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O CONFUCIONISMO

Textos das fontes. Comentários de J. Gouveia Monteiro

O Confucionismo é uma das religiões ainda ativas mais velhas do Mundo,


contando já com cerca de 2500 anos de vida. Trata-se da tradição religiosa que mais
profundamente influenciou a história da China. Durante a dinastia Han, graças ao
imperador Wu (141-86 a.C.), o Confucionismo foi convertido em ortodoxia do Estado
chinês; e gozou desse estatuto até ao advento do Período Republicano, em 1912, embora
com oscilações várias, sobretudo durante a dinastia Tang (618-907), período em que se
deu a afirmação do Budismo, que viria a ser reprimido por volta de 845.

Tal como Siddhârta Gautama, Jesus ou Sócrates, Confúcio (c.551-479 a.C.) não
compôs obra própria. O que sabemos acerca do seu pensamento devemo-lo sobretudo
aos seus discípulos, que, sobretudo nos Analectos, evocam largamente a sua ensinança e
maneira de pensar e de atuar. Confúcio também foi um incansável leitor, e até
compilador ou editor, dos famosos «Cinco Clássicos», onde a antiquíssima tradição
cultural chinesa encontrou a sua perenidade. Além disso, ficou diretamente ligado ao
corpus dos «Quatro Livros», que, desde os Song e graças sobretudo a Zhu Xi (c.1200
d.C.), se reconhece abrigarem a quintessência do Confucionismo.

Os «Cinco Clássicos» chineses

Neste conjunto incluem-se as seguintes obras: o Livro das Mutações («Yi Jing»,
ou «I Ching»); o Clássico da História («Shu Jing»); o Clássico da Poesia / dos Poemas
(ou Livro das Odes, «Shi Jing»); o Clássico dos Ritos («Li Jing»); e os Anais da
Primavera e do Outono («Chun Qin», ou «Ch’un Ch’iu»). As três primeiras obras são
anteriores a Confúcio.

O LIVRO DAS MUTAÇÕES (ou «da Mudança») é a obra mais precoce da


Antiguidade e exerceu uma influência enorme sobre todas as escolas de pensamento chinês, até
aos dias de hoje. Deve ser o resultado do contributo de muitos autores, separados por centenas

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de anos. Trata-se de um texto metafísico, que pretende explicar as leis e os elementos de tudo na
natureza. O princípio subjacente é o de que nós, assim que entendermos as ações do Céu e da
Terra, saberemos como viver em harmonia com o universo, como suportar todas as mudanças e
como florescer em qualquer circunstância.

Na sua origem, o Yi Jing foi, talvez, um manual de adivinhação baseado em oito


trigramas simbólicos, cada qual formado por linhas quebradas e não quebradas, que representam
as duas energias opostas do pensamento chinês: o «Yin» (princípio feminino, noturno,
submisso, flexível e suave: a Lua, a água, as nuvens, os números pares) e o «Yang» (princípio
masculino, diurno, duro, vermelho, ativo e penetrante: p. ex. o Sol, ou os números ímpares); Yin
e Yang são como que os extremos do ilimitado dào do fundamento último («t’ai-chi»), que se
combinam para criar todos os fenómenos naturais e a própria Humanidade.

Pensa-se que Confúcio acrescentou uma série de comentários ao Yi Jing, os quais


ficaram conhecidos como as «Dez Asas»; é possível que também o duque de Zhou (séc. XI
a.C.) seja responsável por alguns desses comentários. O certo é que o Mestre devia ter em
grande conta esta obra, uma vez que declara, nos Analectos: «Se me emprestassem mais
alguns anos e eu pudesse estudar as Mutações até aos meus últimos dias, eu poderia
[deixar de cometer] grandes erros» [Analectos 7.16. (I, p. 225)].

Apesar de o Livro das Mutações não permitir propriamente prever o futuro, fornece
alguns conselhos práticos e sugere formas de atuação inspiradas nos oráculos presentes em cada
linha dos seus hexagramas. É, em síntese, uma obra matricial que, com as suas reflexões acerca
do curso dos valores e das ações éticas, conserva ainda hoje a sua popularidade como fonte de
aconselhamento objetivo e de tomada de decisão.

O CLÁSSICO DA HISTÓRIA (ou dos Documentos) deve corresponder a uma


coleção de textos históricos e lendários primitivos, referentes a acontecimentos situados entre o
terceiro milénio e o século VII a.C. Nesta obra (fonte de grande controvérsia, devido às várias
versões que para ela foram propostas) podemos encontrar o ideal de uma sociedade utópica,
assim como conselhos práticos para orientação do comportamento dos governantes e do povo
comum. Ou seja, a História é vista como um espelho, do qual devem ser extraídas lições morais.

Confúcio utilizou bastante o Clássico da História e a tradição até lhe imputa a


compilação desta obra, que reúne «diversos géneros de documentos oficiais atribuídos aos
grandes reis e ministros do passado». Também Mêncio (que viveu no século IV a.C. e que foi o
principal continuador antigo de Confúcio) dispensou a sua atenção a esta obra, ainda que lhe

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dedique um comentário pouco abonatório: «Seria melhor não ter os Documentos do que
acreditar em tudo o que lá vem. Eu apenas aceito duas ou três passagens do capítulo “A
conclusão da Guerra”» (Mêncio 7B: 3.1. e 3.2 , p. 85).

O Clássico da História inclui textos alusivos às três primeiras dinastias tradicionais


chinesas (Xia, Shang e Zhou), mas também aos célebres «Reis Sábios» que as antecederam. É
aqui que surge – entre várias outras ideias religiosas – o conceito de «Mandato do Céu» («Tiân
ming»), que tão influente se revelaria. Apesar do seu título, o Clássico dos Documentos (ou
«Livro da Virtude») não é uma obra de História, na aceção moderna do termo; está dividido em
quatro partes, uma para cada dinastia, num total de 58 capítulos, e inclui seis tipos de textos: i)
os chamados «cânones» (de redação tardia e que resumem o trajeto dos Reis Sábios); ii)
conversas entre reis e ministros («mo», isto é, «consultas»); iii) conselhos dados pelos ministros
aos seus soberanos («xun», ou «ensinamentos»); iv) advertências («gao»), pelo meio das quais
os monarcas estimulam os seus ministros a trabalhar; v) discursos militares dos reis («shi», ou
juramentos), de molde a impor a disciplina entre os súbditos; vi) éditos ou mandatos reais
(«ming»), através dos quais os soberanos fixam os princípios gerais da governação.

Quanto ao CLÁSSICO DA POESIA (ou dos Poemas), igualmente conhecido por


Livro das Odes («Shih Jing»), é também uma obra anterior a Confúcio. Trata-se de uma velha
antologia de 305 poemas produzidos entre a dinastia Shang e a época de Confúcio (ou seja, ao
largo de mais de mil anos), de que tanto Confúcio como Mêncio fizeram largo uso. Segundo a
tradição, Confúcio terá selecionado aquelas três centenas de poemas a partir de um espólio
muito amplo, com mais de 3000 poesias (a maioria das quais não chegou até nós).

A obra inclui: canções populares sobre o amor, a guerra e o trabalho; poemas de elogio
aos lendários reis e governantes sábios; lamentações acerca da turbulência política crescente; e
hinos para os ritos sacrificiais. Note-se que os poemas populares tinham muitas vezes segundos
sentidos, de natureza política; por exemplo, as queixas acerca dos amantes infiéis podiam
configurar metáforas sobre os governantes injustos. Por isso, muitos dos valores inseridos no
Livro dos Poemas, ou Livro das Odes, encontram reflexo na filosofia política confucionista ou
taoísta. Internamente, o Livro das Odes, encontra-se organizado em três partes: i) «Os Ventos
dos Países», composta por canções populares; ii) «As pequenas e grandes Odes
elegantes», que são poemas de estilo mais aristocrático e requintado. iii) «Os Cânticos
das Casas Reais», que tinham uma natureza religiosa, sendo entoados durante os
sacrifícios.

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Confúcio terá, pois, ajudado a salvar para a posteridade 305 poemas da antiquíssima
tradição cultural chinesa. Note-se que, apesar de o registo das respetivas melodias se ter perdido
na longa noite dos tempos, estas composições eram musicadas e cantadas, por vezes com
acompanhamento de danças. Mestre K’ung parece ter valorizado bastante o Clássico dos
Poemas, pois, nos Analectos, interpela os seus alunos dizendo:

«Meus filhos! Porque é que vocês não estudam os Poemas? Podem


[desenvolver] a perceção, podem [desenvolver] a sociabilidade, podem
[desenvolver] a crítica. Em relação ao que está próximo [podem usar os
Poemas] para servir o pai. Em relação ao que está longe, [podem usar os
Poemas] para servir o governante. [Podem usar os Poemas] para decorar os
nomes dos pássaros, dos animais, das ervas e das árvores» [Analectos 17.9 (II,
p. 222)].

Mestre K’ung declarou: “Erguer-se com os Poemas, firmar-se com os Ritos, completar-
se com a Música» (Analectos 8.8. I, p. 252). Tal como observou Zhu Xi, trata-se aqui de uma
metáfora do desenvolvimento intelectual e moral do ser humano, culminando na música, que
completa a pessoa e a vocaciona para o sucesso no Estudo, harmonizando-a com o Caminho e
a(s) virtude(s).

Consideremos agora as duas obras que se pensa não serem anteriores à época em que
viveu Confúcio (c.551-479 a.C.). O CLÁSSICO DOS RITOS (ou Registo dos Ritos) é uma
volumosa antologia que reúne coleções de textos relacionados com rituais seculares e religiosos,
assim como códigos de comportamento destinados às classes sociais privilegiadas, para além de
conter ricos materiais de natureza filosófica.

Não é possível datar uma tal antologia, muito menos cada uma das suas componentes,
mas é provável que a maioria provenha dos séculos finais da dinastia Zhou (1046-221 a.C.) e,
pelo menos em alguns casos, dos inícios da dinastia Han (séc. II a.C.). É possível que o
Clássico dos Ritos terá sido produzido na escola de Lu, um principado que era grande defensor
da tradição sacra e onde existia a escola ritual mais importante. O objetivo consistiria em
promover a eficácia de cerimónias perfeitas e a consciência, por parte de cada ritualista e de
cada participante, do valor e do significado no seu todo. Os Ritos eram um elemento essencial
da estratégia confucionista para construir uma sociedade melhor. Conforme se lê nos Analectos:

«Caso o povo seja guiado pelo governo e [o seu comportamento seja]


uniformizado pelas punições, [ainda é possível que o povo] escape [das punições] e não

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tenha decoro. Caso o povo seja conduzido pela virtude e disciplinado pelos Ritos, não
apenas terá decoro, mas também se tornará Correcto» [Analectos 2.3 (I, p. 52)].

Por fim, os ANAIS DA PRIMAVERA E DO OUTONO, ou simplesmente


Primaveras e Outonos, uma obra que suscita alguma controvérsia mas que pode resultar da pena
do próprio Confúcio. Mêncio afirma que o velho Mestre escreveu de facto um tratado com este
título, com o propósito de criticar a decadência moral da sociedade coeva. Porém, o trabalho
sobrevivente que ostenta um tal título parece ser uma simples crónica que cobre o período que
se estende de 722 a 481 a.C., pelo que não deve tratar-se da obra a que Mêncio se refere.
Existem ainda uns Comentários de Zuo aos Anais da Primavera e Outono, que nos oferecem
uma narrativa empolgante das disputas violentas entre os vários senhores e governantes coevos,
num caleidoscópio de alianças, traições e assassinatos espetaculares (Van Norden, 2009, p.
XVI).

A maior parte dos autores admite que terá havido pelo menos um ‘sexto clássico’, a
saber, um Clássico da Música, provavelmente um cânone de música para rituais («Yüeh
Ching»); esta obra ter-se-á perdido ainda antes do século III a.C., mas o respetivo conteúdo
pode ser, de certo modo, conjeturado a partir de outros textos que chegaram até nós. De acordo
com a tradição, todas as obras que citámos terão sido editadas por Confúcio, ou pelo menos
validadas pela sua autoridade (e/ou dos seus discípulos). Daí que, muitas vezes, sejam referidas
como os «Clássicos confucionistas».

II

Os «Quatro Livros» da aprendizagem do Confucionismo

O corpus daqueles «clássicos» foi variando e enriquecendo bastante, ao longo


dos séculos. Coube aos principais filósofos neoconfucionistas da «Escola do Caminho»
(ex: Zhang Zai, Cheng Yi, Cheng Hao e Zhu Xi) selecionar, no século XII, um corpus
dentro daquele corpus; chamaram-lhe os «Quatro Livros» (ou «Livros dos Quatro
Filósofos»), considerando que eles continham a quintessência do Confucionismo.

Note-se que, na «Escola do Caminho», o entendimento das ideias originais de


Mestre K’ung já estava algo contaminado pela forte influência do Budismo e até do
Taoísmo. Porém, o essencial das teses de Confúcio permanecia válido e não foi

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atraiçoado. Em grande medida, devemos a Zhu Xi a influência que o Confucionismo
continuou a ter no Mundo, até aos dias de hoje. A ordem dos «Quatro Clássicos» seria a
seguinte: «A Grande Aprendizagem», «Analectos», «Mêncio» e «A Doutrina do Meio».

Destas quatro obras, a mais importante e a mais divulgada (incluindo em língua


portuguesa) é, sem dúvida, os ANALECTOS («Diálogos»). «Analectos», em sentido
restrito, significa meramente «uma coleção de escritos». Trata-se, não de uma narrativa
ordenada e com um autor único, mas sim de uma compilação de conversas registadas
pelos discípulos de Confúcio ao longo de, pelo menos, três gerações; aqui se recordam
as perguntas que eram feitas ao Mestre e as respetivas respostas. Como é fácil adivinhar,
esta antologia de ditos de Confúcio suscita muitos problemas de autenticidade textual e
não poucas dificuldades de tradução. Para além disso, os Analectos, tal como vimos
ocorrer com os Sermões do Buda, impressionam os leitores europeus pela sua aparente
simplicidade e ilusória falta de profundidade, uma circunstância que, desde logo, nos
adverte para as grandes diferenças que existem entre o pensamento ocidental e o modo
de meditar dos chineses.

Os Analectos são uma das mais influentes obras da história da Humanidade: este
livro foi estudado e reverenciado, não apenas na China mas também em muitas outras
culturas e civilizações asiáticas, a começar pelas vizinhas Coreia e Japão.

Suspeita-se que os Analectos («Lun Yü») possam ter sido compilados sobretudo
por Zheng Shen (ou Zengzi) e por You Ruo (da 2.ª geração), aos quais seria
reconhecido mais tarde o título de «Mestre». No século XII, a obra foi objeto da análise
detalhada de Zhu Xi (que estudara com os irmãos Cheng Yi e Cheng Hao), nos seus
«Comentários reunidos aos parágrafos e sentenças dos Analectos». Sabemos, por isso,
que estava dividida em 20 capítulos (em chinês: «pian»), cada qual segmentado em
parágrafos («zhang»), cada um deles contendo sentenças («ju») do velho Mestre. Os
«pian» terão sido reunidos em dez rolos de bambu («juan»), pois no tempo da dinastia
Zhou (durante a qual viveu Confúcio) os livros eram escritos em toalhas de seda, ou em
esteiras de bambu; só a partir dos Han é que se começou a usar o papel.

Tal como podemos verificar em muitas obras clássicas chinesas, o texto dos
Analectos não tem uma unidade rígida, navegando-se um pouco ao sabor das evocações

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dos alunos; isto favorece uma leitura algo aleatória da obra; o objetivo não é
acompanhar uma narrativa, ou alcançar um entendimento sistematizado, mas sim
procurar frases e sentenças incisivas que toquem o leitor e que despertem a sua intuição
pessoal. Tenha-se pois, desde já, em conta que a cultura chinesa promove menos a razão
(«logos», à maneira ocidental) e mais a união entre o intelecto e o sentimento.

Quanto às outras obras, A GRANDE APRENDIZAGEM («Ta Hsüeh») é um


pequeno trabalho que deve ter sido extraído do Clássico dos Ritos. A obra enfatiza o
objetivo comum do cultivo moral: «Desde o Filho do Céu até ao povo [comum], todos
devem considerar o cultivo [a educação] da pessoa como configurando a raiz de tudo».
A progressão individual é apresentada como uma escalada em sete etapas: «investigação
das coisas», «extensão do conhecimento», «sinceridade do pensamento», «correção da
mente», cultivo da vida pessoal», «regulação da família» e, por fim, «ordem no Estado e
paz no mundo». A obra dá seguimento à tradição confuciana de exortar o governante a
praticar um governo justo e benevolente e a acautelar o bem-estar do povo: «A maneira
de aprender a ser grande consiste em manifestar uma virtude ilustre, em amar o povo e em
permanecer no bem maior».

Como observam Höchsmann e Guorong (2007, p. 14), nesta obra, os poemas do


Clássico dos Poemas são interpretados do ponto de vista ético e citados como
ilustrações da vida moral. A Grande Aprendizagem defende a benevolência, a
reverência/respeito, a piedade filial, o amor e a fidelidade como sendo o principal
legado moral dos sábios governantes.

Também a obra conhecida como A DOUTRINA DO MEIO («Chung Yung»,


«O Meio Termo») deve configurar um extrato do Clássico dos Ritos, e pelas mesmas
razões. Como sintetiza John Bowker, «o texto trata a questão da situação existencial dos
humanos enquanto seres morais habitando num universo moral, assim como a
responsabilidade do indivíduo nobre para viver e agir em conformidade com isso, o que
traduz com exatidão a filosofia religiosa dos neoconfucionistas» (2005, p. 162). Em A
Doutrina do Meio, todos, qualquer que seja o seu ponto de partida, são exortados a
cultivar as virtudes, nomeadamente a sabedoria, a benevolência e a coragem:

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«Alguns nascem já com o conhecimento dessas virtudes. Outros aprendem-nas
através do estudo. Outros ainda por meio do trabalho árduo. Mas quando se alcança um
tal conhecimento, tudo vai dar ao mesmo. Alguns praticam [essas virtudes] de forma
fácil e natural. Outros fazem-no para seu próprio proveito. Outros ainda praticam-nas
com esforço e dificuldade. Mas quando se consegue alcançar o objetivo, tudo vai dar ao
mesmo»1.

Em A Doutrina do Meio, realça-se a perspetiva confuciana segundo a qual todos


temos potencial moral suficiente para alcançar a(s) virtude(s). E, tal como em A Grande
Aprendizagem, insiste-se no princípio da reciprocidade: «Escrúpulo («zhong») e
altruísmo («shu») não estão distantes do Caminho. Aquilo que não queres que os outros
te façam, não o faças tu a eles». O cultivo da pessoa consegue-se através do Caminho, e
o cultivo do Caminho pode ser alcançado através da benevolência («rén»), que é a
característica distintiva do homem. Quanto à retidão («yi»), corresponde ao princípio de
definir as coisas certas e adequadas, consistindo a sua maior aplicação em honrar os
virtuosos. A Doutrina do Meio é muitas vezes imputada a Zisi, neto de Confúcio e
discípulo de Zengzi, embora muitos também atribuam a este último porções
significativas da obra.

Por fim, o MÊNCIO traz o nome do importantíssimo pensador confucionista


que estudou na escola de Zisi e que, cerca de 100 a 150 anos após a morte de Confúcio,
daria um novo vigor ao pensamento do velho Mestre. Na opinião de Van Norden (2009,
p. XI), de todos os «Quatro Livros», o Mêncio é «o mais coerente, convincente e
compreensível», na medida em que os ditos, diálogos e debates que nele se encontram
vertidos são menos enganadores e enigmáticos do que nas outras três obras do mesmo
corpus. Zhu Xi reconheceu, aliás, a Mêncio (c.391/372-c.308/289 a.C.) um papel
importantíssimo no revigoramento da verdadeira tradição confuciana, ao afirmar que
esta fora lamentavelmente interrompida com a morte do mais notável aluno de Zisi.

No Mêncio podemos encontrar desde pequenos aforismos a diálogos bastante


longos, quer com discípulos, quer com personagens ilustres da política coeva. O tratado
deve ter sido escrito por Mêncio e por alguns dos seus alunos, tendo sido editado (numa
versão incompleta) no século II. O fito do trabalho consiste em afirmar a superioridade

1
Doutrina do Meio, citada por Höchsmann e Guorong, 2007, p. 14.

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do Confucionismo sobre outras doutrinas coevas, que ameaçavam o estatuto da filosofia
do Mestre K’ung (exs: o Mozi, Yhang Zhu). Tão grande foi o sucesso de Mêncio que,
depois da sua morte, foi considerado o «Segundo Sábio» do Confucionismo e a sua
evocação espiritual foi consagrada nos templos desta religião, com dignidade quase
equiparada à do Mestre fundador. Segundo Höchsmann e Guorong (2007, p. 13), «a
filosofia de Mêncio eclipsou as seitas rivais e emergiu como a transmissora direta dos
ensinamentos de Confúcio, fixando o legado da tradição confuciana».

III

Mitos da criação. O lugar do Céu, da Terra e do Rei

A maioria das culturas muito antigas produziu os seus próprios mitos da criação,
um elemento gerador de identidade e, muitas vezes, uma forma de ordenamento
político-social e de legitimação ideológica do poder constituído.

Na China, os reis acreditavam (e faziam acreditar) que eram filhos de Deus, ou


seja, Filhos do Céu. No tempo dos reis Shang (a segunda dinastia, c. 1600-1046 a.C.),
contava-se que o deus Tiân Di (o «Senhor das Alturas», ou «Altíssimo Céu», também
conhecido por Tiân Shang Di) enviara uma ave para a China; um ovo dela fora comido
por uma dama, que depois dera à luz o primeiro antepassado dos reis Shang.

No entanto, o mito da criação com maior impacto na China antiga parece ter
sido aquele que Xu Zheng registou na obra San Wu Li Ji, provavelmente composta
durante o período dos «Três Reinos» (entre 220 e 265 d.C.). Como observou Yu Dan
(2010, pp. 16-17), este mito mostra bem como, na perspetiva chinesa, a criação
consistiu num processo muito lento, pacífico, descontraído e pleno de antecipação:

«O céu e a terra separaram-se. A pura essência Yang transformou-se no céu, a


pesada essência Yin transformou-se na terra. Pan Gu estava entre eles, nove mudanças
num único dia, um deus no céu e um sábio na terra. Todos os dias o céu se elevava mais
de três metros, a terra aumentava mais de três metros de espessura e Pan Gu ficava mais
de três metros mais alto. Quando atingiu dezoito mil anos de idade, o céu era
infinitamente alto, a terra era infinitamente profunda e Pan Gu era infinitamente alto».

