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“Os gêneros são coleções

percebidas de enunciados.
Os enunciados são delimitados,
têm começo e fim, ocupam lugar
definido no tempo e no espaço e
são percebidos como portadores
de algum sentido.”

— Charles Bazerman. Série Bate-Papo Acadêmico. v.1


Gêneros Textuais. Recife, 2011. Disponível para acesso
em: http://www.nigufpe.com.br/serie-academica/volumes
Angela Paiva Dionisio
Larissa de Pinho Cavalcanti
Organização

Gêneros
NA LINGUÍSTICA NA LIteratura
Charles Bazerman, 10 anos de incentivo à pesquisa no BRASIL

Editora universitária UFPE & Pipa Comunicação


Recife - 2015
imagem Da capa
Picture of Dr. Charles Bazerman taken in
Santa Barbara in June of 2008. Fotografia de
Paul Rogers. Domínio público. Disponível
O trabalho Gêneros na Linguística e em: https://en.wikipedia.org/wiki/Charles_
na Literatura. Charles Bazerman: 10 Bazerman#/media/File:Chuck1.jpg.
anos de incentivo à pesquisa no Brasil
organizado por angela Paiva dionisio capa e proJeto gráFico
e editado pela Editora universitária Karla Vidal (Pipa Comunicação)
da uFPE e pela Pipa Comunicação foi
licenciado com uma Licença Creative DiagramaçÃo
Commons - Atribuição-NãoComercial- Karla Vidal (Pipa Comunicação)
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Núcleo de Investigações Sobre Gêneros
Textuais - NIG/UFPE

Catalogação na publicação (CIP)

D592

Dionisio, Angela Paiva; Cavalcanti, Larissa de Pinho


Gêneros na linguística e na literatura: Charles Bazerman, 10 anos de incentivo à
pesquisa no Brasil / Angela Paiva Dionisio; Larissa de Pinho Cavalcanti [orgs.]. - Recife:
Editora Universitária UFPE e Pipa Comunicação, 2015.
340p. : Il., Fig., quadros.

Inclui bibliografia. 1ª ed.


ISBN 978-85-415-0670-0

1. Linguística. 2. Literatura. 3. Gêneros textuais. 4. Ensino.


I. Título.

410 CDD
81 CDU
c.pc:08/15ajns
Comissão Editorial EDUFPE
Presidente: Lourival Holanda

Titulares:
Alberto Galvão de Moura Filho, Allene Carvalho Lage, Anjolina
Grisi de Oliveira, Dilma Tavares Luciano, Eliane Maria Monteiro
da Fonte, Emanuel Souto da Mota Silveira, Flávio Henrique
Albert Brayner, Luciana Grassano de Gouvêa Melo, Otacílio
Antunes de Santana, Rosa Maria Cortês de Lima, Sonia Souza
Melo Cavalcanti de Albuquerque.

Suplentes:
Charles Ulises de Montreuil Carmona, Edigleide Maria
Figueiroa Barretto, Ester Calland de Souza Rosa, Felipe
Pimentel Lopes de Melo, Gorki Mariano, Luiz Gonçalves de
Freitas, Madalena de Fátima Pekala Zacarra, Mário de Faria
Carvalho, Sérgio Francisco Serafim Monteiro da Silva, Silvia
Helena Lima Schwanborn, Tereza Cristina Tarragô Souza
Rodrigues.

Comissão Editorial PIPA COMUNICAÇãO

Editores executivos:
Augusto Noronha e Karla Vidal

Conselho Editorial:
Alex Sandro Gomes; Angela Paiva Dionisio; Carmi Ferraz
Santos; Cláudio Clécio Vidal Eufrausino; Cláudio Pedrosa;
Clecio dos Santos Bunzen Júnior; Leila Ribeiro; Leonardo
Pinheiro Mozdzenski; Pedro Francisco Guedes do Nascimento;
Regina Lúcia Péret Dell’Isola; Ubirajara de Lucena Pereira;
Wagner Rodrigues Silva; Washington Ribeiro.
Prefácio

Previsões, Desafios,
Agradecimentos

Angel a Dionisio (UFPE)

Previsões...

... este deve ser apenas o primeiro livro do autor


... outros deverão seguir em língua portuguesa
... as ideias e as posições defendidas nestes seis en-
saios (...) são frutíferas e deverão incrementar entre
nós a investigação de caráter sócio-histórico sobre
gêneros, além de motivar novas perspectivas para o
trabalho com gêneros em sala de aula.

Tais previsões foram feitas, no início de 2005,


por Luiz Antônio Marcuschi sobre Charles Ba-
zerman, quando da publicação do livro Gêne-
ros Textuais, Tipificação e Interação1, no Brasil.
Constatar a realização de previsões pode insti-
gar nossa curiosidade, aguçar nossa imagina-
ção... Como não havia dúvidas de que as intui-

1. Bazerman, C. Gêneros Textuais, Tipificação e Interação. São Paulo: Cor-


tez, 2005.
Prefácio

ções marcuschianas foram realizadas, tentei quantificá-las. Confesso


que acreditei firmemente que os recursos tecnológicos me ajudariam;
ledo engano (ou não sou tão letrada assim...). Contar os livros seria
possível, como autor individual são cinco, mas e os capítulos de li-
vros? E em Portugal? E os livros organizados com autores brasileiros
e estrangeiros, resultados dos SIGET, não seriam um prolongamento
do que fora previsto das ações bazermanianas em solo brasileiro? E
as palestras e os cursos ministrados ao longo destes 10 anos que cons-
tituem verdadeiros livros orais? Como poderia eu ter a pretensão de
quantificar? A minha ingenuidade ficou mais acentuada quando lem-
brei do próprio Bazerman, alertando que “ao construir um texto, o
escritor torna visível aos leitores alguns elementos que entraram ali,
representados de modos genericamente apropriados e colocados com
outros elementos visíveis”2. Quais artefatos externos eu traria para
comprovação? A indicação pela Revista Nova Escola do livro Gênero,
Agência e Escrita3, como leitura fundamental para o professor? Men-
cionar reedições, número de exemplares? Buscar no banco de dados
da CAPES as teses e dissertações motivadas pelos trabalhos do Prof.
Bazerman? Quantificar os acessos da entrevista com a Profa. Carolyn
Miller, disponibilizada pelo NIG? Não parecia fazer sentido. Ecoava
em minha memória uma fala de Bazerman que alertava:

“É difícil ler nossos textos pensando se eles farão sentido para


outros leitores que não nós mesmos. Afinal, fizeram sentido
para nós, que os escrevemos e, portanto, olhar para o texto
de novo pode evocar apenas a significação que já temos em
nossa cabeça.”4

2. Bazerman, C. Escrita, Gênero e Interação Social. São Paulo: Cortez, 2007, p.80
3. Bazerman, C. Gênero, Agência e Escrita. São Paulo: Cortez, 2006.
4. Bazerman, C. Retórica da Ação Letrada. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

8
Angela Paiva Dionisio

Já havia iniciado várias versões para este prefácio, mas quando


relia, elas não faziam sentindo nem para mim! Desisti de todas. E
agora, Angela? Gêneros na Lingüística & na Literatura - Charles Ba-
zerman: 10 anos de incentivo à pesquisa no Brasil está pronto, os au-
tores aguardam a publicação, os tradutores esperavam pelo livro de-
dicado ao Bazerman... E agora, Angela? Instaurou-se o caos. O livro
pronto, mas eu não conseguia escrever o prefácio. Materializava-se
a tensão entre a produção e a recepção de textos preconizada por
Bazerman. Como minimizar os riscos de interpretação e me fazer
inteligível para assegurar que as previsões de Marcuschi não preci-
savam ser mensuradas? Como dizer a Charles Bazerman que este
livro é um artefato para agradecermos o seu engajamento no Brasil
nestes 10 anos? Especialmente, como dizer a Bazerman que este pri-
meiro livro com algumas das palestras proferidas em seminários do
NIG (Núcleo de Investigação sobre Gêneros Textuais –UFPE) mani-
festa o carinho, o respeito e o reconhecimento dos niguianos pelo
seu apoio e incentivo? Como dizer que o próprio NIG-UFPE nasceu
de suas inspirações? Pareceu impossível... concordei imediatamente
que “depois de cinco milênios de escrita – em que o letramento se
entrelaçou com quase todas as atividades humanas, (...) os recursos
e as tarefas de escrita são assustadores.”5
No entanto, também sabia que o “escritor precisa aprender a ver
claramente através da ansiedade para reunir a confiança e a coragem
de escrever o que precisa ser escrito”.6 Compreendi que a melhor ma-
neira de agradecer a você, Bazerman, não é dizendo “obrigado”. É o
nosso agir profissional que deve demonstrar isto! Agradecer a você
é continuar fazendo o que você nos ensinou em sua primeira entre-
vista em março de 2005, em Recife: “a maior motivação e a forma

