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Tal como Siddhârta Gautama, Jesus ou Sócrates, Confúcio (c.551-479 a.C.) não
compôs obra própria. O que sabemos acerca do seu pensamento devemo-lo sobretudo
aos seus discípulos, que, sobretudo nos Analectos, evocam largamente a sua ensinança e
maneira de pensar e de atuar. Confúcio também foi um incansável leitor, e até
compilador ou editor, dos famosos «Cinco Clássicos», onde a antiquíssima tradição
cultural chinesa encontrou a sua perenidade. Além disso, ficou diretamente ligado ao
corpus dos «Quatro Livros», que, desde os Song e graças sobretudo a Zhu Xi (c.1200
d.C.), se reconhece abrigarem a quintessência do Confucionismo.
Neste conjunto incluem-se as seguintes obras: o Livro das Mutações («Yi Jing»,
ou «I Ching»); o Clássico da História («Shu Jing»); o Clássico da Poesia / dos Poemas
(ou Livro das Odes, «Shi Jing»); o Clássico dos Ritos («Li Jing»); e os Anais da
Primavera e do Outono («Chun Qin», ou «Ch’un Ch’iu»). As três primeiras obras são
anteriores a Confúcio.
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de anos. Trata-se de um texto metafísico, que pretende explicar as leis e os elementos de tudo na
natureza. O princípio subjacente é o de que nós, assim que entendermos as ações do Céu e da
Terra, saberemos como viver em harmonia com o universo, como suportar todas as mudanças e
como florescer em qualquer circunstância.
Apesar de o Livro das Mutações não permitir propriamente prever o futuro, fornece
alguns conselhos práticos e sugere formas de atuação inspiradas nos oráculos presentes em cada
linha dos seus hexagramas. É, em síntese, uma obra matricial que, com as suas reflexões acerca
do curso dos valores e das ações éticas, conserva ainda hoje a sua popularidade como fonte de
aconselhamento objetivo e de tomada de decisão.
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dedique um comentário pouco abonatório: «Seria melhor não ter os Documentos do que
acreditar em tudo o que lá vem. Eu apenas aceito duas ou três passagens do capítulo “A
conclusão da Guerra”» (Mêncio 7B: 3.1. e 3.2 , p. 85).
A obra inclui: canções populares sobre o amor, a guerra e o trabalho; poemas de elogio
aos lendários reis e governantes sábios; lamentações acerca da turbulência política crescente; e
hinos para os ritos sacrificiais. Note-se que os poemas populares tinham muitas vezes segundos
sentidos, de natureza política; por exemplo, as queixas acerca dos amantes infiéis podiam
configurar metáforas sobre os governantes injustos. Por isso, muitos dos valores inseridos no
Livro dos Poemas, ou Livro das Odes, encontram reflexo na filosofia política confucionista ou
taoísta. Internamente, o Livro das Odes, encontra-se organizado em três partes: i) «Os Ventos
dos Países», composta por canções populares; ii) «As pequenas e grandes Odes
elegantes», que são poemas de estilo mais aristocrático e requintado. iii) «Os Cânticos
das Casas Reais», que tinham uma natureza religiosa, sendo entoados durante os
sacrifícios.
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Confúcio terá, pois, ajudado a salvar para a posteridade 305 poemas da antiquíssima
tradição cultural chinesa. Note-se que, apesar de o registo das respetivas melodias se ter perdido
na longa noite dos tempos, estas composições eram musicadas e cantadas, por vezes com
acompanhamento de danças. Mestre K’ung parece ter valorizado bastante o Clássico dos
Poemas, pois, nos Analectos, interpela os seus alunos dizendo:
Mestre K’ung declarou: “Erguer-se com os Poemas, firmar-se com os Ritos, completar-
se com a Música» (Analectos 8.8. I, p. 252). Tal como observou Zhu Xi, trata-se aqui de uma
metáfora do desenvolvimento intelectual e moral do ser humano, culminando na música, que
completa a pessoa e a vocaciona para o sucesso no Estudo, harmonizando-a com o Caminho e
a(s) virtude(s).
Consideremos agora as duas obras que se pensa não serem anteriores à época em que
viveu Confúcio (c.551-479 a.C.). O CLÁSSICO DOS RITOS (ou Registo dos Ritos) é uma
volumosa antologia que reúne coleções de textos relacionados com rituais seculares e religiosos,
assim como códigos de comportamento destinados às classes sociais privilegiadas, para além de
conter ricos materiais de natureza filosófica.
Não é possível datar uma tal antologia, muito menos cada uma das suas componentes,
mas é provável que a maioria provenha dos séculos finais da dinastia Zhou (1046-221 a.C.) e,
pelo menos em alguns casos, dos inícios da dinastia Han (séc. II a.C.). É possível que o
Clássico dos Ritos terá sido produzido na escola de Lu, um principado que era grande defensor
da tradição sacra e onde existia a escola ritual mais importante. O objetivo consistiria em
promover a eficácia de cerimónias perfeitas e a consciência, por parte de cada ritualista e de
cada participante, do valor e do significado no seu todo. Os Ritos eram um elemento essencial
da estratégia confucionista para construir uma sociedade melhor. Conforme se lê nos Analectos:
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tenha decoro. Caso o povo seja conduzido pela virtude e disciplinado pelos Ritos, não
apenas terá decoro, mas também se tornará Correcto» [Analectos 2.3 (I, p. 52)].
A maior parte dos autores admite que terá havido pelo menos um ‘sexto clássico’, a
saber, um Clássico da Música, provavelmente um cânone de música para rituais («Yüeh
Ching»); esta obra ter-se-á perdido ainda antes do século III a.C., mas o respetivo conteúdo
pode ser, de certo modo, conjeturado a partir de outros textos que chegaram até nós. De acordo
com a tradição, todas as obras que citámos terão sido editadas por Confúcio, ou pelo menos
validadas pela sua autoridade (e/ou dos seus discípulos). Daí que, muitas vezes, sejam referidas
como os «Clássicos confucionistas».
II
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atraiçoado. Em grande medida, devemos a Zhu Xi a influência que o Confucionismo
continuou a ter no Mundo, até aos dias de hoje. A ordem dos «Quatro Clássicos» seria a
seguinte: «A Grande Aprendizagem», «Analectos», «Mêncio» e «A Doutrina do Meio».
Os Analectos são uma das mais influentes obras da história da Humanidade: este
livro foi estudado e reverenciado, não apenas na China mas também em muitas outras
culturas e civilizações asiáticas, a começar pelas vizinhas Coreia e Japão.
Suspeita-se que os Analectos («Lun Yü») possam ter sido compilados sobretudo
por Zheng Shen (ou Zengzi) e por You Ruo (da 2.ª geração), aos quais seria
reconhecido mais tarde o título de «Mestre». No século XII, a obra foi objeto da análise
detalhada de Zhu Xi (que estudara com os irmãos Cheng Yi e Cheng Hao), nos seus
«Comentários reunidos aos parágrafos e sentenças dos Analectos». Sabemos, por isso,
que estava dividida em 20 capítulos (em chinês: «pian»), cada qual segmentado em
parágrafos («zhang»), cada um deles contendo sentenças («ju») do velho Mestre. Os
«pian» terão sido reunidos em dez rolos de bambu («juan»), pois no tempo da dinastia
Zhou (durante a qual viveu Confúcio) os livros eram escritos em toalhas de seda, ou em
esteiras de bambu; só a partir dos Han é que se começou a usar o papel.
Tal como podemos verificar em muitas obras clássicas chinesas, o texto dos
Analectos não tem uma unidade rígida, navegando-se um pouco ao sabor das evocações
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dos alunos; isto favorece uma leitura algo aleatória da obra; o objetivo não é
acompanhar uma narrativa, ou alcançar um entendimento sistematizado, mas sim
procurar frases e sentenças incisivas que toquem o leitor e que despertem a sua intuição
pessoal. Tenha-se pois, desde já, em conta que a cultura chinesa promove menos a razão
(«logos», à maneira ocidental) e mais a união entre o intelecto e o sentimento.
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«Alguns nascem já com o conhecimento dessas virtudes. Outros aprendem-nas
através do estudo. Outros ainda por meio do trabalho árduo. Mas quando se alcança um
tal conhecimento, tudo vai dar ao mesmo. Alguns praticam [essas virtudes] de forma
fácil e natural. Outros fazem-no para seu próprio proveito. Outros ainda praticam-nas
com esforço e dificuldade. Mas quando se consegue alcançar o objetivo, tudo vai dar ao
mesmo»1.
1
Doutrina do Meio, citada por Höchsmann e Guorong, 2007, p. 14.
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do Confucionismo sobre outras doutrinas coevas, que ameaçavam o estatuto da filosofia
do Mestre K’ung (exs: o Mozi, Yhang Zhu). Tão grande foi o sucesso de Mêncio que,
depois da sua morte, foi considerado o «Segundo Sábio» do Confucionismo e a sua
evocação espiritual foi consagrada nos templos desta religião, com dignidade quase
equiparada à do Mestre fundador. Segundo Höchsmann e Guorong (2007, p. 13), «a
filosofia de Mêncio eclipsou as seitas rivais e emergiu como a transmissora direta dos
ensinamentos de Confúcio, fixando o legado da tradição confuciana».
III
A maioria das culturas muito antigas produziu os seus próprios mitos da criação,
um elemento gerador de identidade e, muitas vezes, uma forma de ordenamento
político-social e de legitimação ideológica do poder constituído.
No entanto, o mito da criação com maior impacto na China antiga parece ter
sido aquele que Xu Zheng registou na obra San Wu Li Ji, provavelmente composta
durante o período dos «Três Reinos» (entre 220 e 265 d.C.). Como observou Yu Dan
(2010, pp. 16-17), este mito mostra bem como, na perspetiva chinesa, a criação
consistiu num processo muito lento, pacífico, descontraído e pleno de antecipação:
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«Posteriormente, o céu e a terra separaram-se, não da mesma forma que um
corpo sólido se separa em dois com uma pancada, mas antes como uma separação
gradual de duas essências; a leve, pura essência yang elevou-se e tornou-se o céu, a
pesada essência yin afundou-se e tornou-se a terra. Mas isto não marcou o fim da
separação entre céu e terra. O processo havia apenas começado» .
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Qualquer que seja a arqueologia exata do mito de Pangu, este documenta bem
como os Chineses sacralizavam as categorias mundanas (a Terra, o Cosmo, o Império).
Como observou Karen Armstrong (2009, p. 79), eles não queriam descobrir «algures» o
divino, o sagrado; o seu propósito passava antes por divinizar o mundo no seu todo, por
aproximá-lo o mais possível do modelo do seu protótipo – o Caminho do Céu. Se é
certo que o Céu é mais sublime, também é indesmentível a importância da Terra na vida
política urbana. Portanto, tornava-se necessário ligar ambos os elementos, através de
rituais simbólicos e em ocasiões especiais; por exemplo, quando ocorria um eclipse do
Sol, o rei e os seus vassalos sentavam-se à volta do altar da Terra para restaurar a ordem
cósmica.
O rei da antiga China não tinha de definir políticas próprias, bastava-lhe agir
conforme o modelo celeste, seguir o Caminho. Sempre que as coisas não corressem
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bem, procedia-se a um reordenamento mágico do Mundo: o soberano convocava os
príncipes, confessava as suas culpas e procedia a sacrifícios no altar da Terra. Assim se
procurava restabelecer o Caminho do Céu. Nestes rituais, em que os humanos se
tornavam outros para além de si próprios (personalidade diferente, visão de harmonia,
beleza e sacralidade), a participação foi crescente: as cerimónias sacralizavam
provisoriamente uma comunidade, superando os ritos de manipulação dos deuses.
Como pensava Mêncio, o Céu fornecia um padrão moral, como se pode ler no
Livro dos Poemas: «O Céu dá lugar ao nascimento do povo abundante. / Se existe uma
coisa, existe uma norma» (Mêncio 7A: 1.1, p. 79). Por vezes, Mêncio trata o Céu como
quase idêntico ao curso natural (e amoral) dos acontecimentos humanos: «Penetrar
profundamente no nosso coração é entender a nossa própria natureza. Entender a nossa
natureza é compreender o Céu» (Mêncio 7A: 1.1, p. 79).