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«Posteriormente, o céu e a terra separaram-se, não da mesma forma que um
corpo sólido se separa em dois com uma pancada, mas antes como uma separação
gradual de duas essências; a leve, pura essência yang elevou-se e tornou-se o céu, a
pesada essência yin afundou-se e tornou-se a terra. Mas isto não marcou o fim da
separação entre céu e terra. O processo havia apenas começado» .

O Céu, a Terra e as Pessoas – eis os Três Reinos que formam o universo.


Confúcio via o mundo assim: os seres humanos são dignos de respeito e as pessoas
devem respeitar-se a elas próprias. A estratégia pedagógica de Mestre K’ung consiste
em levar os seus alunos a chegar ao âmago das questões com descontração, calma e
confiança; numa palavra, um equilíbrio harmonioso. «Hoje em dia na China dizemos
muitas vezes que, para que uma nação possa sobreviver e prosperar, o Céu deve sorrir-
lhe, a Terra deve ser-lhe favorável e o seu povo deve estar em paz. É a este equilíbrio
harmonioso que Confúcio nos pode conduzir hoje», remata Yu Dan.

A imagem de Pangu no interior do ovo cósmico simboliza o «Taiji», o termo


cosmológico chinês para referenciar o estado de ultimidade suprema de absoluta
indiferenciação e potencial ilimitado, o Uno antes da dualidade, a partir da qual Yin e
Yang foram geradas. Pangu é geralmente descrito como um gigante primitivo e
cabeludo, com cornos na cabeça e vestido de peles. Com o seu machado gigante, ele
separou Yin e Yang, criando assim a Terra e o Céu, respetivamente. Depois, durante
18.000 anos, manteve-os separados. Em algumas versões desta história, para o
desempenho desta tarefa hercúlea Pangu contou com o auxílio de quatro bestas
proeminentes: a Tartaruga, o Qilin (unicórnio, mais tarde associado a uma girafa), a ave
Fénix e o Dragão.

Quando Pangu, ao fim de 180 séculos, morreu, a sua respiração tornou-se o


vento, a neblina e as nuvens; a sua voz converteu-se no trovão; o seu olho esquerdo no
Sol, e o olho direito na Lua; a cabeça de Pangu deu origem às montanhas e às regiões
extremas da Terra; do seu sangue resultaram os rios, dos seus músculos a terra fértil e
da sua barba as estrelas da Via Láctea; a sua pele deu origem aos bosques e às florestas,
e dos seus ossos nasceram os minerais valiosos, enquanto as jóias preciosas brotaram da
sua medula; do seu suor nasceu a chuva; por fim, quando o vento levou as pulgas que
existiam na sua pele, surgiram os animais.

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Qualquer que seja a arqueologia exata do mito de Pangu, este documenta bem
como os Chineses sacralizavam as categorias mundanas (a Terra, o Cosmo, o Império).
Como observou Karen Armstrong (2009, p. 79), eles não queriam descobrir «algures» o
divino, o sagrado; o seu propósito passava antes por divinizar o mundo no seu todo, por
aproximá-lo o mais possível do modelo do seu protótipo – o Caminho do Céu. Se é
certo que o Céu é mais sublime, também é indesmentível a importância da Terra na vida
política urbana. Portanto, tornava-se necessário ligar ambos os elementos, através de
rituais simbólicos e em ocasiões especiais; por exemplo, quando ocorria um eclipse do
Sol, o rei e os seus vassalos sentavam-se à volta do altar da Terra para restaurar a ordem
cósmica.

Temos, portanto, que a Terra se configurava como «parceira» indispensável do


Céu; este nunca conseguiria implantar o seu «dào» (Caminho) sem a ajuda da Terra. Por
esse motivo, a investidura de um monarca simbolizava a abertura do Caminho para o
Céu na Terra; nessa ocasião, o rei recebia o «dàode», isto é, o «poder do Caminho»,
dotado de uma eficácia mágica sobre os homens e sobre a natureza. Assim, bastava a
presença do rei para influenciar positivamente o curso dos acontecimentos (salvo se se
tratasse de uma personagem maligna); como resume Armstrong (2009, p. 80), citando
um trecho dos festivais e cantares da antiga China: «O pensamento do rei é ilimitado. /
Pensa em cavalos e estes são fortes. / O pensamento do rei é completamente correto. /
Pensa em cavalos e estes partem a galope».

Em síntese, ao governo de um rei forte correspondia a natureza no seu apogeu; já


o mandato de um rei periclitante acarretava a fome, a sede e a morte. À maneira
oriental, os Chineses alimentaram uma visão holística da realidade, representando a
realeza como a entidade geradora da harmonia entre o homem e a natureza, que é como
quem diz, entre a Terra e o Céu. Daí que se tenham desenvolvido diversas práticas e
rituais, como p.ex. a de os soberanos trocarem de roupa, de dieta alimentar e de
acessórios no decurso do ano, conforme a sequência natural das estações: no inverno,
vestiam de preto, comiam milho-miúdo e carne de porco, instalando-se no canto
noroeste do seu palácio; mas no verão equipavam de vermelho e situavam-se a sul!

O rei da antiga China não tinha de definir políticas próprias, bastava-lhe agir
conforme o modelo celeste, seguir o Caminho. Sempre que as coisas não corressem

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bem, procedia-se a um reordenamento mágico do Mundo: o soberano convocava os
príncipes, confessava as suas culpas e procedia a sacrifícios no altar da Terra. Assim se
procurava restabelecer o Caminho do Céu. Nestes rituais, em que os humanos se
tornavam outros para além de si próprios (personalidade diferente, visão de harmonia,
beleza e sacralidade), a participação foi crescente: as cerimónias sacralizavam
provisoriamente uma comunidade, superando os ritos de manipulação dos deuses.

Como pensava Mêncio, o Céu fornecia um padrão moral, como se pode ler no
Livro dos Poemas: «O Céu dá lugar ao nascimento do povo abundante. / Se existe uma
coisa, existe uma norma» (Mêncio 7A: 1.1, p. 79). Por vezes, Mêncio trata o Céu como
quase idêntico ao curso natural (e amoral) dos acontecimentos humanos: «Penetrar
profundamente no nosso coração é entender a nossa própria natureza. Entender a nossa
natureza é compreender o Céu» (Mêncio 7A: 1.1, p. 79).

Nesta equação, o Céu, embora distante graças aos esforços hercúleos de


Pangu, permanecia, afinal, muito ligado à Terra. Ambos os elementos se
completavam tão harmoniosamente quanto as energias matriciais Yang (branco) e Yin
(negro), em cuja representação visual podemos detetar um cuidado bastante revelador: o
de deixar uma semente de branco na esfera de Yang, e uma semente de negro na esfera
de Yin, sinalizando a interconexão entre ambas. Também devido a esta ‘proximidade
longínqua’, o Céu era visto como fonte de legitimidade política, embora falasse pela
boca do povo comum e das suas reações (cf. Mêncio 5A: 5.2 e 5.5.).

IV

Visão sinóptica da história da China

Em termos macroscópicos podemos sugerir esta grelha:

 Pré-História [culturas neolíticas entre c. 10 000 e 2000 a.C.].


 História Antiga [dinastias Xia, Shang e Zhou].
 China Imperial [desde a dinastia Qin, c. 221 a.C., até 1912].
 República da China [1912-1949].
 República Popular da China [de 1949 até aos nossos dias].

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Aprofundando um pouco os marcos essenciais:

 Dinastia Xia: c. 2100-1500 a.C. [existência histórica não comprovada]

 Dinastia Shang (ou Yin): c. 1600-1046 a.C. [oráculos, escrita, muralhas, tecnologia
do bronze, carros a cavalo].
 Dinastia Zhou: 1046-221 a.C. [modelo de principados feudais, com a Casa Real de
Zhou no topo].
 Zhou Ocidental: c. 1046-771 a.C.
 Zhou Oriental: c. 770-221 a.C. [guerras entre reinos; diversas escolas
filosóficas; 770-c.475 a.C.: Período da Primavera e do Outono; c. 551-479
a.C.: vida de Confúcio; c. 475-221 a.C.: Período dos Estados/Reinos
Combatentes, durante o qual viveu Mêncio]
 Dinastia Qin: 221-207 a.C. [Estado unitário e administração centralizada
estandardização da escrita, dos pesos e das medidas; autoritarismo; supressão do
pensamento dissidente; construção do núcleo original da Grande Muralha, a norte,
pelo imperador Qin Shi Huang]
 Dinastia Han: c. 206/202 a.C-220 d.C. [o imperador Wu (r. 141-86 a.C.) converte o
Confucionismo em ortodoxia do Estado chinês; expansão para oeste e até à Coreia e
ao Vietname; introdução do Budismo na China]
 Han Ocidental (ou Inicial): 206 a.C.-9 d.C.
 Han Oriental (ou Tardio): 25 a 220 d.C.
 Período das Seis Dinastias: 220-589 [instabilidade e fragmentação do império;
domínio do norte por povos das fronteiras e das estepes; domínio do sul por
dinastias sucessivas; expansão do Budismo]:
 os «Três Reinos» (220-265). [reinos de Cao Wei, de Chu Han e de Dong
Wu].
 Dinastia Jin (265-420).
 Período das Dinastias do norte e do sul (386-589).
 Dinastia Sui: c.589-618 [reunificação da China; alongamento do Grande Canal
Jing-Han (entre Pequim e Hangzhou), o rio artificial mais antigo do Mundo; c. 605:
instauração do sistema de exames com base nos estudos literários clássicos
(«keju»), que se manteria até 1905]
 Dinastia Tang: 618-907 [época de ouro da China imperial; cosmopolitismo;
florescimento cultural; expansão territorial até à derrota frente aos Árabes, em Talas
(751); clímax da influência budista, até à repressão de c. 845; fundação do Budismo

13
Chan (Zen), por Hui Neng (638-713); sincretismo entre Confucionismo, Taoísmo e
Budismo; 690-705: Wu Zetian, a única imperatriz de jure da história chinesa].
 Período das Cinco Dinastias: 907-960.

 Dinastia Song (ou Sung): 960-1127/1127-1279. [grandes mudanças económicas e


sociais; monetarização da economia; crescimento das trocas e do comércio
marítimo; expansão urbana e inovações tecnológicas; neoconfucionismo de Zhu Xi
(1130-1200) na base da formação dos quadros imperiais].
 Song do Norte: 960-1127.
 Song do Sul: 1127-1279.
 Dinastia Yuan: c. 1206/1279-1368 [período Mongol. Pequim como a grande
capital, desde c. 1272; viagem de Marco Pólo (1275?)].
 Dinastia Ming: 1368-1644 [política cultural autoritária; valorização da agricultura;
viagens do almirante Zheng He (1405); Portugueses chegam a Macau (1557); padre
jesuíta Matteo Ricci chega à China (1578) e, em 1602, faz um mapa do mundo em
caracteres chineses revelador dos achados dos Europeus na Ásia Oriental].
 Dinastia Qing (ou Ch’ing): 1644-1911 [dinastia Manchu, fundada pelo clã Aisin
Gioro; prosperidade e alargamento territorial, mas também crescimento
demográfico avassalador; Guerras do Ópio, com a Grã-Bretanha e seus aliados
(1839-1842 e 1856-1860); Tratado de Nanquin, entre a China e a Grã-Bretanha, o
primeiro dos «Tratados Desiguais», ou «Iníquos» (1842)].
 Período Republicano: 1912-1949 [Constituição Provisória (1912); governo central
fraco; crescimento da influência ocidental (v. «Novo Movimento Cultural»);
Movimento estudantil do 4 de Maio de 1919, em reação ao Tratado de Versalhes de
1918; invasão japonesa (1931); tentativa de governo nacionalista centralizador
frustrada por revoltas internas e pela ocupação japonesa de 1937-1945; fuga dos
Nacionalistas para Taiwan, após a derrota frente aos Comunistas].
 República Popular da China: em 1.X.1949 [fundação por Mao Tsé-Tung, afastado
em 1959; «Grande salto em Frente» (1958) e «Revolução Cultural» (1966);
anexação do Tibete (1950); política de reforma e de abertura, desde 1978, com as
«Quatro Modernizações»: indústria; defesa; agricultura; ciência e tecnologia. 1982:
nova Constituição: 1983: eleição de Li Xiannian como Presidente] .

A Vida de Confúcio

14
K’ung Fu-tzu nasceu no principado de Lu, mais exatamente em Qufu (no
sudoeste da atual província de Shandong), em 551 (ou 552) a.C., e ali morreu também,
com cerca de 73 anos de idade. A sua família, cujos antepassados tinham pertencido à
Casa ducal de Song mas foram forçados a emigrar, tinha chegado há relativamente
pouco tempo a Lu, um Estado do centro-leste da China onde permaneciam bem vivas a
memória, a aura e as tradições da dinastia Zhou, agora já na fase designada por «Zhou
Oriental» (770-221 a.C.).

Confúcio veio ao mundo numa família da pequena nobreza, mais ligada às


campanhas militares do que ao ensino ou à administração pública. O seu pai chamava-se
Shuliang He e pensa-se que terá sido um valente guerreiro do país de Song
(imediatamente a sul de Lu). Quanto à mãe, parece ter sido uma mulher do povo, uma
concubina jovem que Shuliang procurou para conseguir ter o filho varão saudável que
lhe faltava (da sua esposa apenas tinham nascido mulheres e um filho deficiente).

Shuliang descendia da baixa nobreza de Shang e era um homem livre, mas sem
posses. Teria, provavelmente, alguma educação, mas pouco ou nada pôde transmitir ao
seu filho, uma vez que faleceu quando Confúcio tinha apenas três anos. Esta
circunstância deve ter agravado bastante as dificuldades materiais da família e estima-se
que K’ung tenha passado a infância numa «pobreza envergonhada» e sido obrigado a
trabalhos braçais diversos para conseguir sobreviver. Nos Analectos, há uma passagem
que os comentadores consideram sugerir isso mesmo: «Ao pescar, o Mestre não usa
rede; ao caçar pássaros com arco e flecha, não atira em pássaros no ninho» [Analectos
7.26 (I, p. 233)]. Aos 19 anos, Confúcio casou com uma mulher do clã Qiguan, do país
de Song. Um ano depois nasceria o filho Kong Li (nome de cortesia: Boyu), que terá
vivido entre 532 e 483/482 a.C.. Supõe-se que Kong Li terá sido um dos transmissores
do Clássico dos Poemas.

Pouco mais sabemos sobre a infância e juventude de Confúcio, que parece ter
sido um indivíduo bastante alto e robusto, de cabeça volumosa e pouco bonito. Em todo
o caso, é seguro que se dedicou desde muito cedo, e fervorosamente, aos estudos. Como
se recorda numa das passagens mais famosas dos Analectos:

«O Mestre disse: “Aos 15 anos empenhei-me no Estudo. Aos 30, estabeleci-me


[assumir os deveres sociais, integrar-se na comunidade]. Aos 40, já não tinha dúvidas
[entendimento da Ordem objetiva da Natureza ]. Aos 50, compreendi o Mandato do
Céu. Aos 60, os meus ouvidos estavam afinados [conhecer as pessoas, o falso e o

15
verdadeiro ]. Aos 70 [consegui] seguir o que desejava o meu coração, sem infringir as
regras”» [alcançou a liberdade: capacidade para agir livremente no meio social sem
entrar em conflito com os seus iguais ].

O investimento de Confúcio nos estudos deve ter sido decisivo para que ele
pudesse abandonar os trabalhos mais pesados ou mais rústicos (por exemplo, como
administrador de silos e de armazéns, ou como guardador de rebanhos) e pudesse, a
partir dos trinta anos, começar a receber alunos.

Mais tarde, Mestre K’ung faria carreira como «dafu» [nobreza média] no seu
próprio país de Lu, tendo chegado a desempenhar o cargo de Ministro das Punições
(talvez comparável a um Ministro da Justiça) durante cerca de três anos. Com cerca de
55 anos, Confúcio abandonou Lu, possivelmente em rotura com as autoridades políticas
locais.

Acompanhado por vários discípulos, viajou durante quase uma década e meia
através de alguns dos reinos centrais, tendo chegado a desempenhar cargos públicos em
Wei e em Chen. Por volta de 482 a.C., optou por regressar ao Estado natal de Lu, muito
provavelmente desiludido com a sua carreira política (recordo que se estava em pleno
«Período da Primavera e do Outono») e disposto a dedicar o resto dos seus dias ao
ensino e à partilha dos seus conhecimentos e da sua filosofia de vida com os seus
discípulos; costuma-se falar em cerca de 3000 alunos, de entre os quais se terá
destacado um escol de 72 que seriam particularmente brilhantes nas diversas áreas da
formação.

Foram estes alunos que acompanharam os últimos anos da longa vida de Mestre
K’ung, que se supõe ter falecido em 479 a.C., rodeado dos discípulos mais fiéis, como
por exemplo Zengzi, Zigong, Zixia, Zizhang ou Ziyou, entre outros. Poucos anos antes,
Confúcio vira já partir para sempre aquele que é geralmente considerado como o seu
aluno favorito: Yan Hui (nome de cortesia: Ziyuan) que terá morrido com trinta e
poucos anos. Este seria o discípulo mais amado por Mestre K’ung, não apenas pela sua
devoção ao Estudo, mas também pelo seu exemplo de Virtude pessoal, de humildade e
de alegria simples de viver (Yan Hui era muito pobre, e assim morreu). Note-se que este
aluno foi o primeiro a receber sacrifícios imperiais ao lado de Confúcio e o seu estatuto
de ‘número dois’ do Velho Mestre manteve-se ao longo de toda a história chinesa.

16
Confúcio sentiu profundamente o decesso de Yan Hui, tal como se deduz de algumas
passagens dos Analectos:

«Yan Yuan morreu. O Mestre disse: “Ai! que o Céu me castigue! Que o Céu me
castigue!»; «Yan Yuan morreu, o Mestre chorava inconsolavelmente. Alguém que [o]
acompanhava disse: “O Mestre está inconsolável”. [O Mestre] disse: “Estou mesmo
inconsolável? Se não fosse por aquela pessoa, por quem é que eu [ficaria] assim?”».
(Analectos 11.8 e 11.9; II, pp. 53-54).

Mais ou menos pela mesma altura, terá falecido Kong Li, o filho de Confúcio.
Não é difícil adivinhar um final de vida amargo para o grande educador chinês,
dececionado pelo fracasso da sua carreira pública e fustigado pelas mortes, muito
próximas, do seu próprio filho e do seu mais amado discípulo.

VI

Os 5 vetores do «dào» de Confúcio

Em primeiro lugar, a alegria na vida comum, ou seja, algo bem contrário ao


ascetismo, ou à transcendência da vida quotidiana. O Confucionismo não apenas não
desencoraja os prazeres pessoais, como fomenta o culto das amizades sinceras (não
interesseiras), assim como a harmonia no seio da família e da comunidade. A reflexão
do Mestre K’ung está essencialmente vocacionada para o aperfeiçoamento da existência
terrena, ele evita até discutir questões como a vida depois da morte, ou os espíritos.
Repare-se neste diálogo entre o Mestre e o seu extrovertido aluno Zilu:

«Zilu perguntou sobre [como] servir os espíritos. O Mestre disse: “Não pôde
servir as pessoas, como servir os espíritos?”. [Zilu disse:] “Ouso perguntar sobre a
morte”. O Mestre disse: “Não sabe o que é a vida, como saber o que é a morte?”»
[Analectos 11.11 (II, p. 55)].

Isto não quer dizer que Confúcio desprezasse as questões espirituais; porém,
tinha o cuidado suficiente para evitar que os seus alunos, sobretudo os ainda menos
preparados, invertessem as prioridades. No fundo, o Mestre recomendava que se

17
servisse primeiro as pessoas, pois assim se aprenderia a servir os espíritos; sabendo
como viver, estar-se-ia também mais apto a discutir e a enfrentar a morte.

Podemos então perguntar – e Zilu, noutra ocasião, não perdeu o ensejo de o


fazer – quais seriam as aspirações concretas de Confúcio? A resposta deste foi
admiravelmente concreta, sensível e desarmante: «Dar tranquilidade aos velhos, ter a
confiança dos amigos, abraçar [eternamente] as crianças» [Analectos 5.25 (I, p. 177)] …

O segundo vetor do dào de K’ung Fu-tzu é a tradição. Esta é que servia de


padrão para avaliar a condição de uma sociedade humana do presente. Confúcio dizia:

«Transmito, mas não crio. Confio e amo a Antiguidade» [Analectos 7.1 (I, p.
209)].

O Mestre desvalorizava a originalidade das suas propostas, alegava que apenas


pretendia recordar e recuperar os valores da China tradicional, aqueles mesmo que os
Reis Sábios haviam difundido. Claro que Confúcio aceitava que certos aspetos da
tradição pudessem ser atualizados; por exemplo, ele validou a troca dos chapéus
cerimoniais, feitos com 2400 fios de cânhamo entrelaçados, por outros mais baratos,
fabricados em seda.

O apego de Confúcio à tradição de certo modo fez dele um historiador. Ele


procurou compilar, editar e, provavelmente, comentar os textos matriciais da cultura
chinesa, e não se cansou de pesquisar os Ritos, a música antiga, os poemas… A tradição
representava como que a verdade definida por antecipação, pelo que muita da crítica
social que Confúcio faz assume a forma de repúdio pelo incumprimento das práticas do
passado:

«Os Ritos da dinastia Xia, posso discorrer sobre eles: [os Ritos] do país de Qi
não valem como comprovação. Os Ritos da dinastia Yin [Shang], posso discorrer sobre
eles: [os Ritos] do país de Song não valem como comprovação. Isto porque são
insuficientes os documentos e os virtuosos. Caso fossem suficientes, eu seria capaz de
comprová-los» [Analectos 3.9 (I, p. 92)].

Este género de crítica ao presente em nome do passado é uma constante nos


Analectos e faz com muitos comentadores de hoje considerem Confúcio como um

18
intelectual altamente conservador, um nostálgico do tempo mítico das primeiras
dinastias. Repare-se nesta outra passagem, que tem a particularidade de incidir sobre as
opções estéticas coevas:

«[Devemos] detestar o facto de a púrpura ter tomado o lugar do vermelho.


[Devemos] detestar o facto de os sons do país de Zheng terem descaracterizado a
música elegante. [Devemos] detestar o facto de as pessoas de língua afiada terem virado
o país de pernas para o ar» [Analectos 17.18 (II, p. 229)]2.

