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O

 Sagrado  e  o  profano  em  Émile  Durkheim


 
O Sagrado e o profano em Émile Durkheim

Sidnei Ferreira de Vares*


 

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo analisar as noções de sagrado e profano na teoria
sociológica de Émile Durkheim. Para tanto, enfatizaremos as obras nas quais o autor encara mais
incisivamente o fenômeno da religião. Nosso propósito é verificar de que modo esses conceitos,
sobretudo o conceito de sagrado, mantêm-se vivos na contemporaneidade, ou seja, que
formato a religião, em geral, e o sagrado, em particular, adquiriram em um mundo
predominantemente marcado por valores laicos e científicos.

PALAVRAS-CHAVE: Sagrado. Profano. Religião. Rito. Individualismo moral.

ABSTRACT

This article aims to analyze the concepts of sacred and profane in the sociological theory of Emile
Durkheim. To do so, we emphasize the works in which the author sees more pointedly the
phenomenon of religion. Our purpose is to see how these concepts, especially the concept of the
sacred, remain alive in contemporary times, namely that shape religion in general, and the
sacred, in particular, acquired in a world marked by predominantly secular values and scientific.

KEYWORDS: Sacred. Profane. Religion. Ritual and moral. Individualism.

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Revista  –  E-­‐  FAPPES,  São  Paulo,  vol.01,  no.  04,  fev.-­‐jul.,  2015.  
O  Sagrado  e  o  profano  em  Émile  Durkheim

O
sociólogo francês reforçando o veio sociologista
Émile Durkheim (1858- do autor.
1917) marcou época É na segunda fase, porém,
e ajudou a consolidar que se encontram os seus
a ciência social, além, é claro, estudos mais interessantes, cujos
de estabelecer as bases do que temas e subtemas deslocam-se
ficou conhecida como “escola do âmbito morfológico para o
sociológica francesa”. Infeliz- âmbito simbólico e moral ou,
mente, sua vasta obra, bastante como preferem Robert Nisbet
difundida, porém pouco (2003) e Talcott Parsons (2010),
compreendida, foi estritamente da posição “materialista”,
identificada ao positivismo, o assumida nas primeiras obras,
que resultou numa interpretação para uma posição “espiritua-
equivocada de seu pensa- lista”, presente nas obras de
mento. Para todos os efeitos, a maturidade. Como observa
teoria sociológica por ele Renato Ortiz (2002), essa
desenvolvida tornou-se refém de reorientação deveu-se, sobre-
uma leitura sectária que, tudo, ao crescente interesse do
desenvolvida a partir dos mestre francês pelo estudo da
primeiros trabalhos do autor, foi religião.1 É a partir de 1895,
responsável por imputar-lhe a quando ministra um curso sobre
pecha de “conservador”. o fenômeno religioso que
Ironicamente, os trabalhos de Durkheim modifica, de fato, seu
maturidade, bem mais originais itinerário intelectual. Nas
do que aqueles produzidos na palavras do próprio Durkheim:
primeira fase de sua carreira –
ainda muito influenciados pelo
positivismo de Comte –, foram 1
Não deixa de ser interessante o fato de David
Émile Durkheim ser de origem judaica. Seu pai,
negligenciados por parte Moisés Durkheim, foi líder rabínico, o oitavo de
uma escala descendente em sua família.
considerável dos estudiosos, Durkheim estava inclinado a continuar a saga
familiar, porém, na adolescência, optou pelos