5. Bazerman, C. Uma teoria da ação letrada. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.
6. Bazerman, C. Uma teoria da ação letrada. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

9
Prefácio

mais efetiva de ensinar é despertar cada estudante para o sentido


de viver no mundo. Através do estudo de textos, podemos ajudar o
aluno a compreender o mundo, assim como seu papel nesse mundo.
estudar textos socialmente relevantes é estudar a sociedade. Assim,
os alunos desenvolvem habilidades linguísticas e sociais que os aju-
darão a atuar significativamente na conquista de seus interesses e
necessidades.”7
Finalizo, recorrendo a Caetano Veloso, dizendo, Bazerman, que
os seus

... livros (...) em nossa vida entraram


São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
É o que pode lançar mundos no mundo (...)
https://www.youtube.com/watch?v=AkPozzLSrsM

Assim como Caetano Veloso, consideramos que “os livros são


objetos transcendentes, mas podemos amá-los do amor táctil, domá-
-los, cultivá-los em aquários”. nós, seus amigos, reunidos neste livro,
decidimos que poderíamos “simplesmente escrever um”. Pra você,
Charles Bazerman, Chuck!

7. Entrevista ao Jornal do Commercio, 1 de março de 2005, caderno C,


Entrevista com Charles Bazerman, “A palavra é a chave de tudo”, Recife.

10
Angela Paiva Dionisio

11
SUMÁRIO
PARTE 1 - Linguística

15 Apresentando - O tecer de fios para a rede dos


estudos sobre Gêneros
Clecio Bunzen (UPFE)

23 Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?


Carolyn Miller (NCSU/USA)

63 Equívocos no discurso sobre gêneros


Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

81
Linguística dos Gêneros e Textualidade
François Rastier (CNRS, Paris/FRA)

97
Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir
de velhos gêneros
Amy Devitt (KU/USA) & Heather Bastian (CSS/USA)

123
Memórias Literárias: reflexões sobre práticas
de escrita
Beth Marcuschi (UFPE)

159
Gêneros e a construção do discurso ambiental de
campanha de Conscientização
Maria Clara Catanho Cavalcanti (IFPE)

177
A relativa estabilidade dos textos de divulgação
científica: um caso de hibridismo
Regina L. Péret Dell’Isola (UFMG)
Parte 2 - Literatura

203
Apresentando - O arquipélago dos gêneros:
uma viagem intelectual
Peron Rios (Colégio de Aplicação/UPFE)

217 Um giro através da noção de gênero em literatura


Lourival Holanda (UFPE)

233 Literatura e Teatro: a palavra no palco


Darío Sánchez (UFPE)

245
Os dois Teodoros: mutações do gótico de Horace
Walpole e E.T.A. Hoffmann
André de Sena (UFPE)

265
Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor
Fabiane Burlamaque (UPF) & Pedro Barth (UPF)

285
Poesia, Oralidade e Ensino
Hélder Pinheiro (UFCG)

303
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior:
contribuições do gênero entrevista à pesquisa e à
formação docente
Maria Amélia Dalvi (UFES)
APRESENTANDO
O tecer de fios para a rede dos
Estudos sobre Gêneros
Clecio Bunzen (UFPE)

Nós não podemos dominar a móvel rede do sentido


nem alisar o líquido tapete das analogias
Cada palavra é uma abertura para o insondável
antes de ser uma relação horizontal com as outras palavras
(...)
António Ramos Rosa, in As Palavras (2001, pp.17)

Utilizo-me aqui da metáfora da “rede” – um conceito bastante


utilizado nas Ciências Humanas – no intuito de chamar atenção para
o fato de que a publicação de uma obra faz parte de um grande sis-
tema de interação social. Se não podemos “dominar a móvel rede do
sentido” como propõe um dos versos de Rosa; torna-se sempre um
grande desafio contemplar a capacidade dos sujeitos de articulação e
rearticulação permanente para compor redes de significação. Pensar
em “redes” aponta também para o fato de que pesquisadores brasi-
leiros e estrangeiros, que se envolvem com os Estudos dos Gêneros
Textuais, têm trabalhado em “fluxos” de informação, saberes e co-
nhecimentos sobre as diferentes práticas sociais e históricas de lin-
guagem. Congressos, grupos de pesquisa, produções de coletâneas e
reuniões sobre Teorias de gêneros normalmente implicam em trocas,
em diálogos, em tensões, ou seja, em inúmeros “fios” interpretativos
sobre a vida humana com as múltiplas formas de linguagem.

15
Apresentando - O tecer de fios para a rede dos estudos sobre Gêneros

O Núcleo de Investigações sobre Gêneros Textuais (NIG) da


Universidade Federal de Pernambuco, criado em Maio de 2010, co-
ordenado por Angela Paiva Dionisio, contribui na formação desses
“fluxos” culturais de informação sobre gêneros com encontros pe-
riódicos, seminários, grupos de estudo, publicações, entrevistas em
áudio e vídeo com especialistas etc. Desta forma, o NIG tem cola-
borado para uma memória coletiva das Teorias de gêneros com suas
diversas publicações (como a série Bate-Papo Acadêmico) que são
fundamentais para a formação de pesquisadores das diversas áreas,
professores da Educação Básica, tradutores, jornalistas, psicólogos....
Tais redes de interação cultural – com pesquisadores nacionais e es-
trangeiros- dão origem a percursos, a movimentos contínuos entre
diferentes teorias, conceitos, atores, agentes e contextos.
O primeiro bloco da obra Gêneros na Linguística & na Literatu-
ra: Charles Bazerman, 10 anos de incentivo à pesquisa no Brasil é com-
posto justamente por sete artigos científicos de pesquisadores que
contribuíram com o NIG em diferentes tempos-espaços, participan-
do de processos de interação, de construção e desconstrução sobre
gêneros textuais e suas teorias. O resultado desta coletânea mostra
que as fronteiras das diversas “Teorias de gêneros” não são estáticas,
motivando inúmeras discussões e novas perspectivas de trabalho.
Cada um dos capítulos objetiva problematizar inquietações teóricas
e metodológicas de facetas que compõem esse mosaico em rede que
é as teorias dos gêneros textuais.
O primeiro capítulo – Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que
sim?- de autoria de Carolyn Miller (NCSU) – faz uma tessitura ins-
tigante com diferentes campos do conhecimento (Filosofia, Física,
Biologia, Retórica, Linguística, Literatura, Estudos midiáticos) para
chamar atenção para o fato de que os gêneros, na opinião da auto-
ra, “são formas particularmente úteis de se pensar a mudança cul-