O terceiro vetor do dào de Confúcio é a família. Para o Mestre, tudo de bom


(ou de mau) começava na família de cada um. Era aí que se deviam adquirir as virtudes
principais, tal como sugere um jovem discípulo (provavelmente You Ruo) quando
resume, em forma de pergunta: «Ser Filial e Fraterno, não são esses os fundamentos do
agir com Humanidade?» [Analectos 1.2 (I, p. 30)].

Quando se ama e se é amado no seio da própria família, então está-se a aprender


a ser bondoso e cortês com os outros, habituamo-nos a reconhecer os nossos limites e a
desenvolver-nos como pessoas íntegras. Em mais lado nenhum isto pode acontecer de
forma tão natural e tão decisiva quanto no ambiente familiar. Daí que o Confucionismo
fale em «amor diferenciado», com isso condenando as teses daqueles que, como Mozi,
defendiam a «imparcialidade dos afetos». Para Confúcio, dentro da família construíam-
se os laços sociais e emocionais mais intensos, mais estáveis e mais duradouros,
seguidos daqueles que se podiam criar com os amigos mais próximos e, já numa ordem
decrescente de grandeza, com os membros da comunidade a que se pertencia.

Há nos Analectos uma passagem que enfatiza esta ideia forte do Confucionismo:
o duque She, do país de Chu, gaba-se a Confúcio (que cumpria então o seu «Périplo
aos Países») pelo facto de, naquele grande país meridional, «se o pai rouba uma cabra, o
filho denuncia-o». Com isto queria o duque sublinhar a imparcialidade implacável da
justiça no seu território. A resposta do Mestre é reveladora e, como de costume,
desconcertante:

2
Sinedino (pp. 229-230) explica que a púrpura não era uma cor correta, mas sim «intermediária»; as
cinco cores «corretas» eram: o azul/verde, o vermelho, o amarelo, o branco e o preto. Note-se que o
número cinco tem uma conotação ética, estando associado às ideias de estabilidade e de moderação.
Quanto à música, o Mestre apenas considerava «elegante» a música ortodoxa de Zhou.

19
«As pessoas rectas na minha terra são diferentes: o pai é escondido pelo filho, o
filho é escondido pelo pai. Ser recto é isto» [Analectos 13.18 (II, p. 114)].
.

Evoque-se o comentário de Giorgio Sinedino, que realça o facto de a psique


chinesa consentir o favoritismo, mais do que recuar perante um estrito legalismo: a
emoção e o sentimento prevalecem sobre a lei impessoal e universal. Ao contrário do
que sucede no Ocidente, na China, «só há lealdade quando esta vem do berço. Não há
lealdade sem sentimento ou respeito à ordem natural: o pai protege o filho, e o filho
protege o pai. A base da ética confuciana é uma troca. Filialidade («xiao»), amor e
cuidado devidos aos pais; carinho («ci»), respeito e cuidados devidos aos filhos. Na
utopia confuciana, a ordem social é corolário da ordem familiar, que por sua vez é
corolário da ordem natural» (Sinedino, 2017, II, p. 114).

O mesmo tipo de conceito reaparece em Mêncio. Este filósofo conta que, no


tempo do sábio rei Shun, se por hipótese o pai deste assassinasse alguém, Shun «…teria
fugido secretamente com ele às costas, para viver no litoral, feliz pelo fim dos seus dias
e alegremente esquecido do mundo» [Mêncio 7A: 35.6 (p. 83)]!

Deste modo, no Confucionismo o dever filial assume um valor quase religioso;


considera-se mesmo que o corpo foi dado pelos pais, pelo que, por exemplo, a tonsura
praticada pelos monges budistas é considerada uma blasfémia. Neste enquadramento,
fazer bem aos pais e aos idosos é, em si mesmo, uma coisa boa, que acarreta alegria.
Pelo contrário, criticar os pais severamente é um comportamento inadequado:

«Ao servirmos os nossos pais, devemos apontar os seus erros de forma discreta.
Percebendo que a vontade [deles] não é conforme [a nossa], devemos voltar a mostrar
respeito e não contrariá-los. Mesmo que nos extenuemos [na tarefa], não podemos
mostrar irritação» [Analectos 4.18 (I, p. 137)].

De forma simétrica, os filhos devem aceitar de boa índole os castigos impostos


pelos seus pais, mesmo que sejam (ou lhes pareçam) injustos; Zhu Xi dirá mesmo que,
ainda que «batam no filho com um chicote até arrancar o sangue», ele não deve irritar-
se, muito menos levantar a mão ao pai; quaisquer que sejam as circunstâncias, a
Filialidade tem sempre de ser preservada (Zhu Xi citado por Sinedino, 2017, I, p. 138).

Como é fácil imaginar, muitos vêem nesta abordagem confucionista um


conservadorismo profundo, nutrido de pregação da obediência e da submissão, algo
20
com indesmentível utilidade política. É impossível negá-lo, mas deve, ainda assim, ter-
se em conta que «o alicerce das sociedades orientais é o entrelaçamento das hierarquias
familiar e política» (Sinedino, 2017, I, p. 137).

Ainda em relação ao ambiente familiar, convém dizer que o Confucionismo se


colocava de pé atrás em relação às mulheres, uma vez que considerava que elas podiam
ser um elemento de desestruturação da família e um fator desincentivador da busca
individual do progresso moral. Como Mestre K’ung diz nos Analectos (ou os seus
discípulos por ele): «Nunca vi ninguém que gostasse tanto da virtude quanto da beleza
das mulheres» [Analectos 9.18 (II, p. 20)].

Devo, entretanto, lembrar que a misoginia é uma constante nas religiões mais
antigas, estando longe de constituir um problema específico do Confucionismo, ou
sequer das espiritualidades orientais.

O quarto vetor do «Caminho» de Confúcio é o Ritual. Não se pense, contudo,


que se trata apenas de ritos religiosos (ex: oferta de alimentos ou de vinho aos espíritos
dos antepassados, funerais), por vezes ao som da música e envolvendo certas danças.
Com efeito, por «Ritual» entendem-se também as «regras de etiqueta» social, como
saber saudar e acolher um hóspede, dirigir-se corretamente a um subordinado ou a um
superior, cumprimentar de forma adequada alguém que se encontra de luto, entre muitos
outros casos que poderia citar. O Ritual é reverência, respeito, cortesia. A certa altura,
nos Analectos, Yan Hui interroga o Mestre sobre o significado exato de «Humanidade»
(«rén», um conceito chave), e Confúcio responde assim:

«Dominar-se a si próprio, revigorar os Ritos: isso é Humanidade. Se um dia [as


pessoas conseguirem] dominar-se a si próprias, revigorar os Ritos, então Tudo sob o
Céu regressará à Humanidade. Realizar a Humanidade cabe à própria pessoa ou cabe
aos outros?».

Nessa altura, Yan Hui perguntou quais os modelos que deveria seguir, e
Confúcio respondeu: «Se não for como nos Ritos, não veja; Se não for como nos Ritos,
não ouça; Se não for como nos Ritos, não fale; Se não for como nos Ritos, não aja».
[Analectos 12.1 (II, pp. 71-72)]

21
Os Ritos estavam em toda a parte. Em Estados mais apegados à tradição (como
Lu) era impressionante o pormenor da regulamentação sobre as expressões faciais, o
vestuário, os adereços, a maneira de caminhar e de comer, o comportamento em
reuniões, o uso de cores e um sem número de outras regras que seria fastidioso
enumerar aqui de forma exaustiva3.

Os Ritos mais suscetíveis de gerar controvérsia eram os que tinham que ver com
os funerais e com o luto. Na tradição confuciana, os enterros eram muitas vezes bastante
elaborados, com um caixão interno e outro externo, trajes especiais para o defunto,
colocação de objetos e bens no túmulo, seguindo-se um período de nojo muito
prolongado. Claro que os críticos do Confucionismo (como Mozi) condenaram estes
excessos, considerados inúteis; todavia, Confúcio insistiu sempre na ideia de que o
mais importante eram os sentimentos, e não a encenação:

«Lin Fang perguntou qual é o fundamento dos Ritos. O Mestre disse: “Grande
pergunta! [Em relação às] às cerimónias em geral, antes singelas que ostensivas. [Em
relação às] cerimónias fúnebres, antes tristes que elaboradas» [Analectos 3.4 (I, p. 86)].

Os ritos funerários serviam para consagrar, na altura do passamento, os mesmos


sentimentos e deveres dedicados aos vivos. E podiam ser também um elemento de
ordenação e hierarquização da sociedade, independentemente do seu conteúdo religioso.
O mais importante era a sinceridade, seguir os Ritos permitia preencher e completar as
qualidades humanas:

«Ser cortês mas sem [conhecer] os Ritos, leva à fadiga. Ser cauteloso, mas sem
[conhecer] os Ritos, leva à covardia. Ser corajoso, mas sem [conhecer] os Ritos, leva à
insurgência. Ser directo, mas sem [conhecer] os Ritos, leva à precipitação. (…)».
[Analectos 8.2 (I, p. 247)].

Em conclusão, os Ritos ajudavam as pessoas a ter a noção da «Justa Medida» (o


conceito confuciano de moderação e equilíbrio), regulavam o «espectáculo do sagrado»,
mas, sobretudo, regiam minuciosamente os comportamentos humanos, desde a posição
3
Sobre estes aspetos, vejam-se detalhes muito curiosos nos capítulos 10.4 a 10.8 dos Analectos (II, pp.
33-37). Em matéria de cores, p. ex., o azul cobalto e o carmim era reservados para o jejum sacrificial e
para o luto de três anos, respetivamente; o preto era considerado uma cor auspiciosa (e por isso não se
usava em tempo de luto). Os adereços de jade, pelo seu lado, contavam-se entre os mais apreciados. Em
síntese, «os chineses acreditavam que virtudes, emoções, cores e sons estavam relacionados, daí os Ritos
determinarem as combinações corretas» (Sinedino, II, p. 37).

22
correta de dormir até à maneira de se sentar numa carruagem a cavalo, passando pela
atitude a ter durante uma doença. Se os Ritos fossem tidos em conta, pensava Mestre
K’ung, a China do século V a.C. não estaria dilacerada por uma violência tão cruel.

O quinto e último vetor do dào confuciano é a «educação ética». Confúcio


acreditava que a única forma de aperfeiçoar um ser humano com potencial para isso era
através da educação; só ela poderia torná-lo, não apenas mais habilidoso, ou mais
informado, mas também mais benevolente, mais generoso, mais sábio e mais reverente.

Para cumprir esse desiderato, Mestre K’ung recorria, claro está, aos «clássicos
chineses», nomeadamente ao Clássico da Poesia e ao Clássico da História. Tudo partia
daqui, com o objetivo não apenas de levar o aluno a decorar esses textos, mas também
de aprender a interpretá-los corretamente e, a um nível já mais exigente, de conseguir
com que ele pusesse em prática esse conhecimento, sempre sob a orientação do Mestre.

Claro que isto não se conseguia fazer com qualquer aluno. Embora Confúcio
tenha ficado conhecido por ter aceitado todo o género de estudantes, independentemente
da sua riqueza ou pedigree e desde que tivessem vontade de aprender, o certo é que o
Confucionismo não deixa de ser «uma doutrina elitista»; como se pode ler nos
Analectos: «Somente as mulheres e os homens pequenos são difíceis de educar: quando
nos aproximamos deles, [retribuem com] ódio». [Analectos 17.25 (II, p. 236)].

Antes de Confúcio, e segundo se deduz do Clássico dos Ritos, já havia escolas


públicas destinadas às crianças nobres e também aos filhos mais talentosos dos
camponeses. As crianças e os adolescentes estudavam em conjunto e o ensino tinha um
caráter essencialmente prático, visando não tanto o conhecimento factual, mas mais a
preparação para a vida em comunidade. Sob o monopólio do governo, o ensino baseava-
se nas tradições escritas de Zhou e em noções claras de «certo» e de «errado». O
sistema escolar chinês tinha dois níveis: i) a «pequena aprendizagem» (primeiras letras,
regras de etiqueta e prendas); e, a partir dos 15 anos, a «grande aprendizagem», ou seja,
a literatura e as «Seis Artes»: Ritos; música; arco e flecha; condução de carruagens;
escrita/caligrafia; e contagem/aritmética.

Ora, Confúcio foi talvez um dos primeiros professores a oferecer serviços


«privados» de natureza educativa na China, tendo introduzido uma clara mudança de

23
paradigma: ignorou os requisitos etários e sociais e reforçou a missão da escola como
formadora do caráter dos alunos; as pessoas socialmente superiores deviam ensinar as
inferiores, e não se tratava apenas de formar indivíduos autónomos, mas sobretudo de os
doutrinar, de lhes incutir determinados valores, de os fazer interiorizar certos papéis
sociais. Neste sentido, além de elitista, o Confucionismo era também uma doutrina
hierárquica e moralizante.

Deste modo, embora a essência daquilo a que o Mestre chama geralmente «o


Estudo» incluísse um curriculum formal de textos, a essência do trabalho professor-
aluno estava centrada no aperfeiçoamento ético e moral, ou seja, na transformação das
atitudes e dos comportamentos dos discípulos: «Aprender algo e depois poder praticá-lo
com regularidade, isso não é um contentamento?», pergunta Confúcio logo no primeiro
capítulo dos Analectos.

Dito de outro modo: o estudo da Literatura e das «Seis Artes» devia ser feito
numa perspetiva mais ampla e mais profunda – a da realização do dào, ou Caminho.
Também por isso, o Mestre criticava aqueles que estudavam apenas para conseguir
vantagens materiais futuras: «Estudar três anos e não ambicionar [remuneração em]
grãos, isso é muito difícil». [Analectos 8.12 (I, p. 255)].

Confúcio fustigava, pois, o utilitarismo da maioria das pessoas e defendia que o


Estudo tinha um valor que ia muito para além da sua expressão material, que era
independente da realização social, ou da conquista do respeito e do reconhecimento
públicos. O mais importante era que se tivesse vontade de estudar, de aprender, e não se
tivesse vergonha de fazer perguntas. Ser estudioso era mais importante do que ser
esperto, qualidade que facilmente conduzia à arrogância superficial que Confúcio tão
duramente condenava. Só o «Estudo» entendido como aprendizagem estruturada em
função do objetivo ético do autoaperfeiçoamento podia ser completamente realizador:

«Aspirar ao Caminho [dos Sábios da Antiguidade], manter-se na virtude,


adequar-se à Humanidade, passear pelas Artes» (Analectos 7.6, I, p. 213).

Um outro aspeto interessante e amplamente discutido ao longo dos séculos tem


que ver com a associação íntima que Confúcio faz entre «estudar» e «pensar»: «Estudar

24
sem pensar, isso leva a incertezas. Pensar sem Estudar, isso leva a riscos» (Analectos
2.15, I, p. 68).

Nota-se aqui uma concatenação estreita entre a «aprendizagem» e a «reflexão»,


no quadro de uma proposta educativa que é essencialmente ética. Zhu Xi diria que
«pensar» (i.é, considerar os casos concretos, tomar decisões) é como que «procurar algo
no coração», o que enfatiza a ideia oriental de harmonia entre coração e cérebro,
reforçada pela influência budista, que considerava o coração como o centro das funções
intelectuais e também como o palco das emoções e da vida sentimental.

Estudar e pensar complementam-se; não se pode avançar no Caminho se alguma


destas duas dimensões ficar para trás. Uma e outra interagem de forma permanente;
Confúcio não se negava a apresentar o seu testemunho pessoal nesta matéria: «No
passado, eu não comia de dia, não dormia à noite, [sempre] a pensar. [Se] não houver
progresso, é melhor Estudar». [Analectos 15.30 (II, p. 185)]

VII

Entre Mestre e discípulos

O grau de exigência da proposta sobre «educação ética» de Confúcio é bastante


elevado, pelo que se compreende que ela não seja exequível sem uma relação muito
próxima e muito especial entre o Mestre e os discípulos. Até porque a aprendizagem
deve ser permanente, não é algo que se conquista numa determinada fase circunscrita no
tempo e que depois se conserva incólume durante o resto da vida: «No Estudo deve
proceder-se como se ele fosse inalcançável: uma vez alcançado, ainda se deve temer
perdê-lo» [Analectos 8.17 (I, p. 258)].

É impressionante a atualidade deste aforismo dos Analectos, que nos adverte


para a precariedade do conhecimento e para a importância de sabe conservar sempre
uma atitude de dúvida. Tudo isto exigia confiança e proximidade elevadíssimas entre
professor e aluno. De resto, não era raro os discípulos morarem com o seu próprio
Mestre e acompanharem-no nas suas deambulações (por vezes durante anos a fio, como
parece ter sucedido com Confúcio durante o seu «Périplo»), construindo deste modo
entre si uma relação de tipo quase familiar. A remuneração do Mestre parece ter

25
dependido das possibilidades dos alunos e Confúcio, nesta matéria, não devia ser
exigente, sobretudo quando o discípulo valia a pena: «Aquelas pessoas que me deram
uma trouxinha de carne-seca, nunca deixei de ensiná-las» (Analectos 7.7, I, p. 25).

Ao mesmo tempo, os alunos ficavam subordinados ao Mestre e não deviam ter


direito a exigir-lhe nenhum tipo especial de ensino. Dessa relação de subordinação
resultava até que Confúcio fosse servido pelos seus discípulos em assuntos do
quotidiano: por exemplo, podia enviá-los em viagens aos Países do Meio, ou entregava
nas suas mãos a administração de pelo menos alguns dos seus bens, entre outras tarefas.
Tudo isto era também uma forma de preparar os discípulos para o serviço público e de
os treinar do ponto de vista moral. Como observou Juan Masiá (2003, p. 93), educar-se
significava «adquirir conhecimento moral, que consiste não em saber o que é bom ou
mau, mas na prática e experiência do bom, de ser bom e fazer o bem». Portanto, a
aprendizagem fazia-se através do exemplo (designadamente o do Mestre) e durante a
vida toda. Como diz um bonito e tocante ditado chinês: «Professor por um dia, pai
por uma vida»…

Karen Armstrong (2009, p. 206) observou que «Confúcio trouxe para a terra a
religião da China», ou seja, incutiu nas pessoas a vontade de aprender a ser boas «cá em
baixo», em vez de se perderem em elucubrações esotéricas sobre deuses e espíritos. A
tarefa do jûnzi (o ser humano maduro, cultivado e profundo) consistia em tecer com mil
cuidados a via que levava até à bondade transcendente, usando como vade mecum os
rituais, esse «mapa de estradas» que conduz ao bom caminho. Todos (pelo menos os
que pertenciam ao escol da nobreza, ou ao grupo dos filhos mais talentosos dos
camponeses) podiam lá chegar, mas era preciso muita persistência, tal como
exemplificava o artesão do marfim; o aperfeiçoamento exigia que se estudasse com
entusiasmo; como se podia ler no Clássico dos Poemas (e os Analectos repetem), era
«como coisa cortada, como coisa limada, / Como coisa cinzelada, como coisa polida»4.

Mas o que é que definia um bom Mestre? Confúcio dá, ele próprio, a resposta:
ter boa memória; ter avidez pelos estudos; e revelar dedicação à orientação moral e
intelectual dos seus alunos. É essa a fórmula que se pode ler nos Analectos: «O Mestre
disse: “em silêncio memorizar [o que se aprendeu], estudar sem se cansar, guiar as

4
Clássico dos Poemas, citado por Karen Armstrong, 2009, p. 296. A mesma ideia aparece transposta
quase literalmente para os Analectos (1.15, I, pp. 45-46): «Zigong disse: “Lê-se nos Poemas: ‘é como
cortar, é como polir, é como cinzelar, é como lixar’».

26
pessoas sem se fatigar. Qual destas [três características] possuo em mim»?”» [Analectos
7.2 (I, p. 210)].

Salta à vista que não era apenas o aluno que precisava de se aperfeiçoar, o
Mestre tinha, ele próprio, de percorrer também esse caminho: «Não cultivar a virtude,
não ensinar o que aprendi, não poder compensar [a minha atitude] após entender qual o
meu dever, não poder corrigir o que não tenho de bom, eis com o que me preocupo».
[Analectos 7.3 (I, p. 211)].

Há uma passagem dos Analectos (7.37) em que os discípulos recordam o


temperamento de Confúcio: «O Mestre é ameno, mas grave; tem autoridade, mas não é
agressivo; é cortês e sereno» (I, p. 242). Os alunos viam Confúcio como a
personificação da «Justa Medida», ou seja, da Harmonia que resulta do equilíbrio dos
extremos. Ainda assim, o Mestre não se considerava um sábio, e repetia:

«Eu apenas estudo sem me fatigar e ensino sem me cansar»; ao ouvir isto,
Zigong comentou: «estudar sem se fatigar é sabedoria; ensinar sem se cansar é
benevolência. Sendo benevolente e douto, o Mestre já é certamente um sábio».
[Mêncio 2A: 2.19 (p. 18)].

Mêncio, o principal continuador antigo de Confúcio, diz que este foi o maior de
todos: «desde que os primeiros humanos nasceram, nunca existiu um outro Confúcio»
[2A: 2.23 (p. 19)]. Noutras duas passagens, Mêncio declara:

«Quando Confúcio deixou o Estado de Qi, apenas recolheu o arroz que estava
prestes a cozinhar e partiu. Quando deixou o estado de Lu, disse: “Não tenho pressa”.
Tal é a forma de deixar o Estado dos nossos pais. Quando era necessário ir depressa, ele
ia depressa; quando era preciso demorar, ele demorava; quando era preciso parar, ele
parava; quando era preciso ficar, ele ficava; quando era preciso assumir um cargo, ele
assumia – tal era Confúcio». [Mêncio 5B: 1.4 (p. 64)].

«Bo Yi era um sábio da pureza; Yi Yin era um sábio da responsabilidade;


Liuxia Hui era um sábio da harmonia; Confúcio era um sábio da oportunidade; era
aquilo a que se chama uma sinfonia completa, de que a campainha anuncia o começo e
os carrilhões de jade o final. [Mêncio 5B: 1.5 a 1.7 (p. 64)].