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Até 1895 não publicação do artigo


consegui ter uma ideia clara do papel
essencial que desempenhava a Representações individuais e
religião na vida social. Foi nesse ano
quando, pela primeira vez, encontrei a representações coletivas.3
maneira de abordar sociologicamente
o estudo da religião. Foi para mim uma
Mas, qual a importância
revelação. O curso de 1895 supõe uma da sociologia da religião
linha divisória no desenvolvimento de
meu pensamento, a ponto de revisar desenvolvida de Émile
todas as minhas investigações
anteriores para reajustá-las a essa Durkheim? Talvez, seja
perspectiva (DURKHEIM, 1975, p. 404).
interessante partir da
As leituras sobre a história observação feita por Raymond
da religião, iniciadas através da Aron (2003), segundo a qual,
obra do antropólogo inglês numa obra como As Formas
Robert Smith, foram, nesse Elementares da Vida Religiosa,
sentido, determinantes para a por exemplo, encontra-se uma
reorientação de seus estudos, teoria do totemismo, uma teoria
desembocando, pouco mais da religião e uma sociologia do
tarde, numa série de artigos, conhecimento. Ademais, como
quase todos publicados na aponta Carlos Eduardo Sell
Revue L´Année Sociologique, e (2013), também é possível extrair
mesmo em trabalhos de maior dos estudos religiosos de
fôlego como As Formas Durkheim uma teoria culturalista,
Elementares da Vida Religiosa. cuja repercussão sobre os
Conquanto a tese do estudos etnológicos e
deslocamento não seja unânime antropológicos e, pouco mais
entre os intérpretes de tarde, sobre os estudos levados
Durkheim2, é inegável que seu a cabo pelos representantes do
interesse pelo fenômeno interacionismo simbólico e das
simbólico – e também religioso –
3
Trata-se de um importante artigo,
se consolidou em 1898, após a originalmente publicado na Revue de
Métaphysique et Morale, tomo VI, em maio de
1898. No Brasil, o referido artigo está contido
2
A esse respeito consultar Anthony Giddens numa obra intitulada Sociologia e Filosofia.
(1998; 2001; 2005). Vide referências bibliográficas.

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representações sociais, foi status da pessoa humana em


enorme. sua teoria sociológica. Destarte,
Todavia, para responder- intencionamos demonstrar que
mos adequadamente a essa as noções de “sagrado” e
questão, dividimos esse trabalho “profano”, objeto de interesse
em algumas partes. Na primeira do autor durante a segunda fase
seção, visamos explorar a de seu desenvolvimento teórico,
definição de religião oferecida estendem-se ao indivíduo
por Durkheim. Na segunda moderno, fulcro de um novo tipo
seção, analisaremos as noções de sacralidade.
de crenças e ritos presentes nos
escritos durkheimianos direcio- 1. Durkheim e a essência da
nados ao tema da religião, uma religião
vez que, segundo o mestre
francês, ambas são As Formas Elementares da
características do universo Vida Religiosa é uma obra de
sagrado. A terceira seção tem maturidade de Durkheim,
como escopo a relação, publicada em 1912. Para muitos
historicamente tensa, entre de seus intérpretes, este constitui
religião e ciência, visto que, na um de seus mais prodigiosos
visão durkheimiana, ambas são trabalhos, visto que sua
compatíveis. Por último, influência sobre a escola
pretende-se analisar o “indivi- sociológica francesa foi
dualismo moral”, conceito
traição, foi condenado à prisão perpétua na Ilha
desenvolvido pelo autor durante do Diabo. A origem judia do acusado e o modo
obscuro com que o processo fora conduzido,
o auge do famoso Caso praticamente dividiu a opinião pública francesa.
Durkheim, juntamente com outros intelectuais,
Dreyfus4, com vistas a verificar o se posicionou favoravelmente à libertação do
jovem capitão. Publicado em junho de 1898, O
Individualismo e os Intelectuais pode ser visto
como uma resposta de Durkheim ao artigo do
4
Tratou-se de um escândalo envolvendo um apologista católico Ferdinand Brunetière que,
capitão do exército francês, Alfred Dreyfus, poucos meses antes, acusara a intelligentia
que, injustamente acusado do crime de alta francesa de rejeitar a hierarquia e as tradições.