16
Clecio Bunzen (UPFE)

tural através do tempo”. Situada no campo dos Estudos Retóricos


de Gêneros, a perspectiva transdisciplinar adotada na reflexão de
Miller, com especial diálogo com os modelos gerais da evolução do
campo da Biologia (a Seleção Natural de Darwin, por exemplo), traz
questões importantes, tais como: como os gêneros mudam? O que
permanece? Os gêneros evoluem? Se hibridizam? Se transformam?
Destaco aqui três problemáticas que são centrais no texto: (i) como
as Teorias de Gêneros lidam e refletem sobre as formas de nomeá-
-los, categorizá-los e hierarquizá-los?; (ii) quais critérios têm sido
utilizados quando identificamos algo como gênero? (iii) como os
estudos retóricos de gêneros podem nos auxiliar a pensar nas “forças
de estabilização e adaptação” dos gêneros? Essas questões (e tantas
outras!!) constituem a rede intertextual do capítulo que, ao dialogar
com a teoria evolucionária no campo das Ciências Biológicas e Hu-
manas, abrem espaço para reflexões sobre taxonomia e teleologia e
suas implicações nas Teorias de gêneros.
O segundo capítulo, intitulado Equívocos no discurso sobre gê-
neros, de Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP), retoma (em cer-
to sentido) a discussão de Miller sobre as classificações e definições
dos gêneros. Outros fios são tecidos na direção de compreendermos
como as teorias de gêneros circulam e são apropriadas em artigos
científicos, anais de congresso, revistas, sites educacionais etc. De
maneira bastante didática e com exemplos concretos, Bezerra apon-
ta algumas “confusões” ou “equívocos” entre “gênero e texto”, “gê-
nero e suporte”, “gênero e domínio discursivo”, “gênero e forma/es-
trutura” e “gênero e tipo textual”. Sua análise revela um conjunto de
apropriações que podem ser compreendidas como exemplos do que
Rafael (2001) chamou de “efeito de sobreposição” entre terminolo-
gias e noções teóricas, uma vez que os sujeitos ao mobilizarem dife-
rentes categorias (gênero e tipo textual, por exemplo) colocam “lado

17
Apresentando - O tecer de fios para a rede dos estudos sobre Gêneros

a lado termos advindos de fontes diferentes (...), mas que geram uma
contradição teórica ou não equivalência de sentido entre os termos”
(RAFAEL, 2001, p.165). Os equívocos discutidos por Bezerra demons-
tram um movimento de redução dos conceitos e sinalizam “modos
de apropriação” das Teorias de gêneros pelos sujeitos. Sua reflexão
provoca pesquisadores, formadores de professores e agentes respon-
sáveis por políticas públicas a refletirem sobre aspectos epistemo-
lógicos que são deixados em “segundo plano” no imediatismo das
formas de produção de conhecimento na escola ou na universidade.
Linguística dos Gêneros e Textualidade é o terceiro capítulo do
bloco. Escrito por François Rastier (CNRS, Paris), as provocações so-
bre “gêneros”, “discurso” e “tipologia dos textos” polemizam aberta-
mente (BAKTHIN, 1981) com algumas reflexões filosóficas e literárias.
Ao defender a importância de uma “linguística dos gêneros”, Rastier
chama-nos atenção para diferentes níveis de classificação dos textos
e suas implicações para as pesquisas de base semiótica. Ele retoma
implicitamente aspectos das Teorias de Gêneros discutidos anterior-
mente por Miller e Bezerra, apresentando para o leitor aspectos de
suas pesquisas no campo da Linguística de Corpus, com ênfase para
o fato de que: (i) podemos repensar a afirmação que “um texto per-
tence a um gênero”, invertendo-a para “o gênero pertence ao texto”;
(ii) “o gênero e o texto, de certa forma, interpretam-se mutuamente” e
(iii) “nenhum texto é escrito ‘em uma língua’ apenas, ele é escrito em
um gênero, levando-se em conta as regras de uma língua”. Partindo
de tais afirmações, é possível (re)pensar novos modos de compreen-
der a língua(gem) e a textualidade nas inter-relações entre discursos,
campos genéricos e gêneros.
Após o conjunto de temáticas elencadas por Miller, Bezerra e
Rastier, o artigo Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de
velhos gêneros, escrito por Amy Devitt (KU) e Heather Bastian (CSS),

18
Clecio Bunzen (UPFE)

traz uma preocupação pertinente para a pedagogia dos gêneros: o


que sabemos sobre os conhecimentos prévios dos nossos alunos so-
bre gêneros? Apesar de a pesquisa focalizar o ensino superior no con-
texto norte-americano, as discussões sobre conhecimentos prévios
de gêneros e a relação entre os gêneros produzidos na universidade
em diálogo com o que os alunos dizem sobre suas experiências no
Ensino Médio sugerem uma agenda de pesquisa para os profissionais
que atuam nas escolas e na universidade. De fato, se queremos en-
sinar algo para nossos alunos, não podemos ignorar o que já sabem,
quais são seus saberes, conhecimentos, relações afetivas e quais “gê-
neros antecedentes” são “potenciais para futuras situações de escrita”.
O ensino explícito dos gêneros – como acontece no Brasil e em outros
países – pode ser “ineficaz”, segundo os autores, “se o conhecimento
prévio não foi levado em consideração”. Por outro lado, ao se levar em
consideração os conhecimentos prévios dos alunos sobre os gêneros,
precisamos ter cautelas e fazer outros questionamentos, apreciando/
ponderando duas afirmações das autoras: (i) “o conhecimento prévio
tanto auxilia quanto inibe o aprendizado de novos gêneros”, cabendo
ao docente uma visão ampla do processo de aprendizagem e desen-
volvimento dos gêneros em contextos formais de ensino; (ii) “o co-
nhecimento prévio é transferido para novas situações prestativamen-
te”, por isso é importante “se defender dos obstáculos” que o próprio
conhecimento prévio cria para os produtores de textos.
Beth Marcuschi (UFPE), no artigo Memórias Literárias: reflexões
sobre práticas de escrita, fornece-nos importantes discussões sobre as
implicações das Teorias de Gêneros e sua apropriação para o contex-
to educacional. Problematiza, assim, as complexas redes dialógicas
entre as práticas extraescolares e a didatização dos gêneros, transfor-
mados via transposição didática (ou elaboração didática) em objetos
de ensino-aprendizagem. Categorização dos gêneros (o que seriam

19
Apresentando - O tecer de fios para a rede dos estudos sobre Gêneros

memórias? o que seria uma memória literária?), circulação e recepção


em diferentes contextos (onde e como as memórias circulam? Ape-
nas na literatura?), assim com a produção na escola e fora dela, são
aspectos trazidos pela autora ao analisar textos de alunos, produzidos
no âmbito da Olimpíada de Língua Portuguesa. Preocupada em com-
preender – na mesma direção de Devitt e Bastian – como os jovens
escritores aprendem a escrever em um contexto complexo de produ-
ção, as análises (do tema, das condições de textualidade e do gênero
escolarizado) indicam fragilidades, potencialidades e deslocamentos
possíveis e necessários no trabalho com gêneros na escola.
O sexto capítulo – Gêneros e a construção do discurso ambiental
de campanha de Conscientização – escrito por Maria Clara Catanho
Cavalcanti (IFPE), parte também dos estudos retóricos de gêneros
para analisar campanhas publicitárias contemporâneas. Os textos
escolhidos para análise, bem como os comentários analíticos de as-
pectos linguísticos, textuais e multimodais (cores, escolha das ima-
gens e construção das cenas), dão visibilidade as formas de mobiliza-
ção e de apropriação dos conceitos de “tipificação”, “situação retórica”
e “exigência” – exploradas também por Miller em seu artigo. O modo
como a propaganda comercial e a propaganda institucional é produ-
zida e como seus textos circulam na contemporaneidade evidenciam
a importância de estudos desta natureza. Como bem destaca a auto-
ra: “os gêneros emanam das relações humanas e também as realizam
ou as concretizam”.
Nessa mesma perspectiva reflexiva sobre aspectos da Teoria de
Gêneros, o último capítulo do primeiro bloco – A relativa estabilida-
de dos textos de divulgação científica: um caso de hibridismo – retoma
as relações explicitadas em vários artigos desta obra entre “texto” e
“discurso”. Produzido por Regina L. Péret Dell’Isola (UFMG), a inves-
tigação se volta para o gênero relatório de pesquisa, destacando as-
pectos do discurso acadêmico e do discurso de divulgação científica.

20
Clecio Bunzen (UPFE)

A questão da hibridização “como um fenômeno inerente às formações


genéricas e a intertextualidade” provoca-nos a refletir sobre as múlti-
plas facetas das esferas das atividades humanas, com destaque para a
esfera acadêmica e da divulgação científica. Sua análise detalhada do
texto “Confirmado: o brasileiro é doido varrido” traz novamente para a
cena da teia construída em em “Gêneros na Linguística & na Literatu-
ra”: as formas de categorização dos gêneros, dos processos retóricos de
sua produção, da intertextualidade (na acepção de Bazerman, 2006),
da hibridização de práticas sociais e da tessitura híbrida e heterodis-
cursiva dos textos (na acepção de Bakhtin, [1930-36] 2015).
Isto posto, desejo que os leitores desta obra possam inspirar-se na
metáfora da rede para (re)construir suas réplicas responsivas em con-
versas, artigos científicos, relatórios de pesquisa, memórias, e-mails,
árvores genealógicas, poemas... E que a leitura dos artigos possa pro-
porcionar sentimentos de (des)construção, de permanências e de pos-
síveis rupturas das nossas (in)certezas, tais como as escolhas feitas
pela moça tecelã de Marina Colasanti.

