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15 - 31, 2007
RESUMO:
Neste ensaio, o autor procura explicar o processo da gentrificação, situando o fenômeno no quadro
mais amplo do desenvolvimento desigual da economia capitalista. Coloca em evidência, nesse sentido,
a articulação das diferentes escalas, as mudanças sociais recentes e os ciclos econômicos, fatores
que atuam na determinação da natureza, da forma assumida e dos limites do processo. Por fim, o
autor identifica tendências e obstáculos associados ao desdobramento futuro da gentrificação.
PALAVRAS-CHAVE:
gentrificação; fronteira; desenvolvimento desigual.
ABSTRACT:
In this essay the author tries to explain the process of gentrification, situating the phenomenon in
the broader scope of the uneven development in the space economy of capitalism. In this sense, he
puts in evidence the articulation of different scales, the recent social changes, and the economic
cycles; factors which act upon the determination of nature, the assumed form, and the limits of the
process. Finally, the author identifies tendencies and obstacles associated with the unfolding future
of gentrification.
KEY WORDS:
gentrification; frontier; uneven development.
Para Turner, a expansão da fronteira e
Em seu ensaio seminal “The significance o recuo da natureza virgem e da barbárie foram
of the frontier in American history”, escrito em uma tentativa de criar um espaço habitável a
1893, Frederick Jackson Turner (1958) escreveu: partir de uma natureza hostil e não cooperativa.
Isto compreendeu não apenas um processo de
O desenvolvimento americano exibiu não expansão espacial e a progressiva dominação
apenas um avanço sobre uma linha única, mas do mundo físico. O desenvolvimento da fronteira
um retorno a condições primitivas em uma linha sem dúvida realizou isto, mas para Turner este
de fronteira que avança continuamente, e um desenvolvimento também foi a experiência
novo desenvolvimento para aquela área. O central que definiu a singularidade da identidade
desenvolvimento social americano tem nacional americana. Em cada avanço do limite
reiniciado continuamente na fronteira... Neste externo realizado por pioneiros robustos, não
avanço, a fronteira é o limite externo deste apenas novas terras eram acrescentadas, mas
movimento – o ponto de encontro entre a novo sangue era inserido nas veias do ideal
barbárie e a civilização... O mundo selvagem tem democrático americano. Cada nova onda em
sido perpassado por linhas de civilização que são direção ao oeste, na conquista da natureza,
cada vez mais numerosas. devolve para leste ondas de retorno no sentido
etc” (Advisory Council on Historic Preservation, deve ser vista como uma base nacionalista para
1980:9). Ninguém, até o momento, propôs que a discussão da gentrificação. A experiência
James Rouse (o investidor americano australiana da fronteira, por exemplo,
responsável por muitos visíveis shoppings , certamente foi diferente da americana, mas
centros comerciais, mercados e galerias para também foi responsável (juntamente com a
turistas) fosse visto como o John Wayne 2 da importação da cultura americana) por produzir
gentrificação, mas a proposta estaria em uma forte ideologia da fronteira. E a própria
harmonia com muito da atual imagem retórica fronteira americana era tão intensamente real
da gentrificação. Por fim, e esta é a conclusão para imigrantes potenciais da Escandinávia ou
importante, a imagem de fronteira serve para Irlanda, quanto o era para imigrantes franceses
racionalizar e legitimar um processo de ou britânicos que viviam em Baltimore ou
conquista, tanto no caso do Oeste americano Boston.
