

13
Karl Mannheim (1893-1947) foi um sociólogo judeu húngaro aluno do sociólogo
Alfred Weber, irmão de Max Weber. Sua obra O problema das gerações tem sido
utilizada pelas ciências humanas e sociais como referência nos estudos sobre
geração.

52
gerações humanas. Seus estudos sobre geração se fundamentam
em três conceitos sequencialmente interligados; a) posição
geracional; b) conexão geracional; e c) unidade geracional. Weller
(2010, p.214-217)14 explica de forma clara e coesa a conexão entre
os três conceitos utilizados por Mannheim:
A posição geracional se refere à capacidade de os indivíduos
absorverem as experiências postas pela sociedade. Tais experiências
podem agrupar certos indivíduos e outros não, uma vez que nem
todos são capazes de participar das mesmas experiências. O
movimento acadêmico revolucionário do século XIX em Portugal
denominado de Geração 70 ou Geração Coimbra é tomado como
uma ilustração. Este movimento reuniu vários jovens intelectuais da
época que, influenciados por novas ideologias, trouxeram mudanças
ao campo político e cultural português, cujas transformações se
materializaram com a introdução do realismo15, porém nem todos
os jovens portugueses da época chegaram a participar deste
movimento.
Os jovens que absorveram os valores e as experiências
deste movimento se interligaram por motivações que os levaram a
trilhar o mesmo caminho naquele período. Essa interligação se
configura no segundo elemento do pensamento de Mannheim o
qual ele denomina de conexão geracional porque aquelas ideias e
aspirações uniram aqueles jovens em uma determinada situação,
nas mesmas experiências e na mesma temporalidade.
Esse agrupamento de jovens portugueses participantes da
mesma experiência naquele período se configura no terceiro
elemento estabelecido por Mannheim que ele denominou de
unidade geracional. Esta consiste na formação de grupos que

14
Doutora em sociologia pela universidade de Berlim, professora adjunta da
faculdade de educação da Universidade de Brasília, publicou o artigo intitulado A
atualidade do conceito de gerações de Karl Mannheim, no qual discute a atualidade
e pertinência do conceito de geração para os estudos contemporâneos.
15
O Realismo foi um movimento que ocorreu em 1865 em Portugal com o objetivo
de trazer novas ideias filosóficas e cientificas ao país, visto estar em voga na
Europa.

53
compartilham dos mesmos objetivos, interesses, experiência e
vivência. Cada grupo forma uma unidade de geração com
perspectiva, reações e posições diversas de outros grupos. Em
síntese, o conceito de geração em Mannheim se refere a um grupo
de indivíduos que compartilham a mesma experiência histórica, o
mesmo estilo de vida e a mesma forma de pensar e de agir em
determinado período de tempo.
Tomizaki (2010, p.338) porém, tomando como norte um
trabalho de Mauger16, disserta que Mannheim não considerou em
seus estudos sobre geração “*...+ a dimensão familiar ou das
relações de parentesco”, uma vez que ele se preocupou em olhar
somente a dimensão social-histórica do termo. A autora, entretanto,
percebeu um relacionamento entre a abordagem conceitual de
Mannheim e a abordagem conceitual de gerações familiares,
mesmo com sutis diferenças entre ambas.
Para esta autora o conceito de geração abordado por
Mannheim (que se posiciona no âmbito social), não está descolado
do contexto das gerações familiares uma vez que a unidade
geracional apontada pelo autor envolve grupos concretos17 e neste
caso a família é considerada um grupo concreto onde seus
membros, pelo processo de socialização, recebem influências de
ordem social, política e econômica do sistema maior vigente.
Pressupõe-se que Mannheim percebeu o âmbito social do termo
geração sem considerar os aspectos hereditários da organização
familiar como elementos essenciais inerentes ao conceito. Assim
buscou-se na dialética da complexidade de Edgar Morin as
contribuições que poderão preencher essa lacuna deixada por
Mannheim.
Para Morin (2005) toda organização viva carrega consigo
uma inscrição genética que recebe hereditariamente de seus

16
Gerard Mauger é autor de um trabalho intitulado Géneration et rapport de
génerations, que estuda gerações familiares.
17
Grupos sociais concretos segundo Mannhein (1952) são grupos que mantem uma
relação existencial de pertencimento, o que é fundamental para a coesão do grupo,
tendo como exemplos a família e as seitas.
54
antepassados e as transmite por meio da reprodução a outras
gerações. O que se transmite às gerações futuras são características
de seus ancestrais, da raça e da espécie. É a vida e a possibilidade de
viver por si mesmo. Cada ser vivo nasce com uma tendência
hereditária, seja para se alimentar, acasalar ou cuidar da sua
progenitura. Morin acrescenta ainda que essa inscrição genética
inerente à estrutura dos genes é ao mesmo tempo repetição do
mesmo, recomeço do antigo, ressurreição, ou seja, o que a
organização viva vivencia hoje provém de seus antepassados.
Nossos pais e nossos ascendentes estão em nós e
estritamente associados aos nossos genomas18, em nosso
comportamento e hábitos mentais, inclusos em nossas identidades.
A título de ilustração, tomemos o pescado como elemento biológico
e cultural de nossa alimentação. O ato de nos alimentarmos do
pescado consiste numa relação biológica em que seus nutrientes
irão fazer parte do nosso ser biológico. Porém, o ritual da pesca, da
preparação e da forma como iremos ingerir o pescado se constitui
numa relação cultural que não é somente transmitida pelos nossos
ancestrais e aprendida oralmente por nós, mas encontra guarida em
nosso ser porque em nosso DNA a identidade cultural de nossos
antepassados está guardada e favorece a aceitabilidade desses
rituais que se traduzem nesses processos.
De acordo com Morin (2005) a essência do homem possui
elementos tanto biológicos quanto culturais, ambos indissociáveis,
sendo componentes de um mesmo anel19. A afetividade, a
inteligência e o espírito humano são realidades vivas que compõem
a subjetividade do homem e são provenientes da questão biológica
presente no seu DNA. Esses elementos são culturais porque fazem
parte do fenótipo humano que estrutura as caraterísticas externas,

18
Código genético que possui todas as informações hereditárias de um ser. Essa
codificação se situa no DNA, sendo o conjunto de todos os diferentes genes que se
encontram em cada núcleo de uma determinada espécie. O genoma humano
dispõe das informações básicas necessárias para o desenvolvimento físico de um
ser humano.
19
Para Morin o termo anel utilizado em sua abordagem teórica se refere à
circularidade dialética entres os componentes culturais e biológicos.
55
não somente físicas do homem, mas também as características
subjetivas inerentes a seu ser20.
Portanto, os embasamentos teóricos expressos neste tópico
e a possibilidade de associá-los a uma abordagem empírica nos
permitiu construir um conceito próprio de violência doméstica
geracional que foi utilizado no âmbito deste estudo. Então,
conceituou-se que: a violência doméstica geracional se constitui
numa tipologia de violência que emerge entre as gerações da
mesma linhagem familiar pela interação cultural entre os membros
da família, e entre estes e o sistema social no qual estão inseridos,
atrelados a uma herança hereditária impregnada de valores
culturais de seus antepassados.
Tratar a violência doméstica como uma emergência da
hereditariedade familiar se constitui num universo de dúvidas por se
tratar de um terreno movediço pela escassez de suporte literário
que nos permita fazer inferências mais robustas, portanto a
necessidade deste neologismo conceitual. A sua operacionalização é
expressa na Figura 1 da seguinte forma: Olha-se a família pela
abordagem sistêmica21 pensada por Morin (2011, p. 156-169).
Assim, o homem, a mulher e a prole constituem elementos do
sistema familiar. Tomando somente o homem e a mulher como
exemplos, entende-se que no sistema familiar ambos mantêm
interações22 entre si. A princípio estas interações estão fundadas no

20
Este assunto é de alta complexidade para ser aprofundamento neste estudo. Ele
se encontra melhor explicado no Método 2 - A vida da vida (Morin, 2005).
21
A abordagem sistêmica moriniana é dialética e está assim estruturada: os
elementos mantêm interações entre si e mantêm interações com o ambiente no
qual estão inseridos. A forma como esses elementos estão ou estarão organizados
no sistema depende das interações. Essa organização está em constante
transformação porque as interações produzem emergências (coisas novas) que
retroagem sobre esses elementos e sobre a própria organização. Sempre que se dá
a retroação ocorre o processo de complementaridade que se constitui em um tipo
de reorganização dos elementos no sistema formando uma nova organização,
porém mantendo a essência do sistema. Em Morin a organização é a essência e
também a estrutura interna do sistema, enquanto que o próprio sistema se
constitui na aparência externa.
22
Em Morin as interações se constituem numa relação de reciprocidade e
interdependência entre os componentes de um sistema. Essa interdependência se
traduz na perspectiva de que no sistema os seus elementos sempre precisarão dos
56
patrimônio hereditário de seus ancestrais inscrito em suas heranças
genéticas. Estas inscrições se traduzem em costumes, valores,
crenças e visões de mundo imanentes a cada um, manifestando-se
no sistema cultural familiar.
Este sistema cultural familiar também interage com o
sistema cultural da sociedade na qual a família está inserida. Isto se
mostra nas interações entre os membros da família e as unidades
geracionais, segundo a abordagem teórica de Mannheim. Estas
interações também se traduzem em costumes, valores, crenças e
visões de mundo que são absorvidos tanto pela família quanto pelo
sistema cultural onde esta se insere como uma via de mão dupla.

Figura 1: Esquema explicativo do conceito de violência familiar


geracional.
Fonte: Kelem Pontes, 2016.
De todas estas interações brotam emergências no seio do
sistema familiar que retroagem sobre os membros da família e
sobre esta como organização. A título de exemplo, tomemos o
nascimento dos filhos: O nascimento destes é uma emergência
procedente da interação biológica23 entre o homem e a mulher.
Quando estes nascem obrigam o homem e a mulher em seus papéis

outros para manter certos papéis, posições ou até mesmo sobreviverem. Em outras
palavras, num sistema um elemento nunca será completo sem o outro ou outros,
apesar de ter essência própria.
23
As interações familiares não se enquadram somente no contexto biológico, mas
em todas as outras dimensões que compõem o sistema familiar.
57
de pais a reorganizarem os seus hábitos familiares, as suas finanças,
a sua moradia, etc. isto se caracteriza como retroação. Quando esta
emergência se naturaliza no sistema cultural da família, isto se
caracteriza como complementaridade. Assim temos uma nova
organização do mesmo sistema familiar.
Portanto, pela Figura 1 infere-se que também a violência
doméstica geracional pode ser uma emergência porque ela brota
das interações familiares entre o homem e a mulher, uma vez que
estes podem carregar em suas heranças hereditárias este valor24
cultural herdado de seus antepassados, podendo a violência
doméstica geracional encontrar na interação da família com o
sistema social, onde se insere os mecanismos de disparo de suas
potencialidades, e ela é geracional porque pode brotar ou não nas
futuras famílias dos filhos tornando-se um círculo vicioso na
ontologia dessa família.
3. A cidade de Parintins no Amazonas como empiria
Parintins é um município localizado no extremo leste do
Estado do Amazonas fronteiriço ao Estado do Pará na Região Norte
do país, distando aproximadamente 360 quilômetros da capital
Manaus. Possui uma área territorial de aproximadamente 5.952,369
km² com densidade demográfica de 17,14 (hab/km²). Conforme o
Censo Demográfico/Cidades do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística - IBGE (2010) a cidade de Parintins é considerada o
segundo município mais populoso do Estado do Amazonas com uma
população de 102.033 habitantes, onde destes, 69.890 residem na
zona Urbana e 32.143 residem na área rural. Destes totais 49.729
são do sexo feminino, residindo 35.127 na área urbana e 14.602 na
área rural. A população masculina é de 52.304 homens sendo que
17.541 residem na área rural e 34.763 na área urbana.
Dos problemas sociais identificados em Parintins a violência
doméstica possui destaque por se mostrar significativa nos registros

24
Dissocio aqui a questão do juízo de valor, ou seja, não há o interesse em afirmar
se a violência doméstica é boa ou ruim como valor cultural.

58
de ocorrência da Delegacia Especializada de Atendimento a Mulher
– DEAM’s nos últimos três anos como se percebe no Quadro 1:

Total de registros de
Quantitativos de inquéritos
ANO
violência doméstica encaminhados à justiça

2013 920 186

2014 715 145

2015 915 182

Quadro 1: Registros de violência doméstica em Parintins, por ano, e


quantitativo de Boletins de Ocorrência que se transformaram em inquérito
encaminhado à justiça.

Fonte: Dados da DEAMs, adaptados pela autora.

Os dados apresentam um número significativo de registros


de violência doméstica no município de Parintins dos inúmeros que
não são registrados. Eles também evidenciam um número
insignificante de registros de denúncias que se transformam em
inquérito. Para Carneiro e Fraga (2012) quando a mulher vítima de
violência resolve denunciar a violência sofrida, a mesma dá o
primeiro passo na busca de proteção legal, entretanto quando
resolve não dar prosseguimento na justiça ou decide interromper
por algum motivo o andamento do inquérito, a violência que
outrora fora denunciada regrediu à violência silenciada.
Dados retirados de um total de 100 (cem)25 fichas de
triagem da DEAM’s evidenciaram que 55% das mulheres relataram
que a violência física é a mais praticada por seus companheiros; 20%
disseram ser a violência psicológica; 15% a violência moral; 5%
violência sexual; e 5% a violência patrimonial. Quanto à ocupação
destas mulheres, 52% relataram serem donas do lar; 30%
empregadas domésticas; 10% autônomas; e 8% professoras. Em
relação ao nível de escolaridade, 38% relataram ter o ensino

25
Justifica-se a escolha de somente 100 (cem) fichas de triagem porque nem
sempre a assistente social consegue preenchê-las devido a demanda de mulheres
se mostrar expressiva na sala de atendimento.
59
fundamental incompleto; 20% o ensino fundamental completo; 23%
o ensino médio incompleto; 10% o ensino médio completo; 5%
ensino superior incompleto; e 5% ensino superior completo. Trata-
se de várias modalidades de violência enfrentadas e vivenciadas
pelas mulheres, mas é a violência física que lidera o ranking.
Estes dados coletados das fichas de registros de triagem da
DEAM’s evidenciam que violência física é a mais cometida contra a
mulher, seguida da psicológica, moral, sexual e patrimonial. Por
mais que a violência física seja uma das maiores queixas das
mulheres e cada modalidade de violência seja distinta uma da outra,
Silva, et al (2007) salientam que elas se entrelaçam e se misturam
de maneiras diversas.
Este célere panorama desenhado pelos dados da DEAM’s
sobre a violência doméstica em Parintins juntamente com a opinião
de duas especialistas e mais a versão de duas vítimas possibilitou
um maior grau de confiabilidade no neologismo conceitual de que a
violência doméstica geracional pode ser uma emergência das
interações familiares entre o homem e a mulher, uma vez que estes
podem carregar em suas heranças hereditárias este valor cultural
herdado de seus antepassados, tendo nas interações familiares com
o sistema social onde esta se insere os mecanismos de disparo de
suas potencialidades.
Em diálogos com uma pesquisadora da temática de gênero
da Universidade Federal do Amazonas (que denominamos de Rosa
Branca) e com a assistente social da DEAMs (que denominamos de
Violeta) detectamos que ambas mantêm uma certa concordância
quanto ao entendimento de que a violência doméstica possui
características geracionais presentes em algumas gerações
familiares. Para Rosa Branca,
Cada pessoa traz em seus genes as experiências que seus
antepassados vivenciaram, e se esses ancestrais vivenciaram atos de
violência, isso está nos genes de seus descendentes por causa do
DNA que contêm todos as nossas informações genéticas. Portanto, a
mulher que vivenciou na sua infância situação de violência a chance

60
dela vivenciar a mesma situação na fase adulta é ainda maior
(entrevista, 2016).
O relato de Rosa Branca encontra suporte em Morin (2012),
pois segundo o autor a herança cultural que herdamos dos nossos
antepassados está inscrita, primeiro, na memória de cada pessoa e
posteriormente nas leis, nos direitos, nos textos sagrados, nas
literaturas e nas artes, obtidas em cada geração hereditária. Assim,
o patrimônio cultural familiar sofre transformações a cada geração.
Para Violeta, assistente social da DEAMs, a violência
doméstica com características geracionais é algo complexo e está
intrinsicamente relacionada ao sistema cultural. Quando esta se
naturaliza no contexto familiar pode chegar ao ponto de não ter
qualquer perspectiva de mudança entre as gerações. Conforme suas
palavras:
A violência doméstica geracional é a violência na qual a sua
cultura acaba influenciando o contexto familiar. Essa violência
envolve diversos fatores e não se pode encará-la como algo
reducionista tal a sua complexidade. Além disso, a violência
doméstica geracional envolve principalmente a cultura que a baliza
e a naturaliza, portanto, sem perspectiva de mudança nas gerações
futuras (entrevista, 2016).
Por mais que a assistente social tenha focado só os aspectos
culturais não considerando o aspecto hereditário, mesmo assim se
percebe uma conexão entre as duas falas, uma vez que, do ponto de
vista biológico, cada individuo carrega hereditariamente em seu
DNA características singulares de seus ancestrais. Já do ponto de
vista cultural, cada indivíduo carrega consigo os valores, costumes,
ideologias, modo de comer, beber, vestir e andar, produzindo dessa
forma cultura, conforme estabelece Morin (2005).
A violência doméstica geracional é sutil e imperceptível aos
membros da família uma vez que toma a forma de valor cultural
impedindo-os de perceberem que estão vivenciando situações
semelhantes às de seus antepassados. A assistente social da DEAM’s
relatou um caso de violência doméstica geracional que ilustra bem
essa assertiva:
61
Os vizinhos de uma mulher vieram até a delegacia denunciar
um homem que estava mantendo a mulher e o filho em cárcere
privado. Então, enviamos uma notificação para ele comparecer na
delegacia para prestar esclarecimentos. Ele disse que a denúncia
contra ele não era verdade. Ao conversar com a mulher ela também
negou o acontecido. Em dado momento pedi pra conversar a sós
com ela e aos poucos começou a relatar o porquê de tanto ela
quanto o filho não saírem de casa. A mesma disse que quando
criança a mãe a amarrava na perna da mesa para ela não ir pra rua e
ela achou isso natural, fazendo a mesma coisa com o filho de 10
anos. Como o companheiro era agressivo, ela e o filho procuravam
não sair de casa para não sofrer violência. A naturalização teve uma
justificativa: Para essa mãe amarrar a perna do filho à mesa não era
ruim porque na rua ele iria aprender muita coisa que não prestava
(Violeta, entrevista, 2016).
Nota-se nesse relato a geracionalidade da violência. As
interações familiares entre a mãe e o companheiro parecem estar
permeadas por heranças hereditárias naturalizadas não só nos
processos biológicos como também nos processos da cultura
familiar. O companheiro pode ter trazido a sua agressividade da
estrutura familiar de seus antepassados podendo essa agressividade
ser alimentada por sua participação em alguma unidade geracional
onde o autoritarismo e o machismo sejam a tônica.
O fortalecimento dessa assertiva ganha força quando se
ouve as vítimas da violência doméstica em Parintins. Jasmim (nome
fictício) relatou: “minha mãe já sofreu muito ao lado do meu
padrasto. Ele já bateu muito nela. A violência que a gente sofre vem
desde criança. O passado da gente é marcado desde o nascimento”.
Jasmim também sofria violência do companheiro e pode ter
herdando de sua mãe o valor cultural de submeter-se a este lado
obscuro das interações familiares das quais emerge esta mazela.
Um outro relato contribui para o fortalecimento do conceito
que trata a violência doméstica como uma emergência das
interações familiares atrelada à heranças hereditárias. Azaléa (nome
fictício) fez o seguinte relato: “Minha filha já bateu no pai com uma
62
panela. Meu filho disse ao pai dele que ele não é homem, pois bate
em mulher, então que fosse homem suficiente para bater nele. Foi
quando meu filho deu um murro no rosto do pai”. Azaléarelata que a
família do seu companheiro vive muitos conflitos até mesmo porque
todos os irmãos de seu marido são violentos com as esposas e
nenhuma delas havia sequer registrado algum boletim de
ocorrência. Na família do marido de Azaléa sempre houve conflitos
entre os pais e constantes brigas entre os irmãos envolvendo
violência física entre eles. O fato de todos os irmãos do marido de
Azaléa serem violentos com suas esposas denota a possibilidade de
terem herdado de seus pais esse valor cultural familiar. Nota-se
também aqui a geracionalidade da violência doméstica: o pai sendo
violento com a mãe, assim como os filhos sendo violentos com as
esposas.
Considerações finais
Este estudo sobre a violência doméstica em Parintins
procurou introduzir uma nova análise pela lente de um neologismo
conceitual que objetivou apontar as possíveis origens da violência
doméstica sofrida pela mulher por parte de seu companheiro no
seio familiar. No entanto, compreende-se que a emergência da
violência doméstica na estrutura familiar tendo a mulher como
vítima, mesmo que possa ter origens culturais e hereditárias, estará
sempre vinculada à dominação masculina e ao sistema social
vigente.
A sociedade inseriu a mulher “*...+ no lado do úmido, do
baixo, do curvo, do continuo, [...] dos trabalhos domésticos, ou seja,
privados e escondidos, ou até mesmo invisíveis e vergonhosos como
o cuidado das crianças e dos animais. [...] as mulheres não podem
senão tornar-se o que elas [...] estão naturalmente destinadas ao
baixo, ao torto, ao pequeno, ao mesquinho, ao fútil, etc”
(BOURDIEU, 2010, p.41), tudo isto simplesmente por sua condição
de ser mulher, o que a levou a ser tratada como um ser inferior.
Especificamente no Amazonas, Torres (2005) advoga que
historicamente a situação inferiorizada da mulher vem desde a
época da colonização quando estas eram tratadas como produtos
63
para o suprimento sexual dos homens que discriminadamente as
tratavam como tal.Essa imagem negativa da mulher, alimentada no
espaço da família, tende a ser repassada às futuras gerações
hereditária e culturalmente, alimentando a discriminação e a
violência contra a mesma, posteriormente sendo absorvida pelas
futuras gerações.
Referências
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impacto da política social do combate à violência doméstica no
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percepções sobre a violência de mulheres agredidas.
Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de pós-
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Ribeirão Preto / USP – Departamento de Psicologia e Educação,
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64
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66
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(in) sustentável do Trabalho Informal no Festival Folclórico de
Parintins – Amazonas. (Dissertação de mestrado) Programa de
Pós-Graduação em Serviço Social e sustentabilidade na
Amazônia da Universidade Federal do Amazonas. 2014 178 f.

67
Dr. Celso Augusto Torres do Nascimento26
Dra. Marilene Correa da Silva Freitas27

Pretender refletir sobre a Etnociência, uma noção nova que


desponta timidamente nos últimos tempos, supõe falar de uma
antropologia do território que estabeleça laços com o trabalho
agrícola autônomo, realizado no âmbito da cooperação. A
etnociência é, ainda, uma noção marginal, não inteligível aos olhos
da ciência moderno-cartesiana, aparece como algo bizarro, fato que
contribui para impor dificuldade à construção de um pensamento a
partir das localidades amazônicas com seus diferentes
conhecimentos e técnicas rudimentares de trabalho com a terra.
Essa perspectiva eurocêntrica de construção do
conhecimento assinalada, sobretudo, pelo movimento das luzes que
fertilizou o século XVIII, desertificando o sujeito, desapropriando o
mito e as tradições, tornando insípido o senso comum e
desabitando as subjetividades criativas do homem, foi plasmando o
sentido de verdade tendo por base o discurso científico unicamente.
Esta matriz nucleou toda a ciência ocidental, atualizada
constantemente na América Latina pela produção de um

26
Doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do
Amazonas - Sociologia do Trabalho. E professor da rede básica de ensino do
Amazonas – Seduc/AM.
27
Pós Doutora pela Université de CAEN e na UNESCO. Doutora em Ciências Sociais
– Unicamp. Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura
na Amazônia.
68
conhecimento emanado do Norte, como assimila Santos (2010), que
interferiu no destino dos povos da Amazônia.
Durand (2002) já havia concluído dizendo que o mundo
ocidental é essencialmente anti-imaginal e que, apesar da efusiva
produção de imagens consubstanciadas no cinema, na televisão, na
fotografia, produz uma forma de alienação do espírito, uma
consolidação do positivismo do século dezenove (CARVALHO, 1999).
Para este mesmo autor:
Nestes tempos hipermodernos [...] para que se torne
possível resgatar um modelo mais global para o entendimento
sapiental que dê conta dos conteúdos empíricos da natureza
humana e das diferenças interpretativas sobre indivíduos,
sociedades e história, o homem racional, loquens, deve subsumir-se
ao homo simbolicus, criador da representação imaginada que
circunda toda atividade especificamente humana (CARVALHO, 1999,
p.125).
O modo de relacionamento com o real estatui sentidos,
imprime representação fazendo uma epifania do local, do território,
pelos próprios sujeitos locais que possuem modos de vida
específicos e genuínos, embasado numa visão de mundo diferente
daquela da racionalidade moderna. A perspectiva de negação dos
saberes tradicionais, configurada em sistemas de exclusão, produziu
processos de controle do território. Spivak (2012), em seu estudo
sobre o tema do subalterno, questiona as estruturas dominantes
que excluíram a fala dos sujeitos que compõem as camadas mais
baixas da sociedade. A autora lembra que a fala do subalterno e do
colonizado é sempre intermediada pela voz de outrem, alheia à sua,
uma voz que fala em seu nome.
Diante desta perspectiva, o território assume a configuração
de instrumento de exercício de poder. Foucault (2006) chama
atenção para o fato de que há três procedimentos de exclusão na
ratio ocidental. Um primeiro procedimento em que a exclusão é
ligada à interdição que consiste na condição de não se ter “o direito
de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer
circunstância [...] que qualquer um não pode falar de qualquer
69
coisa” (FOUCAULT, 2006, p.9). Um outro elemento de exclusão é a
separação entre razão e loucura, na medida em que considera-se
que o discurso do louco não pode circular como o dos outros. E um
terceiro procedimento de exclusão que estabelece a separação
entre verdadeiro e falso, em que se identifica que o discurso
verdadeiro, preciso e desejável, é aquele ligado ao exercício.
Esse princípio epistemológico enraizado no pensamento
moderno, sustentado pela estrutura da razão instrumental, acabou
por substituir os signos da terra por signos abstratos. Sustenta um
processo de construção do saber domesticado pelas instituições de
poder e de mercado, passando por metamorfoses que se adaptam
em qualquer tempo e lugar. Este tipo de pensamento produziu um
“sistema de cidadania inconcluso, mutilado, que o Estado-Nação,
liberal burguês, pretendeu oferecer aos povos indígenas encerrados
em suas fronteiras territoriais” (VARESE, 1996, p.18).
Esse tipo de pensamento produziu uma concepção residual
de território que serve só para manuseio operacional, assentada
numa epistemologia da exclusão ou numa sociologia das ausências
como aponta Santos (2006), de modo que o território vai sendo
“fundamentalmente definido e delimitado a partir de relações de
poder” (SOUZA, 2000, p.78).
Em entrevista ao jornalista Wilson Nogueira a professora
Edna Castro tece forte crítica ao papel das Ciências Sociais, nesse
processo de construção de conhecimento, a saber:
Penso que a Sociologia deve uma leitura maior critica, mais
comprometida e mais original sobre a sociedade amazônica. Esse
desafio não foi cumprido. Há uma série de colegas que estão
trabalhando nesse sentido, mas esse fato é, um desafio e, ao mesmo
tempo, uma aposta que a Sociologia e as Ciências Sociais devem
fazer para que o entendimento da região ou a representação dessa
região, produzida dessa (nova) forma, atravesse a sociedade
brasileira, porque o Brasil não conhece o Brasil, o Brasil não conhece
a Amazônia. Não conhece e nem tem consciência de que não
conhece (CASTRO, 2008, 186).

70
É verdade que “o pensamento necessita de um esforço
particular e constante: sustentado pela original indignação até as
coisas” (ARISTÓTELES, 2002, p.3). Trata-se de uma propensão que
exige esforço e amor, ou melhor, philia, uma íntima amizade com as
coisas, uma peleja por aquilo que ama, um esforço pela
compreensão dela. Os pensadores gregos deixaram ao ocidente um
legado de visão do mundo da vida e das coisas, sistematizado em
conceitos. Fizeram uma leitura do mundo vivido na cidade, através
do fazer-filosófico, uma atividade da filosofia, apreendendo o
mundo das coisas num processo de autorreflexão do ser-sujeito
grego.
O prolongamento desse conhecimento se fez no mundo
greco-romano. Foi, pois, com a efervescência da modernidade, do
homem moderno, que esse prolongamento sofreu cisão, momento
em que apareceram as concepções racionalistas e empiristas. O
pensamento entra, então, em estado de tensão, que redunda no
desencantamento do mundo, como anuiu Max Weber28. Nesse
estado de tensão o conhecimento atravessou a doxa e alcançou a
episteme, o mundo dos conceitos 29,
A questão está em que, ao atravessar a doxa ou o senso
comum, o conhecimento científico, conceptual, estabeleceu uma
cisão com este tipo de conhecimento considerado tradicional,
fragmentário. O olhar do civilizado visualizou o saber tradicional
com rotulações, estigmas e estereótipos, próprio de culturas
“primitivas”, bárbaras e, por vezes, animistas. Um dos sujeitos de
nossa pesquisa, ao ver que somos da Universidade que é vista como

28
Max Weber (1864 – 1920) utiliza a expressão desencantamento do mundo na
conferência “Ciência como vocação", proferida em 1917. Embora o
desencantamento signifique desmagificação, a expressão é também empregada em
sentido amplo para designar formas modernas de vida que são desprovidas de
fundamento religioso e metafísico. Weber quer explicar de que forma se
desenvolveu o racionalismo ocidental e como ele moldou as características dessa
civilização.
29
Os conceitos são inventados e, ao serem criados, mais do que o cariz de
responder a problemas, sua função é a de organizar o pensamento, ao mesmo
tempo em que eles são acontecimentos do pensamento a partir dos problemas
(Vide Deleuze, 1994).
71
detentora do conhecimento, parece sentir-se impotente frente aos
seus próprios saberes ao dizer-nos o seguinte: “nós não sabemos
essa história do manejo, é uma coisa que vocês poderiam nos dizer,
nos orientar” (Damião, entrevista, 2015).
Ora, sabemos que os povos tradicionais da Amazônia são
exímios conhecedores da floresta, do seu sistema de reposição e
reflorestamento mais do que qualquer outro povo ou técnicos.
Trata-se de um ethos, pois para além da necessidade de
sobrevivência está o aspecto da sociabilidade que entrelaça razão e
emoção, numa relação de pertença e conservação do ambiente
natural. Batista (1976, p.53), é enfático em dizer que “o equilíbrio do
meio ambiente começou a se romper, a partir da colonização
portuguesa, à medida que as especiarias iam sendo retirada”.
Os povos tradicionais possuem relações de interatividade,
complementariedade e interdependência, pautados numa ética do
cuidado para com o planeta. Isto nos remete à perspectiva de
ecologia profunda sugerida por Capra (1996). O ethos dos povos
tradicionais da Amazônia que tem como um dos seus elementos a
conservação e o cuidado para com o planeta, por si só, constitui um
saber milenar arraigado à vida destes povos. Trata-se, como assinala
Almeida (2005) de interpretação de mundoe das coisas como
autoconsciência cultural, autoconsciência de poder e
autoconsciência de relações sociais.
O trabalho é outro fator de reserva cognitiva dos povos
tradicionais, em cujo saber-fazer reside técnicas milenares de cultivo
da terra. O trabalho aparece imbricado a uma rede de simbologia de
vivência e de produção de saberes tradicionais que tem por base as
relações de respeito e de afetividade com os elementos da
natureza.
A Amazônia possui uma estrutura ocupacional de feição
nacional, mas com particularidades de ocupabilidade tradicional
peculiares da região. A diversidade de trabalho e de ocupabilidade
que ela comporta são imensas e pouco conhecidas. Além das
diferenças produzidas pelos modos de realização locais e regionais
da economia e da cultura, grande parte dessa diversidade deve-se à
72
combinação de estratégias tradicionais e emergentes que se
inserem no âmbito dos saberes tradicionais do homem amazônico.
Silva (2012, p.11) chama a atenção para o fato de que “a
Amazônia põe questões singulares, é certo mas nunca isoladas.
Como um espaço de diversidades e de desigualdade, os
fundamentos organizativos da sociedade regional são também uma
dimensão da sociedade brasileira”. Trata-se, é verdade, de relações
que são travadas com o Estado brasileiro e com a nação para além
do espaço regionalizado. São relações de poder que se
interconectam com a soberania, com os conflitos sociais, com a
produção da pobreza e do propalado “subdesenvolvimento
regional”, que imprimem estereótipos à região como a enjeitada e
aquela que “puxa” o país para atrás (PINTO, 2000).
De acordo com Silva (2000, p, 05):
As relações mundiais contemporâneas impõem outras
circunstâncias históricas de inserção da Amazônia na dinâmica
global, de onde a região reemerge com feições e paradoxos
acentuados. Quanto mais a Amazônia é vista como um espaço
geopolítico, um paraíso fiscal, um patrimônio da humanidade, uma
zona econômica emergente, um banco genético planetário, mais as
contradições pretéritas e presentes dos ciclos históricos da
acumulação originária do capitalismo internacional, da economia
mundial, ganham complexidade no plano local.
A diversidade na Amazônia significa heterogeneidade
ecológica entre as áreas, o que supõe forma de interação flexível
entre o homem e o meio ambiente. Isto nos leva a pensar em
desenvolvimento e ambientação, e em desenvolvimento e natureza,
como sugere Castro (2010). A produção da materialidade da vida e
as estratégias de sobrevivência encontram na própria natureza –
terra, floresta e rios – a sua fonte de alimentação. A predominância
de plantações, caça, pesca e toda uma variedade de recursos
naturais existentes na floresta, compõem o quadro da economia de
subsistência dos povos tradicionais. O próprio trabalho social no
âmbito da coletividade depende das características eco-culturais e
socioeconômicas de casa área de atuação.
73
Nas áreas de terra firme não há perigo de perda de
plantações, animais e roças, pois este tipo territorial não obedece
aos ciclos de enchente e vazante das águas. As áreas de várzea são
mais vulneráveis às determinações da natureza por que estão
sujeitas às leis de enchente e vazante dos rios. O ano é dividido em
seis meses de enchente e seis de vazante, daí que toda a existência
das populações que habitam nessas terras está cingida pelo rio. Um
dos sujeitos ouvidos nesta pesquisa é enfático em dizer que
“durante a cheia o nosso trabalho fica prejudicado porque não tem
nada que facilite pra nós. Tudo é no braço, temos muito prejuízo”
(Lúcio Barbosa, entrevista, 2015). A ausência do Estado com a
provisão de políticas públicas é um agravante para a condição
humana na Amazônia, especialmente no âmbito da proteção da
agricultura familiar no tempo da enchente dos rios. Conforme
Suarez (1993), até os anos noventa a ação permaneceu evitando a
agricultura familiar.
O trabalho possui um caráter social bem definido para os
povos tradicionais da Amazônia30. Toda a família é provedora da sua
própria subsistência e não apenas o pai, como ocorre ou ocorria nas
sociedades ocidentais. Esta perspectiva assenta-se numa explícita
divisão social do trabalho, em que o homem assume o trabalho de
pesca e caça: feitura do roçado, semeadura e colheita dos produtos
e à mulher cabem os encargos domésticos e o trabalho na roça,
incluindo a limpeza, a capinação do roçado, o carregamento da
mandioca e todo o processo de feitura da farinha.
Como se vê a própria organização do trabalho apresenta
diversidade que não pode ser compreendida apenas sob a lógica do
capital. Há a diversificação de ocupabilidade que nos autoriza a falar
em mundos de trabalho na Amazônia, no plural. De acordo com
Torres (2005, p. 58), “no caso da Amazônia, a perspectiva mundos
do trabalho parece ser a mais adequada para compreendermos as

