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Psicologia Analítica
&
Zen Budismo
Simone Miyahira
São Carlos
2005
Agradecimentos
Parte I – A Religiosidade.......................................................................................... 04
Contraposição entre o mundo sagrado e o mundo profano..................................... 04
Os rituais.................................................................................................................. 06
A religiosidade do ponto de vista Oriental e Ocidental........................................... 08
Parte II – O Zen-budismo......................................................................................... 12
Parte III – A Psicologia Analítica............................................................................. 16
O Consciente e o Inconsciente............................................................................... 17
Manifestações do Inconsciente Coletivo................................................................ 21
A Prática da Psicologia Analítica........................................................................... 25
A Individuação....................................................................................................... 26
O Self...................................................................................................................... 27
A Persona................................................................................................................ 28
A Sombra................................................................................................................ 31
Anima e Animus..................................................................................................... 32
Parte IV – Psicologia Analítica e Zen-budismo...................................................... 33
Coletividade............................................................................................................ 33
O Satori, a Individuação e o Eu.............................................................................. 35
Referências Bibliográficas........................................................................................ 37
Parte I – A Religiosidade
Os rituais
A ciência nos ensinou a observar os fatos de uma maneira neutra e concreta e crer
nessas observações, as necessidades capitalistas nos trouxeram a velocidade das
informações e novos valores. Em geral, o homem tem constantemente voltado sua atenção
para situações exteriores a ele. Sua mente está na maior parte do tempo preenchida com
pensamentos sobre um mundo que está sempre em movimento. Mesmo quando se auto-
descreve, o empenho do ocidental, muitas vezes, recai sobre a realização desta tarefa de
forma mais impessoal possível. Aparentemente, houve uma espécie de profanização de um
mundo que, anteriormente, encararia seus elementos com maior profundidade sagrada. Ao
longo dos tempos, o desenvolvimento intelectual e industrial no Ocidente parece ter
afastado o homem moderno desse contato com o sagrado.
Embora o Oriente também sofra tais influências, sua história ainda permite uma
percepção diferenciada a respeito do sagrado. Nesse momento, uma comparação entre o
pensamento ocidental e oriental pode ser feita levando em consideração suas diferentes
concepções no que se refere à questão religiosa, sagrada e os conceitos que ela envolve.
No mundo ocidental o conceito de espírito, por conta do desenvolvimento científico
após a Idade Média, deixou de desenvolver um aspecto metafísico para se restringir aos
processos psíquicos. (Jung 1982, p. 1)
Entretanto, para o Oriente fora da influência ocidental, a idéia de espírito permanece
no terreno metafísico. Espírito seria "um princípio cósmico" (Jung, 1982, p. 5). Isso porque
no Oriente o conflito entre ciência e religião não foi consolidado, como ocorreu no
Ocidente. Essas duas fontes de conhecimento não se atritam, mas se sobrepõem e se
complementam.
A psicologia ocidental trata o conceito de "espírito" como uma função psíquica,
como aquilo que está contido no indivíduo, sua mente. Nesta encontraríamos funções como
percepções, emoções, pensamentos, ou seja, o espírito não possui mais seu sentido
cosmológico, passando a se restringir à consciência reflexa. Assim, não seria possível, para
o ocidental, conceber a idéia de espírito sem relacioná-lo à existência de um ego, ou
melhor, apenas por meio deste se define o espírito.
Diferentemente, o oriental encontra no conceito de "espírito" algo além dessa
definição. Para o Oriente, o pensamento ocidental ainda considera nossa parte não-matéria,
a mente, como sendo determinada por fatores materiais, orgânicos e, portanto, essa função
psíquica está longe de compreender o verdadeiro sentido de espírito. Este, na concepção
oriental, apesar de se comunicar com um eu, é completamente independente e não de define
de forma alguma por meio dele. O eu não faz parte da natureza do espírito. O espírito em si
desconhece os desejos do eu. A consciência reflexa engloba o eu, logo, é pertencente a um
estado inferior, em que o indivíduo se encontra tomado pela ilusão. Segundo Jung (1982,
p11), o despertar dessa ilusão, a iluminação, é que corresponde a uma consciência reflexa
"superior", para nós, o inconsciente coletivo.