nos séculos XVIII e XIX quanto no caso das
áreas centrais das cidades do século XX. A Entretanto, como em toda ideologia, há
imagem se apóia em muitos mitos, mas também um embasamento real, ainda que parcial e
tem uma base parcial na realidade. Parte da distorcido, para o tratamento da gentrificação
mitologia já foi sugerida, mas antes de como uma nova fronteira urbana. Nesta idéia
prosseguir para examinar a base realista da de fronteira, vê-se uma combinação evocativa
imagem de fronteira, gostaria de discutir um das dimensões econômica e espacial do
aspecto da mitologia da fronteira ainda não desenvolvimento. A potência da imagem de
considerado: o nacionalismo. fronteira depende da sutileza presente nesta
combinação do econômico com o espacial. No
O processo de gentrificação com o qual século XIX, a expansão da fronteira geográfica
estamos preocupados, aqui, é essencialmente nos EUA e em outros lugares foi também uma
internacional. Ele está ocorrendo na América do expansão econômica do capital. Contudo, o
Norte e em grande parte da Europa ocidental, individualismo social fixado e incorporado à idéia
assim como na Austrália e na Nova Zelândia, ou de fronteira é, em um aspecto importante, um
seja, nas cidades da maior parte do mundo mito; a linha de fronteira de Turner foi expandida
capitalista ocidental avançado. Apesar disto, em em direção oeste menos por pioneiros e
nenhum lugar o processo é tão pouco proprietários individuais do que por bancos,
compreendido quanto nos Estados Unidos, onde estradas de ferro, o Estado e outros
o nacionalismo americano presente na ideologia especuladores, e esses, por sua vez, venderam
de fronteira incitou um entendimento suas terras (com lucro) para empresas e famílias
provinciano da gentrificação. A experiência (ver, por exemplo, Swierenga, 1968). Nesse
original de fronteira anterior ao século XX não período, a expansão econômica foi realizada em
foi restrita aos Estados Unidos, mas sim parte por meio da expansão geográfica
exportada para o mundo todo; da mesma forma, absoluta, ou seja, a expansão da economia
embora não esteja em nenhum lugar tão significou a expansão da arena geográfica na
enraizada como está nos Estados Unidos, a qual a economia operava.
ideologia de fronteira também surge em outros
locais associada à gentrificação. A influência Hoje, o vínculo entre o desenvolvimento
internacional da experiência americana anterior econômico e geográfico persiste, conferindo à
de fronteira é repetida no caso do panorama imagem de fronteira sua atualidade, mas a forma
urbano do século XX; a imagem de gentrificação deste vínculo é bem diferente. No que diz
é, ao mesmo tempo, cosmopolita e paroquial, respeito à base espacial, a expansão econômica
geral e local. É geral em imagem, mas ocorre hoje não por meio da expansão
geralmente diferente nos detalhes. Por estas geográfica absoluta, mas pela diferenciação
razões, a crítica da imagem de fronteira não nos interna do espaço geográfico (N. Smith, 1982).
obriga a repetir o nacionalismo de Turner, e não A produção atual do espaço ou do
18 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 21, 2007 SMITH, N.
mutuamente excludentes. Autores que tentaram em operação são muito diferentes da realidade
incorporar mais de uma destas forças na Europa, Oceania ou América do Norte. Mas,
geralmente se contentaram em listá-las como igualmente, no interior das economias
fatores. Esta versão da “análise de fatores” é, desenvolvidas, há fortes disparidades
contudo, bastante desprovida de ambição. Todo regionais. Se Baltimore e Los Angeles estão
o problema da explicação reside não em ambas experimentando rápidas transformações
identificar fatores, mas em compreender a em suas economias espaciais, também se pode
importância relativa e a relação estabelecida afirmar que existem tantas diferenças quanto
entre os assim chamados “fatores”. Em parte, similaridades entre elas. Outras cidades, como
trata-se de uma questão de escala. Gary, em Indiana, podem estar sofrendo um
declínio inexorável e mínima reestruturação (no
Mas existe uma segunda questão de
lugar disso, uma contínua deterioração). Em
escala concernente aos níveis de generalidade.