(...) Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu


uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, deli-
cado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.
Marina Colassanti, in A moça Tecelã. Global, 2006, p. 14.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Teoria do Romance I: A estilística. Tradução de Paulo Bezerra.


São Paulo: Editora 34, 2015.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Ed.
Forense-Universitária, 2002.
BAZERMAN, Charles. Gênero, agência e escrita. São Paulo: Cortez, 2006.
RAFAEL, Edmilson. Atualização em sala de aula de saberes linguísticos de
formação: os efeitos da transposição didática. In: Angela Kleiman (Org.) A
formação do professor: perspectivas da Linguística Aplicada. Campinas, São
Paulo: Mercado de Letras, 2001.

21
PARTE 1
Linguística
1
GÊNEROS EVOLUEM?1
DEVERÍAMOS DIZER QUE SIM?2
CAROLYN R. MILLER (NCSU/USA)3

“Sobre aqueles que pisam no mesmo rio fluem


outra e ainda outras águas...”
Heráclito (DK22B12)

Prólogo

Heráclito supostamente disse que tudo está em movimento,


você não pisa duas vezes no mesmo rio. Conhecido apenas por fon-
tes secundárias e anedotas, ele supostamente sofria de melancolia e
morreu de hidropisia decorrente de uma tentativa malsucedida de
autotratamento em um monte de esterco. Era chamado de “obscuro”
por seus contemporâneos e de “filósofo chorão” pelos Romanos, e
ele teria mesmo chorado, se tivesse previsto o ridículo imposto por
seus sucessores aos seus pensamentos sobre as mudanças. Platão e
Aristóteles o acusaram de negar a lei da não contradição, defenden-

1. Texto publicado com a permissão da Canadian Association for the Study of Language and Learning.
Há um acordo para publicação da versão original “Genre Change and Evolution,” no livro Genre Studies
around the Globe: Beyond the Three Traditions, editado por Natasha Artemeva e Aviva Freedman.
Edmonton, Alberta: Inkshed Publications, no prelo.
2. Tradução de Larissa de Pinho Cavalcanti (UFRPE), revisão de Rodrigo Farias de Araújo (UFPE), revisão
e coordenação de tradução Judith Hoffnagel (UFPE).
3. crmiller@ncsu.edu

23
Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

do a identidade de opostos, e alegando que tudo que é o mesmo é,


na verdade, diferente. Até hoje, filósofos discordam em como inter-
pretar sua afirmação misteriosa sobre o rio. Teria ele dito que o rio
é e não é o mesmo rio? Ou teria ele dito, como alguns sugerem, que
“rios podem permanecer os mesmos com o tempo, mesmo que, ou
talvez porque, as águas mudam”, isto é, a estabilidade de estruturas
maiores só seria possível devido ao fato de que seus elementos cons-
tituintes mudam (GRAHAM, 2005)?4
Tem sido menos difícil para nós, agora, aceitar a noção de que
tudo está de fato em fluxo constante, nos níveis microscópico e cós-
mico: sabemos que o universo se expande, que há ondulações da
luz, movimento Browniano, spin do elétron, placas tectônicas desli-
zantes, erosão dos cânions e a elevação das montanhas, a origem e
a extinção das espécies. Mas minha premissa é que, no século XXI,
ainda temos dificuldades para entender a igualdade e a diferença,
a estabilidade e a mudança, a tradição e a inovação no mundo das
experiências humanas. Os estudos de gêneros fazem parte dessa
dificuldade.

Pensamentos evolucionistas nos


estudos de gêneros

Parece não haver dúvidas de que estamos em um período de


dramática mudança de gêneros: novas formas e capacidades se de-
senvolvem todo dia, com alegações incessantes nas notícias onli-
ne e blogs de que isto ou aquilo é um “novo gênero”. Alguém que
procure no Google ou Lexis-Nexis irá encontrar inúmeras dessas

4. Ver também Kirk et al., que sugerem que “a unidade do rio como um todo é dependente da regularidade
do fluxo de suas águas constituintes”; que “um todo complexo...pode permanecer ‘o mesmo’ enquanto
suas partes estão sempre mudando (KIRK, G. S. et al., 1983).

24
Carolyn Miller (NCSU)

alegações na mídia, nos materiais promocionais e conteúdos na in-


ternet gerados por usuários, incluindo gêneros como aristocrunk,
steampunk, pornô tortura, haul videos, lolcats, fanfic, kiddie noir,
chillwave, mocumentário, e dirtbags sitcoms. É atordoante. Parece
que precisamos de gêneros para nos ajudar a fazer sentido dessa
intensa e crescente confusão de gêneros para nos ajudar a nos lo-
calizarmos na “loucura e [no] trivial” desse mundo sociocultural
mediado (HEFFERNAN, 2009).
Tentando entender o processo de mudança dos gêneros e a
emergência do que parecem ser “novos gêneros” em mídias novas e
velhas, passamos a nos apoiar fortemente no conceito de “evolução”.
Esse é um termo que, em inglês, pelo menos, é normalmente asso-
ciado à mudança biológica e à diversidade, de modo que se poderia
perguntar se é apropriado usá-lo para se referir a mudanças sociais e
discursivas. O que ele faz ou nos impede de fazer? Quando adotamos
a língua da evolução, o que importamos para nossas conceptualiza-
ções de gêneros, de ações retóricas de larga escala, e de organizações
retóricas da cultura? Como Berkenkotter já havia perguntado, “quão
literalmente – ou heuristicamente – devemos tomar o conceito de
‘evolução de gêneros’?” (BERKENKOTTER, 2007).
A linguagem da “evolução” permeia obras recentes sobre gêne-
ros, não somente nos estudos retóricos (JAMIESON, 1973; JAMIE-
SON, 1975; BAZERMAN, 1984; MILLER, 1984; BERKENKOTTER e
HUCKIN, 1993) e na linguística (HYLAND, 2002; HERRING et al.,
2005; SKULSTAD, 2005; AYERS, 2008), mas também nos estudos
literários (FOWLER, 1971; JAVITCH, 1998; DIMOCK, 2007) e estudos
midiáticos (filme e televisão) (FEUER, 1992; ALTMAN, 1999; MIT-
TELL, 2001), bem como nas ciências da informação e estudos de no-
vas mídias (LIESTØL, 2006; CLARK et al., 2009; KANARIS e STA-
MATATOS, 2009; PAOLILLO et al., 2011). De fato, não parecemos ter

25
Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

nenhuma outra linguagem para descrever como os gêneros mudam


com o tempo5. A linguagem da evolução (incluindo metáforas bioló-
gicas relacionadas, tais como “cromossomo”, “ancestral” e “genealo-
gia”) invoca uma analogia entre mudanças culturais e mudanças or-
gânicas ou biológicas com o tempo. Essa analogia contribui para os
estudos de gêneros com um modelo que inclui tanto mudanças dia-
crônicas quanto variações sincrônicas. Com a mudança diacrônica,
percebemos as relações, isto é, uma explicação de continuidade atra-
vés da herança ou influência com o tempo. Com a variação sincrô-
nica, percebemos as formas alternativas e “semelhanças familiares”,
as diferenças e semelhanças coexistentes em vários graus. Ambas
as dimensões contribuem para a explicação da adaptação ou “valor
adaptativo” [fitness], o resultado aparente de um processo competi-
tivo pelo qual variações são selecionadas e preservadas, produzindo
mudanças (graduais). “Valor adaptativo”, curiosamente, é um termo
frequente em ambas as teorias, retórica e evolucionária: Darwin veio
a usar a frase de Herbert Spencer, “sobrevivência do mais adaptado”
como sinônimo para “seleção natural”6, e retóricos adotaram a ex-
pressão de Bitzer, “resposta adaptada”, como o discurso que é adap-
tado a sua situação (BITZER, 1968); nós também usamos a antiga
noção de decorum (1968). A descrição de Schryer de gêneros como
coleções de características variáveis que são “suficientemente está-
veis” ou “temporariamente estabilizadas” capturam bem esse pro-