IV
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Aprofundando um pouco os marcos essenciais:
Dinastia Shang (ou Yin): c. 1600-1046 a.C. [oráculos, escrita, muralhas, tecnologia
do bronze, carros a cavalo].
Dinastia Zhou: 1046-221 a.C. [modelo de principados feudais, com a Casa Real de
Zhou no topo].
Zhou Ocidental: c. 1046-771 a.C.
Zhou Oriental: c. 770-221 a.C. [guerras entre reinos; diversas escolas
filosóficas; 770-c.475 a.C.: Período da Primavera e do Outono; c. 551-479
a.C.: vida de Confúcio; c. 475-221 a.C.: Período dos Estados/Reinos
Combatentes, durante o qual viveu Mêncio]
Dinastia Qin: 221-207 a.C. [Estado unitário e administração centralizada
estandardização da escrita, dos pesos e das medidas; autoritarismo; supressão do
pensamento dissidente; construção do núcleo original da Grande Muralha, a norte,
pelo imperador Qin Shi Huang]
Dinastia Han: c. 206/202 a.C-220 d.C. [o imperador Wu (r. 141-86 a.C.) converte o
Confucionismo em ortodoxia do Estado chinês; expansão para oeste e até à Coreia e
ao Vietname; introdução do Budismo na China]
Han Ocidental (ou Inicial): 206 a.C.-9 d.C.
Han Oriental (ou Tardio): 25 a 220 d.C.
Período das Seis Dinastias: 220-589 [instabilidade e fragmentação do império;
domínio do norte por povos das fronteiras e das estepes; domínio do sul por
dinastias sucessivas; expansão do Budismo]:
os «Três Reinos» (220-265). [reinos de Cao Wei, de Chu Han e de Dong
Wu].
Dinastia Jin (265-420).
Período das Dinastias do norte e do sul (386-589).
Dinastia Sui: c.589-618 [reunificação da China; alongamento do Grande Canal
Jing-Han (entre Pequim e Hangzhou), o rio artificial mais antigo do Mundo; c. 605:
instauração do sistema de exames com base nos estudos literários clássicos
(«keju»), que se manteria até 1905]
Dinastia Tang: 618-907 [época de ouro da China imperial; cosmopolitismo;
florescimento cultural; expansão territorial até à derrota frente aos Árabes, em Talas
(751); clímax da influência budista, até à repressão de c. 845; fundação do Budismo
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Chan (Zen), por Hui Neng (638-713); sincretismo entre Confucionismo, Taoísmo e
Budismo; 690-705: Wu Zetian, a única imperatriz de jure da história chinesa].
Período das Cinco Dinastias: 907-960.
A Vida de Confúcio
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K’ung Fu-tzu nasceu no principado de Lu, mais exatamente em Qufu (no
sudoeste da atual província de Shandong), em 551 (ou 552) a.C., e ali morreu também,
com cerca de 73 anos de idade. A sua família, cujos antepassados tinham pertencido à
Casa ducal de Song mas foram forçados a emigrar, tinha chegado há relativamente
pouco tempo a Lu, um Estado do centro-leste da China onde permaneciam bem vivas a
memória, a aura e as tradições da dinastia Zhou, agora já na fase designada por «Zhou
Oriental» (770-221 a.C.).
Shuliang descendia da baixa nobreza de Shang e era um homem livre, mas sem
posses. Teria, provavelmente, alguma educação, mas pouco ou nada pôde transmitir ao
seu filho, uma vez que faleceu quando Confúcio tinha apenas três anos. Esta
circunstância deve ter agravado bastante as dificuldades materiais da família e estima-se
que K’ung tenha passado a infância numa «pobreza envergonhada» e sido obrigado a
trabalhos braçais diversos para conseguir sobreviver. Nos Analectos, há uma passagem
que os comentadores consideram sugerir isso mesmo: «Ao pescar, o Mestre não usa
rede; ao caçar pássaros com arco e flecha, não atira em pássaros no ninho» [Analectos
7.26 (I, p. 233)]. Aos 19 anos, Confúcio casou com uma mulher do clã Qiguan, do país
de Song. Um ano depois nasceria o filho Kong Li (nome de cortesia: Boyu), que terá
vivido entre 532 e 483/482 a.C.. Supõe-se que Kong Li terá sido um dos transmissores
do Clássico dos Poemas.
Pouco mais sabemos sobre a infância e juventude de Confúcio, que parece ter
sido um indivíduo bastante alto e robusto, de cabeça volumosa e pouco bonito. Em todo
o caso, é seguro que se dedicou desde muito cedo, e fervorosamente, aos estudos. Como
se recorda numa das passagens mais famosas dos Analectos:
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verdadeiro ]. Aos 70 [consegui] seguir o que desejava o meu coração, sem infringir as
regras”» [alcançou a liberdade: capacidade para agir livremente no meio social sem
entrar em conflito com os seus iguais ].
O investimento de Confúcio nos estudos deve ter sido decisivo para que ele
pudesse abandonar os trabalhos mais pesados ou mais rústicos (por exemplo, como
administrador de silos e de armazéns, ou como guardador de rebanhos) e pudesse, a
partir dos trinta anos, começar a receber alunos.
Mais tarde, Mestre K’ung faria carreira como «dafu» [nobreza média] no seu
próprio país de Lu, tendo chegado a desempenhar o cargo de Ministro das Punições
(talvez comparável a um Ministro da Justiça) durante cerca de três anos. Com cerca de
55 anos, Confúcio abandonou Lu, possivelmente em rotura com as autoridades políticas
locais.
Acompanhado por vários discípulos, viajou durante quase uma década e meia
através de alguns dos reinos centrais, tendo chegado a desempenhar cargos públicos em
Wei e em Chen. Por volta de 482 a.C., optou por regressar ao Estado natal de Lu, muito
provavelmente desiludido com a sua carreira política (recordo que se estava em pleno
«Período da Primavera e do Outono») e disposto a dedicar o resto dos seus dias ao
ensino e à partilha dos seus conhecimentos e da sua filosofia de vida com os seus
discípulos; costuma-se falar em cerca de 3000 alunos, de entre os quais se terá
destacado um escol de 72 que seriam particularmente brilhantes nas diversas áreas da
formação.
Foram estes alunos que acompanharam os últimos anos da longa vida de Mestre
K’ung, que se supõe ter falecido em 479 a.C., rodeado dos discípulos mais fiéis, como
por exemplo Zengzi, Zigong, Zixia, Zizhang ou Ziyou, entre outros. Poucos anos antes,
Confúcio vira já partir para sempre aquele que é geralmente considerado como o seu
aluno favorito: Yan Hui (nome de cortesia: Ziyuan) que terá morrido com trinta e
poucos anos. Este seria o discípulo mais amado por Mestre K’ung, não apenas pela sua
devoção ao Estudo, mas também pelo seu exemplo de Virtude pessoal, de humildade e
de alegria simples de viver (Yan Hui era muito pobre, e assim morreu). Note-se que este
aluno foi o primeiro a receber sacrifícios imperiais ao lado de Confúcio e o seu estatuto
de ‘número dois’ do Velho Mestre manteve-se ao longo de toda a história chinesa.
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Confúcio sentiu profundamente o decesso de Yan Hui, tal como se deduz de algumas
passagens dos Analectos:
«Yan Yuan morreu. O Mestre disse: “Ai! que o Céu me castigue! Que o Céu me
castigue!»; «Yan Yuan morreu, o Mestre chorava inconsolavelmente. Alguém que [o]
acompanhava disse: “O Mestre está inconsolável”. [O Mestre] disse: “Estou mesmo
inconsolável? Se não fosse por aquela pessoa, por quem é que eu [ficaria] assim?”».
(Analectos 11.8 e 11.9; II, pp. 53-54).
Mais ou menos pela mesma altura, terá falecido Kong Li, o filho de Confúcio.
Não é difícil adivinhar um final de vida amargo para o grande educador chinês,
dececionado pelo fracasso da sua carreira pública e fustigado pelas mortes, muito
próximas, do seu próprio filho e do seu mais amado discípulo.
VI
«Zilu perguntou sobre [como] servir os espíritos. O Mestre disse: “Não pôde
servir as pessoas, como servir os espíritos?”. [Zilu disse:] “Ouso perguntar sobre a
morte”. O Mestre disse: “Não sabe o que é a vida, como saber o que é a morte?”»
[Analectos 11.11 (II, p. 55)].
Isto não quer dizer que Confúcio desprezasse as questões espirituais; porém,
tinha o cuidado suficiente para evitar que os seus alunos, sobretudo os ainda menos
preparados, invertessem as prioridades. No fundo, o Mestre recomendava que se
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servisse primeiro as pessoas, pois assim se aprenderia a servir os espíritos; sabendo
como viver, estar-se-ia também mais apto a discutir e a enfrentar a morte.
«Transmito, mas não crio. Confio e amo a Antiguidade» [Analectos 7.1 (I, p.
209)].
«Os Ritos da dinastia Xia, posso discorrer sobre eles: [os Ritos] do país de Qi
não valem como comprovação. Os Ritos da dinastia Yin [Shang], posso discorrer sobre
eles: [os Ritos] do país de Song não valem como comprovação. Isto porque são
insuficientes os documentos e os virtuosos. Caso fossem suficientes, eu seria capaz de
comprová-los» [Analectos 3.9 (I, p. 92)].
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intelectual altamente conservador, um nostálgico do tempo mítico das primeiras
dinastias. Repare-se nesta outra passagem, que tem a particularidade de incidir sobre as
opções estéticas coevas:
Há nos Analectos uma passagem que enfatiza esta ideia forte do Confucionismo:
o duque She, do país de Chu, gaba-se a Confúcio (que cumpria então o seu «Périplo
aos Países») pelo facto de, naquele grande país meridional, «se o pai rouba uma cabra, o
filho denuncia-o». Com isto queria o duque sublinhar a imparcialidade implacável da
justiça no seu território. A resposta do Mestre é reveladora e, como de costume,
desconcertante:
2
Sinedino (pp. 229-230) explica que a púrpura não era uma cor correta, mas sim «intermediária»; as
cinco cores «corretas» eram: o azul/verde, o vermelho, o amarelo, o branco e o preto. Note-se que o
número cinco tem uma conotação ética, estando associado às ideias de estabilidade e de moderação.
Quanto à música, o Mestre apenas considerava «elegante» a música ortodoxa de Zhou.
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«As pessoas rectas na minha terra são diferentes: o pai é escondido pelo filho, o
filho é escondido pelo pai. Ser recto é isto» [Analectos 13.18 (II, p. 114)].
.
«Ao servirmos os nossos pais, devemos apontar os seus erros de forma discreta.
Percebendo que a vontade [deles] não é conforme [a nossa], devemos voltar a mostrar
respeito e não contrariá-los. Mesmo que nos extenuemos [na tarefa], não podemos
mostrar irritação» [Analectos 4.18 (I, p. 137)].
Devo, entretanto, lembrar que a misoginia é uma constante nas religiões mais
antigas, estando longe de constituir um problema específico do Confucionismo, ou
sequer das espiritualidades orientais.
Nessa altura, Yan Hui perguntou quais os modelos que deveria seguir, e
Confúcio respondeu: «Se não for como nos Ritos, não veja; Se não for como nos Ritos,
não ouça; Se não for como nos Ritos, não fale; Se não for como nos Ritos, não aja».
[Analectos 12.1 (II, pp. 71-72)]
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Os Ritos estavam em toda a parte. Em Estados mais apegados à tradição (como
Lu) era impressionante o pormenor da regulamentação sobre as expressões faciais, o
vestuário, os adereços, a maneira de caminhar e de comer, o comportamento em
reuniões, o uso de cores e um sem número de outras regras que seria fastidioso
enumerar aqui de forma exaustiva3.