A seguir, passagem em que Coomaraswamy descreve uma proposição que
representa um dos ensinamentos de Buda para atingir a libertação:
“...E enfim ele lhes ensinou a doutrina da libertação que resulta de uma compreensão
perfeita da experiência vivida desta proposição: de cada uma de todas as partes componentes desta
individualidade psico-física sempre mutável que os homens chamam seu Eu, seu Ego, é preciso
dizer ‘Isto não é meu Eu’ (na me so attã)” (Coomaraswamy, s/ d., p. 21)
“Acaso poderíamos explicar o Zen, se disséssemos que nenhum mestre pode levar seus
discípulos à iluminação? Será o satori algo que não possa ser captado ela análise intelectual? Sim. É
uma experiência que nenhuma série de explicações ou argumentos poderá transmitir a não ser que a
tenhamos anteriormente...Quando o satori se torna um conceito cessa de ser ele mesmo, e não mais
experiência Zen.” (Suzuki, 1961, p.96)
O Consciente e o Inconsciente
O inconsciente coletivo ou supra pessoal foi um conceito proposto por Jung que
surgiu a partir da análise dos sonhos de seus pacientes e de seus próprios. Jung observou
que as figuras oníricas estudadas eram expressões muito diferentes daquilo que, em
consciência, aquele que as sonhava concebia como figura de Deus. Daí conclui-se que não
se tratava de imagens que o indivíduo um dia viu e não se recorda (criptomnésia), pois
foram descritos diversos casos em que diferentes sonhadores produziam em seus sonhos
figuras parecidas. Dentre os pacientes, até mesmo aqueles que não teriam a menor
possibilidade de ter visto semelhante imagem alguma vez a expressava em seus sonhos.
Contudo, mesmo considerando que tais casos fossem controlados por criptomnésia, Jung
ainda questiona o que poderia ser tão significativo que influenciaria na tendência de
despertar conteúdos aos quais o indivíduo não dá importância consciente. Baseado nessas
constatações, Jung desconsidera a idéia de que esses conteúdos manifestados em sonhos
tenham origem pessoal, devendo ser, então, conteúdos partilhados universalmente,
independentemente de variáveis geográfico-culturais. Tais conteúdos são chamados de
arquétipos por Jung e, embora encontre dificuldade em apresentar a natureza do arquétipo,
Jung traça a seguinte definição:
"O valor pessoal reside na realização filosófica e na visão primária. O filósofo citado
também teve essa visão, como incremento, procedente do patrimônio geral da humanidade do qual,
em princípio, todos nós partilhamos. As maçãs de ouro caem da mesma árvore, quer sejam colhidas
pelo insano aprendiz de serralheiro ou por Schoppenhauer" (Jung, C.G, 2003, p.19)
A Prática da Psicologia Analítica
“tornar-se um ser único, na medida em que por ‘individualidade’ entendermos nossa singularidade
mais intima, ultima e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-
mesmo.” (Jung, C.G., 2003, p.49)
“Nesse trabalho ele aprende por experiência própria que a estrutura básica da vida psíquica
é a mesma estrutura básica da psique de todos os seres humanos. Um conhecimento dessa ordem
não fomenta sentimentos de orgulhosos privilégios individualistas. Acontece é que as relações
interpessoais mudam no decurso do desenvolvimento da personalidade. Liquidam-se projeções. As
relações de estreita dependência, de quase fusão com outros seres gradualmente se modificam para
dar lugar a uma posição de ‘respeito pelo segredo que é cada vida humana’”. (Nise da Silveira,
2003, p. 78)
O Self
A Persona
Originalmente persona significa máscara utilizada por um ator que irá interpretar
seu papel. Na Psicologia Analítica, a persona exerce função similar: expor aquilo que o
indivíduo permite ou deseja que os outros vejam. Porém a persona não é constituída apenas
de características pessoais, mas grande parte dela provém do coletivo.
Embora tenha aparência individual, a persona trata-se de uma máscara da psique
coletiva. "No fundo nada tem de real; ela representa um compromisso entre o indivíduo e a
sociedade, acerca daquilo que alguém parece ser: nome, título, ocupação, isto ou aquilo."
(Jung, C.G., 2003, p.32). Jung não nega que essas características representam algo da
individualidade, no entanto, não estão na formação da essência da pessoa, são secundárias.
Muitas vezes a consciência pode estar totalmente identificada com os conteúdos da
persona, dando-nos a impressão de que esta seria nossa verdadeira individualidade. Porém,
não estamos livres da ação do inconsciente coletivo, onde está contido o si-mesmo, ou
melhor, a verdadeira individualidade. Esta reivindica seu lugar e, de alguma maneira, o
inconsciente coletivo se mostra de forma indireta, mesmo quando há qualquer tentativa de
reprimi-lo.