resumo, há sobreposição de arranjos regionais
Aceitamos, aqui, que a reestruturação do
e internacionais que complicam as configurações
espaço urbano é geral, mas de forma alguma
urbanas. Embora dêem ênfase às causas gerais
universal. Que significa dizer isto? Significa, em
e ao pano de fundo da reestruturação urbana
primeiro lugar, que a reestruturação do espaço
contemporânea, as explanações oferecidas só
urbano não é, estritamente falando, um
poderão ter êxito na medida em que comecem
fenômeno novo. Todo o processo de crescimento
a esclarecer a diversidade das formas urbanas
e desenvolvimento urbano consiste em um
que resultam do processo, assim como totais
constante arranjo, estruturação e
exceções à regra aparente. Isto, de novo,
reestruturação do espaço urbano. O que é novo,
requer não uma “análise fatorial” (uma lista dos
hoje, é a intensidade em que esta
fatores), mas uma explanação integrada;
reestruturação do espaço se apresenta como
devemos esclarecer não apenas a localização,
um componente imediato de uma ampla
mas também a temporalidade desta profunda
reestruturação social e econômica das
transformação urbana. Mas talvez a distinção
economias capitalistas avançadas. Determinado
mais básica que surgirá é aquela entre as
ambiente construído expressa uma organização
tendências que são predominantemente
específica da produção e reprodução, do
consumo e da circulação, e conforme esta
responsáveis pela ocorrência da reestruturação
urbana e aquelas responsáveis pela forma que
organização se modifica, também se modifica a
o processo assume.
configuração do ambiente construído. A cidade
dos pedestres, afirma-se, não é a cidade do Os mais importantes processos
automóvel, mas de forma ainda mais responsáveis pela origem e pela forma da
significativa, talvez, a cidade do pequeno reestruturação urbana podem, talvez, ser
artesanato não é a metrópole do capital resumidos nos seguintes itens:
multinacional.
(a) a suburbanização e o surgimento de
A reestruturação geográfica da um diferencial de renda (rent gap);
economia espacial é sempre desigual; portanto,
(b) a desindustrialização das economias
a reestruturação urbana em uma região da
capitalistas avançadas e o crescimento do
economia nacional ou internacional pode não
emprego no setor de serviços;
ser acompanhada, tanto em qualidade ou
quantidade, natureza ou intensidade, por uma (c) a centralização espacial e simultânea
reestruturação em outra região. Isto é descentralização do capital;
imediatamente evidente na comparação entre
(d) a queda na taxa de lucro e os
partes desenvolvidas e subdesenvolvidas da
movimentos cíclicos do capital;
economia mundial. A estrutura básica da maioria
das cidades do Terceiro Mundo e os processos (e) as mudanças demográficas e nos
Gentrificação, a fronteira e a reestruturação do espaço urbano, pp. 15 - 31 21
do processo) é mais marcante nos EUA, onde o urbana o processo se mostra ainda mais
envolvimento do Estado tem sido menos marcante; a maior parte da expansão da
consistente e mais esporádico. capacidade industrial durante o boom do pós-
guerra não se instalou nas áreas mais centrais
Em um nível mais básico, é o
das cidades, o lugar tradicional da indústria
deslocamento do capital para a construção de
segundo o modelo de Chicago de estrutura
paisagens suburbanas e o conseqüente
urbana, mas se localizou em áreas suburbanas
surgimento de um rent gap o que cria a
e periféricas. O resultado disto foi um período
oportunidade econômica para a reestruturação
de desinvestimento sistemático na produção
das áreas urbanas centrais. A desvalorização
industrial urbana que data, no caso de algumas
da área central cria a oportunidade para a
cidades britânicas, mesmo de antes da I Guerra
revalorização desta parte “subdesenvolvida” do
Mundial (Lenman, 1977). E isto ocorreu apesar
espaço urbano. A realização efetiva do processo
de ter havido um aumento na produção
e a determinação de sua forma específica
industrial global da economia do Reino Unido,
incluem os outros itens listados acima.
mesmo depois da II Guerra.