30
Entenda-se por povos tradicionais os trabalhadores rurais, pescadores,
seringueiros, mateiros, enfim, os povos que residem nas zonas interioranas da
Amazônia, descendentes de indígenas ou não que conhecem o solo, a flora, a fauna,
os períodos secos e chuvosos, os perigos que a mata apresenta e que vivem da
agricultura de subsistência.
74
relações de trabalho nesta região”. Isto porque o trabalho para os
povos tradicionais está relacionado a um conjunto de possibilidades
que vai “desde a conquista da terra ou a garantia do crédito agrícola
que permita ao pequeno produtor condições de produzir, até ao
trabalho assalariado urbano, no mercado formal ou informal”
(CASTRO, 1994, p.469).
Para os povos tradicionais da Amazônia o trabalho compõe
um quadro significativo, é um ato cultural através do qual os nativos
dialogam com a terra (GALVÃO, 1976). Veja-se que o trabalho é um
fator de efetivo inter-relacionamento com os elementos da
natureza: terra, rios e floresta, que são centrais na vida dos povos
tradicionais. Conforme Torres (2005, p.54):
A terra representa a força operadora da esperança, da
alegria, do jubilo e da festa, através da qual o indígena e o caboclo
reverenciam a divindade com ritos de agradecimentos pela
generosidade do roçado e da boa colheita [...]. Da mesma forma os
rios, constituem-se na motricidade que determina a vida na região
[...]. A floresta, por sua vez, representa tanto o universo da
biodiversidade e palco das representações do imaginário social das
populações locais, quanto reserva natural de usufruto de bens
materiais para a sobrevivência dos nativos.
Almeida (2005) classifica esses grupos como povos
tradicionais pela sua existência coletiva objetivada na área rural e
que organizam-se no trabalho de forma a também fazer frente a
toda destruição da natureza, como vimos assinalando. Muitas
destas categorias de trabalhadores lutam pelo direito à terra onde
possam ter uma vida livre e retirar o seu sustento e o de seus filhos.
Tradicional não é a história, tradicional é a forma como o grupo
estabelece a sua relação com os meios de produção.
A maneira como os trabalhadores/povos tradicionais se
organizam no tempo-espaço e os conhecimentos que possuem são
frutos de experiências coletivas que dão base e sustentação às suas
vidas. Os processos naturais são vividos e assimilados de acordo
com as relações de cada grupo com a natureza, englobando as
enchentes e as vazantes das águas, as formas apropriadas do
75
manejo que cada grupo social constrói, enfim, a relação de
afetividade e de pertença com a terra, floresta e rios. Não agem
sozinhos, os homens se autoajudam, e isto é visto por Lima (2001),
como solidariedade. Lúcio Barbosa, membro da APRODUCIDA
afirma “a floresta faz parte da nossa vida” e não podemos só tirar
dela sem devolver” (entrevista/2015).
Os trabalhadores tradicionais aprenderam a coexistir com o
meio ambiente explorando-o sem depredá-lo. Conforme Wagley
(1988), eles sabem definir o tempo e os lugares de suas vidas na
relação com as concepções que construíram sobre a natureza,
conhecem o solo, a fauna e a flora, a cheia e a vazante dos grandes
rios, a época das chuvas e os períodos relativamente secos, os
perigos dos insetos e das doenças endêmicas e muitas outras “leis”
do meio ambiente. É dentro desta perspectiva de respeito e de
inter-relacionamento recíproco entre o homem amazônico e o meio
ambiente que os nativos construíram seu sistema social e cultural.
Os trabalhadores migrantes, entre os quais o nordestino,
aprenderam a conhecer a floresta com o homem amazônico.
Esse homem amazônico, como diz Lima (2001), foi caluniado
em sua cultura pelo espírito europeu que o estigmatizou como
indolente e preguiçoso, entregue a uma vida inerte e rotineira de
regresso e atraso. A verdade é que o nativo da Amazônia tem
agilidade e predisposição para todas as atividades que executa,
sobretudo o trabalho físico a que foi afeiçoado e treinado. Possui
grande disciplina e resistência a ponto de ser capaz de ficar
imobilizado durante certo tempo à espera de sua presa, tanto na
caça quanto na pesca. O pescador, por exemplo, é capaz de
permanecer horas a fio só com o chibé31, a espera do pirarucu boiar
ou subir à superfície da água para respirar e, assim, capturá-lo. São
horas inerte e em absoluto silêncio para não espantar a presa. Esta
é uma disciplina ou um saber tradicional prenhe de inteligência,
capaz de causar inveja aos ocidentais das grandes cidades.

31
Alimento feito a base de água e farinha da mandioca que dá sustentação ao
organismo humano, quando privado de alimentação adequada.
76
Para Castro e Pinton (1997), o saber técnico-científico
procura desqualificar e desvalorizar todos os outros saberes e
práticas. Subtraem-se os saberes tradicionais em nome de uma
ciência moderno-cartesiana fragmentária, homogeneizadora e
linear. O tempo contemporâneo é marcado pela criação de novas
tecnologias sociais contribuindo para que os trabalhadores
apropriem-se da natureza como laboratório de novas descobertas
no campo da biodiversidade, como são as fontes energéticas,
medicinais e cosméticas, e no campo da sociodiversidade como é o
caso do associativo e do cooperativismo na vertente da economia
solidária.
Os povos tradicionais da Amazônia criaram estratégias de
sobrevivência tão eficientes quanto aquelas produzidas pela ciência
e tecnologia. O homem amazônico tem um mapa mental da
cartografia do seu habitat, possui uma espécie de bússola mental
que faz com que ele guie corretamente o barco na navegação,
sabendo medir distâncias, assim como sabe precisar as horas sem o
uso do relógio. Conhece o rio e seus habitantes com maestria saindo
incólume dos meandros dos igarapés, paranás, furos, lagos e
restingas porque tem mapeado o seu ambiente (TORRES, 2005). Os
conhecimentos que os povos tradicionais adquiriram ao longo do
processo da experiência vivida são únicos. O mais douto indivíduo
do centro urbano não é capaz de lidar com estes conhecimentos a
não ser que passe por um longo processo de aprendizagem.
Esses trabalhadores são invisibilizados pela história, como
diz Perrot (1988), e podem ser compreendidos a partir de história
vista de baixo como sugere Thompson (2001). Este pensador
privilegia os objetos de estudo inseridos na micro-história porque
percebeu que certos ofícios e tradições, por preconceito ou
exclusão, podiam estar desaparecendo na Inglaterra onde realizou a
maior parte de suas pesquisas.
Thompson (1987) percebeu a necessidade de tentar
compreender os trabalhadores que foram deixados tão distantes no
tempo, dando-lhes voz e luz às suas experiências. A história clássica
com sua visão ufanista no sentido de dar visibilidade só àqueles que
77
dominam ou aos heróis vencedores, deixou na sombra aqueles
trabalhadores “descartados” pelo capitalismo como os tecelões e
meeiros. Daí a sua proposta de reabilitação destes trabalhadores a
partir de uma história vista de baixo.
A Amazônia, talvez, seja um dos últimos lugares onde ainda
se encontram áreas naturais intactas, com trabalhadores vivendo de
certos ofícios que ainda são realizados com técnicas rudimentares,
aprendidas em tempos pretéritos com os ancestrais. Estes grupos
trabalham em atividades variadas como vimos anteriormente,
tendo, pois, nos recursos da natureza a matéria primordial de sua
sobrevivência. Quase sempre são ignorados e pouco valorizados,
vivem no isolamento geográfico, educacional, econômico e político.
A Amazônia com suas múltiplas e variadas categorias de
trabalhadores é locus de identidades específicas que se expressem
em diferentes situações do cotidiano de vida e trabalho do homem
amazônico. É o pescador, o piaçabeiro, o agricultor, o juteiro ou
trabalhador da malva, o castanheiro, o seringueiro, as quebradeiras
de côco de babaçu, os roceiros, o mateiro e muitos outros
trabalhadores inseridos em ocupações diferenciadas. Estes
trabalhadores não só compõem um quadro de diversidade de
ocupabilidade como também possuem organização própria do
trabalho a partir das particularidades culturais de cada grupo social.
A perspectiva identitária do operariado, estudada por
Hobsbawm (2000), revela que o trabalhador pode assumir uma
identidade por vez. Este trabalhador pode se identificar pelos
costumes comuns, pelo trabalho que exerce, pela religião que
pratica, pela etnia que pertence, enfim, pelo grupo social no qual
está inserido. Com base nesta análise, podemos dizer que os
trabalhadores da Aproducida – Associação Comunitária dos
Produtores Rurais de Nossa Senhora Aparecida, se identificam como
agricultores, como pertencente a um grupo de trabalhadores rurais
que têm um modo de vida peculiar, uma religião, uma descendência
indígena e nordestina, e possuem formas de organização do
trabalho com base na cooperação.

78
Referências
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conhecimentos tradicionais na Amazônia. In: Caderno do CEAS-
Centro de Estudos e Ação Social. N. 2016. Salvador: CEAS, 2005.
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80
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e prisioneiros. Traduzido por Denise Bottmann. Rio de Janeiro:
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homem nos trópicos. 3 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988.

81
II
EPIFANIAS IDENTITÁRIAS

82
Jocifran Ramos Martins32
Dr. João Luiz da Costa Barros33

Pensadores das mais diversas formações já empreenderam


inúmeras tentativas de abordagens a fim de se captar aquilo que
nos formou e nos constituiu como povo. A esse respeito, Gambini
(2000, p. 158) assinala que
Desde o século XIX, pensadores brilhantes e historiadores
das melhores procedências têm construído excelentes análises de
nossa realidade do ponto de vista econômico e político, ou pelo
prisma das relações internacionais, da dialética entre metrópole e
colônia, da organização social do Brasil da casa-grande e senzala; já
se estudou a contribuição indígena e africana na construção da
nacionalidade, a história da imigração, a industrialização, o êxodo
rural e o processo de urbanização. Há histórias das constituições
brasileiras, da evolução do Direito, da literatura e do pensamento

32
Master degree student in Society and Culture in Amazonia – PPGSCA – UFAM.
He’s Portuguese and Literature teacher by SEDUC-AM, e-mail
jocifraramartins@gmail.com
33
Doutor em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba-UNIMEP/SP. É
coordenador do grupo de pesquisa Educação Física e suas Relações
Interdisciplinares -CNPq/UFAM. Atualmente, é professor e pesquisador credenciado
no Programa de Pós-Graduação, Stricto Sensu, em Sociedade e Cultura na
Amazônia - PPGSCA/UFAM.
83
gerados neste país. Mais recentemente os pesquisadores têm
voltado sua atenção para as mentalidades e a vida privada.
Diferente da propositura de Gambini (2000), que é “uma
leitura psicológica da História do Brasil”,o que se pretende aqui é
refletir sobre os esforços no usoda arte, especialmente da literatura
e do folclore, na construção da identidade nacional e,
posteriormente, da regional. E, no caso da região, como os idosos
parintinenses concebem, entendem e expressam sua compreensão
de identidade atrelada à manifestação folclórica.
A literatura na construção da “alma” nacional
O anseio de captar o que Gambini (2000, p.158) chamou de
“alma brasileira *...+: um âmago, uma essência que nos faz ser quem
somos e sobre a qual se constrói uma identidade coletiva” parece
que permanece latente, tanto que em diferentes momentos da
história emergiu a necessidade da afirmação da diferença do país
por meio da exaltação das suas características e de seu povo. Nessas
tentativas, a arte - a literatura e o folclore em especial - ultrapassara
as finalidades estéticas e fora tomada como instrumento político de
construção e afirmação da identidade.
Um desses momentos foi o período pós-independência
política de Portugal, quando o projeto de país teve no Romantismo
um veículo para criação do ideal de nação. A princípio, a “invenção”
de um Brasil independente que nascia com perspectivas de um
futuro grandioso precisava estar edificada em firmes fundações,
num passado incontestável e nobre, segundo os modelos
românticos europeus. Com essa missão política nasceram, por
exemplo, Iracema e Peri, ambos personagens românticos de
Alencar.
Nas primeiras décadas do Século XX, período marcado pela
eletricidade, o automóvel, as fábricas, os sindicatos, as
reivindicações trabalhistas, a Revolução Russa, as vanguardas
artísticas, como o Cubismo, o Futurismo, Dadaísmo, o Surrealismo,
o mundo emergiu da embriaguez da internacionalização da
liberdade, da Belle Époque, que provocou mudanças profundas no
pensamento e nos valores nacionais e internacionais. A atmosfera
84
de “doce vida” fora interrompida pela Primeira Grande Guerra.
Nessa nova perspectiva, constatara-se o atraso do Brasil no cenário
internacional, o grande vazio demográfico e a fragilidade de suas
fronteiras, reforçando a necessidade de promover a discussão dos
problemas internos e de buscar suas soluções.
Ainda em 1916, precursora da nova mentalidade, é fundada
a Revista do Brasil com o propósito de discutir e incentivar a
valorização do país, promover o engajamento de todos,
principalmente dos intelectuais, na construção da unidade nacional.
Não caberiam mais, segundo a revista, o intimismo e o escapismo,
características romântico-simbolistas. O momento era de trabalhar
na criação e no fortalecimento da identidade brasileira. De Luca
(1999, p. 40, 41) assinala que,
De uma exaltação contemplativa da beleza natural e das
potencialidades ilimitadas da terra, passou-se a advogar a
necessidade urgente de conhecer, explorar, administrar e defender o
território. Contudo, não bastava arrolar medidas, era preciso passar
à ação, o que forçava as elites pensantes a defrontarem-se com a
realidade nacional, ensaiar diagnósticos e propor soluções para
aqueles que lhes pareciam ser os nossos males. Proliferaram então
discursos nos quais o Brasil interessava não pelo que era, mas pelo
que poderia vir a ser. [...] A história, a geografia, a língua, a
produção literária, o sistema político, as características
antropológicas da população passaram a ser esmiuçadas num
esforço que, segundo seus mentores, permitiria aos brasileiros
assenhorearem-se efetivamente do país.
No ano do centenário da Independência, 1922, a Semana de
Arte Moderna propõe a atualização da mentalidade criadora
nacional. Na ficção, Mário de Andrade (2010) publica Macunaíma
em 1928, obra que, sob influências europeias de vanguarda,
pretende dar conta, no plano da ficção, do problema da identidade
brasileira. Para Mário, o brasileiro é multifacetado, resultado da
união de três raças: a branca a negra e a índia.
Fortemente influenciado pelas vanguardas, Mário
empreende um esforço de mostrar de uma “pincelada” só o Brasil e
85
o brasileiro sob todos os seus ângulos e aspectos, como faria Picasso
num quadro cubista. Macunaíma nasce negro, de mãe índia e sem
pai declarado, e mais tarde torna-se branco de olhos azuis, o que
demonstra ser resultado de mestiçagem. Enfim, é a síntese
escrachada do Brasil e do brasileiro, ou a tentativa dela.
2. O folclore na criação da “alma” regional
Na Amazônia, na segunda metade do século XX, aconteceu
um movimento análogo aos esforços nacionais. Para cunhar uma
identidade que unificasse e representasse a região diante do Brasil e
do mundo, novamente a arte torna-se ferramenta política. O estado
apropriou-se das manifestações populares para transformá-las em
projeto de valorização regional. De acordo com Cardoso (2014, p.
02),
Na Amazônia, a década de 1990 emergiu como o momento
em que várias festividades folclóricas de cunho popular fossem
vistas e “potencializadas” de um cenário local (a Ciranda, em
Manacapuru-AM; Sairé, em Alter do Chão-PA; Festival Folclórico do
Boi-Bumbá, em Parintins- AM; Bumba-meu-boi, em São Luís-MA,
etc) para serem representações de identidade regional e, porque não
dizer, fazer parte das diversas representações identitárias nacionais.
Discursos que começam a circular nas mídias, nas propagandas
publicitárias e que vão influenciar o modo pelo qual essas
apresentações folclóricas começam a ser vistas como espetáculos.
No artigo “Território e Identidade no Boi Bumbá de
Parintins”, Furlanetto (2011) procura demonstrar a participação do
estado na construção da identificação popular com a festa folclórica
do boi bumbá, a fim de cunhar a identidade sociocultural da cidade
de Parintins. Para esta autora,
O Festival de Parintins parece reforçar esta soberania do
Estado, tendo como referência a escala local e projetando-se para
além da escala regional. Em meio à transmissão televisiva do
espetáculo do boi em 2010, durante os intervalos comerciais, o
governo do Amazonas veiculava uma propaganda com imagens que
exaltavam as identidades regionais, enquanto se ouvia uma música
que repetia o refrão “eu tenho orgulho de ser amazonense”, e
86
finalmente aparecia o slogan “a Amazônia é do Brasil” – uma
interpretação da Amazônia em escala abrangente para todo o país
(FURLANETTO, 2011, p. 05).
A identidade parintinense foi ligada inexorável e
exclusivamente à festa folclórica do boi bumbá. Essa construção se
deveria aos discursos oriundos de diversas formações discursivas,
desde a política até a econômica, construídas nas últimas décadas,
mais precisamente a partir das décadas de 80/90. O parintinense,
que num primeiro momento fora objeto de uma campanha de
massificação e fortalecimento das manifestações populares
regionais, teria assumido a posição de sujeito de um discurso que
tem o Festival Folclórico como autêntico representante da cultura
local e regional e, por isso, de sua identidade.
O parintinense comum, o homem do povo, aquele que não
está ligado diretamente ao festival folclórico e seus
desdobramentos, ou seja, não frequenta os ensaios dos bumbás, as
festas que são promovidas periodicamente, o bumbódromo durante
o mês de junho e não possui nenhuma atividade profissional ligada
diretamente aos eventos citados, pode ter sido sensivelmente
influenciado. Sob a argumentação econômico-política, passou a
utilizar a representação cultural agora reconhecida, fortalecida e
valorizada pelo estado e pela indústria cultural34 (COSTA, 2003)
como a mais representativa da identidade local. “Destarte, a
identidade é processada de acordo com interesses que caibam
nessa espetacularização que visa, principalmente, fazer com que
todos se sintam parte do espetáculo e se identifiquemcom aquela
cultura” (CARDOSO, 2014, p. 2).
A participação da mídia impressa, mais precisamente dos
jornais, fora decisiva na veiculação dos discursos de valorização do

34
INDÚSTRIA CULTURAL: REVISANDO ADORNO E HORKHEIMER, artigo de Alda
Cristina Costa e outros, define indústria cultural como o conjunto de meios de
comunicação como, o cinema, o rádio, a televisão, os jornais e as revistas, que
formam um sistema poderoso para gerar lucros e por serem mais acessíveis às
massas, exercem um tipo de manipulação e controle social, ou seja, ela não só
edifica a mercantilização da cultura, como também é legitimada pela demanda
desses produtos.
87
festival Folclórico de Parintins, elevando-o ao posto de
representante regional e nacional da síntese da identidade do
amazonense e, especialmente, do parintinense. “As histórias do
processo de construção dessa identidade cultural são revividas pela
comunidade através dos jornais, quando eles buscam relatar
novamente toda trajetória da festa”(MÁXIMO e TOFOL, 2010, p.11).
3. A “alma” amazônica vista de dentro
Mas estes discursos veiculados foram construídos pelo
outro, possivelmente frutos da visão de espectador ansioso pela
novidade ou, ainda, como ação engendrada com fins políticos de
valorização regional, como mostra Cardoso (2014, p. 10),
No caso do Festival de Parintins veremos que a partir da
espetacularização da festa, a partir da década de 1990, houve um
intenso e constante envolvimento da mídia, da indústria cultural, das
relações políticas dentro das agremiações dos bumbás e fora
delas, na tentativa de se produzir sentidos e memória para o
espetáculo.
Parece que no processo se deixaram de fora os relatos dos
sujeitos diretamente atingidos por esses discursos, ou seja, os que
mais sofreram seus efeitos. Conhece-se sua identidade a partir do
que foi produzido e veiculado sob a perspectiva oficial, ou seja, dos
que representam o poder econômico, o político e o midiático,
atrelando diretamente a identidade parintinense ao Festival
Folclórico. Não se teria tentado conhecer a memória discursiva com
que esses sujeitos se constituem, não se buscou refletir sobre as
formações discursivas e, portanto, ideológicas com que se
constroem como parintinenses.
É importante que se conheçam as formas como o
parintinense expressa sua(s) identidade(s), que pode ter assimilado
positivamente ou rejeitado os sentidos supracitados, compondo ou
não com eles uma de suas identidades, já que, no sujeito da pós-
modernidade, há inúmeras influências que resultam em identidades
multifacetadas, num processo eminentemente histórico e em
relação constante de conflito, rejeição e adaptações aos sistemas
culturais em que está imerso (HALL, 2006).
88
A(s) identidade(s) que pode(m) emergir dos relatos do
homem comum parece ser uma nova maneira de tratar a questão
da construção da(s) identidade(s) parintinense(s), que certamente
não é homogênea. Muda-se a perspectiva de abordagem, procura-
se o ângulo da visão dos outros sujeitos a fim de conhecer como
eles manifestam através do discurso a compreensão da(s)
identidade(s) local(is).
4. O discurso e a identidade
Os relatos dos parintinenses serão tomados como discursos
e sua análise será pautada pela perspectiva da Análise do Discurso,
baseada em Orlandi (2009, 2012), segundo a qual a linguagem seria
um conjunto de instrumentos que podem regulamentar as relações
sociais. O sujeito histórico, biológico, submete-se à língua,
mergulhado em sua experiência de mundo e determinado pela
injunção a dar sentido, a significar-se. Assim assume a função-
sujeito do discurso, e o faz em um gesto, um movimento sócio-
historicamente situado, em que se reflete sua interpelação pela
ideologia. A ordem da língua e a da história, em sua articulação e
seu funcionamento, constituem a ordem do discurso(ORLANDI,
2007, p. 02).
Ser e estar no mundo pressupõe a obrigação de comunicar,
de interpretar, significar e significar-se. E esse movimento se realiza
por meio da ideologia, compreendida na sua dimensão discursiva
como origem dos sentidos com os quais se interpreta a realidade
(Idem, 2009). Os sentidos seriam, portanto, resultado de
construções sócio-históricas, não tem origem no sujeito, são
resultados da evidência ideológica percebida por ele quando
submetido à língua e à história.
O interdiscurso compreende o discurso sem fronteiras
limitadoras. Um acontecimento que não se fecha em si mesmo, mas
relaciona-se a outros, ao momento histórico da produção e também
ao passado, isto é, à memória, aos arquivos do inconsciente, dos
quais se extraem sentidos a serem utilizados e transformados pelo
novo momento da utilização. Todo dizer insere-se no já-dito, por

89
isso não existe discurso que não se ligue a outro. Os enunciados são
sempre resultado de outros.
O que se faz ao se inscrever como sujeito do discurso é
lançar-se no curso histórico de palavras, construções e sentidos pré-
existentes. E isso tudo só é possível através da língua e da ideologia.
Sentidos e sujeito são assim constituídos. “Não se pode dizer senão
afetado pelo simbólico, pelo sistema significante. Não há nem
sentido nem sujeito se não houver assujeitamento à língua”(IDEM,
2007, p. 11).
Os sentidos produzidos na relação histórico-social, sua
afirmação e reprodução, promovem a ilusão da unidade e a
identificação dos indivíduos. Ou seja, as identidades são o resultado
de um ato linguístico, ou melhor, o resultado da criação de vários e
complexos atos linguísticos, através dos quais se entrelaçam o social
e o cultural. A identidade se realiza como objetivo desse processo
discursivo e por ele é construída, desconstruída, distribuída, aceita,
trocada, afirmada e negada (HALL, 2006; SILVA, 2011).
Dada a sua apresentação na atualidade, a identidade será
tomada por seu caráter fluido e complexo em que não há uma
referência absoluta e direta nos sujeitos, como a biológica, por
exemplo, que manteria a identidade fixa e imutável, ou, ainda,
estabilizada e centrada num ‘eu” em interação com a “sociedade”.
O que existe, ao contrário, é uma constante
construção/representação temporal e contextual, conforme as
diferentes maneiras como é enfocada. Daí a abordagem
despretensiosa da apreensão total e definitiva, pois
O próprio processo de identificação através do qual nos
projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais
provisório, variável e problemático. Esse processo produz o sujeito
pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa,
essencial, permanente. A identidade torna-se uma “celebração
móvel”: formada e transformada continuamente em relação às
formas pelas quais somos representados ou interpelados nos
sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente e não
biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em
90
diferentes momentos, identidades que não são unificadas em torno
de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias,
empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo continuamente deslocadas (HALL, 2006,
pág. 12,13).
Representar a identidade a partir de apenas um viés como
ocorre com a identidade parintinense, ligada quase exclusiva e
diretamente ao boi bumbá, parece-nos representação reducionista
e, por isso, insatisfatória. Na constituição da identidade estão
envolvidas outras dimensões, como diferença, fluidez, história,
transformação, pertencimento, simbolismo, representação (SILVA,
2011), (ORTIZ, 2006), (WOODWARD, 2011) e (HALL, 2006).
Para Katrhryn Woodward (2011), as identidades adquirem
sentido e sustentação por meio da linguagem e dos sistemas
simbólicos com os quais são representadas. Já Stuart Hall (2006, p.
50), tratando, como ele mesmo deixa bem claro, de identidade
nacional, diz de maneira sucinta: “A identidade *...+ é um discurso –
um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto
ações quanto a concepção que temos de nós mesmos.” Daí advém a
importância de se ouvir os sujeitos parintinenses e conhecer os
sentidos por eles utilizados quando buscam construir
discursivamente sua identidade, ou seja, como expressam sua
compreensão da identidade com a qual justificam ou representam o
pertencimento ao grupo.
5. Uma questão de método
Além da pesquisa bibliográfica com abordagens voltadas
para a Identidade e para o Discurso, foram realizadas entrevistas
semiestruturadas, com enfoque na identidade local e os sentidos
que a constroem. Como esta proposta faz parte de estudo ainda em
andamento, optou-se para compor o corpus para análise os relatos
de três representantes da população local. Para a recolha de dados,
o roteiro da entrevista compôs-se de questões norteadoras acerca
do que os faz se sentirem parintinenses; o que, quando distantes, os
faz lembrar de Parintins; se estão satisfeitos com sua identidade
atrelada diretamente ao boi-bumbá. Ou seja, este trabalho
91
empreende uma busca pelas respostas à questão: quais sentidos se
fazem presentes nos relatos dos parintinense sobre sua(s)
identidade(s) sociocultural(is)?
O local da pesquisa foi a cidade de Parintins, situada a leste
do Estado Amazonas, a 367 quilômetros da capital Manaus.
Bittencourt (2001, p. 13) refere-se à chegada de José Pedro Cordovil
à Ilha Tupinambarana em 1798, data aceita oficialmente como a de
fundação da cidade de Parintins.
Na ilha que fica separada desta pelo Paraná do Limão,
estavam localisadas as tribus dos Sapupés e Maués. Em uma das
viagens a que alludimos, ficaram n’esta o Capitão José Pedro
Cordovil, com seus escravos e agregados, isto em 1796, para
dedicarem-se a pesca do pirarucu, nos lagos próximos e também a
agricultura” (grafia original).
Segundo dados do censo de 2010 do IBGE, a área total do
município é de 5.952,044 km2 e, a população de 102.033 habitantes
distribuídos em 69.890 na zona urbana e 32.143 na zona rural.
6. A voz e a vez dos parintinenses
A linguagem deve ser compreendida no fluxo interminável
em interação constante e direta com o passado, ou seja, com os
sentidos historicamente construídos, os quais o locutor/enunciador
retoma, consciente ou não, para expressar-se no presente
(ORLANDI, 2009).
Mas ela também pode ser elemento importante na
construção da própria realidade. Ou seja, a linguagem trata também
daquilo cuja existência ainda se resume em potencialidade. De sua
existência apenas virtual, ganha sentido e importância na realidade
concreta conforme passa a fazer parte dos sentidos veiculados,
“pois no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos
e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo
processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e
não meramente transmissão de informação” (Idem, 2009, p.21).
As três pessoas ouvidas, doravante serão identificadas por
nomes fictícios, mantendo o compromisso de preservar sua

92
privacidade. A primeira entrevista se realizou com uma senhora,
com 72 anos de idade, que doravante vamos chamá-la de Dona
Maria. Ela apresentou-se como professora. A segunda, um senhor
também com 72 anos, profissional autônomo, eletricista, que
identificaremos a partir deste ponto com o nome fictício de Seu
Heraldo. A terceira, professor da rede estadual, aposentado, com
setenta anos, será identificado através do nome Pedro.
As entrevistas foram realizadas nas residências dos
entrevistados, entre os meses de dezembro de 2015 e janeiro de
2016. Após um primeiro contato em que foi apresentada a proposta
e os objetivos, Dona Maria e Seu Pedro fizeram questão de ter o
roteiro escrito com as questões norteadoras, para que se
preparassem para o próximo encontro, em que seria gravado o
áudio de seus relatos. Manifestaram-se nessa preocupação suas
identidades de docentes, preocupados com o planejamento, com a
organização dos relatos e com seu desempenho, o que em nenhum
momento foi demonstrado por Seu Heraldo, o eletricista.
Dias após o primeiro contato, ao serem questionados acerca
do que os faz se sentirem parintinense, ou seja, o que significa para
eles ser parintinense, assim se manifestaram:
Ser parintinense eu acho que... é minha vida. É minha vida,
porque aqui nasceram meus filhos, aqui estão meus filhos, aqui me
casei, aqui vivi a minha vida toda, então aqui é minha vida. Ser
parintinense é viver em paz, é ver meus filhos crescendo, educar
eles. Acho que é isso... [...] (DONA MARIA, 72 anos, entrevista, 2015).
Orlandi, em Análise do Discurso, Princípios e Procedimentos
(2009), citando Pêcheux, trata dos esquecimentos presentes na
enunciação. Em uma das formas de esquecimento, o enunciador, ao
dizer algo, faz escolhas da construção frasal e do vocabulário com
que expressa as ideias. Essas escolhas determinam o uso desta ou
daquela palavra, desta ou daquela frase, ainda que sinônimas, opta
por uma palavra, uma frase e abandona as outras, ainda que sejam
sinônimos ou da mesma família parafrástica. Este esquecimento dá
ao enunciador a ilusão referencial, fazendo-o acreditar que há uma
relação direta entre pensamento, linguagem e mundo.