Os Ritos mais suscetíveis de gerar controvérsia eram os que tinham que ver com
os funerais e com o luto. Na tradição confuciana, os enterros eram muitas vezes bastante
elaborados, com um caixão interno e outro externo, trajes especiais para o defunto,
colocação de objetos e bens no túmulo, seguindo-se um período de nojo muito
prolongado. Claro que os críticos do Confucionismo (como Mozi) condenaram estes
excessos, considerados inúteis; todavia, Confúcio insistiu sempre na ideia de que o
mais importante eram os sentimentos, e não a encenação:
«Lin Fang perguntou qual é o fundamento dos Ritos. O Mestre disse: “Grande
pergunta! [Em relação às] às cerimónias em geral, antes singelas que ostensivas. [Em
relação às] cerimónias fúnebres, antes tristes que elaboradas» [Analectos 3.4 (I, p. 86)].
«Ser cortês mas sem [conhecer] os Ritos, leva à fadiga. Ser cauteloso, mas sem
[conhecer] os Ritos, leva à covardia. Ser corajoso, mas sem [conhecer] os Ritos, leva à
insurgência. Ser directo, mas sem [conhecer] os Ritos, leva à precipitação. (…)».
[Analectos 8.2 (I, p. 247)].
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correta de dormir até à maneira de se sentar numa carruagem a cavalo, passando pela
atitude a ter durante uma doença. Se os Ritos fossem tidos em conta, pensava Mestre
K’ung, a China do século V a.C. não estaria dilacerada por uma violência tão cruel.
Para cumprir esse desiderato, Mestre K’ung recorria, claro está, aos «clássicos
chineses», nomeadamente ao Clássico da Poesia e ao Clássico da História. Tudo partia
daqui, com o objetivo não apenas de levar o aluno a decorar esses textos, mas também
de aprender a interpretá-los corretamente e, a um nível já mais exigente, de conseguir
com que ele pusesse em prática esse conhecimento, sempre sob a orientação do Mestre.
Claro que isto não se conseguia fazer com qualquer aluno. Embora Confúcio
tenha ficado conhecido por ter aceitado todo o género de estudantes, independentemente
da sua riqueza ou pedigree e desde que tivessem vontade de aprender, o certo é que o
Confucionismo não deixa de ser «uma doutrina elitista»; como se pode ler nos
Analectos: «Somente as mulheres e os homens pequenos são difíceis de educar: quando
nos aproximamos deles, [retribuem com] ódio». [Analectos 17.25 (II, p. 236)].
23
paradigma: ignorou os requisitos etários e sociais e reforçou a missão da escola como
formadora do caráter dos alunos; as pessoas socialmente superiores deviam ensinar as
inferiores, e não se tratava apenas de formar indivíduos autónomos, mas sobretudo de os
doutrinar, de lhes incutir determinados valores, de os fazer interiorizar certos papéis
sociais. Neste sentido, além de elitista, o Confucionismo era também uma doutrina
hierárquica e moralizante.
Dito de outro modo: o estudo da Literatura e das «Seis Artes» devia ser feito
numa perspetiva mais ampla e mais profunda – a da realização do dào, ou Caminho.
Também por isso, o Mestre criticava aqueles que estudavam apenas para conseguir
vantagens materiais futuras: «Estudar três anos e não ambicionar [remuneração em]
grãos, isso é muito difícil». [Analectos 8.12 (I, p. 255)].
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sem pensar, isso leva a incertezas. Pensar sem Estudar, isso leva a riscos» (Analectos
2.15, I, p. 68).
VII
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dependido das possibilidades dos alunos e Confúcio, nesta matéria, não devia ser
exigente, sobretudo quando o discípulo valia a pena: «Aquelas pessoas que me deram
uma trouxinha de carne-seca, nunca deixei de ensiná-las» (Analectos 7.7, I, p. 25).
Karen Armstrong (2009, p. 206) observou que «Confúcio trouxe para a terra a
religião da China», ou seja, incutiu nas pessoas a vontade de aprender a ser boas «cá em
baixo», em vez de se perderem em elucubrações esotéricas sobre deuses e espíritos. A
tarefa do jûnzi (o ser humano maduro, cultivado e profundo) consistia em tecer com mil
cuidados a via que levava até à bondade transcendente, usando como vade mecum os
rituais, esse «mapa de estradas» que conduz ao bom caminho. Todos (pelo menos os
que pertenciam ao escol da nobreza, ou ao grupo dos filhos mais talentosos dos
camponeses) podiam lá chegar, mas era preciso muita persistência, tal como
exemplificava o artesão do marfim; o aperfeiçoamento exigia que se estudasse com
entusiasmo; como se podia ler no Clássico dos Poemas (e os Analectos repetem), era
«como coisa cortada, como coisa limada, / Como coisa cinzelada, como coisa polida»4.
Mas o que é que definia um bom Mestre? Confúcio dá, ele próprio, a resposta:
ter boa memória; ter avidez pelos estudos; e revelar dedicação à orientação moral e
intelectual dos seus alunos. É essa a fórmula que se pode ler nos Analectos: «O Mestre
disse: “em silêncio memorizar [o que se aprendeu], estudar sem se cansar, guiar as
4
Clássico dos Poemas, citado por Karen Armstrong, 2009, p. 296. A mesma ideia aparece transposta
quase literalmente para os Analectos (1.15, I, pp. 45-46): «Zigong disse: “Lê-se nos Poemas: ‘é como
cortar, é como polir, é como cinzelar, é como lixar’».
26
pessoas sem se fatigar. Qual destas [três características] possuo em mim»?”» [Analectos
7.2 (I, p. 210)].
Salta à vista que não era apenas o aluno que precisava de se aperfeiçoar, o
Mestre tinha, ele próprio, de percorrer também esse caminho: «Não cultivar a virtude,
não ensinar o que aprendi, não poder compensar [a minha atitude] após entender qual o
meu dever, não poder corrigir o que não tenho de bom, eis com o que me preocupo».
[Analectos 7.3 (I, p. 211)].
«Eu apenas estudo sem me fatigar e ensino sem me cansar»; ao ouvir isto,
Zigong comentou: «estudar sem se fatigar é sabedoria; ensinar sem se cansar é
benevolência. Sendo benevolente e douto, o Mestre já é certamente um sábio».
[Mêncio 2A: 2.19 (p. 18)].
Mêncio, o principal continuador antigo de Confúcio, diz que este foi o maior de
todos: «desde que os primeiros humanos nasceram, nunca existiu um outro Confúcio»
[2A: 2.23 (p. 19)]. Noutras duas passagens, Mêncio declara:
«Quando Confúcio deixou o Estado de Qi, apenas recolheu o arroz que estava
prestes a cozinhar e partiu. Quando deixou o estado de Lu, disse: “Não tenho pressa”.
Tal é a forma de deixar o Estado dos nossos pais. Quando era necessário ir depressa, ele
ia depressa; quando era preciso demorar, ele demorava; quando era preciso parar, ele
parava; quando era preciso ficar, ele ficava; quando era preciso assumir um cargo, ele
assumia – tal era Confúcio». [Mêncio 5B: 1.4 (p. 64)].
Como também dizia Mêncio, «um sábio é um professor para uma centena de
gerações» [7B: 15.1 (p. 87)]; os alunos de Mestre K’ung tinham perfeita consciência
disso. Há uma interessante passagem do Mêncio em que Zai Wo, Zigong e You Ruo
27
discutem entre si sobre o real valor de Confúcio. Zai Wo achava que o Mestre tinha
superado largamente os Reis Sábios (Yao e Shun); Zigong, pelo seu lado, era da opinião
de que bastava examinar os rituais e escutar a música para se perceber que Confúcio foi
o melhor de sempre. Por fim, You Ruo declarou:
«Há aqui algo que não tem apenas que ver com pessoas: o unicórnio entre as
bestas, o Fénix entre os pássaros, o Monte Tai entre morros e formigueiros, e o Rio
Amarelo e os mares entre as águas que correm, todos eles são do mesmo tipo. Também
o sábio é do mesmo género das outras pessoas. Mas alguns sobressaem de entre os do
seu tipo; alguns emergem da multidão: desde que os primeiros humanos nasceram,
jamais houve algum que tivesse alcançado um cume maior do que Confúcio». [Mêncio
2A: 2.25 a 2.27 (p. 19)]
No entanto, por muita que fosse a admiração pelo Mestre, o discípulo tinha a
obrigação de tentar ser autónomo, de ser capaz de se emancipar, e até, eventualmente,
de superar o seu professor. O momento mágico em que isso sucedia deveria configurar,
no coração e no espírito de um bom Mestre, não um momento de inveja, ou de
sentimento de perda de estatuto, mas de suprema alegria. Confúcio sugere que foi isso
que lhe sucedeu com Yan Hui, o seu discípulo dileto. Nos Analectos, o duque Ai, do
país de Lu, pergunta a Confúcio:
«Como é virtuoso [este] Hui! Uma cestinha de bambu com arroz para comer,
meia cabaça de água para beber, uma ruela para morar. Outros não suportariam as
28
preocupações [de uma vida assim], mas Hui está sempre alegre. Como é virtuoso [este]
Hui!» [Analectos 6.9 (I, p. 189)].
Para Confúcio as diferenças sociais são normais, o ideal consiste em ter pobres
felizes e ricos não prepotentes. Logo no primeiro capítulo dos Analectos, Zigong
declara: «Ser pobre, mas não submisso; ser rico, mas sem soberba, que tal?»; o Mestre
responde: «Pode ser, mas não é tão bom quanto ser pobre e [viver] alegremente, ser rico
e apreciar os Ritos» (I, p. 45). A caminhada era longa e o jûnzi ia-se fazendo, como um
escultor, curvando o ego e rendendo-se ao ritual. Aquilo que realizava verdadeiramente
Yan Hui como pessoa era ter conseguido atingir, através do Estudo, a transformação
moral. O único defeito de Yan Hui seria, segundo Confúcio, o de não desafiar mais o
Mestre durante as suas discussões, pois falava pouco e era muito humilde e respeitoso:
«Yan Hui não é uma pessoa que me ajuda. De tudo o que digo, não há nada que não o
contente» [Analectos 11.3 (II, p. 50)].
VIII
29
«O Mestre disse: “You, já ouviste falar das ‘seis frases’ e das ‘seis barreiras’?”
[Zilu] respondeu: “Não”. [O Mestre disse:] “Senta-te! Vou contar-te. Daquele que gosta
da Humanidade e não gosta de estudar, a barreira é a estupidez. Daquele que gosta da
sabedoria e não gosta de estudar, a barreira é a dissipação. Daquele que gosta da
confiabilidade e não gosta de estudar, a barreira é a vulnerabilidade. Daquele que gosta
da rectidão e não gosta de estudar, a barreira é a precipitação. Daquele que gosta da
coragem e não gosta de estudar, a barreira é a insurgência. Daquele que gosta da fibra e
não gosta de estudar, a barreira é a arbitrariedade». [Analectos 17.8 (II, p. 221)]
30
Confúcio, «rén» equivale ao conjunto das virtudes humanas, constitui como que uma
quintessência do «Homem Nobre». Como sintetiza Giorgio Sinedino, «a Humanidade é
o ponto de convergência do que há de bem na existência social» (2017, I, p. 118).
31
se o povo não tiver confiança, [um governo] não tem como se manter de pé».