A conseqüência desta
Desindustrialização e o crescimento da
desindustrialização é o crescimento do emprego
economia terciária*
em outros setores da economia, especialmente
daquelas ocupações que têm sido definidas,
Associado à desvalorização do capital
imprecisamente, como de colarinho branco ou
investido nas áreas centrais está o
de serviços. No interior destas categorias
enfraquecimento de certos setores econômicos
amplas, muitos tipos de empregos diferentes
e usos do solo em comparação com outros. Isto
estão incluídos: desde empregos em escritórios,
é resultado, essencialmente, de amplas
serviços de comunicação e varejo até carreiras
transformações na estrutura econômica. As
profissionais, de gestão e de pesquisa. No
economias capitalistas avançadas (a grande
âmbito deste movimento abrangente em direção
exceção sendo o Japão), em particular, têm
a um crescimento da força de trabalho no setor
experimentado um início de uma
de serviços, portanto, existem tendências muito
desindustrialização, ao passo que houve uma
diversificadas, cada qual com expressões
paralela (ainda que parcial) industrialização de
espaciais específicas, como veremos mais
certas economias do Terceiro Mundo. A partir
adiante. Por si só, os processos de
dos anos 1960, a maioria das economias
desindustrialização e crescimento do emprego
industriais tiveram redução na proporção de
nos serviços não explicam, de modo algum, a
trabalhadores empregados nos setores
reestruturação dos centros urbanos. Na
industriais (Blackaby, 1978; Harris, 1980, 1983;
verdade, esses processos ajudam a explicar, em
Bluestone and Harrison, 1982). Mas muitas
primeiro lugar, os tipos de estoques de edifícios
áreas urbanas começaram a sofrer os efeitos
e usos do solo envolvidos no desenvolvimento
da desindustrialização muito antes das últimas
do rent gap e, em segundo lugar, os novos usos
duas décadas. Assim, o crescimento da
do solo que devem surgir quando houver a
indústria, em escala nacional, desde a II Guerra
oportunidade para o redesenvolvimento.
Mundial, foi bastante assimétrico entre as
Portanto, embora a ênfase da mídia tem sido
regiões. Enquanto em algumas regiões, tais
na gentrificação recente e na renovação de
como a Midlands Ocidental e o sudoeste da
habitações da classe trabalhadora, também
Inglaterra, ou como muitos dos estados do sul
ocorreu considerável transformação de uso em
e sudoeste dos EUA, houve um rápido
antigas áreas industriais. Isto não começou com
crescimento da indústria moderna, outras
a conversão de antigos armazéns industriais em
regiões sofreram um desinvestimento relativo
finos lofts; muito mais significativo foi a anterior
do capital investido na indústria. Na escala
atividade de renovação urbana que, embora
Gentrificação, a fronteira e a reestruturação do espaço urbano, pp. 15 - 31 23
como sedes de empresas. As explicações empresas, e isso, por sua vez, exige um contato
tradicionais punham em evidência a importância próximo e imediato com uma série de sistemas
do contato face a face. No entanto, embora a de apoio profissionais e administrativos, assim
explicação baseada na necessidade do contato como com empresas concorrentes. Nesse setor,
visual comece a identificar as questões e de formas múltiplas, o clichê “tempo é
relevantes, ainda é muito genérica. Esta dinheiro” realiza-se de forma intensa (sobre a
explicação tende a evocar um certo relação tempo e juros, ver Harvey, 1982:258).
sentimentalismo em relação ao contato visual, Menos comumente enunciada é a conseqüência
mas podemos ter certeza de que nenhum de que o espaço também é dinheiro: a
sentimentalismo pode explicar a concentração proximidade espacial reduz os tempos de
de arranha-céus nos distritos centrais de decisão quando o sistema de decisão é
negócios (CBDs) contemporâneos. Por trás suficientemente irregular a ponto de não poder
deste sentimentalismo encontra-se uma ser reduzido à lógica de rotina do computador.