5. Berkenkotter sugere que o modelo revolucionário de Kuhn de mudanças de paradigma é mais descritivo,
pelo menos para o estudo de caso psiquiátrico. E um importante estudo novo de Wells oferece um sistema
metafórico espacial ou geográfico para compreender os gêneros, sendo especialmente útil para textos
mistos ou duvidosos, como a Anatomy of Melancholy de Richard Burton (WELLS, 2014).
6. Embora não apareça na primeira edição de Origin, Darwin a adotou e atribuiu a Spencer em seu
trabalho de 1868, The Variation of Animals and Plants under Domestication: “Essa apresentação, durante
a batalha pela vida, das variedades que possuem quaisquer vantagens em estrutura, constituição ou
instinto, tenho chamado Seleção Natural; e o Sr. Herbert Spencer tem expressado a mesma ideia em
Sobrevivência do mais Adaptado” (6). http://darwin-online.org.uk/content/frameset?itemID=F877.1&v
iewtype=text&pageseq=1.

26
Carolyn Miller (NCSU)

cesso e poderia muito bem ser aplicada às espécies orgânicas e aos


gêneros do discurso (SCHRYER, 1993).
Se investigarmos a história dessas ideias, podemos ver “evolu-
ção” não como uma simples metáfora ou analogia conveniente para
o processo de mudança dos gêneros, mas um conjunto de ideias que
tem sido central para o pensamento acerca das mudanças culturais
e das mudanças biológicas. O que é de interesse particular é que as
tentativas de entender mudança e variação no mundo biológico e
no humano surgem quase concomitantemente e se influenciam. São
extensos os estudos sobre a história do pensamento evolucionista e
não poderia abordá-lo em detalhes aqui, de modo que, para resumir
uma longa e complexa estória, começarei com um esboço das fontes
das ideias de Darwin acerca da origem das espécies e continuarei
com um relato igualmente simples da pesquisa sobre mudança lin-
guística e literária. Em seguida, considerarei duas questões especí-
ficas a partir das quais a teoria de gêneros poderia aprender com as
discussões em biologia: as questões de taxonomia e teleologia.

Pensamento evolucionário nas


ciências biológicas

Versões da teoria evolucionista antecedem Darwin em quase um


século, surgidas durante a transição do Iluminismo para o Romantis-
mo, dando origem a investigações no mundo natural e na história da
linguagem, ambos intrinsecamente ligados desde o começo. Ao exa-
minar as fontes das ideias de Darwin sobre a origem das espécies em
paralelo às investigações sobre a diversidade linguística e literária, o
que vemos, em ambos os casos, é um processo muito longo e difí-
cil que envolve uma transformação fundamental do pensamento do
essencialismo para aquilo que o grande evolucionista do século XXI
Ernt Mayr chamou de “pensamento populacional” (MAYR, E., 1982).

27
Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

Acredito que essas duas formas de pensamento estão ambas vivas nos
estudos de gênero, hoje.
O Essencialismo é bem representado pela teoria platônica das
formas: a eide fixa, imutável, e distinta ou essências que existem in-
dependente do mundo fenomenal, o qual é meramente sua mani-
festação imperfeita. Para a perspectiva da eide, variações são desin-
teressantes, meros sinais de imperfeições do mundo empírico. De
acordo com Mayr, o essencialismo “dominou o pensamento do mun-
do ocidental” a ponto tal que é agora difícil para nós compreender
(1982). O pensamento populacional, ao contrário, o qual Mayr chama
de “um conceito peculiarmente biológico, alheio ao pensamento do
cientista físico” (1982), toma o indivíduo único como ponto de parti-
da da análise, não o tipo, valorizando diversidade e variação, em de-
trimento de abstrações estáveis. É mais empírico e indutivo, menos
matemático e abstrato. “Ao introduzir o pensamento populacional”,
diz Mayr, “Darwin produziu uma das revoluções mais fundamentais
no pensamento biológico” (1982).
O pensamento evolucionário na biologia tem raízes nos esforços
do Iluminismo para compreender o mundo natural. Os filósofos na-
turalistas como Lineu, Buffon, LaMettrie, Lamarck, Diderot, Cuvier,
e outros incluindo o próprio avô de Darwin, Erasmus (BOWLER,
1989), lutaram para entender o grande plano harmônico pressuposto
por ambos teólogos e mecânicos racionais para ordenar o universo.
O trabalho de décadas de Lineu para criar uma taxonomia do mundo
natural é um dos primeiros e mais importantes de tais esforços. Lineu
pretendia representar o plano racional da criação divina dentro de
seu sistema de classificação, uma ambição revelada pelo título de seu
trabalho: Systema Naturae, publicado em 1735. Ele começou com pre-
missas do século XVIII: as espécies são invariantes, as relações entre
as mesmas refletem um sistema único ordenado, e esse sistema possui

28
Carolyn Miller (NCSU)

uma hierarquia linear comumente representada como uma torre, uma


escada – a scala naturae ou “a grande cadeia de seres” – com a nature-
za arranjada em ordem de perfeição ou complexidade, conectando o
divino através do angelical e, em seguida, o humano ao animal, vege-
tal e a níveis inanimados da existência (MAYR, 1982; BOWLER, 1989;
ver também DENNETT, 1995). Ao desenvolver seu trabalho, todavia,
Lineu veio a perceber que o florescente mundo natural não podia ser
bem representado por um único sistema linear, que as espécies não
eram imutáveis e que espécies similares poderiam estar relacionadas
entre si, provavelmente por hibridismo (BOWLER, 1989). De acordo
com um estudo de 1957, realizado pelo então presidente da Sociedade
Lineana Sueca, “é bem incontestável que Lineu nos anos 1750 tenha
desistido definitivamente de sua tese da absoluta imutabilidade das
espécies. A evidência mais impressionante... é que... ele removeu a
afirmação nullae species novae [não há novas espécies] do prefácio de
sua 12ª edição de Systema Naturae [1766] e apagou as palavras Natura
non facit saltus [a natureza não dá saltos] em sua cópia de Philosophia
botanica [1751]” (HOFSTEN, 1957).
Enquanto isso, na França, os philosophes criavam uma “visão de
mundo nova, completamente materialista” que incluía as primeiras
teorias evolucionárias modernas, que eram também antiteleológicas
(REISS, 2009). Os múltiplos volumes de Natural History publicado
por Georges-Louis Leclerc, Conde de Buffon, iniciaram o que se tor-
nou o projeto coletivo da anatomia comparada; seu quarto volume
(publicado em 1753), mais especificamente, incluía seções sobre ca-
valos e asnos que usavam homologias anatômicas para especular
acerca da relação não somente entre esses dois animais domésticos,
mas todos os vertebrados. Algum tempo depois, Georges Cuvier su-
cedeu seus próprios trabalhos sobre anatomia comparada com uma
publicação de 1796 sobre fósseis de elefantes, o mastodonte do novo

29
Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

mundo e o mamute siberiano, comparando-os aos atuais elefantes


africanos e indianos, alegando que seriam quatro espécies distintas,
com a espécie fóssil aparentemente extinta; seu trabalho seguinte,
de 1812, com quatro volumes, um estudo de fósseis, é hoje compre-
endido como o “documento fundador da paleontologia vertebrada”
(REISS, 2009). De acordo com um resumo de Reis, “o problema com
o mundo natural apresentado para Cuvier ao final do século XVIII
era aquele da diversidade da biológica forma, em seu aspecto mais
amplo. Esse problema não era somente... como melhor classificar as
formas – isto é, como encontrar o sistema mais natural de classifica-
ção (o que quer que isso possa significar) – mas também como inter-
pretar o sistema encontrado” (REISS, 2009). Tais problemas – encon-
trar a base para classificação e entender o que isso significa – devem
ser familiares aos teóricos de gênero.
A evidência acumulada indutivamente nas grandiosas coleções
dos naturalistas – a de Lineu em Uppsala e as coleções reais em Paris
com as quais Buffon e Cuvier trabalharam – enfraqueceram a crença
em sistemas lineares, hierárquicos como a scala naturae, e as convic-
ções sobre a estabilidade das espécies. Tornou-se possível conceber
a natureza como um poder criativo e a criação como um processo
aberto (BOWLER, 1989). Em um mundo onde a evidência da mu-
dança orgânica havia se tornado inegável, o projeto explicativo de
Darwin, de acordo com Dennet, desdobrava-se em dois: demonstrar
que as espécies modernas haviam descendido de outras anteriores, e
mostrar como tal poderia ser, isto é, encontrar um mecanismo para
descendências com modificações (1995). Sua solução, combinando as
dimensões diacrônicas e sincrônicas, envolvia variações aleatórias de
características dentro de uma população reprodutora, continuidade
e hereditariedade de variações, superprodução de prole, e “seleção

