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Parcial Bruno Shimizu PDF
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Ficha catalográfica
Shimizu, Bruno.
O mal estar e a sociedade punitiva : ensaiando um modelo
libertário em criminologia psicanalítica / Bruno Shimizu. --
2015.
360 f.
Orientador: Alvino Augusto de Sá
Tese (doutorado) - Universidade de São Paulo,
Faculdade de Direito. Programa de Pós-Graduação em Direito,
2015.
1. Criminologia. 2. Psicanálise. 3. Abolicionismo penal.
4. Sigmund Freud. 5. Sistema penal. I. Sá, Alvino Augusto de,
orient. II. Título.
2
RESUMO
Palavras-chave:
criminologia – psicanálise – abolicionismo penal – Sigmund Freud – sistema penal
3
SHIMIZU, Bruno. The punitive society and it's discontents: rehearsing a libertarian model of
psychoanalytic criminology. 360p. Doctorate. Faculty of Law, University of São Paulo, São
Paulo, 2015.
SUMMARY
This thesis aims to develop a libertarian model in psychoanalytic criminology, seeking a link
between the psychoanalytic criminology and the criminological paradigm of social reaction.
Thus, the thesis aims to built a psychoanalytic criminology that, instead of questioning about
what drives a person to commit the crime, linking crime and psychopathology, puts its
theoretical tools in service of the deconstruction and the delegitimization of the punitive
system. Moreover, the thesis addresses properly clinical subjects, tracing referrals to the
constitution of a "psychoanalytic clinic of vulnerability", aimed at providing the empowerment
of the individual before the punitive system. Therefore, the thesis makes a review on the works
of Sigmund Freud and his immediate disciples, in order to demonstrate that the criminological
model that legitimates punishment is inconsistent with Freudian psychoanalysis. Based on this
findings and placing the challenges embodied in the advent of the paradigm of social reaction,
the thesis traces referrals to the instrumentalization of psychoanalysis toward the critic of
institutional punitive practices.
Key-words:
criminology – psychoanalysis – penal abolitionism – Sigmund Freud – penal system
4
RESUMÉ
Mots-clés:
criminologie – psychanalyse – abolitionnisme pénale – Sigmund Freud – système pénal
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AGRADECIMENTOS
Agradeço aos professores Sérgio Salomão Shecaira, Paulo Cesar Endo, Alamiro
Velludo Salvador Netto, Ana Lúcia Sabadell, Miriam Debieux Rosa e Sylvia Leser de Mello,
todos presentes de alguma forma durante a pós-graduação.
Agradeço aos companheiros e amigos da academia e dos movimentos sociais que ainda
se colocam à disposição para a resistência contra a barbárie institucionalizada, parceiros na
luta contra o sistema punitivo.
Agradeço ao querido amigo André, pela atenta leitura crítica do texto e por seus
valiosos comentários.
Agradeço, por fim, aos funcionários das bibliotecas do Ibccrim, da FDUSP, da FFLCH
e do IPUSP, pelo auxílio inestimável a esta pesquisa.
6
(Freud, 1923/1996)
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................... 11
3.2. Barbárie e gestão das punições: notas sobre o mal estar, a política e o
sistema penal.......................................................................................... 276
CONCLUSÕES................................................................................................................... 325
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................ 331
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INTRODUÇÃO
Sigmund Freud, aliás, debruçou-se sobre a questão penal com certa profundidade em
“Totem e Tabu”, afirmando que “os primeiros sistemas penais humanos podem ser remontados
ao tabu” (FREUD, 1913/1996, p. 38). Assim, apesar de não ter escrito nenhum texto que tivesse
como objeto central a criminologia, a proficuidade de suas incursões sobre o tema permitem
afirmar que a fundação da criminologia psicanalítica deu-se com o próprio Freud.
Nesse sentido, cita-se, por exemplo, o texto em que Freud analisa, como um dos tipos
de caráter encontrados no trabalho psicanalítico, o “criminoso em consequência de um
sentimento de culpa” (Freud, 1916/1996, pp. 347-348). Também em “O ego e o id”, Freud
volta a mencionar a relação entre o sentimento de culpa e a conduta criminosa (Freud,
1923/1996a, p. 65):
“Constituiu uma surpresa descobrir que um aumento nesse sentimento de culpa Ics.