justificativa mais utilitária para o contato O regime temporal anárquico da tomada de
pessoal, e isso envolve as diferentes formas de decisões financeiras na sociedade capitalista
administração do tempo nos diferentes setores requer uma certa centralização espacial. Não se
da produção e circulação total do capital. trata apenas do fato de que os executivos se
Resumidamente, na fábrica industrial e nas sintam mais seguros quando enlatados como
fábricas de comunicação, o sistema em si (seja sardinhas em arranha-céus repletos de
o maquinário, seja a agenda administrativa) parceiros e concorrentes. Na verdade, eles estão
determina os ritmos diários, semanais e mensais mais seguros na medida em que a rápida
do processo de trabalho. Mudanças tomada de decisões requer contato direto,
significativas nesta estabilidade de longo prazo informação e negociação. Quanto mais a
advêm ou de decisões externas ou de rupturas economia mostra-se propensa a crises, e,
internas periódicas como greves, falhas portanto, à administração de crises de curto
mecânicas ou falhas de sistema. A regularidade prazo, mais se pode esperar das sedes de
temporal destes sistemas de produção e empresas uma busca por segurança espacial.
administração, além do fato de dependerem de Juntamente com a expansão per se do setor e
qualificações prontamente disponíveis na força com o movimento cíclico do capital investido no
de trabalho e de facilidades de transporte e ambiente construído, esta resposta espacial à
comunicação com atividades auxiliares, torna a irregularidade temporal e financeira ajuda a
suburbanização uma decisão racional. Estas explicar o recente boom na construção de
atividades têm pouco a ganhar ao se instalarem escritórios nas áreas centrais. “Colarinho
nas áreas centrais e, com os elevados aluguéis, branco” é um conceito visivelmente “caótico”
teriam muito a perder. (Sayer, 1982) com dois componentes distintos,
cada qual possuindo uma expressão espacial.
Mas o ritmo temporal da administração
Enquanto que na cidade pré-capitalista
superior da economia e de suas diversas
foram as necessidades da troca mercantil que
unidades corporativas não é estável e regular
ditaram o movimento de centralização espacial,
desta maneira, para o desgosto dos
e na cidade industrial capitalista foi a
administradores e executivos. Alterações nas
aglomeração do capital produtivo , na cidade
taxas de juros e nos preços das ações, acordos
capitalista avançada são os ditames financeiros
financeiros, negociações trabalhistas e socorros
e administrativos que perpetuam a tendência à
financeiros (bailouts), transações internacionais
centralização. Isto ajuda a explicar por que
no mercado de câmbio e no mercado de ouro,
certas atividades chamadas de serviços são
contratos comerciais, o comportamento
centralizadas e outras são suburbanizadas, e
imprevisível dos governos e dos competidores
por que a reestruturação das áreas centrais
– todas estas atividades podem exigir uma
assume esta forma corporativa/profissional.
rápida resposta por parte dos gestores de
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A queda da taxa de lucro e o movimento cíclico no período posterior à II Guerra Mundial foram
do capital iniciados e conduzidos pelo Estado e, embora
não sem relação com o surgim ento dorent gap,
Tendo em vista, então, a natureza eles não podem ser explicados de forma
espacial do processo, como podemos explicar o adequada apenas nestes termos econômicos.
momento específico desta reestruturação Contudo, a função da renovação urbana foi
urbana? Esta questão depende do momento preparar o caminho para a futura reestruturação
histórico do rent gap e do retorno espacial do que surgiria nos anos 60 e se tornaria mais
capital para a área central. Longe de serem visível nos anos 70. Em termos econômicos, o
acontecimentos fortuitos, esses eventos são Estado absorveu os riscos iniciais associados à
parte integrante do ritmo mais amplo da gentrificação, como no caso da Society Hill, na
acumulação de capital. Em um nível mais Philadelphia, que era um projeto de renovação
abstrato, o rent gap resulta da dialética dos urbana propriamente dito. O Estado também
padrões espaciais e temporais do investimento revelou ao capital privado a possibilidade de
de capital; mais concretamente, é o produto reestruturação em larga escala das áreas
espacial dos processos complementares de centrais, pavimentando o caminho para
valorização e desvalorização. investimentos futuros de capital.