93
Dona Maria optou por se identificar como parintinense com
palavras pertencentes ao campo semântico da palavra vida, que ela
mesma se encarrega de delimitar o sentido atribuído: “É minha vida,
porque aqui nasceram meus filhos, aqui estão meus filhos, aqui me
casei, aqui vivi a minha vida toda, então aqui é minha vida.” Ser
parintinense é a vida, ou seja, o casamento, os filhos, a educação
dos filhos. Dona Maria crê que o que diz só pode ser dito dessa
maneira, com essas palavras e não com outras.
Mais significativo ainda é outra forma de esquecimento, o
ideológico (Idem, 2009). Dona Maria fala de uma posição/função de
sujeito de um discurso, o discurso de mãe. Quando faz isso, ela
acredita que é origem dos sentidos que utiliza, mas, na verdade,
inconscientemente, faz vir à tona o interdiscurso, ou seja, a
presença no seu, proferido aqui e agora, de outros discursos que
utilizam os mesmos sentidos, oriundos da mesma formação
discursiva que o dela, estabelecendo com o que diz uma relação
dialógica. Suas palavras só significam o que significam porque já
significavam antes, naquilo que fora dito e já faz parte da história.
Os sentidos que utiliza não são originários dela, mas sim construídos
nessa história dos dizeres da posição/função dos sujeitos-mãe. E ao
enunciar, ela se inscreve também como sujeito-mãe, pois, ao
significar, ela também se significa como sujeito de um discurso.
Seu Heraldo, ao ser questionado sobre o que significa ser
parintinense, rememorou longamente a história individual: a
infância e a juventude, os valores familiares; e a história coletiva:
como se davam os relacionamentos entre os membros da
população, a organização urbana e a tranquilidade da vida na
pequena cidade. E só depois acrescentou:
Eu me criei na (Rua) Gomes de Castro, tempo bom... Eu fui
muito feliz na minha infância e juventude. Eu vivi um período em que
todos se respeitavam. Havia os vigilantes, que usavam uma farda
amarela. E não havia violência... Eu me lembro bem do Seu Jacaúna,
que era um vigilante.[...] Se (es)tivéssemos jogando bola na rua e
passasse alguém, parávamos. [...] Eu parei de estudar ainda no 1º
Grau, para trabalhar e dar oportunidade à minha irmã. Nós dois
morávamos com nossos avós. Eu disse a ela: eu vou parar porque eu,
94
de bermuda e de sandália, eu venço na vida, mas você não. Você
precisa continuar. Eu vou trabalhar para te garantir teus estudos...
[...] Pra mim, ser parintinense... olha... deixa eu te dizer, Jocifran, o
que mantém isto é exatamente essa lembrança, tá entendendo?
Porque é o seguinte, é aquela história, como o professor, como o
engenheiro, se ele faz bem feito uma faculdade, ele é um bom
engenheiro, não é? Mas se ele faz mal a faculdade, a profissão pra
ele... Então, eu fui criado dessa maneira, vivi a minha infância assim,
a minha juventude também. Então, isso me fez criar esse amor por
Parintins (SEU HERALDO, 72 anos, entrevista, 2015).
Seu Heraldo, através de comparação com a formação
acadêmica responsável pelo bom profissional, alude aos princípios e
valores, em especial, os familiares. Demonstra que ser parintinense
é uma construção que se realizou no tempo vivido e, portanto, é
histórica. A retomada da memória que Seu Heraldo guarda da
cidade como preparação para a resposta à pergunta faz parte do
que Maingueneau (2015) chamou de Cena de Enunciação. E é
dentro do entendimento das Cenas da Enunciação que podemos
compreender a longa retomada da memória da cidade, como
preparação e legitimação do que afirmaria a seguir.Essa preparação
Maingueneau (2015, p. 122) chama de cenografia:
A noção de cenografia se apoia na ideia de que o
enunciador, por meio da enunciação, organiza a situação a partir da
qual pretende enunciar. Todo discurso, por seu próprio
desenvolvimento, pretende, de fato, suscitar a adesão dos
destinatários instaurando a cenografia que o legitima. Esta é
imposta logo de início, mas deve ser legitimada por meio da própria
enunciação. Não simplesmente é um cenário: ela legitima um
enunciado que, em troca, deve legitimá-la, deve estabelecer que
essa cenografia da qual a fala vem é precisamente a cenografia
requerida para enunciar num ou noutro gênero do discurso.
Já o Seu Pedro foi bastante sucinto, dizendo o seguinte:
Para mim, ser parintinense é ter paz, tranquilidade, família,
bem-estar, esperança, amor. Então ser parintinense pra mim é tudo
isso. É a terra em que eu nasci e onde eu quero ficar (SEU PEDRO, 70
anos, entrevista realizada em 2015).
95
Seu Pedro enumerou palavras sem aparente concatenação
sintática, mas todas com sentidos fortes e muito abrangentes: ser
parintinense é ter paz, tranquilidade, família, bem-estar, esperança,
amor. Algumas dessas palavras parecem clamar por adjuntos para
que mais precisamente se situem na gama de possibilidades
semânticas que evocam, como a palavra esperança. Esperança em
quê? Parece que todas evocam as qualidades da formação familiar,
mas Seu Pedro adotou uma estratégia de proteção no seu relato,
evitando qualquer exposição desnecessária, tanto que demonstrou,
na escolha das palavras e na construção frasal estar cioso de sua
privacidade.
É importante registrar que, ainda que de formas diferentes,
provocadas pelo esquecimentos enunciativo e ideológico, todos os
entrevistados puseram em primeiro plano sua identidade familiar,
ou seja, a identidade de irmão, de mãe e de pai, para se representar
como parintinenses.
Convém lembrar, também, o esquecimento ideológico,
quando, ao enunciar, o sujeito o faz como se as ideias estivessem se
originando nele, naquele momento. Ou seja, esquece-se de que os
sentidos utilizados são pré-existentes, construídos historicamente. E
ele, na sua fala, lança mão desses sentidos. Só assim é que se torna
possível significar o que pretende. Ao fazer isso, está diretamente
afetado pela ideologia e as escolhas que faz o ligam diretamente a
determinada formação discursiva, pois são exatamente os sentidos
utilizados nela, na formação discursiva, que ele escolhe para fazer
uso no seu enunciado presente. No momento dessas escolhas o
enunciador se inscreve como sujeito, espécie de porta-voz da
formação discursiva de que advêm os sentidos utilizados.
Pode-se, ainda, destacar que nos enunciados os sentidos se
repetem, ou seja, a organização discursiva se dá
predominantemente por meio de processo parafrástico em que se
diz o mesmo de forma diferente. É tão ou mais importante do que
se mostrou comum em todos os relatos - a identidade de mãe, de
irmão e de pai - o que foi silenciado, o que não foi dito. Nos relatos,
silenciaram-se outras identidades e foi adotado o discurso do irmão,
da mãe e do pai para se definirem como parintinense. Os sentidos
96
escolhidos foram o de família, com os filhos, a criação, a educação, a
vida em paz, ou seja, tudo o que compõe a idealização da vida
familiar. Ser parintinense, então, nos relatos coletados, ganha uma
dimensão comum a ser pai, mãe e irmão em qualquer outro lugar
do mundo.
Mas, e a identidade parintinense ligada às tradições
indígenas, à festa folclórica que promoveu a região no Brasil e no
mundo? O que há no silêncio sobre isso, que significados pode haver
no que não foi dito? São pertinentes, portanto, os questionamentos:
por que isso é dito deste modo, nesta situação, e não em outro
tempo e lugar, de forma diferente? Orlandi (2007) parece responder
a essas indagações quando afirma que
O sujeito se submete à língua mergulhado em sua
experiência de mundo e determinado pela injunção a dar sentido, a
significar-se. E o faz em um gesto, um movimento sócio-
historicamente situado, em que se reflete sua interpelação pela
ideologia. A ordem da língua e a da história, em sua articulação e
seu funcionamento, constituem a ordem do discurso (ORLANDI,
2007, p. 02).
As escolhas não se encontram na consciência nem na
formação intelectual de um autor, de um indivíduo em particular.
Existem, sim, no próprio discurso, e todos que pretendam produzir
naquele momento, involuntariamente estarão, em grande medida,
obedecendo também aos mesmos princípios, pois estarão
submetidos à mesma formação discursiva, compreendida como uma
região do dizer em que predominam determinadas formas de
compreensão da realidade. E o ato da enunciação os inscreve como
sujeitos discursivos, representantes da formação discursiva a partir
da qual enunciam (FOUCAULT 1987). Nessa perspectiva, os sujeitos
representam com seus relatos outros sujeitos parintinenses com os
quais compartilham os mesmos sentidos para falar de identidade.
Ao produzir relatos acerca de sua identidade, os
parintinenses estariam reafirmando que a cultura não se limita
apenas à manifestação artística, mas a todo fazer humano dentro
dos grupos sociais, cuja dinâmica garante a difusão e,
97
principalmente, sua manutenção, embora transformado e renovado
pelo movimento dialético da história. Nesse constante movimento
dialético tradição e modernidade se encontram para criar
identidade (SANTOS, 2006).
Poderia estar havendo certa resistência à identidade
parintinense construída exclusivamente em torno do boi-bumbá?
Indícios dessa possível leitura apareceram quando se pediu que os
entrevistados fizessem o seguinte exercício de imaginação: se
estivessem longe da cidade por um longo tempo, qual lembrança
teriam como uma forte ligação com sua identidade parintinense?
Dona Maria falou que seria do talento do povo para o artesanato.
Seu Heraldo disse que se lembraria das pastorinhas de Dona Cila
Marçal, de Maria Preta, de Dona Isabel. Seu Pedro, do peixe assado
na brasa, da visão do imenso Rio Amazonas e do boi-bumbá. Ou
seja, apenas um dos entrevistados mencionou indiretamente o
festival, ainda que a mídia divulgue esta manifestação cultural como
a principal representante da identidade parintinense.
Quando questionados se estão satisfeitos com sua
identificação como parintinenses ligada diretamente ao boi-bumbá,
responderam:
Eu fico triste. O parintinense não quer mais trabalhar em
nada. É só boi, só boi... só boi de pano. Qual a economia que nós
temos aqui? Tem alguma indústria aqui? Não tem nada. Já teve. [...]
Não gosto, não. Coisa ruim (o festival) traz. Deve ter trazido muita
coisa ruim, deve ter trazido muita AIDS, né? Muitas doenças
perigosas. [...] Benefício , não. Só pra meia dúzia de um lado e meia
dúzia de outro lado. Só quem ganha são eles. Apesar de ter alguns
que trabalham, os artistas, né? Tem essa parte (DONA MARIA, 72
anos, entrevista, 2016).
A identidade de mãe prevalece nos relatos de Dona Maria.
O festival Folclórico se presentifica na sua fala a partir do ponto de
intersecção com outros discursos que veiculam sentidos negativos
oriundos das festividades. Seu enunciado expõe sua posição de
sujeito em defesa dos valores estabelecidos nessa formação
discursiva e ideológica. A festa ameaça o que ela considera ser
98
parintinense, que é a família, os filhos, a vida em paz. Na verdade,
em seu relato gritavam em silêncio sentidos conflitantes com os da
identidade de mãe, como a falta de perspectiva: “Ninguém mais
quer trabalhar em nada. É só boi, só boi *...+”; o clima de liberação
sexual que se instaura: “Muitas doenças perigosas”.
De certa forma, os sentidos que promovem o festival
folclórico significaram em silêncio nos dizeres de Seu Pedro e de
Dona Maria, pois o silêncio (ORLANDI, 1993, p. 83) “*...+ pode ser
pensado como a respiração da significação, lugar de recuo
necessário para que se possa significar, para que o sentido faça
sentido”, e “*...+ há sempre silêncio acompanhando palavras”. Essa
leitura é reiterada no que diz seu Heraldo:
O boi se tornou um meio de safadeza. E eu não gosto disso.
[...] Você liga o rádio é roubo do boi pra todo lado. [...] Está todo
mundo querendo ir lá pra pegar seu dinheiro. A pastorinha, não.
Brinca com simplicidade e singeleza. (...) Eu não vou ao
bumbódromo, (o boi) fugiu muito da origem. Eu acho a pastorinha
muito melhor que o boi (SEU HERALDO, 72 ano, entrevista, 2016).
Pêcheux (apud ORLANDI, 2012) afirma que todo enunciado
é suscetível de, pelo efeito metafórico da deriva, tornar-se outro.
Por esse efeito, a expressão utilizada por Seu Heraldo “pastorinha
brinca com singeleza”, passaria a “pastorinha brinca com inocência”,
“a manifestação cultural expressa inocência”. Ao tornar-se outras
pela derivação ilustrada com as famílias parafrásticas, remete-nos às
marcas do relato anterior de Seu Heraldo: os valores de retidão, de
educação rigorosa e de respeito vivos na memória, os sentidos
construídos historicamente com os quais ele compôs a cenografia
para significar-se como parintinense (MAINGUENEAU, 1997).
Não, eu acho que nós ainda tínhamos muitas coisas a serem
exploradas, muita coisa mesmo. [...] Em Natal, nós fomos lá num
aquário. O que nós fomos ver: tambaqui, pirarucu, piranha. [...] E
aqueles pássaros daqui... capivara... Quando chegou um rapaz,
queria nos apresentar e nos dar uma lição sobre o pirarucu. Minha
filha disse: Não precisa, isso é nosso, somos de Parintins. E ele: Ah!
então eu fico calado que vocês sabem mais do que eu... (risos). A

99
gente não explora nada disso, né. A gente se acostumou só com o
Festival (SEU PEDRO, 70 anos, entrevista, 2016).
Seu Pedro ilustra o reducionismo das referências à
identidade parintinense. Segundo ele, há muito mais que o Festival
Folclórico. Sua afirmação reitera a ideia de que a identidade, ainda
que não possa ser apreendida em totalidade, em essência, está
vinculada às formas sociais que a sustentam. E essas formas sociais
são múltiplas, de modo que dentro de uma realidade coexistem
diferentes maneiras de ser o que se diz ser (ORTIZ, 2006).
Os entrevistados inscreveram-se como sujeitos de uma dada
formação discursiva, o discurso dos adultos, dos pais, e com essa
identidade representaram-se como parintinenses. E o sujeito, na sua
construção, ao se inscrever como tal no discurso, ao mesmo tempo
em que se assujeita às condições históricas como autor, preso ou
comprometido com as formações discursivas, com o interdiscurso,
apresenta-se também como livre para fazer escolhas, o que
naturaliza os significados utilizados em seus discursos, de modo a
parecerem evidências, reflexo fiel e justo da realidade vivenciada
(ORLANDI, 2009).
A reflexão acerca da construção da(s) identidade(s)
parintinense(s) presente nos seus próprios relatos pode contribuir
para trazer à tona não “o sentido verdadeiro, mas o real sentido na
sua materialidade histórica” (IDEM, 2009, p. 51), pois
“afinal, discurso é o que as pessoas dizem (e a história é o
que elas fazem (Veyne, 1978) – não porque se trata de pessoas que
dizem, simplesmente, mas porque, para dizer, estão
necessariamente inseridas em situações sociais – às quais se poderia
chamar de posições de sujeito” (POSSENTI, 2002, p. 36).
Referências
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102
João Marinho da Rocha35
Dra. Marilene Corrêa da Silva Freitas36

INTRODUÇÃO
A história da Amazônia é, segundo loureiro (2003), uma
história de perdas e danos. Foram inúmeros os processos de
genocídio e etnocídio efetivados para colocar em práticas atividades
que dessem ao mundo respostas significativamente rentáveis. Isto
causou dentre outras coisas estigmas para as populações e povos
tradicionais que tiveram que assumir/ representar certos papéis
supostamente atribuídos.
Esse processo histórico e social ajudou a cimentar
concepções errôneas sobre tais povos e comunidades. Concepções
essas que vigem nos muitos escritos ditos acadêmicos que em nome
do cientificismo continuam a olhar para essa Amazônia das velhas e
cristalizadas dicotomias natureza x cultura; mito x realidade;
tradição x modalidade; atraso x progresso. Em sua maioria pautadas
35
Doutorando do Programa de pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia
– PPSCA/UFAM. Docente do curso de História da Universidade do Estado do
Amazonas. Centro de Estudos Superiores de Parintins.UEA/CESP. Bolsista da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM.
36
Pós Doutora pela Université de CAEN e na UNESCO. Doutora em Ciências Sociais
– Unicamp. Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura
na Amazônia.
103
nos dualismos diversos introduzidos ainda nos processos de
colonização por viajantes, religiosos, naturalistas. Tendo sido
continuado por agentes brasileiros que fisicamente anexaram a
Amazônia no século XIX e pelas configurações políticas locais
sustentadas em oligarquias formadas pelos “exemplares abastados”
dos povos que para cá vieram em consonância com os pensamentos
exógenos e desligados intencionalmente das realidades locais que
aliás, pouco foram vistas nas suas configurações étnicas devidas.
Este texto integra esforços maiores que configuram
pesquisa para compor tese de doutoramento junto ao programa de
Pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia, onde
buscamos compreender os processos de constituição da Identidade
Étnica e Territorialidades no Andirá.37.
O foco para a busca dessa compreensão de como esse
grupo Étnico do rio Andirá constitui sua Identificação Étnica atual, se
dá, a partir da constatação da existência das relações fortes entre as
festas populares (re)organizadas durante esse processo de
Identificação e outros elementos, a exemplo do trabalho nessas
comunidades negras rurais que, aos poucos passam a resinificar
suas práticas socioculturais e atribuir novos e variados sentidos e
significados que parece dá conta de sua ancestralidade requerida,
além de indicarem inúmeros elementos diacríticos, que os remetem
a experiência dos mundos do trabalho escravo na Amazônia,
especialmente a negra, por muito tempo tratado como “tema
menor” por parte da Historiografia sobre a região, especialmente no
Estado do Amazonas que, concentrou-se até o século XIX e elegeu
Manaus como foco de investigação sobre a temática negra, apenas
recentemente anuncia maiores preocupações com populações
negras do século XX.

37
A Fundação Palmares através da Portaria nº 176, de 24 de outubro de 2013
registrou no Livro de Cadastro Geral nº16 e certificou, de acordo com a auto
definição e o processo em tramitação, junto à referida fundação que as
Comunidades de, Boa fé, Ituquara, São Pedro, Tereza do Matupiri, Trindade se
definem como remanescentes de quilombo. Ver: Diário Oficial da União. Seção 1.
Nº 208, sexta-feira, 25 de outubro de 2013.

104
Identificamos os processos de construção de uma memória
do cativeiro baseada numa memória coletiva que sistematiza e
seleciona certos elementos materializados nas atividades
socioculturais cotidianas e especialmente nas festas. A memória
passou então a desempenhar um importante papel na construção
de caminhos que os levassem ao “dizer-se e ser” (BRANDÃO, eti all,
2010) quilombola no Andirá. As primeiras estratégias foram
marcadas pelo levantamento das reminiscências dos velhos e velhas
das cinco comunidades (São Pedro, Trindade, Boa Fé, Ituquara e
Santa Tereza) que passaram a ser os guardiões da memória,
implicando-lhes novos valores às histórias contadas por seus pais e
avós, (MATTOS, 2005). Tais valores, forma revestidos com a força da
tradição oral os ligou a um passado da escravidão negra na
Amazônia, legitimando sua luta e conseguinte titulação do que
(ALMEIDA, 2008), chama “terras tradicionalmente ocupadas”
Nossas pesquisas junto aos sujeitos dessas comunidades
(mulheres lideranças da federação quilombola, lideranças
comunitárias, agricultores, pescadores, professores, alunos) estão
sendo pautadas na metodologia da História Oral. Tal metodologia se
constitui por um conjunto de procedimentos tais como o
estabelecimento do perfil do grupo dos entrevistáveis, gravação em
áudio ou vídeo e a transcrição das entrevistas, o tratamento do
produto escrito, autorização do uso por meio de carta de cessão de
direitos, por fim armazenamento e análise da documentação oral
produzida (MEIHY, 2005).
As análises indicam que a memória serviu no Matupiri como
suporte para organizar as manifestações folclóricas que passam a
ser “ritualizadas” nas comunidades em datas específicas e com isso
constituem os “ processos de vivências de uma memoria coletiva”
(ORTIZ, 2006) sobre aquele grupo que se liga a experiência da
escravidão do século XIX, e que a partir de sua realidade social deste
contexto do início do século XXI, busca acessar seus direitos
coletivos enquanto novo grupo étnico diferenciado no rio Andirá.
A QUESTÃO DA PRESENÇA NEGRA NA AMAZÔNIA: velhos
problemas, novas fontes, outras histórias no rio Andirá.
105
A escravidão negra na Amazônia esteve envolvida até pouco
tempo numa discussão historiográfica que tendeu a enfatizar os
números de escravos trazidos para a região, extremamente
reduzido e, portanto, “insignificantes” sempre comparando as
demais regiões do país. Esta insistência auxiliou em processos de
apaziguamento da presença negra durante a colonização e além
dela, compondo os processos sociais da Amazônia nos séculos XIX e
XX (SAMPAIO, 2011).
Atualmente, aparecem inúmeras comunidades negras rurais
do leste amazonense que em nenhum momento se identificam
como negros ou inseridos nessa cultura “afro-indígena” ou “afro-
amazônica” (GOMES, 1997). No entanto, os seus modos de vida, uso
e relação como o território, suas festas, movidas pelos batuques e
pelas expressões corporais afro-ameríndias. FURNES, (1995), ao
falar sobre o Oeste Paraense, afirma que os rios (Curuá, Erepecuru e
Trombetas) acabaram também sendo rios “dos pretos e das pretas”
que subiram o rio Amazonas fugindo das fazendas de gado e das
lavouras de cacau de Santarém, Óbidos e Alenquer na segunda
metade do século XIX.
Esses negros buscavam nos contatos com os povos
indígenas as saídas para a construção de seus múltiplos espaços de
liberdades e identidades, amocambando-se me lagos distantes ou
acima das cachoeiras. A presença de índios amocambados juntos
aos negros fugidos aparece com frequência, em relatórios de Chefes
das províncias Pará e Amazonas do final do século XIX, formando
“comunidades Interétnicas” (GOMES e QUEIROZ, 2003). As
comunidades remanescentes do rio Andirá tanto guardam nas
memórias, como materializam em seus modos de vida,
sociabilidades e mundos como o do trabalho essas características
das varias etnias que compuseram o processo históricos e sociais
daquele rio. É muito comum a composição familiar entre negros e
indígenas e Sateré-Mawé, por exemplo, sem falar nas danças e
outras manifestações hibridas que configuram as cinco
comunidades que formam o quilombo do Andirá.

106
Sobre a “opção” historiográfica pelo apagamento das
questões negras na Região Amazônica, (SAMPAIO, 1997) identifica
dois movimentos: o primeiro se atém às reduzidas proporções
numéricas, e como isso impactou pouco na economia regional, não
tendo, por isso muita relevância na discussão historiográfica a cerca
da mão-de-obra. Fazem parte desse movimento, Pereira, (1949),
(Reis, 1989). Por essa ótica, “os africanos não conheciam a região e
nem a floresta e, por isso, [os colonos] preferiam-se os índios” (REIS,
1989). Tais questões numéricas e puramente econômicas, atreladas
aos anseios comparativos da Plantation/escravidão nordestina para
com a Amazônia, acabaram ensejando entendimentos da
desconsideração dessa presença negra relevante na Região, “em
especial, no Amazonas” (SAMPAIO, 1997). Contrapondo Reis e
Veríssimo, Funes, In: Reis e Gomes, (1996, p. 470-47), afirmam que
o escravo africano foi encontrando meios de superar as
adversidades e adaptar-se a uma nova sociedade, tornando o seu
cotidiano a sua convivência mais suportável.
O segundo movimento historiográfico, pelo contrário, “vem
mostrando realidades diferenciadas, ajudando a jogar por terra
décadas de silenciamento sobre a presença africana na região”
(SAMPAIO, 1997). Fazem parte estudos como os de Acevedo-Marin
(1985); Funes (1995); Gomes (1997); Bezerra Neto (2001 e 2009);
Chambouleyron (2004 e 2006); (ACEVEDO e CASTRO, 2004 E 2006),
dentre outros. As leituras atentas desses estudos apontam outros
caminhos para lermos o mundo da escravidão na Amazônia, não
apenas na perspectiva dos números evidenciados nas baixas
entradas de escravos na Amazônia, quando comparados as demais
regiões monocultoras do país. Para a Amazônia não dá mais para ler
a presença negra apenas pelo viés da quantidade numérica, pois,
“aplicado à Amazônia, todo procedimento em busca do
conhecimento torna-se plural” (FREITAS, 2012, p.39). Implica, então
buscarmos em nossas pesquisas, não somente as estatísticas em si,
mas seus os múltiplos significados da presença negra, como se
articularam aos espaços e mundo amazônicos e aqui construir novos
espaços de liberdades e territorialidades especificas.

107
Interessa-nos nessa empreita científica compreender a
explicar a questão negra na Amazônia, buscar processos qualitativos
dessa presença. Possibilidades, a exemplo das memórias orais
amazônicas como as que falam do Andirá e se ligam a um contexto
nacional de reivindicação por território e Identidade quilombola.
Isto se torna significativo. Haja vista que, na “Amazônia e suas
populações têm sim os mais importantes, e mais recorrentes das
oportunidades de pesquisa”. Além de serem os grupos mais
atingidos diretamente em situações originárias de experimentos de
desenvolvimento regional (FREITAS, 2009, p. 16).
Um destaque desses caminhos de leitura do mundo da
escravidão negra na Amazônia é entrada das Memórias Orais
presentes nas comunidades negras rurais do Baixo Amazonas. Nesse
aspecto chamamos especial atenção para os estudos de Furnes,
(1995) e Gomes, (1997) que lançaram luz, especialmente para os
municípios de Óbidos, Oriximiná, Alenquer, Curuá e Santarém no
Estado do Pará. Ambos apresentam dialogo produtivo entre os
arquivos cartoriais e paroquiais com múltiplas narrativas da
memória ora, os modos de vida, e as múltiplas formas de
reconhecimentos presentes nessas comunidades negras atuais.
Para o estado do Amazonas os estudos de Sampaio (1997,
2011, 2012) iluminam a escravidão negra no século XIX, com
destaque para a cidades de Manaus. Poucos estudos se
preocuparam com os processos de fugas e posterior formação de
comunidades quilombolas. Destacamos Siqueira (2012) e Farias
Júnior, (2013) que estudaram as comunidades no rio dos pretos, em
Novo Airão, quilombo do Tambor, onde analisou os “processos
sociais de reivindicação da identidade coletiva enquanto
comunidades remanescentes de quilombo, frente a uma ‘situação
social’ de conflito, ocasionada pela implantação de uma unidade de
conservação de proteção integral”.
Para Almeida, (2012), “o tradicional” aparece vinculado às
reivindicações atuais dos diferentes movimentos sociais, o que nos
afasta a preocupação com as origens e com o isolamento cultural. O
mesmo autor alerta para a necessidade de analisar as questões
108
inerentes à História Social de conceitos como “tradição” e
“Identidade” à luz de (Hobsbawm e Ranger, 1997) e Thompson,
(1998). Estes autores, segundo Almeida, ajudam a resemantizar
conceitos como o de tradição associado à costume e hábito trazidos
por Weber, (1994), Hobsbawm os põe como atrelados aos processos
de “invenções construídas”, a partir de situações sociais presentes.
O tradicional antes de aparecer como referência histórica
remota, como aliás sempre o fizeram as pesquisas estritamente
histórica sobre a questão da presença negra na Amazônia, aparece
como reivindicação contemporânea e “como expectativa de direito
involucrada em formas de auto definição coletiva”. Tradição nesse
contexto de reivindicação Étnica como a que ocorreu/ocorre no rio
Andirá, nada tem a ver com a permanência e mais se atém a
processos reais e agentes sociais que transformam dialeticamente
suas práticas, indicando “a existência de comunidades dinâmicas,
orientadas por princípios em constantes transformações, alterando-
se a cada vez que são acionados” (ALMEIDA, 2012, p. 6).
Os estudos de (FURNES, 1995); (ACEVEDO e CASTRO, 1998,
2004); (GOMES, 1997); (SAMPAIO, 2011); (FARIAS JÚNIOR, 2013),
dentre outras questões, indicam caminhos que levam à superação
das velhas discussões sobre o quantitativo numérico de escravos
negros na região. Tais estudos indicam processos de construções
conjuntas entre indígenas e negros de múltiplos espaços de
liberdades, identidades e territorialidade. Enfim, conjugações
espaciais, territoriais, culturais, de usufruto dos recursos florestais
dissonantes daquelas pensadas e impostas pelo estado que já no
século XIX teve nas comunidades amocambadas um empecilho para
efetivação de suas politicas (GOEMS, 1997). Analisando os modos de
vida, as praticas culturais e os processos e as formas de
conhecimentos dessas comunidades, estudos como o de FURNES,
(1995), GOMES (1997), e (FARIAS JÚNIOR, 2013) conseguem
estabelecer relação com o passado comum de tais sujeitos que são
as experiências de seus avós e bisavós com a escravidão.
Almeida, (2008) afirma que essas comunidades criam
mecanismos diversos de autoconsciência cultural. Por isso, buscam
109
se organizar, extrapolando muitos dos mecanismos
tradicionalmente utilizados, a exemplo dos sindicatos. Chegam, por
isso, a evidenciar nessas buscas afirmativas identitárias fatores
étnicos, religiosos, ambientais de gênero. Por fim, a identidades
desses grupos, não se define pelo tamanho e numero de seus
membros, mas pela experiência vivida e as versões compartilhadas
de sua trajetória como e da continuidade enquanto grupo (BARTH,
2005).
“FILHAS DO ANDIRÁ”: Cenários de direitos e processos de
Emergências das “novas Identidades Étnicas” no Rio Andirá.
Nas duas últimas décadas do século XX como fruto das
pressões dos movimentos sociais e demais órgãos e instituições
forjadas no bojo da transição do regime cível-militar para o
democrático, o Brasil assistiu, a um cenário que possibilitou a
criação de dispositivos legais materializados na constituição de
1988, por meio de seu artigo 68. Isto fez com que as chamadas
populações tradicionais, exemplo dos remanescentes de quilombos
pudessem articular vários mecanismos para o reconhecimento de
suas identidades coletivas e territórios tradicionalmente ocupados.
Sobre isso, Brandão et all, (2010, p. 77), destacam que
As discussões públicas e as ações políticas ancoradas em
perspectivas tipicamente multiculturais têm invadido a cena pública
brasileira nas últimas décadas. Neste campo as questões
relacionadas às relações raciais e os problemas advindos das
desigualdades entre os grupos de cor e raça se destacam. Exemplos
disto: a) na Carta Constitucional de 1988, que reconheceu a
propriedade da terra às comunidades quilombolas, b) na adoção de
cotas raciais por inúmeras universidades públicas brasileiras a partir
de 2004 (...), c) na promulgação da lei de nº 10.639/2003 que
estabelece o ensino de história e cultura afro-brasileira na educação
fundamental, e, d) na políticas públicas voltadas especificamente
para os quilombolas, tal como as que se encontram em execução no
programa Brasil Quilombola (iniciado em 2004).
Nesse contexto de direitos assegurados emergem
possibilidades de acessá-los. Nisso, muitas comunidades negras
110
rurais da Amazônia, como é o caso de município de Oriximiná – PA,
onde, “as comunidades remanescentes de quilombos têm realizado,
por meio da Associação dos Remanescentes de Quilombo do
Município de Oriximiná – ARQUIMO, a titulação coletiva das áreas
que ocupam o que segue a pratica do uso comum do território para
atividades extrativas e produção familiar de subsistência”
(O’DWEYER, 2005, p. 8). Luta em muitos “encorajada pela situação
social presente de conflitos com as mineradoras como a mineração
do rio do norte-MRN que, associada interesses internacionais,
nacionais, regionais e locais, avançava para seus territórios
tradicionalmente ocupados. Essa situação de conflito, possibilitou os
negros de Boa Vista a emergirem enquanto Identidade Étnica”
(O’DWEYER, 2005).
Ao realizar um levantamento dessas emergências das
comunidades remanescente no Brasil num paralelo com as
comunidades de outros países da América Central e do Sul, Price,
(1999) evidencia que as comunidades negras rurais do Baixo
Amazonas tornam-se pioneiras nesse processo de Etnogênese do
final do século XX, com base no Art. 68 da constituição de 1988, em
1995 comunidade Boa Vista e 1996 Água Fria e Pacoval.
Nessa luta por reconhecimentos como comunidades de
remanescentes de quilombo, tais comunidades de todo Brasil se
articulam para acessar seus direitos indicados no âmbito da
ressignificação do termo quilombo, do artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADTC) da Constituição
Federal de 1988. Tal artigo confere direitos territoriais ao
remanescente de quilombo que estejam ocupando suas terras
sendo-lhes garantida a titulação definitiva pelo Estado brasileiro
(O’DWEYER, 2005). “Ali se nomeava e se atribuía direitos a um
heterogêneo conjunto de comunidades de predominância negra
que, salvo raras exceções, não se pensava em qualquer medida
como ‘remanescente das comunidades de quilombos’ (BRANDÃO et
all, 2010, p. 78)”. Sua aprovação proporcionou uma “revisão
histórica e mobilização política, que conjugava a afirmação de uma