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arrebatadora. Neste texto, exteriores, portanto, facilmente


encontram-se os principais perceptíveis, visando
conceitos desenvolvidos pelo reconhecer aqueles elementos
autor referentes ao tema da também comuns às religiões
religião. Aliás, seu objetivo é mais complexas e, assim,
exatamente apresentar uma comprovar duas hipóteses que
teoria que sirva para explicar as já o acompanham pelo menos
características gerais de todas desde a publicação do artigo
as manifestações religiosas. Para Da definição dos fenômenos
tanto, o sociólogo recorre ao religiosos, quais sejam: (a) a de
estudo do que considera a mais que a religião é um fenômeno
elementar de todas as formas de humano que dispõe de uma
religião, a saber, o totemismo natureza particular, constituindo
australiano. Trata-se, pois, de um um “fato social” suscetível de ser
retorno às sociedades mais explicado em termos
simples, de acordo com o sociológicos; (b) a de que o
método histórico-comparativo componente religioso faz-se
anunciado ainda no início de presente na estrutura da
sua carreira, com vistas a revelar, personalidade humana no seio
tanto num nível mais superficial de cada civilização.
quanto num nível mais profundo, Na perspectiva
respectivamente os símbolos e evolucionária adotada por
ritos que definem as sociedades Durkheim, o totemismo constitui
e o caráter irracional e o sistema religioso mais simples,
subconsciente das ações dos no qual o grupo social,
indivíduos enquanto membros recorrendo à noção de “totem”,
de um dado grupo social cria uma identidade coletiva
(Collins, 2009). Durkheim analisa responsável por distingui-lo de
a religião primitiva a partir de outros agrupamentos. Partindo
certo número de signos dessa premissa, o sociólogo

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francês dedica-se à análise das Segundo Durkheim, a


crenças e práticas religiosas de essência da religião está na
alguns clãs aborígenes distinção da realidade em duas
australianos – grupos de esferas, a do “sagrado” e a do
parentesco não constituídos por “profano”. A primeira delas se
laços consanguíneos –, compõe de um conjunto de
buscando apreender-lhes os crenças e ritos que formam
elementos definidores do certa unidade – ao que se pode
totemismo. Ele está convencido chamar genericamente
de que as coisas sagradas são “religião”; ou de “igreja” quando
representações da vida social e, as crenças religiosas são
em virtude disso, afirma não compartilhadas pelo grupo.
existir religiões falsas, pois, à sua Destarte, a religião envolve
maneira, “todas respondem, tanto uma dimensão
ainda que de maneiras cognitiva/cultural (crenças)
diferentes, a determinadas quanto uma dimensão
condições da vida humana” material/institucional (ritos). Para
(Durkheim, 1989, p. 31). o sociólogo francês, o que
Diferentemente da visão caracteriza o sagrado é o fato
agnóstica de Weber e da visão de estar apartado das coisas
negadora de Marx, Durkheim cotidianas. E exatamente por
sustenta a realidade do este afastamento da realidade
fenômeno religioso e, assim, imediata que o objeto sagrado
lança os pressupostos para uma desperta reações, sentimentos e
nova religiosidade coerente emoções em sua defesa
com o mundo moderno, que quando profanado. O sagrado,
tem no próprio homem o seu portanto, não se refere apenas
elemento central (o que será aos deuses ou espíritos – como
devidamente abordado na no caso das religiões teístas ou
última seção). espiritualistas. Trata-se, pois, de

