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DOUGLAS CRIMP

Tradução de Beatriz Sidou

Estudos
culturais,
cultura visual

78 REVISTA USP, São Paulo, n.40, p. 78-85, dezembro/fevereiro 1998-99


arte e contemporaneidade Até bem pouco tempo atrás, quando alguém me
pedia para falar sobre arte, eu explicava que nos últimos
DOUGLAS CRIMP
é professor de História da
Arte e Estudos Culturais
na Universidade de
dez anos não estava muito envolvido com ela, mas me Rochester e curador de
várias exposições. Foi
dedicava a escrever e dar palestras sobre a Aids. Mais ou editor da revista October.
Entre seus vários livros
menos, sentia que havia encerrado o capítulo da minha publicados, destaca-se
On the Museum's Ruins
vida em que me considerava essencialmente um crítico (Cambridge MIT Press).

de arte. Quando reuni minha crítica de arte dos anos 80

em On the Museum’s Ruins (Sobre as Ruínas do Museu),


tencionava dar um fim a essa fase de meu trabalho; na

introdução do livro, alinhei meu novo projeto intelectual


com os estudos culturais. Minha nova obra foi publicada

sob esses auspícios; eu havia começado a dar aulas num


programa de graduação chamado Estudos Culturais e

Visuais. Somente esta rubrica parecia adequada para

descrever meu interesse em novos movimentos sociais


aliado a análises de fenômenos culturais.

Agora, para surpresa minha, descubro que quero

voltar a pensar e escrever sobre arte. Confesso meu


espanto. O cenário das artes me parece uma mixórdia de

interesses, direções e estilos fragmentados e rivais entre


si. Há uma lição nisso. Talvez seja necessário renunciar

ao impulso de conhecer, dominar e ajustar a arte do


presente a uma boa genealogia da vanguarda. Talvez seja

o caso de encontrar-se um novo modelo de análise.

Esse modelo já apareceu e já começou a ter influ-

ências produtivas no campo da história da arte – tantas,


que já foi bastante atacado. Trata-se dos estudos culturais;

creio que descobriremos parte de sua força examinando


os ataques. Hal Foster observou recentemente: “Filoso-

ficamente, os estudos culturais não têm muito a oferecer.


Eles se introduzem furtivamente numa idéia antropoló-
1 Scott Heller, “Visual Images
Replace Text as Focal Point of
gica frouxa de cultura e numa frouxa idéia psicanalítica de May Scholars”, in The
Chronicle of Higher Education,
imagem” (1). Foster estigmatiza o “falso populismo” dos 19/7/1996, p. A8.