111
identidade negra no Brasil à difusão de uma memória da luta dos
escravos contra a escravidão” (MATTOS, 2005).
É também nesse contexto que o termo quilombo deixa suas
limitações históricas, aprisionado a partir do modelo de palmares,
forjado no contexto da colonização, pelo conselho ultramarino que
definiu quilombo como “toda habitação de negros fugidos de
senzala que passassem de cinco, em parte despovoada, ainda que
não tenha ranchos levantados e nem se achem pilões nele”. Esta
definição influenciou toda uma pesquisa histórica da temática
quilombola até a década de 1970 (SCHIMITT, et all, 2002).
Dentro desse cenário de possibilidades e dispositivos legais,
é que serão encapadas lutas por todo país por reconhecimento das
terras de remanescente de quilombo. Somam-se a isso, outras
questões, pois, “além da referência Étnica e da posse coletiva da
terra, também os conflitos fundiários vivenciados no tempo
presente aproximavam o conjunto das ‘terras de preto’, habilitando-
as a reivindicar enquadrar-se no novo dispositivo legal” (MATTOS,
2005, p.106).
Ao se referir a esses novos grupos étnicos que
tradicionalmente ocuparam suas terras, Almeida, (1998, p. 17),
afirma que há as “situações históricas peculiares em que grupos
sociais e povos percebem que há condições de possibilidades para
encaminhar suas reivindicações básicas, para reconhecer suas
identidades coletivas e mobilizar forças em torno...”. Esse contexto
reivindicado socialmente abriu, portanto, possibilidades para a
busca dos direitos diferenciados de grupos étnicos que foram
criados na forja da história colonial, marginalizados e esquecidos na
construção de nação e ressurgidos no contexto multiculturalistas do
final do século XX. Apresentando-se enorme desafio para
historiadores, Antropólogos e Cientistas Sociais engajados em torno
da questão. (MONTEIRO, In: ARRUTI, 2006).
Nesse cenário de possibilidades de busca por acessar
direitos e (re)afirmação Étnica no Brasil, devemos ressaltar a
atuação dos movimentos sociais, com destaque para os movimentos
negros que “buscam formas concretas de expressões culturais para
112
interpretá-las dentro de uma perspectiva mais ampla, [...]A
identidade é neste sentido elemento de unificação das partes, assim
como fundamento para a ação política *...+”, (ORTIZ, 2006, P. 141).
Sobre esse contexto de reconhecimento das Identidades,
construídas socialmente nas duas últimas décadas do século XX no
país, Almeida “Estes movimentos, tomados em seu conjunto,
reivindicam o reconhecimento jurídico-formal de suas formas
tradicionais de ocupação e uso dos recursos naturais”. (ALMEIDA,
1998, p. 19).
As comunidades negras rurais passam a se articular entorno
de elementos que os unisse na busca de acessar seus direitos. Para
isso, acionam os mais variados elementos e entidades externas. Essa
questão legal se consolidou quando o decreto 4.887, de 20/11/2003
regulamentou que “a caracterização dos remanescentes das
comunidades dos quilombos seria atestada mediante auto
identificação da própria comunidade”. Por esse documento, tais
comunidades, por sua vez, passam a ser compreendidas também
como “grupos étnicos, segundo critérios de auto atribuição, com
trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais
específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada
com a resistência à opressão histórica sofrida”.
Nos cinco primeiros anos da década passada, as
comunidades negras rurais do Andirá, influenciadas por cenários
externos, nesse ambiente de diálogos intenso com as experiências
das outras partes do país, especialmente do Oeste Paraense,
também iniciaram seus processos de
Luta por reconhecimento começou em 2005, quando teve a
primeira pesquisa aqui dentro da comunidade. Veio uma professora,
uma pesquisadora por nome Ana Felícia, ela veio pesquisar aqui
porque ela viu no histórico que existia negro no Amazonas, e a onde
ela foi indicada, foi no Andirá. Aí, ela chegou aqui, conversou com o
pessoal que foram contando que a gente tinha sangue de negro,
porque o nosso princípio tinha vindo da África. Aí, foi que começou a
ter o levantamento da procura dos negros né. Aí, chegou a
conclusão que hoje nós somos reconhecidos. Essa luta foi muito
113
grande, tá sendo até hoje muito grande essa luta. (Maria de
Lourdes, Agricultora, 53 anos, presidente da Federação dos
quilombolas de Barreirinha (2012-2016). Entrevista, 2015).
Essas comunidades até então, como indica a narrativa de
Lourdes, não se viam como sujeitos detentores de direitos ao seu
território tradicionalmente ocupado, onde pudessem continuar suas
culturas e modos de vida. Estes, aliás, cada vez mais afetados pelas
ações de agentes como fazendeiros que “adquiriram” para si as
terras das cabeceiras do rio e matas por onde antes extraiam seus
produtos para cestarias, vassouras e demais artesanatos e acima de
tudo para a produção de mandioca, cana de açúcar e as
transformaram em pastagem para o gado, fenômeno extremamente
comum na Amazônia Brasileira, a partir da segunda metade do
século XX principalmente.
A partir de diálogos com “agentes externos” e com aqueles
contextos nacional e regional de luta por reconhecimento dos
territórios tradicionalmente ocupados por comunidades negras
rurais ter chegado nas cabeceiras do Matupiri, iniciou-se ali um
processo de estruturação da sua luta pelo reconhecimento do
território. Primeiro, “nós fundamos uma federação pra nós (...) pra
fazer o mapeamento todinho da área. Passamos três meses fazendo
isso pra gente adquirir os conhecimentos que as pessoas antigas
tinham [...]. Depois fizemos o resumo, onde tiramos as partes
principais”.(Maria Cremilda, 59 anos primeira presidente da
federação quilombola, 2009-2011. Entrevista realizada em 2015).
Essa tentativa das lideranças comunitárias recém
constituída em buscar (re)construir uma memória de origem
comum, relacionada ao cativeiro, pautada nas narrativas dos velhos
e velhas das comunidades, tornados os guardiões das memórias do
passado da escravidão na Amazônia (FURNES, 1995). O processo de
construção dessa memória do cativeiro partiu, portanto, de uma
dada situação social atual de reivindicantes como grupo Étnico que,
a partir de então, liga-se àquele passado das relações de trabalho
pautado na escravidão. São, por isso, as condições de conflitos e
necessidades do presente que dão suportes para esse processo de
114
construção coletiva da identidade quilombola no Andirá. Nesse
percurso os remanescentes, “por meio da recuperação das
narrativas de seus pais e avós, mas desenvolvendo agora, novas
interpretações. Nisso, muitas praticas culturais como origem no
tempo do cativeiro, foram transformadas em capital simbólico para
afirmação da Identidade quilombola”. (MATTOS, 2005, p. 110).
Nesse processo de “sair pelas demais comunidades” para
entrevistar os mais velhos, a fim de compor uma memória do
cativeiro, a federação terminou por elaborar sua síntese histórica.
Também buscou outras parcerias, para compor essa busca pelas
origens,
*...+ ‘pra cabá’ de concluir quando a cartografia do
Amazonas (Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia) veio pra
cá aí foi que completou! Eles fizeram, nós tivemos uma oficina de 04
dias. Nessa oficina teve a oficina do mapeamento das áreas, cada
comunidade fez o seu mapa, foi batido GPS todas as comunidades,
então, através desses mapeamentos e desse GPS foi que chegou a
conclusão de nós sermos reconhecimento. 08 meses depois, nós
fumos reconhecidos né! Ai, nessa oficina foi feito dia 14 de fevereiro
de 2013, quando foi dia 28 de abril 2013 tivemos a conversão 169
aqui dentro da comunidade. ! Então, tudo isso ajudou nós acabar de
completar a nossa palavra, ai nós ‘fumos’ reconhecido, 07 meses
chegou em nossas mãos o diário oficial da união, 15 dias depois
chegou a certidão de reconhecimento como remanescente de
quilombo. (Maria Amélia dos Santos Castro, presidente da federação
quilombola, 2012-2016. Entrevista realizada em 2015).
Para Maria Amélia dos Santos Castro, presidente da
federação quilombola o reconhecimento das comunidades como
quilombolas representa um novo tempo que ilumina para outras
possibilidades, pois “hoje a vida vai ser diferente né, hoje já tá
sendo, já tá de olho aberto, não é mais aquele olho fechado que
antigamente existia, então pra gente o nosso reconhecimento foi
verdadeiramente uma pátria muito alegre, muito boa”. E mais
É uma honra muito grande, porque nós temos agora outros
valores diferentes, vamos ser tratado diferente como era no
115
princípio. Se no princípio nossos pais nossos avos não foram
escravos de senzala. Foram escravos do trabalho que si haviam aqui
de servir, de escada pros fazendeiros, pras pessoas que vinha
vender mercadoria, os regatiavam por aqui, eles se matavam
tirando madeira pra troca com rancho. (Maria Amélia dos Santos
Castro, presidente da federação quilombola, 2012-2016. Entrevista
realizada em 2015).
Ainda sobre a trajetória da comunidade durante o processo
final da busca por reconhecimento, Maria Amélia aponta para os
cenários de tensões por que passam tais comunidades negras rurais
na Amazônia que tentavam acessar seus direitos e nisso burlar as
praticas tradicionais clientelistas e autoritárias que tornaram a
Amazônia, pobre e vítima de suas riquezas e exuberâncias.
Olha, quando eu não sabia eu procura saber! Porque diziam
assim, quando nós tava se organizando pra ser reconhecido muitas
pessoas diziam assim: - vocês não vão ser reconhecido, porque o
prefeito não vai assinar, porque o presidente do meio ambiente não
assinou. Quando o Dr. Júlio Junior veio aqui do ministério público
federal eu perguntei pra ele qual era o nosso direito dentro do nosso
remanescente de quilombo, se realmente era certo a presença pelo
município, ou se tinha outro órgão diferente?. Ele disse: - não, o
município não resolve nada do problema de vocês, o que vem
resolver o problema de vocês é a fundação Palmares, ele como
trabalhava no ministério público federal que é outra voz e o INCRA.
Foi que o pessoal (das comunidades) entenderam que nós não podia
esperar do município, por isso que vem de Manaus, de Brasília, de
Parintins. Vem direto pra cá, o pessoal ficam preocupado porque que
não passa por Barreirinha, porque remanescente somo nós não
eles!. É por isso que venham procurá nós” (Maria Amélia dos Santos
Castro, presidente da federação quilombola, 2012-2016. Entrevista
realizada em 2015).
Nesse movimento de luta pelo reconhecimento o
“tradicional” como operativo também foi aparentemente deslocado
no discurso oficial, afastando-se do passado e tornando-se cada vez
mais próximo de “demandas do presente”. Para (ALMEIDA, 2008, p.
116
29-30), “(...) as pessoas a se agruparem sob uma mesma expressão
coletiva, ao declararem seu pertencimento a um povo ou a um
grupo, exigindo o reconhecimento de suas formas intrínsecas de
acessos à terra...”
Grupos sociais na Amazônia como as comunidades do
Matupiri, percebem que haviam possibilidades para encaminhar
suas reivindicações, para reconhecer suas identidades coletivas e
reivindicar um território por eles ocupados tradicionalmente.
Dentre outras questões, essa memória sobre do
reconhecimento como quilombolas, indicam processos de luta para
assegurar direitos. Lutas essa travada em outras partes do país
desde 1988-89, quando certos desdobramentos, cujas formas de
associação e luta de trabalhadores de modo geral e movimentos
sociais do campo, escapam ao sentido estrito de uma entidade
sindical, incorporando fatores étnicos, elementos de consciência
ecológica e critérios de gênero e de auto definição coletiva, que
concorrem para relativizar as divisões político-administrativas e a
maneira convencional de pautar e de encaminhar demandas aos
poderes públicos, (ALMEIDA, 2008).
Mas ainda, ocorre que critérios político-organizativo
sobressai combinado com uma “política de identidades”, da qual
lançam mão os agentes sociais objetivados em movimento para
fazer frente aos seus antagonistas e aos aparatos de estado.
Organizações como a federação dos quilombos de
Barreirinha, liderados exclusivamente por mulheres que, “quando
eu não sabia eu procurava saber”, como fizeram Maria Cremilda,
técnica de Enfermagem e Maria de Lourdes, agricultora de “poucas
letras”, muita determinação e consciência de seu papel como sujeito
da História, ao articularem-se aos órgãos Estaduais e Federais,
colocaram suas comunidades em diálogos com os demais cenários
nacionais e de reivindicação de novas identidades. Esse potencial de
articulação assumido por essas mulheres do Andirá deve ser
inserido num campo maior que atinge a região Amazônica nas
últimas décadas. Freitas, (2009, p. 27) ao tratar da questão região
nação, indica que “(...) os povos e as sociedades indígenas vêm
117
ampliando sua auto percepção dos direitos tradicionais, da ação
Inter étnicas e popular e da validade de articulação política
supranacional”.
Essas e outras mulheres amazônicas, auto identificadas
como remanescentes fazem parte de um povo cenário que vem
desconstruído o pensamento social construído para as minorias e
em especial as mulheres da região. Sobre isso Torres, (2008, p. 170),
chama atenção para o fato de que,
[...] os nativos, homens e mulheres da Amazônia, foram
interpretados pela via biologista como parte da natureza. Os
naturalistas não viam o homem como sujeito central no universo
amazônico e sim como uma peça acoplada a natureza ou como um
duende imiscuído nela. [...] Não tivemos condições históricas para
construir um pensamento amazônico autônomo, não temos uma
epistemologia. [...]. É preciso construir uma outra epistemologia que
instaure uma nova ordem de conhecimento diferente do
pensamento único buscando, outrossim, coloca-la no seu contexto. É
o monopólio do rigor criticamos para colocar na ordem do dia temas
que foram ocultados, oprimidos e sufocados pelo preconceito de um
tipo de conhecimento que se impôs como verdades absoluta. O
monopólio desse tipo de saber se encarregou de extirpar da ciência a
historia das minorias sociais, as nações de diferença, os paradoxos e
as descontinuidades tão presentes nos processos sociais.
Importa aqui consideramos que a Amazônia vive um
momento de autoconhecer-se, onde poderemos “construir outras
histórias para a região” (LOUREIRO, 2002), mesmo que pautadas nos
mesmos objetos invisibilizados por “concepção de inteiramente
mecanicista” por (NORONHA, 2011, p. 191). Essa história permite-se
sujar pelas vidas que nestes cenários de direitos formalizados na
constituição de 1988 em especial, amparam as inúmeras lutas
dessas “novas Amazonidas” (Torres, 2005), seja do chão de fábrica
da zona franca de Manaus. Seja estas “filhas do Andirá” (ROCHA,
2015) que hora falam das profundezas étnicas daquele rio.
Os processos de luta pelo reconhecimento étnico no Andirá
encampado pela federação quilombola parece pautaram-se naquilo
118
que (ALMEIDA, 2008), aponta como sendo característica de alcance
assumida pelos “novos movimentos sociais”. Estes, nos seus
contextos de reivindicantes, vão para a além dos poderes municipais
como bem ocorreu com a federação que se articulou a agentes
externos regionais e federais para concretizar e materializar seus
objetivos. Nesse sentido, suas praticas alteram padrões tradicionais
de relação política com os centros de poder e com as instancias de
legitimação, possibilitando a emergência de lideranças que
prescindem dos que detém o poder local.
Mesmo distante da pretensão de serem movimentos para a
tomada do poder política, essas novas formas associativas na
Amazônia, logram generalizar o localismo das reivindicações e
estado, deslocando os “mediadores tradicionais” (grandes
proprietários de terras, comerciantes de produtos agrícolas e
extrativos, seringalistas, danos de castanhais e babaçuais).
(ALMEIDA, 2008). Enfim, essas práticas associativas poderão, aos
poucos, romper com o clientelismo e o paternalismo,
constantemente reforçados pela elite (CONCEIÇÃO & MANESCHY,
2002, p. 168).
Atualmente as cinco comunidades que formam o quilombo
Andirá aguardam a última fase de seu processo de (re)
territorialização. O conhecimento, entendimento e explicação
dessas experiências das “filhas do Andirá” insere-se num processo
maior que é a construção de fazer formação em outras regiões e
consubstanciado agora em programas como o sociedades e cultura,
onde aqueles primeiros “caboclos e caboclas” auxiliar outros que
mergulham nas utopias Amazônicas e, a partir das margens fazem
emergir gentes, natureza, cultura, mito e realidades.
Esses movimentos para consolidar num futuro um
pensamento social da e na Amazônia se faz num dialogo com as
falas e sujeitos locais e os princípios da ciência. Com isso afasta-se
do movimento tradicional que marginalizou, e impossibilitou os
subalternos de falar, mas produziu muitas concepções cristalizadas
acerca da região. Fez aquilo que Almeida, (2008 b) denomina de
“esquemas interpretativos da Amazônia”, pautados no Biologismo,
119
geografismo e no dualismo perverso que enquadrou e hierarquizou
erroneamente os grupos humanos e os espaços amazônicos. Para
Torres (Torres, 2005) as matrizes teóricas sobre a região
encampadas por esse movimento tradicional trazem o estereótipo
europeu. Interpretações especificas e particularizadas, diversas e
plurais, fictícias e metaforizadas, compõe o quadro de uma região
inventada e recriada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreender como o Matupiri se disse e se auto identifica
quilombola passa antes de tudo por reconhecer e entender os
inúmeros processos e formas de conhecimentos por eles acionados
e utilizados. Essa é uma atividade não localizada no Andirá, mas que
se liga a um contexto maior pelo qual novas identificações Étnicas
ganham força e constroem possibilidades de emergências e buscas
por direitos de povos e comunidades tradicionais por toda
Amazônia.
São múltiplos os processos de emergências e processos
sociais que aguardam identificação, compreensão, descrição e
explicação a luz de métodos e procedimentos que dialoguem com as
formas atuais que os sujeitos sociais da Amazônia passam a criar e
acionar. Entendendo-se como sujeitos de direitos, articulam-se para
além das organizações tradicionais como sindicatos e buscam
formar uma identidade política que procura materializar os direitos
assegurados nas leis.
Importa muito nesse contexto de auto entendimento da
Amazônia. Criar estratégias metodológica para olhar tais
emergências e situá-las em seus devidos contextos históricos e
sociais. Neste texto escolhemos promover tal esforço a partir dos
suportes trazidos pelas memórias de duas lideranças da federação
quilombola da cidade de Barreirinha.
A intenção deste texto foi iniciar uma reflexão que se
aprofundará no âmbito do programa sociedade e cultura, acerca da
produção do conhecimento na Amazônia. Uma produção que
escute, contextualize e por fim analise as vozes dos sujeitos. A partir
de como constroem suas memórias sobre seu passado e o que
120
narram para compor as histórias sobre si. Nossa postura dialogou
com os indicativos de Torres, (2005, p. 185). Para falar sobre o ofício
do antropólogo diante da Amazônia. Segundo ela, este “deve se
preocupar mais em definir processos individuais e específicos,
explicando a dinâmica dos grupos e das fronteiras, do que burilar
conceitos”. Tais indicativos também acalham para a pesquisa
histórica, especialmente quando se trata de comunidades
quilombolas na Amazônia, a exemplos dessas cinco que se
apresentam como tais no rio Andirá.
Nisso, podemos analisar as filhas do Andirá como sujeitas
que constroem suas histórias pautadas numa memória étnica que
foi politizada e é cotidianamente atualizada e materializada no
estabelecimento de certa identidade étnica diferenciada que exigem
outras posturas, a saber a organização especificas; novas formas de
acesso e uso dos territoriais; e especialmente uma atenção especial
a cultura que se materializa nas festas e nas novas relações com o
passado.
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2008.

123
Jéssica Dayse Matos Gomes 38
Dra. Renilda Aparecida Costa39

Introdução
Os dados sobre as populações negras amazônicas no Pará,
Maranhão e na região fronteiriça com as Guinas são bastante
expressivos. Quando nos reportamos ao Estado do Amazonas ainda
se ressente de mais pesquisas para a historiografia do negro nesse
território. Em relação ao chamado Baixo Amazonas, que
compreende hoje alguns municípios de Barreirinha, Nhamundá,
Maués, Urucará e Parintins há informações limitadas sobre a
presença negra.

38
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia
– UFAM. Orientada pela professora Dra. Renilda Aparecida Costa. E-mail:
daysemhp@gmail.com.
39
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos/
UNISINOS. Atualmente é professoraadjunta e Pesquisadora da Universidade Federal
do Amazonas – UFAM, atuando no Instituto de Natureza e Cultura Benjamin
Constant, AM.Coordena também o Núcleo de Estudos Afro Indígena – NEAINC.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia –
PPGSCA.
124
O presente capítulo apresenta considerações a respeito da
presença negra na Amazônia, especificamente no Baixo Amazonas e
sua contribuição na formação do pensamento social amazônico.
Utilizou-se a pesquisa bibliográfica, entrevista abrangendo os
conceitos da presença negra na Amazônia relacionando a obras
musicais que abrangem a história regional.
A primeira parte do artigo tem por objetivo mostrar a
presença negra no pensamento social e historiografia amazônica.
Posteriormente, discute-se o pensamento social sobre a cultura
negra contido nas toadas de boi bumbá de Parintins onde se analisa
de que forma os temas auto declaração negra, resistência a
escravidão e influencias culturais são tratados pela história e música
regional.
A presença negra no pensamento social e historiografia amazônica
Para o historiador Vicente Sales, autor dos livros O negro no
Pará e O negro na formação da sociedade paraense, o estudo da
presença negra e sua influência no desenvolvimento cultural na
Amazônia é marcado pela chegada dos primeiros negros avaliados
como escravos ainda no início da ocupação da região no século XVI.
O autor afirma que o declínio do monopólio comercial português no
Oriente e o domínio holandês em Pernambuco (1630-1654)
trouxeram a necessidade de novos solos para a produção canavieira
e a procura de especiarias na floresta compõem o ambiente em que
o negro africano iria ingressar, marcando “profundamente a sua
125
presença na Amazônia” (PEREIRA E COSTA, 2014, p.113; SALES,
2004. p. 17). Salles considera que “no Amazonas, o rio Negro tinha
apenas 710 escravos negros, o que vem confirmar a tendência de
concentração do contingente da população negra e mulata no baixo
Amazonas e em Belém, e uma pequena participação nos rios Negro
e Solimões (SALLES, 1988, p.72)
Para Sousa (2002) a importação de escravos africanos era a
solução quando o branco não podia contar com o trabalho indígena.
Deve-se considerar que a utilização da mão-de-obra indígena foi
uma das características marcantes do processo de conquista na
Amazônia. Perseguidos e escravizados, os índios supriram com
dificuldade às exigências dos colonos que se mostravam “incapazes
financeiramente” de comprar escravos negros, pois, estes eram
mais caros do que índios (SOUSA, 2002, p. 2).
Sampaio (2011, p.280) considera que as pesquisas recentes
sobre a escravidão na Amazônia asseguram que a utilização de mão
de obra negra não teve tanta representatividade econômica no
século XVII e XVIII, devido o predomínio de mão de obra indígena
usada dentro de formas do trabalho compulsório, além da
existência de uma população branca reduzida no período
referenciado. A autora acrescenta que a partir da segunda metade
do século XVIII se verifica um aumento importante em relação ao
número de escravos negros, introduzidos na região a partir de
interesses do Marquês de Pombal e suas medidas vinculadas à
mediação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e
Maranhão que se torna uma realidade socioeconômica importante
para a província, mesmo com a inegável predominância do uso de
mão de obra dos índios durante o século das luzes.
Com o objetivo de ampliar o uso de mão de obra negra em
substituição à mão de obra indígena, o projeto pombalino não surtiu
efeito (SAMPAIO, 2011). Os escravos africanos em número reduzido
e seu impacto na produção da economia regional dirigem para
observações a respeito da presença negra na região
amazônica.Sampaio (2011) salienta que o exame dos dados da
Capitania do Rio Negro para os anos de 1775 a 1795 já se registram
126
a presença dos escravos mesmo em face à predominância dos
índios.
Durante o século XIX, período em que a região estava
inserida em um império escravista a historiografia local observa a
permanência do tratamento de “acessório” dado aos escravos
negros; também mostra que as obras no período limitam-se em
registrar a presença reduzida de negros escravizados e seu valor na
Capitania do Rio Negro. No entanto, documentos apresentam dados
significativos sobre os negros na região do Amazonas, onde os
mesmos foram distribuídos e referenciados.
Costa (2014) considera que a valorização da posse escrava
no período de 1850 a 1870 é resultado das leis de abolição do
tráfico atlântico em 1850 e do ventre livre em 1871 que impulsionou
movimentação no comércio interprovincial escravista para a região
cafeicultora, principalmente o Novo Oeste de São Paulo. Entretanto,
assim como aconteceu no Pará, tal fator parece não ter modificado
o quadro demográfico dos negros cativos em Manaus, uma vez que
houve aumento quantitativo da população escrava, dando entender
de que de que as elites proprietárias manauaras mantiveram seus
escravos na província, cativos que eram uma importante forma de
capital da província (COSTA, 2014; BEZERRA NETO, 2009).
Dados demonstram que a capital do Amazonas tenha tido
maior percentual de negros em sua porção territorial seguido por
Vila Bela, próxima ao centro econômico do Rio Negro. Sampaio
(2011, p.15) considera que em virtude dos ajustes tomados pela
Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão na
segunda metade do século XVIII, “é que se verifica um aumento
importante do número de escravos negros introduzidos na
Amazônia”.
Existiu uma grande quantidade de negros escravizados no
Amazonas no século XIX, embora tenha persistido uma
interpretação de que o número de africanos impactou
modestamente a economia regional (SAMPAIO, 2007). O maior
quantitativo de escravos centrava-se em Manaus, Manicoré, Tefé,
Borba e Parintins, além de outros lugares no espaço amazonense.
127
Para Farias Júnior (2011, p. 131) a “presença negra” e a
“história da escravidão” no território amazônico foram negadas por
um longo período. Para o autor, alguns intérpretes da Amazônia,
“esta seria uma ‘história menor’. Tais intérpretes erroneamente
insistiam em quantidade, como justificativa para a relevância
social”.
Abreu (2014) considera que a escravidão negra na Amazônia
que teve características peculiares. No entanto, a contribuição do
negro em relação a sua cultura mesmo que matizada e misturada
pela relação com os indígenas e com os colonos oriundos de
Portugal além dos migrantes de outras partes constituem em seu
conjunto a memória da Amazônia.
Estes aportes teóricos mostram o pensamento social em
relação à presença negra desenvolvida na Amazônia, onde ser negro
muitas vezes pareceu ser fora de contexto da identidade da região.
O pensamento social nas toadas de boi bumbá de Parintins
Silva Jr. (2006) analisa que o movimento Negro, os conceitos
Antropológicos e Histórico-Sociais bem como o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística - IBGE definem população negra
(Afrodescendente) como sendo o conjunto de pessoas que se
autodeclaram de cor preta e parda.
No Estado do Amazonas muitos “pardos locais” se declaram
descendentes de índios, refletindo inexatidão, o que não descarta
o fato de que mesmo em minoria, significativa parcela dos pardos
amazonenses é afrodescendente. Para Silva Jr. (2006), no censo do
IBGE (2000) a população do Amazonas tem a seguinte composição
de cor e raça:
Tabela 1 – Declaração de cor/raça no Amazonas
Amarelos (e
Brancos Pretos Pardos
Indígenas)

24,8% 3,7% 65,7% 4,4%

Percebe-se que o amazonense afirma ter composição de cor


e raça em grande maioria pardo. Silva Jr. (2006) também observa
128
que população negra no Estado do Amazonas não é apenas os
indivíduos de cor preta, mas sim a soma dos que possuem cor preta
e parda, expandindo ainda mais a representatividade dos
afrodescendentes na população do estado. As pesquisas científicas
reforçam a presença negra na Amazônica contrariando o senso
comum de que a região é marcada pela predominância indígena e
miscigenação com o europeu, “enquanto que a contribuição social,
econômica e cultural do negro é sistematicamente diminuída ou
menosprezada no conjunto das etnias formadoras da sociedade
amazônica” (BENCHIMOL, 1999, p. 103).
De acordo com Silva Jr. (2006) a presença negra no estado
do Amazonas, segundo documentos e relatos de época, teve aporte
de escravos oriundos do Pará e Maranhão, possibilitando no
estado influencias culturais como o tambor de mina e o boi-
bumbá, e sendo o Amazonas segundo estado do país a abolir a
escravidão (4 anos antes da lei Áurea de 1888) após uma campanha
abolicionista de 16 anos teve a African House e a fundação de
“bairros negros” no pós-abolição como, por exemplo, a Vila São José
(onde hoje é a Praça da Saudade), Praça 14 e o Zumbi dos Palmares.
O Amazonas também teve em fins do séc. XIX o primeiro
governador afrodescendente do Brasil, o senhor Eduardo Ribeiro,
além de presença histórica de negros barbadianos e seus
descendentes.
No município de cidade de Parintins, distante 369 km de
Manaus, a presença negra é reverenciada em muitos aspectos.
Como exemplo de manifestação da cultura afro com suas influências
temos o Festival Folclórico. Neste evento ocorrem cênicas, músicas
e danças sobre a miscigenação e logo, a contribuição do negro para
o desenvolvimento da festa.
O compositor Enéas Dias, ligado à Associação Folclórica Boi
Bumbá Garantido demonstra grande interesse em criar toadas
voltadas para a temática negra. Ele enfatiza que uma de suas obras
ainda não divulgada é “fruto de muita pesquisa dos quilombos por
perto, como Barreirinha e Oriximiná e demonstra vontade de falar
dessa questão que está na formação da nossa cultura, da nossa
129
identidade, do nosso DNA”. A questão a que ele se refere é a
presença negra na região de Parintins, que para o mesmo é
importante para o autoconhecimento do parintinense, ou seja, é
essencial a compreensão e constituição da identidade. Esta
referência pode ser percebida na seguinte toada:
Veio pra nossa Amazônia, a cultura do bumba meu boi
No tempo áureo da borracha
Pelos nordestinos, foi trazido do sertão
E aqui o bumba meu boi se tornou boi bumbá
Auto de expressão popular
Que em Parintins criou raiz
Quando Lindolfo Monteverde
Descendente de negros nordestinos
Cumprindo a promessa que fez a São João
Criou para a glória dessa terra
O boi bumbá Garantido que virou tradição
A história revelou nosso poetas
Como o grande Vavazinho que ao luar
Cantavam pro boizinho nas ruas brincar
Bailando ao redor das fogueiras que iluminavam o caminho
Pra multidão vermelha da baixa passar
Brinca, brinca Garantido, pra mostrar o teu valor
Balanceia boi bonito, que o folclore consagrou
Brinca, Brinca Garantido folguedo de São João
Em defesa da Amazônia, da cultura e da tradição
A toada Tradição Folclórica Da Amazônia composta por
Rosinaldo Carneiro e Marlon Brandão faz parte do CD oficial do Boi
Garantido no ano de 2006 e ressalta que formação cultural do
Amazonas com destaque para o folclore desenvolvido na região
amazônica que tem a grande influência negra em sua constituição.
Na obra, Lindolfo Monteverde, criador do boi Garantido é

130
enfatizado em relação a sua herança negra nordestina, mais
precisamente, do Estado do Maranhão. Com o período áureo da
borracha, sabe-se que nordestinos, em grande parte negros, vieram
para a Amazônia em busca de trabalho e uma vida digna trazendo
consigo sua cultura com destaque para o bumba meu boi.
No Estado do Amazonas o bumba meu boi virou boi bumbá,
celebrando o auto que traz as culturas branca, negra e indígena. De
acordo com Salles (1970, p.28 e Cavalcanti, 2000, p.1025) para a
evolução do boi-bumbá tem-se por base a cidade de Belém. O
folguedo chamado pelo autor de “insólito e agressivo” tem ligação
com à presença negra na Amazônia, que perambulava pelas ruas,
resultando frequentemente em baderna frente a atuação dos
capoeiras, motivando forte repressão da polícia e sendo
enquadrado nos códigos de postura corporais que proibiam o
amontoamento de escravos para os fins não religiosos. O bumbá
teria se estruturado na primeira metade do século XIX, antes da
revolta popular da Cabanagem, numa época de precária
estabilização do regime escravista na região e teria resistido à
desorganização do regime civil (SALLES, 1970; CAVALCANTI, 2000).
Nas toadas de boi bumbá o pensamento social sobre a
presença negra é identificado através da discussão do tema
escravidão, luta pela liberdade, resistência através de fugas,
formação de quilombos/mocambos e revoltas como exemplo a
Cabanagem. Sobre o movimento tem-se interpretações de tal
forma:
A história nos conta
O mundo dos índios e negros
Vivendo o tempo e o lugar de escravizar
Amazônia – colônia dos brancos
Vieram em degredo explorar os segredos
Da flora e do Riomar
Impuseram aos índios sua taba
(morada geral)

131
Isolado o nativo perdia o sentido
E o estilo da vida tribal
“Descimentos” no alto dos rios – levavam os gentios
Prisioneiros em “resgates”
Lograram os perdidos – menos oprimidos
Seguiam a chorar
Negro veio pela corrente
Suor e dor inclemente
Que o poder bruto do branco é o fogo
E não pode parar
Erguem a força da cabanagem
Lutam pela liberdade
Pra que num futuro
Vivamos em paz
A toada Tempos de Cabanagem de Tadeu Garcia e Paulinho
Du Sagrado também pertencentes ao CD oficial do Boi-Bumbá
Garantido, apresenta a Cabanagem como uma revolução de índios e
negros em busca da liberdade. Demonstra também toda a opressão
imaginada que era imposta a grupos considerados minorias na
época cabana. Com ampla participação social, o movimento cabano
abrangeu as elites anti-portuguesas mais abastadas, as populações
indígenas, comunidades de escravos fugidos, quilombolas e
soldados desertores, que tinham em comum a aversão ao
mandonismo branco e luso (RICCI, 2007; CAVALCANTE, 2013).
Negros e índios erigiram mocambos/quilombos aliando suas
necessidades. Gomes (2011, p.47) afirma que “em 1749, expedições
destinadas ao “resgate de índios” descobriram um “importante
mocambo” no rio Anauerapucu”, ou seja, negros e índios buscavam
no mocambo um lugar de resistência, sobrevivência e organização
social. Essa aliança provocou medos nas autoridades coloniais.
As toadas mostram visões existentes sobre negros na
Amazônia assim como sua atuação social, no entanto de forma