[Analectos 12.7 (II, p. 80)]
Como comenta Yu Dan (2010, pp. 19-20), «a pior de todas as coisas é o colapso
que tem lugar quando os cidadãos de um país desistem da sua nação». A vida material é
importante, mas «a verdadeira paz e a verdadeira estabilidade vêm de dentro, da
aceitação daqueles que nos governam». Não há verdadeira submissão sem confiança, a
não ser pela força coerciva. Numa passagem mais adiantada dos Analectos, Zixia afirma
que o Homem Nobre precisa de obter primeiro a confiança do povo para depois fazê-lo
trabalhar diligentemente, de outro modo a população sentirá as suas exigências como
sendo um abuso. [Analectos 19.10 (II, p. 259)]
Outros temas havia sobre os quais Confúcio não gostava muito de falar. Por
exemplo, o Mestre não apreciava a metafísica, uma vez que a sua visão do Caminho
tinha uma dimensão essencialmente social e podia ser alcançada diretamente, sem
mediação transcendental. Pelo mesmo motivo, e tal como recordariam os seus
discípulos, «o Mestre não fala sobre aberrações, bravura, insurgências e espíritos»
[Analectos 7.20 (II, p. 229)]. Ou seja, não lhe interessavam os fenómenos bizarros ou
paranormais, criticava o aluno Zilu pela sua bravura temerária e inútil, condenava a
32
desordem e a violência; embora acreditasse no «Mandato do Céu», o Mestre não
entendia o Estudo como uma prática religiosa e concedia aos seus alunos liberdade
suficiente para desenvolverem as suas próprias relações com o transcendente. Há na
obra de Xie Lianzuo (ou Hsieh Liang-tso, n.1050) uma boa síntese desta postura: «O
Mestre falava sobre o que é normal, não falava sobre as aberrações. Falava sobre a
virtude, não falava sobre a força. Falava sobre o ser humano, não falava sobre os
espíritos» (citado por Sinedino, 2017, I, p. 230).
Admito sem custo que Confúcio fosse religioso e acreditasse nos espíritos, mas
julgo que procurava impedir que esses aspetos condicionassem a sua abordagem do
Estudo e do autoaperfeiçoamento ético no quadro da realidade social, cultural e política
chinesa, deixando pois os espíritos um pouco de fora e evitando falar com os seus
alunos sobre eles. Veja-se o que diz uma passagem do capítulo sexto dos Analectos:
«Fan Chi perguntou o que é Sabedoria. O Mestre disse: “é esforçar-se para fazer
que o povo cumpra o seu dever; é respeitar os espíritos, mas manter-se distante deles.
Pode-se dizer que isso é Sabedoria”. [Analectos 6.20 (I, p. 198)].
IX
Gostaria agora de evocar a viagem de Confúcio por vários dos «Países do Meio»
entre, aproximadamente, 497/496 a.C. e 484/482 a.C. Faço-o por duas razões: em
primeiro lugar, porque isto nos ajudará a conhecer um pouco melhor a vida de
Confúcio, numa fase relativamente tardia da sua existência (o chamado «Périplo aos
33
Países» iniciou-se quando ele tinha já 54 ou 55 anos de idade); em segundo lugar,
porque Mestre K’ung empreendeu esta longa viagem na esperança de encontrar um
governante que reconhecesse a sua valia e que lhe desse a oportunidade de desempenhar
um cargo público de relevo, onde ele poderia até pôr em prática as suas ideias
regeneradoras. É interessante saber se de facto isso aconteceu!
O «Périplo aos Países» não foi, portanto, uma ‘digressão turística’ com treze ou
catorze anos de duração, mas sim uma experiência vivificante para Confúcio: por um
lado, do ponto de vista existencial, até pela sua duração e pela intensidade das
experiências vividas; por outro, do ponto de vista político e ideológico, tanto mais que,
ao conhecer de perto vários dos governantes dos Estados vizinho de Lu, ao apreciar as
suas políticas e, pelo menos em Wei, ao desempenhar pontualmente funções de
governo, o Mestre pôde testar a validade das suas ideias reformistas e a respetiva
aplicabilidade nas condições concretas da China do final do «Período da Primavera e do
Outono».
O primeiro país a acolher Confúcio durante o seu Périplo foi o vizinho Estado de
Wei, nomeadamente a cidade fronteiriça de Yi. A proximidade entre os dois Estados e,
sobretudo, uma relevante memória histórica comum devem ter sido fatores que pesaram
na escolha de Confúcio. Como este terá dito aos seus discípulos (parte dos quais o
acompanhava, incluindo Zilu, como seu guarda-costas): «A política dos países de Lu e
Wei, [deveria ser como entre] irmãos». [Analectos 13.7 (II p. 104)]
A história era bonita, mas a altura não era boa, devido à grande instabilidade
política que então se registava naquele reino. Geralmente, pensa-se que o Mestre terá
desempenhado algum cargo público em Wei, que ele próprio sugere ser ainda uma
nação poderosa. Porém, a experiência política e social de Confúcio em Wei não terá
sido gratificante e a função que lhe terá sido atribuída não estaria à altura das
expetativas do grande Mestre. Um dos aspetos que impressionou negativamente o
34
filósofo foi o tratamento protocolar que lhe foi dispensado. É possível que mais tarde,
depois de tentar a sua sorte em outros «Países do Meio», o Mestre tenha regressado a
Wei e há quem defenda que, nessa altura, terá servido o duque de Chu durante quatro ou
cinco anos.
Desiludido, Mestre K’ung deixou Wei entregue às suas guerras civis e abalou
para sul, tendo chegado ao país de Song, onde se conta que começou a ensinar debaixo
de uma árvore. Porém, um descendente do duque local (Huan), chamado Huanti e chefe
de um contingente militar, não gostou da ousadia e ameaçou de morte o filósofo,
dizendo mesmo que, se ele não abandonasse Song, mandaria arrancar a árvore. Os
discípulos contam que instaram o Mestre a fugir o mais depressa possível, mas este terá
retorquido: «O Céu fez a virtude nascer em mim. O que Huanti poderá contra mim?»
[Analectos 7.22 (I, p. 231)] …
Depois de Chen, o grupo desceu mais um pouco, até outro pequeno país,
chamado Cai, que, tal como Chen, vivia na esfera de influência das grandes potências
meridionais: Wu (a sudeste) e Chu (a sudoeste). Ao que parece, também aqui Confúcio
teve a desdita de estar no local errado à hora errada: quando se aproximava da fronteira
entre aqueles dois pequenos Estados, o país de Wu atacou Chen, que logo tratou de
pedir o socorro de Chu. Sabendo da proximidade do Mestre, o governo de Chu pediu-
lhe uma audiência, o que atemorizou os dafus de Chen e de Cai, que sabiam bem que
Confúcio não aprovava as respetivas políticas, o que poderia ser dramático caso fosse
oferecido em Chu um cargo de relevo a Mestre K’ung. Assim, enviaram um contingente
militar para atacar a comitiva do filósofo, que ficaria retida durante cerca de uma
35
semana; em desespero de causa, Confúcio mandou o seu fiel discípulo Zigong pedir
socorro no país de Chu; a embaixada parece ter resultado, pois o duque Zhao enviou
tropas suficientes para libertar Confúcio e os seus acompanhantes. Esta experiência foi
bastante dramática, pois há uma passagem dos Analectos em que é atribuída ao Mestre,
já velhinho, esta exclamação nostálgica: «Aqueles que estiveram comigo nos países de
Chen e Cai já não estão à minha porta» [Analectos 11.2 (II, p. 49)].
Frustrada a viagem para sul, Confúcio regressou a Chen, sendo possível que aí
tenha desempenhado, brevemente, alguma função pública, tendo até em conta as
dificuldades financeiras por que a comitiva passava. No entanto, depressa Mestre K’ung
terá começado a pensar na rota de regresso, que como expliquei atrás, ainda deve ter
incluído uma segunda experiência no país de Wei, porventura no tempo do duque Xiao.
Nesta fase, uma dúzia de anos volvida sobre o adeus a Lu, a desilusão de
Confúcio e dos discípulos que o acompanhavam devia ser grande. Há até uma passagem
dos Analectos que sugere que o Mestre terá mesmo admitido procurar a sua sorte fora
dos Países do Meio, ou seja, no «mundo bárbaro» em volta; a ser verdade, o episódio
documenta bem a deceção profunda de Confúcio com a política chinesa, ou então a sua
crença ingénua em poder – graças às suas virtudes pessoais e à sua cultura e grande
conhecimento da tradição escrita – mudar a forma de viver, de pensar e de sentir de
povos que tatuavam o corpo, faziam penteados invulgares, vestiam roupas de peles ou
de penas e comiam carne crua:
«O Mestre quis morar nas terras dos Nove Yi, alguém disse: “[Aquele lugar é]
vil, como se poderia [morar ali]?” O Mestre disse: “Se um Homem nobre morar ali, o
que haveria de vil?» [Analectos 9.14 (II, p. 16)].
36
Ou seja, à boa maneira confuciana (mas também com um certo perfume
hinduísta), cada qual deve, simplesmente, desempenhar o papel que lhe cabe dentro da
sociedade; nem mais, nem menos do que isso.
«Ao ocupar um cargo, não se canse [dele]; ao exercer as suas funções, faça-o
com lealdade» [Analectos 12.14 (II, p. 87)].
Mais à frente, Confúcio indica a Zizhang o que se deve fazer para se ser capaz
de governar:
«Cumprir as cinco belezas» (ser magnânimo mas não esbanjador; fazer o povo
trabalhar mas sem o esgotar; ter desejos mas não ter cobiça; ser magnífico mas não
arrogante; ter autoridade mas não ser agressivo); e «evitar os quatro males» (a
brutalidade; a precipitação a dar ordens e a exigir resultados; a perversidade de fixar
prazos curtos para cumprir as ordens; e o agir com avareza). [Analectos 20.2 (II, p.
274)].
37
Numa outra ocasião, Confúcio explica ao dafu Ji Kang, do país de Lu, que, para
conseguir que o povo seja respeitoso, trabalhador e leal aos governantes, é preciso que
estes mantenham uma expressão grave diante das pessoas (o que inspira o respeito),
sejam filiais e paternos (o que fomenta a lealdade) e dêem oportunidades aos bons; ao
mesmo tempo devem ensinar aqueles que têm menor potencial – um procedimento que
fomenta o trabalho e a disponibilidade [Analectos 2.20 (I, p. 74].
«Se alguém me der [bom] uso, completado um ano [os resultados] já seriam
suficientes. Completados três anos, [a obra] já estaria completa» [Analectos 13.10 (II, p.
107)]
Confúcio não dispôs do tempo, nem dos meios de que necessitava. A sua
missão, para ser integralmente cumprida, exigia autoridade, constância, persistência,
uma vontade férrea e muito sacrifício pessoal. Melhorar o quadro político e social
vigente podia conseguir-se num tempo relativamente breve. Contudo, o Mestre sabia
que percorrer o verdadeiro Caminho exigia muito mais: «Se pessoas boas
administrarem o país por 100 anos, é possível superar a brutalidade e eliminar a pena de
morte» [Analectos 13.11 (II, p. 107).]
Havia por vezes que fazer concessões, sacrificar a pureza dos meios, em nome
de um bem maior. Todavia, mesmo assim, a conciliação entre o Caminho e a arte da
política afigurava-se uma quimera, como o «Périplo aos Países» claramente
demonstrara.
38
Confúcio: revolucionário ou conservador?
Não é difícil encontrar argumentos que sustentem a primeira tese, isto é, visão
daqueles que pensam que Confúcio foi ‘apenas’ um defensor da tradição. Na verdade,
ele tinha uma visão conservadora e tradicional da sociedade e, quando teve
oportunidade de atuar politicamente, fê-lo em geral numa perspetiva legitimista, de
defesa dos poderes instituídos (veja-se o seu apoio ao duque Ding, em Lu, contra o clã
Ji). Para ele, os homens sábios nem sequer deviam ambicionar a conquista do poder,
mas apenas a ocupação de posições que lhes permitissem influenciar decisivamente os
governantes instituídos:
Na China dos séculos VI e V a.C., e até talvez na China de épocas muito mais
tardias, não seria de esperar outra postura. Como escreveu Giorgio Sinedino, «é difícil
para a China ir além do que se acredita que ela tenha sido no passado, pois dentro do
pensamento chinês não há um caminho de ruptura com as suas tradições milenares. Ao
contrário, toda a revolução e mudança devem ser justificadas pela renovação da
tradição. Isso é puro Confúcio».