Como também dizia Mêncio, «um sábio é um professor para uma centena de
gerações» [7B: 15.1 (p. 87)]; os alunos de Mestre K’ung tinham perfeita consciência
disso. Há uma interessante passagem do Mêncio em que Zai Wo, Zigong e You Ruo
27
discutem entre si sobre o real valor de Confúcio. Zai Wo achava que o Mestre tinha
superado largamente os Reis Sábios (Yao e Shun); Zigong, pelo seu lado, era da opinião
de que bastava examinar os rituais e escutar a música para se perceber que Confúcio foi
o melhor de sempre. Por fim, You Ruo declarou:

«Há aqui algo que não tem apenas que ver com pessoas: o unicórnio entre as
bestas, o Fénix entre os pássaros, o Monte Tai entre morros e formigueiros, e o Rio
Amarelo e os mares entre as águas que correm, todos eles são do mesmo tipo. Também
o sábio é do mesmo género das outras pessoas. Mas alguns sobressaem de entre os do
seu tipo; alguns emergem da multidão: desde que os primeiros humanos nasceram,
jamais houve algum que tivesse alcançado um cume maior do que Confúcio». [Mêncio
2A: 2.25 a 2.27 (p. 19)]

No entanto, por muita que fosse a admiração pelo Mestre, o discípulo tinha a
obrigação de tentar ser autónomo, de ser capaz de se emancipar, e até, eventualmente,
de superar o seu professor. O momento mágico em que isso sucedia deveria configurar,
no coração e no espírito de um bom Mestre, não um momento de inveja, ou de
sentimento de perda de estatuto, mas de suprema alegria. Confúcio sugere que foi isso
que lhe sucedeu com Yan Hui, o seu discípulo dileto. Nos Analectos, o duque Ai, do
país de Lu, pergunta a Confúcio:

«Dentre os seus discípulos, quem gosta de estudar?». E o Mestre responde:


«Havia Yan Hui, que gostava de estudar; não vingava a raiva [que tinha de outros em
terceiros], não cometia o mesmo erro duas vezes. Infelizmente, teve vida curta e
morreu! Agora que morreu, não ouvi [mais] falar de [ninguém] que goste de estudar»
[Analectos 6.2 (I, p. 183)].

Isto documenta bem a importância que o Mestre atribuía ao ideal de


autoperfeiçoamento, de transformação moral progressiva do aluno. O principal
problema que se colocava a quem queria alcançar verdadeiramente este objetivo era a
persistência: «O coração de Hui por três meses não se distancia da Humanidade. Quanto
aos [meus] outros [discípulos], só conseguem por um dia, [no máximo] um mês e só».
Além disso, Yan Hui era humilde e simples, encontrava a felicidade onde outros só
vislumbravam sacrifício:

«Como é virtuoso [este] Hui! Uma cestinha de bambu com arroz para comer,
meia cabaça de água para beber, uma ruela para morar. Outros não suportariam as

28
preocupações [de uma vida assim], mas Hui está sempre alegre. Como é virtuoso [este]
Hui!» [Analectos 6.9 (I, p. 189)].

Para Confúcio as diferenças sociais são normais, o ideal consiste em ter pobres
felizes e ricos não prepotentes. Logo no primeiro capítulo dos Analectos, Zigong
declara: «Ser pobre, mas não submisso; ser rico, mas sem soberba, que tal?»; o Mestre
responde: «Pode ser, mas não é tão bom quanto ser pobre e [viver] alegremente, ser rico
e apreciar os Ritos» (I, p. 45). A caminhada era longa e o jûnzi ia-se fazendo, como um
escultor, curvando o ego e rendendo-se ao ritual. Aquilo que realizava verdadeiramente
Yan Hui como pessoa era ter conseguido atingir, através do Estudo, a transformação
moral. O único defeito de Yan Hui seria, segundo Confúcio, o de não desafiar mais o
Mestre durante as suas discussões, pois falava pouco e era muito humilde e respeitoso:
«Yan Hui não é uma pessoa que me ajuda. De tudo o que digo, não há nada que não o
contente» [Analectos 11.3 (II, p. 50)].

A relação entre Confúcio e os seus alunos implicava muito mais do que


transmitir conhecimentos: os alunos confiavam na experiência e na moralidade do
Mestre; estabeleciam com ele uma relação de convivência e de diálogo espontâneo, mas
raramente o contradiziam – procuravam sobretudo compreender o alcance das suas
palavras e, se possível, desvelar o seu significado mais profundo.

VIII

O escol das virtudes

Na linguagem conceptual de Confúcio, é fácil identificar meia dúzia de


conceitos básicos que traduzem aquelas que, na opinião do filósofo, devem ser as
principais faculdades do «Homem Nobre». Assim, já perto do final da versão corrente
dos Analectos, os discípulos evocam um diálogo entre Zilu (You) e o Mestre, no qual
este último identifica as seis virtudes que o «shì» (pequeno aristocrata que age como
guardião das tradições) deve praticar no seu quotidiano, ao mesmo tempo que nomeia as
consequências que resultam da respetiva ignorância:

29
«O Mestre disse: “You, já ouviste falar das ‘seis frases’ e das ‘seis barreiras’?”
[Zilu] respondeu: “Não”. [O Mestre disse:] “Senta-te! Vou contar-te. Daquele que gosta
da Humanidade e não gosta de estudar, a barreira é a estupidez. Daquele que gosta da
sabedoria e não gosta de estudar, a barreira é a dissipação. Daquele que gosta da
confiabilidade e não gosta de estudar, a barreira é a vulnerabilidade. Daquele que gosta
da rectidão e não gosta de estudar, a barreira é a precipitação. Daquele que gosta da
coragem e não gosta de estudar, a barreira é a insurgência. Daquele que gosta da fibra e
não gosta de estudar, a barreira é a arbitrariedade». [Analectos 17.8 (II, p. 221)]

De certo modo, esta passagem condensa aquela que é, na prática, a grande


diferença entre o ser humano que deseja aperfeiçoar-se eticamente através do
Estudo e aquele outro que o despreza e que, portanto, nunca passará de um «Homem
Pequeno». Sem o Estudo não há Humanidade ou compaixão/altruísmo («rén») e a
pessoa perde-se em perplexidades; sem o Estudo não há sabedoria moral, ou
conhecimento/capacidade de formular juízos corretos («zhì») e daí resulta a arrogância
e a presunção; sem o Estudo não há confiabilidade/fidelidade ou atitudes genuínas
(«xîn») e a pessoa torna-se vulnerável e fácil de manipular pelas outras; sem o Estudo
não há retidão ou integridade/honradez («yì») e fica-se incapaz de agir segundo os
Ritos; sem o Estudo não há coragem («yong») e nasce a desobediência e a insubmissão;
sem o Estudo não há fibra («gang») e isso provoca a arbitrariedade daquele que nunca
será capaz de fazer prova da humildade, da flexibilidade e da paciência que são
imprescindíveis na cultura chinesa.

Estes conceitos chave vão-se repetindo ao longo dos Analectos. Ao discutirem a


transmissão dos Ritos (a essência perene que garante a continuidade no seio da
mudança), muitos comentadores colocam na respetiva génese as «Três Relações
Cardinais» (as relações entre pai e filho, entre governante e ministro e entre marido e
esposa) e as «Cinco Virtudes Constantes»: humanidade ou benevolência/altruísmo;
retidão ou integridade/honradez; respeito ou deferência/cortesia ritual; sabedoria moral
ou conhecimento; e confiabilidade ou fidelidade.

De todos os conceitos citados, o mais decisivo, e ao mesmo tempo o mais


complexo, é o de «Humanidade» («rén», ou «jen»). Nos Analectos, o Mestre recorre
109 vezes a este conceito, embora nunca o defina com total precisão! É habitual
traduzir-se «rén» por «benevolência», no sentido de se atuar com compaixão pelos
outros; tal é, por exemplo, a aceção que a palavra toma no livro de Mêncio. Em

30
Confúcio, «rén» equivale ao conjunto das virtudes humanas, constitui como que uma
quintessência do «Homem Nobre». Como sintetiza Giorgio Sinedino, «a Humanidade é
o ponto de convergência do que há de bem na existência social» (2017, I, p. 118).

Passemos a palavra a Confúcio e apliquemos o que foi dito atrás recorrendo a


três respostas a outros tantos discípulos seus, que queriam perceber melhor o que é que
o Mestre entendia exatamente por «Humanidade»:

Fan Chi pergunta sobre a Humanidade, e Confúcio responde assim: «O aspecto


é cortês, o agir é respeitoso, a convivência é leal. Mesmo que vá para as nações
bárbaras, [tu] não te corromperás» (Analectos, cap. 13.19, II, p. 115).

Zizhang pergunta a Confúcio sobre a Humanidade e este responde: «Poder


realizar cinco coisas em Tudo sob o Céu, eis o que é a Humanidade». O discípulo pede
então ao Mestre que nomeie essas cinco coisas: «Cortesia, tolerância, confiabilidade,
sagacidade, magnanimidade. Se cortês, [o homem] não será humilhado. Se tolerante,
não ofenderá os outros. Se confiável, as pessoas dependerão dele. Se sagaz, terá mérito.
Se magnânimo, isso basta para comandar as pessoas» (Analectos, cap. 17.6, II, p. 219).

Yan Hui pergunta a Confúcio sobre a Humanidade e o Mestre diz: «Dominar-se


a si próprio, revigorar os Ritos: isso é a Humanidade. Se um dia [as pessoas
conseguirem] dominar-se a si próprias, revigorar os Ritos, então Tudo sob o Céu
regressará à Humanidade. Realizar a Humanidade cabe à própria pessoa, ou cabe aos
outros?» (Analectos, cap. 12.1, II, pp. 72-73).

Um último conceito a destacar é o de «Ordem». Em Confúcio, julgo que esta


ideia se entrelaça profundamente com a de uma governação justa, inspirada pelos
princípios éticos e morais que o filósofo preconizava. Quando um sábio assumia o
poder e governava por meio da(s) virtude(s), então o povo podia ter esperança na
reposição da ordem social. O mecanismo é associado, nos Analectos, ao funcionamento
do cosmo: «Usar a virtude para governar um país pode ser comparado com a Estrela
Polar, que ocupa o seu lugar enquanto as outras giram ao seu redor». [Analectos 2.1 (I, p.
49)]. E como é que se conseguia governar bem e em ordem? Quando Zigong lhe fez esta
pergunta, o Mestre respondeu de forma assertiva:

«Alimentos bastantes. Armas bastantes. Fazer o povo acreditar em ti». Zigong


achou que isso eram trunfos a mais e pediu a Confúcio que os hierarquizasse. O Mestre
não se fez rogado: primeiro, prescindiria das armas; depois dos alimentos; e só no final
abriria mão da confiança do povo; este é que era o fator crucial para um bom governo
de uma sociedade: «Desde a Antiguidade, todas as pessoas têm de morrer [um dia]; mas

31
se o povo não tiver confiança, [um governo] não tem como se manter de pé».
[Analectos 12.7 (II, p. 80)]

Como comenta Yu Dan (2010, pp. 19-20), «a pior de todas as coisas é o colapso
que tem lugar quando os cidadãos de um país desistem da sua nação». A vida material é
importante, mas «a verdadeira paz e a verdadeira estabilidade vêm de dentro, da
aceitação daqueles que nos governam». Não há verdadeira submissão sem confiança, a
não ser pela força coerciva. Numa passagem mais adiantada dos Analectos, Zixia afirma
que o Homem Nobre precisa de obter primeiro a confiança do povo para depois fazê-lo
trabalhar diligentemente, de outro modo a população sentirá as suas exigências como
sendo um abuso. [Analectos 19.10 (II, p. 259)]

Esta «psicologia profunda da submissão» (Sinedino), além de suscitar a questão


de saber como é que o Confucionismo conseguia fazer a ponte entre o aperfeiçoamento
individual e as exigências governativas de uma sociedade no seu todo (assunto que
analisarei mais adiante), também nos interpela sobre a visão da natureza humana em
Confúcio: ela é boa, ou má? Tanto Mêncio como Zhu Xi responderão com clareza a
esta questão: é boa! Mas, em Mestre K’ung, é mais difícil de dizer. «A natureza humana
aproxima-nos, os hábitos distanciam-nos» [Analectos 17.2 (II, p. 215)]. A abordagem
não é clara e os discípulos queixavam-se disso: num dos primeiros capítulos dos
Analectos, Zigong lamenta não poder instruir-se mais profundamente sobre a Natureza
Humana e o Caminho do Céu, uma vez que o Mestre evitava falar desses temas;
aparentemente, este não queria abordar assuntos que os alunos não pudessem assimilar e
que, portanto, tendessem a distorcer. Mas não creio ser impossível que a visão de
Confúcio acerca da natureza humana fosse um pouco menos otimista do que as de
Mêncio ou de Zhu Xi.

Outros temas havia sobre os quais Confúcio não gostava muito de falar. Por
exemplo, o Mestre não apreciava a metafísica, uma vez que a sua visão do Caminho
tinha uma dimensão essencialmente social e podia ser alcançada diretamente, sem
mediação transcendental. Pelo mesmo motivo, e tal como recordariam os seus
discípulos, «o Mestre não fala sobre aberrações, bravura, insurgências e espíritos»
[Analectos 7.20 (II, p. 229)]. Ou seja, não lhe interessavam os fenómenos bizarros ou
paranormais, criticava o aluno Zilu pela sua bravura temerária e inútil, condenava a

32
desordem e a violência; embora acreditasse no «Mandato do Céu», o Mestre não
entendia o Estudo como uma prática religiosa e concedia aos seus alunos liberdade
suficiente para desenvolverem as suas próprias relações com o transcendente. Há na
obra de Xie Lianzuo (ou Hsieh Liang-tso, n.1050) uma boa síntese desta postura: «O
Mestre falava sobre o que é normal, não falava sobre as aberrações. Falava sobre a
virtude, não falava sobre a força. Falava sobre o ser humano, não falava sobre os
espíritos» (citado por Sinedino, 2017, I, p. 230).

Admito sem custo que Confúcio fosse religioso e acreditasse nos espíritos, mas
julgo que procurava impedir que esses aspetos condicionassem a sua abordagem do
Estudo e do autoaperfeiçoamento ético no quadro da realidade social, cultural e política
chinesa, deixando pois os espíritos um pouco de fora e evitando falar com os seus
alunos sobre eles. Veja-se o que diz uma passagem do capítulo sexto dos Analectos:

«Fan Chi perguntou o que é Sabedoria. O Mestre disse: “é esforçar-se para fazer
que o povo cumpra o seu dever; é respeitar os espíritos, mas manter-se distante deles.
Pode-se dizer que isso é Sabedoria”. [Analectos 6.20 (I, p. 198)].

Como observou Karen Armstrong (2009, p. 211), Confúcio não especulava


sobre o que haveria no fim do Caminho: percorrê-lo era, em si mesmo, uma experiência
transcendente e dinâmica. É possível que, na fase final da sua vida, K’ung Fu-tzu tenha
ficado mais sensível às questões espirituais; porém como Mestre, sendo em tudo uma
pessoa do seu tempo (em que a religião pesava imenso), não se pode dizer que Confúcio
tivesse uma «doutrina secreta» (Sinedino); ele adaptava-se ao nível dos seus alunos e,
como estes recordarão após a sua morte, dizia-lhes: «Eu não escondo nada. Não há nada
que eu tenha feito e não tenha mostrado a esses dois ou três pequeninos» [Analectos
7.23 (I, p. 231)].

IX

O Périplo aos Países

Gostaria agora de evocar a viagem de Confúcio por vários dos «Países do Meio»
entre, aproximadamente, 497/496 a.C. e 484/482 a.C. Faço-o por duas razões: em
primeiro lugar, porque isto nos ajudará a conhecer um pouco melhor a vida de
Confúcio, numa fase relativamente tardia da sua existência (o chamado «Périplo aos

33
Países» iniciou-se quando ele tinha já 54 ou 55 anos de idade); em segundo lugar,
porque Mestre K’ung empreendeu esta longa viagem na esperança de encontrar um
governante que reconhecesse a sua valia e que lhe desse a oportunidade de desempenhar
um cargo público de relevo, onde ele poderia até pôr em prática as suas ideias
regeneradoras. É interessante saber se de facto isso aconteceu!

O «Périplo aos Países» não foi, portanto, uma ‘digressão turística’ com treze ou
catorze anos de duração, mas sim uma experiência vivificante para Confúcio: por um
lado, do ponto de vista existencial, até pela sua duração e pela intensidade das
experiências vividas; por outro, do ponto de vista político e ideológico, tanto mais que,
ao conhecer de perto vários dos governantes dos Estados vizinho de Lu, ao apreciar as
suas políticas e, pelo menos em Wei, ao desempenhar pontualmente funções de
governo, o Mestre pôde testar a validade das suas ideias reformistas e a respetiva
aplicabilidade nas condições concretas da China do final do «Período da Primavera e do
Outono».

Com pouco mais de 50 anos, Confúcio fora chamado a desempenhar funções


políticas de relevo no seu próprio Estado natal: Lu, região que o filósofo decerto muito
amava, até pelas antiquíssimas ligações deste país à Casa de Zhou. Confúcio foi
Ministro das Punições (Ministro da Justiça) em Lu durante três ou quatro anos, no
tempo do Primeiro-Ministro Ji Huanzi. Porém, acabou por abandonar o seu Estado natal
devido a divergências com a nobreza (o clã Ji) e com as autoridades.

O primeiro país a acolher Confúcio durante o seu Périplo foi o vizinho Estado de
Wei, nomeadamente a cidade fronteiriça de Yi. A proximidade entre os dois Estados e,
sobretudo, uma relevante memória histórica comum devem ter sido fatores que pesaram
na escolha de Confúcio. Como este terá dito aos seus discípulos (parte dos quais o
acompanhava, incluindo Zilu, como seu guarda-costas): «A política dos países de Lu e
Wei, [deveria ser como entre] irmãos». [Analectos 13.7 (II p. 104)]

A história era bonita, mas a altura não era boa, devido à grande instabilidade
política que então se registava naquele reino. Geralmente, pensa-se que o Mestre terá
desempenhado algum cargo público em Wei, que ele próprio sugere ser ainda uma
nação poderosa. Porém, a experiência política e social de Confúcio em Wei não terá
sido gratificante e a função que lhe terá sido atribuída não estaria à altura das
expetativas do grande Mestre. Um dos aspetos que impressionou negativamente o

34
filósofo foi o tratamento protocolar que lhe foi dispensado. É possível que mais tarde,
depois de tentar a sua sorte em outros «Países do Meio», o Mestre tenha regressado a
Wei e há quem defenda que, nessa altura, terá servido o duque de Chu durante quatro ou
cinco anos.

Desiludido, Mestre K’ung deixou Wei entregue às suas guerras civis e abalou
para sul, tendo chegado ao país de Song, onde se conta que começou a ensinar debaixo
de uma árvore. Porém, um descendente do duque local (Huan), chamado Huanti e chefe
de um contingente militar, não gostou da ousadia e ameaçou de morte o filósofo,
dizendo mesmo que, se ele não abandonasse Song, mandaria arrancar a árvore. Os
discípulos contam que instaram o Mestre a fugir o mais depressa possível, mas este terá
retorquido: «O Céu fez a virtude nascer em mim. O que Huanti poderá contra mim?»
[Analectos 7.22 (I, p. 231)] …

Depois de Song (onde não se terá demorado nem desempenhado qualquer


função pública), Confúcio rumou a Chen, um pouco mais a sul. Aqui, parece que a
comitiva peripatética começou a sofrer gravemente da falta de alimentos, o que teve
efeitos desastrosos sobre muitos dos participantes: «As pessoas que [o] seguiam
adoeceram, não havia quem conseguisse levantar-se» [Analectos 15.1 (II, p. 166)].
Alguns discípulos, como o acalorado Zilu, enfureceram-se, mas Confúcio terá reagido
com olímpica moderação e com a sábia pedagogia do costume: «Zilu revoltou-se,
dizendo: “[Há momentos em que] nem o Homem Nobre tem saída?”. O Mestre disse:
“O Homem Nobre, quando não tem saída, persiste. O Homem Pequeno, quando não tem
saída, age sem freio”» (ibid.).

Depois de Chen, o grupo desceu mais um pouco, até outro pequeno país,
chamado Cai, que, tal como Chen, vivia na esfera de influência das grandes potências
meridionais: Wu (a sudeste) e Chu (a sudoeste). Ao que parece, também aqui Confúcio
teve a desdita de estar no local errado à hora errada: quando se aproximava da fronteira
entre aqueles dois pequenos Estados, o país de Wu atacou Chen, que logo tratou de
pedir o socorro de Chu. Sabendo da proximidade do Mestre, o governo de Chu pediu-
lhe uma audiência, o que atemorizou os dafus de Chen e de Cai, que sabiam bem que
Confúcio não aprovava as respetivas políticas, o que poderia ser dramático caso fosse
oferecido em Chu um cargo de relevo a Mestre K’ung. Assim, enviaram um contingente
militar para atacar a comitiva do filósofo, que ficaria retida durante cerca de uma

35
semana; em desespero de causa, Confúcio mandou o seu fiel discípulo Zigong pedir
socorro no país de Chu; a embaixada parece ter resultado, pois o duque Zhao enviou
tropas suficientes para libertar Confúcio e os seus acompanhantes. Esta experiência foi
bastante dramática, pois há uma passagem dos Analectos em que é atribuída ao Mestre,
já velhinho, esta exclamação nostálgica: «Aqueles que estiveram comigo nos países de
Chen e Cai já não estão à minha porta» [Analectos 11.2 (II, p. 49)].

Frustrada a viagem para sul, Confúcio regressou a Chen, sendo possível que aí
tenha desempenhado, brevemente, alguma função pública, tendo até em conta as
dificuldades financeiras por que a comitiva passava. No entanto, depressa Mestre K’ung
terá começado a pensar na rota de regresso, que como expliquei atrás, ainda deve ter
incluído uma segunda experiência no país de Wei, porventura no tempo do duque Xiao.

Nesta fase, uma dúzia de anos volvida sobre o adeus a Lu, a desilusão de
Confúcio e dos discípulos que o acompanhavam devia ser grande. Há até uma passagem
dos Analectos que sugere que o Mestre terá mesmo admitido procurar a sua sorte fora
dos Países do Meio, ou seja, no «mundo bárbaro» em volta; a ser verdade, o episódio
documenta bem a deceção profunda de Confúcio com a política chinesa, ou então a sua
crença ingénua em poder – graças às suas virtudes pessoais e à sua cultura e grande
conhecimento da tradição escrita – mudar a forma de viver, de pensar e de sentir de
povos que tatuavam o corpo, faziam penteados invulgares, vestiam roupas de peles ou
de penas e comiam carne crua:

«O Mestre quis morar nas terras dos Nove Yi, alguém disse: “[Aquele lugar é]
vil, como se poderia [morar ali]?” O Mestre disse: “Se um Homem nobre morar ali, o
que haveria de vil?» [Analectos 9.14 (II, p. 16)].