132
tímida, sem grandes destaques. Para o compositor Enéas Dias “a
questão negra aparenta ser escondida pelos bois bumbas, como se
o negro não tivesse participação nenhuma na nossa formação; no
entanto, ele está totalmente entranhado”. Entende-se, pela fala do
entrevistado que a presença negra nas toadas e no próprio boi
bumba ainda é tratado em segundo plano, desfocado de todo
espetáculo realizado com base na formação sociocultural
amazônica. Na encenação do auto do boi, os personagens Pai
Francisco, Mãe Catirina e mesmo o Gazumbá representam a cultura
negra que tem o poder de conduzir todo o sentido do surgimento da
brincadeira de boi bumbá, uma vez que é o desejo de Catirina que
leva Francisco a matar o boi detentor da língua desejada pela negra
grávida. O motivo que rege o auto do boi é exemplificado na toada
homônima conforme pode-se perceber no trecho:
Ao som desse negro batuque
Te envio à guerrear
Mãe Catirina tinhosa, Pai Francisco e Gazumbá
Se ela comer essa língua pra desejo saciar
Boto fé no pajé curandeiro pro meu boi ressuscitar.
A música composta por Enéas Dias, colaborador deste
estudo, contribui para reflexões sobre a encenação o auto do boi
bumbá, algo foi realizado em junho do corrente ano e que deu
direito a falas para o personagem negro da dramatização feita na
arena do Bumbódromo, o que não ocorria até então. Pai Francisco,
Catirina e Gazumbá eram ou inda são apresentados como
personagens cômicos na celebração do boi e silenciados como itens
obrigatórios, mas sem julgamento na contagem de pontos das
apresentações feitas no Festival Folclórico de Parintins. Entende-se
que a representação imposta aos personagens negros no boi bumbá
do município deve desenvolver maiores reflexões e compreender
ressignificações de forma coerente com a contribuição afro na
manifestação popular parintinense assim como em outras.
Nas toadas compostas por artistas locais, regionais e até
mesmo de outras regiões do país, os batuques sempre são
referenciados como herança negra no boi-bumbá assim como os
133
toques da cultura indígena aliado às festas de origem europeia,
conforme os exemplos citados na toada Tambor do CD do Boi
Garantido 2013:
Tem tambor na toada marcante,
Tambor no coração vibrante,
Tambor no folclore dançante, tambor iêê
Tem batuque, danças, boi-bumbá vem de herança
nordestina
Garantido na veia de mil migrações de origem distintas
Olodum, Maracatu, no terreiro à Oxum,
No baião, São João, nas festas de ocaras
Nada se compara ao tambor que rufa na batucada.
Para Braga (2011) as expressões de matriz africana ficaram
disfarçadas nas expressões de caráter popular, a exemplo disto se
tem os tambores que ora são associados a cultura indígena, e por
vezes à cultura afro, em segundo plano. Os batuques são tidos como
os ritmos de extrema importância para o desenvolvimento do auto
do boi, e o termo tambor assim como sua forma no plural são
constantemente visualizados e entonados nas toadas dos bois, que
pode ser constatado nos exemplos abaixo:
Exemplo 1: Toada Tambores de bem querer – Boi Garantido
Meu toque surgiu assim:
Tambor Curimbó, dos Tupinambás,
Legueiro, Zabumba, Djembé ou Gambá
De Mina ou Crioula lá do Maranhão,
De São Benedito ou de São João
Tambor Caboclinho ou Maracatu,
Marcando o compasso nas chulas do sul
Trocano da tribo, tambor do Sairé
Ou o batuque gostoso da baixa do São José.
Exemplo 2: Toada Viva a Cultura Popular – Boi Caprichoso

134
Caprichoso é raiz, é folclore, tradição
É cultura popular, é a herança dos povos
É bumba-meu-boi, boi-bumbá.
Tem batuque de negro, é afro o rufar
Dos tambores sagrados da terra
É nativo, ameríndio, tribal, o som da floresta
É toada de boi, é caboclo, é azul esse amor caprichoso
Viva o som desse povo guerreiro!
Viva a força do folclore brasileiro!
As duas toadas demonstram importantes influências
presentes no ritmo dos bumbás, onde a cultura negra não deve ser
restrita ao campo musical ou à corporeidade.
A cultura negra no Amazonas ainda vem sendo revelada,
com limitados enfoques em algumas áreas, mas, com grande
impulso em virtude das lutas de remanescentes quilombolas e
discussão sobre diversidade cultural. O que deve-se considerar sua
relevância na Amazônia de forma ampla e destituir quaisquer
equívocos provenientes da falta de conhecimento sobre as vivências
afro no território amazônico.
Considerações Finais
O negro na Amazônia suscita discussões de grande
relevância no universo acadêmico. Muito se pensava em uma região
amazônica caracterizada pelo predomínio da cultura indígena
subjugada pelo processo de miscigenação branqueador influenciado
pelos colonizadores. No entanto, as pesquisas e divulgação dos
variados aspectos sobre a presença negra tem emergido no campo
científico.
A presença negra na região amazônica apresenta inúmeras
particularidades, principalmente, o processo de afirmação da
identidade dos remanescentes de quilombos que buscam políticas
públicas para a defesa de suas tradições e seus territórios.
As toadas apresentam concepções de seus compositores
envolvendo o senso comum e o conhecimento historiográfico
135
demonstrando que em ambos os campos existem múltiplos
pensamentos sociais enraizados por grupos dominantes em
contraversão às verdades defendidas por aqueles que foram e são
considerados minorias na sociedade amazônica.
Entende-se que ainda existem diversos estereótipos,
ignorâncias e desinteresses no tema presença negra na Amazônia,
mas, que com a divulgação das pesquisas realizadas no meio
acadêmico, essas ideias equivocadas serão ainda mais discutidas e
vistas por outra ótica.
Em Parintins, os bois bumbas realizam seleções de toadas
que atendem seus interesses, em grande parte comerciais, mas, o
tema negro na Amazônia ainda aparece nas entrelinhas e ofuscado
no enredo e cênica do festival.
São necessárias amplas reflexões sobre a presença negra no
pensamento das sociedades amazônicas que utilizam as músicas
regionais, conhecidas como toadas, para refletir suas concepções
nos vários meios dos territórios onde vivem.
Referências:
1. ABREU, Tenner Inauhiny. Nascidos no grêmio da sociedade?
Negros, índios e tapuias no mundo do trabalho na província do
Amazonas (1850-1889). Revista Transversos, Rio de Janeiro, Vol.
01, nº. 01, p. 97-113, fevereiro de 2014. Disponível em:
<www.transversos.com.br>. ISSN 2179-7528.
2. BENCHIMOL, Samuel. 1923. Amazônia – Formação Social e
Cultural. Manaus: Editora Valer, Editora da Universidade do
Amazonas, 1999.
3. CAVALCANTE, Ygor Olinto Rocha. Uma viva e permanente
ameaça: resistência, rebeldia e fugas de escravos no Amazonas
Provincial. 2013. 162 f. Dissertação (Mestrado em História) -
Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2013.
4. COSTA, Jéssyka Sâmya Ladislau Pereira. Mercado e posse
escrava: aspectos da escravidão urbana em Manaus (1850 –
1884). Anais do VII Encontro de Pós-Graduação em História

136
Econômica & 5ª Conferência Internacional de História
Econômica, Universidade Federal Fluminense, 2014.
5. FARIAS JÚNIOR, Emmanuel de Almeida. Quilombolas no
Amazonas: do Rio dos Pretos ao Quilombo do Tambor. In: O fim
do silencio: presença negra na Amazônia/ Patrícia Melo Sampaio
(Organizadora). – Belém: Editora Açaí; CNPq, 2011.
6. FARIAS JÚNIOR, Emmanuel de Almeida. Quilombolas na
Amazônia: um esboço preliminar do estudo de comunidades de
pretos no Complexo Madeira. In: II Encontro Brasileiro de
Ciências Sociais e Barragens. Salvador, Bahia: Instituto de
Geociências, Mestrado em Geografia/EDUFBA, 2007.
7. GOMES,Robeilton de Souza. Fuga, sublevação e conflito: faces
da resistência política na Amazônia colonial (sec. XVIII). Anais do
XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, julho
2011.
8. IBGE. Censo Demográfico 2000. População residente por cor ou
raça, segundo os municípios do Estado do Amazonas.
9. PEREIRA, Edvaldo Santos e COSTA, Regina Barbosa da. A
presença africana na Amazônia: o coletivo em Bruno de
Menezes e o individual em Dalcídio Jurandir. Anais eletrônicos
do XIV ABRALIC, Belém, Universidade Federal do Pará, setembro
de 2014.
10. RICCI, Magda. Cabanagem, cidadania e identidade
revolucionária: o problema o patriotismo na Amazônia entre
1835 e 1840. Tempo, v.11, n.22, 2007.
11. SALLES. Vicente. O negro no Pará; sob regime de escravidão.Rio,
Fundação Getúlio Vargas & Univ. Fed. do Parti, 1971. 336 p. ilus.
12. __________. O negro na formação da sociedade paraense.
Textos reunidos. Belém: Paka-Tatu, 2004.
13. SILVA JR., Juarez C. da. A presença negra no Amazonas, 2006.
Disponível em:
http://movimentoafro.amazonida.com/presenca_negra_no_am
azonas.htm. Acesso em: 15 de janeiro de 2016 às 23h03.

137
14. SOUSA, James O. Mão-de-obra indígena na Amazônia Colonial.
Em Tempo de Histórias, n°. 6, 2002.
15. Entrevista realizada com Enéas Dias, compositor e músico da
Associação Folclórica Boi Bumbá Garantido, em outubro de
2015.
16. Toadas citadas, autores, seus respectivos CDS e ano:
17. Tradição Folclórica Da Amazônia. Composição de Rosinaldo
Carneiro e Marlon Brandão. Terra a Grande Maloca, Boi
Garantido, 2006.
18. Tempos de Cabanagem. Composição de Tadeu Garcia. 500 Anos
do Passado para Construir o Futuro, Boi Garantido,1998.
19. Auto do Boi. Composição de Enéas Dias e Marcos Boi. Tradição,
Boi Garantido, 2012.
20. Tambor. Composição de Ronaldo Barbosa Júnior e Rafael
Marupiara. O Boi do Centenário, Boi Garantido 2013.
21. Tambores de bem querer. Composição de Enéas Dias e Marcos
Boi. O Boi do Centenário, Boi Garantido, 2013.
22. Viva a Cultura Popular. Composição de Guto Kawakami,
Geovane Bastos e Adriano Aguiar. Boi Caprichoso, 2012.

138
M.sC. Naia Maria Guerreiro Dias 40
Dr. Renan Albuquerque Rodrigues41

Introdução
O território brasileiro apresenta uma variedade de
evidências que demonstram a riqueza do seu patrimônio cultural. Os
registros arqueológicos são um exemplo disso. Eles apresentam
elementos essenciais para a compreensão da identidade brasileira,
sendo estes herança cultural. A relação existente entre a
preservação do patrimônio arqueológico e a sociedade pode ser
apontada como sendo o reconhecimento e a valorização das
identidades culturais de uma determinada região, e isto está
diretamente relacionado com a identificação do sujeito na
localidade em que se vive, tornando-o uma parte deste passado,
identificando-se com ele (DAMATTA, 1986).
O conceito de patrimônio cultural é usado como referência a
monumentos herdados de gerações anteriores. Esta ideia procura
salientar a importância de se construir consciência histórica

40
Mestre em Sociedade Cultura na Amazônia, junto a Universidade Federal do
Amazonas (PPGSCA/UFAM)
41
Doutor em Sociedade e Cultura, pela UFAM. Lidera o Núcleo de Estudos e
Pesquisas em Ambientes Amazônicos (NEPAM/ICSEZ/UFAM) e coordena o
Laboratório de Editoração Digital do Amazonas (LEDA/ICSEZ/UFAM). Professor e
pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia –
PPGSCA.
139
relacionada a marcas ancestrais que apresentam continuidades no
presente. Para Funari (2003) não existe identidade sem memória e,
em razão disso, monumentos históricos e vestígios arqueológicos
são portadores de mensagens e produzem significado, em especial
ao materializarem conceitos como identidade nacional e diferença
étnica.
A arqueologia é importante ferramenta para a compreensão
da formação da identidade. Estimula reflexões e debates que
possam vir contribuir com a tomada de conscientização coletiva
sobre a importância das raízes culturais, fomentando consciência da
importância de suas raízes para a preservação de sua história, visão
de pertencimento e solidificação da identidade nacional.
Estudos apontam que em diferentes partes da região
Amazônica, já havia ocupação por populações especializadas na
pesca, coleta e caça de animais de pequeno porte, por volta de
7.000 a.C. De acordo com Roosevelt (1991). Esses povos da
Amazônia estavam concentrados próximos aos rios e no litoral, por
isso além de se alimentarem de frutos tropicais e peixes, comiam
também moluscos, os quais descartavam as conchas na terra, o que
veio a formar os sambaquis, e que na perspectiva da referida
arqueóloga configura-se como sendo o estágio cerâmico inicial.
Atualmente na Amazônia, embora haja pesquisa para a
verificação de sítios arqueológicos, ainda são mínimos os dados
obtidos. No Estado do Amazonas, segundo o levantamento
arqueológico do município de Manaus (2006), destaca-se que na
própria capital do Amazonas e nas adjacências, ocorreu uma rica
ocupação humana, anterior a fundação da fortaleza de São José do
Rio Negro.
Os sítios arqueológicos, testemunhas dessa história estão
em toda a parte. Sendo estes utilizados também como atrativos
turísticos, como é o caso dos sítios arqueológicos Santa Rita e São
Paulo da Valéria, situados na região da Valéria, zona rural da cidade
de Parintins, fronteira do Estado do Amazonas com o Pará.
No local, artefatos em cerâmica encontrados são
pertencentes à tradição incisa e ponteada, datados de período
140
anterior à colonização portuguesa (NEVES, 2006). São do tipo
konduri, com registros do século X ao XVI d.C. Na literatura, não há
confirmação eficiente sobre povos que legaram os vestígios, o que
contribui para hipóteses relacionadas à união de índios Tupinambá
com Aratu, Apoicuitara, Godui, Yara e Curiató – todos residentes na
margem esquerda do rio Amazonas (SILVA et al., 2009).
1. Patrimônio cultural
A definição de patrimônio é relativa, partindo de diferentes
perspectivas: legais, afetivas, econômicas, territoriais ou
socioculturais. Na Constituição de 1988, a definição de patrimônio
integra a noção de patrimônio cultural. Elenca que, patrimônios
culturais brasileiros são descritos como bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, ação, memória e conformação de grupos da
sociedade brasileira (PAIM, 2010).
No contexto acadêmico, textos de Ciências Sociais e
Humanas abordam ao longo do processo histórico diferentes
conceituações sobre patrimônio cultural em decorrência de
mudanças em concepções sobre o ambiente na sociedade (PAIM,
2010). De modo que patrimônio, hoje, é compreendido como ente,
coisa ou lugar de memória. A caracterização conceitual encerra-se
onde a dimensão interrelacional das pessoas com o território e a
mutualidade concorre para a atribuição de significados (NORA,
1997).
Podem ser considerados patrimônios uma fotografia, uma
casa, um sítio arqueológico, uma dança, uma música etc. Registros
na Amazônia, especificamente, podem ser identificados ao ponto
em que se concebem práticas e representações de pessoas, lugares
e coisas, destacando-se aspectos referentes a permanências e
transformações ocorridas em determinados contextos socioculturais
(PAIM, 2010).
O significado de patrimônio tende a recair atualmente tanto
sobre aspectos ideais e valorativos da forma de vida de povos
quanto sobre a questão material (GONÇALVES, 2002). Conceituar
patrimônio, desta feita, é essencialmente um ato de
141
estabelecimento de conexão significativa com mosaicos que
conferem singularidade a diversas e complexas sociedades.
No passado, a noção de patrimônio foi ancorada no
antagonismo natureza e cultura, sendo construída como o resultado
de expressões metafísicas ocasionadas pela ação humana
(GONÇALVES, 2002). Mas impasses causados pela dualidade
fomentaram a superação do dilema e foram feitas restituições do
conceito de patrimônio e, por conseguinte, do planejamento das
respectivas políticas públicas.
Patrimônio passou a ser entendido não apenas como obra
produzida por ação humana. Incluíram-se contextos naturais que
passaram a abarcar cenários de memórias e identidades sociais.
Com a atuação significativa do Iphan, alargou-se o leque de
preocupações com manifestações culturais e fazeres. Estes passam a
ser considerados bens de culturais de natureza imaterial.
Adotou-se o tombamento como instrumento de
preservação patrimonial e enquanto prática de preservação de
vestígios de campos, cuja legislação está sendo amadurecida desde
a metade do século XX. Entretanto, a legislação para patrimônio
imaterial é recente. Somente em agosto de 2000 foi publicado o
Decreto nº 3551, em que constam os principais instrumentos de
salvaguarda patrimoniais (ID., op. cit.).
No Brasil atualmente há, em âmbito nacional, o Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama), ligado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), e o
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), ligado
ao Ministério da Cultura (MEC); em âmbito estadual, no Amazonas,
situa-se a Secretaria de Estado da Cultura (SEC).
Na esfera municipal, Parintins/AM tem a Secretaria
Municipal de Cultura e Turismo e o Instituto Memorial de Parintins
(Impin). Ambos possuem missão de salvaguardar patrimônios da
região enquanto bens potencializadores de autoimagem e qualidade
de vida, via aquisição de conhecimentos para práticas de cidadania.
Dentre eles, destaca-se o sítio arqueológico da Serra de Valéria,

142
onde comunidades estão assentadas e realizam interações
diversificadas com seu espaço.
Na estreita ampliação da noção de patrimônio e identidade,
surgiu a preocupação com o tombamento, preservação e os usos
sociais dos bens culturais, que constituem referência da identidade
de determinados grupos sociais. De acordo com Machado (2007) a
Lei Federal 3924/61, Portaria 88-IPHAN assegura a proteção aos
sítios arqueológicos.
A necessidade de preservação do Patrimônio Cultural de
uma sociedade se faz necessário devido aos grandes desafios
presentes hoje em se constituir importantes marcos referenciais
identitários das sociedades atuais como forma de compreensão da
consciência histórica das mesmas. O Patrimônio arqueológico se
insere nesta preocupação atual, pois a necessidade de compreensão
das sociedades favorece essa busca por preservação de bens
culturais.
2. Patrimônio arqueológico e turismo na região da Valéria/AM
A região da Valéria encontra-se na fronteira do Estado do
Amazonas com o Pará. É uma área de terras altas, formada por
platôs dissecados de Alter do Chão/PA, com altitudes de até 100m. A
Serra da Valéria possui 115m de altura (SAUNIER, 2003; AZEVEDO
FILHO, 2013).
Integram o complexo as comunidades de São Paulo, Santa
Rita de Cássia, Betel, Bete Semes e Samaria. Em razão do paisagismo
natural e cultural, a região tornou-se um dos atrativos turísticos do
Baixo Amazonas, seja para roteiros nacionais como internacionais. E
o turismo configurou-se como uma das práticas econômicas do
local.
Por ser atividade diversificada, o turismo pode ser
desenvolvido em diferentes áreas e contextos. Nesse cenário,
destaca-se a prática do turismo em áreas de grande concentração de
vestígios arqueológicos, tendo em vista o grande interesse de
destinos turísticos a essas localidades.

143
A arqueologia da região Amazônica sempre chamou a
atenção tanto de pesquisadores quanto de turistas – que se
admiram das peças indígenas encontradas expostas ao solo ou até
em casas de moradores locais –, os quais colecionam essas peças
arqueológicas e as utilizam como um mecanismo de economia.
O olhar sobre o exotismo e a beleza contidos nos artefatos
arqueológicos da Amazônia tem sido ação praticada desde o final do
século XIX e na primeira metade do século XX. Já na segunda
metade do século XX foi havendo alteração paulatina nessa postura,
com a consolidação da arqueologia como ciência e disciplina
(FIGUEIREDO, 2007).
Mas a atividade do turismo nesses locais, que são
patrimônios culturais, incorre em duas situações: i) pode vir a
colaborar com a preservação e a memória social do lugar e ii) pode
vir a gerar problemática relacionada ao turismo predatório. Sobre
esses tópicos, Meneses (2007) propõe que antes de se efetivar o
turismo em sítios arqueológicos faz-se imprescindível a reflexão
acerca de três questões fundamentais.
A primeira consiste em analisar cautelosamente políticas
públicas para o bem público e não só para o poder público; o
segundo ponto é a própria ideia de passado arqueológico que
caracteriza a demanda habitual do turista e a resposta que lhe é
retornada; e por fim se apresenta a condição majoritária do
patrimônio arqueológico, uma vez que o interesse dos turistas não
está no espaço, mas nos artefatos presentes nos ambientes.
Em relação ao sítio arqueológico da Valéria, a visitação de
turistas sobretudo internacionais teve início em 1970, mantendo-se
até a atualidade, de acordo com relatos de moradores mais antigos
da comunidade. Anualmente diversos transatlânticos europeus ou
norte americanos tem em seu destino turístico a região da
Valéria/AM.
O turismo foi efetivando-se como prática local e para isso se
criaram espaços de recepção a turistas, principalmente para os que
aportam em transatlânticos. Silva (2000, p.260) enfatiza que “As
estratégias de ocupação, produção e reprodução dos espaços
144
amazônicos configuram uma ruptura clara entre as realidades
pretéritas e presentes.” Os moradores locais perceberam na
visitação dos turistas uma possibilidade de reinventar sua fonte de
renda, mostrar sua cultura enfim tal prática passou a motivá-los a
organizarem seu espaço sociohistórico.
Nas observações realizadas em campo notou-se que os
turistas oriundos da Europa ou da América do Norte, demonstram
interesse em conhecer o cotidiano, o modo de vida local, visitar o
sítio arqueológico, comprar artesanatos, realizar passeio na serra,
no lago da Valéria, fotografar a fauna e a flora local. Atividades,
oferecidas pelos moradores que se organizam com antecipação para
recebê-los.
A comunidade de São Paulo, é o lugar onde as demais
comunidades do entorno se reúnem para a recepção dos turistas.
Eles recebem através da secretaria municipal de turismo e das
agências turísticas locais o cronograma de chegada dos
transatlânticos e partir dessa informação fazem reuniões para
dialogarem e deliberarem ações para a organização do evento. Além
disso, contam com informações de comandantes dos navios que ao
longo desse processo de visitação ao lugar construíram amizades e
mantem contato.
Os comunitários fazem a capina no quadro da comunidade,
preparam o trapiche para o desembarque dos turistas, organizam
barracas para se efetuarem vendas de artesanatos, medicamentos
naturais, culinárias regionais e réplicas de vasilhas com
características indígenas. Também se dá a exposição de animais
silvestres, peças de artefatos arqueológicos locais e réplicas de
algumas vasilhas encontradas no sítio.
Outras atividades que os moradores oportunizam aos
turistas são: passeios a canoa pelo igarapé e lago da Valéria; pesca
esportiva; passeios a pé por trilhas passeio do sítio arqueológico,
em meio a rios e florestas; há a oportunidade de se fazer escalada
na Serra da Valéria, onde, apesar da dificuldade, do topo se pode
contemplar o rio Amazonas, o lago e o igarapé da Valéria.

145
A complexidade do turismo em áreas arqueológicas
pressupõe a atuação significativa de comunitários, tendo em vista
minimizar impactos negativos. Uma das preocupações com as
atividades turísticas em sítios arqueológicos habitados é a
comercialização de artefatos pertencentes a uma memória social
que precisa ser preservada (FUNARI e PELEGRINI, 2006; MENESES,
2004; LIMA 2013).
Na região de Valéria/AM, moradores possuem práticas
diferenciadas em relação ao lugar onde vivem. Uns tem sentimento
de pertencimento ao lugar, outros utilizam o espaço somente como
meio de obtenção de renda, e há aqueles que entendem a
importância do evento turístico para melhorar sua fonte de renda e
que também devem preservar o lugar.
Como pode-se observar nos relatos a seguir:
A gente, no início fazia a venda também das caretinhas, os
turistas, gostavam e pagavam 5 dólar ou menos as vezes, mas
sempre apreciavam as caretinhas que agente tem em casa ou aqui
nos barracões. Nos nossos roçados também tem muito desses
cacos. As vezes tiramos peças inteiras, quer dizer quase inteira como
um vaso, pote, essas coisas, digo, vasilhas que os índios faziam para
ter em casa...( AUXILIADORA BARROSO, 63 ANOS ARTESÃ,
ENTREVISTA DE CAMPO, JANEIRO DE 2016).
Jovchelovitch (1995) salienta que os processos que
engendram RS estão embebidos na comunicação e nas práticas
sociais compartilhadas e mediadas pelo coletivo: diálogo, discurso,
rituais, padrões de trabalho e produção, arte, cultura. “O ato de
representar, não é um processo simples. Além da figura, ele carrega
sempre um sentido simbólico ( MOSCOVICI, 1978, p. 65).
Mas que sentido tem o sítio arqueológico para os
moradores locais? Como estes vem promovendo o turismo no local?
Há preocupação em cuidar do patrimônio cultural? Observe o que a
moradora Rosa Colares, 57 anos, respondeu ao ser entrevistada:
Houve um tempo, logo nos anos de1970 quando os
primeiros navios pararam aqui na Boca da Valéria, que a gente

146
mostrava a serra, o rio, lago, mas também a gente mostrava as
peças que a gente acha no terreiro, roçado...tem muito dessas
vasilhas de barro e a gente dava, ou trocava por algumas coisas.
Agora não. Agora a gente nem pega mais isso lá no terreiro. Depois
que vieram uns professores da Universidade e outros estudiosos,
falaram pra gente que deveria ser guardado essas nossas peças e
não deveriam ser retiradas do chão...disseram que os turistas
querem ver o que de fato existe. E que a gente tem que cuidar de
nosso sítio. (ENTREVISTA REALIZADA EM DE MARÇO DE 2016)).
Os relatos dos moradores da região da Valéria indicam como
a atividade turística em áreas patrimoniais carecem de um bom
planejamento e de ações voltadas a educação patrimonial em
contexto rural, pois muitas vezes por falta de orientação adequada,
muitos habitantes pensam em obter um lucro imediato, vindo
consequentemente acarretar no futuro prejuízos pra memória social
do lugar. demonstrando que a falta de informação sobre o lugar em
que residem tem corroborado para que ações de turismo predatório
venha ocorrer.
Meneses (2004) afirma que uma das preocupações com as
atividades turísticas em sítios arqueológicos habitados é a
comercialização de artefatos pertencentes a uma memória social
que precisa ser preservada. Por isso turismo em áreas arqueológicas
e patrimoniais deve seguir um planejamento com o envolvimento da
comunidade local, pois desse modo o turismo pode tornar-se um
aliado para a manutenção e preservação de vestígios e artefatos.
Esse planejamento tende a requerer a adaptação da
visitação a especificidades locais, a partir, por exemplo, da
construção de estruturas para o acesso a sítios, com placas
sinalizadoras de áreas frágeis, controle de visitação e informações
sobre a história do local.É preciso que os espaços de potenciais
turísticos não percam suas identidades, os moradores devem
organizar os lugares de visitação turística permitindo que os turistas
possam dialogar com o lugar, proporcionando ainda, o diálogo com a
alteridade e com a própria identidade sociocultural (MORAIS, 2012).

147
Para Murta e Albano (2002) as forças de mercado que
movem o turismo tendem a transformar alguns sítios históricos em
meros cenários e as comunidades em museus performáticos. Por
isso deve-se ter o cuidado com a prática do turismo, o que demanda
uma gestão do patrimônio arqueológico realizada pela comunidade.
No sítio arqueológico da Valéria nota-se uma forte presença
desses cenários apontados por Murta e Albano( 2002), sobretudo
no período da presença dos navios de cruzeiros. Em que os
moradores de todas as comunidades que fazem parte do complexo
da região de Valéria/AM se caracterizam de índios, modificam suas
atividades cotidianas, para apresentar uma outra maneira de ser da
comunidade, ou para atender também às expectativas dos turistas
que muitas vezes ainda demonstram ter aquela visão exótica da
Amazônia.
Apesar da complexidade que envolve a relação entre o
turismo e o patrimônio, acredita-se que seja possível, a partir do
planejamento de forma participativa e inclusão da comunidade local
no desenvolvimento do turismo, obter resultados positivos da
atividade turística em áreas patrimoniais.
Considerações Finais
As diversas transformações que a região Amazônica vem
vivenciando ao longo de seu processo histórico tem ocasionado
mudanças ou rupturas no modo de vida das comunidades
tradicionais, seja no âmbito político, econômico e cultural. Apesar
de compreender que a sociedade é dinâmica, nota-se que o
mercado, ou a força do capital chega em algumas localidades
amazônicas de maneira muito invasiva, como é o caso da região da
Valéria.
Na comunidade, o turismo tem sido vivenciado pela maioria
dos moradores apenas como uma atividade mercadológica, o que
consequentemente tem ocasionado alguns danos ao lugar, seja nas
interações entre comunitários, como em relação ao seu patrimônio
material e imaterial. Fazendo-se necessárias ações de educação
patrimonial permanente e a elaboração de políticas públicas
pautadas ao planejamento do turismo na localidade.
148
Nesse sentido, o presente estudo tem elucidado, ainda que
em fase embrionária, a importância da comunidade conhecer a sua
identidade sociocultural amazônica, para que possa vir a valorizar o
que lhe é intrínseca a sua experiência pessoal, ou seja, seus saberes
e fazeres que constituem seu patrimônio vivo, o que vai desde sua
produção artesanal até a sua culinária, associando o turismo como
uma prática social e não só mercadológica.
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150
21. SILVA, Marilene Corrêa da. Metamorfoses da Amazônia.
Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2000.

151
III
EPIFANIAS LABORAIS

152
Rooney Augusto Vasconcelos Barros42
Dra. Artemis de Araújo Soares43
Dra. Iraíldes Caldas Torres44

INTRODUÇÃO
Neste texto nos detivemo-nos numa abordagem sobre as
práticas sociais de trabalho das mulheres do Amazonas sob as lentes
da corporeidade destacando alguns valores socioculturais
construídos no decorrer da história. Nosso locus de pesquisa
concentrou-se em duas comunidades no meio rural, “Nossa Senhora
de Nazaré e Harmonia”, localizadas no marco divisório dos
Municípios de Parintins45 e Barreirinha46 no Baixo Amazonas.

42
Doutorando e Pesquisador em Sociedade e Cultura na Amazônia – PPGSCA –
UFAM. Graduado em História e especialista em Historiografia na Amazônia.
43
Doutora em Ciências do Desporto pela Universidade do Porto. É professora
associada 4 da Universidade Federal do Amazonas, atuando na administração como
Diretora da Faculdade de Educação Física e Fisioterapia da UFAM por 3 gestões.
Professora e Pesquisadora atuante junto ao PPGSCA- Programa de Pós-Graduação
Sociedade e Cultura na Amazônia – PPGSCA/UFAM.
44
Pós-doutora em Antropologia Social pela Université Lumiere Lyon 2, França.
Professora e pesquisadora na Universidade Federal do Amazonas – UFAM. E-mail:
iraildes.caldas@gmail.com
45
Parintins - é um município brasileiro localizado no interior do Estado do
Amazonas, próximo à divisa com o Estado do Pará, Região Norte do país.
46
Barreirinha - é um município brasileiro no interior do Estado do Amazonas,
pertencente à Mesorregião do Centro Amazonense e Microrregião de Parintins,
localiza-se a leste de Manaus, capital do Estado.
153
As atividades das mulheres destes espaços nos remetem aos
aspectos simbólicos, uma vez que os conhecimentos destas
populações revelam as suas vivências, crenças, ideologias e
organização social do trabalho, um complexo de experiências
sociabilizadas no decorrer do processo histórico destas populações.
Estas são vivências que que se dão e resinificam a vida das mulheres
amazônidas, no dizer de Maffesoli (2003, p.58), “conhecimento de si
e o reconhecimento do outro”.
Evidenciamos o trabalho das mulheres por percebermos que
no decorrer desta pesquisa, as mulheres trabalhadoras
desenvolvem uma série de atividades, mas sempre como invisíveis,
ou seja, estão diretamente envolvidas nos trabalhos cotidianos e
quase sempre à margem da maioria das análises do mundo da
Corporeidade e Trabalho.
A metodologia assumiu o aporte das ciências sociais
envolvendo revisão da literatura sobre gênero, corporeidade e
trabalho, somado à pesquisa de campo realizadas nas duas
comunidades, locus de nosso estudo.
Detivemo-nos na Sociologia do Corpo de Le Breton,
prosseguimos em leituras sobre a categoria gênero a partir de
Torres (2012), e sequencialmente trilhamos os pressupostos
metodológicos da História Oral, analisando os relatos dos sujeitos da
pesquisa, ouvindo relatos gravados em aparelho gravador de áudio,
mas ao mesmo tempo com as anotações em caderno de campo com
máquina fotográfica fizemos alguns registros etnográficos. O
cotidiano vivenciado pelas mulheres pesquisadas, tais como: as
atividades nas quais trabalham, o perfil físico e gestual, as
habilidades com o trabalho desenvolvido nos espaços rurais
amazônicos.
1. Corporeidade e Trabalho das mulheres Amazônidas
Nas diversas situações as quais as mulheres foram
observadas nesta pesquisa, nos detivemos com fatos vivenciados

154
que nos levam a constatar que as mulheres buscam
incessantemente se superar no trabalho, é algo que transcende o
corpo físico. Maffesoli (2003, p.16) enfatiza, “O feminino, mais
exatamente, o “eterno feminino”, esta em osmose natural com esse
fluxo vital. É o que lhe assegura, em última instância, a perduração
da espécie, face às múltiplas adversidades por que é confrontada”.
Iniciamos com este trecho de um dos relatos de Conceição
Pinto (72 anos), uma das mulheres ouvidas nesta pesquisa revela
que é moradora de área de várzea e terra firme, que deixa
transparecer a sua posição política enquanto cidadã, a qual
demonstra que seja na roça, na cozinha, no escritório ou na
academia, todo lugar é lugar de conquista de seu espaço na
sociedade, independente de mulher ou homem. Deixa evidente a
destreza, a sensibilidade e a perseverança do Corpo do gênero
feminino como um elemento a mais para conquistar seu espaço.
Conceição Pinto (72 anos), aprendeu com sua mãe e pai o
trabalho nas áreas de várzea e terra firmes, conhecedora das
práticas trabalhistas e no seu corpo as marcas deixadas pela sua
labuta diária, mas se orgulha de sua vivência no meio Amazônico.
Para Torres (2012 p.103),
O trabalho é um fator de efetivo inter-relacionamento com
os elementais da natureza terra, rios e floresta, que são centrais na
vida dos povos tradicionais. Esses elementais são realidades
concretas que alimentam a vida material e espiritual desses povos,
que têm, no mundo sensível, o ponto de partida da sua
espiritualidade.
Há uma relação que transcede os aspectos físicos no
trabalho dos sujeitos moradores e o meio Amazônico, nessa relação
de trabalho e conhecimento de seu meio, praticando e vivenciando
empiricamente, onde a corporeidade tem subjetividades de
entendimento.
Os estudos sobre a corporeidade sempre foram densas de
análises restritas aos aspectos da funcionalidade física, ou seja, da
diferença biológica entre os sexos feminino e masculino e em cada
lugar a diversidade cultural se encarregou de formular e materializar
155
suas ações com o meio transformando sua ação humana em
mecanismos históricos e culturais das sociedades.
No tempo contemporâneo o trabalho das mulheres
Amazônidas nos imensos espaços de rios e florestas nos levam nesta
análise à reflexão da sociologia e antropologia do corpo, numa
perspectiva de compreender os aspectos da violência simbólica de
um corpo sobre o outro.
Na historiografia se argumenta a formação e constituição de
uma sociedade paternalista47, que produziu e instituiu no decorrer
da história a marginalização do gênero feminino, esta forma de
pensar norteou normas e valores de condutas consideradas
socialmente aceitas por uma espécie de “camisa de força” que se
respaldava na clássica abordagem da diferença do corpo sexuado no
aspecto biológico e anatomofisiológicos em detrimento das
condições e processos culturais subjacentes a cada sociedade.
Podemos compreender que nossa concepção acerca da
percepção da cultura que habitualmente vivenciamos, no caso aqui
do gênero feminino é influenciada por um discurso dominante,
onde os aprendizados das atividades do trabalho se iniciam desde o
nascimento e o primeiro contato do corpo com a família e a
comunidade pertencente.
Historicamente no meio Amazônico o imaginário construído
pela diferença sexual do trabalho se configurou a partir de uma
visão hierárquica dos papeis desempenhados nas atividades, para
mulheres e para homens, sendo que essa rígida diferenciação vem
sofrendo modificações, e as mulheres são inseridas nessa nova
dinâmica das atividades trabalhistas.
Novas perspectivas vêm se desenvolvendo e assim novas
teorias surgem para dar outra roupagem às formas de pensar a
sociedade e seu tempo. O trabalho nestas novas concepções vem
deixando de ser somente uma atividade mecânica, pois como bem

47
Paternalismo – Em sentido amplo, se trata de todo conjunto de relações sociais
onde as relações de poder sobre o outro se apresentam na vida social, se origina na
relação de subordinação do pai sobre o filho que se externa na vida social.