39
Ou seja, era pelo Estado que passava o caminho do sucesso; e era pela família,
pela comunidade envolvente e pelo consenso que passava o caminho da felicidade. Na
China, «não há espaço para a revolta do indivíduo contra a sociedade»; é próprio da
comunidade chinesa evitar, ou sublimar, os conflitos e as divergências, ainda que, por
vezes, se pague um preço elevado pela ausência de diálogo, o que obriga sempre ao
recurso a soluções pouco consensuais (Sinedino, 2017, I, p. 23).
«Ser corajoso e ter rancor por ser pobre, [isso leva à] insurgência. Se [vemos]
alguém que não é Humano e temos rancor além da medida, [isso também leva à]
insurgência» [Analectos 8.10 (I, p. 254)]
Uma vez que o ordenamento social se baseava numa ordem natural das coisas
pela qual, em última análise, o Céu era o responsável, não fazia sentido pôr em causa o
alinhamento geral do status quo; o homem seria sempre superior à mulher e as pessoas
virtuosas seriam sempre superiores às pessoas comuns. Portanto, o Confucionismo
nunca poderia alimentar uma ideologia igualitarista radical, vocacionada para a defesa
da eliminação das diferenças entre as várias classes sociais. Estas eram entendidas por
Mestre K’ung como perfeitamente naturais, a tradição pré-estabelecera a posição de
cada uma na sociedade e o mais importante é que cada qual cumprisse bem o seu papel.
40
Vejamos agora a segunda tese, que encara Confúcio como uma figura com
dimensão revolucionária. Entre os mais entusiastas defensores desta interpretação conta-
se Karen Armstrong, uma das mais conceituadas e influentes especialistas mundiais de
história comparada das religiões. Na sua opinião, Confúcio não se limitou a repor a
tradição, ele reinterpretou-a de uma forma original e profunda:
Portanto, Mestre K’ung não se limitou a repetir, ele também foi um inovador; ele
reanimou o Velho para alcançar o Novo, como se deduz desta passagem inserta logo no
segundo capítulo dos Analectos: «Ao relembrarmos o que aprendemos no passado,
conseguimos intuir coisas novas e podemos [assim] tornar-nos mestres» [Analectos
2.11 (I, p. 64)].
A terceira tese surge em jeito de in media res. Sinedino acentua que Confúcio
foi sempre, e sobretudo, um professor e nunca foi um revolucionário. O seu «elitismo
natural» é evidente em numerosas passagens dos Analectos, como por exemplo quando
diz: «O povo, pode-se fazê-lo seguir [o Caminho dos Sábios da Antiguidade], não se
pode fazê-lo entender» [Analectos 8.9 (I, p. 254)].
5
A palavra «li» tem vários significados possíveis; escrita com letra minúscula tem, em Confúcio,
geralmente o sentido de «ritual», incluindo aqui funerais, performances musicais, danças tradicionais e
até questões de etiqueta, tudo formas de exprimir socialmente o respeito de uma pessoa pelas outras (Van
Norden, 2009, p. 140).
41
No entanto, em meu entender, a abordagem mais inspiradora sobre a figura de
Confúcio é a que se deve a Juan Masiá Clavel, para quem Mestre K’ung e os seus
seguidores eram pessoas bem formadas, mas que não tinham poder político e, portanto,
tinham especial dificuldade em transitar do plano do aperfeiçoamento individual para o
plano social. Desse modo, ao verificarem a decadência e a desordem social da época da
«Primavera e do Outono», sentiam uma natural impotência para transformar a realidade
e tendiam a olhar para o passado com admiração e nostalgia, evocando os dias felizes do
auge da dinastia Zhou e até os seus antecessores longínquos – os Reis Sábios (Masiá
2003, p. 92). Quer isto dizer que Confúcio e os seus fossem simplesmente
conservadores nostálgicos e tradicionalistas? Não, porque, como recorda Masiá, não
podemos nunca esquecer que «Confúcio não incitou uma revolução para resolver a
situação, mas pediu uma mudança de mentalidade e uma reforma interior da pessoa que
tornasse possível um governo mais humano, uma política estável e uma educação boa
para todos, com o fim de conseguir uma sociedade virtuosa nos seus indivíduos e
harmónica nas suas relações sociais» (ibid.).
42
Numa das passagens mais glosadas dos Analectos, pode ler-se: «A Humanidade está
distante? Se desejo a Humanidade, ela vem [a mim]» [Analectos 7.29 (I, p. 236)].
No final da sua vida, Confúcio era uma personagem conhecida e respeitada, pelo
menos nos «Países do Meio». Todavia, nunca dispôs de poder real, salvo talvez em Lu,
quando exerceu o cargo de Ministro das Punições. Este sentimento de impotência devia
ser doloroso, e isso talvez ajude a explicar as expetativas que o Mestre parece ter ainda
acalentado relativamente a um governante como o duque Jing de Qi. Expetativas
frustradas, uma vez mais. Por isso, a busca confuciana por um equilíbrio entre perfeição
moral, ordem política e sucesso social nunca pareceu realmente exequível. A história da
China do tempo de Mestre K’ung (e ainda mais a do período seguinte, em que viverá
Mêncio: o «Período dos Reinos Combatentes») não oferecia um campo favorável à
lavra do «shì» e dos seus discípulos. Mérito deles, no entanto, o terem mantido o rumo,
sem se deixar corromper e cultivando sempre, de forma sólida, a virtude.
XI
43
(«O Buda»), Confúcio, Sócrates e Jesus. Nesse seu estudo, Tamaki evitou, por exemplo,
reduzir Sócrates à dimensão única da refutação sofística, ou mesmo à sua procura
maiêutica da verdade; em vez disso, enfatizava a sua atitude de escuta do Daimon – a
voz da consciência que, brotando do seu interior, o transcendia (v. Masiá, 2003, p. 80).
Do mesmo modo, Tamaki não via Confúcio apenas como um educador e como
um moralista; ao ensinar como deviam ser formadas as pessoas e ao explicar,
minuciosamente, como é que elas deveriam comportar-se em sociedade, pressupunha
um fundamento que não se exprimia por palavras, mas estruturava toda a sua filosofia
de vida: dizia que, no final da quinta década de existência, se lhe tinha dado finalmente
a conhecer a voz do Céu («aos 50 anos compreendi o Mandato do Céu»). Tamaki, de
forma muito original e inspiradora, relaciona «a voz do Céu» de Confúcio com o
daimon de Sócrates e com o dharma do Buda, vendo nela(s) o segredo da vida , ou,
como explica Juan Masiá, «o sentido que se nos dá como dom, sem que sejamos nós a
construí-lo com o nosso esforço» (Masiá 2003, p. 80). E Mestre K’ung não queria
deformar esse segredo, esse silêncio, com demasiadas explicações; não queria pintar os
pés à serpente, para que ela não se transformasse em centopeia:
«O Mestre disse: “Não desejo falar [mais].” Zigong disse: “Se o Mestre não
falar [mais], o que é que [nós], seus discípulos, registaremos?”. O Mestre disse: “O que
diz o Céu? As quatro estações sucedem -se, as cem coisas nascem delas: o que diz o
Céu?”» [Analectos 7.19 (I, p. 230)].
Jesus fala e caminha, deixa-se levar pelo espírito. Sócrates escuta o daimon.
Confúcio a voz do Céu, Buda o dharma. Muitos classificariam Sócrates como filósofo,
Confúcio como moralista, Buda e Jesus como religiosos. Mas – avisa Tamaki – são
separadores artificiais e excessivamente estanques, que fazem com que corramos o risco
de perder o essencial; e o essencial é aquilo que estas quatro extraordinárias figuras,
possivelmente as que mais influenciaram a história da cultura universal, têm em
comum: «são buscadores e transmissores de um caminho de espiritualidade» (Masiá,
2003, p. 80).
44
Em São Paulo (2 Coríntios, 4,7) podemos ler: «Ora temos este tesouro em vasos
de barro, para que a excelsitude do poder seja de Deus e não <venha> de nós» 6. A sua
força extraordinária não vem de nós. Para Tamaki, «o desvelamento desse tesouro é o
núcleo da experiência religiosa»: na iluminação de Siddhârta Gautama, na presença do
Espírito em Jesus, na escuta da voz da consciência em Sócrates, ou no «deixar-se
conduzir pela missão celeste em Confúcio» (Masiá, 2003, p. 81).
É também a força dessa experiência interior que faz com que ainda hoje, em
circunstâncias que não têm qualquer semelhança com as da China da «Primavera e do
Outono», o Caminho de Mestre K’ung sobreviva, não apenas sob a forma do «cultivo
dos textos» ou da «adoração da tradição», mas também como materialização de um fil
rouge permanentemente renovado da longa história da espiritualidade humana.
45
ser seguido por todos (Sinedino, 2017, I, p. 18). Confúcio não devia ser totalmente
avesso ao misticismo, tal como o final da sua vida, ou os relatos dos seus encontros com
os eremitas e com os Taoistas, sugerem. Todavia, já sublinhei que ele não queria fugir
do Mundo: «A Humanidade do homem sábio não lhe permite abandonar Tudo sob o
Céu como aqueles que não seguem o Caminho» [Analectos 18.6 (II, p. 247)].
Com a introdução (c. 605 d.C.) dos exames públicos de acesso à carreira
burocrática, ficou selada «a sorte do Confucionismo como o credo oficial da
civilização chinesa»; tais exames «sacralizaram a posição central dos textos clássicos do
confucionismo» (ibid.). E assim, pouco a pouco, foi-se registando uma clara mudança
de perceção e de significado do pensamento de Confúcio para a generalidade dos
estudiosos. A vitória definitiva do Confucionismo ocorreria, já o sabemos, com a
reelaboração sistematizada por Zhu Xi durante a dinastia Song do Sul. Mas, nesta altura,
o pensamento original de Mestre K’ung já tinha sido suavemente penetrado pelas ideias
de Buda e de Lao-tsé.
Por tudo isto, não podemos afirmar que o Confucionismo seja um pensamento
absolutamente unificado; a sua enorme longevidade e sucessiva reinterpretação ao longo
dos séculos não permite uma tal abordagem. Nunca deixou, no entanto, de ser
profundamente inspirador, mesmo na contemporaneidade. Um intelectual do extremo
final da última dinastia (a dos Qing), chamado Kang Youwei (1858-1927), tentou até
demonstrar que K’ung Fu-tzu, o pensador nascido em Qufu c. 551 a.C., tinha sido … «o
revolucionário reformista da tradição» (citado por Sinedino, 2017, I, p. 21)! Nesta
curiosa fórmula se fundem as três maneiras atrás citadas de avaliar o significado
histórico do Confucionismo. Haverá prova melhor do seu fascínio?
XII
46
A morte de Confúcio e o ‘dia seguinte’
Quando Confúcio, enfim, chegou ao seu leito de morte, Zilu quis fazer uma
oração por ele, seguindo a crença tradicional de que um moribundo deve pedir proteção
aos espíritos, mostrar-se arrependido pelos erros que cometeu e declarar o que fez de
bom. Confúcio não queria e perguntou: «É preciso?», mas o discípulo insistiu e
começou a entoar uma prece funerária («Rogo aos senhores que estão acima e abaixo,
espíritos do Céu e da Terra…»); o Mestre, porém, interrompeu dizendo: «As preces de
Qiu [nome próprio de K’ung Fu-tzu] já foram feitas há muito tempo»7…
Quando Confúcio morreu, foi cumprido o tradicional luto de três anos imposto
pelos Ritos. É possível que os discípulos mais fiéis se tenham mantido por perto e
tenham tido tendência para se agrupar em torno de algum dos alunos mais antigos e
mais brilhantes. Um desses casos parece ter sido o de Zigong, que terá construído uma
cabana nas proximidades da sepultura do Mestre e ali terá permanecido ainda por mais
três anos. Segundo conta Mêncio, alguns discípulos, como Zixia, Zizhang ou Ziyou,
achavam que You Ruo era suficientemente promissor e sábio para suceder a Confúcio e
terão desafiado Zengzi (Zeng Shen) a apoiá-los nesta causa; contudo, Zengzi declinou
dizendo: «Apesar de vocês poderem lavar alguma coisa com as águas dos rios Jiang e
Han, e corar a roupa sob o Sol do Outono, a sua pureza cintilante não pode
simplesmente ser superada» [Mêncio 3A: 4.13 (p. 33)].