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um conceito bastante plástico, práticas da vida social. O


capaz de se manifestar sob profano é a representação do
variadas formas: um rochedo, que é mais comum, cotidiano,
uma árvore, um conjunto de repetitivo, enfim, daquilo que
palavras, fórmulas, gestos, não deve se misturar com
movimentos, enfim, qualquer sagrado, sob o risco de profaná-
coisa pode ser considerada lo.
sagrada.5 Ademais, o sagrado Nas palavras do autor,
pode ser “puro” ou “impuro”. “não existe na história do
Durkheim observa a pensamento humano outro
existência de forças religiosas exemplo de duas categorias de
benfazejas, distribuidoras de coisas tão profundamente
todas as qualidades estimadas diferenciadas, tão radicalmente
pelos homens – vida, sorte, opostas uma à outra”
saúde, paz –, em suma, guardiãs (DURKHEIM, 1989, p.70). A origem
da ordem física e moral; e de dessa divisão “mental” do
forças malfazejas, responsáveis mundo encontra-se numa
por multiplicar e espalhar todo divisão “real”, manifesta pelas
tipo de mazelas e agruras aos dimensões individual e coletiva
homens – miséria, doença, da humanidade.
medo e horror. Ambas, ressalta, Nesse sentido, a
têm uma fonte comum: o experiência religiosa independe
estado afetivo em que se de uma divindade. Por isso
encontra a comunidade. Já a Durkheim rechaça tanto o
segunda, refere-se àquela “animismo” quanto o
porção da realidade que se “naturalismo”, pois, enquanto
confunde com as atividades este entende a religião como a
divinização das forças naturais,
5
Para Durkheim, o sagrado pode adquirir um aquele a entende como a
formato totêmico, teocêntrico, cosmocêntrico ou
antropocêntrico. crença em um espírito,

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transfiguração da dupla 2. O universo do sagrado: as


natureza do homem, composto crenças e os ritos
de corpo e alma. Grosso modo,
nas religiões totêmicas, a Durkheim alega que os
divindade é vista como uma fenômenos religiosos estão
força anônima e impessoal, que ordenados em duas categorias
encontramos em determinados fundamentais: as crenças e os
seres ou objetos – animais, ritos. As primeiras referem-se aos
plantas, pedras etc. e não na estados de opinião, consistindo
mera crença em um ser supra- em representações, enquanto os
humano. segundos remetem a
Mas, se o sagrado e o determinados modos de ação
profano são categorias (Cf. DURKHEIM, 1989, p. 59). Com
absolutamente distintas, disso isso, o autor acentua a
não procede que a dimensão ritual de toda religião
comunicação entre esses dois que, através de um conjunto de
mundos seja impossível, pois, se prescrições, comportamentos,
o profano não pudesse acessar valores, explica a manifestação
o sagrado, então, este de nada terrena do sagrado, bem como
serviria àquele. Na verdade, a as relações entre os seus
relação entre pólos tão díspares membros. Existem, entretanto,
requer certa precaução, isto é, ritos “negativos” e ritos
uma iniciação que, “positivos”. O papel dos
dependendo da religião primeiros é o de preservar a
analisada, pode ser mais ou separação entre o mundo
menos complexa. Desse modo, sagrado e o mundo profano,
cumpre perguntar, de que impedindo que ambos os
forma o universo sagrado pode mundos se penetrem; já os
ser acessado? segundos visam manter o fiel em
contato com o sagrado.

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Os ritos, por meio da durante a realização dos rituais.


exaltação das energias Ademais, os ritos também
individuais, têm a função de exercem uma função
fazer com que as pessoas saiam disciplinadora, propedêutica, à
de suas vidas ordinárias, típicas medida que formam o indivíduo
do universo profano e, ainda para a abnegação e sacrifício.
que momentaneamente, Não por acaso, observa
acessem o mundo sagrado. Os Durkheim, o ser ou objeto
ritos são, assim, responsáveis por sagrado desperta em seus
manter vivas as crenças, crentes um sentimento confuso,
permitindo a renovação das dúbio, uma mistura de respeito e
representações coletivas temor. Disso decorre a
referentes às coisas sagradas. conclusão durkheimiana de que
Nenhum ritual ou cerimonial, essa força anônima, superior e
entretanto, pode ser visto difusa, que define o sagrado,
apenas como um sistema de não é outra coisa senão a
signos através do qual a fé se própria vida coletiva, ou melhor,
traduz exteriormente; ele é muito a sociedade transfigurada. Ora,
mais do que isso. Em última é então a sociedade que
análise, são os ritos que desperta em nós o sentimento
alimentam positivamente as do divino, infundindo-nos
crenças. Obviamente que os respeito, devotamento e
rituais ou cultos só fazem sentido adoração. Com efeito, como
mediante a um conjunto sugere Serge Moscovici (2011), a
estabelecido de crenças. Porém, sociedade para Durkheim
para que essas crenças possam revela-se uma “máquina de
se renovar, é mister um fazer deuses” ou, dito de outro
momento de efervescência modo, uma força capaz de
coletiva, que, conforme explicita atribuir às coisas uma dimensão
o autor, só pode ser alcançado sagrada.