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estudos culturais. Sua acusação é apoiada identificados com a esquerda.
por Martin Jay, que reclama de um “nivela- Antes de prosseguir, quero tentar enten-
mento pseudopopulista de todos os valores der um pouco a confusão das palavras. Es-
culturais”. Thomas Crow se refere a um tudos culturais, cultura visual e estudos vi-
“impulso equivocadamente populista” e suais são expressões em geral utilizadas sem
também faz eco à impressão de Foster de distinção nas discussões atuais, embora às
que os estudos culturais brincam com seus vezes se façam algumas, como escreve
modelos de análise. Crow escreve: “Sub- Rosalind Krauss em seu ensaio “Welcome
meter uma história da arte a uma história de to the Cultural Revolution” (“Bem-vindos à
imagens significará uma desabilitação da Revolução Cultural”), em October: “Os es-
interpretação, um reconhecimento e uma re- tudos visuais não fazem muito para se loca-
presentação inevitavelmente equivocadosde lizarem no modelo de seu modelo [os estu-
uma área de profundo esforço humano”. dos culturais]” (4) (nesse caso, o modelo
As afirmações de Jay e de Crow surgi- primeiro é a psicanálise). Portanto, os estu-
ram a partir de respostas a um questionário dos visuais são vistos como secundários em
sobre a cultura visual, que foi a peça central relação aos estudos culturais. Em seu ensaio
de um número especial recente da revista “O Arquivo sem Museus”, publicado em
October dedicado ao tema (2). October, Foster também observa esta posi-
Rosalind Krauss, editora de October, ção secundária, mas relativa a outro mode-
como Foster, é bem menos sutil a respeito lo: “Os estudos culturais continuam sendo a
da questão da perda das habilidades disci- fonte imediata do modelo etnográfico na
plinares, conseqüente dos estudos visuais. cultura visual” (5). Foster prefere cultura
Ela é citada num artigo em Art News, inti- visual a estudos visuais, pois deseja analisar
tulado “What Are They Doing to Art a transformação da história da arte em cul-
History?” (“O que Estão Fazendo com a tura visual, ou, como ele diz, traçar “a mu-
História da Arte?”): dança de arte para visual e de história para
cultura” (6).
“Os estudantes dos cursos de pós-gra- Apenas para sermos mais claros, pode-
duaçãoem história da arte não estão apren- ríamos dizer que a cultura visual é o objeto
dendo as habilidades necessárias para inter- do estudo nos estudos visuais, uma área
pretar as obras de arte. Em vez disso, estão mais estreita dos estudos culturais. Por ra-
fazendo estudos visuais – um monte de ce- zões que se esclarecerão mais adiante, não
nários paranóicos sobre o que acontece sob quero dar maiores definições dessas expres-
o patriarcado ou sob o imperialismo” (3). sões. Direi apenas que não vejo nada a
ganhar quando estreitamos os estudos cul-
Embora seja difícil distinguir a afirma- turais, especificando seus objetos como
ção de Krauss dos ataques dos críticos da ala visuais – contudo, esse estreitamento é útil
direita da academia por uma série imensa de e até necessário para os argumentos que
pecados cometidos em nome do multi- diversos críticos dos estudos visuais dese-
culturalismo e do politicamente correto, aqui jam apresentar. A necessidade da palavra
2 “Visual Culture Questionnaire”, não me preocuparei com esses críticos. A visual vinculada a essa área de estudo por
in October 77, 1996, pp. 25- meu ver, eles estão absolutamente corretos Foster e Krauss é sua associação com a fase
70.
em seu diagnóstico de que os estudos cultu- mais avançada do capitalismo de consu-
3 Scott Heller, “What Are They
Doing to Art History?”, in rais têm motivação política. Ainda que es- mo. Em October esta associação é propos-
ARTnews, janeiro de 1997, p. ses estudos distorçam, caricaturem e inter- ta em uma das quatro perguntas apresenta-
105.
pretem mal as posições dos estudos cultu- das no questionário.
4 Rosalind Krauss, “Welcome to
the Cultural Revolution”, in rais, não há dúvida de que levam a sério uma Alguém sugeriu que a condição prévia
October 77, 1996, p. 96.
ameaça plenamente intencional ao privilé- dos estudos visuais como rubrica inter-
5 Hal Foster, “The Archive
Without Museums”, in October
gio, à exclusão e à injustiça de sempre. Ao disciplinar é uma concepção recém-elabo-
77, 1996, p. 104. contrário, o que me interessa aqui é o ataque rada do visual como imagem descorpo-
6 Idem, ibidem. aos estudos culturais de parte dos críticos rificada, recriada nos espaços virtuais de