7
Analectos 7.34 (I, p. 240). Conforme comenta Giorgio Sinedino (2017, I, pp. 240-241), na antiga
religião chinesa as almas dos mortos faziam parte dos espíritos da Terra, ao passo que os espíritos
celestiais tratavam de comandar os fenómenos naturais e o ciclo das estações. Havia uma crença
tradicional (sobretudo na zona sul da China) de que um espírito chamado «Comandante do Destino»
julgava o falecido depois de ouvir os seus méritos e os seus deméritos.
47
Ziyou disse: «O meu amigo Zhang [Zizhang] é [uma pessoa] difícil de
encontrar. Contudo, ele não [alcançou] a Humanidade» [Analectos 19.15 (II, p. 263).].
Imediatamente a seguir, é Zengzi quem critica o mesmo colega: «Zhang tem uma
aparência impecável, mas é difícil comparar isso à Humanidade» [Analectos 19.16 (II,
p. 264)].
Das várias sensibilidades e dos próprios itinerários de vida dos alunos mais
próximos de Confúcio acabaram por resultar cerca de oito escolas, umas mais fechadas
e sectárias (como, aparentemente, terá sido o caso da de Zixia, que achava que qualquer
outro caminho, que não o confuciano, conduziria a um beco sem saída), outras mais
abertas. Também o enfoque destas escolas deve ter refletido os diferentes talentos e
preferências dos primeiros discípulos de Confúcio, circunstância de que o Mestre –
observador atento e perspicaz – estivera sempre a par. Nos dias amargos vividos na
fronteira entre Chen e Cai, durante a aventura do «Périplo aos Países», Confúcio
recordou os seus melhores alunos e terá dito algo que passou para a posteridade como
um «quadro de honra» dos seus discípulos, estreitamente relacionado com as áreas em
que cada um deles era mais capaz:
48
«(…) Actos de virtude: Yan Yuan [Hui], Min Ziqian, Ran Boniu,
Zhonggong. Oratória: Zai Wo, Zizong. Trabalho de governo: Ran You, Ji Lu.
Estudos de tradição literária: Ziyou, Zixia». [Analectos 11.2 (II, p. 49)]
Como comenta Sinedino, esta seleção ficou conhecida como «os dez luminares
às portas do [Mestre] Kong». Dela não interessa apenas reter os nomes dos discípulos,
mas também a identificação das áreas ou disciplinas que cultivavam com um brilho
especial. Ainda assim, não deixa de ser estranha a ausência de alunos como Zengzi, You
Ruo ou mesmo Zilu. Pode ser que não se enquadrassem com aquela grelha, ou por
serem bons em tudo mas não os melhores em nada, ou porque se destacavam em aspetos
que Confúcio não privilegiava; este último caso parece ter sido o de Zilu, forte e bravo
mas excessivamente conflituoso, de quem o Mestre disse: «Pessoas como Yu [Zilu]
talvez não tenham bom fim». [Analectos 11.12 (II, p. 56)]
XIII
49
«O Homem Nobre almeja a virtude, o Homem Pequeno anseia pelas suas terras.
O Homem Nobre almeja [a justiça d]as punições, o Homem Pequeno anseia
pelas suas vantagens» (Analectos 4.11; I, p. 129).
«O Homem Nobre [só quer] saber de Dever. O Homem Pequeno [só quer] saber
de Vantagem». (Analectos 4.16; I, p. 135).
«O Homem Nobre não se angustia, não tem medo» (Analectos 12.4, II, p. 76).
«As pessoas que têm virtude possuem necessariamente o dom da palavra, [mas]
as pessoas que possuem o dom da palavra não têm necessariamente virtude. As
pessoas Humanas têm necessariamente coragem, mas as pessoas corajosas não
têm necessariamente Humanidade» (Analectos 14.5, II, p. 130).
50
«Aqueles que estudavam nos tempos antigos [faziam-no] para [benefício de] si
próprios. Aqueles que estudam nos tempos presentes [fazem-no] para [aparecer
diante] dos outros» (Analectos 14.25, II, p. 145).
«Mestre Zeng disse: “Os pensamentos do Homem Nobre não vão além do seu
cargo» (Analectos 14.28, II, p. 147).
«O Homem Nobre usa o dever para construir a sua índole, usa os Ritos para pôr
em prática a sua índole, usa a humildade para exteriorizar a sua índole, usa a
confiabilidade para aprimorar a sua índole. Eis o Homem Nobre». (Analectos
15.17, II, p. 177).
«O Homem Nobre não dá oportunidade a uma pessoa por causa das suas
palavras, nem desaprova as palavras por causa da pessoa» (Analectos 15.21, II,
p. 179).
«Errar e não corrigir, eis o que se chama erro» (Analectos 15.29, II, p. 185).
«O Homem Nobre é recto, mas não [peca pela] sinceridade cega» (Analectos
15.36, II, p. 181).
51
«Há ‘três amigos’ que trazem benefícios, há ‘três amigos’ que trazem
prejuízos. Fazer amizade com [pessoas] rectas, com [pessoas] que cumprem a
sua palavra, com [pessoas] experientes: isso traz benefícios. Fazer amizade com
[pessoas] aduladoras, com [pessoas] servis, com [pessoas] eloquentes: isso traz
prejuízos» (Analectos 16.4, II, pp. 200-201).
«Há ‘três alegrias’ que trazem benefícios, há ‘três alegrias’ que trazem
prejuízos. A alegria de encontrar a medida dos Ritos e da Música, a de falar
sobre o que as pessoas têm de bom, a de ter muitos amigos virtuosos: isso traz
benefícios. A alegria de ter orgulhos e vaidades, de viver na ociosidade, de
indulgenciar a si próprio com festas: isso traz prejuízos» (Analectos 16.4, II, p.
202).
«Aquele que vive para conseguir o elogio dos seus conterrâneos é o malfeitor
da virtude» (Analectos 17.13, II, p. 225).
«Nos tempos antigos, o povo notava três tipos de defeitos que hoje talvez
[passem despercebidos]. Os loucos dos tempos antigos eram espontâneos [aos
nossos olhos]; os loucos de hoje são dissolutos. Os radicais dos tempos antigos
tinham [o que hoje consideramos] escrúpulos; os radicais de hoje têm ódio e
revolta. Os estúpidos dos tempos antigos eram rectos; os estúpidos de hoje só
vigarizam» (Analectos 17.16, II, p. 228).
52
«Somente as mulheres e os homens pequenos são difíceis de educar: quando
nos aproximamos deles, perdem o comedimento; quando nos distanciamos
deles, [retribuem com] ódio» (Analectos, II, p. 236).
«Zixia disse: “Os homens pequenos dão sempre belas razões para os seus
erros”» (Analectos 19.8, II, p. 258).
«Zixia disse: “O Homem Nobre sofre ‘três mudanças’ [de aparência]: de longe,
[parece] solene; de perto, [parece] brando; ao falar, [parece] severo”»
(Analectos 19.9, II, p. 258).
XIV
Após a morte de Mestre K’ung (em 479 a.C.) e dos seus discípulos da «primeira
geração» (na sua maior parte cerca de 20 a 45 anos mais novos do que ele), o
Confucionismo não desapareceu da cena cultural chinesa, mas houve espaço para o
aparecimento de outras correntes e doutrinas, com diferentes perspetivas da realidade e
da melhor forma de a transformar.
53
iv) condenava as atividades extravagantes e dispendiosas, designadamente os
funerais sumptuosos e as campanhas militares;
O Mozismo parece ter tido bastante força e influência até aos inícios da dinastia
Han (c. 206 a. C. a 220 d. C.). Também por isso, tudo indica que Mozi não terá atuado
isoladamente. Karen Armstrong encara esta figura como um «shì» integrado numa
irmandade de cerca de 180 «homens de merecimento», altamente disciplinados e que,
vestindo roupas humildes (de camponeses ou de artesãos) e pautando-se por uma ética
igualitária se dispunham a proteger as cidades da violência que grassava cada vez mais
na China do início da era dos «Reinos Combatentes» (Armstrong, 2009, p. 265). Terá
sido precisamente a frugalidade e austeridade excessivas de Mozi e dos seus
companheiros que suscitaram as críticas mais duras dos Confucionistas, e também de
Taoístas como Zhuangzi, que se insurgiu contra a condenação mozista da música e dos
festejos, assim como contra as exéquias fúnebres demasiado austeras, tudo práticas que
considerava irem contra a natureza humana. Note-se, em todo o caso, que Zhuangzi
reconheceu que «Mozi foi certamente um dos homens supremamente bons do mundo»,
sendo quase impossível encontrar alguém igual a ele.
54
crítico, não apenas relativamente ao «li» (que os confucionistas tanto prezavam, mas
que ele achava que não elevava a alma), mas também em relação à memória da dinastia
Zhou, sempre associada a rituais e a géneros musicais e literários elitistas, que excluíam
os mais desfavorecidos.
«Olha para o Estado de outro como olhas para o teu, para a família de outro
como olhas para a tua e para a pessoa de outro como olhas para a tua própria pessoa
(…) Se os senhores dos Estados se preocuparem uns com os outros não vão para a
guerra. (…) a razão por que surgem as calamidades, ressentimentos e ódios é a falta do
jian ai» [Mozi 15: 11-15, citado por Armstrong, 2009, p. 268].
Mas seria a natureza humana alguma vez capaz de alcançar este amor universal?
Na resposta a esta pergunta decisiva, Mozi recorre a uma metáfora: «Quando a seda é
colocada numa tintura diferente, a sua cor também se torna diferente. Tendo sido imersa
cinco vezes, [a seda] mudou a sua cor cinco vezes. Portanto, o tingimento deve ser feito
com cuidado». (Mozi, citado por Höchsmann e Guorong, 2007, p. 21).
55
retidão de procedimentos, pelo que o melhor era Mozi desistir da sua cruzada. Então, o
filósofo retorquiu:
A utopia moziana levava a uma nova Regra de Ouro, mais extrema e talvez
menos elegante do que a confuciana: não bastava amar a família, ou a si próprio, pois
isso até os criminosos faziam! Era necessário ir muito mais longe, amando a família e o
Estado, em lugar de alimentar o egoísmo letal que conduzia a impostos pesadíssimos
que geravam a fome e o frio e que estava na raiz da violência e da destruição reinantes.
Este era um pensamento chave do ensino de Mestre Mo: condenar a guerra, que
separava as famílias, que só beneficiava 0,05% das pessoas e que consumia recursos
sem fim. Talvez alguns seguidores de Mozi tenham admitido a guerra defensiva, mas o
Mestre parece ter sido um pacifista: «opunha-se a toda a violência e viajava de Estado
em Estado para convencer os governantes a quebrar o ciclo da guerra que começava a
engolir todos os Estados da grande planície» (Armstrong 2009, p. 268). Para Mozi,
autor do primeiro tratado anti-guerra, a fama e as conquistas territoriais não traziam
qualquer benefício verdadeiro, pelo contrário, causando enormes prejuízos:
É claro que as teses mozistas (ou moístas) também foram alvo de críticas, e isso
acabou por fazer com que o autor desenvolvesse (de forma pioneira na China antiga) a
lógica e a dialética, sistematizando e tornando mais subtil a sua doutrina; porém, não no
sentido confuciano (muito baseado no Estudo e na reflexão dos «jûnzi»», no ser bom,
56
na virtude interior) e antes numa perspetiva mais intervencionista sobre o Mundo e
sobre a realidade: os «homens de merecimento» eram gente de ação, ansiosa por colocar
os seus conhecimentos práticos e o seu esforço ao serviço do conjunto da sociedade, e
não apenas de uma elite de letrados ou de governantes.