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Geralmente, durante a à efervescência coletiva


realização das cerimônias durante a Revolução Francesa,
religiosas, o que ocupa o comparando-a àquela dos
pensamento dos fieis são as rituais primitivos. A bandeira
crenças, as tradições, as nacional, o emblema de um
lembranças comuns, elementos time de futebol, o brasão de
que, verdadeiramente, uma corporação civil, militar ou
procuram satisfazer à ordem religiosa podem, tal como nas
pública e social. Desse modo, o sociedades primitivas, despertar
interesse de Durkheim pelas paixões e sentimentos muito
religiões primitivas é acessório. próximos daqueles que, numa
Isto porque sua preocupação cerimônia tribal, dançam e
primacial é o estudo da gritam em volta de um símbolo
moralidade. Por sua clareza e sagrado.
simplicidade, os agrupamentos
humanos mais simples – 3. A conciliação entre a religião
marcados por uma maior e a ciência
homogeneidade em termos
valorativos e funcionais – É durante a segunda fase
constituem o ponto de partida intelectual de sua carreira que
do autor, interessado em Durkheim procura conciliar dois
compreender como os fatos tipos de conhecimento
religiosos expressam, considerados antípodas, a
simbolicamente, sua origem saber, a religião e a ciência. De
social. Isso, porém, não significa fato, o sociólogo admite o
que as sociedades complexas primado do conhecimento
não tenham suas crenças e seus científico no mundo moderno,
ritos, ainda que estes se visto que a ciência, nas
expressem sob outros símbolos. sociedades modernas, dispõe
Aliás, Durkheim faz uma menção

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de uma autoridade intelectual quanto em seu curso


antes restrita à religião. Pragmatismo e Sociologia –
Notadamente, esse trabalho publicado póstuma-
estatuto da ciência moderna é mente a partir de anotações de
resultado do avanço do alguns alunos – Durkheim
racionalismo e do individualismo enfatiza a ligação umbilical
no ocidente. Durkheim está entre religião e ciência no que
convicto de que a ciência, tange às categorias fundamen-
sobretudo a sociologia, pode tais do pensamento.6
contribuir no sentido de superar É em As Formas
o estado anômico que acomete Elementares da Vida Religiosa,
grande parte dos países contudo, que essa relação
europeus. Sem embargo, isso evidencia-se mais claramente.
não significa que entre ciência e Primeiramente, porque ambas –
religião exista um fosso religião e ciência – são,
intransponível. É exatamente o também, representações
oposto, aliás, o que o sociólogo coletivas. Mas esse não é o
pretende demonstrar. O argumento principal. Há um
conhecimento científico, longe segundo ponto mais importante:
de opor-se ao conhecimento à medida que Durkheim
religioso, tem neste a sua origem entende o sagrado como a
mais remota. Disso não resulta “realidade coletiva transfigura-
que sejam idênticos; todavia, da”, então, a sociologia, não só
ambos têm em comum o fato revela o caráter social da
de classificar, sistematizar e religião, mas, também, a
atribuir sentido à realidade. possibilidade de reconstrução
Tanto no artigo escrito em
parceria com o seu sobrinho 6
Para Durkheim não só as categorias lógicas do
pensamento científico têm uma dívida para com
Marcel Mauss, Algumas Formas a religião, mas também a moral e o direito.
Destarte, todas as instituições são em alguma
Primitivas de Classificação, medida aspectos variáveis do universo religioso.