30
Carolyn Miller (NCSU)

natural” produzida por competidores para sobrevivência (ou seja, a


sobrevivência do mais adaptado7).
No longo processo de desenvolvimento de sua explicação, Da-
rwin ocasionalmente representou conjuntamente as dimensões
diacrônicas e sincrônicas do problema, como um diagrama-árvore.
Uma primeira representação apareceu em um caderno de 1837, no
qual ele estava pensando claramente em linhagens de descendên-
cia com variações; Bowler nos revela que Darwin logo percebeu que
a evolução é um processo de ramificação, exemplificado nas con-
dições de isolamento geográfico observado nas Ilhas Galápagos, e
que, em 1837, ele começou a explorar a ideia de variações ordinárias
serem a chave para a mudança orgânica de longo prazo (1989). A
Origem incluía apenas um diagrama, de uma árvore generalizada
para hipotetizar acerca da descendência com modificações e dife-
renciais de sobrevivência (DARWIN, 1859)8. À medida que enten-
dia o papel da competição e da probabilidade de extinção, Darwin
também aceitou que uma explicação materialista era necessária, em
detrimento de uma teleológica, e que os desenhos de um Criador
não eram necessários ou relevantes para o processo de mudança
orgânica (BOWLER, 1989). A teologia natural, assim, foi substituída
por uma mecânica natural; a noção das espécies como um tipo fixo
é substituído pela população de variantes, e a hierarquia linear da
grande cadeia do ser, pela figura de ramos de árvores9.

7. Ver o modelo básico de Dennett da evolução (“maximamente abstrato”) (1995) e o resumo similar de
Steven Jay Gould (1977).
8. O esboço do caderno de Darwin pode ser visto em uma exibição online no Museu de História Natural
Americano (http://www.amnh.org/exhibitions/past-exhibitions/darwin/the-idea-takes-shape/i-think).
Gross (2007) discute a função retórico-conceptual de seu esboço bem como o diagrama publicado em
Origem.
9. A importância do esquema-árvore é enfatizada na discussão de Robert O’Hara do “pensamento
árvore”, após o pensamento populacional de Mayr; pensar em árvore muda questões de estados para
questões de mudança (1988).

31
Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

O pensamento evolucionista nas


ciências humanas

O projeto de Darwin se tornou pensável não somente como re-


sultado do empirismo racional do Iluminismo e do materialismo
mecânico, mas também em decorrência da contrapartida intelectual
do Romantismo Europeu. O Romantismo desafiava o poder das clas-
sificações estáveis e das relações hierárquicas para fazer sentido do
mundo, oferecendo, em seu lugar, visões desenvolventes da história
(a qual se tornara teleológica para alguns, tema que tem atormentado
o pensamento evolucionário desde então) (BOWLER, 1989; REISS,
2009). Além disso, a analogia entre o mundo humano e o mundo
orgânico se tornou explícito em muito do pensamento Romântico,
bem antes de Darwin, tomando forma em discussões da história da
linguagem e da história da literatura.
No século XVIII, linguistas haviam estudado a linguagem para
entender “o mecanismo da mente”, mas no século XIX, de acordo
com Jonahtan Culler, eles se voltaram para o estudo das formas lin-
guísticas “cujas semelhanças e vínculos históricos com outras formas
devem ser demonstrados” (CULLER, 1986). A linguística histórica
nasceu com ajuda, em parte, dos interesses religiosos em descobrir
a “lingua Adamica”, a língua original. Os europeus, ao explorarem o
que agora é a Índia, notaram similaridades entre o sânscrito e as anti-
gas línguas europeias, grego e latim; tais observações levaram a pro-
postas, na metade final do século XVIII, de que essas línguas antigas
teriam uma fonte comum e que as línguas germânicas e celtas tam-
bém poderiam estar relacionadas à ampla família Indo-Europeia das
línguas (HOENIGSWALD, 1962). Os desenvolvimentos na anatomia
comparada inspiraram alguns desses trabalhos. Como Friedrich Sch-
legel, o poeta alemão e crítico literário, disse em 1808: “o fator decisi-

32
Carolyn Miller (NCSU)

vo que solucionará tudo é... a gramática comparativa, a qual nos dará


ideias totalmente novas sobre a genealogia das línguas, de modo si-
milar àquele no qual a anatomia comparada iluminou a história natu-
ral mais alta” (citado em HOENIGSWALD, 1962). O próprio Darwin
na primeira edição de Origem fez uma breve, mas explícita conexão
entre a mudança biológica e a mudança linguística pela proposta de
que um “pedigree da raça humana” poderia iluminar a classificação e
as relações entre as línguas, vivas e extintas (DARWIN, 1859).
Uma figura central no desenvolvimento da linguística históri-
ca foi August Schleicher (1821–1868). Schleicher desenvolveu uma
visão científica da língua, sem necessidade de axiomas teológicos,
argumentando, ainda em 1848, que a língua deve ser pensada como
um organismo natural porque línguas podem ser classificadas em
gênero, espécie e subespécie (MAHER, 1966), termos que empres-
tara das classificações de Lineu de um século antes (RICHARDS,
2002). Talvez sua contribuição mais duradoura tenha sido a Stamm-
baumtheorie, a teoria da árvore genealógica, a qual introduziu dia-
gramas-árvore para mostrar grupos de línguas relacionadas. Em
seu estudo sistemático das línguas europeias, publicado em 1850,
Schleicher descreveu o desenvolvimento linguístico como um pro-
cesso evolucionário, “falou das línguas indo-europeias em termos
de relacionamentos familiares” (KOERNER, 1972), e propôs que a
história de seu desenvolvimento poderia ser representada como
um Stammbaum, ou ramificações (RICHARDS, 2002). Em 1853, ele
publicou o primeiro de tal diagrama e, por volta de 1860, antes de
ler Darwin, os utilizava frequentemente (RICHARDS, 2002)10. Há

10. O diagrama é reproduzido em Richards (2002). Se Schleicher manteve uma visão evolucionista
da espécie humana antes da Origem de Darwin (algo sobre o qual se especula), ele claramente a
manteve após ler a tradução em alemão (RICHARDS, 2002). De fato, ele defendeu em um comentário
em 1863 sobre a Origem que o estudo histórico das línguas poderia ajudar a substanciar hipóteses
sobre a evolução orgânica: em particular, que a linguística fornecesse evidências sobre a competição,

33
Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

especulações que Schleider desenvolveu sua abordagem para a lín-


gua não diretamente de cientistas biológicos, mas de sua educa-
ção como filólogo clássico, treinado para criar árvores genealógicas
manuscritas, de acordo com a doutrina de erros compartilhados
(HOENIGSWALD, 1962). Seu professor, Friedrich Ritschl, também
trabalhou na genealogia humana (MAHER, 1966), então a árvore
genealógica talvez seja o modelo mais direto para essa forma de
representação provada útil em investigações biológicas e humanís-
ticas (MAHER, 1966).
A linguística não foi a única ciência humana na qual um modelo
evolucionista se fez presente. Na literatura, também, a evidência de
diversidade e mudança se tornou difícil de ignorar: o romance, afinal,
não encaixava na tríade essencialista do épico, drama e lírico, atribu-
ído a Aristóteles e Horácio e incrustado no neoclassicismo literário11.
A poética neoclássica, operando sob as mesmas premissas do século
XVIII com as quais Lineu se debateu (a invariabilidade das espécies
e a ordem hierárquica de suas relações), é conhecida por suas re-
gras prescritivas, invocadas, diz Duff, para modernizar e cientifizar
a empreitada literária (2009). Na visão de Dubrow, “o que engaja os
críticos neoclássicos acima de tudo... é repetir e refinar as regras de
cada gênero e testar trabalhos particulares contra aquelas normas.
Eles também retornam frequentemente ao problema da hierarquia
de gêneros, algumas vezes aceitando e outras desafiando o pronun-
ciamento Aristotélico da supremacia da tragédia” (DUBROW, 1982).
Como as regras eram criadas a partir de uma seleção estreita de pro-
duções poéticas (primariamente os gêneros da antiguidade clássica)

a extinção, e a complexidade crescente e, de modo mais geral, que os processos de descendência


linguística e descendência humana eram virtualmente idênticos, que a língua e a mente haviam
evoluído conjuntamente. Schleicher também apontou que o diagrama-árvore em Origem era hipotético,
enquanto seus próprios diagramas eram empíricos (RICHARDS, 2002).
11. Genette esclareceu o quão equivocada é essa atribuição (1992).