Ao contrário de Confúcio, que não falava muito no Céu, Mozi remetia com
regularidade para ele, afirmando que o Céu recompensa e castiga, e por isso fora até
tomado como modelo pelos Reis Sábios dos primórdios da história chinesa
57
Mas o Céu também fazia parte do projeto pragmático de Mozi, uma vez que ele
era considerado útil para levar as pessoas a praticar o «jian ai». Quando tal começasse a
acontecer, produzir-se-ia um efeito de cascata fortemente mobilizador e difícil de travar:
Sabemos muito pouco acerca deste precoce filósofo chinês, que deve ter nascido
por volta de 450 ou 440 a.C. Infelizmente, não sobreviveu qualquer escrito completo
dele, mas a sua importância deve ter sido assinalável, pois é reiteradamente citado em
trabalhos posteriores, como por exemplo em Lü-shih ch’un ch’iu («A Primavera e
Outono do Senhor Lü») onde é possível que se preservem alguns fragmentos autênticos
dos escritos ou ditos de Yang Zhu.
58
O aspeto mais comentado do pensamento deste filósofo antigo tem que ver com
a sua ideia de que o homem é naturalmente egoísta. Para Yang Zhu, nada há de mais
natural do que cada um proteger os seus próprios interesses! De resto, terá argumentado,
fora precisamente por causa disso que Confúcio concluíra que a Virtude era rara no ser
humano: ela é algo de artificial, pelo que só pode resultar de uma construção, de uma
imposição. Como observou Van Norden (2009: XXIV), para Yang Zhu, colocar um ser
humano a agir de uma forma benevolente e íntegra seria o mesmo que produzir uma
aberrante versão «bonsai» de um zimbro chinês…
XV
Embora saibamos muito pouco sobre a vida de Mêncio, sobretudo nas suas
primeiras quatro décadas, pensa-se que, tendo ficado órfão de pai muito novo (tal como
Confúcio), aprofundou a sua ligação à mãe. Esta terá investido fortemente na educação
de Meng Ke e, para o efeito, conta-se que procurou sempre colocá-lo a morar no
ambiente mais adequado aos seus progressos nos estudos: perto de um cemitério para
interpelar a morte, perto de um mercado para tomar o pulso à economia, perto de uma
escola para mergulhar no ambiente do ensino… Terá sido ainda a progenitora de
59
Mêncio a treiná-lo a aproveitar bem os dias de estudo e as oportunidades que lhe
surgiam pela frente, por vezes de forma inesperada.
A certa altura da sua vida e carreira, Mêncio aceitou um alto cargo de Ministro
em Qi. Todavia, acabou por se demitir, ao aperceber-se de que o rei Xuan ignorava os
seus conselhos. O monarca insistiu e, diretamente ou através de intermediários, tentou
seduzi-lo com a ideia de que Mêncio, ficando, poderia treinar os seus discípulos, de
modo a que os vários conselheiros e a própria população tivessem um modelo a seguir.
Além disso, o rei mostrou-se disposto a entregar a Mêncio uma moradia no centro do
país e um bom salário. Ainda assim, ciente de que a riqueza é importante mas não é
tudo, Mêncio retirou-se do serviço público e optou por se dedicar a produzir, com a
ajuda dos seus alunos, uma antologia com os seus ditos e diálogos [Mêncio 2B: 3.1 (p.
24)].
Uma tal decisão não terá sido fácil de tomar, tanto mais que, para um «ru»
(ritualista), poder servir um rei era bastante importante. Como o próprio Mêncio explica
na sua antologia, um nobre sem um governante para acompanhar era como um
agricultor sem terra; e, ao fim de três meses parado, um bom letrado já sentia esse vazio
[Mêncio 3B: 3.1 a 3.3 (p. 36)]! Ainda assim, era essencial que o rei de Qi (ou Hui de
Liang, ou qualquer outro estadista) desejasse genuinamente respeitar a figura e o projeto
de Mêncio, e não apenas explorar em proveito próprio a sua fama sem ter de suportar os
seus conselhos acerca da forma ideal de governar.
Mêncio fala um pouco mais de si próprio do que Confúcio. Por exemplo, quando
um discípulo seu chamado Gongsun Chou lhe perguntou se o seu coração se perturbaria
caso ele fosse nomeado Primeiro-Ministro em Qi e pudesse pôr o Caminho em prática,
convertendo o governante em rei ou até em hegemon, o filósofo respondeu: «Não se
60
agitaria. O meu coração encontra-se imperturbável desde os meus quarenta anos»
[Mêncio 2B: 2.1 (pp. 15-16)]. Já sabemos que também Confúcio dissera que, aos quarenta
anos, se tinha visto livre de dúvidas… Numa outra passagem, igualmente expressiva,
Mêncio tenta identificar as suas duas principais virtudes: conhecer bem as doutrinas (o
que ajuda a reconhecer os erros); e ser capaz de cultivar o seu «qì» [energia básica,
matéria prima da vida] torrencial [Mêncio 2A: 2.11 (p. 16)]. Oito séculos mais tarde,
Zhu Xi comentaria que Mêncio postulava uma conciliação entre a vontade e o «qì», esse
importante fluido energético que corre entre nós e o nosso meio ambiente, de que mais
adiante falarei melhor; Zhu Xi acrescenta que entender as doutrinas permite
compreender o Caminho e a retidão, e não ter dúvidas. Já cultivar o «qì» torna possível
que nos harmonizemos com o Caminho e com a retidão, além de nunca se ter medo.
Para Mêncio, era crucial reconhecer as atitudes incorretas e resistir a elas; havia
que distinguir sempre entre as motivações e os comportamentos, e contrariar o fracasso
moral. Em síntese: cultivar o nosso coração para ficarmos aptos a fazer depois as
escolhas certas. Ou, como resumiu Zhu Xi, reconhecer o modelo e, a partir daí,
compreender como se devem fazer as coisas.
Como se vê, o objetivo era (muito) exigente e, para o alcançar, havia que investir
fortemente na educação. Até porque, tal como Confúcio preconizara e Mêncio
aprofundou, mais valia dominar o povo pela ação benevolente e pela boa educação:
«O povo tem medo dos bons regulamentos, mas ama a boa instrução. Os
bons regulamentos permitirão obter do povo recursos materiais, mas a boa
instrução conquistará os corações do povo». [Mêncio 7A: 14.1 a 14.3 (p. 80)]
61
Neste ponto, vale a pena assinalar a insistência de Mêncio naquilo que eu
considero ser uma certa ideia de genuinidade, no sentido da preservação do nosso lado
mais luminoso, mais puro e mais generoso. Na sua antologia, o filósofo declara: «Não
faças o que não deves; não desejes aquilo que não desejarias. Sê assim, simplesmente»
[Mêncio 7A: 17 (p. 80)].
«As pessoas têm um coração que as leva a não fazer certas coisas e a não
desejar certas coisas. Porém, logo que um pensamento egoísta emerge, caso a
pessoa seja incapaz de o controlar com adequação ritual e retidão, acabará por
fazer frequentemente aquilo que [à partida] ‘não faria’ e a desejar aquilo que
‘não desejaria’. Examinar este coração é aquilo a que se chama ‘expandir e
preencher o nosso sentido de honra’ (2A: 6); neste caso, a nossa retidão será
infinita. Por isso [Mêncio] diz: ‘Sê simplesmente assim’» [Li Yu citado por Van
Norden, 2009, p. 127]
62
ele envolveu-se na luta por uma mudança social positiva. Neste aspeto, não foi bem-
sucedido, tal como o seu Mestre, mas, ainda assim, Mêncio dizia aos seus alunos que
não era uma pessoa amarga: ele tinha fé em que o Céu, no seu devido tempo, geraria um
sábio que traria paz ao Mundo [Mêncio 2B: 13 (pp. 27-28)]. Também Mêncio
acreditava nos ciclos dinásticos de 500 anos (a chamada «lei das dez gerações» aplicada
à decadência de um país), no intervalo dos quais surgia um rei notável e capaz de
regenerar Tudo sob o Céu. Pelo meio, havia homens ilustres e talentosos; porém, já
tinham passado mais de 700 anos desde a fundação da dinastia Zhou (c. 1046 a.C.), a
China estava pior e não se adivinhava um sinal de retoma; o Céu não queria a paz no
Mundo? Seria agora o momento? Seria, quem sabe, a vez de Mêncio? Ele acreditava
nesta possibilidade:
«Contudo, o Céu ainda não quis pacificar o mundo. Se o quisesse fazer, quem
mais senão eu estaria habilitado para tanto, na era presente?» [Mêncio 2B: 13.2 a 13.5
(pp. 27-28)].
Mêncio dedicou uma boa parte do seu tempo a denunciar e a tentar desconstruir
as teses de Mozi e de Yang Zhu – os filósofos mais marcantes entre Confúcio e ele
próprio. Criticou severamente a «equanimidade» do primeiro e o «egoísmo natural» do
segundo. Dizia que, sem governante nem pai, o povo sofreria e os animais devorariam
as pessoas. É visível a preocupação de Mêncio (também ele!) em salvar o Mundo,
desmascarando os adversários e recuperando as doutrinas que considerava justas:
basicamente, os ensinamentos confucianos sobre a benevolência e a retidão. Do mesmo
modo, fazia questão de evocar a história e a memória dos grandes reis do passado.
De uma forma muito simplista, podemos dizer que a filosofia política de Mêncio
assentava na ideia de um «governo benevolente» que fosse capaz de assegurar o bem-
estar da população. Tal como Confúcio, ele considerava que, sem se matar a fome ao
povo, não se poderia esperar que os crimes não ocorressem [Mêncio 1A: 7.20 (p. 8)].
Mas, a partir daqui, é muito interessante registar uma diferença marcante entre
Confúcio e Mêncio: não uma diferença de substância doutrinal, mas sim de abordagem
63
e de demonstração. É que Mêncio era muito mais concreto e prático do que o seu
mestre inspirador! Na sua obra encontramos, por exemplo, recomendações sobre
impostos, sobre a gestão de quintas, ou até sobre pagamentos aos empregados do
governo [Mêncio 3A: 3 (pp. 29-30)]. Igualmente importante é, claro, a educação ética,
que na perspetiva confúcio-menciana deveria ser assegurada por um sistema que
ensinasse a viver em harmonia (bons pais, bons filhos, boas esposas, bons amigos, etc.).
Ou seja, o caminho do povo passava por ter acesso não apenas a comida e a vestuário,
mas também a instrução, sob pena de ficarem como se fossem animais: a cultura,
achava Mêncio, transforma, a barbárie é que não.
Ao nível das políticas públicas, e como nota Van Norden, sobressai também o
lado prático do grande filósofo do século IV a.C. chinês; nele existe uma certa
imbricação entre perspetiva filosófica e política: há conselhos sobre a arte de bem
governar, mas associados a indicações sobre como delimitar os campos, sobre as taxas a
cobrar, ou mesmo sobre as vantagens de providenciar equipamentos comuns (poços,
certos terrenos, entre outras valências). [Mêncio 2A: 5 (p. 20)].
64
e pacífico, em vez de um tirano, pelo que a bondade era também uma força
transformadora (Armstrong, 2009, p. 300). Este era decerto um aspeto importante na
dinâmica dos diversos «Países do Meio», especialmente em tempo de grande
conflitualidade. Como sintetizaria Zhu Xi: «Se os que estão perto estiverem felizes, os
de longe aparecerão» [Zhu Xi citado por Van Norden, 2009, p. 96].