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das crenças necessárias ao No entanto, no que concerne às


consenso, adequando-as, assim, sociedades urbano-industriais, o
à complexidade das sociedades sagrado tem um diferencial, a
modernas. saber, o próprio ser humano está
Visto que as crenças no centro da vida moral. Este é
tradicionais já não se mostram um detalhe fundamental, pois,
capazes de atender à em contraposição àqueles que
complexidade do mundo viram na religião antropo-
moderno, Durkheim, por meio de cêntrica durkheimiana a origem
sua sociologia da religião, dos movimentos totalitários na
aponta para a evolução Europa, Durkheim se propõe
histórica dos valores, ritos, proteger a dimensão sagrada
crenças, enfim, tudo que da pessoa humana. Vejamos o
envolve o universo sagrado e que seria essa nova religião.
religioso, para, a seguir, em
consonância com os valores 4. A sacralização do humano ou
republicanos dos quais era o “individualismo moral”
simpatizante, destacar o
movimento da sociedade em O interesse de Durkheim
direção a uma nova fé de pelos aspectos mais elementares
cunho cívico. do fenômeno religioso está
Com efeito, diante do diretamente vinculado à sua
processo de laicização que visão acerca da sociedade
caracteriza as sociedades moderna. Ao investigar as
modernas, o sagrado não características do totemismo,
desaparece. Mesmo em extraindo-lhe os elementos para
sociedades altamente diferen- uma teoria geral da religião, o
ciadas e laicas, ele adquire sociólogo não tem em vista
outros formatos, outras apenas definir o fenômeno em
configurações, outros invólucros. questão, mas, sobremaneira,

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entender a estrutura moral das tem a ver com seus estudos


sociedades complexas. sobre religião? Para
Diferentemente de Weber, a entendermos essa conexão
modernidade para Durkheim cumpre resgatar alguns pontos
não é um “mundo do projeto durkheimiano.
desencantado”. Pelo contrário, Segundo Durkheim, os antigos
o mestre francês enfatiza a valores mostram-se insuficientes
presença do sagrado em alguns mediante a complexidade
dos símbolos mais importantes funcional da sociedade
do universo laico: a bandeira ou moderna. De acordo com a tese
o hino nacional, os feriados exposta em Da Divisão do
cívicos, os grandes personagens Trabalho Social, o que diferencia
históricos, enfim, também estão as formas de organização social
envoltos de religiosidade. mais simples das mais complexas
O passo mais ousado de é o fato de que nestas vige um
Durkheim, porém, dar-se-ia no tipo de solidariedade diferente,
sentido da elaboração de uma que o autor denomina de
sociologia moral. Embora o “solidariedade orgânica”.
projeto durkheimiano em torno Na prática, isso significa
de uma moralidade adequada que as relações sociais são
às condições de vida modernas menos coercitivas e que, por
tenha se originado ainda na suposto, o homem moderno
primeira fase de sua carreira, é dispõe de um maior espaço de
só durante a fase parisiense – escolha, ação e pensamento. O
que corresponde à sua referido processo foi responsável
maturidade – que o autor por libertar o indivíduo da
consegue desenvolvê-lo “tirania do grupo”, alçando-o a
plenamente. uma nova condição, uma vez
Mas, em que consiste essa que, agora, passa a ocupar o
nova moralidade? E o que ela centro da própria moralidade –

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o que o sociólogo nomeia de ser confundida com àquelas