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troca de signos e projeção fantasmagórica. da mídia, a imagem muitas vezes é tratada
Além do mais, embora este novo paradigma como projeção – no registro psicológico do
da imagem tenha surgido na interseção entre imaginário, no registro tecnológico do si-
os discursos da psicanálise e da mídia, ago- mulacro ou em ambos: isto é, como um
ra ele assume um papel independente de fantasma duplamente imaterial” (10).
uma específica mídia. Como corolário,
sugere-se que, em sua modesta maneira aca- E essa “rarefação de efeitos óticos e...
dêmica, os estudos visuais estão ajudando fetichização de significantes visuais não é
a produzir os assuntos para a nova etapa do estranha ao espetáculo capitalista” (11).
capital globalizado (7). Um lugar óbvio para começar uma re-
Quando lemos os ensaios de Krauss e futação a esse argumento seria o uso da
Foster, descobrimos que essa questão é um teoria psicanalítica nos estudos culturais e
resumo do argumento que ambos apresen- visuais. Nas análises de quem um relato da
tam – algo mais ou menos assim: a próxima identificação sugere que, nas palavras de
etapa do capitalismo global é caracterizada Krauss, funciona encontrar o sujeito como
por uma alienação ainda maior da experi- “uma reprodução da constelação visual sem
ência trazida pela revolução da cibernéti- nenhuma outra opção, a não ser receber ou
ca, em que tudo deve ser desmaterializado internalizar”? Embora Krauss afirme que
e digitalizado para ser prontamente consu- o trabalho em estudos visuais dependa da
mido. “Em sua modesta maneira acadêmi- teoria lacaniana da fase do espelho para
ca”, os estudos visuais estão ajudando a essa descrição, quem, dentre os pratican-
preparar os sujeitos para esta revolução, tes dos estudos visuais, lendo Lacan, não
acostumando-os a essas imagens soltas – entenderia que essa identificação imagi-
ou seja, imagens niveladas à equivalência nária divide o sujeito por sua alienação e
como pura informação, desconectadas de deixa de corresponder à imago que a ela
suas histórias, contextos sociais e modos chega vinda de fora? Teria Krauss lido a
de produção – “tantas imagens-textos, tan- obra mais recente dos estudos culturais
tas informações-pixels”, como diz Foster sobre o tema da identificação – o
(8). Para realizar essa tarefa, os estudos Identification Papers de Diana Fuss, por
visuais se voltam para a teoria psicanalíti- exemplo? Uma única sentença da introdu-
ca, que remonta a pouco mais do que os ção de Fuss refuta o argumento de Krauss:
meios pelos quais um sujeito é diretamente “As identificações jamais são levadas ao
construído através de sua identificação com fechamento total; identificações inevita-
imagens culturais e assim preparado para velmente são falhas” (12).
consumi-las, como é indispensável na últi- Aqui não pretendo afirmar que os estu-
ma etapa do capitalismo global. Krauss dos visuais jamais se voltariam para algo
afirma isto claramente: tão antipsicanalítico como uma descrição
sociológica da internalização como sim-
“[…] essa idéia ampliada de consumo é ples internalização. Trata-se antes do fato
logicamente coerente em relação à estrutu- de que as questões de identificação e sub-
ra de identificação em que uma poderosa jetividade não foram decididas nesse cam-
imagem convincente – ilusória, po da investigação. Ao contrário, elas são
fantasmagórica, onírica, alucinatória – o sujeito de discussões produtivas em an- 7 Idem, ibidem, p. 25.
abraça e descobre o sujeito como reprodu- damento. 8 Idem, ibidem, p. 114.
ção da constelação visual que ele (ou ela) Apesar de tudo, Krauss também reco-
9 Krauss, op. cit., pp. 90-1.
pode apenas receber e internalizar” (9). nhece a undecidability dos estudos cultu-
10 Foster, op. cit., p. 106.
rais ao citar aprovadoramente o clássico
11 Idem, ibidem, p. 107.
E Foster concorda: ensaio de Meaghan Morris, “Banality in
12 Diana Fuss, Identification
Cultural Studies” (“A Banalidade nos Es- Papers, Nova York, Routledge,
“Especialmente na cultura visual que se tudos Culturais”). Todavia, ao mesmo tem- 1995, p. 6. Fuss aqui apre-
senta um resumo das realiza-
desenvolve a partir de estudos de cinema e po ela nega esse reconhecimento quando ções da obra de Judith Butler.