[inconsciente] pode transformar pessoas em criminosos. Mas isso indubitavelmente é um
fato. Em muitos criminosos, especialmente nos principiantes, é possível detectar um
sentimento de culpa muito poderoso, que existia antes do crime, e, portanto, não é seu
resultado, mas sim o seu motivo. É como se fosse um alívio poder ligar esse sentimento
inconsciente de culpa a algo real e imediato”.
1
Sobre os fundamentos da escola positiva da criminologia, também denominada antropologia criminal italiana,
cf., sobretudo, o grande livro de Cesare Lombroso (2007), “O homem delinquente”.
13
Por essa razão, as articulações entre criminologia e psicanálise acabaram por sofrer um
colapso no curso da segunda metade do século XX, ao menos no meio acadêmico, tendo-se
em vista que a adoção do paradigma da rotulação social passou a promover uma alteração
estrutural do objeto de enfoque da criminologia.
Assim, ainda que, na prática da execução penal, as teorias psicanalíticas ainda sejam
usadas como suporte para o fazer do criminólogo clínico, o advento de um novo olhar sobre a
sociologia do desvio acabou por colocar em xeque a pertinência de se investigar a psique do
criminoso enquanto tal, trazendo um problema paradigmático ao próprio objeto de estudo da
criminologia.
um ato desviante por suas características intrínsecas, mas pela atribuição dessa qualidade que
lhe é conferida pelo entorno social (Becker, 1997, p. 9).
“delitivo ou desviado é aquilo que se define como tal pela comunidade ou pelos órgãos do
sistema de Administração da Justiça. A chave para que algo seja delitivo, portanto, não
reside tanto em suas características intrínsecas, mas no etiquetamento que dele se faça”
(idem, ibidem).
A adoção dos preceitos da rotulação social pela criminologia, portanto, gerou uma
viragem paradigmática quanto ao seu objeto de estudo. Se o delito não é um ato
15
ontologicamente desviante, não faz sentido que se busque a etiologia da conduta por meios e
métodos diferenciados daqueles empregados comumente pelas “ciências da psique” ao
analisarem atos e indivíduos que não sejam rotulados como criminosos.
É certo, diga-se, que a viragem à qual se refere não exclui a coexistência do paradigma
tradicional, de cerne etiológico, por grande parte da literatura nos tempos atuais. Assim como
qualquer outra ciência humana, não há que se falar em consenso quanto à adoção de um ou
outro paradigma na criminologia. O fato é, contudo, que a produção acadêmica recente na área
não poderá desconsiderar o paradigma da reação social, sob pena de constituir-se como
discurso meramente legitimante das práticas de violência institucional.
Ocorre que o paradigma da reação social coloca em xeque a aplicação das “ciências da
psique” no âmbito da criminologia. Posto que se reconheçam os méritos da criminologia
psicanalítica da primeira metade do século XX, especialmente por ter rompido com a
dicotomia entre crime e normalidade, essa linha de pesquisa criminológica acabou relegada,
pelos autores críticos, à “vala comum” da criminologia tradicional, que busca no íntimo do
indivíduo as razões pelas quais se tornou (ou mesmo nasceu) criminoso.
Nesse sentido, vale citar a avaliação da criminologia psicanalítica feita por Baratta
(1999, p. 57):
16
Pois bem. É a partir desse impasse que se constroi a presente investigação teórica,
tendente a buscar formas de convergência entre a psicanálise e a criminologia de orientação
libertária. Por criminologia de viés libertário, entendemos uma aproximação teórica não
comprometida em legitimar o exercício do poder punitivo.
É certo que a extensa obra psicanalítica de Sigmund Freud inicia-se a partir da análise
de casos clínicos, por meio das narrativas do tratamento, pelo método de livre associação, das
“histéricas vienenses” (Freud, 1895/1996), o que poderia justificar que a criminologia
psicanalítica se compusesse como um saber voltado para o indivíduo em detrimento do seu
meio.
Ocorre que, tendo atravessado em vida uma das grandes guerras mundiais e o início da
outra, assim como o declínio do otimismo da “Belle Époque”, Freud expandiu imensamente,
ao longo de sua produção, o espectro de interesses sobre os quais a psicanálise recairia. Nesse
sentido, a última grande obra de Freud debruça-se sobre o sistema religioso judaico-cristão
(1939/1996), extravasando muito o interesse exclusivamente clínico.
das as estruturas sociais e a psique. São assim, recepcionados e apropriados por diversos
autores da filosofia e das ciências sociais.