34
Carolyn Miller (NCSU)

tidas como “atemporalmente imutáveis”, elas provocaram discussões


acerca dos valores de obras tal como romances medievais, tragicomé-
dias renascentistas e o romance (FOWLER, 1982). Uma afirmação de
John Baillie exemplifica a ênfase dual no essencialismo e nas regras:

O genuíno trabalho da crítica é definir os limites de cada tipo


de escrita, e prescrever suas distinções próprias. Sem isso,
não pode haver perfomance legítima, a qual é a justa confor-
midade a leis ou regras daquela maneira de escrever na qual
cada obra é desenhada. Mas a maneira deve ser definida an-
tes que as regras possam ser estabelecidas; e devemos saber,
por exemplo, o que a história é antes de sabermos como ela
difere da novela e do romance e, antes de julgarmos como
deve ser conduzida (BAILLIE, 1747).

A obsessão com ordem e regras, a qual se estendia além da lite-


ratura, para a arquitetura, a música e a pintura, tem sido atribuída
a “um profundo medo da desordem na psique individual e no corpo
político” (DUBROW, 1982) e caracterizado como uma “reação ao caos
e fanatismo de 1640 e 1650” (DUFF, 2009). Tais medos provocaram
o que Toulmin caracterizou de “Busca pela Certeza” no começo do
século XVII (1990). Essa busca um tanto desesperada, diz ele, pro-
vocou uma transformação na filosofia cujos “princípios gerais eram
aceitos e casos particulares eram rejeitados[;]... o permanente era
aceito, o transitório era rejeitado” (TOULIMIN, 1990). Podemos ver
nessa busca um ambiente propício para o essencialismo da teoria
neoclássica de gêneros e resistente ao pensamento sobre variação e
mudança. O sistema neoclássico de gêneros também serviu a múl-
tiplas necessidades sociais: para poetas aspirantes, críticos cada vez
mais influentes, editoras livreiros e bibliotecários, professores e lei-
tores ordinários, o sistema era conveniente, familiar e possuía estru-
turas de reconhecimento (DUFF, 2009).

35
Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

Todavia, o século XVIII era mais que uma reação ao século XVII.
Por volta da metade do século, de acordo com René Welleck, “a espe-
culação biológica e sociológica... estimulava pensamentos análogos
sobre literatura” (WELLEK, 1963). E a autoridade dos modelos clás-
sicos foi testada pelo que Michael Prince chama de “fatores especifi-
camente modernos”:

A ascensão de tipos de literatura não sancionados (tais como


o romance) e uma audiência que os favorecia; a tendência de
autoras a habitarem gêneros novos e velhos de modos de-
cididamente diferentes...; a fome pelo material impresso de
todos os tipos; a competição entre escritores de alta e bai-
xa cultura; a eficácia dos panfletos, das críticas, anúncios,
e ensaios ocasionais e periódicos modelando debates sobre
cultura; a influência da moralidade da classe média sobre o
drama – esses fatores e muitos outros desestabilizaram a au-
toridade recebida dos gêneros neoclássicos enquanto man-
tendo atenção sobre os gêneros (PRINCE, 2003)

A atenção à natureza histórica e contingente das categorias cul-


turais a que chamamos gêneros ajudou a lançar o movimento que vi-
ria a ser o Romantismo literário e se tornaria típico do mesmo. Duff
chama atenção para um número de desenvolvimentos que ilustram o
novo papel fluido exercido pelos gêneros, notando, por exemplo, que
em várias coleções de poesia publicadas, o “uso de termos genéri-
cos com qualificadores adjetivos [tais como ‘soneto elegíaco’, ‘balada
patética’, ‘pastoral sentimental’]... aumentou consideravelmente no
final do século XVIII” (DUFF, 2009). Tal mistura de todos os gêneros
se tornou um ideal abertamente crítico (DUFF, 2009), com Schlegel
declarando que “o imperativo romântico exige a mistura de gêneros”
(citando em DUFF, 2009). O próprio título da obra revolucionária
de Wordsworth Lyrical Ballads é um exemplo, misturando a lírica

36
Carolyn Miller (NCSU)

clássica com a balada popular. Duff também apontou o interesse em


gêneros marginalizados e literatura folk ou “primitiva” como evidên-
cia dessa nova direção na teoria dos gêneros. Os Românticos associa-
dos com o movimento “primitivista”, pressupondo uma autenticida-
de em civilizações antigas, usavam um método “ramificado” similar
àquele de linguistas históricos para ligar formas relacionadas a um
anterior “ur-gênero” (Rajan citado em DUFF, 2009). Duff chama o
abandono da rigidez estética pelo Romantismo “um episódio notá-
vel na história das ideias”, observando que “é necessário um esforço
da imaginação para lembrar uma época na qual se acreditava que
os gêneros eram estáticos, categorias universais cujo caráter não se
alterava com o tempo” (DUFF, 2000). Em um paralelo interessante,
Dennett nota que “nós pós-Darwinianos somos tão acostumados a
pensar em termos históricos acerca do desenvolvimento das formas
de vida que é necessário um esforço especial para nos lembrarmos
de que, nos dias de Darwin, as espécies dos organismos eram con-
siderados tão atemporais como os triângulos e círculos perfeitos da
geometria Euclidiana” (DENNETT, 1995).
Após Darwin, quando o pensamento evolucionista se infiltrava
pelos idos do século XIX, tal foi aplicado à literatura na França por
Ferdinand Brunetière e na Inglaterra por John Addington Symonds
(influenciado por Spencer) (CONLEY, 1986; FISHELOV, 1993); apli-
cado à tecnologia por Karl Marx e Samuel Butler; e continuou a in-
fluenciar o estudo das línguas e da literatura até as décadas iniciais
do século XX, quando Saussure persuadiu linguistas a deixar de lado
preocupações diacrônicas (assim como já abandonavam metáforas
biológicas) e tratar a língua como um sistema (CULLER, 1986). Saus-
sure redirecionou o foco da linguística, emergindo em uma época na
qual os estudos da linguagem e da literatura ambos possuíam uma
distinta falta de interesse na evolução, tanto que, em 1956, René Wel-

37
Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

lek pôde alegar que “cinquenta e seis anos atrás o conceito de evolu-
ção dominou a história literária; hoje...parece ter desaparecido quase
completamente” (WELLEK, 1963). Como mostra Fishelov, muito da
insatisfação literária com a teoria evolucionista derivava de sua falsa
aplicação ou de erros de compreensão (particularmente com relação
ao determinismo, um tópico abordado adiante) (FISHELOV, 1993).
À medida que o interesse no pensamento evolucionista diminuía,
também diminuíam os interesses no gênero, em parte em decorrên-
cia da contínua oposição romântica à convenção e ao compromisso
com a criatividade radical (DUFF, 2000), e, em ambas, literatura e
linguística, os estudos de gênero caíram em desgraça durante muito
do século XX.
Penso que há uma história complexa e interessante a ser conta-
da sobre a revitalização de uma teoria evolucionista de gênero nas
décadas seguintes à declaração de Wellek. Não conheço essa his-
tória ainda, mas suspeito que ela envolva um número de correntes
nas ciências humanas, tais como teoria Gestalt, teoria dos esquemas,
teoria de categorias, da psicologia cognitiva; teorias de tipificação e
estruturação da sociologia; o interesse de Langer nos “padrões”, e
possivelmente a filosofia da linguagem comum, da filosofia; e inclui
confluentes, como a noção de Kuhn de “paradigma” e a “teoria de
frames”, da psicologia social e pesquisa de mídia.
A história paralela a ser contada é aquela dos modelos evolucio-
nistas e seu apelo contínuo aos historiadores no intuito de esclarecer
a mudança cultural e intelectual. Thomas Kuhn, por exemplo, ainda
que seu modelo para mudanças científicas seja geralmente posto em
termos diferentes (aqueles das revoluções políticas), invoca a analo-
gia com a evolução biológica em diversos pontos de seu argumento,
notando que o processo que tem descrito é “a seleção por conflito
na comunidade científica do modo mais adequado de se praticar a