156
atesta Wright (1969, p.233), “o trabalho pode ser visto como um
mero ganha pão, ou como parte mais significativa da vida interior;
pode ser encarado como uma expiação ou como expressão
exuberante de si mesmo; como um dever inelutável ou como o
desenvolvimento da natureza universal”.
A natureza do trabalho envolve muito mais que ganha pão,
está intrínseco às habilidades adquiridas dos sujeitos com o meio,
principalmente se tratando de atividades onde os trabalhadores
convivem com situações dos fenômenos onde está inserido as
práticas tradicionais e os conhecimentos são necessários. De acordo
com Arendt (1999, p.101), “aqui, a conexão subjacente entre o
homem que trabalha com a mão e o que trabalha com a cabeça é,
mais uma vez, o processo de labor – no último caso, realizado pela
cabeça, e no primeiro, por outra parte do corpo”.
A Amazônia comporta mistérios, segredos e fenômenos
dominados pelo conhecimento dos moradores dessas redondezas
que lhes são frutos de várias gerações, são anos de navegabilidade
por esses horizontes que lhes são peculiares. Resta-nos a
aproximação ética da academia como ponto chave de novos
diálogos e saberes construídos e compartilhados. Acenamos junto
com Torres (2012, p.104) para o fato de que “é assim que o trabalho
é travejado por relações mais amplas que norteiam a vida na
Amazônia. O trabalho aparece imbricado em uma vivência que
campeia de forma interativa com o meio ambiente”.
Quando relacionamos a Corporeidade ao Trabalho das
mulheres na Amazônia, vamos nos deparar com a discussão da
condição humana, numa perspectiva de desenvolvimento do
sujeito. Enfim, nesta acepção Torres (2012, p.106), afirma, “é
preciso que se crie um conceito de desenvolvimento que venha ao
encontro da vida numa inter-relaçãosociedade/indivíduo/natureza”.
Nessa rede imbricada de elementos que constituem as
atividades humanas, o corpo é vetor de sociabilidade, e como bem
enfatiza Lê Breton (2006, p.7), “*...+ a mediação da corporeidade *...+
desenvolve a cada instante e que lhe permite ver, ouvir, saborear,
sentir, tocar e, assim, colocar significações precisas no mundo que o
157
cerca”. A partir deste ponto de vista se percebe que o autor enfatiza
as atividades perceptivas são essenciais no cotidiano social.
As mulheres participam ativamente das atividades agrícola,
como relatou Jacira Pinto (68 anos): “nos aqui na comunidade
fazemos a roça, plantamos, capinamos, cercamos com a ajuda dos
homens, arrancamos a mandioca, carregamos e finalmente fazemos
a farinha e vamos vender na vila ou na cidade” (entrevista), 2016).
Como se lê nos relatos de Jacira (68 anos), a corporeidade e
trabalho do gênero feminino são fenômenos intrínsecos no
cotidiano do meio rural, a mesma relata ainda que, “aprendi com
minha mãe e meu pai a fazer esse trabalho, nos acostumamos a
fazer todo serviço pesado e não é todo homem que topa fazer essas
atividades” (entrevista, 2016).
Esta nos revela um comportamento de técnicas corporais
quando afirma que: “carregar um peneiro nas costas e arrancar a
mandioca, é preciso ser acostumada a fazer isso, não é só força é
também jeito e costume”, nestas poucas palavras acaba nos
revelando um dos pontos centrais desta pesquisa, ao relacionar as
técnicas corporais no aprendizado. Para Mauss (1974, p.407) “O
corpo é o primeiro instrumento e o mais natural. Ou, mais
exatamente, sem falar de instrumento: o primeiro e o mais natural
objeto técnico, e ao mesmo tempo meio técnico, do homem, é seu
corpo”.
As trabalhadoras aprenderam suas lidas diárias a lidar com o
objeto de sua produção, mas é sempre fruto de conhecimentos
adquiridos com seus pares, é algo aprendido culturalmente, assim,
se tornando uma técnica que possibilita a eficácia do trabalho
desenvolvido.
O aprendizado e o conhecimento são aliados do processo
produtivo, como relata a Conceição Pinto (72 anos): “a força brutal
nem sempre é tudo, é preciso conhecer a boa terra para plantar, é
necessário saber o tempo certo, o horário adequado, e a maneira
correta de enfiar a maniva na terra, enfim é um trabalho de
paciência” (entrevista, 2016). O corpo nesse sentido evidencia
valores adquiridos como fenômeno da prática social, que produz
158
identificação de determinados grupos que compartilham das
mesmas experiências e assim a academia científica vai produzindo
novos pontos de vistas da realidade social.
As mulheres inseridas neste contexto não deixam de fazer
os serviços domésticos, no entanto suas distintas trajetórias lhes
proporcionaram a duras penas certa independência, como relata
Rinara Nívea (43 anos): “a vida me ensinou a seguir sozinha
conquistando meu espaço, hoje cuido de casa e trabalho e marido
nenhum me põe rédeas, se ele tem direito nós mulheres também
temos” (entrevista, 2016). Nos relatos desta entrevistada demonstra
que muitas mulheres são gestoras de seu modo de vida, mas há
grandes dificuldades de construírem seus empreendimentos de vida
pessoal.
A história do tempo presente nos revela facetas de
mulheres empreendedoras que souberam lidar com os
preconceitos, venceram para sair da marginalidade e construíram
uma trajetória edificada com dignidade, exemplificando a partir de
duras experiências vivenciadas, superando-se e dominando
conhecimentos. Enfim, foram anos de lutas políticas das mulheres
no mundo do trabalho.
No que tange à marginalização do corpo feminino nas
atividades laborais pode-se dizer que se trata de uma condição
construída historicamente. Para Lê Breton (2006, p.15-16),
A primeira via de análise, através da situação social dos
atores, deduz que não podem escapar à condição física. Nessa
concepção o homem é visto como uma emanação do meio social e
cultural. Numerosas são as pesquisas sociais que apontam a miséria
física e moral das calasses trabalhadoras, a insalubridade e a
exiguidade das moradias, a vulnerabilidade às doenças, o recurso ao
álcool, a prostituição frequentemente inevitável das mulheres, o
aspecto miserável dos trabalhadores duramente explorados, a
terrível condição das crianças obrigadas a trabalhar desde a mais
tenra idade.
Esses dentre outros aspectos caracterizam anos de
angústias das trabalhadoras e trabalhadores, que nutriram e
159
inspiraram seus diversos movimentos sociais, foram elementos
resultantes a ampliar as reformas visando o desenvolvimento das
relações dos trabalhadores. Conforme Torres (2012, p.197),
O trabalho é o elemento fundante do desenvolvimento
humano. É por meio dele que homens e mulheres articulam e
colocam em movimento seus membros superiores, adquirindo novas
faculdades para o raciocínio. É também por meio do trabalho que
homens e mulheres constroem asrelações sociais e estabelecem a
sociedade.
A nossa sociedade busca mostrar as potencialidades do
corpo humano nas atividades trabalhistas ou no lazer, descobrindo
inúmeras formas e limites do corpo humano. As trabalhadoras estão
sempre executando atividades numa relação direta com os
elementos da biodiversidade Amazônica, os rios, terras de várzeas,
bem como as terra firmes, são fenômenos observados no cotidiano
e assim planejam estratégias, avaliando e pensando como trabalhar
naquele meio. Assim, no complexo destes espaços, se formulam
abstrações subjetivas sobre a ação vivenciada no cotidiano.
Tertulina Reis (86 anos), outra mulher ouvida nesta pesquisa
chama a atenção para o fato de que “é preciso que a gente conheça
bem o lugar que vivemos e onde trabalhamos inclusive os períodos
de cheias e quando dará a vazante, o tempo certo de plantar, colher
e o cuidado com as cobras, insetos” (entrevista, 2016).
Nestes relatos acima, se evidencia a necessidade do
conhecimento frente ao cuidado de seus corpos, uma vez que os
insetos peçonhentos estão nos lugares que somente os moradores
conhecem. Enfim, é o “domínio” dos sujeitos sobre a natureza.
Merleau-Ponty (2006, p.142) assinala dizendo que,
Ser uma consciência, ou, antes, ser uma experiência, é
comunicar interiormente com o mundo, com o corpo e com os
outros, ser com eles em lugar de estar ao lado deles. [...] redescobrir-
se enquanto experiência, quer dizer, enquanto presença sem
distância ao passado, ao mundo, ao corpo e ao outro, no momento
mesmo em que ele queria perceber-se como objeto entre os objetos.

160
O ser consciente de suas ações nas atividades que
desenvolvem e deixa transparecer a partir de observações
registradas, um relativo conforto de suas ações sobre o ambiente
vivido das suas experiências corporais, Merleau-Ponty (2006, p.267),
assinala: “*...+ em última análise o corpo precisa tornar-se o
pensamento ou a intenção que ele nos significa. É ele que mostra,
ele que fala *...+”. As mulheres compartilham trabalhos em conjunto,
são os denominados “puxiruns”, onde reúnem as famílias e em
determinadas atividades, se torna muito mais que um trabalho em
conjunto, discutem os problemas do cotidiano, contam histórias de
famílias e amigos, as piadas de situações hilárias, enfim é o aspecto
da sociabilidade presente.
Na organização dos puxiruns, as mulheres vêm se
transformando em gestoras de atividades trabalhistas nesses
espaços, a entrevistada Tertulina Reis (86 anos), afirma: “aqui sou
eu que organizo as coisas, os alimentos, o material de trabalho,
como terçados, enxadas, mas uma vez ou outra fazemos puxiruns,
mesmo assim, acho que eu organizo melhor o trabalho” (entrevista,
2016).
Nesses acordos de trocas de trabalho e ajuda mútua laços
de solidariedade e sociabilidade de seus valores, são formas de
gestão trabalhistas existentes, segundo a entrevistada, “são trocas
de favores que aprendemos com nossos pais e orgulhosamente
estamos mantendo”.
Podemos dizer que no progressivo desempenho das tarefas
diárias, o fato das mulheres participarem ativamente significa
confirmar a visibilidade da construção sociocultural e simbólica do
corpo feminino. Nas palavras de Lê Breton (2006, p.25), “As
representações do corpo são representações da pessoa [...] os
limites, a relação com a natureza ou com os outros [...] O corpo é
socialmente construído, tanto nas suas ações sobre a cena coletiva
quanto nas teorias que explicam seu funcionamento *...+”.
É fato que em cada sociedade o corpo na sua relação com o
trabalho feminino, se configura com uma determinada conotação,
social, cultural e religiosa, enfim, uma complexa relação subjetiva
161
nas formas de pensar os gêneros. Para Le Breton (2006, p.31), “*...]
o corpo funciona como se fosse uma fronteira viva para delimitar,
em relação aos outros, a soberania da pessoa”. Nesse aspecto o
corpo feminino adquire habilidades quando consegue quebrar
fronteiras do preconceito e funcionar como uma engrenagem do
trabalho no processo produtivo.
Considerações finais
O corpo carrega marcas além dos aspectos concretamente
físicos, mas frutos de uma história sociocultural de uma diversidade
de significados. As teorias contemporâneas abarcaram esses novos
significados e assim, deram fundamentos epistemológicos a novos
movimentos, como por exemplo, as feministas que vem lutando
para desmantelar as armadilhas ideológicas.
A temática “Trabalho das mulheres Amazônidas Brasil
corpos invisíveis”, é uma temática que nos leva a compreender
aspectos objetivos e subjetivos das mulheres do meio Amazônico. É
um complexo de vida sociocultural singular acerca de espaços
vivenciados por pessoas de vida simples, mas com uma riqueza de
saberes corporais construídos ao longo de suas trajetórias.
Sem dúvida se confere uma carga de preconceito atribuída
às mulheres que buscam conquistar seus espaços, os valores
construídos ao longo da história articulam estratégias para cravar
seus estereótipos, no entanto está longe de obter sucesso, pois
vivemos num tempo que a tirania do corpo sobre o corpo do outro
chega ao fim. Assim, centrados na análise de buscar compreender a
corporeidade e trabalho do gênero feminino, consideramos que há
um empoderamento feminino numa perspectiva de transformação
e altruísmo do modo de vida e trabalho do cotidiano Amazônico.
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pensar – São Paulo: Contexto, 2007.
7. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 3ª
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8. MAFFESOLI, M. O tempo das tribos: o declínio do individualismo
nas sociedades de massa. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 2010.
9. ______________. O instante eterno: o retorno do trágico nas
sociedades pós-modernas. São Paulo: Zouk, 2003.
10. MILLS, Wright. O Trabalho. In A Nova classe média (Wright
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11. THOMPSON, E.P. Patrícios e Plebeus. In: Costumes em comum:
estudos sobre a cultura popular e tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
12. TORRES, lraildes Caldas (Org.). o ethos das mulheres da floresta.
/ Organização: lraildes Caldas Torres. - Manaus: Editora Valer /
Fapeam, 2012.

163
M.sC. Deilson do Carmo Trindade48
Dra. Iraildes Caldas Torres 49

1. INTRODUÇÃO
Essa reflexão nasceu da convivência que temos com alguns
trabalhadores de galpão de boi-bumbá, visto que, morando em
Parintins, cidade que realiza no mês de junho seu Festival Folclórico,
é comum nos meses que antecedem a festa termos vizinhos e
amigos empregados nesta atividade.
É nesse contexto que começamos a perceber que muitos
trabalhadores esperam ansiosos esta época do ano, e mesmo
aqueles que têm trabalho ou emprego em outros locais da cidade,
deixam seus afazeres para se empregarem nos galpões dos bois
Garantido e Caprichoso.
Percebemos também que ainda que ocasionalmente
ocorram atrasos nos pagamentos de salários, com artistas
paralisando suas atividades, mostrando consciência quando são

48
Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas,
Doutorando e mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pele Universidade
Federal do Amazonas, bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do
Amazonas.
49
Professora Associada do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-
Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do
Amazonas, Doutora em Ciências Sociais/Antropologia pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
164
explorados e exigindo seus direitos, nunca deixam de apresentar o
boi na arena. Fazendo-nos refletir a questão da luta de classes
proposta por Marx & Engels (1998), pois a diversidade
organizacional do trabalho na Amazônia, segundo Torres (2004),
nem sempre é compreendida pela lógica do capital.
E assim fomos percebendo que existe uma significação do
trabalho por parte desses trabalhadores dos galpões de bois-
bumbás estudado a partir da História Vista de Baixo propugnada por
Thompson (2001), sem, no entanto, nos perdermos na dicotomia de
alto e baixo, mas dando vez e voz à cultura tida como baixa em
relação àquela qualificada como erudita, destacando as experiências
de pessoas comuns para tentarmos compreender suas trajetórias de
vida e de trabalho e também observar o fenômeno a partir da mídia
também se tornou indispensável, daí a consulta a jornais e revistas,
que foram verificadas e investigadas.
2. O ESTUDO DA CULTURA POPULAR.
Estudar as manifestações populares como as festas
regionais eram até pouco tempo, trabalho exclusivo dos
antropólogos e dos cientistas sociais. Trabalhos como de Braga
(2002), Nogueira (2008) e Rodrigues (2006), analisam o Festival de
Parintins, a partir de várias visões sociais. Segundo Cardoso e
Vainfas (1997) essas manifestações passaram a serem consideradas,
como objetos de estudo na historiografia, a partir do
reconhecimento da História Social como legítima, passando pela
estruturação do campo das mentalidades e chegando até a
redefinição de novas premissas para estudar a cultura através da
Nova História Cultural. Esclarece ainda, que a falta de metodologia e
conceituação do termo mentalidades, vai levar esse campo de
estudo a se dividido em vários outros campos de análise histórica
como a Micro-história, a História do Cotidiano e da Vida Privada e a
História Cultural que preservou parte dos pressupostos das
mentalidades sob uma nova abordagem teórica.
Sob esta perspectiva, a História, especialmente a partir da
segunda metade do século XX com os Trabalhos de Lucien Febrve e
Marc Bloc, direcionou seus eixos de interesses para aspectos
165
relacionados ao cotidiano, aos hábitos, costumes, comportamentos,
saberes, rituais, contos e etc., ou seja, componentes de uma cultura
até então vista como indigna de ser enquadrada junto às atividades
científicas.
Conforme reflexão de Fenelon (1993), foi a partir das
concepções da História Social que os chamados “temas malditos, ou
seja, os que tratam dos excluídos sociais sejam eles, pobres,
vagabundos, prostitutas, negros, mulheres, índios, etc.,
encontraram guarida nessa historiografia”. Para essa autora, as
investigações sobre esses temas constituem hoje objetos
legitimados pela História Social que, desenvolvidos com rigor
metodológico, trazem-nos para o campo de discussão instaurado
sobre a cultura. Ao lado dessas novas possibilidades abertas para o
eixo da história, os debates acerca da noção de cultura se acirram,
abrindo com isso, novas concepções sobre o termo cultural, apoiada
no conceito de Circularidade Cultural desenvolvido por Bakhtin
(1997) e defendida Ginzburg (2002).
Repensar a noção de trabalho contida no imaginário
moderno trazendo à luz da discussão o questionamento sobre o
emprego assalariado leva-nos a ampliar os debates sobre as práticas
sociais de trabalho que extravasam da questão do emprego
ganhando novo indicador teórico, permitindo estudos sociológicos e
antropológicos pelas múltiplas dimensões da festa do boi de
Parintins, buscando compreender o sentido de se trabalhar nos
galpões, verificando dessa forma a linguagem contida neste fazer e
seus vários significados. Assim, o estudo sobre o trabalhador de
galpão e sua significação, é indispensável para compreendermos os
sistemas de representações, visão de homem e de mundo, própria
dos grupos que representam.
3. REFLETINDO A FESTA DO BOI.
O interesse das ciências sociais pela Amazônia vem
tornando-se mais frequente nos últimos quarenta anos. Para Torres
(2005, p.17), “esses estudos vem mostrando a importância de
compreendermos o homem amazônico em suas relações com a
sociedade e o ambiente natural, considerando-se que esses
166
elementos regem a vida nesta constelação”. Neste contexto, desde
a década de 1990, os bois-bumbás de Parintins tem se inserido
nesta temática com variados estudos. Dejard Vieira (2003), ao
estudar a tradição e mudança cultural da festa de Parintins, aponta
alguns trabalhos já desenvolvidos: no campo da etnomusicologia
temos o trabalho de Braga (1993); da ecologia através das toadas
que cantam a preservação e o respeito a natureza, servindo de
apoio para educação ambiental aparece Santos (2001); no estudo
sobre a transformação do folclore tradicional em mercadoria na
indústria cultural traz Nogueira, (1999) e Azevedo (2000); ou ainda
Fernandes (2001), que pesquisa as consequências deixadas pela
festa na vida social e econômica do município.
Nilton Santos (2009), em seu trabalho sobre o carnaval
carioca, procura refletir sobre as variadas formas de atuação da
festa de carnaval do Rio de Janeiro mostrando a presença de
profissionais especializados já no início do século XX. Principalmente
na confecção de carros alegóricos onde as formas de trabalho não
se diferenciam muito dos modos de se fazer o carnaval nos dias de
hoje. Afirma que “o dinheiro se transforma num mediador por
excelência no espaço metropolitano, faz surgir novas formas ou
configurações profissionais nas quais os indivíduos poderão
imprimir sua marca, seu caráter, seu conteúdo” (SANTOS, 2009
p.68), pois para ele, mesmo na festa do carnaval, as pessoas
envolvidas buscarão tirar proveito de suas habilidades específicas
para obter seu sustento.
O festival Folclórico de Parintins segundo Braga (2002), foi
idealizado por Raimundo Muniz, Xisto Pereira, Lucinor Barros e
Padre Augusto Gianola em 1965, sendo realizado oficialmente no
dia 12 de junho de 1966. Vale lembrar que antes, os bois-bumbás
saiam às ruas de Parintins no mês de junho para dançar em frente
às casas. O autor ressalta que a partir desta data a brincadeira de
boi-bumbá adquire caráter competitivo, iniciando a
espetacularização da manifestação de rua, desencadeando um
processo de disputa através da criação artística para decidirem
quem é o vencedor a cada ano.

167
Com o Festival Folclórico de Parintins surgiu uma categoria
de profissionais especializados na produção da festa – o artista de
boi – que para Dejard Vieira (2003 p. 54), “a maioria deles, sejam
artistas plásticos, compositores, cenógrafos ou coreógrafos, é
autodidata em sua formação artística. Foram buscar na própria
imaginação a força criativa para trabalhar com o vastíssimo
imaginário amazônico”. Hoje muitos desses artistas, entre eles, o
trabalhador de galpão de alegorias, encontram-se no anonimato de
seus afazeres, ocupados em produzir um espetáculo em que não
aparecem como protagonistas, onde o nome “artista de ponta”
pronunciado na arena no dia do espetáculo como o criador de cada
obra, lhe furta o reconhecimento e lhes colocam no ostracismo da
festa.
4. CONCEPÇÕES DO TRABALHO ARTÍSTICO.
Em seus estudos sobre o ato de trabalhar e suas múltiplas
faces, Leila Blass (2006), nos chama atenção para a reinvenção do
trabalho que no conceito moderno está relacionado como
mencionamos anteriormente ao emprego assalariado. Entretanto,
diz a autora, “buscar o significado do trabalho no aparente não-
trabalho, associado às atividades de entretenimento e/ou às
práticas de lazer; tornam visíveis as relações sociais que perpassam
essas práticas” (idem, p.19). Deste modo, sendo o trabalho nos
galpões de bois-bumbás, um trabalho artístico destinado ao
entretenimento, pode ser estudado em sua complexidade a partir
de sua compreensão conceitual, onde o ato de criar as alegorias
pode extrapolar a dimensão do horário diário fixado na carteira
trabalhista, que para muitos trabalhadores não configura como hora
extra, evidenciando assim uma outra dimensão.
Se o Festival fosse amanhã, eu teria que entrar 07hs para
sair 04hs do outro dia, ou a hora que eu terminasse uma escultura, o
negócio é terminar. Não existe pagamento de hora-extra desse
horário, a pressão de terminar é muito grande, então às vezes a
gente nem se preocupa mais com a questão da hora-extra, a gente
só quer saber de finalizar o trabalho porque é o teu nome que está
em jogo, é o teu nome juntamente com o nome da Associação
168
Folclórica. Às vezes a Associação não te dá o material no momento
certo, então o momento certo vai passando, e quando chega para o
final temos pouco tempo para executar, e pela falta de material
somos sacrificados. É assim que funciona, depois não tem
compensação por parte do Boi, não tem, a compensação é na hora
apresentação, é como a gente, a compensação é ver meu trabalho
pronto, executando bonito com todos os movimentos articulados.
(MIGUEL CARNEIRO DOS SANTOS, entrevista, 2015).
Desta forma, o ato de trabalhar artisticamente está no
descompasso das obrigações reguladas pela produção fabril, mais
inserido no contexto das relações sociais. Nascimento (2006, p.73)
afirma que “não se espera que um artista plástico produza, por
exemplo, sem interrupções durante uma jornada de oito horas por
dia, seguindo sempre os mesmos horários e mantenha certo ritmo
de trabalho”. Entretanto, mesmo havendo esta diferenciação e
singularidade, existe o contrato com os bois-bumbás que obrigam os
trabalhadores dos galpões de alegorias a apresentarem resultado
em dia e hora marcada, ou seja, nas três noites de festival. Assim,
sua jornada de trabalho não está relacionada com as horas
trabalhadas, mas pelo prazo de conclusão e apresentação das
alegorias na arena do Bumbódromo.
Estudar estes trabalhadores nos remete também a
sociologia do trabalho que desde o seu princípio tem se dedicado a
esta temática em diversas perspectivas e concepções, mostrando
sua importância para a compreensão da sociedade e suas
mudanças, dessa maneira esta sociologia tem “buscado dar conta
das transformações quantitativas e qualitativas por que passa o
mundo do trabalho” (SANTANA & RAMALHO, 2010 p.12), e muitos
debates sociológicos giram em torno do lugar do trabalhador e sua
qualificação, que para Bava Jr. (2000), também passa pela
valorização financeira, cultural e até política. Talvez aí resida o
antagonismo entre o trabalhador de galpão, anônimo nos seus
afazeres, oculto no espetáculo e com salários inferiores em relação
aos “artistas de ponta”, sempre lembrados na arena durante as
apresentações, solicitados em vários carnavais e outras festas

169
populares do Brasil e até mesmo concorrendo a eleições em suas
associações folclóricas50.
Avaliar o Festival Folclórico de Parintins tomando como
referência somente as apresentações oficiais dos bois-bumbás na
arena do Bumbódromo corrobora para gerar uma visão incompleta
ou distorcida da festa. Pois ao desconhecer os preparativos que
ocorrem nos galpões dos bois, terminaremos por ignorar seus
construtores, e todo o processo de trabalho que envolve o
espetáculo. Para Blass (2004), o nosso olhar devem vir de “dentro”
para “fora” para que possamos compreender como os
trabalhadores dos galpões de alegorias se observam e são
observados, pois é nesse confronto de olhares que se desenvolve a
festa.
Nesta mesma direção apontamos o trabalho de Santos
(2009), que em relação ao carnaval do Rio de Janeiro, afirma que os
desfiles das escolas de samba são produtos da coletividade, porém,
amarrados por diferentes atividades e múltiplas visões de mundo e
de valores. Sob esta perspectiva, entendo que o trabalho nos
galpões também é sustentado por um elemento simbólico, que a
primeira vista é o próprio boi-bumbá.
5. COTIDIANO E MEMÓRIA.
Para Heller (2004), o cotidiano tem sua historicidade, e não
deve ser confundido com ações repetitivas, pois mesmo suas
permanências sofrem alterações provocadas por seus atores sociais.
Daí a necessidade de se conhecer o processo de interação entre o
homem e o meio social a partir de sua vida diária, no qual,
“historicamente os significados das representações sociais revelam-
se a partir de experiências que podem ser percebidas no cotidiano
de diversas formas e nos mais variados modos” (TRINDADE 2013,
p.85). Por isso, é de fundamental importância o conhecimento dos
trabalhadores dos galpões de alegorias do boi-bumbá nos seus
locais de trabalho, pois deste modo, a noção de lugar tem uma

50
No dia 22 de setembro de 2013, ocorreu a eleição para a presidência do Boi
Caprichoso referente ao triênio 2014-2016. Nela saiu vencedora a Chapa 1
composta por Joilton Azedo, empresário local e Rossy Amoêdo, artista de ponta.
170
relação intrínseca com o cotidiano na medida em que o lugar como
espaço geográfico sofre alterações a partir do processo de
socialização dos indivíduos que os transformam, dando a ele um
sentido simbólico.
Segundo Del Priori (1997), o cotidiano, por pertencer à
esfera da vida privada não tem tido muita atenção da historiografia.
Contudo, esta autora nos alerta que o espaço do cotidiano também
tem sua historicidade, cujo conteúdo é rico de representações e
significados construídos pela sociedade que o constitui. Ainda
segundo a mesma, é no cotidiano que se reproduz, se regeneram
formas, sem, contudo, modificá-las. Assim, o cotidiano dos galpões
é capaz de nos revelar novos aspectos da Festa do Boi-Bumbá de
Parintins indicando modos, valores e rituais de iniciação como
observamos na fala de Wilton Cezar de Oliveira.
Foi nervoso o meu primeiro dia no galpão, eu sabia que
muita gente ia estar de olho em mim, que eu não tinha que vacilar,
porque no galpão os novatos sempre pagam mico entendeu. Os
veteranos sempre procuram uma pegadinha para todo mundo rir do
novato.Eles fizeram um menino carregar uma pedra imensa.
Pediram para ele carregar a pedra que estava na sua equipe e levar
para outra equipe, chegando lá, na outra equipe, mandaram levar
para outra mais adiante. E todo mundo foi rindo dele até chegar um
veterano para dizer a ele: ei mano, os caras estão tirando sarro de ti,
deixa essa pedra aí, tu estás doido? Para que tu ias querer uma
pedra dessa? Quem que ia querer uma pedra dessa aqui dentro do
galpão? Aqui só tem ferro e cola. (ENTREVISTA, 2016).
Discutir questões referentes à memória na medida em que
buscamos na subjetividade dos trabalhadores de galpão de alegorias
as fontes históricas para nossas reflexões, é ter a consciência de que
a seletividade e o esquecimento estão presentes no processo de
rememoração. Para Bergson (1990), a memória pura é inatingível,
pois se mantém no inconsciente, contudo as lembranças podem ser
alcançadas por evocações externas. Entretanto para Halbwachs
(2006), diferente do outro, afirma que lembrar não é reviver, mas
reconstruir o pensamento a partir do tempo presente.
171
Sabemos que a memória dos trabalhadores de galpões é
resinificada e transformada a partir de suas próprias percepções e
no seu tempo. Entretanto, lembrar está intrinsecamente ligado com
o meio social, a memória individual é nutrida pela memória de
grupo, ou seja, as lembranças mesmo que sejam a partir de um
único individuo, tornam uma ação coletiva. Construir a história a
partir da memória depende da integração do indivíduo com seu
grupo social que também compartilha as mesmas experiências,
dando sustentação às lembranças.
6. A FESTA, O TRABALHADOR E O TRABALHO
A energia despendida no trabalho nos galpões e a emoção
em ver a evolução dos bois na arena do Bumbódromo, local onde
acontecem as apresentações dos bois-bumbás, se entrelaçam
conferindo um significado subjetivo positivo na vida do trabalhador
que se esforçou para construir o espetáculo, pois quem o assiste,
seja ao vivo ou pela televisão, talvez não perceba que o Festival
Folclórico de Parintins “dá trabalho”.
A cada ano a festa ganha nova dimensão e já se tornou a
maior manifestação popular do Estado do Amazonas, tornando-se
Patrimônio Cultural do Amazonas pelo decreto nº 33.684/2013.
Entretanto, pouco se sabe como ela é produzida, como ocorre o
processo de trabalho nos galpões de alegorias. Estudar o trabalho
nesses galpões enseja uma nova perspectiva de análise que vai além
do dispêndio físico de energia, envolvendo o lazer e a diversão, o
que dá ao trabalhador artista um ar de satisfação, realização pessoal
e alegria, conferindo-lhe bem-estar.
Isto nos permite visualizar a dimensão simbólica do trabalho
nos galpões dos bois-bumbás, procurando dissipar as dicotomias
arte/criatividade, trabalho leve/pesado, que desaparecem na
construção do Festival de Parintins, pois os trabalhadores de galpão
se veem como artistas e constructos sociais, o que não obsta que
eles exijam carteira assinada e direito social. Ou seja, é a arte de
criar se manifestando pelo reconhecimento do sujeito trabalhador.
Outro aspecto é o cotidiano desses trabalhadores, muitas
vezes anônimos, escondidos nos galpões preparando a festa,
172
confeccionando alegorias e fantasias, correndo riscos devido à
insalubridade dos ambientes que possuem poucos equipamentos de
segurança. Some-se a isto o fato de que esses trabalhadores,
durante a apresentação dos bois-bumbás na arena, desenvolvem o
trabalho de montagem dos módulos que vão dando forma às
alegorias, manipulando também os movimentos destas alegorias
que eles precisam circular nos estreitos corredores escuros e
perigosos das belas figuras de arte.
Dentro da alegoria durante a apresentação o negócio não é
fácil, lá não tem o mesmo glamour de quem está vendo a arte sendo
executada de fora, na Arena do Bumbódromo. Para chegar nesse
ponto sofremos um bocado, eu olho para atrás e vejo o caminho que
trilhei: dor, sono, fome, sofrimento, amor, é uma química de tudo
isso. É coisa de maluco e acho que sou, toda pessoa tem um pouco
de maluco e amor dentro de si. Sou de família tradicional no
Caprichoso e faço isso porque gosto do Caprichoso, é o amor pelo
Boi, mas também faço pela parte financeira que é de onde eu ganho,
é o que eu sei fazer, é uma química de tudo, é uma mistura de tudo.
Procuro que tudo dê certo pela competição com o boi contrário,
brinco durante a apresentação porque eu gosto da festa, gosto do
meu Boi, aquilo que está sendo executado na alegoria é o tempo que
eu tenho para brincar, e ao mesmo tempo trabalho, porque isso é o
meu ganha-pão. (EDUARDO LÚCIO LIMA REPOLHO, entrevista 2016).
O fato de que o trabalho nos galpões não representa um
peso para os trabalhadores, ou seja, nem o esforço físico e nem as
péssimas condições de trabalho têm grande significado para eles,
apesar, de enfrentarem risco e insalubridade, especialmente nos
bastidores da festa que é apresentada no Bumbódromo, momento
de maior risco de acidente. O trabalho realizado na construção da
festa dos bois-bumbás é um elemento que se reveste de grande
significado simbólico para estes trabalhadores que se alegram,
divertem-se e se emocionam em sua subjetividade, fatores que
suplantam a precariedade e a penosidade das condições de
trabalho.