2
Nesse sentido, em “Psicologia das massas e análise do ego”, Freud nega a dicotomia entre psicologia individual
e psicologia social, afirmando que o que conforma a psicologia individual é, justamente, a introjeção de modelos
e as relações que se estabelecem entre o indivíduo e as pessoas de seu entorno desde tenra idade. Em outras
palavras, carece de sentido uma tentativa de separação rígida entre o individual e o coletivo em psicologia, uma
vez que não há psicologia individual sem a existência do outro (Freud, 1921/1996, pp. 81-82).
3
O mito do pai da horda, exposto em “Totem e tabu” (Freud, 1913/1996), será objeto deste trabalho em seu
primeiro capítulo.
18
indivíduo no plano social vem da adesão à culpa fundamental, derivada do crime originário e
repetida na história individual por meio do complexo de Édipo.
4
A rigor, não seria apenas no âmbito da civilização que a felicidade seria impossível. Em “O mal-estar na
civilização”, Freud (1930/1996) postula que a busca infrutífera pela felicidade seria algo ínsito à própria
condição humana. Freud entende a felicidade como a realização do “programa do princípio do prazer” (idem, p.
84). Tal feito, contudo, coloca-se como tarefa inexequível, tendo-se em vista que a existência humana dá-se em
meio a um ambiente hostil, onde as intempéries, os limites do corpo e as relações sociais são causas constantes de
sofrimento. Nesse sentido: “Como vemos, o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do
princípio do prazer. Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Não pode haver
dúvida sobre sua eficácia, ainda que o seu programa se encontre em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o
macrocosmo quanto com o microcosmo. Não há possibilidade alguma de ele ser executado; todas as normas do
universo são-lhe contrárias. Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha
incluída no plano da ‘Criação’” (idem, ibidem). Logo, o que Freud postula é que a busca pela felicidade não seria
mais que uma expectativa irrealística de retorno a um “sentimento oceânico” (idem, p. 73), entendido como etapa
inicial do psicodesenvolvimento, no qual o bebê recém-nascido não teria desenvolvido a percepção de
diferenciação entre si próprio e o mundo. O confronto com as hostilidades externas e internas forçaria a criança à
adesão ao princípio da realidade, desenvolvendo a capacidade de postergação da satisfação do próprio desejo em
nome da evitação de uma dor maior. Contudo, essa fase do narcisismo primário ficaria registrada no plano
inconsciente, fornecendo uma possível explicação para a incessante busca por uma felicidade inatingível. A
civilização, por seu turno, consistiria em uma tentativa frustrada de construção de uma felicidade, trazendo algum
alívio paliativo pra o mal-estar, mas produzindo outras formas de mal-estar, eis que sua construção encontra-se
permeada pela culpa e pela pulsão de morte. Para uma investigação mais profunda acerca do estatuto da
felicidade na obra freudiana, cf. Inada (2011).
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Nesse sentido, o sistema penal pode ser enxergado como um aparato tendente ao
manejo da culpa no nível social, fabricando culpados e favorecendo a projeção do mal sobre
os indivíduos que tradicionalmente constituem a clientela preferencial do sistema repressivo.
“...o sistema penal fabrica culpados, na medida em que seu funcionamento mesmo se
apóia na afirmação da culpabilidade de um dos protagonistas, pouco importando a
compreensão e a vivência que os interessados tenham da situação. (...). Quando o sistema
penal se põe em marcha, é sempre contra alguém, a quem a lei designa como culpável
para que seja condenado”.
Retomando-se a ideia posta por Freud (1913/1996, p. 38), que será exposta em mais
detalhes no primeiro capítulo, segundo a qual os sistemas penais humanos remontam ao tabu,
é possível transferir-se à punição penal as observações de Freud sobre a necessidade sentida
pela sociedade em punir aquele que violou o tabu, mantendo-se em equilíbrio uma “economia
dos desejos e da agressão” no seio social, às custas do sacrifício do condenado, ora entendido
como vítima expiatória.