A acumulação de capital não ocorre de
O momento desta reestruturação
forma linear; trata-se de um processo cíclico
espacial, portanto, está intimamente
formado por períodos de expansão e períodos
relacionado à reestruturação econômica que
de crise. O rent gap se desenvolve durante um
ocorre durante as crises econômicas, como
longo período de expansão econômica, mas uma
aquelas que a economia mundial experimentou
expansão que se dá em outro lugar. Portanto,
a partir do início dos anos 1970. Uma economia
a valorização do capital na construção dos
reestruturada compreende um ambiente
subúrbios do pós-guerra ocorreu paralelamente
construído reestruturado. Mas não há transição
à desvalorização do capital investido nas áreas
gradual para uma economia reestruturada; a
centrais. Mas a acumulação de capital durante
última crise econômica encontrou solução
este período de crescimento leva a uma queda
somente após uma destruição gigantesca de
na taxa de lucro que começa nos setores
capital na II Guerra Mundial, representando uma
industriais, e que conduz, em última instância,
desvalorização cataclísmica de capital e uma
às crises (Marx, 1967 edn, vol. III). Como um
destruição que antecede uma reestruturação do
meio de afastar a crise, ao menos
espaço urbano. Hoje, 50 anos mais tarde, nos
temporariamente, o capital é retirado da esfera
defrontamos novamente com a mesma ameaça.
industrial e, como mostrou Harvey (1978, 1982),
há uma tendência ao capital ser deslocado para
a produção do ambiente construído, onde as
Mudanças demográficas e padrões de consumo
taxas de lucro permanecem mais altas e onde é
possível, através da especulação, a apropriação O envelhecimento da geração baby-
de renda da terra, apesar de nada ser boom, o elevado número de mulheres
produzido. Duas coisas se unem, então: no final construindo carreira, a proliferação de famílias
de um período de expansão no qual o rent gap com uma ou duas pessoas e a popularidade do
surge e cria a oportunidade para o estilo de vida “solteiro urbano” são comumente
reinvestimento, há uma tendência simultânea considerados como os fatores que estão por
do capital em buscar uma saída no ambiente trás da gentrificação. Em harmonia com a
construído. ideologia de fronteira, o processo é visto aqui
como o resultado de escolhas individuais. Mas
A remoção de cortiços e os projetos de
na verdade, esta explicação não é suficiente.
renovação urbana em muitas cidades ocidentais
Estamos assistindo a uma reestruturação
Gentrificação, a fronteira e a reestruturação do espaço urbano, pp. 15 - 31 27
da área. Isto fica evidente na exploração do classe trabalhadora das áreas centrais. Assim
simbolismo artístico da área na publicidade como firmes enclaves de habitações de classe
imobiliária agressiva. média alta subsistiram nas áreas centrais
amplamente habitadas pela classe
trabalhadoras durante os anos 1960 e 1970,
Direção e limites da reestruturação urbana
enclaves de comunidades da classe trabalhadora
também permanecerão. De fato, estas
Se a reestruturação que se iniciou
comunidades terão sua função na medida em
prosseguir em sua atual direção, então podemos
que os equipamentos e os serviços da área de
esperar mudanças significativas na estrutura
recreação burguesa requerem uma população
urbana. Por mais preciso que o modelo de
trabalhadora. A comparação – e o contraste –
Chicago da estrutura urbana tenha sido, existe
com a África do Sul é instrutiva a este respeito
um consenso de que ele não é mais pertinente.
(Western, 1981).
O desenvolvimento urbano superou o modelo.
