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15 de maio de 2018
Iniciemos com Nelson Martinelli Filho em seu romance Dupla Cena, publicado em 2010,
após ter sido selecionado no edital 007/2010 da Secretaria de Cultura do Espírito Santo.
No ano de publicação, o escritor estava em vias de terminar a graduação e iniciar, no
ano seguinte, seu mestrado, cuja pesquisa resultante discute confissão e autoficção em
outro escritor capixaba, Reinaldo dos Santos Neves: cujos alguns aspectos da escrita
são influência para Nelson. Recém-graduado, então, e certamente atento às discussões
contemporâneas acerca da constituição da subjetividade e de sua relação com a escrita
autoficcional, Martinelli escreve/publica um curto romance autoficcional que descreve a
ida de Miguel, Riomar e Benjamim, a tríade de personagens principais, a um evento
literário no Rio de Janeiro, experiência que durou dois dias, o tempo cronológico da
narrativa. Não é segredo que Benjamim (e essa relação é explicitada pelo texto de
orelha do livro), personagem do romance, faz referência a Lucas dos Passos, amigo de
graduação de Nelson. Este é chamado Miguel no texto literário. Ambos são
capitaneados por Riomar, correspondente literário para Wilberth Salgueiro, professor de
literatura da Universidade Federal do Espírito Santo, carioca que há muitos anos vive
em terras capixabas, estudioso de Grande sertão: veredas e de outras obras literárias.
Os três personagens moravam/moram no Espírito Santo, eram vinculados ao curso de
letras da Ufes, eram amigos: de curso, pessoais e de futebol. Riomar, flamenguista, e
Benjamim, tricolor, são apaixonados por futebol – fato verificável com as inspirações
reais para a construção dos personagens – enquanto Miguel deixa clara a sua
indiferença pelo esporte ou mesmo a aversão aos comportamentos muito apaixonados
dos amigos e de todos os outros personagens secundários. Um dos motes da escrita é
também narrar, de maneira engraçada e irônica, a sobrevivência em meio aos excessos
futebolísticos aos quais estava exposto Miguel.
A obra, cheia de tiradas e de muito bom humor, gira em torno de metáforas literárias,
futebolísticas, cariocas, capixabas, sempre regadas a muito chop e conversas e, claro!,
metalinguagens como cascas que se multiplicam e se dão à leitura. Há no romance
dezenas de referências a escritores, a obras literárias e a pensadores da teoria literária,
sejam eles lembrados, insinuados pelas metáforas ou mesmo personagens secundários
da narrativa. Para citarmos alguns exemplos dos trocadilhos martinellianos, observemos
caracterizações de Benjamim – nome escolhido talvez inspirado Walter Benjamin,
pensador muito referenciado pela tríade real, ou mesmo pela riqueza de possibilidade
de desdobramentos do eu, na terminação “mim” – referência a Lucas dos Passos, que
ecoam em algumas passagens brincalhonas que Nelson joga como iscas para
mordermos: “(...) desde que nos conhecemos só o vira a passos lentos, lentíssimos” (p.
19); “Prosdócimo Passos”, um amigo de muitos anos (p. 35); e “Benjamim trazia uma
xícara em cada mão, andando em passos milimétricos” (p. 49).
Há na obra, para além do nome do autor empírico, outros três Nelsons. O primeiro trata-
se de um autor referenciado rapidamente em sua poesia, Nelson Ascher; ou segundo,
trata-se de uma enominação errônea de Riomar ao marido de Caterina (chamado
Nelson por Riomar, mas cujo nome correto era Elson); e, o último e mais recorrente, é
outro personagem, engenheiro, que namorava Alyne, linda mulher sonhada por Miguel
(e a quem o autor dedica a obra). Este último Nelson, incômodo ao personagem
principal, aparece em vários pontos da narrativa faz parte de um sonho estranho que o
personagem-narrador teve e relatou, o que mostra como esse Nelson ficcional povoa a
mente de Miguel, todos frutos da experiência e inspiração de Nelson empírico. A relação
conflituosa com o Nelson engenheiro, assim, é uma das peças pregadas por nosso
escritor – e o que dizer destes fragmentos: “Dormi e não sonhei. Não sonhei com futebol,
nem com Nelson, nem comigo, nem com nada” (p.66); e “mesmo futuro engenheiro,
aquele Nelson poderia estar em meu lugar” (p. 76). Há ainda, para além dessa questão,
momentos em que o desdobramento de personalidade se vê também no momento em
que o narrador autodiegético se coloca em terceira pessoa: “respondeu Benjamim
enquanto Miguel virava a página do jornal” (p. 41).