O enfoque nos “textos sociais” de Freud, a par dos textos clínicos, tem o condão de
fugir do paradigma etiológico individualista tradicional, enxergando na psicanálise uma
ferramenta possivelmente emancipadora que, ao revés de categorizar anormalidades e
legitimar intervenções repressoras, foca-se na sociedade punitiva como objeto de estudo e
crítica. Na dicção de Carvalho (2008, p. 212): “O espaço de diálogo criado entre os discursos
da criminologia e da psicanálise possibilita, portanto, a transvalorização dos valores morais
que sustentam a cultura punitiva contemporânea”.
A partir desse olhar deslegitimante da punição, como se verá, poderá ser possível,
inclusive, a proposição de um novo lugar para a clínica na seara da criminologia: uma
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A pesquisa terá como primeira meta, a ser perseguida capítulo inaugural, a discussão e
delimitação do próprio tema e a revisão bibliográfica das principais aproximações entre
criminologia e psicanálise. Nesse sentido, sendo necessário que se faça um corte
metodológico, não serão enfrentadas as aproximações entre criminologia e psicanálise
derivadas da obra de autores considerados pós-freudianos, restringindo-se a pesquisa ao
pensamento de Freud e de seus seguidores primeiros e diretos, que não introduziram grandes
modificações estruturais em seu pensamento6.
A rigor, o primeiro capítulo terá como norte o aprofundamento das incursões de Freud
sobre o tema, a fim de que se perceba que a hipótese libertária que ora se pretende construir
nada mais representa que uma exploração da vocação libertária e insubmissa que já constava,
ao menos como um elemento latente, de seus escritos. Ainda, serão analisadas as principais
linhas das obras pertinentes ao tema dos primeiros autores a ocuparem-se da matéria depois de
Freud: Aichhorn, Alexander e Staub, Reik e Ferenczi.
6
Para que o leitor possa ter uma noção dos encaminhamentos da criminologia psicanalítica dados pelos autores
considerados pós-freudianos, no seio da “escola inglesa”, remete-se aos dois artigos de Melanie Klein sobre o
tema (1996 e 1996a), bem como à coletânea de artigos de Winnicott (2005) sobre as realações entre privação
emocional e delinquência. No âmbito da “escola francesa”, indicam-se dois artigos sobre criminologia
psicanalítica redigidos por Jacques Lacan (1998 e 2003), bem como aos trabalhos de Daniel Lagache (1993).
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A pesquisa será realizada, ainda, desde uma perspectiva interdisciplinar. Desse modo,
partir-se-á de conceitos oriundos da psicanálise a fim de que se possam criar propostas de
leitura acerca do direito, do processo e da política criminal. No mais, pode-se,
7
Este autor, em sua pesquisa em nível de mestrado, empenhou-se em tentativa similar, valendo-se dos achados e
postulados psicanalíticos para uma tentativa de compreensão e de desenvolvimento de encaminhamentos político-
criminais no eu toca ao fenômeno das facções criminosas brasileiras. O resultado dessa pesquisa, em relação à
qual o presente trabalho pode ser visto como uma continuação e um aprofundamento, pode ser lido em Shimizu
(2011a).
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incidentalmente, recorrer ao método dedutivo nas exegeses de textos legais que se fizerem
necessárias.
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CONCLUSÕES
“Eu não quero quebrar muito a cabeça a respeito do bem e do mal, mas, em média, só
descobri muito pouco bem entre os homens. Segundo o que sei, a maior parte deles não
passa de escória, que invoca a ética desta ou daquela doutrina ou de nenhuma. (…) Isso o
senhor não pode dizer em voz alta e talvez não possa nem mesmo pensá-lo em sua
cabeça, embora sua experiência de vida não possa ser muito diferente da minha. Se é
preciso falar de uma ética, quanto a mim, eu professo um ideal elevado, do qual os ideais
que me são conhecidos se afastam, em geral, de uma maneira das mais aflitivas”
Nessa colocação, Freud afirma sua posição quanto às ideologias, às visões de mundo
prontas e acabadas. Posta-se contrariamente às doutrinas e as religiões. Os ideais que lhe
foram apresentados afastam-se do “ideal elevado” que ele afirma professar.
Ao buscar uma ética em Freud, assim, Guyomard (idem, p. 51) afirma que essa busca
tem como resultado, quando muito, o encontro de uma ética pessoal, que não se pretende
universal e que não se quer impor a ninguém. Desse ponto de vista, segundo Guyomard
(idem, ibidem), “existe uma só ordem à qual Freud se comparava: a dos artistas”.