173
Mesmo sendo o trabalho um fator de realização e fonte de
alegria e prazer, os trabalhadores dos galpões não descuram dos
seus direitos trabalhistas. O trabalho temporário assume a natureza
contratual justamente porque os trabalhadores não abrem mão da
sua cidadania. Então, a grande questão que se põe, é sabermos em
que sentido os trabalhadores se expressam efetivamente como
constructos, criando-se e recriando-se em sua subjetividade no
processo de trabalho, ao mesmo tempo em que constroem a sua
cidadania no plano político-social.
7. UM OLHAR A PARTIR DA MÍDIA
A festa do Boi de Parintins ultrapassou os limites da cidade,
constituindo hoje em referência de cultura no Estado, as “Toadas de
Boi51” antes somente cantadas pelo “levantador 52 e/ou Amo53”, no
momento da apresentação, hoje são gravadas em estúdios e
produzidas em escala comercial. Notícias escrita sobre a festa
podem ser facilmente encontradas em jornais de circulação
regional, nacional e até internacional, o mesmo podemos dizer
sobre imagens e vídeos, que podem ser pensadas a partir de uma
noção de semiótica baseado em Santaella (2008), por consideramos
ser a autora brasileira mais representativa dos estudos nesta área,
refletindo principalmente a partir dos estudos de Charles S. Peirce.
O Jornal A Crítica de 16 de março de 2012, traz a
reportagem “Boi Caprichoso faz celebração religiosa na abertura dos
trabalhos para o festival folclórico de Parintins”, e no dia 08 de abril
de 2013, “Missa marca início dos trabalhos do Garantido em
Parintins”, em ambas as reportagens são destacadas o início dos
trabalhos nos galpões com celebração religiosa presidida por padres
das paróquias de Parintins e participada por trabalhadores dos
galpões, “artistas de ponta” e diretores de cada agremiação
folclórica.
Na análise da imagem n°1 logo abaixo, podemos perceber o
padre em primeiro plano, o boi e seu brasão emoldurado em um

51
Musica específica cantada durante os ensaios e apresentações dos bois-bumbás.
52
Cantor oficial das toadas de boi
53
Espécie de repentista, também conhecido como tirador de verso.
174
quadro em segundo. Ao fundo percebe-se uma trabalhadora do
galpão que participa da celebração. Na imagem n°2 vemos a
presidente (na época, 2013) do boi Caprichoso em primeiro plano
carregando um crucifixo, ao fundo temos novamente o boi e seu
brasão, as imagens se referem à mesma celebração e nos tramitem
a ideia de que igreja, diretoria, trabalhadores e até mesmo o “boi de
pano”, estão empenhados em desenvolver um bom trabalho que
leve à vitória no Festival que se inicia com a benção religiosa. Neste
discurso vemos minimizando o antagonismo de classes em prol de
um objetivo maior.

Foto 1: Divulgação/Caprichoso Foto 2: Divulgação/Caprichoso

A pretensa unidade mostrada também nos remete a ideia


de harmonia, entretanto, durante o período de atividades nos
galpões dos bois, não é incomum a paralização dos trabalhadores
em decorrência do atraso de seus vencimentos como noticiou como
noticiou o Jornal A Crítica de 07 de junho de 2002, confirmando a
paralização de 50 trabalhadores do galpão central do Boi Garantido,
mostrando consciência quando são explorados e exigindo seus
direitos trabalhistas.
Mesmo ocorrendo a paralização como pressão para que se
cumpram os acordos firmados, não existem registros, mudança de
datas ou cancelamento do Festival de Parintins por conta destes
episódios. Entretanto, essas manifestações se multiplicam logo após
o encerramento dos festejos. Em 01 de julho de 2014, o jornal A
Crítica noticiava a matéria: “Trabalhadores do boi Garantido
queimam alegorias em Parintins contra salários atrasados”,
175
indicando uma quebra de contrato por parte boi levando os
trabalhadores a se manifestar de forma mais agressiva e sendo
reprimidos pela ação policial.

Foto 04: Euzivaldo Queiroz


Foto 03: Euzivaldo Queiroz

As figuras 03 e 04 que ilustraram vários jornais que


noticiaram o fato, mostra em primeiro plano policiais repreendendo
de forma violenta os manifestantes, tendo como fundo as alegorias
que se apresentaram as noites anteriores no Bumbódromo. É
possível identificar na figura 03 uma bicicleta caída ao lado do
manifestante, e na figura 04 um capacete de operário caído ao chão.
O que nos leva a crer que não se tratam dos artistas de ponta, que
recebem altos salários e no qual não se tem conhecimento de atraso
de pagamento.
As quebras de contratos, acordos e calotes, parecem fazer
parte do cotidiano dos Bois de Parintins, em uma rápida pesquisa
em site específico de busca é possível verificar várias páginas de
internet que contemplam a temática. Os Bois de Parintins não
escondem essas mazelas, entretanto, sempre apontando no outro
uma prática que a primeira vista parece fazer parte do universo de
Caprichoso e Garantido. Como na toada Garanpino54, de Adriano
Aguiar, Alquiza Maria, Carlos Kaita e Vanessa Aguiar, composta para
o CD 2015 do Boi Caprichoso.
GARANPINO

54
O título faz um trocadilho entre o nome do Boi Garantido e o termo pino, usado
para definir o não cumprimento de uma promessa de pagamento.
176
Alô, boi da baixa / Baixa estima, baixa alegria e
baixo astral/ É o boi branquelo, filho de garça/ É o boi-nome
sujo na praça/ É o boi da cobrança, boi do Serasa
É o garanpino, mais um pino, outro pino/ Sai de fino, sai
correndo com medo que vão cobrar/ Ele é um garrote, boi
do calote/ Cuidado, mais um trote tá querendo dá/ É um
barraqueiro, trambiqueiro, caloteiro, cachaceiro/
Trapaceiro, ninguém pode confiar/
É chorador, apelador, escandaloso, invejoso
Encardido, sebo-de-holanda/ A tua maior tradição é.../ É
não pagar
Sabe por que tem inveja?/ Porque meu boi é moreno e
mulato/ Sabe por que da tradição?/ Porque sempre não
paga ninguém/ Sabe por que da promessa?/ Porque só
promete e não paga ninguém
Mesmo a toada não fazendo referencia direta aos
trabalhadores dos galpões dos bois de Parintins, os riscos que esses
trabalhadores estão expostos ultrapassam as dimensões do ofício. O
Ministério do Trabalho nos últimos anos tem intensificado as
fiscalizações e aplicando multas em ambas as associações de boi-
bumbá. Paralizações, acidentes de trabalho e falta de pagamento,
fazem parte do cotidiano de quem trabalha nos bastidores da maior
festa folclórica do Estado. Talvez isso explique o pedido de proteção
feito nas missas que abrem os trabalhos nos galpões de alegorias
dos bois-bumbás de Parintins.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos apresentar no decorrer deste artigo uma
reflexão sobre o universo do trabalho nos galpões dos bois-bumbás
de Parintins, buscando situar os mundos do trabalho na Amazônia
com suas tipologias e diversas ocupações, remetendo para a
compreensão do homem amazônico, além de suscitar uma
discussão sobre as construções e significações simbólicas do
trabalho na vida dos trabalhadores dos galpões dos bois-bumbás de
Parintins, tentando compreender o nível de consciência dos
trabalhadores dos galpões quanto aos seus direitos trabalhistas,
177
apontando as suas formas de organização social frente aos patrões
ou às diretorias dos bumbás, refletindo e analisando esta temática.
Sabemos que não se esgota aqui as possibilidades de pesquisa.
Entretanto, esperamos que tenhamos contribuído para as
discussões que tratam de questões amazônicas, principalmente
àquelas que se referem ao Boi-Bumbá de Parintins.
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Paulo: Editora Ática, 2000.
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7. _______________. O ato de trabalhar e suas múltiplas faces. In:
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180
Rosimay Corrêa55
Iraildes Caldas Torres56

Introdução
A realização de festas57 com o objetivo de pagar promessa
aos santos da Igreja Católica é uma prática muito comum na
Amazônia. O santo representa uma figura protetora para seus fiéis
e, por isso, os sacrifícios e os acordos “feitos com ele” objetivam ao
atendimento de diversos pedidos.

55
Doutoranda do Programa Sociedade e Cultura na Amazônia-PPGSCA da
Universidade Federal do Amazonas/UFAM. E-mail: rosimaycorrea@bol.com.br
56
Pós-doutora em Antropologia Social pela Université Lumiere Lyon 2, França.
Professora da Universidade Federal do Amazonas-UFAM. E-mail:
iraildes.caldas@gmail.com
57
O conceito de Festas indicam ocasiões de alegria, atitudes informais e o contato
direto entre os agentes sociais de um determinado lugar.
181
Fig.1 Casal dono da Festa de São Miguel. Parananema, Parintins –
AM.2010

Foto: As autoras.

Maués (1995) enfatiza que os santos foram pessoas


comuns, santificadas em razão da não decomposição de seus
corpos, de terem uma morte trágica, do sofrimento vivido, dos
milagres supostamente realizados e de outros sinais de santidade.
No entanto, conforme este autor, na representação popular seria
“(...) o sofrimento que santifica, ou mesmo que confere um poder
especial àquele santo que sofreu” (p. 183).
A festa de promessa é resultado de um acordo, ou contrato
feito entre o devoto e o santo. Em troca do pedido alcançado o
devoto se responsabilizará pela festa, realizando-a uma vez ou todos
os anos, depende do acordo para homenagear o santo. “A relação
entre o indivíduo e o santo baseia-se num contrato mútuo, a
promessa” (GALVÃO, 1976, p. 31).
Em Parintins, município localizado no Baixo Amazonas e
distante a 370 Km em linha reta da capital Manaus, a prática de
pagar promessa através de uma festa também é realizada com
expressiva frequência. Na Comunidade do Parananema, área
suburbana deste município, existe uma Festa de Promessa que vem
sendo realizada há mais de cem anos por uma mesma família.
Amélia da Silva e Silva (75 anos) diz que foram seus bisavós os

182
promesseiros, mas não lembra o porquê da promessa, devido na
época, ela ser muito criança.
O conceito de comunidade adotado neste trabalho segue as
orientações de Fernandes (1973, p.122) para o qual independente
do lugar e do tamanho do grupo , mas pelo de fato de
compartilharem “ *...+ das condições básicas de uma vida em
comum, chamamos a esse grupo comunidade”.
Segundo o Presidente da Associação de Moradores, Alônsio
Silva Farias, a Comunidade do Parananema, área pertencente ao
município de Parintins, possui mais de 1.225 habitantes que
sobrevivem da pesca, agricultura familiar, granja, muitos são
funcionários públicos e outros são aposentados. O acesso a esta
comunidade é feito por meio de estrada, a mesma dispõe de
energia elétrica, água encanada, 01(uma) Igreja Católica e 01 (uma)
escola municipal.
O santo homenageado na festa de promessa é São Miguel
Arcanjo, chefe do exército celestial e protetor da Igreja
Católica.Sgarbossa (2009, p. 291-292) destaca que este santo é o
padroeiro da Igreja universal. Segundo ele, os imperadores
romanos, Constantino e Justiniano, construíram santuários em sua
homenagem. No dia 29 de setembro, dia do santo, comemora-se a
consagração de sua igreja construída a seis milhas da via Salária, na
Itália.
Miguel, “Quem é como Deus”, geralmente é representado
nas pinturas como um anjo guerreiro armado de espada, armaduras
e, em algumas imagens, está pisando com um dos pés, a cabeça de
um dragão. Ele é considerado o padroeiro dos policiais.
O preparo de uma festa, seja para qual for o santo, requer
gasto de dinheiro e de energia por parte daqueles que se propõem a
tal tarefa. No caso da Festa a São Miguel, o trabalho é realizado por
uma equipe de pessoas que se organizam anualmente a fim de que
todo dia 29 de setembro essa festa possa ser realizada sempre
melhor que a do ano anterior. Para isso, a família responsável por
esta atividade conta com o apoio, a colaboração e o trabalho de
outras pessoas que são ou não devotas do santo.
183
Alves (1980, p. 56) assinala que os devotos são aqueles que
“*..+) cumprem uma devoção que pode se expressar ou não em uma
promessa”. Geralmente elesacompanham descalços a procissão de
seu santo de devoção, como acontece nas procissões em
homenagens à Nossa Senhora de Nazaré, em Belém do Estado do
Pará.
Galvão (1976, p. 31) assinala que “A relação entre o
indivíduo e o santo baseia-se num contrato mútuo’, a promessa”. O
santo seria recompensado por meio da festa para homenageá-lo
com a participação de seus devotos ou não. Geralmente a duração
da festa é de dois dias devido ao alto dispêndio financeiro para
realizá-la.
Este artigo se propôs a analisar os conceitos de trabalho e
labor no contexto das festas de promessa, especificamente a que é
realizada em homenagem a São Miguel no município de
Parintins/Amazonas. Quem realiza esta festa? De onde vem os
donativos para custeá-la? Quanto tempo precisa para organizar
esta festa? O que motiva a continuidade da festa? Estas indagações
e outras nortearam esta discussão que foi desenvolvida da seguinte
forma:
I- Apresentar algumas noções do conceito de trabalho no
pensamento contemporâneo, à luz dos autores Wright Mills, Weber,
Marx e Hannah Arendt.
II- Descrever a festa de promessa realizada em homenagem
a São Miguel no município de Parintins/Amazonas conforme
pesquisa de campo realizada.
III- Discutir os conceitos de trabalho e labor na festa a São
Miguel em Parintins/Amazonas apoiado no pensamento de Hannah
Arendt.
Para a elaboração deste artigo foi adotada a pesquisa de
campo com as seguintes técnicas de coleta de dados: entrevista
estruturada e observação participante. Segundo Soriano (2004,
p.153), a técnica da entrevista estruturada “*...+ permite colher
abundante informação básica *...+” sobre o tema em estudo.

184
Segundo o autor acima (p.146-147), a observação
participante:
[...] permite adentrar nas tarefas realizadas pelos indivíduos
no seu dia-a-dia, conhecendo mais de perto as expectativas das
pessoas, suas atitudes e condutas diante de determinados estímulos,
as situações que fazem com que elas ajam de um modo ou de outro
e as maneiras de resolver os problemas familiares ou da
comunidade.
A pesquisa bibliográfica realizada possibilitou a análise das
informações coletadas durante a pesquisa de campo sob a luz das
teorias de alguns autores contemporâneos que se debruçaram
sobre a temática em questão.
Algumas noções de trabalho no pensamento contemporâneo
A noção de trabalho de cariz capitalista associada ao lucro é
hegemônica, embora, o trabalho se expresse para além das relações
mercantilistas. Muitas pessoas desenvolvem atividades fazendo
dispêndio de energia física e /ou intelectual para satisfazerem as
suas necessidades afetivas, religiosas ou sociais, sem que isso
represente um salário como troca.
O trabalho enquanto categoria ontológica vem ganhando
expressiva significação. Para gregos e romanos, o trabalho era visto
como atividade para ser realizada pelos escravos. Tornava-se
necessário o tempo livre para que os homens pudessem dedicar
tempo à política, à guerra e à filosofia. No Cristianismo antigo
passou a ser encarado como uma forma de expiação dos pecados e
para o afastamento dos maus pensamentos. Parece que a noção de
trabalho estava associada ao sofrimento e à ideia do pecado
original, causa da queda do homem e, consequentemente, da sua
expulsão do paraíso.
A concepção de trabalho em Santo Agostinho se difere da
visão de seus antecessores. Este pensador atribui o mesmo grau de
importância a qualquer atividade, seja ela intelectual ou braçal.
Todo trabalho tem sua pertinência. A própria criação do mundo é
resultado do trabalho do próprio criador. A recomendação de Santo

185
Agostinho é a de que o trabalho seja realizado com amor e prazer.
Os anjos e Adão já trabalhavam desde os primeiros tempos sendo,
pois, o trabalho algo necessário e fundamental para o homem e
para a vida. Até o ato de anunciar o Evangelho é entendido como
esforço, um trabalho.
Para esse autor,
É um labor tanto anunciar quanto escutar a palavra de
verdade. Esse labor, irmãos, nós o suportamos com um espírito
apaziguado, se nos lembrarmos da sentença do Senhor e da nossa
condição. No próprio começo de nossa espécie, o homem ouviu, não
de um homem enganador, não do diabo corruptor, mas da própria
verdade, da boca de Deus: “Tu comerás o pão do suor do teu rosto”.
Então, se nosso pão é a palavra de Deus, derramemos nosso suor
ouvindo.( AGOSTINHO apud SALAMITO, Jean- Marie,2005, p. 40)
Com a Reforma Protestante o trabalho passa por um novo
significado, adquirindo o status de sinal da salvação. Passa-se a dar
ênfase à ideia de indivíduo na medida em que este era necessário
não só para o capitalismo nascente, mas também para legitimar a
reforma, pois a ideia de liberdade para a leitura e para a
interpretação dos textos bíblicos, deixavam de ser de domínio
exclusivo dos padres da Igreja, para reforçar as reformas de Lutero.
Mills (1969, p. 234) assinala que,
Foi Lutero quem estabeleceu o trabalho como ‘a base e a
chave da vida’. Embora continuando a afirmar que o trabalho era
uma consequência da queda do homem, Lutero, repetindo São
Paulo, acrescentava que todo aquele capacitado para trabalhar
deveria fazê-lo. O ócio era uma evasão anti- natural e perniciosa.
Manter-se pelo trabalho é um modo de servir a Deus. Assim resolve-
se o grave conflito entre piedade religiosa e atividade profana; a
profissão torna-se uma “vocação”, e o trabalho é o caminho
religioso para a salvação.
Esta ideia de vocação instigou Max Weber (1996, p.33-34), a
investigar a relação entre religião e economia e como isso teria

186
contribuído para o surgimento do capitalismo nos países europeus
de religião protestante.
Conforme este autor,
E, na verdade, esta ideia peculiar do dever profissional, tão
familiar a nós hoje, mas, na realidade, tão pouco evidente, é a mais
característica da ‘ética social’ da cultura capitalista e, em certo
sentido, sua base fundamental. É uma obrigação que o indivíduo
deve sentir e que realmente sente, com relação ao conteúdo de sua
atividade profissional, não importando no que ela consiste e
particularmente, se ela aflora com uma utilização de seus poderes
pessoais ou apenas de suas possessões materiais (como ‘capital’).
O capitalismo nasce tendo por base uma ética religiosa que
relaciona trabalho, virtude e vocação. A ação profissional é
carregada de um dever moral cuja riqueza produzida é resultado
desse trabalho e sinal da graça divina. Tal moral é criada dentro das
famílias protestantes que ensinam o amor ao trabalho e à disciplina,
atitudes propícias ao cultivo do espírito do lucro. Esta ética
utilitarista é ideologizante que dá excessivo valor ao trabalho
explorado.
O conceito explorado foi elaborado por Karl Marx no século
XIX. O trabalhador produz mercadorias que não lhes pertence, assim
como produz a si mesmo como uma mercadoria, não se
reconhecendo como dono daquilo que ele mesmo produziu. Sua
força de trabalho é vendida em troca de um salário que irá satisfazer
suas necessidades básicas de sobrevivência permitindo que ele
continue a produzir a mais-valia, fonte de riqueza da burguesia.
Para Marx (2004, p.80), “O trabalhador se torna uma mercadoria
tão mais barata quanto mais mercadorias cria”.
O trabalho e o trabalhador são produtos e produtores da
história. O trabalho enquanto mercadoria é estranho ao
trabalhador que não se reconhece naquilo que ele produz. Mas é
somente o trabalhador, enquanto consciência reflexiva, que é capaz
de transformar a sua realidade. A partir de sua organização
enquanto classe social em oposição aos interesses da burguesia que
o proletariado poderá transformar sua situação política e social.
187
Para Hannah Arendt (1999, p.101), os conceitos trabalho e
labor possuem significados diferentes. A atividade do labor
representa tudo o que está relacionado ao processo biológico e ao
corpo humano que não deixa rastro e cuja produção e consumo são
rápidos, ao mesmo tempo, necessários à vida humana. De modo
que “*...+ o labor é também um processo que provavelmente cessa
com a própria vida”. Assim, de certa forma, todo trabalho é uma
forma de labor, pois visa à satisfação das necessidades humanas e é
resultado da força vital do homem, mas isso não significa que todo
labor seja um trabalho.
O trabalho termina quando o objeto resultado dessa ação é
concluído. Trata-se do artificialismo da existência humana, da
mundanidade das coisas e dos objetos existentes . Note-se que,
Ao contrário do processo de trabalhar, que termina quando
o objeto está acabado, pronto para ser acrescentado no mundo
comum das coisas, o processo do labor move-se sempre no mesmo
círculo prescrito pelo processo biológico do organismo vivo, e o fim
das fadigas e penas só advém com a morte desse organismo”
(ARENDT, 1999, p.109)
O trabalho produz objetos duráveis que poderão provocar
impacto ao meio ambiente, pois sua decomposição exige um espaço
de tempo maior que o natural. O labor produz objetos cuja
durabilidade é breve, pois é autodestruidora e não gera impacto ao
meio ambiente porque acompanham o ciclo natural da vida.
Se pensarmos na organização das festas de promessa na
Amazônia, em especial na Festa a São Miguel na Comunidade do
Parananema em Parintins no Amazonas, perceberemos que o
conceito de labor poderá justificar todos os esforços dispensados
para a sua organização. Tudo o que é produzido é consumido no
decorrer da própria festa.
A Festa a São Miguel realizada em Parintins, Amazonas
A fundação do município de Parintins remonta a uma
simbologia que envolve a São Miguel. Teria sido no dia 29 de
setembro, dia que se festeja esse santo, que o Padre João
188
Felipe Bettendorf fundou a aldeia São Miguel dos
Tupinambarana, antigo nome desta cidade (SAUNIER, 2003).
Apesar de ele não ser o atual padroeiro deste município, a
devoção a este arcanjo se faz presente através de um número
considerável de devotos que residem nas áreas urbana e rural
de Parintins.
Na Comunidade do Parananema, área suburbana da cidade
de Parintins, existe uma família que há mais de cem anos presta
homenagem a São Miguel. A primeira festa teria sido realizada em
1900, pelo casal Miguel e Serafina Bentes após terem feito uma
promessa a este arcanjo. Após a morte deles, ela passou a ser
organizada por sua filha, Josina Bentes. O filho dela, Eulálio Bentes
da Silva, assumiu mais tarde a responsabilidade pela festa. Com a
morte de Eulálio, sua esposa, Tereza Ramos da Silva, passa a
organizar o festejo durante dez anos. Os filhos, Antônio Ramos da
Silva, Amélia da Silva e Silva e Maria Zilda Ramos responsabilizaram-
se pela festa, após o falecimento de sua mãe.

Fig.2 Sra. Amélia e Sr. Antônio bisnetos dos promesseiros da Festa de São
Miguel. Parananema, Parintins –AM, 2016. Foto: As autoras.2016

Os filhos de Amélia são, hoje, os atuais organizadores da


festa e contam com a colaboração de parentes, devotos, amigos e
colaboradores. Esta família não só mantém essa tradição, como
também é uma das primeiras moradoras desse local. Em setembro

189
deste ano, essa festa completará 116 anos e tem a participação de
devotos da comunidade e de outros lugares deste município. A casa
da família é o lugar onde é realizada a festa. Trata-se de uma
habitação simples construída com madeira da floresta, coberta com
telha de fibrocimento e sem cercadura ou muro de proteção ao
terreno. Há também três barracões, todos cobertos de palha. Num
deles funciona a cozinha da família, o outro é a área onde as
cozinheiras preparam e servem a alimentação oferecida no almoço
da Festa do Santo. O terceiro barracão constitui-se no salão
principal onde acontecem a ladainha e o baile.
O tempo de duração dessa festa é de dois dias e seus
eventos principais são: a ladainha, o baile e o almoço. No dia 28 de
setembro é realizada a ladainha, conduzida por uma rezadeira de
ladainha, uma espécie de ministro responsável pela liturgia. As
orações rezadas são, na maioria, as mesmas utilizadas nas missas
católicas. Um dos rezadores mais conhecidos dessa festa é o
Raimundo Bentes da Silva, conhecido como Mundico Lauriano,
antigo morador dessa comunidade. Geralmente, após a ladainha é
servido café com beiju58 e mingau de mungunzá59 aos presentes.
O Baile é realizado horas após a ladainha e se estende até a
madrugada. Nele ocorre uma grande participação de pessoas
advindas dos bairros do município de Parintins. No decorrer do
baile, ocorre a venda de comida e bebida alcoólica sob a
responsabilidade do festeiro. Geralmente essa pessoa é escolhida
durante a derrubada do mastro60 , ou seja, na caída do mastro ele
consegue pegar a bandeira que contem a imagem do santo. Ao

58
O beiju é um alimento muito comum no Nordeste e Norte do Brasil. Ele é feito
com a fécula retirada da mandioca, peneirada e colocada numa fritadeira bem
aquecida.
59
O mingau de munguzá é feito de grãos de milho- branco triturado levemente e
cozido ao leite.
60
O mastro marca o lugar onde se realiza uma festa representa a festividade, a
fecundidade e a alegria. O mastro está ligado aos cultos agrários dos povos
bárbaros da Europa e lembram árvores sagradas, símbolo da ligação entre o céu e a
terra, daí a ideia de escalar o pau de sebo para se alcançar um prêmio. No fim da
festa, o mastro é derrubado e as frutas que nele estavam presas são distribuídas ou
disputadas entre os presentes ( vide CORRÊA, 2011).
190
pegar a bandeira, ele se torna o novo festeiro e se responsabilizará
pela organização da próxima festa, arrecadará as doações de
alimentos e das frutas feitas por simpatizantes e devotos do santo,
também, contratará os músicos que animarão a festa.

Fig.3. Meninos subindo no pau- de- sebo. Parananema, Parintins –


AM.2010

Foto: As autoras.

Conforme Roberto A. da Silva juiz da festa no ano de 2011,


O trabalho do juiz é fazer a festa. No caso a gente disse que
ia dar o boi, nós demos o boi pra fazer a festa, a música pra fazer a
festa. E esse é o trabalho do juiz. Tem que ter responsabilidade com
o santo. Tem a festa sim, mas a responsabilidade toda é com o santo
(Entrevista, 2016)
Ao pegar a bandeira com a imagem do santo assume-se
publicamente a responsabilidade da organização da festa.
Geralmente os festeiros conseguem organizá-la, pois conta com o
apoio de um grupo de pessoas comprometidas com a organização
do evento religioso. Entre essas pessoas estão os próprios membros
da família promesseira, devotos e simpatizantes que
espontaneamente ajudam no trabalho.

191
Geralmente, as doações são feitas pelos mordomos61, isto é,
pelos devotos de São Miguel que todos os anos doam alimentos que
servirão para enfeitar o mastro ou para o preparo do alimento
servido no almoço. Durante o almoço, os mordomos são os
primeiros a serem servidos e, também, são chamados para o ritual
da derrubada do mastro. Somente depois de servirem o almoço aos
mordomos é que as demais pessoas poderão ter acesso gratuito à
comida. De modo geral, o alimento servido no almoço consiste em
carne guisada ou assada de boi ou de porco acompanhadas de
porções de arroz, macarrão e farinha.
A derrubada do mastro encerra o tempo da festa, durante
esse ritual é feita a escolha do novo festeiro, como fora exposto
anteriormente. No ano de 2011, a escolha ocorreu de forma
diferenciada, pois o candidato a festeiro se ofereceu antes da
derrubada do mastro. A família promesseira aceitou e fez o anúncio
do nome dessa pessoa ao público presente. Revelar o nome do novo
festeiro torna público o compromisso assumido por ele com a
família e com o santo.
O trabalho realizado nessas festas visa justamente essa
homenagem. A organização da festa se dá de modo que todas as
doações são consumidas durante os dois dias de festa, não havendo
acumulação e nem aquisição de bens materiais. Dessa forma, o
conceito de labor e não o de trabalho, segundo o pensamento de
Arendt, poderá iluminar nossa compreensão acerca da justificativa
para o engajamento dispensado na feitura da festa.
O trabalho e o labor na festa de promessa
A festa é ocasião de socialização, circulação de bens e
pessoas provocadora de prazer, alegria, excessos e da renovação
das energias. Ela permite a quebra da rotina e da seriedade da vida,
permitindo o predomínio do lúdico, das atitudes jocosas, dos
excessos, de modo que, tais ações atuam como uma válvula de
escape das tensões do tempo ordinário. É o que Callois (1988, p. 96-

61
O termo mordomo é de origem latim major domus cujo significado é “governante
da casa”. Nas festas de promessa ele é o principal colaborador da organização e das
doações de alimentos e frutas servidos como alimentação no almoço da festa.
192
97) sinaliza dizendo que a festa representa “*...+ um tal paroxismo
de vida e rompendo de um modo tão violento com as pequenas
preocupações da existência quotidiana”.
A Festa de Promessa é um tempo alto para a família
responsável por sua organização e para os devotos do santo
homenageado. A chegada do dia da festa é comentada por aqueles
que um dia participaram ou por aqueles que anualmente a
organizam, sendo para estes um dever a ser cumprido. Como
destaca Amélia da Silva e Silva, “A gente ficava com aquela ideia
sentida que era de pai, avó e bisavó e a gente deixar de mão. Eu
sinto como uma obrigação. Quando no mês de agosto eu sonho
muito com eles”. (Entrevista, 2015)
A Festa a São Miguel na Comunidade do Parananema é
realizada todos os anos pela família da entrevistada que, devido à
idade, recebe o apoio dos filhos para a organização desse evento de
extrema importância para ela, como fora sinalizado acima.
A escolha do novo festeiro faz dele o responsável pela
organização da festa do ano seguinte. O festeiro contará com o
apoio dos mordomos e dos devotos de São Miguel que
voluntariamente poderão fazer doações para agradecer algum
milagre recebido.
O trabalho é realizado nos dois meses anteriores ao mês de
setembro e intensificado nas duas semanas anteriores ao dia da
Festa. As tarefas consistem em realizar a limpeza e a ornamentação
do barracão, construir banheiros, fazer a arrecadação de alimentos
para o almoço e frutas para enfeitar os mastros, retirar da floresta
os paus que servirão de mastros, comprar bebidas e solicitar a
autorização nos órgãos municipais para a realização da festa.

193
Fig.4. Levantamento dos mastros da Festa de São Miguel.
Parananema, Parintins –AM.2010

Foto: As autoras.

De acordo com Adarildo Ramos da Silva ( 38 anos) , filho de


Amélia da Silva e Silva,
A festa de São Miguel é organizada na duração de dois
meses entre julho, agosto e o começo de setembro até o dia 26 e 27,
a gente ainda organiza a festa de São Miguel. Durante esse período
a gente limpa e organiza o barracão, conversa e vai atrás dos
mordomos. Os mordomos que são os nossos, vamos dizer assim,
braço direito da nossa festa. Eles são os mais importantes, eles que
ajudam a gente a realizar essa festa. Se não fosse por esses
mordomos, a nossa festa não seria realizada porque só um festeiro
para organizar uma festa, ela não será, pode se dizer assim, feita
(Entrevista, 2015).