Um último aspeto, difícil de concatenar com o «Périplo aos Países», é a tentativa


que Confúcio terá feito junto dos governantes de Qi para aí servir. Tal não veio, porém,
a suceder, embora os Analectos evoquem algumas conversas de Confúcio com o duque
Jing e com o duque Huan (o primeiro hegemon), as quais sugerem que o Mestre teria
alguma simpatia por aqueles governantes. A certa altura, o duque Jin terá perguntado a
Confúcio como é que, na sua opinião, se deveria governar; o filósofo terá respondido:
«O governante deve ser como um governante, o ministro como um ministro, o pai como
um pai, o filho como um filho». [Analectos 12.11 (II, p. 85)]

36
Ou seja, à boa maneira confuciana (mas também com um certo perfume
hinduísta), cada qual deve, simplesmente, desempenhar o papel que lhe cabe dentro da
sociedade; nem mais, nem menos do que isso.

As razões do regresso de Confúcio a Lu também suscitam alguma controvérsia,


porventura excessiva, porque Lu era o seu país natal, Confúcio já era bastante idoso
(tinha quase 70 anos) e, seguramente, estava bastante desenganado quanto às
possibilidades de conseguir conciliar os segredos da política com as exigências do
Caminho. É provável que, ao desgaste resultando da dececionante experiência de
Confúcio nos Países do Meio, e ao peso da idade, se somasse o desejo de, treze ou
catorze anos volvidos, voltar ao ensino, pacatamente, na terra que o vira nascer e que
era, apesar de tudo, um bastião das tradições mais antigas e mais nobres da China.

O regresso terá implicado alguma pacificação nas relações do antigo Ministro


das Punições com os principais dignitários do clã Ji, o que parece ter realmente
acontecido, ignora-se se à custa de algumas concessões (e quais).

Nos Analectos, há umas sugestivas conversas entre Zizhang e o Mestre acerca de


como conseguir e de como exercer um cargo público. Em relação ao primeiro aspeto,
Confúcio recomenda:

«Poucos erros ao falares, pouco do que te arrependeres ao agires, nisso consiste


[a forma] de obter um cargo público» [Analectos 2.18 (I, p. 72)].

No que toca ao segundo ponto, o Mestre responde assim:

«Ao ocupar um cargo, não se canse [dele]; ao exercer as suas funções, faça-o
com lealdade» [Analectos 12.14 (II, p. 87)].

Mais à frente, Confúcio indica a Zizhang o que se deve fazer para se ser capaz
de governar:

«Cumprir as cinco belezas» (ser magnânimo mas não esbanjador; fazer o povo
trabalhar mas sem o esgotar; ter desejos mas não ter cobiça; ser magnífico mas não
arrogante; ter autoridade mas não ser agressivo); e «evitar os quatro males» (a
brutalidade; a precipitação a dar ordens e a exigir resultados; a perversidade de fixar
prazos curtos para cumprir as ordens; e o agir com avareza). [Analectos 20.2 (II, p.
274)].

37
Numa outra ocasião, Confúcio explica ao dafu Ji Kang, do país de Lu, que, para
conseguir que o povo seja respeitoso, trabalhador e leal aos governantes, é preciso que
estes mantenham uma expressão grave diante das pessoas (o que inspira o respeito),
sejam filiais e paternos (o que fomenta a lealdade) e dêem oportunidades aos bons; ao
mesmo tempo devem ensinar aqueles que têm menor potencial – um procedimento que
fomenta o trabalho e a disponibilidade [Analectos 2.20 (I, p. 74].

Ora, o grande problema de Confúcio é que precisava de tempo para pôr em


prática os seus próprios conselhos e para impor uma reforma profunda dos
comportamentos e das mentalidades; só que as urgências da política e as vistas curtas
dos governantes não se compadeciam com isso. O Mestre até não exigiria muito:

«Se alguém me der [bom] uso, completado um ano [os resultados] já seriam
suficientes. Completados três anos, [a obra] já estaria completa» [Analectos 13.10 (II, p.
107)]

Ou, um pouco mais adiante, no contexto de uma conversa com o discípulo


Zixia, que servia como Ministro na cidade de Yingfu: «Não desejes [resultados]
rápidos, não procures pequenas vantagens. Se desejares [resultados] rápidos, não terás
êxito. Se procurares pequenas vantagens, não alcançarás grandes realizações»
[Analectos 13.17 (II, p. 113)].

Confúcio não dispôs do tempo, nem dos meios de que necessitava. A sua
missão, para ser integralmente cumprida, exigia autoridade, constância, persistência,
uma vontade férrea e muito sacrifício pessoal. Melhorar o quadro político e social
vigente podia conseguir-se num tempo relativamente breve. Contudo, o Mestre sabia
que percorrer o verdadeiro Caminho exigia muito mais: «Se pessoas boas
administrarem o país por 100 anos, é possível superar a brutalidade e eliminar a pena de
morte» [Analectos 13.11 (II, p. 107).]

Havia por vezes que fazer concessões, sacrificar a pureza dos meios, em nome
de um bem maior. Todavia, mesmo assim, a conciliação entre o Caminho e a arte da
política afigurava-se uma quimera, como o «Périplo aos Países» claramente
demonstrara.

38
Confúcio: revolucionário ou conservador?

O pensamento e a figura de Confúcio são suficientemente ricos e inspiradores


para gerar interpretações polémicas e contraditórias. Creio poder resumir essas
abordagens em três grupos. Primeiro, temos aqueles que acham que Mestre K’ung foi
uma personagem profundamente conservadora e tradicionalista, um defensor do
«establishment» e um instrumento ao serviço do poder imperial. Em segundo lugar
estão aqueles que entendem que, à sua maneira, Confúcio foi um pensador
revolucionário e que deu um contributo decisivo para a construção de um mundo
melhor. Por fim, temos um grupo intermédio, que não vê K’ung Fu-tzu nem como um
conservador empedernido, nem como um descamisado rebelde, limitando-se a encará-lo
com um reformista convicto, profundamente bem preparado e intencionado, não
obstante a ingenuidade utópica do seu projeto de regeneração social.

Não é difícil encontrar argumentos que sustentem a primeira tese, isto é, visão
daqueles que pensam que Confúcio foi ‘apenas’ um defensor da tradição. Na verdade,
ele tinha uma visão conservadora e tradicional da sociedade e, quando teve
oportunidade de atuar politicamente, fê-lo em geral numa perspetiva legitimista, de
defesa dos poderes instituídos (veja-se o seu apoio ao duque Ding, em Lu, contra o clã
Ji). Para ele, os homens sábios nem sequer deviam ambicionar a conquista do poder,
mas apenas a ocupação de posições que lhes permitissem influenciar decisivamente os
governantes instituídos:

«O duque Ding perguntou: “O governante comanda o ministro, o ministro serve


o soberano. Está de acordo?” Kongzi respondeu: “O governante comanda o ministro,
conforme os Ritos. O ministro serve o governante, conforme a Lealdade”» [Analectos
3.19 (I, p. 103)]

Na China dos séculos VI e V a.C., e até talvez na China de épocas muito mais
tardias, não seria de esperar outra postura. Como escreveu Giorgio Sinedino, «é difícil
para a China ir além do que se acredita que ela tenha sido no passado, pois dentro do
pensamento chinês não há um caminho de ruptura com as suas tradições milenares. Ao
contrário, toda a revolução e mudança devem ser justificadas pela renovação da
tradição. Isso é puro Confúcio».

39
Ou seja, era pelo Estado que passava o caminho do sucesso; e era pela família,
pela comunidade envolvente e pelo consenso que passava o caminho da felicidade. Na
China, «não há espaço para a revolta do indivíduo contra a sociedade»; é próprio da
comunidade chinesa evitar, ou sublimar, os conflitos e as divergências, ainda que, por
vezes, se pague um preço elevado pela ausência de diálogo, o que obriga sempre ao
recurso a soluções pouco consensuais (Sinedino, 2017, I, p. 23).

O próprio Confúcio confessava basear-se profundamente na tradição: «Não nasci


sábio. Gosto da Antiguidade e sou ávido por procurá-la» [Analectos 7.19 (I, p. 229)].
Este permanente beber no passado ajudou, claro está, a construir de Mestre K’ung a
imagem de alguém profundamente conservador. A isso acrescia um outro elemento
importante: ele opunha-se à destruição da Ordem, condenava as insurreições e revoltas,
simples espasmos resultantes dos desequilíbrios sociais e morais e que não conduzem a
nada:

«Ser corajoso e ter rancor por ser pobre, [isso leva à] insurgência. Se [vemos]
alguém que não é Humano e temos rancor além da medida, [isso também leva à]
insurgência» [Analectos 8.10 (I, p. 254)]

Uma vez que o ordenamento social se baseava numa ordem natural das coisas
pela qual, em última análise, o Céu era o responsável, não fazia sentido pôr em causa o
alinhamento geral do status quo; o homem seria sempre superior à mulher e as pessoas
virtuosas seriam sempre superiores às pessoas comuns. Portanto, o Confucionismo
nunca poderia alimentar uma ideologia igualitarista radical, vocacionada para a defesa
da eliminação das diferenças entre as várias classes sociais. Estas eram entendidas por
Mestre K’ung como perfeitamente naturais, a tradição pré-estabelecera a posição de
cada uma na sociedade e o mais importante é que cada qual cumprisse bem o seu papel.

O Confucionismo pregava, pois, a obediência e a submissão às regras


estabelecidas, e certamente foi também por isso que se pôde constituir em ortodoxia
oficial do Estado chinês durante tantos séculos! Mesmo quando equacionava as relações
interpessoais no seio de uma família (por exemplo entre pais e filhos), Confúcio sugeria,
como já vimos, que se apontassem discretamente os erros aos pais, sem nunca mostrar
irritação relativamente a eles.

40
Vejamos agora a segunda tese, que encara Confúcio como uma figura com
dimensão revolucionária. Entre os mais entusiastas defensores desta interpretação conta-
se Karen Armstrong, uma das mais conceituadas e influentes especialistas mundiais de
história comparada das religiões. Na sua opinião, Confúcio não se limitou a repor a
tradição, ele reinterpretou-a de uma forma original e profunda:

«A antiga religião concentrava-se no Céu: muitas vezes as pessoas haviam


oferecido sacrifícios apenas para ganharem as simpatias dos deuses e dos espíritos, mas
Confúcio concentrava-se neste mundo» (Armstrong, 2009, p. 205).

Portanto, Mestre K’ung não se limitou a repetir, ele também foi um inovador; ele
reanimou o Velho para alcançar o Novo, como se deduz desta passagem inserta logo no
segundo capítulo dos Analectos: «Ao relembrarmos o que aprendemos no passado,
conseguimos intuir coisas novas e podemos [assim] tornar-nos mestres» [Analectos
2.11 (I, p. 64)].

Entretanto, remata Karen Armstrong, Confúcio «não era um tímido conservador,


apegado aos costumes tradicionais e preocupado com as minúcias da liturgia. A sua
visão era revolucionária. Deu uma nova interpretação ao li consuetudinário5. Este não se
destinava a realçar o prestígio de um aristocrata, mas a transformá-lo, tornando habitual
a prática do esquecimento de si mesmo. Ao excluir do ritual o egoísmo, Confúcio
trouxe à superfície o seu profundo potencial espiritual e moral. Contudo, não encorajava
o conformismo servil. O li exigia imaginação e inteligência, para se perceber que cada
circunstância era única e devia ser ponderada individualmente. Confúcio também
introduziu um novo igualitarismo. Antes, só os aristocratas executavam o li. Agora,
insistia Confúcio, qualquer um podia praticar os ritos e mesmo alguém de origens
humildes, como Yan Hui, podia ser junzi» (Armstrong 2009, pp. 210-211).

A terceira tese surge em jeito de in media res. Sinedino acentua que Confúcio
foi sempre, e sobretudo, um professor e nunca foi um revolucionário. O seu «elitismo
natural» é evidente em numerosas passagens dos Analectos, como por exemplo quando
diz: «O povo, pode-se fazê-lo seguir [o Caminho dos Sábios da Antiguidade], não se
pode fazê-lo entender» [Analectos 8.9 (I, p. 254)].
5
A palavra «li» tem vários significados possíveis; escrita com letra minúscula tem, em Confúcio,
geralmente o sentido de «ritual», incluindo aqui funerais, performances musicais, danças tradicionais e
até questões de etiqueta, tudo formas de exprimir socialmente o respeito de uma pessoa pelas outras (Van
Norden, 2009, p. 140).

41
No entanto, em meu entender, a abordagem mais inspiradora sobre a figura de
Confúcio é a que se deve a Juan Masiá Clavel, para quem Mestre K’ung e os seus
seguidores eram pessoas bem formadas, mas que não tinham poder político e, portanto,
tinham especial dificuldade em transitar do plano do aperfeiçoamento individual para o
plano social. Desse modo, ao verificarem a decadência e a desordem social da época da
«Primavera e do Outono», sentiam uma natural impotência para transformar a realidade
e tendiam a olhar para o passado com admiração e nostalgia, evocando os dias felizes do
auge da dinastia Zhou e até os seus antecessores longínquos – os Reis Sábios (Masiá
2003, p. 92). Quer isto dizer que Confúcio e os seus fossem simplesmente
conservadores nostálgicos e tradicionalistas? Não, porque, como recorda Masiá, não
podemos nunca esquecer que «Confúcio não incitou uma revolução para resolver a
situação, mas pediu uma mudança de mentalidade e uma reforma interior da pessoa que
tornasse possível um governo mais humano, uma política estável e uma educação boa
para todos, com o fim de conseguir uma sociedade virtuosa nos seus indivíduos e
harmónica nas suas relações sociais» (ibid.).

Em síntese, segundo Masiá, a filosofia de Confúcio «é educadora, moral e


política»; tem na sua base a coexistência harmónica entre o Céu e a Terra e o equilíbrio
de forças, mantendo um dinamismo perpétuo. É esse equilíbrio que configura «a grande
raiz donde cresce toda a actuação humana no mundo. Essa harmonia é o caminho
universal que todos devem seguir» (o tal «Justo Meio», ou «Justa Medida»). Porém,
observa ainda Masiá, «equilíbrio» não equivale a «harmonia», pois o primeiro seria não
ter emoções, e o segundo equivale a tê-las no seu momento oportuno. No fundo, busca-
se uma harmonia cósmica e individual, da qual deverá brotar toda a ação social e
política, na sua teoria e na sua prática. O governante recebia o Mandato do Céu («tiân
ming»), mas perdê-lo-ia se não stentasse assegurar a paz e a harmonia na Terra (ibid.).

Em conclusão, Confúcio desejava restaurar e reviver a idade dourada dos cinco


séculos anteriores e, para que tal fosse possível, percebeu que havia que educar o
homem, no sentido de fazer com que ele adquirisse «conhecimento moral»; não tanto,
ou não apenas na perspetiva de que fosse capaz de distinguir entre o bem e o mal, mas
sobretudo em que se tornasse capaz de ser bom e de fazer o bem
(humanidade/benevolência). A aprendizagem far-se-ia através do exemplo e deveria
durar toda a vida. E isso será possível? Para os Confucianos (e não só), claro que sim.

42
Numa das passagens mais glosadas dos Analectos, pode ler-se: «A Humanidade está
distante? Se desejo a Humanidade, ela vem [a mim]» [Analectos 7.29 (I, p. 236)].

No final da sua vida, Confúcio era uma personagem conhecida e respeitada, pelo
menos nos «Países do Meio». Todavia, nunca dispôs de poder real, salvo talvez em Lu,
quando exerceu o cargo de Ministro das Punições. Este sentimento de impotência devia
ser doloroso, e isso talvez ajude a explicar as expetativas que o Mestre parece ter ainda
acalentado relativamente a um governante como o duque Jing de Qi. Expetativas
frustradas, uma vez mais. Por isso, a busca confuciana por um equilíbrio entre perfeição
moral, ordem política e sucesso social nunca pareceu realmente exequível. A história da
China do tempo de Mestre K’ung (e ainda mais a do período seguinte, em que viverá
Mêncio: o «Período dos Reinos Combatentes») não oferecia um campo favorável à
lavra do «shì» e dos seus discípulos. Mérito deles, no entanto, o terem mantido o rumo,
sem se deixar corromper e cultivando sempre, de forma sólida, a virtude.

Quanto à originalidade da obra de Confúcio, é oportuno notar o facto de ele


ter sido sobretudo um compilador, mas um compilador precioso e crítico de textos
clássicos importantíssimos; e isto, na China do seu tempo, também era encarado como
um trabalho de criação. Claro que, à medida que a influência do Mestre foi alastrando
na história da China, tornando-se doutrina do Estado, aí Confúcio deixou de ser uma
referência de uma certa Escola e passou a gozar da aura de patriarca de uma tradição
política e jurídica. Aos poucos, a metafísica budista e até a cosmologia taoista foram
sendo enxertadas no pensamento essencialmente moral do Confucionismo, em especial
durante a dinastia Song (960-1279). E isto teve reflexos na famosa Escola do Caminho
e, em especial, no pensamento dos irmãos Cheng e de Zhu Xi.

XI

O lugar de Confúcio na História

Koshiro Tamaki (1915-1999), um professor japonês estudioso do pensamento


oriental, ensaiou um dia uma comparação entre aqueles que considerava terem sido
quatro dos grandes mestres de sabedoria da história da Humanidade: Siddhârta Gautama

43
(«O Buda»), Confúcio, Sócrates e Jesus. Nesse seu estudo, Tamaki evitou, por exemplo,
reduzir Sócrates à dimensão única da refutação sofística, ou mesmo à sua procura
maiêutica da verdade; em vez disso, enfatizava a sua atitude de escuta do Daimon – a
voz da consciência que, brotando do seu interior, o transcendia (v. Masiá, 2003, p. 80).

Do mesmo modo, Tamaki não via Confúcio apenas como um educador e como
um moralista; ao ensinar como deviam ser formadas as pessoas e ao explicar,
minuciosamente, como é que elas deveriam comportar-se em sociedade, pressupunha
um fundamento que não se exprimia por palavras, mas estruturava toda a sua filosofia
de vida: dizia que, no final da quinta década de existência, se lhe tinha dado finalmente
a conhecer a voz do Céu («aos 50 anos compreendi o Mandato do Céu»). Tamaki, de
forma muito original e inspiradora, relaciona «a voz do Céu» de Confúcio com o
daimon de Sócrates e com o dharma do Buda, vendo nela(s) o segredo da vida , ou,
como explica Juan Masiá, «o sentido que se nos dá como dom, sem que sejamos nós a
construí-lo com o nosso esforço» (Masiá 2003, p. 80). E Mestre K’ung não queria
deformar esse segredo, esse silêncio, com demasiadas explicações; não queria pintar os
pés à serpente, para que ela não se transformasse em centopeia:

«O Mestre disse: “Não desejo falar [mais].” Zigong disse: “Se o Mestre não
falar [mais], o que é que [nós], seus discípulos, registaremos?”. O Mestre disse: “O que
diz o Céu? As quatro estações sucedem -se, as cem coisas nascem delas: o que diz o
Céu?”» [Analectos 7.19 (I, p. 230)].

Trata-se, como observou Karen Armstrong (2009, p. 206), de um convite à


intuição e à vivência; quiçá trata-se também (ao menos em parte) de um certo consolo
para as desilusões políticas do grande filósofo chinês.

Jesus fala e caminha, deixa-se levar pelo espírito. Sócrates escuta o daimon.
Confúcio a voz do Céu, Buda o dharma. Muitos classificariam Sócrates como filósofo,
Confúcio como moralista, Buda e Jesus como religiosos. Mas – avisa Tamaki – são
separadores artificiais e excessivamente estanques, que fazem com que corramos o risco
de perder o essencial; e o essencial é aquilo que estas quatro extraordinárias figuras,
possivelmente as que mais influenciaram a história da cultura universal, têm em
comum: «são buscadores e transmissores de um caminho de espiritualidade» (Masiá,
2003, p. 80).

44
Em São Paulo (2 Coríntios, 4,7) podemos ler: «Ora temos este tesouro em vasos
de barro, para que a excelsitude do poder seja de Deus e não <venha> de nós» 6. A sua
força extraordinária não vem de nós. Para Tamaki, «o desvelamento desse tesouro é o
núcleo da experiência religiosa»: na iluminação de Siddhârta Gautama, na presença do
Espírito em Jesus, na escuta da voz da consciência em Sócrates, ou no «deixar-se
conduzir pela missão celeste em Confúcio» (Masiá, 2003, p. 81).

É também a força dessa experiência interior que faz com que ainda hoje, em
circunstâncias que não têm qualquer semelhança com as da China da «Primavera e do
Outono», o Caminho de Mestre K’ung sobreviva, não apenas sob a forma do «cultivo
dos textos» ou da «adoração da tradição», mas também como materialização de um fil
rouge permanentemente renovado da longa história da espiritualidade humana.

No que toca à espiritualidade oriental, é interessante perceber como podemos


situar especificamente o Confucionismo. Juan Masiá entende que as referências
frequentes ao tema do «caminho» no Budismo, no Taoísmo e no Confucionismo
«sugerem um parentesco que convém precisar. Estamos diante de três caminhos
orientais de sabedoria: o caminho do sábio em Confúcio, a sabedoria mística do
Caminho (com maiúscula) no Tau Te Ching e, finalmente, o caminho dos deuses e o
caminho da natureza no xintoísmo japonês. O budismo é o caminho da iluminação e
libertação pregado por Gautama, o Buda. O tauismo é o Caminho, com maiúscula, a
descoberta mística do caminho da vida e do absoluto, verificado na simplicidade do
quotidiano. O confucianismo é o caminho da sabedoria prática que procura a harmonia
na vida social, na educação e na política. No caso do Japão, as correntes budista e
confucianista vêm de fora e entram em simbiose com a religiosidade ancestral japonesa,
à qual, a partir de então, se dá o nome de Xinto ou Caminho dos deuses» (Masiá, 2003,
pp. 91-92).

Também Giorgio Sinedino chamou a atenção para aspetos muito interessantes da


relação entre o pensamento de Confúcio e o de outras grandes figuras da História. Por
exemplo, este editor dos Analectos considera que é possível ensaiar uma comparação de
dimensões históricas entre Confúcio e Jesus Cristo, nomeadamente a partir do momento
em que a Escola do Caminho, e em especial Zhu Xi, no século XII, transformou o
Mestre K’ung num modelo de perfeição humana, construtor de um roteiro que deveria
6
Frederico Lourenço, tradução da Bíblia, Vol. II, «Novo Testamento, Apóstolos, Epístolas, Apocalipse»,
Lisboa, Quetzal, 2017, p. 276.