Seria como se a persona fosse uma casca de aparência de origem coletiva, com
aspectos tanto conscientes como inconscientes, em que se mostram as qualidades desejadas
ao mundo. Como, de acordo com Jung, a consciência do ego pode se identificar
exclusivamente com a persona em alguns casos. Muitas vezes nem mesmo há, por parte do
paciente, a idéia de que apenas vive sua persona, ou seja, sua aparência que se mostra como
se fosse aquilo o que esse indivíduo é. Seu eu se identifica com a persona de tal forma que
se comporta mais em função da sociedade do que de acordo com suas próprias
características. Porém, sempre há algo por trás dessa casca que tenta, insistentemente,
rompê-la: o si-mesmo, verdadeira individualidade.
“Como seu nome revela, ela é uma simples máscara que aparenta uma individualidade,
procurando convencer aos outros e a si mesma que é individual, quando na realidade não passa de
um papel ou desempenho através do qual fala a psique coletiva.” (Jung, 1984, p.134)
A Sombra
Jung denominou sombra a reunião daqueles materiais que são por nós excluídos do
predomínio consciente. São conteúdos que não gostaríamos que fossem expostos, que não
são adequados à sociedade e, assim, são aparentemente sobrepostos pela persona. A sombra
representaria os conteúdos do inconsciente pessoal descrito por Freud; seria os desejos,
atitudes, memórias que reprimimos e ficam escondidos do consciente e com que não
entramos em contato. Entretanto, isso não significa que se tratam de características de
valores negativos, desnecessários ou indesejáveis em geral, mas que são repudiados pelo
indivíduo. Dessa maneira, tais conteúdos tornariam-se inferiores, no sentido de não serem
estimulados como poderiam em direção ao desenvolvimento da psique.
Nise da Silveira (2003, p. 81) define sombra como “uma espessa massa de
componentes diversos, aglomerando desde pequenas fraquezas, aspectos imaturos ou
inferiores, complexos reprimidos, até forças verdadeiramente maléficas, negrumes
assustadores. Mas também na sombra poderão ser discernidos traços positivos: qualidades
valiosas que não se desenvolveram devido a condições externas desfavoráveis ou porque o
indivíduo não dispôs de energia suficiente para levá-las adiante, quando isso exigisse
ultrapassar convenções vulgares”.
Segundo Jung (1984, p. 127), tanto a idéia de mal quanto a de bem são constituições
da estrutura coletiva da psique. Por estarem ainda no início de um processo de
diferenciação pessoal e terem a função mental predominantemente coletiva, as civilizações
primitivas consideram verdadeira a atuação de ambos simultaneamente sem passar por
contradições e sem caráter pessoal.
“A contradição só aparece quando começa o desenvolvimento pessoal da psique e
quando a razão descobre a natureza irreconciliável dos opostos. A conseqüência desta
descoberta é o conflito da repressão. Queremos ser bons e portanto devemos reprimir o
mal; e, com isto, o paraíso da psique coletiva chega ao fim.” (Jung, 1984, p.127)
A repressão da psique coletiva foi uma condição necessária para o desenvolvimento
da personalidade. Tal desenvolvimento parece ter início a partir do momento em que se
instaura o prestígio mágico, em que um dos membros da tribo se destaca frente aos demais.
O indivíduo que ocupa lugar de destaque possui, em geral, o poder do conhecimento sobre
rituais e, dessa forma, se diferencia, sendo afastado da psique coletiva aparente e formando
a persona. Embora exista esse afastamento, Jung observa que a diferenciação tem princípio
na própria coletividade: aquele que se destaca se destaca porque existe um coletivo que o
coloca nesse lugar, oferecendo-lhe o poder de guiá-lo. Assim, o poder não se trataria de um
atributo unicamente pessoal, mas inicia-se a partir de um acordo coletivo. O prestígio
mostra-se mais como uma conseqüência da escolha coletiva do que como desejo de poder
ou característica individual. No entanto, se priorizar a psicologia coletiva, o indivíduo
poderá esmagar e desvalorizar a personalidade. Isso sufocaria a autoconfiança ou
intensificaria a importância do ego, levando-o eventualmente a uma patológica vontade de
poder (Jung, 1984, p.23)
Anima e Animus
“Em vez de aprender de cor as técnicas espirituais do Oriente e querer imitá-las, numa
atitude forçada, de maneira cristã – imitatio Christi – , muito mais importante seria procurar ver se
não existe no inconsciente uma tendência introvertida que se assemelhe ao princípio espiritual
básico do Oriente”. (Jung, 1982, p.9)
Coletividade
O Satori, a Individuação e o Eu
Uma das semelhanças dos objetivos do zen e da psicologia analítica pode estar no
objetivo primordial do satori e da individuação: a harmonização do ser junto à coletividade.