Posto que a questão da ética não seja manifesta na obra freudiana, percebe-se que sua
trajetória enquanto cientista e pensador foi marcada pelo exercício da autonomia e, sobretudo,
pela resistência contra a opressora hegemonia das normas postas e das fórmulas prontas.
Enfrentou o discurso médico, ao preconizar “a cura pela fala” como um método novo,
apartado da medicina e, assim, aberto às contribuições da arte, da filosofia e do pensamento
social.
Freud foi perseguido pelo nazismo, quer por sua judeidade, quer pela “imoralidade” de
seu pensamento. Conforme relata Jones, contudo, mesmo depois de ver a Áustria dominada
pelos nazistas e seus livros serem queimados em praça pública na Alemanha, Freud recusava-
se a abandonar o lugar em que nascera. Quando Jones tentou convencê-lo a deixar a Áustria,
ele retrucou: “não podia deixar seu pais nativo, seria como se um soldado desertasse de seu
posto” (Jones, 1970, p. 755).
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Freud enxergava-se, portanto, como um soldado, mas um soldado armado apenas com
suas ideias e suas palavras. Um soldado que, em toda oportunidade que teve, denunciou o
absurdo da guerra.
Já bastante idoso, quando finalmente foi convencido a deixar a Áustria, Freud foi
obrigado pelos nazistas a assinar um termo afirmando que “teria sido bem tratado pelas
autoridades alemãs”. Desafiando seus perseguidores e arriscando-se a si próprio, ele não
perdeu a oportunidade de, ironicamente, acrescentar uma sentença ao termo: “Posso de
coração recomendar a Gestapo a qualquer pessoa” (idem, p. 761).
Exilado na Inglaterra e sofrendo o desgosto de saber que morreria longe de sua terra,
surpreendentemente, Freud dedica-se, em sua última grande obra de fôlego (Freud,
1939/1996), a esmiuçar de maneira crítica e “invenção do judaísmo”, demonstrando que,
mesmo diante das circunstâncias políticas e pessoais mais adversas, não deixaria de exercer
sua função perturbadora das certezas e de colocar-se sempre ao lado da desconstrução das
formas dogmáticas de pensamento.
Diante dessa breve retrospectiva, que demonstra como a vida e a obra de Freud sempre
foram radicalmente questionadoras e insubmissas, causa espécie que a maior parte de seus
seguidores, ao lançar o olhar da psicanálise em direção aos sistemas punitivos, tenha se
colocado ao lado da legitimação das práticas institucionais de castigo e repressão.
uma busca incessante pelo que há de recalcado nas práticas institucionais e nas produções
acadêmicas.
Para Mathiesen (1974, pp. 13-28), a força do discurso abolicionista reside justamente
em seu caráter aberto (unfinished), que se recusa a trazer respostas prontas, mas permanece
como espírito crítico das práticas e das ideias hegemônicas.
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Tradução livre do autor. Do original (Mathiesen, 1974, p. 25): “Abolition in other words takes place when we
break with the established order and at the same time face unbuilt ground. This is to say that the abolition and the
very first phase of the unfinished are one and the same. The moment of freedom is that of entering unbuilt
ground. Freedom is the anxiety and pleasure involved in entering a field which is unsettled or empty”.
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Nesse sentido, uma criminologia psicanalítica não poderia ser outra coisa que não
abolicionista, tendo-se em vista sua vocação de, em vez de construir certezas e dogmas,
sempre erodi-los, a partir de um pensamento radicalmente crítico.
O primeiro deles, talvez mais modesto, diz respeito à constituição de uma clínica
psicanalítica da vulnerabilidade, a partir de sugestões e encaminhamentos psicanalíticos que
possam auxiliar o sujeito criminalizado a encontrar formas saudáveis de subjetivação,
desnaturalizando o sofrimento psíquico que atinge as classes marginalizadas a partir da
inserção em uma sociedade excludente.
De toda forma, seja pelo seu aspecto clínico, seja pela sua incursão pelo pensamento
social, uma criminologia psicanalítica essencialmente libertária tem como missão
(pretensiosa, por certo e – quem saberá? – talvez até fadada ao insucesso) colocar-se ao lado
de Eros na eterna luta entre os “Poderes Celestiais”.
30
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