45
ser seguido por todos (Sinedino, 2017, I, p. 18). Confúcio não devia ser totalmente
avesso ao misticismo, tal como o final da sua vida, ou os relatos dos seus encontros com
os eremitas e com os Taoistas, sugerem. Todavia, já sublinhei que ele não queria fugir
do Mundo: «A Humanidade do homem sábio não lhe permite abandonar Tudo sob o
Céu como aqueles que não seguem o Caminho» [Analectos 18.6 (II, p. 247)].

À medida que os séculos foram passando, e em especial ao longo da dinastia


Song, o Confucionismo «amadureceu como uma doutrina holística de governo do
indivíduo e da sociedade, absorvendo uma doutrina da salvação budista e um tipo de
vida fora do mundo burocrático pregada pelo taoísmo» (Sinedino, 2017, I, p. 21). Nisto,
em parte, se materializou o equilíbrio entre Virtude, Estudo, busca de uma vida de
sucesso e incapacidade real de todos lá chegarem.

Com a introdução (c. 605 d.C.) dos exames públicos de acesso à carreira
burocrática, ficou selada «a sorte do Confucionismo como o credo oficial da
civilização chinesa»; tais exames «sacralizaram a posição central dos textos clássicos do
confucionismo» (ibid.). E assim, pouco a pouco, foi-se registando uma clara mudança
de perceção e de significado do pensamento de Confúcio para a generalidade dos
estudiosos. A vitória definitiva do Confucionismo ocorreria, já o sabemos, com a
reelaboração sistematizada por Zhu Xi durante a dinastia Song do Sul. Mas, nesta altura,
o pensamento original de Mestre K’ung já tinha sido suavemente penetrado pelas ideias
de Buda e de Lao-tsé.

Por tudo isto, não podemos afirmar que o Confucionismo seja um pensamento
absolutamente unificado; a sua enorme longevidade e sucessiva reinterpretação ao longo
dos séculos não permite uma tal abordagem. Nunca deixou, no entanto, de ser
profundamente inspirador, mesmo na contemporaneidade. Um intelectual do extremo
final da última dinastia (a dos Qing), chamado Kang Youwei (1858-1927), tentou até
demonstrar que K’ung Fu-tzu, o pensador nascido em Qufu c. 551 a.C., tinha sido … «o
revolucionário reformista da tradição» (citado por Sinedino, 2017, I, p. 21)! Nesta
curiosa fórmula se fundem as três maneiras atrás citadas de avaliar o significado
histórico do Confucionismo. Haverá prova melhor do seu fascínio?

XII

46
A morte de Confúcio e o ‘dia seguinte’

Quando Confúcio, enfim, chegou ao seu leito de morte, Zilu quis fazer uma
oração por ele, seguindo a crença tradicional de que um moribundo deve pedir proteção
aos espíritos, mostrar-se arrependido pelos erros que cometeu e declarar o que fez de
bom. Confúcio não queria e perguntou: «É preciso?», mas o discípulo insistiu e
começou a entoar uma prece funerária («Rogo aos senhores que estão acima e abaixo,
espíritos do Céu e da Terra…»); o Mestre, porém, interrompeu dizendo: «As preces de
Qiu [nome próprio de K’ung Fu-tzu] já foram feitas há muito tempo»7…

Quando Confúcio morreu, foi cumprido o tradicional luto de três anos imposto
pelos Ritos. É possível que os discípulos mais fiéis se tenham mantido por perto e
tenham tido tendência para se agrupar em torno de algum dos alunos mais antigos e
mais brilhantes. Um desses casos parece ter sido o de Zigong, que terá construído uma
cabana nas proximidades da sepultura do Mestre e ali terá permanecido ainda por mais
três anos. Segundo conta Mêncio, alguns discípulos, como Zixia, Zizhang ou Ziyou,
achavam que You Ruo era suficientemente promissor e sábio para suceder a Confúcio e
terão desafiado Zengzi (Zeng Shen) a apoiá-los nesta causa; contudo, Zengzi declinou
dizendo: «Apesar de vocês poderem lavar alguma coisa com as águas dos rios Jiang e
Han, e corar a roupa sob o Sol do Outono, a sua pureza cintilante não pode
simplesmente ser superada» [Mêncio 3A: 4.13 (p. 33)].

Aos poucos, os antigos companheiros foram dispersando, sem contudo se


esquecerem de dar continuidade à obra do seu velho Mestre. Coube sobretudo a Zengzi,
a Zigong, a Zizhang, a Zixia, a Ziyou e a You Ruo assumir, preservar e divulgar o
legado intelectual e espiritual de Confúcio. Sem o seu esforço, provavelmente pouco
saberíamos hoje acerca desta personagem, cuja influência na história da Humanidade
perdura até aos nossos dias; foram eles que construíram a reputação de Confúcio,
honrando da melhor forma possível o seu legado. É curioso encontrar nos Analectos
exemplos de disputas entre estes alunos, ou comentários mútuos acerca das suas
fraquezas e dos seus méritos:

7
Analectos 7.34 (I, p. 240). Conforme comenta Giorgio Sinedino (2017, I, pp. 240-241), na antiga
religião chinesa as almas dos mortos faziam parte dos espíritos da Terra, ao passo que os espíritos
celestiais tratavam de comandar os fenómenos naturais e o ciclo das estações. Havia uma crença
tradicional (sobretudo na zona sul da China) de que um espírito chamado «Comandante do Destino»
julgava o falecido depois de ouvir os seus méritos e os seus deméritos.

47
Ziyou disse: «O meu amigo Zhang [Zizhang] é [uma pessoa] difícil de
encontrar. Contudo, ele não [alcançou] a Humanidade» [Analectos 19.15 (II, p. 263).].
Imediatamente a seguir, é Zengzi quem critica o mesmo colega: «Zhang tem uma
aparência impecável, mas é difícil comparar isso à Humanidade» [Analectos 19.16 (II,
p. 264)].

Quanto a Zizong, ter-se-á empenhado de forma especial na defesa da autoridade


de Confúcio, que considerava ter sido «um self-made man, um homem que
compreendeu uma verdade natural e a explorou na comunidade de Tudo sob o Céu».

O empenho dos discípulos na divulgação da figura de Confúcio acabaria por


conduzir a uma «semidivinização» da personagem histórica, que a partir da dinastia Han
recebeu o título de rei sem coroa («swang»). Instalou-se, portanto, um certo culto da
personalidade, patente em passagens como a que reproduzirei a seguir, na qual Zigong
rebate Shusun Wushu, que defendia que este discípulo era superior a Confúcio
[Zhongni], desvalorizando a imagem deste último:

«Shusun Wushu caluniou Zhongni. Zigong disse: “Não é possível. A Zhongni


não se consegue caluniar. As qualidades das outras pessoas são como montes e colinas,
ainda se pode atravessá-los. Zhongni é como o Sol e a Lua, não é possível ultrapassá-
los. Mesmo que [certas pessoas] estejam dispostas a destruir-se [ao caluniar o Mestre],
que prejuízo poderiam causar ao Sol e à Lua? Vê-se que [quem diz isso] não conhece o
seu próprio valor”» [Analectos 19.24 (II, p. 269)].

Das várias sensibilidades e dos próprios itinerários de vida dos alunos mais
próximos de Confúcio acabaram por resultar cerca de oito escolas, umas mais fechadas
e sectárias (como, aparentemente, terá sido o caso da de Zixia, que achava que qualquer
outro caminho, que não o confuciano, conduziria a um beco sem saída), outras mais
abertas. Também o enfoque destas escolas deve ter refletido os diferentes talentos e
preferências dos primeiros discípulos de Confúcio, circunstância de que o Mestre –
observador atento e perspicaz – estivera sempre a par. Nos dias amargos vividos na
fronteira entre Chen e Cai, durante a aventura do «Périplo aos Países», Confúcio
recordou os seus melhores alunos e terá dito algo que passou para a posteridade como
um «quadro de honra» dos seus discípulos, estreitamente relacionado com as áreas em
que cada um deles era mais capaz:

48
«(…) Actos de virtude: Yan Yuan [Hui], Min Ziqian, Ran Boniu,
Zhonggong. Oratória: Zai Wo, Zizong. Trabalho de governo: Ran You, Ji Lu.
Estudos de tradição literária: Ziyou, Zixia». [Analectos 11.2 (II, p. 49)]

Como comenta Sinedino, esta seleção ficou conhecida como «os dez luminares
às portas do [Mestre] Kong». Dela não interessa apenas reter os nomes dos discípulos,
mas também a identificação das áreas ou disciplinas que cultivavam com um brilho
especial. Ainda assim, não deixa de ser estranha a ausência de alunos como Zengzi, You
Ruo ou mesmo Zilu. Pode ser que não se enquadrassem com aquela grelha, ou por
serem bons em tudo mas não os melhores em nada, ou porque se destacavam em aspetos
que Confúcio não privilegiava; este último caso parece ter sido o de Zilu, forte e bravo
mas excessivamente conflituoso, de quem o Mestre disse: «Pessoas como Yu [Zilu]
talvez não tenham bom fim». [Analectos 11.12 (II, p. 56)]

O grupo era bom, virtuoso e heterogéneo, e Confúcio devia regalar-se em


observar os seus progressos, sem nunca reconhecer neles a perfeição e apontando
sempre os erros: «Chai [Zigao] é ignorante, Shen [Zengzi] é lerdo, Shi [Zizhang] é
adulador, You é tosco]» [Analectos 11.17 (II, p. 60)]. Porém, este nível de exigência,
algo implacável, também valia para a avaliação que o Mestre fazia de si próprio.

XIII

Aforismos célebres de Confúcio

Eis uma seleção de cerca de quatro dezenas de aforismos de Confúcio, cuja


popularidade constitui uma forma incisiva e didática de recordar as suas ideias, o seu
ensinamento e o ideal de vida pelo qual se norteou.

 «Não te entristeças com o facto de os outros não te reconhecerem. Preocupa-te,


sim, em não poder reconhecer as outras pessoas» (Analectos 1.16; I, p. 47).

 «O Homem Nobre integra-se, mas não se conluia. O Homem Pequeno conluia-


se, mas não se integra» (Analectos 2.14; I, p. 66).

49
 «O Homem Nobre almeja a virtude, o Homem Pequeno anseia pelas suas terras.
O Homem Nobre almeja [a justiça d]as punições, o Homem Pequeno anseia
pelas suas vantagens» (Analectos 4.11; I, p. 129).

 «O Homem Nobre [só quer] saber de Dever. O Homem Pequeno [só quer] saber
de Vantagem». (Analectos 4.16; I, p. 135).

 «O Homem Nobre é chão e magnânimo, o Homem Pequeno é sempre receoso»


(Analectos 7.36, I, p. 242).

 «Aqueles que cometeram erros ao usar de moderação são poucos» (Analectos


4.23, I, p. 140).

 «A pessoa sábia não se confunde. A pessoa Humana não desanima, a pessoa


corajosa não tem medo» (Analectos 9.29, II, p. 27).

 «O Homem Nobre não se angustia, não tem medo» (Analectos 12.4, II, p. 76).

 «O Homem Nobre aperfeiçoa o que há de belo nas pessoas, não aperfeiçoa o


que há de mau nelas. O Homem Pequeno faz o contrário» (Analectos 12.16, II,
p. 88).

 «A virtude do Homem Nobre é como o vento; a virtude dos Homens Pequenos


é como a relva. [Se] o vento sopra sobre a relva, esta há-de dobrar-se»
(Analectos 12.19, II, p. 90).

 «O Homem Nobre harmoniza, mas não contemporiza. O Homem Pequeno


contemporiza, mas não harmoniza» (Analectos 13.23, II, p. 120).

 «O Homem Nobre é magnífico, mas não é arrogante, o Homem Pequeno é


arrogante, mas não é magnífico» (Analectos 13.26, II, p. 123).

 «As pessoas que têm virtude possuem necessariamente o dom da palavra, [mas]
as pessoas que possuem o dom da palavra não têm necessariamente virtude. As
pessoas Humanas têm necessariamente coragem, mas as pessoas corajosas não
têm necessariamente Humanidade» (Analectos 14.5, II, p. 130).

 «O Homem Nobre procura alcançar o que está acima. O Homem Pequeno


procura alcançar o que está abaixo» (Analectos 14.24, II, p. 145).

50
 «Aqueles que estudavam nos tempos antigos [faziam-no] para [benefício de] si
próprios. Aqueles que estudam nos tempos presentes [fazem-no] para [aparecer
diante] dos outros» (Analectos 14.25, II, p. 145).

 «Mestre Zeng disse: “Os pensamentos do Homem Nobre não vão além do seu
cargo» (Analectos 14.28, II, p. 147).

 «O Homem Nobre sente vergonha de que as suas palavras excedam os seus


actos» (Analectos 14.29, II, p. 148).

 «Não se preocupe com o facto de os outros não o reconhecerem. Preocupe-se,


sim, com o facto de não ter capacidade» (Analectos 14.32, II, p. 149).

 «Criticar duramente a si mesmo e levemente aos outros afasta o ódio [alheio]»


(Analectos 15.14, II, p. 175).

 «O Homem Nobre usa o dever para construir a sua índole, usa os Ritos para pôr
em prática a sua índole, usa a humildade para exteriorizar a sua índole, usa a
confiabilidade para aprimorar a sua índole. Eis o Homem Nobre». (Analectos
15.17, II, p. 177).

 «O Homem Nobre é exigente consigo próprio, o Homem Pequeno é exigente


com os outros» (Analectos 15.20, II, p. 179).

 «O Homem Nobre é convicto mas não contencioso; é gregário, mas não


sectário» (Analectos 15.21, II, p. 179).

 «O Homem Nobre não dá oportunidade a uma pessoa por causa das suas
palavras, nem desaprova as palavras por causa da pessoa» (Analectos 15.21, II,
p. 179).

 «Errar e não corrigir, eis o que se chama erro» (Analectos 15.29, II, p. 185).

 «O povo necessita mais da Humanidade do que da água ou do fogo. A água e o


fogo, já vi quem entrou neles e morreu, mas não vi quem tenha entrado na
Humanidade e morrido» (Analectos 15.34, II, p. 189).

 «O Homem Nobre é recto, mas não [peca pela] sinceridade cega» (Analectos
15.36, II, p. 181).

51
 «Há ‘três amigos’ que trazem benefícios, há ‘três amigos’ que trazem
prejuízos. Fazer amizade com [pessoas] rectas, com [pessoas] que cumprem a
sua palavra, com [pessoas] experientes: isso traz benefícios. Fazer amizade com
[pessoas] aduladoras, com [pessoas] servis, com [pessoas] eloquentes: isso traz
prejuízos» (Analectos 16.4, II, pp. 200-201).

 «Há ‘três alegrias’ que trazem benefícios, há ‘três alegrias’ que trazem
prejuízos. A alegria de encontrar a medida dos Ritos e da Música, a de falar
sobre o que as pessoas têm de bom, a de ter muitos amigos virtuosos: isso traz
benefícios. A alegria de ter orgulhos e vaidades, de viver na ociosidade, de
indulgenciar a si próprio com festas: isso traz prejuízos» (Analectos 16.4, II, p.
202).

 «O Homem Nobre deve tomar ‘três precauções’: quando jovem, o sangue e a


energia vital ainda não se estabilizaram, [portanto] deve precaver-se das
mulheres. Quando chegar à maturidade, o sangue e a energia vital estão [no
auge do seu] vigor, [portanto] ele deve precaver-se dos litígios. Quando chega à
velhice, o sangue e a energia vital já decaíram, [portanto] ele deve precaver-se
da ganância» (Analectos 16.7, II, p. 203).

 «Aquele que vive para conseguir o elogio dos seus conterrâneos é o malfeitor
da virtude» (Analectos 17.13, II, p. 225).

 «O que se ouve no caminho e se proclama pelos trilhos, eis a perdição da


virtude» (Analectos 17.14, II, p. 226).

 «Nos tempos antigos, o povo notava três tipos de defeitos que hoje talvez
[passem despercebidos]. Os loucos dos tempos antigos eram espontâneos [aos
nossos olhos]; os loucos de hoje são dissolutos. Os radicais dos tempos antigos
tinham [o que hoje consideramos] escrúpulos; os radicais de hoje têm ódio e
revolta. Os estúpidos dos tempos antigos eram rectos; os estúpidos de hoje só
vigarizam» (Analectos 17.16, II, p. 228).

 «[Aquelas] pessoas [que usam] belas palavras e aparência agradável raramente


são Humanas» (Analectos 17.17, II, p. 226).

 Zigong perguntou ao Mestre se o Homem Nobre tem ódios. Confúcio


respondeu que sim: «[O Homem Nobre] odeia aqueles que falam do que as
pessoas têm de mal. Odeia aqueles que ocupam posição inferior e difamam os
[que ocupam posições] superiores. Odeia aqueles que têm coragem, mas não
agem de acordo com os Ritos. Odeia aqueles que são decididos a ponto de
serem obstinados». (Analectos 17.24, II, pp. 235-236).

52
 «Somente as mulheres e os homens pequenos são difíceis de educar: quando
nos aproximamos deles, perdem o comedimento; quando nos distanciamos
deles, [retribuem com] ódio» (Analectos, II, p. 236).

 «Zixia disse: “Os homens pequenos dão sempre belas razões para os seus
erros”» (Analectos 19.8, II, p. 258).

 «Zixia disse: “O Homem Nobre sofre ‘três mudanças’ [de aparência]: de longe,
[parece] solene; de perto, [parece] brando; ao falar, [parece] severo”»
(Analectos 19.9, II, p. 258).

XIV

Os primeiros críticos: Mozi e Yang Zhu

O «cuidado imparcial» de Mestre Mo (Mozi):

Após a morte de Mestre K’ung (em 479 a.C.) e dos seus discípulos da «primeira
geração» (na sua maior parte cerca de 20 a 45 anos mais novos do que ele), o
Confucionismo não desapareceu da cena cultural chinesa, mas houve espaço para o
aparecimento de outras correntes e doutrinas, com diferentes perspetivas da realidade e
da melhor forma de a transformar.

Entre os primeiros e mais reputados críticos do Confucionismo conta-se Mozi


(Mo Tzu, ou Mo Ti), que terá nascido entre 480 e 470 a.C.. John Bowker considera
«Mestre Mo» uma figura de primeiro plano entre os «cem grandes filósofos da China
antiga». Parece ter sido bastante versado no estudo dos «Clássicos» e é possível que,
durante algum tempo, tenha seguido a doutrina de Confúcio. No entanto, acabou por
divergir dela, sobretudo em cinco aspetos principais:

i) condenava o Confucionismo por aquilo que considerava ser o seu


agnosticismo acerca do Céu e dos seres espirituais;

ii) criticava também as preocupações excessivas e minuciosas com os Ritos, para


os quais não tinha manifestamente paciência e cuja utilidade não enxergava;

iii) desvalorizava os preceitos de Mestre K’ung acerca da «educação ética»;

53
iv) condenava as atividades extravagantes e dispendiosas, designadamente os
funerais sumptuosos e as campanhas militares;

v) acima de tudo, em vez «amor diferenciado» defendido por Confúcio,


sustentava a tese do «cuidado ou carinho imparcial», ou seja, postulava uma atitude de
amor e preocupação equânimes com todos os seres. Para Mozi, todos são igualmente
merecedores desse amor, e não apenas os nossos familiares, ou aquelas pessoas de quem
somos mais próximo e com as quais trocamos favores. Para Mozi, tudo acontece de
acordo com a vontade do Céu, que aqui surge como que personificado e buscando
ativamente a prática do amor.

O Mozismo parece ter tido bastante força e influência até aos inícios da dinastia
Han (c. 206 a. C. a 220 d. C.). Também por isso, tudo indica que Mozi não terá atuado
isoladamente. Karen Armstrong encara esta figura como um «shì» integrado numa
irmandade de cerca de 180 «homens de merecimento», altamente disciplinados e que,
vestindo roupas humildes (de camponeses ou de artesãos) e pautando-se por uma ética
igualitária se dispunham a proteger as cidades da violência que grassava cada vez mais
na China do início da era dos «Reinos Combatentes» (Armstrong, 2009, p. 265). Terá
sido precisamente a frugalidade e austeridade excessivas de Mozi e dos seus
companheiros que suscitaram as críticas mais duras dos Confucionistas, e também de
Taoístas como Zhuangzi, que se insurgiu contra a condenação mozista da música e dos
festejos, assim como contra as exéquias fúnebres demasiado austeras, tudo práticas que
considerava irem contra a natureza humana. Note-se, em todo o caso, que Zhuangzi
reconheceu que «Mozi foi certamente um dos homens supremamente bons do mundo»,
sendo quase impossível encontrar alguém igual a ele.

A obra Mozi terá consistido originalmente de 71 capítulos , sendo uma


compilação de escritos de Mestre Mo, mas também dos seus seguidores; 53 desses
capítulos chegaram até nós e tratam matérias que vão desde a crítica do Confucionismo
à condenação da guerra, passando pela discussão de questões relacionados com a defesa
militar, a linguagem, a definição de termos e causalidade, entre outros; nove capítulos
são dedicados à guerra defensiva. Os diálogos insertos no livro «Mozi» (menos
personalistas do que aqueles que encontrámos nos Analectos) não nos permitem
concluir muito acerca da vida deste importante pensador; contudo, parece ter-se tratado
de um filósofo peripatético e autodidata, de hábitos bastante frugais e apurado sentido

54
crítico, não apenas relativamente ao «li» (que os confucionistas tanto prezavam, mas
que ele achava que não elevava a alma), mas também em relação à memória da dinastia
Zhou, sempre associada a rituais e a géneros musicais e literários elitistas, que excluíam
os mais desfavorecidos.

Não se pense, todavia, que Mozi era um «revolucionário». Apesar de tudo,


também ele ansiava por um regresso ao tempo dos Reis Sábios. Simplesmente, a sua
ética seria, talvez, mais utilitária e prática, assentando em ideias e opções bastante
simples: amar em vez de odiar; alargar o «rén» e generalizar o «jian ai», ou seja, o
«amor universal», quer dizer, a justiça social, a benevolência para com todos («ai»), a
equidade. Nestes termos, toda uma nova ética comportamental era exigida:

«Olha para o Estado de outro como olhas para o teu, para a família de outro
como olhas para a tua e para a pessoa de outro como olhas para a tua própria pessoa
(…) Se os senhores dos Estados se preocuparem uns com os outros não vão para a
guerra. (…) a razão por que surgem as calamidades, ressentimentos e ódios é a falta do
jian ai» [Mozi 15: 11-15, citado por Armstrong, 2009, p. 268].