A conclusão lógica da atual reestruturação, que A alternativa oposta (de que as áreas
permanece hoje incipiente, seria um centro centrais prosseguiriam em seu declínio absoluto
urbano dominado por funções executivas, em direção a um abandono amplo) pode ser
financeiras e administrativas de alto nível, viável apenas nos Estados Unidos. E elaé, de
habitações para a classe média e classe média fato, uma possibilidade para algumas cidades
alta, e um complexo de hotéis, restaurantes, nos EUA. Na medida em que a reestruturação
cinemas, lojas e espaços de cultura oferecendo do centro depende de uma contínua
lazer a esta população. Em resumo, poderíamos concentração e recentralização de funções
esperar a criação de uma área de recreação econômicas de controle, pode-se esperar que
burguesa, a Manhattanização social da área isto ocorra com intensidade em centros
central para combinar com a Manhattanização nacionais e regionais. Mas a situação é menos
arquitetônica que prenunciou a estrutura de evidente no caso de cidades industriais
empregos em transformação. A provável menores, como Gary, em Indiana, onde as
conseqüência disto é um deslocamento funções administrativas e financeiras
substancial da classe trabalhadora para os associadas às indústrias da cidade estão
subúrbios mais antigos e para a periferia localizadas em outro lugar. Detroit fornece um
urbana. exemplo ainda mais significativo, porque a
suburbanização dos escritórios atingiu não
Isto não pode ser entendido, como
apenas os “back offices”, mas muitas das sedes
seguidamente o é, como um indício de que o
corporativas, e os consideráveis esforços de
processo de suburbanização está se
recentralização, através do Renaissance Center
encaminhando para um fim. Ao contrário, a
inspirado em Ford, ainda não atraíram quantia
agitação, durante os anos 1970, em torno do
substancial de capital para o centro de Detroit.
assim chamado “crescimento não-
metropolitano” nos EUA representa menos uma Não há, também, muito sentido em
reversão dos padrões de urbanização duvidar de que a rápida desvalorização do
estabelecidos (Berry, 1976; Beale, 1977) do que capital investido no ambiente construído das
um prosseguimento da expansão metropolitana áreas centrais prosseguirá, apesar do início de
muito para além dos limites estatísticos um reinvestimento. Na atual crise econômica,
estabelecidos (Abu-Lughod, 1982). Não há muito com altas taxas de juros, não são apenas as
sentido em supor que a suburbanização não novas construções que são adversamente
será mais ampla do que nunca, caso venha a afetadas. As mesmas forças provocam uma
ocorrer um outro período de forte expansão redução do capital investido na manutenção e
econômica. Também não deve ser vista, esta reparo dos edifícios existentes, e a conseqüente
configuração, como uma exclusão absoluta da desvalorização levará a uma expansão do “vale
Gentrificação, a fronteira e a reestruturação do espaço urbano, pp. 15 - 31 29
Notas
1
Fonte: Smith, N. Gentrification, the Frontier, and 5
O autor utiliza a expressão “white-collar economy”,
the Restructuring of Urban Space. In: Readings
literalmente “economia de colarinho branco”. Por
in Urban Theory edited by Susan S. Fainstein and
se tratar de uma expressão de uso incomum no
Scott Campbell (Cambridge, Massachusetts:
português, preferimos traduzir por “economia
Blackwell Publishers, 1996)
terciária”. N.T.
2
John Wayne (1907-1979) foi ator de cinema e fez 6
Original “white-collar employment”. N.T.
fama em filmes de faroeste.N.T.
7
Expressão já utilizada no vocabulário dos negócios
3
A Wells Fargo é uma instituição financeira
para se referir às funções mais rotineiras de
estadunidense que esteve envolvida com a
administração na divisão do trabalho no interior
“corrida pelo ouro” na Califórnia, durante o século
das empresas. N.T.
XIX (naquela época atuava, além do ramo
financeiro propriamente dito, no ramo de 8
“Co-op ”, em inglês, designa um apartamento
transporte, principalmente administrando linhas adquirido em regime de cooperativa, em muitos
férreas). A instituição conserva o mesmo nome casos em edifícios de padrão elevado (o morador
(e um poder imenso) até hoje, depois de múltiplas se torna membro da cooperativa proprietária do
aquisições e fusões. N.T. edifício). N.T.
4
Aqui é provável que o autor queira se referir à 9
No original “land value valley”. N.T.
fronteira do século XIX, como aparece ao longo
do texto, e não do século XX. N.T.
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