Julgo que, ao dizer isto, Zhu Xi, o grande filósofo neoconfucionista do séc. XII
estaria a pensar também nos nobres, que eram essenciais para a construção de um
mundo melhor. É que apenas eles tinham um «coração constante», por serem cultos; os
nobres como que viam o Mundo a cores, enquanto o povo simples o via tão só a preto-
e-branco; só os nobres entendiam, por exemplo, a verdadeira importância dos sacrifícios
rituais prestados aos antepassados; portanto, eles eram imprescindíveis e o seu exemplo
era precioso, onde quer que estivessem. Como dizia Mêncio: «Um nobre no seu ofício é
como um agricultor a lavrar a terra. Como poderia um agricultor abandonar um Estado e
deixar para trás o seu arado?» [Mêncio 3B: 3.5 (p. 37)].
Dito de outra forma, um nobre (como Confúcio) levava sempre consigo o seu
talento, e era justamente isso que lhe permitia ensinar os outros, havendo – segundo
Mêncio – cinco maneiras através das quais o poderia fazer: i) transformando a outra
pessoa como «chuva caída no tempo certo»; ii) fazendo o outro levar a sua Virtude até
ao fim; iii) desenvolvendo o seu talento; iv) através da pergunta e da resposta; v) por via
do refinamento ou cultivo privado [Mêncio 7A: 40.1 a 40.6 (p. 84)].
65
Muito confucionista é também a tese segundo a qual Tudo sob o Céu se
estrutura em função da articulação de quatro círculos cada vez mais amplos: nós, a
família, o Estado e o Mundo: «A raiz do mundo reside no Estado; a raiz do Estado
reside na família; a raiz da família reside em nós próprios» [Mêncio 4A: 5.1 (p. 44)].
Não se perca de vista que esta ideia matricial do Confucionismo se encontra – como
muitas outras – ancorada na tradição literária clássica, neste caso em «A Grande
Aprendizagem»:
«Os antigos que desejaram que todo o povo no interior do império fosse capaz
de deixar que a sua Virtude luminosa inata continuasse a brilhar, trataram primeiro de
garantir que os seus Estados fossem bem governados; para tal, começaram por
implantar a harmonia nas suas casas; e, para tanto, começaram por se cultivar a si
mesmos».
De modo não menos veemente do que Mozi o fizera, Mêncio condena a guerra,
que considera tratar-se de «um lamentável último recurso». De resto, Meng Ke criou a
este respeito uma expressão deliciosa, que acabaria por tornar-se um provérbio chinês:
«Tentar governar através da força é tão ineficaz quanto trepar a uma árvore na
esperança de apanhar um peixe». [Mêncio 1A: 7.16 (p. 7)].
Para Mêncio, não havia guerras justas e injustas, a Virtude era sempre
melhor do que a força:
A antologia preparada por Mêncio e pelos seus discípulos também ensina como
fazer o povo feliz. O princípio geral é a tal ideia de que os súbditos se submetem mais à
Virtude do que ao poder coercivo:
66
Mas qual a receita para levar a felicidade aos corações dos súbditos? No seu
estilo muito prático e concreto, Meng Ke sugere estratégias para os governantes
conquistarem os diversos grupos sociais: aos nobres, devia-se reconhecer o mérito e
nomeá-los para altos cargos; aos mercadores, devia-se-lhes cobrar taxas adequadas (e
não exorbitantes); quanto aos viajantes, deviam estar sujeitos a inspeções alfandegárias,
mas não a impostos; no que toca aos lavradores, devia evitar-se aplicar-lhes taxas e
outros agravos; do mesmo modo, os artesãos deviam ser poupados a sobretaxas.
«Se alguém [leia-se: um governante] for capaz de pôr em prática estas cinco
coisas, então o povo dos Estados vizinhos recebê-lo-ão como a um pai ou a uma mãe.
Conduzir os filhos e os irmãos mais novos a atacar um pai ou uma mãe é algo que
nunca aconteceu desde o nascimento da raça humana» [Mêncio 2A: 5.1 e 5.6 (p. 20)].
«Se tornares o cultivo dos seus campos fácil e a suas taxas forem leves, o povo
poderá enriquecer. Se os mantiveres bem alimentados e apenas os empregares segundo
as regras da decência, haverá recursos materiais mais do que suficientes. O povo não
viverá sem água e lenha. Mas se puderes bater às portas das pessoas ao final da tarde,
pedindo-lhe alguma água ou brasas quentes, e isso não te for recusado, então é porque
existe o suficiente. Do mesmo modo, quando os sábios governam o mundo, fazem com
que o grão seja tão abundante quanto a água e o lume. E quando o povo tem tanto grão
quanto água e lume, como poderá ele não ser benevolente?» [Mêncio 7A: 23.1 e 23.2 (p.
81)].
Portanto, tal como Mêncio sublinha pouco depois, a fome e a sede também são
males do coração: «Será que a fome e a sede apenas ferem a boca e a barriga? Também
os corações humanos estão sujeitos a tais ferimentos» [Mêncio 7A: 27.1 (p. 82)]. Assim,
seria bom que, em vez de fazerem a guerra para satisfazer os seus devaneios de
hegemonia, os governantes cuidassem de alimentar o povo. Aliás, para Mêncio, as
anexações entre Estados nem faziam qualquer sentido, uma vez que tanto os grandes
como os pequenos países precisavam uns dos outros. Além disso, se alguém planeava
unificar o Mundo, era bom que soubesse que isso só estava ao alcance de quem não
gostasse de matar pessoas. Não era esse o caminho a seguir e os governantes
67
precisavam de interiorizar isso e de abdicar de três coisas que fazem os reis felizes e os
povos infelizes: reunir soldados; sujeitar os seus oficiais militares ao perigo; e fomentar
o rancor dos vários senhores [Mêncio 1A: 7.14 (p. 7)]. É justamente ao tocar neste
assunto que Mêncio usa pela primeira vez a famosa metáfora dos «rebentos» ou
«brotos», que serve sobretudo para explicar as nossas inatas, mas incipientes,
inclinações éticas.
68
repente, avista uma criança que está prestes a cair a um poço. Meng Ke pergunta: quem
não a socorrerá [Mêncio 2A: 6.3 e 6.4 (p. 20)]? Para Mêncio, só não tem sentimento de
compaixão quem não é humano. Da mesma maneira, a retidão (probidade,
integridade) é parte natural do ser humano: até um mendigo pode recusar um cesto
de comida e uma tigela de sopa que lhe sejam oferecidos com desprezo!
Deste modo, e ao contrário do que defendia Yang Zhu, a natureza humana não
consiste apenas em desejos egoístas por comida, sexo, conforto físico e
sobrevivência; pelo contrário, inclui também motivações éticas diferenciadoras. Mas
não será que a realidade desmentia Mêncio? Não, porque – como precisa Van Norden
– ele falava em natureza humana boa (inata), não em seres humanos inatamente bons!
Ou seja, uma coisa é o «rebento», outra é o «fruto»; a compaixão pode gerar
benevolência; a altivez ou sentido de honra pode produzir retidão ou integridade; mas,
em qualquer destes casos, é sempre preciso que o ‘potencial natural’ seja desenvolvido.
Daí que Mêncio fale em alargar os «rebentos» até à benevolência e retidão totais, para
encher o coração e não magoar ninguém, nem transgredir o Caminho [Mêncio 7B: 31.1
e 31.2 (pp. 88-89)].
69
nos tornemos (ou sejamos vistos, tal como no exemplo da Montanha do Boi) como
animais que nunca tiveram qualquer capacidade inerente para o bem. É que nada cresce
se não for alimentado. Neste ponto, Meng Ke convoca o Mestre em apoio direto da sua
doutrina: «Confúcio dizia: ‘Agarrado, logo preservado; abandonado, logo perdido. O
seu ir e vir não tem hora marcada. Ninguém conhece a sua morada’. Não era isto o
coração daquilo de que ele falava?» [Mêncio 6B: 8.1 a 8.4 (pp. 73-74)].
Ao dizer que «a natureza humana é boa», Mêncio quis dizer que todos temos
um potencial inato para o bem, sim, mas podemos ou não aproveitá-lo, aprofundá-
lo. Aquele potencial é sempre idêntico, mas as circunstâncias externas e o esforço
individual fazem com que oscile de pessoa para pessoa. O mesmo acontece com a
semente da cevada: resulta melhor ou pior consoante a riqueza do solo, os caprichos da
chuva e o esforço do agricultor [Mêncio 6A: 7.2 (p. 72)]. O filósofo cita também dois
alunos que estão a aprender um jogo de tabuleiro («Go»): um deles consegue assimilar,
mas o outro não; e não é tanto por terem inteligências diversas, mas sim porque a sua
concentração e o seu esforço foram distintos 8. Os melhores – dizia Mêncio – conseguem
preservar o seu coração de criança. E só a bondade permite dominar o Mundo.
8
Mêncio 6A: 9.3 (p. 74). Nos Analectos 17.22 (II, pp. 234-235), Confúcio explicara que o «Go» é jogado
num tabuleiro, com pedras brancas e pedras pretas colocadas numa placa; segundo Van Norden (2009, p.
74, nt. 7), o objetivo do jogo é capturar as peças do adversário, cercando-as com as nossas; uma criança
consegue praticar este jogo, que no entanto é difícil de dominar completamente.
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boi a ser encaminhado para um sacrifício. Ora, àqueles quatro «sentimentos inatos»
podem vir a corresponder – se tudo correr bem – quatro «expressões
comportamentais»: a benevolência («rén»); a retidão (probidade, integridade: «yì»); a
deferência ritual («li»); e a sabedoria («zhi», no sentido do conhecimento das virtudes,
da capacidade de avaliar o caráter dos outros, ou da competência para concretizar
objetivos). [Mêncio 2A: 6.4 a 6.6. (p. 21), entre outras passagens].
E será que existe uma virtude mais importante do que as outras? Para Zhu
Xi, é a benevolência, pois funciona como uma síntese de todas as restantes. De resto,
Zhu Xi interpreta Mêncio como um defensor da «unidade das virtudes»; para este
comentador neoconfuciano, a compaixão, a altivez, o respeito e o critério são
«emoções»; já a benevolência, a retidão, a deferência ritual e a sabedoria configuram «a
natureza humana» em si mesma. Segundo Zhu Xi, o coração é o órgão a quem compete
articular os dois conjuntos, isto é, a natureza com as emoções. Como sintetiza Karen
Armstrong, o coração é o «órgão afectivo pensante» e, na maioria das pessoas,
assemelha-se à Montanha do Boi, outrora frondosa e atualmente despida de vegetação
que é urgente repor, o que é perfeitamente possível: «Dada a nutrição correcta, não há
nada que não cresça, e privada dela não há nada que não definhe» [Armstrong, 2009, p.
302; Mêncio 6A: 8 (pp. 73-74)].
71
naquilo que pode fazer vir ao de cima o nosso potencial para a bondade. Por outro,
seguindo pacientemente as várias etapas do autoaperfeiçoamento moral: primeiro
refletir e reconhecer a bondade que existe em nós; como segundo passo, agir para
chegar às pessoas. Estes dois estádios são identificados por Meng Ke durante uma das
suas conversas com o rei Xuan de Qi, a quem o filósofo ajudou a alcançar maturidade
cognitiva ética para depois atingir a maturidade afetiva ética.
Desta linha de reflexão decorre também a visão que Mêncio fazia daquilo que
era a essência da sabedoria, ou seja, daquilo que todos os sábios tinham em
comum: «Se algum deles pudesse obter para si o Mundo através de uma ação
desonesta, ou matando uma pessoa inocente, ele não o faria» [Mêncio 2A: 2.24 (p. 19)].
72
Donde se conclui que tudo depende de nós, é a nós que compete estimular um
comportamento eticamente irrepreensível (ou não). E só não deixa imediatamente de
fazer o mal quem não quiser. Neste ponto, há uma saborosa passagem do Mêncio
onde se evoca a história de um homem que roubava galinhas ao seu vizinho e que
propôs reduzir progressivamente o crime para apenas uma galinha por mês, até parar de
todo no ano seguinte… Mas Meng Ke cortava mais a direito: devemos abandonar de
imediato os maus comportamentos e as más políticas; e podemos perfeitamente fazê-lo,
desde que o queiramos [Mêncio 3B: 8.1 (p. 39)].
Referências bibliográficas
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