Mas seria a natureza humana alguma vez capaz de alcançar este amor universal?
Na resposta a esta pergunta decisiva, Mozi recorre a uma metáfora: «Quando a seda é
colocada numa tintura diferente, a sua cor também se torna diferente. Tendo sido imersa
cinco vezes, [a seda] mudou a sua cor cinco vezes. Portanto, o tingimento deve ser feito
com cuidado». (Mozi, citado por Höchsmann e Guorong, 2007, p. 21).

No fundo, tratava-se de sublinhar que um ambiente de amor gera mais amor. A


natureza humana, para Mozi, não é nem boa nem má, mas sim neutra e maleável;
só quando somos mergulhados repetidamente num ambiente de amor é que
conseguimos desenvolver a capacidade e uma disposição ativa para amar. E isso, por
sua vez, acarreta consequências práticas benéficas: «se [o amor universal] não fosse útil,
então eu próprio tê-lo-ia desaprovado. Além disso, como é que pode alguma coisa ser
boa se não tiver qualquer utilidade?» (ibid.).

Um dia, na estrada de Lu para Qi, Mozi encontrou um velho companheiro seu,


que lhe disse que ele, com as suas teorias, só andava a fazer mal a si próprio, ao tentar
praticar o bem; e isto porque, no mundo em que viviam, ninguém se preocupava com a

55
retidão de procedimentos, pelo que o melhor era Mozi desistir da sua cruzada. Então, o
filósofo retorquiu:

«Imagina que um homem tem dez filhos. Só um é que cultiva o terreno,


enquanto os outros nove ficam em casa. Por isso, o único que lavra tem de trabalhar
ainda com mais vigor. Porquê? Porque muitos comem e poucos cultivam. Hoje em dia,
se ninguém pratica a justiça, vocês deviam era encorajar-me. Por que razão é que me
travam?» (ibid.).

A utopia moziana levava a uma nova Regra de Ouro, mais extrema e talvez
menos elegante do que a confuciana: não bastava amar a família, ou a si próprio, pois
isso até os criminosos faziam! Era necessário ir muito mais longe, amando a família e o
Estado, em lugar de alimentar o egoísmo letal que conduzia a impostos pesadíssimos
que geravam a fome e o frio e que estava na raiz da violência e da destruição reinantes.
Este era um pensamento chave do ensino de Mestre Mo: condenar a guerra, que
separava as famílias, que só beneficiava 0,05% das pessoas e que consumia recursos
sem fim. Talvez alguns seguidores de Mozi tenham admitido a guerra defensiva, mas o
Mestre parece ter sido um pacifista: «opunha-se a toda a violência e viajava de Estado
em Estado para convencer os governantes a quebrar o ciclo da guerra que começava a
engolir todos os Estados da grande planície» (Armstrong 2009, p. 268). Para Mozi,
autor do primeiro tratado anti-guerra, a fama e as conquistas territoriais não traziam
qualquer benefício verdadeiro, pelo contrário, causando enormes prejuízos:

«A multidão é ferida e oprimida e o povo é disperso… Isso traduz-se em


benefício para o povo? O benefício de matar o povo do Céu é mesmo ligeiro! E calcule-
se o respetivo custo! Esta é a raiz da destruição da vida. Isto esgota o povo a um ponto
incomensurável» (Mozi, citado por Höchsmann e Guorong, 2007, p. 23).

Mozi não inventou os conceitos de amor universal, de recusa da violência ou de


zelo e carinho pelos nossos semelhantes. Porém, terá sido ele o primeiro a fundir esses
ideiais num discurso filosófico coerente.

É claro que as teses mozistas (ou moístas) também foram alvo de críticas, e isso
acabou por fazer com que o autor desenvolvesse (de forma pioneira na China antiga) a
lógica e a dialética, sistematizando e tornando mais subtil a sua doutrina; porém, não no
sentido confuciano (muito baseado no Estudo e na reflexão dos «jûnzi»», no ser bom,

56
na virtude interior) e antes numa perspetiva mais intervencionista sobre o Mundo e
sobre a realidade: os «homens de merecimento» eram gente de ação, ansiosa por colocar
os seus conhecimentos práticos e o seu esforço ao serviço do conjunto da sociedade, e
não apenas de uma elite de letrados ou de governantes.

As «Dez teses de Mozi» são, assim, construídas sobre uma base


simultaneamente ‘política’ e ‘operacional’ e são apresentadas sob a forma de perguntas
sobre temas como: a preocupação com os outros; a violência; os funerais extravagantes;
o destino; a melhor forma de abordar os superiores; entre outras. A validade de cada
proposição era escrutinada de acordo com três critérios principais, pois Mozi,
recorrendo de forma pioneira à Lógica, desenvolveu um método próprio de certificação
de uma determinada teoria: i) ser (ou não) conciliável com as práticas atribuídas aos
Reis Sábios; ii) colher o apoio do senso comum; iii) traduzir-se em alguma vantagem
para o ser humano normal. Era preciso cumprir estes três requisitos para se poder
concluir que uma determinada tese era realmente meritória.

A visão mozista do Mundo e a sua ética profundamente igualitária tornavam o


combate ao egoísmo (considerado um sentimento «natural» do ser humano) um dos
pontos cruciais da sua doutrina. Para Mestre Mo, era possível superar esse egoísmo
individual, mas isso só poderia acontecer num quadro civilizacional de paz e de
equidade, de que poderiam resultar a riqueza e a felicidade entre os homens. Aí radicava
também a responsabilidade dos governantes políticos, que não podiam preocupar-se
apenas consigo, ou com os interesses das suas cliques de apoiantes.

Ao contrário de Confúcio, que não falava muito no Céu, Mozi remetia com
regularidade para ele, afirmando que o Céu recompensa e castiga, e por isso fora até
tomado como modelo pelos Reis Sábios dos primórdios da história chinesa

«O Céu é generoso e liberal; a compreensão do Céu é eterna e nunca declina…


O Céu manifesta o seu amor por todos os homens dando-lhes vida e sustentando-os a
todos. Se alguém escarnecer do Céu, o Céu inflige-lhe calamidades. Porque os sábios
fizeram do Céu o seu modelo, todos os seus actos foram eficientes» (Mozi 4, citado por
Armstrong, 2009, p. 270).

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Mas o Céu também fazia parte do projeto pragmático de Mozi, uma vez que ele
era considerado útil para levar as pessoas a praticar o «jian ai». Quando tal começasse a
acontecer, produzir-se-ia um efeito de cascata fortemente mobilizador e difícil de travar:

«Mas se procurarmos beneficiar o mundo adoptando como norma nossa o jian


ai, os que têm bom ouvido e olhos penetrantes verão e ouvirão pelos outros, os que têm
membros robustos trabalharão para outros e os detentores do conhecimento do Caminho
tentarão ensinar outros. Os que são velhos, sem mulher nem filhos, acharão apoios e
conseguirão sobreviver; os jovens e órfãos que não têm pais encontrarão alguém que
cuide deles e satisfaça as suas necessidades» (Mozi 16, cit. Armstrong, 2009, p. 270).

A utopia galvanizadora de Mozi e dos seus companheiros de «irmandade» fez


com que eles se tornassem mais populares do que Confúcio na China da segunda
metade do século V e inícios do século IV a.C., se não mesmo ao longo de toda a
difícil época dos Reinos Combatentes (c. 475-221 a.C.). Como explica Karen
Armstrong, eles eram mais incisivos ao falar da violência e do terror, do egoísmo e da
cobiça; ofereciam uma visão mais racional e prática (menos emocional do que
Confúcio) acerca da simpatia e do carinho que todos os seres humanos mereciam por
igual (pois se até mesmo os inimigos tinham as mesmas necessidades, desejos e
medos!). Uma mensagem utópica, é certo, mas que se revelaria sedutora, nos século V e
IV a.C., no cenário de uma China efervescente, belicista, mas, ao mesmo tempo, em
crescimento populacional, em expansão económica e em renascimento urbano
suficientemente forte para gerar cidades como Linzé (capital do Estado de Qi na
dinastia Zhou) e que teár atingido, no séc. IV a.C., a cifra de 300 000 habitantes!

Yang Zhu (Yangzi ou Yang Chu):

Sabemos muito pouco acerca deste precoce filósofo chinês, que deve ter nascido
por volta de 450 ou 440 a.C. Infelizmente, não sobreviveu qualquer escrito completo
dele, mas a sua importância deve ter sido assinalável, pois é reiteradamente citado em
trabalhos posteriores, como por exemplo em Lü-shih ch’un ch’iu («A Primavera e
Outono do Senhor Lü») onde é possível que se preservem alguns fragmentos autênticos
dos escritos ou ditos de Yang Zhu.

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O aspeto mais comentado do pensamento deste filósofo antigo tem que ver com
a sua ideia de que o homem é naturalmente egoísta. Para Yang Zhu, nada há de mais
natural do que cada um proteger os seus próprios interesses! De resto, terá argumentado,
fora precisamente por causa disso que Confúcio concluíra que a Virtude era rara no ser
humano: ela é algo de artificial, pelo que só pode resultar de uma construção, de uma
imposição. Como observou Van Norden (2009: XXIV), para Yang Zhu, colocar um ser
humano a agir de uma forma benevolente e íntegra seria o mesmo que produzir uma
aberrante versão «bonsai» de um zimbro chinês…

Sendo assim, o chamado «egoísmo ético» de Yang Zhu rejeitava a ideia da


importância do exercício de cargos públicos, ou da generalização do «rén» e do «li»; em
vez disso, deveriam privilegiar-se os sentimentos espontâneos e genuínos, julgo que
muitas vezes enquadrados por cenários de isolamento associados a visões mais ou
menos idílicas de vida na floresta e nos pântanos, em ambientes naturais de caça e de
pesca. Como modelo, Yang Zhu parece ter evocado a figura de Tan Fu, o antepassado
dos Zhou que renunciara ao trono por não aceitar fazer a guerra contra um exército
invasor e condenar, assim, à morte muitos dos seus familiares, amigos e súbditos.

XV

Mêncio o regenerador do Confucionismo

É num ambiente terrivelmente instável a nível político-militar, mas muito


estimulante do ponto de vista intelectual, que devemos enquadrar a figura de Meng Ke
(conhecido por Mêncio), que se supõe ter nascido no Estado de Zhou entre 391 e 371
a.C., vindo a falecer algures entre 308 e 288 a.C.

Embora saibamos muito pouco sobre a vida de Mêncio, sobretudo nas suas
primeiras quatro décadas, pensa-se que, tendo ficado órfão de pai muito novo (tal como
Confúcio), aprofundou a sua ligação à mãe. Esta terá investido fortemente na educação
de Meng Ke e, para o efeito, conta-se que procurou sempre colocá-lo a morar no
ambiente mais adequado aos seus progressos nos estudos: perto de um cemitério para
interpelar a morte, perto de um mercado para tomar o pulso à economia, perto de uma
escola para mergulhar no ambiente do ensino… Terá sido ainda a progenitora de

59
Mêncio a treiná-lo a aproveitar bem os dias de estudo e as oportunidades que lhe
surgiam pela frente, por vezes de forma inesperada.

Um outro aspeto que aproxima (ainda mais) Mêncio de Confúcio é o facto de


também ele ter viajado de Estado em Estado, acompanhado pelos seus discípulos, na
esperança de encontrar um bom governante disposto a implantar o Caminho; sempre
consciente de que este é apenas um e não pode ser distorcido para agradar a quem quer
que seja. Nesta saga, também Mêncio dependia, para subsistir, das ofertas dos
estudantes que o procuravam e das benesses ou subsídios dos governantes. Por isso, não
admira que, na sua obra epónima, Mêncio explique que aceitava ser pago por tarefas e
serviços que tivesse prestado, mas nunca por suborno de quem quer que fosse.

A certa altura da sua vida e carreira, Mêncio aceitou um alto cargo de Ministro
em Qi. Todavia, acabou por se demitir, ao aperceber-se de que o rei Xuan ignorava os
seus conselhos. O monarca insistiu e, diretamente ou através de intermediários, tentou
seduzi-lo com a ideia de que Mêncio, ficando, poderia treinar os seus discípulos, de
modo a que os vários conselheiros e a própria população tivessem um modelo a seguir.
Além disso, o rei mostrou-se disposto a entregar a Mêncio uma moradia no centro do
país e um bom salário. Ainda assim, ciente de que a riqueza é importante mas não é
tudo, Mêncio retirou-se do serviço público e optou por se dedicar a produzir, com a
ajuda dos seus alunos, uma antologia com os seus ditos e diálogos [Mêncio 2B: 3.1 (p.
24)].

Uma tal decisão não terá sido fácil de tomar, tanto mais que, para um «ru»
(ritualista), poder servir um rei era bastante importante. Como o próprio Mêncio explica
na sua antologia, um nobre sem um governante para acompanhar era como um
agricultor sem terra; e, ao fim de três meses parado, um bom letrado já sentia esse vazio
[Mêncio 3B: 3.1 a 3.3 (p. 36)]! Ainda assim, era essencial que o rei de Qi (ou Hui de
Liang, ou qualquer outro estadista) desejasse genuinamente respeitar a figura e o projeto
de Mêncio, e não apenas explorar em proveito próprio a sua fama sem ter de suportar os
seus conselhos acerca da forma ideal de governar.

Mêncio fala um pouco mais de si próprio do que Confúcio. Por exemplo, quando
um discípulo seu chamado Gongsun Chou lhe perguntou se o seu coração se perturbaria
caso ele fosse nomeado Primeiro-Ministro em Qi e pudesse pôr o Caminho em prática,
convertendo o governante em rei ou até em hegemon, o filósofo respondeu: «Não se

60
agitaria. O meu coração encontra-se imperturbável desde os meus quarenta anos»
[Mêncio 2B: 2.1 (pp. 15-16)]. Já sabemos que também Confúcio dissera que, aos quarenta
anos, se tinha visto livre de dúvidas… Numa outra passagem, igualmente expressiva,
Mêncio tenta identificar as suas duas principais virtudes: conhecer bem as doutrinas (o
que ajuda a reconhecer os erros); e ser capaz de cultivar o seu «qì» [energia básica,
matéria prima da vida] torrencial [Mêncio 2A: 2.11 (p. 16)]. Oito séculos mais tarde,
Zhu Xi comentaria que Mêncio postulava uma conciliação entre a vontade e o «qì», esse
importante fluido energético que corre entre nós e o nosso meio ambiente, de que mais
adiante falarei melhor; Zhu Xi acrescenta que entender as doutrinas permite
compreender o Caminho e a retidão, e não ter dúvidas. Já cultivar o «qì» torna possível
que nos harmonizemos com o Caminho e com a retidão, além de nunca se ter medo.

Para Mêncio, era crucial reconhecer as atitudes incorretas e resistir a elas; havia
que distinguir sempre entre as motivações e os comportamentos, e contrariar o fracasso
moral. Em síntese: cultivar o nosso coração para ficarmos aptos a fazer depois as
escolhas certas. Ou, como resumiu Zhu Xi, reconhecer o modelo e, a partir daí,
compreender como se devem fazer as coisas.

A partir destas bases, Mêncio esboçou o seu próprio desenho do «Homem


Nobre». O que é que, verdadeiramente, o definia? A resposta é notável:

«Residir no lugar mais amplo da terra; permanecer no seu lugar próprio no


mundo; pôr em prática o grande Caminho do mundo; segui-lo juntamente com o povo
quando se consegue obter o nosso objetivo pessoal; praticar o Caminho por si só,
quando não se consegue alcançar aquele objetivo; não se deixar seduzir pela riqueza ou
pelo prestígio; a pobreza e o baixo estatuto social são incapazes de o perturbar; o terror
e a força militar não conseguem dobrá-lo – é a isto que se chama ser um grande
homem» [Mêncio 3B: 2.3 (p. 36)].

Como se vê, o objetivo era (muito) exigente e, para o alcançar, havia que investir
fortemente na educação. Até porque, tal como Confúcio preconizara e Mêncio
aprofundou, mais valia dominar o povo pela ação benevolente e pela boa educação:

«O povo tem medo dos bons regulamentos, mas ama a boa instrução. Os
bons regulamentos permitirão obter do povo recursos materiais, mas a boa
instrução conquistará os corações do povo». [Mêncio 7A: 14.1 a 14.3 (p. 80)]

61
Neste ponto, vale a pena assinalar a insistência de Mêncio naquilo que eu
considero ser uma certa ideia de genuinidade, no sentido da preservação do nosso lado
mais luminoso, mais puro e mais generoso. Na sua antologia, o filósofo declara: «Não
faças o que não deves; não desejes aquilo que não desejarias. Sê assim, simplesmente»
[Mêncio 7A: 17 (p. 80)].

Acho esta passagem especialmente tocante, e vale a pena recordar o comentário


que Li Yu lhe dedicou:

«As pessoas têm um coração que as leva a não fazer certas coisas e a não
desejar certas coisas. Porém, logo que um pensamento egoísta emerge, caso a
pessoa seja incapaz de o controlar com adequação ritual e retidão, acabará por
fazer frequentemente aquilo que [à partida] ‘não faria’ e a desejar aquilo que
‘não desejaria’. Examinar este coração é aquilo a que se chama ‘expandir e
preencher o nosso sentido de honra’ (2A: 6); neste caso, a nossa retidão será
infinita. Por isso [Mêncio] diz: ‘Sê simplesmente assim’» [Li Yu citado por Van
Norden, 2009, p. 127]

Em síntese, cultive-se a justeza e a retidão (integridade) para não se fazer, nem


sequer se desejar, aquilo que não se deve; expanda-se o lado bom de cada um de nós! Se
existe uma receita para cultivar o coração, ela pode muito bem ser tão simples quanto
esta: ter poucos desejos. Recordado este axioma, compreenderemos melhor a ideia que
Mêncio fazia acerca daquele que Confúcio tantas vezes chamara «o Homem Nobre».

As traves-mestras da filosofia de Mêncio:

Quem quiser conhecer o pensamento de Mêncio, que ficou um pouco na sombra


de Confúcio, terá uma bela surpresa. Como reconhece Van Norden, este filósofo chinês
estava à altura de contemporâneos ilustres como Platão (428/427 – 348/347 a.C.) ou
Aristóteles (384-322 a.C.). Tal como o mestre de Alexandre Magno, Mêncio esperava (e
exigia) ser tratado com deferência, pois entendia que era merecedor desse respeito.
Assim como Confúcio, Gandhi ou Martin Luther King Jr. – acrescenta Van Norden –

62
ele envolveu-se na luta por uma mudança social positiva. Neste aspeto, não foi bem-
sucedido, tal como o seu Mestre, mas, ainda assim, Mêncio dizia aos seus alunos que
não era uma pessoa amarga: ele tinha fé em que o Céu, no seu devido tempo, geraria um
sábio que traria paz ao Mundo [Mêncio 2B: 13 (pp. 27-28)]. Também Mêncio
acreditava nos ciclos dinásticos de 500 anos (a chamada «lei das dez gerações» aplicada
à decadência de um país), no intervalo dos quais surgia um rei notável e capaz de
regenerar Tudo sob o Céu. Pelo meio, havia homens ilustres e talentosos; porém, já
tinham passado mais de 700 anos desde a fundação da dinastia Zhou (c. 1046 a.C.), a
China estava pior e não se adivinhava um sinal de retoma; o Céu não queria a paz no
Mundo? Seria agora o momento? Seria, quem sabe, a vez de Mêncio? Ele acreditava
nesta possibilidade:

«Contudo, o Céu ainda não quis pacificar o mundo. Se o quisesse fazer, quem
mais senão eu estaria habilitado para tanto, na era presente?» [Mêncio 2B: 13.2 a 13.5
(pp. 27-28)].

E, mais adiante, aparentemente já descrente nas suas oportunidades, Mêncio


recorda que, desde Confúcio e até ao presente, tinham passado pouco mais de cem anos:
«Não é muito desde a era de um sábio e estamos perto da casa de um sábio. No entanto,
onde é que ele está? Onde é que ele está?» [Mêncio 7B: 38.1 a 38.4 (p. 91)].

Mêncio dedicou uma boa parte do seu tempo a denunciar e a tentar desconstruir
as teses de Mozi e de Yang Zhu – os filósofos mais marcantes entre Confúcio e ele
próprio. Criticou severamente a «equanimidade» do primeiro e o «egoísmo natural» do
segundo. Dizia que, sem governante nem pai, o povo sofreria e os animais devorariam
as pessoas. É visível a preocupação de Mêncio (também ele!) em salvar o Mundo,
desmascarando os adversários e recuperando as doutrinas que considerava justas:
basicamente, os ensinamentos confucianos sobre a benevolência e a retidão. Do mesmo
modo, fazia questão de evocar a história e a memória dos grandes reis do passado.

De uma forma muito simplista, podemos dizer que a filosofia política de Mêncio
assentava na ideia de um «governo benevolente» que fosse capaz de assegurar o bem-
estar da população. Tal como Confúcio, ele considerava que, sem se matar a fome ao
povo, não se poderia esperar que os crimes não ocorressem [Mêncio 1A: 7.20 (p. 8)].

Mas, a partir daqui, é muito interessante registar uma diferença marcante entre
Confúcio e Mêncio: não uma diferença de substância doutrinal, mas sim de abordagem

63
e de demonstração. É que Mêncio era muito mais concreto e prático do que o seu
mestre inspirador! Na sua obra encontramos, por exemplo, recomendações sobre
impostos, sobre a gestão de quintas, ou até sobre pagamentos aos empregados do
governo [Mêncio 3A: 3 (pp. 29-30)]. Igualmente importante é, claro, a educação ética,
que na perspetiva confúcio-menciana deveria ser assegurada por um sistema que
ensinasse a viver em harmonia (bons pais, bons filhos, boas esposas, bons amigos, etc.).
Ou seja, o caminho do povo passava por ter acesso não apenas a comida e a vestuário,
mas também a instrução, sob pena de ficarem como se fossem animais: a cultura,
achava Mêncio, transforma, a barbárie é que não.

Também é assaz interessante, e inesperado, o ecologismo de Mêncio, visível


quando ele se interessa pela conservação do meio ambiente, ou quando propõe políticas
agrárias concretas [Mêncio 1A: 3.2 e 3.3. (pp. 2-3)]. Daí também a sua atenção à
memória de Shen Nong, o imperador lendário a quem era atribuída a invenção da
agricultura.

Ao nível das políticas públicas, e como nota Van Norden, sobressai também o
lado prático do grande filósofo do século IV a.C. chinês; nele existe uma certa
imbricação entre perspetiva filosófica e política: há conselhos sobre a arte de bem
governar, mas associados a indicações sobre como delimitar os campos, sobre as taxas a
cobrar, ou mesmo sobre as vantagens de providenciar equipamentos comuns (poços,
certos terrenos, entre outras valências). [Mêncio 2A: 5 (p. 20)].