É notório em seu breve texto que o colatinense apresenta de relance muitas de suas
fases biográficas. Delas extrai-se uma constante que pode ser vista na atitude, nos
comentários e nos gostos, mesmo os literários, de Bustamante Júnior: a militância, o
engajamento a que se propõe sendo ele um crítico astuto do sistema capitalista em suas
contradições, problemáticas e produções de miséria. É complicado e ao mesmo tempo
simples e prazeroso analisar uma escrita ainda não publicada e um autor que não tem
uma sólida biografia difundida para pesquisarmos. Por acreditar na escrita, no estilo, no
posicionamento político e no futuro literário de Paulo Bustamante que me lanço aqui a
apresentá-lo como uma das várias fases pelas quais o escritor-estudante certamente já
passou e há de passar pelas sendas das letras. A economia e ao mesmo tempo a
densidade do texto biográfico apresentado apontam para o olhar minimalista para
particularidades e para o interesse na coletividade, da qual Paulo é parte.
Vamos a um breve resumo dos contos. O primeiro, “Dei uma voadora no patrão”,
apresenta um narrador-personagem que, tendo sido humilhado pelo patrão na frente
dos colegas de trabalho (e isso não excluiu um pressuposto histórico de sofrimentos no
trabalho massacrante), dá-lhe uma voadora. Depois do feito, o personagem é bem visto
pelos colegas: “Ao sair da loja meus colegas me encaravam com respeito e admiração;
fiz o que muitos queriam ter feito. Era um herói, alçando méritos irrealizáveis e
quebrando a ordem a favor dos injustiçados” (p.1). Sua mulher, Mariluce, humilde, ouviu
a história “Ela riu Depois chorou” (p.2), como fez repetidas vezes diante das dificuldades
que se apresentaram aos personagens após a demissão do marido. A família é
constituída de Mariluce, seu marido e de tia Lurdes, que,, ao saber da notícia, lançou-
se ao seu ritual também: “beijou o santo em sinal de reprovação” (p.2). Tendo prometido
conseguir novo emprego a fim de pagar as contas e comprar uma máquina de lavar
para minimizar os sofrimentos de sua esposa Mari – que já trabalhava desde criança –,
o personagem sai, mas acaba permanecendo num jogo de bocha. Alternando entre
distraído de sua empreitada, com preguiçca de mover-se e focado em melhorar a vida
(principalmente de Mari que já havia passado por um casamento abusivo arranjado), o
personagem segue, é mais uma vez humilhado na entrega de um currículo e, ao final,
temos:
A caminho do morro, o bar do Seu Juquinha explodia num
alvoroço danado de gente, um senhor de chapéu me disse que
naquele dia acontecia o II Campeonato de Bocha do Bar do Seu
Juquinha. Entrei para acompanhar a movimentação, os coroas
do dia anterior estavam lá e me perguntaram se ia participar,
respondi que não, mas eu levava jeito, disseram, a premiação
era uma bufunfa boa e o valor da inscrição apenas quinze reais.
/ Cheguei em casa, depois da competição, contei a novidade pra
Mariluce. Ela riu. Depois chorou. Tia Lurdes beijou santo... (p. 5)
E ainda:
A principal hipótese de reflexão consiste em que, na
contemporaneidade, haveria uma presença recorrente de
narradores descentrados. O centro, nesse caso, é entendido
como um conjunto de campos dominantes na história social – a
política conservadora, a cultura patriarcal, o autoritarismo de
Estado, a repressão continuada, a defesa de ideologias voltadas
para o machismo, o racismo, a pureza étnica, a
heteronormatividade, a desigualdade econômica, entre outros.
O descentramento seria compreendido como um conjunto de
forças voltadas contra a exclusão social, política e econômica.”
(p. 201)