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toma como representativa dos estudos cul- obra, que Morris afirma ser “entender e
turais a obra que Morris critica – e não a estimular a democracia cultural”; em vez
crítica em si. Krauss se volta para Morris disso, se opõe a seus métodos etnográficos
para a discussão da mudança dos estudos unself-reflexive – que não se responsabili-
culturais de uma análise da produção para zam pelo “próprio investimento do analis-
a do consumo, visto como “bem mais do ta – certo reconhecimento do papel duplo
que simples atividade econômica; é algo da transferência” (15). Um resultado des-
que também tem a ver com sonhos, conso- sa falha do analista da cultura popular é a
lo, comunicação, enfrentamento, imagem, identificação com “as pessoas” – tais como
identidade” (13). Por uma série de razões, as pessoas que “não têm nenhuma caracte-
é problemática a referência de Krauss a rística definidora” a não ser “o emblema
Morris assim como a sua adoção dessas alegórico textualmente delegado da pró-
frases – a começar pelo fato de que a lin- pria atividade do crítico. Seu etnos pode
guagem atribuída por Krauss a Morris na ser construído como outro, mas é usado
verdade é por este citada do Consumismo e como a máscara do etnógrafo” (16).
Contradições, de Mica Nava. Além do mais, Passando algum tempo com “Banality
a resposta de Morris a Nava é considera- in Cultural Studies”, o famoso ensaio de
velmente mais complexa do que a de Morris, não quero apenas mostrar a pouca
Krauss. O trecho completo do texto de atenção que aparentemente Krauss dedi-
Morris citado por Krauss é o seguinte: cou a seus elegantes argumentos comple-
xos, mas gostaria de compará-los com os
“Entre as teses habilitadoras [de Mica Nava] de Hal Foster em sua crítica ao “modelo
– e eram realmente habilitadoras – estão as antropológico” da cultura visual e o que
seguintes: consumidores não são ‘viciados chama de tendência etnográfica na arte
culturais’, mas usuários atuantes e críticos contemporânea. Os argumentos de Foster
da cultura de massa; as práticas do consu- estão alinhados com o ataque de Krauss à
mo não derivam de, nem podem ser redu- teoria psicanalítica dos estudos visuais da
zidas a um espelho da produção; o consu- imagem através da atenção dos dois à ques-
mo é ‘bem mais do que simples atividade tão da alteridade, às maneiras com que ar-
econômica; é algo que também tem a ver tistas e intelectuais abordam o “outro”.
com sonhos, consolo, comunicação, Foster afirma diretamente: “A antropolo-
enfrentamento, imagem, identidade – como gia é valorizada como uma ciência da
a sexualidade, ele consiste em incontáveis alteridade; nesse aspecto, junto com a psi-
discursos fragmentados e contraditórios’”. canálise, é a língua franca da atividade ar-
tística e do discurso da crítica” (17). As
E Morris continua: idéias de Foster sobre o intelectual dos es-
tudos culturais como antropólogo faux-
“Não estou preocupada em contestar essas populista e do artista como etnógrafo apa-
13 Krauss, op. cit., p. 90. teses. Por enquanto, aceito o pacote intei- receram em uma série de ensaios além de
14 Meaghan Morris, “Banality in ro. Em primeiro lugar, estou interessada na sua contribuição ao número de October
Cultural Studies”, in John Storey
(ed.), What Is Cultural Studies? simples proliferação das reafirmações e, sobre a cultura visual. Elas são apresenta-
A Reader , Londres, Arnold, depois, em algumas delas, na emergência das de modo complexo e interessante em
1996, pp. 156-7.
de uma definição restritiva do sujeito ideal seu livro The Return of the Real (O Retorno
15 Idem, ibidem, p. 156.
versado em estudos culturais” (14). do Real).
16 Idem, ibidem, p. 158.
O livro de Foster talvez seja o melhor
17 Hal Foster, The Return of the
Real, Cambridge, Mass., MIT Morris entra em casos específicos des- estudo sinóptico até hoje existente das no-
Pres, 1996, p. 182. sa “definição restritiva do sujeito ideal vas correntes significativas da arte. Sua
18 Idem, ibidem, p. 157. versado” na obra de John Fiske e Iain ambição é proporcionar a esta arte uma
19 Idem, ibidem, p. 203. Chambers, cujos pressupostos etnográficos genealogia na vanguarda, tanto a histórica
20 Idem, ibidem. e populistas ela submete à crítica incisiva. quanto a neovanguarda do pós-guerra. Ao
21 Idem, ibidem, p. 173. Sua crítica não se opõe aos objetivos dessa argumentar persuasivamente a favor de um