Em Mêncio, a parte moral está, assim, estreitamente ligada à parte material: um


povo sem meios não podia ter bom coração, só os nobres. Portanto, politicamente, a
mensagem passava também por isto: cuidar do povo é potenciar o bem e evitar a
revolta; um povo com fome não quer saber de ritos, nem de integridade (ou retidão). O
Caminho do (bom) rei teria de passar, não pelos devaneios de liderança (ex: o sonho de
se tornar hegemon), mas sim pelo regresso às raízes: seda, carne, cereais, instrução,
amor aos pais e aos irmãos, eis a base para se ser um bom governante, esclarece Mêncio
logo no primeiro capítulo da obra epónima. Claro que, como observaria Zhu Xi no
século XII, isso implicava contrariar o egoísmo terrível que destrói o Céu que há dentro
de cada um de nós.

Um outro aspeto em que Mêncio retoma e aprofunda Confúcio diz respeito à


ideia segundo a qual a felicidade atrai os de longe; o povo apoiaria sempre um rei justo

64
e pacífico, em vez de um tirano, pelo que a bondade era também uma força
transformadora (Armstrong, 2009, p. 300). Este era decerto um aspeto importante na
dinâmica dos diversos «Países do Meio», especialmente em tempo de grande
conflitualidade. Como sintetizaria Zhu Xi: «Se os que estão perto estiverem felizes, os
de longe aparecerão» [Zhu Xi citado por Van Norden, 2009, p. 96].

Julgo que, ao dizer isto, Zhu Xi, o grande filósofo neoconfucionista do séc. XII
estaria a pensar também nos nobres, que eram essenciais para a construção de um
mundo melhor. É que apenas eles tinham um «coração constante», por serem cultos; os
nobres como que viam o Mundo a cores, enquanto o povo simples o via tão só a preto-
e-branco; só os nobres entendiam, por exemplo, a verdadeira importância dos sacrifícios
rituais prestados aos antepassados; portanto, eles eram imprescindíveis e o seu exemplo
era precioso, onde quer que estivessem. Como dizia Mêncio: «Um nobre no seu ofício é
como um agricultor a lavrar a terra. Como poderia um agricultor abandonar um Estado e
deixar para trás o seu arado?» [Mêncio 3B: 3.5 (p. 37)].

Dito de outra forma, um nobre (como Confúcio) levava sempre consigo o seu
talento, e era justamente isso que lhe permitia ensinar os outros, havendo – segundo
Mêncio – cinco maneiras através das quais o poderia fazer: i) transformando a outra
pessoa como «chuva caída no tempo certo»; ii) fazendo o outro levar a sua Virtude até
ao fim; iii) desenvolvendo o seu talento; iv) através da pergunta e da resposta; v) por via
do refinamento ou cultivo privado [Mêncio 7A: 40.1 a 40.6 (p. 84)].

Por vezes, perguntavam a Mêncio se o Caminho não poderia ser tornado um


bocadinho mais acessível, menos exigente…A resposta de Meng Ke era fulminante,
tal como deve ter sentido Gongsun Chou:

«Um grande carpinteiro não empena o fio-de-prumo para bem de um operário


desastrado. O grande Yi não modificou a sua forma de ensinar a retesar o arco em prol
de um arqueiro incapaz. Um nobre retesa o arco, mas antes de deixar a flecha voar, ele
posiciona-se no meio do caminho: deixemos aqueles que são capazes imitá-lo» [Mêncio
7A: 41.1 a 41.3 (p. 84)]

E, logo a seguir, como que chamando a atenção para a importância de perceber


bem aquela mensagem, Mêncio acrescenta: «Quando o mundo segue o Caminho, o
Caminho permanece contigo até à sepultura. Quando o mundo se distancia do Caminho,
deves ficar com o Caminho até à sepultura. Eu nunca ouvi foi dizer que o Caminho fica
contigo quando tu segues outros» [Mêncio 7A: 42.1 (p. 84)]

65
Muito confucionista é também a tese segundo a qual Tudo sob o Céu se
estrutura em função da articulação de quatro círculos cada vez mais amplos: nós, a
família, o Estado e o Mundo: «A raiz do mundo reside no Estado; a raiz do Estado
reside na família; a raiz da família reside em nós próprios» [Mêncio 4A: 5.1 (p. 44)].
Não se perca de vista que esta ideia matricial do Confucionismo se encontra – como
muitas outras – ancorada na tradição literária clássica, neste caso em «A Grande
Aprendizagem»:

«Os antigos que desejaram que todo o povo no interior do império fosse capaz
de deixar que a sua Virtude luminosa inata continuasse a brilhar, trataram primeiro de
garantir que os seus Estados fossem bem governados; para tal, começaram por
implantar a harmonia nas suas casas; e, para tanto, começaram por se cultivar a si
mesmos».

De modo não menos veemente do que Mozi o fizera, Mêncio condena a guerra,
que considera tratar-se de «um lamentável último recurso». De resto, Meng Ke criou a
este respeito uma expressão deliciosa, que acabaria por tornar-se um provérbio chinês:
«Tentar governar através da força é tão ineficaz quanto trepar a uma árvore na
esperança de apanhar um peixe». [Mêncio 1A: 7.16 (p. 7)].

Para Mêncio, não havia guerras justas e injustas, a Virtude era sempre
melhor do que a força:

«Não há guerras justas nos Anais da Primavera e do Outono. Há apenas casos


de umas que são melhores do que outras. Uma guerra punitiva é quando um superior
ataca um subordinado. Quando Estados hostis se atacam um ao outro, não se trata de
uma guerra punitiva» [Mêncio 7B: 2.1 (p. 85)].

A antologia preparada por Mêncio e pelos seus discípulos também ensina como
fazer o povo feliz. O princípio geral é a tal ideia de que os súbditos se submetem mais à
Virtude do que ao poder coercivo:

«Se alguém forçar os outros a submeterem-se-lhe por meio do poder, os seus


corações não se submeterão. (…) Se alguém levar os outros a submeterem-se-lhe por
meio da Virtude, os seus corações alegrar-se-ão e eles submeter-se-ão genuinamente, tal
como os setenta discípulos que serviram Confúcio» [Mêncio 2A: 3.1 e 3.2 (p. 19)]

66
Mas qual a receita para levar a felicidade aos corações dos súbditos? No seu
estilo muito prático e concreto, Meng Ke sugere estratégias para os governantes
conquistarem os diversos grupos sociais: aos nobres, devia-se reconhecer o mérito e
nomeá-los para altos cargos; aos mercadores, devia-se-lhes cobrar taxas adequadas (e
não exorbitantes); quanto aos viajantes, deviam estar sujeitos a inspeções alfandegárias,
mas não a impostos; no que toca aos lavradores, devia evitar-se aplicar-lhes taxas e
outros agravos; do mesmo modo, os artesãos deviam ser poupados a sobretaxas.

«Se alguém [leia-se: um governante] for capaz de pôr em prática estas cinco
coisas, então o povo dos Estados vizinhos recebê-lo-ão como a um pai ou a uma mãe.
Conduzir os filhos e os irmãos mais novos a atacar um pai ou uma mãe é algo que
nunca aconteceu desde o nascimento da raça humana» [Mêncio 2A: 5.1 e 5.6 (p. 20)].

A abordagem menciana do tema da felicidade e prosperidade dos súbditos


aparece sempre associada à ideia da satisfação das necessidades básicas. Há uma longa
passagem do sétimo livro que exprime essa noção de uma maneira claríssima e muito
analítica:

«Se tornares o cultivo dos seus campos fácil e a suas taxas forem leves, o povo
poderá enriquecer. Se os mantiveres bem alimentados e apenas os empregares segundo
as regras da decência, haverá recursos materiais mais do que suficientes. O povo não
viverá sem água e lenha. Mas se puderes bater às portas das pessoas ao final da tarde,
pedindo-lhe alguma água ou brasas quentes, e isso não te for recusado, então é porque
existe o suficiente. Do mesmo modo, quando os sábios governam o mundo, fazem com
que o grão seja tão abundante quanto a água e o lume. E quando o povo tem tanto grão
quanto água e lume, como poderá ele não ser benevolente?» [Mêncio 7A: 23.1 e 23.2 (p.
81)].

Portanto, tal como Mêncio sublinha pouco depois, a fome e a sede também são
males do coração: «Será que a fome e a sede apenas ferem a boca e a barriga? Também
os corações humanos estão sujeitos a tais ferimentos» [Mêncio 7A: 27.1 (p. 82)]. Assim,
seria bom que, em vez de fazerem a guerra para satisfazer os seus devaneios de
hegemonia, os governantes cuidassem de alimentar o povo. Aliás, para Mêncio, as
anexações entre Estados nem faziam qualquer sentido, uma vez que tanto os grandes
como os pequenos países precisavam uns dos outros. Além disso, se alguém planeava
unificar o Mundo, era bom que soubesse que isso só estava ao alcance de quem não
gostasse de matar pessoas. Não era esse o caminho a seguir e os governantes

67
precisavam de interiorizar isso e de abdicar de três coisas que fazem os reis felizes e os
povos infelizes: reunir soldados; sujeitar os seus oficiais militares ao perigo; e fomentar
o rancor dos vários senhores [Mêncio 1A: 7.14 (p. 7)]. É justamente ao tocar neste
assunto que Mêncio usa pela primeira vez a famosa metáfora dos «rebentos» ou
«brotos», que serve sobretudo para explicar as nossas inatas, mas incipientes,
inclinações éticas.

«Natureza humana», ambiente e esforço individual:

Mêncio empenhou-se em defender a substância do pensamento de Confúcio


contra os ataques entretanto dirigidos a partir, sobretudo, dos apoiantes de Mozi
(«cuidado imparcial») e de Yang Zhu («egoísmo ético»), mas também de filósofos seus
contemporâneos, como Gaozi («neutralidade ética», vide infra). Isso obrigou-o a
defender com especial empenho a tese de que o potencial humano para a bondade é
grande, sim, mas tem de ser cultivado com bom ambiente e com muito esforço
pessoal, para poder dar frutos. Como Van Norden (2009, p. XXIV) notou, para Meng
Ke a «natureza humana» não resulta apenas do nascimento, mas também do
crescimento e do desenvolvimento das suas potencialidades num ambiente saudável (ou
não). Repare-se que também numa pereira, uma árvore em que é natural que surjam
muitos frutos, nem todos os «rebentos» se convertem em peras; e muitos «brotos» de
pereiras não chegam a converter-se em árvore por falta de solo, de água e de luz…

Segundo Mêncio, os humanos têm tendências inatas para a virtude, e é no


quadro da família que essas inclinações melhor se podem desenvolver, gerando amor e
respeito pelos outros, assim como sentimentos de vergonha ética. Tal como Confúcio
postulara, para os humanos é uma coisa natural preocuparem-se mais com a família do
que com os estranhos. A família ocupa, portanto, um lugar insubstituível na construção
da bondade humana.

Num aspeto é evidente o avanço de Mêncio relativamente a Confúcio: ele diz


com clareza que a natureza humana é boa, ou seja, que todos os homens têm
tendências inatas (conquanto incipientes) para a virtude; e essas tendências desenvolver-
se-ão harmoniosamente, caso o indivíduo cresça num ambiente saudável e receba uma
educação ética conveniente. Ficou famoso o exemplo menciano daquela pessoa que, de

68
repente, avista uma criança que está prestes a cair a um poço. Meng Ke pergunta: quem
não a socorrerá [Mêncio 2A: 6.3 e 6.4 (p. 20)]? Para Mêncio, só não tem sentimento de
compaixão quem não é humano. Da mesma maneira, a retidão (probidade,
integridade) é parte natural do ser humano: até um mendigo pode recusar um cesto
de comida e uma tigela de sopa que lhe sejam oferecidos com desprezo!

Deste modo, e ao contrário do que defendia Yang Zhu, a natureza humana não
consiste apenas em desejos egoístas por comida, sexo, conforto físico e
sobrevivência; pelo contrário, inclui também motivações éticas diferenciadoras. Mas
não será que a realidade desmentia Mêncio? Não, porque – como precisa Van Norden
– ele falava em natureza humana boa (inata), não em seres humanos inatamente bons!
Ou seja, uma coisa é o «rebento», outra é o «fruto»; a compaixão pode gerar
benevolência; a altivez ou sentido de honra pode produzir retidão ou integridade; mas,
em qualquer destes casos, é sempre preciso que o ‘potencial natural’ seja desenvolvido.
Daí que Mêncio fale em alargar os «rebentos» até à benevolência e retidão totais, para
encher o coração e não magoar ninguém, nem transgredir o Caminho [Mêncio 7B: 31.1
e 31.2 (pp. 88-89)].

Um dos exemplos mais emblemáticos fornecidos por Meng Ke em apoio desta


sua tese é a alegoria da «Montanha do Boi». As árvores desta montanha eram muito
belas, mas foram cortadas a machado pela mão humana; outrora, havia ali bons pastos,
mas os bois e as ovelhas tinham-nos comido todos; portanto, agora tudo é estéril e
maninho. Ao ver a Montanha do Boi neste estado, alguém acredita que antes ali havia
madeira? Também assim é entre os humanos: um mau enquadramento (privação física,
ausência de orientação ética, má parentela) pode destruir a nossa «bondade natural».
Como comenta Karen Armstrong, Mozi pensava que a bondade tem de ser incutida
exteriormente; mas Mêncio contesta isto, dizendo que é tão natural para nós
comportarmo-nos moralmente como é para os nossos corpos desenvolverem-se no
sentido de uma forma humana amadurecida. Podemos tolher tanto o nosso crescimento
físico quanto o nosso crescimento moral, devido a maus hábitos, mas a tendência
instintiva para a bondade permanece; a natureza humana é, em princípio, boa e
inclinada espontaneamente para a benevolência (Humanidade).

Os ataques ao nosso potencial para a benevolência («rén») e para a retidão


(«yì»), segundo Mêncio, podem ser tão fortes que o «qì» não consiga restabelecê-los e

69
nos tornemos (ou sejamos vistos, tal como no exemplo da Montanha do Boi) como
animais que nunca tiveram qualquer capacidade inerente para o bem. É que nada cresce
se não for alimentado. Neste ponto, Meng Ke convoca o Mestre em apoio direto da sua
doutrina: «Confúcio dizia: ‘Agarrado, logo preservado; abandonado, logo perdido. O
seu ir e vir não tem hora marcada. Ninguém conhece a sua morada’. Não era isto o
coração daquilo de que ele falava?» [Mêncio 6B: 8.1 a 8.4 (pp. 73-74)].

Ao dizer que «a natureza humana é boa», Mêncio quis dizer que todos temos
um potencial inato para o bem, sim, mas podemos ou não aproveitá-lo, aprofundá-
lo. Aquele potencial é sempre idêntico, mas as circunstâncias externas e o esforço
individual fazem com que oscile de pessoa para pessoa. O mesmo acontece com a
semente da cevada: resulta melhor ou pior consoante a riqueza do solo, os caprichos da
chuva e o esforço do agricultor [Mêncio 6A: 7.2 (p. 72)]. O filósofo cita também dois
alunos que estão a aprender um jogo de tabuleiro («Go»): um deles consegue assimilar,
mas o outro não; e não é tanto por terem inteligências diversas, mas sim porque a sua
concentração e o seu esforço foram distintos 8. Os melhores – dizia Mêncio – conseguem
preservar o seu coração de criança. E só a bondade permite dominar o Mundo.

Impulsos naturais e Virtudes do comportamento:

Dito isto, entramos no âmago da doutrina menciana, centrada na ideia dos


quatro sentimentos inatos (ou «impulsos», como lhes chama Armstrong) e das quatro
expressões comportamentais inerentes. Mais uma vez, Mêncio retoma Confúcio, mas,
com o seu espírito prático e muito sistematizado, introduz algumas nuances
interessantes, que tratarei de enunciar brevemente.

No essencial, Mêncio começa por identificar aquilo a que chama os quatro


«sentimentos inatos»: a compaixão; a altivez (ou sentido de honra); o respeito (ou
consideração por alguém, ou por alguma coisa); e o discernimento (ou critério). Todos
os seres humanos nascem com estes impulsos, e é por isso que ninguém permanece
impávido quando vê uma criança à beira de cair a um poço, ou mesmo quando vê um

8
Mêncio 6A: 9.3 (p. 74). Nos Analectos 17.22 (II, pp. 234-235), Confúcio explicara que o «Go» é jogado
num tabuleiro, com pedras brancas e pedras pretas colocadas numa placa; segundo Van Norden (2009, p.
74, nt. 7), o objetivo do jogo é capturar as peças do adversário, cercando-as com as nossas; uma criança
consegue praticar este jogo, que no entanto é difícil de dominar completamente.

70
boi a ser encaminhado para um sacrifício. Ora, àqueles quatro «sentimentos inatos»
podem vir a corresponder – se tudo correr bem – quatro «expressões
comportamentais»: a benevolência («rén»); a retidão (probidade, integridade: «yì»); a
deferência ritual («li»); e a sabedoria («zhi», no sentido do conhecimento das virtudes,
da capacidade de avaliar o caráter dos outros, ou da competência para concretizar
objetivos). [Mêncio 2A: 6.4 a 6.6. (p. 21), entre outras passagens].

Tudo se passa como se, no primeiro grupo, estivessem os quatro fatores


potenciais (ou seja, os quatro «rebentos») e, no segundo, os quatro «frutos» desses
rebentos, cuja existência está – como já expliquei – condicionada a um crescimento
físico e intelectual processado em ambiente favorável, com uma boa educação e
acompanhado por um esforço individual meritório e persistente. Num cenário deste tipo,
a compaixão gera a benevolência (Confúcio chamava-lhe «Humanidade»), a altivez
produz a retidão, o respeito garante a deferência ritual, e o discernimento (ou «critério»)
promove a sabedoria.

E será que existe uma virtude mais importante do que as outras? Para Zhu
Xi, é a benevolência, pois funciona como uma síntese de todas as restantes. De resto,
Zhu Xi interpreta Mêncio como um defensor da «unidade das virtudes»; para este
comentador neoconfuciano, a compaixão, a altivez, o respeito e o critério são
«emoções»; já a benevolência, a retidão, a deferência ritual e a sabedoria configuram «a
natureza humana» em si mesma. Segundo Zhu Xi, o coração é o órgão a quem compete
articular os dois conjuntos, isto é, a natureza com as emoções. Como sintetiza Karen
Armstrong, o coração é o «órgão afectivo pensante» e, na maioria das pessoas,
assemelha-se à Montanha do Boi, outrora frondosa e atualmente despida de vegetação
que é urgente repor, o que é perfeitamente possível: «Dada a nutrição correcta, não há
nada que não cresça, e privada dela não há nada que não definhe» [Armstrong, 2009, p.
302; Mêncio 6A: 8 (pp. 73-74)].

Quanto às causas que originam os «rebentos tortos», impedindo que os bons


«sentimentos inatos» (ou «impulsos») se materializem em comportamentos corretos, já
conhecemos as três principais: mau ambiente social, doutrinas perniciosas e reduzido
esforço ético individual. Tal como Confúcio, e de forma igualmente pedagógica,
Mêncio explica como se podem evitar ou superar esses obstáculos. Por um lado, através
da reflexão («sî»), considerada no sentido de observação atenta, de concentração

71
naquilo que pode fazer vir ao de cima o nosso potencial para a bondade. Por outro,
seguindo pacientemente as várias etapas do autoaperfeiçoamento moral: primeiro
refletir e reconhecer a bondade que existe em nós; como segundo passo, agir para
chegar às pessoas. Estes dois estádios são identificados por Meng Ke durante uma das
suas conversas com o rei Xuan de Qi, a quem o filósofo ajudou a alcançar maturidade
cognitiva ética para depois atingir a maturidade afetiva ética.

Em resumo, trata-se de alargar e de preencher os nossos rebentos éticos inatos.


Todos nós temos reações íntegras e benevolentes perante certas citações paradigmáticas
Temos é de aprender a guiar as nossas emoções através da reflexão. Como diz Zhu Xi,
com desarmante simplicidade: «nós temos este coração inerentemente; não é preciso
procurá-lo externamente. Quanto a saber se o preenchemos (ou não), isso depende
apenas de nós próprios. Que dificuldade pode haver nisto?» [Zhu Xi citado por Van
Norden, 2009, p. 95].

À boa maneira confuciana, a estratégia passa por, primeiro, tratar bem os


jovens e os idosos no seio da nossa própria família e, depois, alargar esse
procedimento aos outros idosos e aos jovens; com isto, governa-se o Mundo! Zhu Xi
insistiu na sequência pedagógica e prática desta mensagem: alargar a benevolência para
com os outros a partir da família e em círculos cada vez mais amplos (família > anciãos
> todos os súbditos), até aos animais.

Claro que – e isto é uma constante no Confucionismo – o maior serviço, e o mais


importante, é aquele que se pratica em casa, com os pais e os irmãos mais velhos; é aqui
que tudo começa e se decide. O âmago da benevolência consiste em servir os pais; o
âmago da retidão é obedecer ao irmão mais velho; o âmago da sabedoria está em saber
estas duas coisas e praticá-las; o âmago da expressão ritual consiste em adornar aquelas
duas coisas; e o âmago da música é deliciar-se nelas as duas [Mêncio 4A: 18.2 a 19.2;
23.1; e 27-1-27.2 (pp. 48-49)].

Desta linha de reflexão decorre também a visão que Mêncio fazia daquilo que
era a essência da sabedoria, ou seja, daquilo que todos os sábios tinham em
comum: «Se algum deles pudesse obter para si o Mundo através de uma ação
desonesta, ou matando uma pessoa inocente, ele não o faria» [Mêncio 2A: 2.24 (p. 19)].

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Donde se conclui que tudo depende de nós, é a nós que compete estimular um
comportamento eticamente irrepreensível (ou não). E só não deixa imediatamente de
fazer o mal quem não quiser. Neste ponto, há uma saborosa passagem do Mêncio
onde se evoca a história de um homem que roubava galinhas ao seu vizinho e que
propôs reduzir progressivamente o crime para apenas uma galinha por mês, até parar de
todo no ano seguinte… Mas Meng Ke cortava mais a direito: devemos abandonar de
imediato os maus comportamentos e as más políticas; e podemos perfeitamente fazê-lo,
desde que o queiramos [Mêncio 3B: 8.1 (p. 39)].

Referências bibliográficas

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