Além disso, o fato de a possibilidade de atingir o satori estar potencialmente
presente em qualquer pessoa, como sugere o zen-budismo, aproxima-se da idéia de que há,
na herança psicológica universal, os elementos que levam à individuação. Entretanto, a
psicologia analítica necessita da mediação do eu para chegar à individuação, caso contrário,
diz-se que a personalidade fica sob domínio dos elementos inconscientes e toma
características patológicas. Jung fala de uma integração desses conteúdos em que o eu
aparece como uma instância necessária para organizá-los.
No caso do zen, fica claro em seu discurso que o eu se exclui totalmente da
manifestação do satori. Entretanto, a impressão que se tem é que a função e a descrição do
ego tratadas pelo zen budismo se mostram bastante diferenciadas dos conceitos da
psicologia analítica, o que torna complicada qualquer comparação. O próprio Suzuki (1961,
p.43) tenta esclarecer que seria uma interpretação equivocada dizer que o zen busca um
estado de inconsciência para atingir seu objetivo final. Segundo esse autor, algumas críticas
desenvolvem uma idéia de zen em que a consciência do mundo objetivo não estaria mais
presente no sujeito, que teria se perdido em um imenso vazio. O zen estaria além desse
vazio, estaria além da inconsciência também. Deixam-se os conceitos para entrar em uma
dimensão onde não existem conflitos entre eles. Quando o zen diz que o eu deve ser
anulado, talvez antes esteja implicada a morte de qualquer coisa que se possa nomear ou
delinear, numa tentativa de estar livre para a experiência direta, longe de qualquer coisa
que, para o zen, signifique imposição. Talvez o que seja interessante destacar nesse
momento seria uma condição metafísica do zen, uma condição sagrada da morte para o
renascimento. O zen se encontra não apenas na morte de nossos dualismos, mas no
renascimento do sujeito dentro do domínio do sagrado, o que não nos desvincula do mundo
objetivo, mas nos transforma em observadores que atribuem a esse mundo um olhar
sagrado. Haveria a morte do eu presente na esfera do profano e o nascimento de um Eu
sagrado,este afastado do conceito de morte. Uma passagem de Susuki ilustraria isso:
“...para compreender o Zen temos que dar um salto. Um ‘imenso vazio’ tem de ser
atravessado. O indivíduo tem de despertar do estado de inconsciência, caso ele não deseje ser
sepultado vivo. O Zen é atingido quando a ‘auto-intoxicação’ é abandonada e o ébrio é realmente
despertado em seu eu mais profundo. Se, todavia, temos de assassinar, a mente deixa o trabalho nas
mãos do Zen. Será o Zen que restituirá ao assassinado um estado de vida eterna.” Susuki (1961,
p.43)
Salvo todas as diferenças existentes entre a teoria e prática da psicologia analítica e
a atitude zen, percebemos na fala anterior alguma semelhança entre as duas no que diz
respeito à importância do despertar de um estado totalmente inconsciente. De certa forma, a
pretensão zen de despertar um “eu mais profundo”, desprendendo-se da “auto-intoxicação”
talvez proveniente do estado de inconsciência desestruturada, parece estar próxima da
importância dada pela psicologia ocidental à conscientização de conteúdos que estariam
inconscientes. Assemelha-se também à Psicologia Analítica quando esta atribui ao ego a
medição e discernimento de conteúdos inconscientes coletivos e pessoais. Isso nos leva a
imaginar que o satori poderia ser, então, comparado à individuação também em termos de
conscientização, aceitação e distinção de alguns conteúdos inconscientes, sempre
lembrando da dimensão sagrada dada pelo zen.
Referências Bibliográficas
Coomaraswamy, A.K. (s/ d.). O Pensamento Vivo de Buda. São Paulo: Livraria Martins
Editora.
Eliade, M. (1992). O Sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins
Fontes.
Jung, C.G. (1984). O Eu e o Inconsciente.Obras completas de C.G. Jung (vol. VII/2) (D.F.
da Silva, Trad.) Petrópolis: Vozes (trabalho original publicado em 1971)
Jung, C.G. ( 2003). Os Arquétipos e o Inconsciente. Obras completas de C.G. Jung (vol.
IX/1) (M. L. Appy & D.M.R.F. da Silva, Trad.) Petrópolis: Vozes (trabalho original
publicado em 1976)
Silveira, N. da (2003). Jung. Coleção Vida & Obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Suzuki, D.T. & Fromm, E. (1989). Zen-Budismo e Psicanálise. (O.M. Cajado, Trad.) São
Paulo: Cultrix. (trabalho original publicado em 1960)
Watts, A.W. (1972) Psicoterapia Oriental e Ocidental (J. Veiga, Trad.) Rio de Janeiro:
Record. (trabalho original publicado em 1961)