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uso diferente do modelo de Peter Bürger, armadilha da arte e da teoria que levantam a
pressupondo a importância da questão da diferença é que “se o artista evo- Renée Green,
Nachträglichkeit, a ação acatada, Foster cado não é percebido como um outro social
acompanha seu modelo desde o e/ou culturalmente, ele (ou ela) terá apenas Import/Export
minimalismo, pop-art e a virada textual na um acesso limitado à alteridade transfor- Funk Office,
arte conceitual até “o retorno do real” e “o madora; se é realmente percebido/a como
(detalhe),
artista como etnógrafo”, dois capítulos que outro/a, automaticamente terá este acesso”
tratam mais explicitamente da arte do pre- (21). Isto “restringe nosso imaginário polí- 1992; abaixo,
sente. Não posso aqui fazer justiça à com- tico a dois campos, os abjetadores e o Mary Kelly,
plexidade dos argumentos de Foster, mas abjetado e ao pressuposto de que, para não
desejo levantar algumas questões sobre suas ser considerado sexista ou racista, deve-se
Historia
conclusões. passar a ser o objeto fóbico desses sujeitos”. (detalhe)
Em The Return of the Real, depois de
traçar a genealogia de certas obras de
Warhol e do hiper-realismo, depois de um
discurso sobre Cindy Sherman, Foster se
preocupa com a que foi recentemente cha-
mada de arte abjeta, para onde, segundo
seu argumento, o real retorna como trau-
ma. Entre seus exemplos estão Robert
Gober, Kiki Smith, Mike Kelly e Paul
McCarthy. Foster adverte contra dois peri-
gos nessa obra, ambos representando o que
chama de “inveja da abjeção”: primeiro
“identificar com o abjeto e abordá-lo de
algum modo” e, segundo, “representar a
condição da abjeção para provocar seu fun-
cionamento: apanhar a abjeção no ato,
torná-la reflexiva, até repelente em si. No
entanto, essa mimese também poderá
reconfirmar uma dada abjeção” (18).
No argumento de Foster, esses riscos
têm simetria com relação aos da arte
etnográfica, em que a própria “reflexividade
[…] necessária para proteger contra uma
identificação exagerada com o outro (atra-
vés do compromisso, do self-othering e as-
sim por diante) […] poderá comprometer
essa diversidade” (19). Aqui, entre os
exemplos de Foster estão Renée Green,
Mary Kelly, Lothar Baumgarten, Fred
Wilson, Jimmie Durham e Edgar Heap of
Birds. Neste caso, Foster deu ao artista uma
posição mais viável: o que chama de posi-
ção “paraláctica” em que a obra “tenta en-
quadrar aquele que enquadra enquanto este
enquadra o outro” (20). No entanto, tam-
bém isso contém lá seus riscos, pois “a
reflexividade pode levar a um hermetismo
e até a um narcisismo, em que o outro é
obscurecido, o ego exaltado”. Por fim, a

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O próprio Foster sugere o meio pelo qual julgado em relação aos padrões artísticos
sua oposição pode ser superada, sua idéia do passado”, contra “um valor de interes-
de paralaxe em que aquele que enquadra é se de vanguarda, provocado pelo teste dos
Jimmie enquadrado, em que o sujeito do discurso limites culturais no presente” (22). Este é
deve ajustar contas com a sua própria posi- o projeto genealógico do livro de Foster.
Durham, Often
ção, parcialidade, identificação, com seus No entanto, uma distância crítica que
Durham próprios interesses e cacifes. Talvez por- tenta apenas contar pela ação acatada das
Employs..., que esta idéia não seja muito sua, porque de práticas da vanguarda no presente pouco
fato é essencial no trabalho em estudos oferece como crítica de vanguardismo in-
1980s; abaixo, culturais, Foster não usa esse discurso. Sua telectual, em que o crítico no papel de su-
Lothar exigência de que a paralaxe contribua para jeito universal permanece não-especifica-
a maneira como pensamos a questão da do, de fora, acima da desordem, imperiosa-
Baumgarten,
“distância crítica” não se estende a seu mente determinando e apontando todos os
America próprio discurso que, em suas próprias riscos no caminho. Na introdução ao nú-
Invention análises, deixa-o apenas com o modelo da mero de October sobre a cultura visual, os
ação acatada. Foster aqui se preocupa em editores escrevem: “Grupos de professores
(detalhe), manter um equilíbrio entre o que ele cha- declaram-se agora uma vanguarda, ainda
1993 ma de “critério disciplinar de qualidade, que localizada numa academia” (23).
Rosalind Krauss em seu ensaio esclarece
exatamente o que significam esses “gru-
pos”: “Os estudos culturais sempre decla-
raram ser revolucionários, a vanguarda
dentro da academia” (24).
Isso me parece representar muito equi-
vocadamente reivindicações feitas em
nome dos estudos culturais. Um dos teores
essenciais das discussões dos estudos cul-
turais tem sido a contestação do papel de
vanguarda do intelectual em relação à cul-
tura e às leituras culturais que estuda. Con-
tudo, meu objetivo em defender os estudos
culturais contra seus detratores não pode
ser afirmado por quaisquer definições par-
ticulares sobre o campo. Desejo antes di-
zer que os estudos culturais são significantes
para mim porque se definem como especi-
ficamente políticos, reconhecendo que a
política é o espaço em si da contestação.
Desnecessário dizer que isso não garante
qualquer política particular à frente, seja
de cultura popular ou qualquer outra.
Dizer que os estudos culturais são qua-
se obsessivamente auto-reflexivos, obce-
cados com a própria genealogia, talvez seja
uma explicação melhor. Uma coleção re-
cente chamada O que São os Estudos Cul-
turais? compreende vinte e dois ensaios
escritos num período de quinze anos em
torno dessa genealogia e este não é senão
uma amostra daqueles artigos. Num exem-
plo não incluído no livro, “Cultural Studies