Todas as atividades realizadas para a organização dessa


festa requerem gasto de energia física e/ou mental por parte dos
envolvidos. O resultado do trabalho dessas pessoas é a festa em si,
isto é, o local arrumado, os músicos, o baile, a bebida, a comida, a
divulgação impressa ou feita nas rádios e emissoras de televisão
locais, o enfeite dos mastros e a realização da ladainha. Esse
194
conjunto de pessoas conta com a presença expressiva de devotos ou
simpatizantes durante os dois dias festivos.
Todo o esforço empreendido para a realização dessa festa
produz algo que não é simplesmente material, o objetivo de tudo
isso é de caráter simbólico. Trata-se de cumprir o dever para com o
santo e a promessa feita pela família. No final da festa é gratificante
perceber a satisfação do festeiro e mordomos em terem cumprido
seus papéis e do reconhecimento expresso pelos comentários de
participantes que afirmam ter sido essa festa igual ou melhor que a
do ano anterior.
Esse esforço por parte de seus organizadores não rende
para eles nenhum tipo de recompensa financeira ou acúmulo de
bens materiais. Então, como justificar todo esse trabalho?
Os bens produzidos nas festas de promessa como a comida,
a música, o lazer, o baile e as orações possuem um tempo de
existência limitado. A subida e a derrubada do mastro representam
a abertura e o encerramento desse momento social e religioso. O
resultado produzido pelo trabalho dos organizadores dessa
atividade possui caráter simbólico de modo que seus organizadores
não recebem remuneração alguma. “*...+ Pra mim essa festa não
digo eu estou cansada é um prazer, eu só quero que ele me dê
muitos anos de vida, saúde pra mim e pros meus filhos. E gosto
muito” (Maria do Carmo Batista da Silva, mordoma da festa de São
Miguel, entrevista 2015).
A suposta proteção do santo, a satisfação pessoal e a
solidariedade do grupo que organiza essa festa representam o
retorno esperado para todo esse esforço. Tudo é produzido para ser
consumido durante os dias de festa. O conceito de trabalho
ultrapassa o sentido econômico, ou seja, vai além da ideia de
salário. A recompensa ao final da festa possui valor imaterial e
subjetivo. Não importa o sono perdido, as horas intensas para
organizá-la, os gastos realizados, mas o importante é cumprir a
promessa feita ao santo e receber o reconhecimento dos
participantes do festejo. Como diz Adarildo Ramos da Silva, atual
festeiro de São Miguel,
195
É a satisfação de ter os amigos, ter o povo da nossa
comunidade, o povo, também, que vem de Parintins e vem de outras
comunidades prestigiarem essa nossa festa que está muito
conhecida. Vem gente de várias comunidades e cidades prestigiar
nossa festa. O lucro maior que ela traz para nós é a felicidade de ter
essas pessoas junto com a gente e algum lucro, também, para a
gente poder pagar as despesas da festa. O mais importante é a
vontade de viver e fazer essa festa todo ano se for possível
(Entrevista, 2016).
Bourdieu (2004, p. 39) indica que a constituição do campo
religioso é feita por especialistas religiosos e por outro lado, os
leigos. Os primeiros são “reconhecidos como os detentores
exclusivos da competência específica necessária à produção [...] de
conhecimentos secretos”; o segundo são “destituídos de capital
religioso”. Mas o que se percebe nesta festa é a presença de uma
resistência dessas pessoas, consideradas neste contexto, como
incapazes por serem desprovidas de conhecimento para
manipularem os bens religiosos realizando um evento religioso sem
a participação de representantes eclesiásticos.
O trabalho realizado coletivamente para a realização da
festa é a prova de que os bens religiosos podem ser manipulados
por leigos, desde que façam parte do grupo e recebam funções
específicas. O festeiro é o responsável geral pelo evento e é
auxiliado por mordomos que fazem suas doações e participam dos
trabalhos necessários para a festa. A recompensa é essencialmente
a satisfação do dever cumprido com o santo e com as pessoas que
se deslocam de outros lugares para participarem da festa. “É um
ponto de honra para o juiz suprir mais que realmente necessário e
afirmar que de sua festa ninguém saiu com fome ou que faltou boa
música” (GALVÃO, 1976, p. 44).
Analisar esta festa pelo viés utilitarista econômico impediria
atingir a essência dessa atividade que objetiva a satisfação pessoal e
coletiva. Tal percepção é compartilhada por Silva (2009, p. 150) que
diz, “*...+ nem tudo é classificado exclusivamente em termos de
compra e venda e que as coisas possuem ainda valor sentimental”.
196
A sensação do cumprimento da promessa para com o santo,
a alegria, a abundância de alimentos e a presença das pessoas são
os retornos esperados por aqueles que organizam uma festa de
promessa. Todos que participam da festa são recebidos
fraternalmente e participam do almoço sem exceção ou distinção
de cor, sexo ou classe social. Vive-se um tempo de fraternidade,
alegria e fartura naquele tempo e espaço específicos.

Fig.5. Cozinheiras da festa de São Miguel, Parananema, Parintins-AM,


2016.
Foto: As autoras
Segundo Arendt (1999,p.98) os conceitos trabalho e labor
possuem significados diferentes. O trabalho está voltado para a
produção material de um objeto cuja finalidade está em si mesmo.
O labor é atividade ligada à produção de bens de pouca duração.
Como indica a autora, “Realmente, é típico de todo o labor nada
deixar atrás de si: o resultado do seu esforço é consumido quase tão
depressa quanto o esforço é desprendido”.
Note-se que o termo labor ilumina nossa compreensão
acerca de todo dispêndio de energia e dinheiro para a produção de
um evento cuja duração é breve. O labor representa o processo
biológico da vida, as coisas existentes apenas por um tempo
específico para a satisfação e a subsistência da vida. O almoço
servido na festa do santo é preparado e consumido no mesmo dia e
atende às necessidades orgânicas do homem. O conceito trabalho,
se analisado do ponto de vista de Hannah Arendt indica a produção
de bens materiais, e se apoiar no pensamento de Karl Marx, se
associará ao salário, mas não é apenas isso que importa neste tipo

197
de festa. O importante é a satisfação do espírito e a do corpo num
tempo breve e inefável para o grupo que a organiza e para os
simpatizantes da festa.
Considerações Finais
A festa de promessa a São Miguel na Comunidade do
Parananema em Parintins, no Amazonas, realizada anualmente
representa uma manifestação religiosa muito comum na Amazônia.
O ato de fazer uma promessa a um determinado santo em troca da
realização de um pedido é a justificativa para o nome dado a esse
tipo de evento religioso e social.
A organização inicia dois meses antes do mês da festa e se
intensifica duas semanas anteriores ao dia em que se comemora o
santo. O trabalho é realizado por um grupo de pessoas com funções
definidas: o festeiro, responsável pela comida, música e autorização
para a realização da festa, os mordomos que colaboram com
doações para o almoço e enfeite dos mastros e os devotos que
fazem suas doações. A família dona da festa também colabora com
o trabalho ou doações para a festa. Todo o trabalho executado na
festa visa homenagear ao santo como manifestação pública pelo
agradecimento do pedido alcançado.
A duração da festa é breve, mas a intensidade da satisfação
do cumprimento da promessa justifica todo o empenho de seus
organizadores. O dever cumprido, o espírito de solidariedade, o
trabalho coletivo e a devoção ao santo justificam a tradição, a
dedicação e o esforço para a continuidade destas festas.
Referências
1. ALVES, Isidoro Maria da Silva. O Carnaval devoto: um estudo
sobre a Festa de Nazaré, emBelém.Petrópolis: Vozes, 1980.
2. ARENDT, Hannah. A condição humana. 9 ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1999.
3. BOURDIEU. Pierre. A economia das trocas simbólicas. Trad.
Sergio Miceli. 5 ed.- São Paulo: Perspectiva, 2004.
4. CAILLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Tradução Geminiano
Franco, Lisboa: Edições 70, 1988.

198
5. CORRÊA. Rosimay. Festa de santo: o pagamento de promessas
em Parintins-AM. Dissertação aprovada no Programa de Pós-
Graduação do Mestrado em Sociologia da Universidade Federal
do Amazonas, 2011.
6. FERNANDES, Florestan. Comunidade e Sociedade. Comunidade
e sociedade: leitura sobre problemas conceituais,
metodológicos e de aplicação. São Paulo: Editora Nacional e
Editora da Usp, 1973.
7. GALVÃO, Eduardo. Santos e visagens: um estudo da vida
religiosa de Itá, BaixoAmazonas. 2 ed. São Paulo, Ed. Nacional;
Brasília, INL, 1976.
8. MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos. Tradução de
Jesus Ranieri. São Paulo: BoiTempo, 2004.
9. MAUÉS, Raimundo Heraldo. Padres, pajés, santos e festas:
catolicismo popular e controle eclesiástico . Um estudo
antropológico numa área do interior da Amazônia .
10. MILLS, Wright. O trabalho. In: A nova classe média (white
Colar). III parte Cap. 10. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969.
11. SALAMITO, Jean-Marie. Trabalho e trabalhadores na obra de
Santo Agostinho. In: MERCURE, Daniel e SPURK, Jan (Org.). O
trabalho na história do pensamentoOcidental. Petrópolis, RJ:
Vozes,2005.
12. SAUNIER, Tonzinho. Parintins: Memória dos Acontecimentos
Históricos. Manaus: Governo do Estado do Amazonas, Manaus,
2003.
13. SGARBOSSA, Mário e GIOVANNINI. Um santo para cada dia.
Tradução: Onofre José Ribeiro, 14ª edição. São Paulo: Paulus,
2009.
14. SILVA, Alvatir Carolino da. “Festa dá trabalho!”: as múltiplas
dimensões do trabalho na organização e produção de grupos
folclóricos da cidade de Manaus / Manaus: UFAM, 2009.178 f.
15. SORIANO, Rául Rojas. Manual de pesquisa social. Trad. Ricardo
Rosenbusch. Petrópolis, RJ: Vozes,2004.
16. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo.11
ed. São Paulo: Pioneira, 1996.

199
M.sC. Christiane Pereira Rodrigues62
Dra. Elenise Scherer63

E hoje? Em que pé está a história das mulheres


(PERROT, 2015, p.168)
Introdução

62
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências do Ambiente e
Sustentabilidade na Amazônia – PPGCASA da Universidade Federal do Amazonas–
UFAM - Bolsista FAPEAM-RH/interiorização – professora no Instituto Federal de
educação, ciência e tecnologia do Amazonas-IFAM.
63
Professora Associada da Universidade Federal do Amazonas – UFAM,
Pesquisadora da FAPEAM e CNPq, orientadora no PPGCASA/UFAM,
elenisefaria@gmail.com.
200
Figura 1. Maria Pereira de Souza, pescando camarão no Lago do
Samaúma situado no Baixo Amazonas, Alenquer-PA.Foto : RODRIGUES,
Christiane, 2015.

Quando Perrot (2005) estendeu particular importância aos


significados do cotidiano da mulher na Europa na década de 70 não
imaginou o quanto demoraria a muitas mulheres terem suas
histórias reveladas. A autora destacou a importância da trajetória da
mulher como um sujeito ativo e da busca por visibilidade nos
espaços públicos e privados. Em sua obra Minha história das
mulheres(2007), evidencia as representações e os significados mais
íntimos da história da mulher nos séculos XIX e XX colocando em
destaque, o trabalho, o cotidiano, as condições de vida, temas até
aquele momento, ignorados, deixados à sombra da sociedade.
A invisibilidade destacada no estudo refere-se ao
ocultamento, ao desconhecimento da participação da mulher
enquanto trabalhadora, ao não reconhecimento do seu trabalho
cotidiano e a ausência de registro nos dados oficiais e nos trabalhos
acadêmicos. A invisibilidade não é uma indiferença, é poder
perceber fisicamente o outro e, mesmo sem querer, ignorá-lo
(HONNETH, 2009, apud SCHERER, 2012, p.20).
Aproximadamente, 45 anos já se passaram, e muito precisa
ser evidenciado, principalmente quando nos referirmos ao trabalho
da mulher. As mulheres tiveram que lutar para terem seus direitos
reconhecidos, como o acesso à educação, o ingresso à universidade,
o direito ao voto, e o próprio direito de ter a sua história contada.
Quantas mulheres foram silenciadas ao decorrer de nossa trajetória
histórica? O quanto foi perdido?
Este estudo configura-se em torno da pesca artesanal do
camarão (Macrobrachium amazonicum), realizada por mulheres em
uma localidade de ecossistema de várzea, autodenominada por seus
moradores de comunidade Salvação, no município de Alenquer,
estado do Pará, no baixo Amazonas.
Cotidianamente, as mulheres pescadoras de camarão
encontram questões envolvendo as relações e aos papéis de gênero.

201
Primeiro, a pesca do camarão é pertinentemente percebida como
um trabalho de mulher. Os homens não pescam camarão, pois,
consideram um trabalho leve e que deve ser feito por mulheres.
Assim, o trabalho das camaroeiras está inserido em um universo de
gênero hierárquico que não reconhece a importância a mulher
enquanto força produtiva. Elas próprias introjetaram a ideia de que
a pesca do camarão é um trabalho fácil, próprio da mulher,
tornando-se, em decorrência desvalorizado e invisibilizado.
Em nosso estudo a discussão sobre gênero na pesca parte
das ideias de Saffioti (2004), a autora reconhece o conceito de
gênero como uma construção social entre o masculino e o feminino,
sendo uma categoria analítica e histórica, presente nos estudos
sobre mulher. Assim, não explicita, necessariamente, a desigualdade
entre homens e mulheres, pois, compreende também relações
igualitárias.
A propósito Maneschy, Alencar e Nascimento (1995, p. 82)
afirmam que é preciso “rever, questionar e criticar o padrão de
relações de gênero e o papel secundário das atribuições femininas
é, portanto, tocar em visões de mundo e em atitudes muito
arraigadas”. As autoras questionam a invisibilidade da pescadora na
cadeia produtiva da pesca (MANESCHY et. al., 1995, p. 86) no estado
do Pará. Este artigo assume o propósito de trazer para o debate
aspectos parciais do trabalho e a vida cotidiana das mulheres
camaroeiras em uma comunidade no baixo Amazonas, por meio de
um estudo bibliográfico e exploratório64. Partimos dos objetivos
assim colocados: Como ocorre o trabalho e a participação dessas
mulheres no trabalho da pesca do camarão? Quem são essas
mulheres e em que condições trabalham? Como vivem essas
mulheres? Até que ponto o trabalho praticado por essas mulheres
proporciona uma mudança na condição de vida?

64
A pesquisa ainda está é andamento e faz parte do Projeto Vozes
Ocultadas e Vozes Insurgentes: as mulheres pescadoras na Amazônia,
coordenado pela professora Dra. Elenise Scherer, com apoio do CNPq-
Edital Ciências Humanas, 2015-2018.

202
A abordagem utilizada foi qualitativa com aproximações
etnográficas. As rodas de conversas entre a pesquisadora e as
pescadoras são essenciais para dar sentido ao que está sendo
observado. Como observa Gerber, “é preciso olhar, cheirar, tocar,
observar participar viver a experiência como o máximo que o campo
nos possibilitar e nos permitir” (GERBER, 2015, p. 39). Nesta fase da
pesquisa foi realizado um levantamento de dados por meio de
observações e entrevistas realizadas com as pescadoras de camarão
na comunidade da Salvação em Alenquer, Pará, baixo Amazonas,
durante o segundo semestre de 2016. Não sem antes realizarmos
uma reunião preliminar com as pescadoras para exposição da
proposta, dos objetivos e das estratégias para execução das
atividades de campo. Com isso, pretendeu-se motivar o
envolvimento e autorização das mulheres pescadoras para a
realização da pesquisa, fator fundamental para sua efetivação,
acordado por meio do Termo de Consentimento de acordo com as
normas regimentares do Comitê de Ética.
A INVISIBILIDADE DO TRABALHO DAS MULHERES NO BAIXO
AMAZONAS
O baixo Amazonas faz parte do Programa Territórios da
Cidadania criado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário
(MDA).O programa foi um projeto criado para o desenvolvimento
territorial do Brasil, no ano de 2008, objetivando promover a
redução das desigualdades sociais em áreas rurais. Os Territórios da
Cidadania são aglomerados de municípios, com características
comuns de acordo com critérios de elegibilidade definidos, logo, no
Norte do país os territórios estão classificados como:
TERRITÓRIOS DE CIDADANIA UF

1 ALTO ACRE E CAPIXABA AC

2 CENTRAL (JI-PARANÁ) RO

3 SUL DE RORAIMA RR

4 ALTO RIO NEGRO AM

203
5 ENTORNO DE MANAUS AM

6 BAIXO AMAZONAS AM

7 BAIXO AMAZONAS PA

8 TRANSAMAZÔNICA PA

9 SUDESTE PARAENSE PA

10 NORDESTE PARAENSE PA

11 MARAJÓ PA

12 SUL DE AMAPÁ AP

13 BICO DE PAPAGAIO TO

Quadro.1-Fonte: Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA),


Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

O território do baixo Amazonas é contemplado com dois


estados do Norte, o Amazonas e o Pará, os municípios pertencentes
a este território são: Barreirinha (AM), Boa Vista do Ramos (AM),
Maués (AM), Nhamundá(AM), Parintins(AM), São Sebastião do
Uatumã(AM) e Urucará(AM), Almeirim(PA), Alenquer(PA), Belterra
(PA), Curuá(PA), Faro(PA), Juruti(PA), Monte Alegre(PA), Óbidos(PA),
Oriximiná(PA), Placas(PA), Porto de Mós(PA), Prainha(PA)
Santarém(PA) e Terra Santa Santarém (PA). Porém, o município alvo
de nosso estudo será o município de Alenquer (PA), comunidade da
Salvação.
A Amazônia já experimentou vários períodos econômicos, o
da borracha, produção de juta. Mas por traz desse arsenal
econômico diversas formas de trabalho ficaram ocultadas. São
poucas as contribuições referentes à dinâmica histórica das
mulheres paralelas aos dos períodos econômicos mais
predominantes. A autora SIMONIAN( 1995) realizou uma pesquisa
sobre mulheres seringueiras nos seringais de Rio Branco, Xapurí,
Brasiléia e Tarauacá (municípios do estado do Acre) durante os anos
de 1986 e 1987 .Relatou a persistência histórica em tornar
204
invisível o trabalho das mulheres na produção da borracha e muitas
foram vítimas de mal tratos e abusadas sexualmente.
Harris (2011) esclarece que o século XIX na Amazônia foi
marcado pelo trabalho na produção de borracha, porém, em uma
pesquisa sobre o processo de constituição e reprodução do
campesinato realizada no baixo Amazonas, a exemplo do município
de Óbidos, mostrou que existia uma produção de borracha inferior,
frente aos grandes produtores. Diante disso, os homens e mulheres
buscaram novas formas de trabalho, como a produção de lenha
para os navios a vapor, nascendo assim novas estratégias de renda
para sobreviver. Como mostra Harris (2011) os trabalhos das
mulheres do baixo Amazonas tendem a ser invisibilizados, em
função de estarem paralelos a atividades com maior importância
financeira.
Segundo Maneschy (2000), o trabalho de pesca das
mulheres, realizado em comunidades pesqueiras, ainda não é
valorizado porque o tempo e o espaço vivido no trabalho são
variáveis e a irregularidade na demanda dificulta a compatibilização
do tempo de trabalho, sendo percebido como ajuda. Reforçando,
assim, o papel da mulher como dona de casa e ajudante de seu
companheiro e não como mulher produtor. E isso vai refletir
negativamente, levando-as a não se identificarem como pescadoras,
deixando-as no anonimato. As mulheres desempenham importantes
papéis para manutenção das comunidades pesqueiras por meio da
manipulação de diferentes recursos, de diversos ecossistemas,
terrestres e aquáticos, gerando renda, agregando valor aos
produtos e ampliando seus espaços na esfera política, cultural e
econômica de sua comunidade.
Em pesquisa recente realizada em Parintins, baixo
Amazonas, nas comunidades de São Sebastião da Brasília e Santo
Antônio do Catispera destaca o trabalho da pesca do camarão
(Macrobrachium amazonicum) realizado exclusivamente por
mulheres como principal fonte de renda das famílias, mas,
infelizmente essa prática pesqueira intensiva está ocasionando a
diminuição da quantidade e do tamanho do crustáceo e grande
205
parte dessas mulheres não tem registro de pesca , pois tem receio
de prejudicar os conjugues. E assim, colocam-se a sombra dos seus
direitos como trabalhadoras. (Diógenes et. al., 2015).
De acordo com FONA (2015), em Santarém, o fazer
artesanal das cuias pintadas é um importante aspecto cultural da
região conhecido desde o século XVIII e somente foi reconhecido
recentemente como Patrimônio Cultural do Brasil. Tradicionalmente
realizado por mulheres, desde 1762, esse modo tradicional de fazer
das cuias, no dia 11 de junho de 2015, se tornou um bem material
registrado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
- IPHAN, no 79º encontro do seu Conselho Consultivo que ocorreu
em Brasília, o qual aprovou o pedido de registro do modo de fazer
cuias do Baixo Amazonas, no Pará, como Patrimônio Cultural
Imaterial do Brasil. Um importante reconhecimento, haja vista que a
atividade tradicional de pintar cuias iniciadas apenas por mulheres
indígenas do baixo Amazonas existe há mais de dois séculos
(FONA,2015). São conquistas como essas que poderão trazer a
visibilidade a importância dos trabalhos realizados por mulheres no
baixo Amazonas.
De acordo com Medeiros (2013) o trabalho da prática do
65
teçume garantiu as mulheres em uma comunidade no baixo
Amazonas aquisição de bens e melhoria de vida através do
consumo de mercadorias na substituição de alguns trabalhos
manuais diários, os eletrodomésticos como o tanque ou máquina de
lavar, liquidificador e fogão a gás; bem como, os mobiliários. E assim
a dinâmica da economia doméstica privilegiou a artesanía
substituindo os ganhos que o extrativismo da borracha havia
eliminado em meados do século XX.
Como é o caso da pesca do camarão no baixo Amazonas,
ocorrida no município de Parintins e Alenquer. Esses dois municípios
foram grandes produtores de juta, porém com a queda da produção
de juta ocorrida no final da década de 70 as mulheres buscaram

65
Tipo de tecelagem realizada com palhas por quem ONDE o titulo do
trabalho da Thais.
206
outras formas para garantir o sustento da família, diante da falta
recursos. Foi nesse período que a produção do camarão na
comunidade da Salvação passou a ser de fundamental importância
para sobrevivência e manutenção familiar, deixando de ser somente
para o consumo.
O TRABALHO DA PESCA DO CAMARÃO EM UMA COMUNIDADE
AMAZÔNICA
A comunidade da Salvação localiza-se às margens do rio
Amazonas, pertencente ao município de Alenquer no Pará, e
encontra-se em ecossistema de várzea, dentro de uma área
destinada à reforma agrária, projeto intitulado Assentamento
Agroextrativista PAE Salvação, criado no ano de 2009. As principais
fontes de renda da comunidade são: pesca agricultura e criação de
gado. Na comunidade, há mais de 40 anos, é praticada a pesca do
camarão realizada por mulheres. A comunidade possui 78 casas e 87
famílias e de acordo com a colônia de pescadores e pescadoras Z-28,
atualmente 50 mulheres capturam camarão.
O trabalho da pesca do camarão é realizado pelas mulheres
na comunidade da Salvação. Em geral, o marido e os filhos ajudam
em algumas etapas do trabalho de pesca.A pesca sempre foi vista
como uma atividade exclusiva dos homens, porém, o papel da
mulher, não está mais restrito a criação dos filhos e atividades
domésticas. Segundo NODA (2000) como a unidade de consumo é a
família, é ela quem determina a quantidade e a forma – se caseira
ou não do trabalho necessário à manutenção familiar. Observou-se,
que a distribuição da divisão sexual do trabalho está centralizada na
mulher, o marido, os filhos e outros integrantes da família não tem
tarefas permanentes.

207
Figura 2-Seleção de camarão para a venda. Comunidade da Salvação-
Alenquer-Pa. Fonte: RODRIGUES, Christiane, 2015.
De acordo com as pescadoras entrevistadas, a pesca do
camarão ocorre o ano inteiro, porém existem meses que o
quantitativo de camarão é bem maior. Nesses períodos os valores
diminuem bastante, pois a oferta de camarão aumenta,
desvalorizando o preço absurdamente. Em setembro o prato do
camarão chega a custar R$ 4,00 (quatro reais). O camarão é pescado
o ano inteiro não existe um defeso da espécie. Os locais de pesca
variam de acordo com a sazonalidade das águas como mostra o
quadro abaixo realizado através de informações de entrevistas
realizadas com as pescadoras de camarão.
MÊS MAIO JUNHO JULHO AGOSTO
Cheia
PERÍODO SAZONAL Cheia Vazante Vazante
/vazante
Lago
Lago do Boca do
Macucáua Boca do
LOCAL DE PESCA Arrozal Remanso
Lago Remanso
Arrozal
Médio
QUANTITATIVO Safra Safra
Inicia a Safra/forte
CAMARÃO /médio /forte
Safra
Quadro-2: Quadro realizado através de informações de pescadoras
entrevistadas. Fonte: elaboração RODRIGUES, Christiane, 2015.
Apesar de o camarão ser pescado o ano inteiro, as
pescadoras realizam outras atividades em sua comunidade para

208
garantir o sustento da família. Ajudam os maridos na plantação de
mandioca, milho, melancia, criação de animais.
Grande parte das pescadoras da comunidade da Salvação
realizam multitarefas, tirando seu sustento da terra e da água. Por
exercerem várias atividades de trabalho, estas mulheres podem ser
consideradas pluriativas.
A pluriatividade é uma estratégia que o agricultor familiar
vem utilizando, combinando com atividades não agrícolas, que
podem ser artesanatos, atividades ligadas ao turismo, dentre outras
variedades (SILVA, 1997). Essa característica de trabalho não é algo
específico somente da comunidade da Salvação. A produção
doméstica na Amazônia tem por objetivo garantir o consumo dos
membros da família e, dessa sobrevivência e comercialização,
decorre a lógica da aplicação dos rendimentos do trabalho (LIMA,
1999). Nesse caso, os rendimentos oriundos de pequenas
plantações e da pesca.
Os apetrechos utilizados para a pesca do camarão são
denominados camaroeiras. Em geral, as pescadoras são
responsáveis pela fabricação da mesma, mas em algumas famílias,
os maridos e filhos ajudam também a confeccionar. O material
utilizado para fabricação é um arame liso ou vergalhão para fazer a
base circular da camaroeira e em seu entorno usa-se um tipo de
material que as pescadoras denominam de lona.

Figura 3-Apetrecho para a pesca do camarão na comunidade da


Salvação. Fonte: RODRIGUES, Christiane, 2015.

209
Algumas pescadoras entrevistadas relataram que já houve
outro tipo de camaroeira, mas foram substituídas. Primeiro,
utilizavam uma espécie de saco grande, depois usaram o Matapi (é
um tipo de armadilha feito com umas talas finas). As camaroeiras
duram em torno de 30 a 40 dias, quando a captura é intensiva.
Quando isso ocorre, então sua lona tem que ser substituída. O
material utilizado é de preço acessível, comprado nas lojas no
município de Alenquer.
As preparações das iscas ocorrem antes das pescadoras
ingressarem nas embarcações para se dirigem aos pontos de pesca.
As pescadoras utilizam ossos de acari assado, ossos de boi, ambos
misturados com um pouco de farinha de mandioca. Elas realizam a
mistura para as iscas em vasilhas de alumínio, então, umedecem
com água, até que se forme um tipo de mistura denominada de
pirão. Essa mistura é colocada dentro da camaroeira minutos antes
de colocar na água para captura do camarão. E há quem também
utilize, algumas vezes, a polpa de um fruto que as pescadoras
denominam de Castanha de Macaco (Couroupita guianensis). Esses
frutossãoretirados nos arredores da própria comunidade pelas
pescadoras ou por seus filhos mais velhos. O seu cheiro não é muito
agradável, favorencendo positivamnete na captura dos camarões,
pois o odor forte atrae mais crustáceos.
Durante a pesca as pescadoras trocam alegrias e tristezas de
suas labutas diárias. Repassam saberes aos seus filhos sobre
variados assuntos referentes a natureza e a própria vida. Portanto é
neste momento que são consolidadas e repassadas as práticas
pesqueiras por meio do vasto conhecimento empírico que as
pescadoras possuem do ecossistema, assim transmitindo valores e
práticas cotidianas para outras gerações por meio da oralidade.
A cultura está mergulhada e se reproduz num ambiente
onde predomina a transmissão oralizada. Ela reflete de forma
predominante a relação do homem com a natureza e se apresenta
imersa numa atmosfera em que o imaginário privilegia o sentido
estético dessa realidade cultural. Nesse sentido a relação do caboclo
ribeirinho com a água que atravessa seu cotidiano se torna de
210
importância vital para compreensão desse homem e do universo
que o habita. (FRAXE, 2010, p. 296).
A pesca do camarão é realizada pela manhã e a tarde.
Quando saem pela manhã vão a partir das 4 horas e somente
retornam depois do meio dia. No horário da tarde, em geral vão às 2
horas da tarde e somente retornam ao anoitecer, por volta das 18
horas. O transporte utilizado na pesca do camarão nas proximidades
da comunidade é a canoa, e nos lugares mais distantes usa-se a
66
rabeta. Em cada embarcação, em geral, vão duas pessoas, sendo
essas os filhos, parentes ou marido. Segundo, as pescadoras, o
melhor período para realização da pesca do camarão é de julho a
dezembro. Nos meses de janeiro a junho, apesar da escassez do
camarão, a pesca é constante.
A limpeza do camarão acontece logo que a pescadora chega
à comunidade. O camarão é lavado com limão ou vinagre, e em
seguida, colocado em uma panela com bastante sal para o
cozimento que é realizado no quintal das casas. De acordo com as
mulheres pescadoras entrevistas, durante o cozimento não precisa
colocar água, pois caso contrário, o camarão poderá estragar. O
próprio líquido extraído do camarão durante o cozimento é
suficiente para seu preparo.
São as mulheres que realizam o fogo para o cozimento do
camarão. A lenha utilizada para esse procedimento é estocada
embaixo dos assoalhos das casas, em geral, é encontrada na própria
comunidade. Quando a quantidade de camarão é pequena, a família
consome como complemento em suas refeições.
Em períodos de abundância de camarão (nos meses de
agosto, setembro, outubro) eles são cozidos com sal e depois
expostos ao sol por alguns dias. Então, são colocados em pequenos
sacos. Posteriormente, ocorre a 67“batida” dos camarões . As batidas

66
Embarcação de pequeno porte muito utilizada para a pesca do camarão
67
A batida do camarão é uma técnica realizada para retirar a casca do camarão . Os
camarões menores são colocados ao sol, e depois de estarem bem secos são
colocados em grande quantidade em uma saca de cebola e batidos com um
pedaço de pau , e aos poucos as cascas vão saindo .
211
são pancadas com um pedaço de madeira nos camarões dentro de
sacos para retirar as cascas. Esses camarões sem cascas tem um
valor maior no mercado. Para a quantidade de um quilo de
68
camarões batidos são necessários cinco quilos de camarão fresco.
Um quilo de camarão batido chega a custar dezoito reais.

Figura-4 batida de camarão. Fonte: RODRIGUES, Christiane, 2015.


A última etapa desse processo de produção é a venda, em
geral, realizada no município de Alenquer/PA. O tempo de percurso
da comunidade da Salvação até o município de Alenquer depende
do período sazonal. As mulheres na cheia saem da comunidade ás 3
horas da manhã, chegando em Alenquer às 5 horas da manhã em
embarcações de pequeno porte como bajara ou rabeta. Na seca elas
precisam sair à meia noite, chegando a Alenquer às 5 horas da
manhã. Os camarões vãos dentro de bacias de alumínio sem
nenhuma proteção. Quando elas chegam aos locais de venda aos
poucos vão ensacolando os outros produtos levados para vender ,
dentre eles; o cheiro verde, pimenta , couve, alface, milho.

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Camarões descascados sem cabeça.
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Figura-5 venda de camarão em Alenquer /Pará. Fonte: RODRIGUES,
Christiane, 2015.
A pescadora não tem um lugar cativo para venda do
camarão. Segundo, as pescadoras mais antigas, antigamente as
mulheres vendiam o camarão de porta em porta. Elas colocavam as
bacias nas cabeças e tinham que andar por horas em várias ruas do
município de Alenquer. Essas mulheres nunca tiveram um lugar fixo
para a venda de seus produtos. Hoje, elas ficam na Rua Getúlio
Vargas, fica bem próximo do porto do município de Alenquer. As
bacias cheias de camarão ficam em cima das calçadas da praça a
espera de um comprador. A sombra de uma única árvore ameniza
as manhãs de sol escaldantes. Além do camarão, também são
vendidos em porções como o tomate, castanha de sapucaia, cheiro
verde, maxixe, berinjela, feijão verde, e outros, mas tudo em
pequenas quantidades. O valor das verduras e do camarão é
combinado por elas antes das vendas. O camarão é vendido no
prato cheio. Atualmente, um prato cheio de camarão custa R$ 7,00
(sete reais), um prato equivale a um quilo mais ou menos. Os
camarões descascados, passados pela batida, uma sacola de um
quilo chega a custar R$ 18,00 (dezoito reais).

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Figura-6 prato de camarão para a venda. Fonte: RODRIGUES, Christiane,
2015.
Algumas pescadoras acham que essa atividade não é
central, caracterizam como um complemento para ajudar na
economia familiar, apesar de dedicarem mais de 10 horas no
trabalho da pesca do camarão. A falta de informação sobre os tipos
de arranjos produtivos e diversidades de atividades impedem a
mulheres de serem reconhecidas enquanto trabalhadoras de pesca,
é o que dificulta o processo de autoidentificação .(ALENCAR et. al.,
2015).
Há de se destacar que o papel do homem no trabalho da
pesca do camarão é de ajudante. Ele pilota a embarcação, constrói
apetrechos, ajuda a fazer o fogo para o cozimento do camarão, mas,
o trabalho da mulher, ainda sim, é autodenominado como ajuda.
Muito ainda precisa ser feito, principalmente quanto o
reconhecimento do trabalho da mulher pescadora de camarão nas
politicas públicas, pois os elaboradores dessas políticas entendem
que as mulheres não desempenham um papel relevante no
processo produtivo de pesca como mostrou o Decreto de Lei nº
8.524/2015.(ALENCAR et. al., 2015).

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As mulheres pescadoras de camarão estão inseridas em
uma realidade onde o seu trabalho não é valorizado, até mesmo por
elas mesmas. A busca por igualdade de gênero, e melhorias nas
condições de vida, parece estar muito distante. Mas, apesar das
dificuldades elas encontram forças para cada dia se reinventarem no
território em que vivem.
Enquanto existir a dominação de um ser sobre outro, essas
desigualdades serão frequentes, e assim, estará eliminado a
diversidade identitária desse território. Para Bourdieu (2010), a
dominação masculina está presente no inconsciente do ser humano,
impedindo que o homem enxergue a opressão gerada pela
dominação ao sexo oposto, este processo tende a se naturalizar e
sendo visto com algo impossível de modificação. Essa dominação
masculina, apontada por Bourdieu (2010) apesar de estar presente
no contexto das mulheres da Salvação elas continuam trabalhando
e, assim, transformações vão ocorrendo no seu modo de vida.
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Aqui estamos: entre as águas dos mares, águas dos rios, nas
terras de trabalho na pesca artesanal. Rio de Janeiro: LETRA
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