“individualismo moral”. Confor- tendências baseadas em algum
me explicita no artigo O tipo de exaltação à
individualismo e os intelectuais autorreferencialidade (espécie
ao analisar a condição da de egoísmo estreito). O
pessoa humana nas sociedades individualismo a que Durkheim se
contemporâneas: refere nada tem a ver com
aquele individualismo radical ou
Tem algo dessa majestade egoístico que está na base do
transcendente que Igrejas de todos os
tempos conferem aos seus deuses; pensamento utilitarista. Essa
concebemo-la como que investida
dessa propriedade misteriosa que cria religião antropocêntrica tem
um vazio em torno das coisas santas,
que as subtrai aos contatos vulgares e
como fundamento a pessoa
as retira da circulação comum. É humana in abstract. Não se
precisamente daqui que vem o
respeito de que ela é objeto. Quem trata, portanto, deste ou
quer que seja que atente contra a vida
de um homem, contra a liberdade de daquele indivíduo in loco, mas
um homem, contra a honra de um
homem, inspira-nos um sentimento de do ser humano em geral.
repulsa, análogo àquele que o crente
sente quando vê profanarem o seu
Fica então a dúvida: de
ídolo. Semelhante moral não pode que modo esse homem foi
portanto ser simplesmente uma
disciplina higiênica ou uma sensata investido de uma dimensão
economia da existência; é uma religião
de que o homem é, ao mesmo tempo, sagrada?
o fiel e o deus (DURKHEIM, 1975, p. 238).
Baseado em seus estudos
sobre religião, Durkheim reitera o
Assim sendo, segundo
caráter social desse processo de
Durkheim, o indivíduo tornou-se
“culto” ao indivíduo. Mas é no
um valor inalienável, um ser
artigo acima mencionado que o
sagrado, o que, em si mesmo,
sociólogo francês perfaz,
nada tem de negativo. Isso
historicamente, o caminho do
porque na acepção
individualismo. Alega que o
durkheimiana a sacralização do
cristianismo, em detrimento dos
indivíduo não pode nem deve
antigos modelos religiosos

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centrados nas cidades-estado, responsável por colocar em


continha os impulsos originais do pauta questões como direitos
individualismo moral, uma vez humanos e cidadania. Na
que foi a primeira religião a esteira do que professavam
mostrar “na fé interior, na filósofos como Rousseau e Kant,
convicção pessoal do indivíduo o sociólogo lança as bases de
a condição essencial da um sistema de crenças centrado
piedade”. Nas palavras do no indivíduo, o único capaz de
autor: garantir a unidade moral nas
sociedades modernas, e isso,
[o cristianismo] Foi o primeiro a ensinar certamente, devido ao seu
que o valor moral dos atos se deve
avaliar pela sua intenção, coisa íntima caráter religioso (Joas, 2012).
por excelência, que obsta por natureza
a todos os julgamentos exteriores e que Como se pode notar tem-se,
só o agente pode apreciar com
competência. O próprio centro da vida
aqui, um encontro bastante
moral foi assim transportado do exterior promissor: o de sua sociologia
para o interior e o indivíduo elevado a
juiz soberano de seu próprio moral com a sua sociologia da
comportamento, sem ter de prestar
contas senão a ele próprio e ao seu religião.
Deus (DURKHEIM, 1975, p. 244-245).
Entretanto, em termos

Evidentemente, Durkheim práticos, como essa prioridade

reconhece as diferenças entre o alcançada pela pessoa humana

cristianismo e o “culto” ao pode ser avistada? Quais são as

indivíduo – por ele encarado características desse novo

como um sistema de crenças sistema de crenças ou dessa

eminentemente secular. Na “religião antropocêntrica”?