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Fred Wilson,
Mining the
Museum, 1992

and Its Theoretical Legacies” (“Os Estu- dos estudos culturais será necessariamente
dos Culturais e seus Legados Teóricos”), localizada, interessada e parcial.
Stuart Hall, que escreveu inúmeros artigos Se “a mudança da história da arte para
sobre a genealogia desse terreno, afirma a cultura visual é marcada por uma mudan-
sobre os estudos culturais: “Não é apenas ça nos princípios de coerência de uma his-
qualquer coisa velha” (25). Concordo, mas tória do estilo ou uma análise da forma,
acrescentaria: também não poderia ser qual- para uma genealogia do sujeito,” como diz
quer coisa. Certamente podemos discutir Foster (28), o verdadeiro significado desse
sobre o que seja, o que não seja e o que movimento é que este sujeito – fosse o
deveria ser, como faz Cary Nelson sujeito espectador, a audiência popular, o
prescritivamente em seu “Always Already fã, o sujeito construído na representação,
Cultural Studies” (“Sempre já os Estudos realmente o outro – não pode ser teorizado
Culturais”) (26), mas isso não impedirá que de uma posição exterior a essa genealogia. 22 Idem, ibidem, p. xi.
alguém apresente um argumento diferente. O sujeito do discurso não pode estar isento
23 Rosalind Krauss e Hal Foster,
Significa que os estudos culturais são das questões de historicidade, do ego e do “Introdução”, in October 77,
1996, p. 4.
genealógicos no sentido em que Foucault outro, que são levantadas pela própria teo-
24 Krauss, op. cit, p. 96.
vem de Nietzsche. Estudos culturais é a ria da subjetividade. Isso não quer dizer
25 Stuart Hall, “Cultural Studies and
história de suas próprias discutidas que eu esteja simplesmente inserido, que Its Theoretical Legacies”, in
autodefinições, que não serão jamais deci- automaticamente identifique ou internalize, Lawrence Grossberg, Cary
Nelson and Paula Treichler
didas. Curiosamente, Stuart Hall começa mas que também devo localizar-me a mim (eds.), Cultural Studies, New
este ensaio sobre os legados teóricos dos mesmo, meus interesses, investimentos, York, Routledge, 1992, p.
278.
estudos culturais com a seguinte afirma- suscetibilidades, identificações, desiden-
26 Cary Nelson, “Always Already
ção: “Em geral se pensa na autobiografia tificações; meus prazeres, meus medos e Cultural Studies: Academic
Conferences and a Manifesto”,
como apossando-se da autoridade do au- meus desagrados – pois a crítica genea- in Storey, pp. 273-86.
têntico. Mas, para não ser autoritário, tive lógica deve realmente envolver a paralaxe 27 Hall, op. cit., p. 277.
de falar autobiograficamente” (27). Com que Foster exige, interrogando o sujeito ao
28 Foster, “The Archive Without
isso, Hall quer dizer que a sua genealogia mesmo tempo em que interroga o objeto. Museums”, op. cit., p. 103.

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