ótica durkheimiana essa nova Na primeira parte de sua

moralidade foi impulsionada obra A Educação Moral,

pelos eventos que marcaram o Durkheim expõe os elementos

último quartel do século XVIII, em definidores da moralidade,

especial a Revolução Francesa, atentando para o fato de que,


diferentemente da moral

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tradicional, que tem como se caduca, só uma ação


elementos fundamentais o que o coletiva pode modificá-la.
autor denomina de “espírito de Porém, em última instância, são
disciplina” e “espírito de os indivíduos que, ao
abnegação”, a moral moderna reconhecerem as fragilidades
comporta, exclusivamente, um da norma, valor ou regra,
terceiro elemento: o “espírito de avançam, conjuntamente, no
autonomia”, cujo primeiro sentido de uma transformação.
dogma é a “autonomia da Ora, do que foi exposto
razão” e o “primeiro rito” é a pode-se inferir que o indivíduo se
“análise livre”. Em outros termos, tornou, a um só tempo, crente e
se nas sociedades primitivas o objeto de crença. No entanto, o
indivíduo estava quase que que distingue o homem
absolutamente submetido aos moderno não é só o caráter
ditames da vida coletiva, nas sagrado do qual está investido,
sociedades diferenciadas exige- mas, sobretudo, a autonomia, a
se desse mesmo indivíduo que liberdade e a capacidade de
seja capaz de compreender pensar e decidir por si mesmo,
racionalmente o conteúdo do preceitos indispensáveis às
conjunto de valores que se lhe sociedades altamente
impõe. Disso decorre que uma diferenciadas. Aliás, sobre este
norma moral, para ser acatada, ponto, o mestre francês é
deva dispor de uma raison enfático:
d'etre, pois, do contrário, não
será aceita. Na perspectiva Na realidade a religião do indivíduo é
de instituição social, como todas as
durkheimiana, o indivíduo religiões que se conhecem. É a
sociedade que nos determina este
moderno não é um ser passivo, ideal, como único objetivo comum que
possa atualmente unir as vontades.
mas um ser autônomo e Tirarem-no-la, sem contudo nada nos
consequentemente ativo. darem em troca, é precipitarem-nos
nessa a anarquia moral que queremos
Decerto, caso uma regra mostre-

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O  Sagrado  e  o  profano  em  Émile  Durkheim

precisamente combater (DUKRHEIM, objetos, símbolos, hinos etc.


1975, p. 247).
ainda são pensados a partir

Em suma, pode-se afirmar desse esquema. Disso desdobra-

que, embora racional, laica e se que a descontinuidade entre

científica, as sociedades as sociedades tradicionais e as

modernas ainda comportam sociedades modernas não é

uma dimensão irracional, assim tão robusta como se

ritualística e religiosa que imagina. Há entre elas

desponta em ocasiões de permanências visíveis, seja em

efervescência coletiva, relação às formas de

deixando entrever os laços classificação do mundo, seja em

emotivos que nos animam e dão relação aos símbolos e ritos que,

sentido à vida social. de modo irracional e


subconsciente, animam a vida

Considerações finais social.


No que concerne à

Para Durkheim, a moralidade, Durkheim vai ainda

sociologia da religião e a mais longe: aponta para a

sociologia moral mantêm uma dimensão sagrada que a pessoa

forte conexão. Ao analisar humana adquiriu no mundo

noções como as de “sagrado” e moderno. Em outras palavras, o

“profano” nos sistemas religiosos indivíduo tornou-se o centro de

mais elementares – o totemismo uma nova religião e, por

australiano –, o sociólogo suposto, a autonomia, a razão, a

procura demonstrar que essa livre-análise e a ciência, bem

forma de pensar a realidade como toda a forma de direito

não está ausente nas que projeta o ser humano,

sociedades complexas e tornaram-se valores inegociáveis

secularizadas. Determinados para a maior parte das


sociedades urbano-industriais.

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O  Sagrado  e  o  profano  em  Émile  Durkheim

De modo geral, Durkheim social e político inestimável para


considera a sacralização do os rumos da civilização.
humano um avanço histórico,

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Sobre o autor
____________________

* Doutor e mestre em Educação pela USP; Formado em História e Filosofia; Professor


dos Cursos de Filosofia e História do UNIFAI e do Curso de Pedagogia do UNI-
SANT´ANNA. e-mail: vares@usp.br

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