38
Carolyn Miller (NCSU)

ciência do futuro” e mesmo invocando o modelo-árvore: “imagine


uma árvore evolucionista representando o desenvolvimento das es-
pecialidades da ciência moderna desde suas origens comuns na, di-
gamos, filosofia natural primitiva e os ofícios” (KUHN, 1970). Outros
filósofos e historiadores da ciência têm feito da evolução seu modelo
explicativo central. Um esforço proeminente é o exame de Toulmin
da mudança conceptual dentro do que ele chama “empreitadas ra-
cionais” ou disciplinas intelectuais, não com base em uma analo-
gia direta entre biologia (“seleção natural”) e disciplinas (“seleção
racional”), mas na proposta de uma “forma mais geral de explicação
histórica” de que ambas são exemplos (TOULMIN, 1972); essa “forma
geral” é essencialmente idêntica ao modelo “abstrato” de evolução de
Dennett, “a sobrevivência diferencial de entidades replicantes [va-
riáveis]”, como Dawkins coloca, a qual é independente de qualquer
substrato particular ou forma de expressão (citado em DENNETT,
1995). Outro esforço desse tipo é o “relato evolucionário de inter-re-
lações entre o desenvolvimento social e conceptual na ciência” apre-
sentado com grande atenção à biologia evolucionária darwiniana e
pós-darwiniana (HULL, 1988)12.
Mas, agora, gostaria de me afastar do esboço histórico para con-
siderar duas áreas específicas nas quais teóricos de gêneros podem
aprender a partir dos esforços extensivos e coordenados dos cien-
tistas biólogos para conceptualizar evolução. Irei me concentrar em
duas questões centrais para o desenvolvimento da teoria evolucioná-
ria: taxonomia e teleologia.

12. O modelo de Hull foi adaptado por Gross e seus colegas para explicar o gênero do artigo de pesquisa
científica (GROSS et al., 2002). Arthur tem aplicado uma versão modificada de evolução à mudança
tecnológica (2009).

39
Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

Taxonomia

O problema da taxonomia é representado pelo diagrama-árvore


que temos analisado. Que tipos de relacionamentos são mapeados?
Qual a unidade de análise? Sob o essencialismo, a unidade estava nas
espécies imutáveis, e afinidades e similaridades de relacionamentos.
A taxonomia toda pretendia representar “o plano de criação do cria-
dor do mundo” (MAYR, 1982). Tais taxonomias auxiliaram a nomear
e identificar e, portanto, apreciar a complexidade e beleza da criação.
O essencialismo impedia a noção de que as espécies poderiam elas
mesmas mudar, ou “transmutar”. A classificação dessas entidades
imutáveis era atingida pela “divisão decrescente” baseada na lógica
Aristotélica, com a suposição de que essa estrutura “natural” refleti-
ria a “ordem e lógica no mundo criado” (MAYR, 1982). Assim, se co-
meça com categorias facilmente reconhecíveis e amplamente aceitas
– tais como árvores, arbustos e ervas – e se divide cada uma dessas
em classes subordinadas de plantas com base nas “differentiae” que
supostamente representam as “essências verdadeiras desses organis-
mos” (MAYR, 1982) (ver Figura 1). O problema é que houve pouca
concordância acerca dessas differentiae, sobre quais similaridades
e diferenças são “essenciais”. Por exemplo, no reino animal, era de
grande relevância qual a primeira differentia escolhida, se o animal
possuía sangue ou não, se possuía ou não pelos, ou se era bípede ou
quadrúpede (MAYR, 1982). E quanto às plantas, de acordo com Mayr,
“dois botânicos no século XVII não poderiam chegar a uma mesma
conclusão” (1982). Tornou-se gradualmente claro que a scala naturae
e a suposição de um número fixo e administrável de espécies não
poderiam ser adequadas para a complexidade e a multiplicidade no
mundo natural.

40
Carolyn Miller (NCSU)

animal

bípede quadrúpede
inclusão,
abstração

ovíparo vivíparo pelo sem pelo

segmentação, Variação

Figura 1. Classificação decrescente, baseada em Mayr (1982).

O crescente caos taxonômico levou a uma lenta e quase imper-


ceptível transformação da teoria taxonômica no século após a publi-
cação da 10ª edição do Systema Naturae de Lineu, em 1758. A abor-
dagem alternativa que se desenvolveu – classificação crescente ou
composicional – era indutiva e empírica, motivada pelo interesse na
diversidade que o trabalho de Lineu havia estimulado e na contínua
descoberta e descrição de novas espécies. A classificação crescente
começa com a observação e catalogação da variação e diversidade e
o agrupamento de organismos por múltiplos aspectos, em vez de um
único (ver Figura 2). É o que Mayr chama de “pensamento populacio-
nal” (MAYR, 1982). Na classificação crescente o que está sendo clas-
sificado não são as espécies, mas indivíduos, espécimes: a espécie
não é a premissa de base, mas a hipótese que precisa ser descoberta
ou demonstrada. A abordagem essencialista das espécies pressupu-
nha que todos os membros das espécies compartilhavam a mesma
essência, que cada espécie era distinta de todas as outras, que cada
uma seria constante no tempo, e que a variação dos membros da
essência era limitada (MAYR, 1982). O pensador populacional reco-
nhece ambas, variação e continuidades, através dos indivíduos, e o
conceito de espécie se torna notoriamente difícil de pontuar. Dennet

41
Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

observa que Darwin abriu mão de definir espécie, alegando ser mais
prudente considerar tal um termo de conveniência mais que um de
princípio (DENNETT, 1995); ele acrescenta que “mais de um sécu-
lo após Darwin, ainda há sérios debates entre biólogos...sobre como
definir espécie” (1995). De modo similar, Mayr alega que “provavel-
mente não há outro conceito em biologia que tenha permanecido tão
consistentemente controverso como o conceito de espécie” (MAYR,
1982).

Endopterygota

Coleoptera Diptera Lepidoptera Hymenoptera


inclusão, besouros moscas borboletas
abstração

moscas-serra vespas formigas abelhas

segmentação, Variação

Figura 2. Classificação crescente, baseada em Mayr (1982); a esca-


la vertical foi depois reconhecida como representando descendên-
cia, antes que a inclusão classificatória.

Tudo isso me parece muito com nossas discussões sobre como


definir e reconhecer um gênero. Temos nossos essencialistas e nos-
sos pensadores populacionais. Dentre os essencialistas podemos citar
Aristóteles, Northrop Frye, e certos estudiosos linguistas e literários.
Esses teoristas baseiam suas definições numa essência posta – uma
teoria da comunicação que mapeia possibilidades formais, ou capa-
cidades fundamentais da língua. Dentre os pensadores populacio-
nais podemos incluir os etnógrafos e linguistas aplicados, tais como
Schryer e Swales, os quais juntam espécimes e os examinam em bus-

42
Carolyn Miller (NCSU)

ca de similaridades de aspectos sociais ou linguísticos, desenvolvendo


categorias indutivamente. Esses pesquisadores nos ajudam a catalogar
a incrível diversidade da atividade comunicativa humana e os modos
como ela interage com a mudança social e tecnológica.
Mas há outra forma de pensamento que pode esclarecer os gê-
neros, uma forma que não é totalmente essencialista ou empírica,
mas talvez seja algo dos dois. E, para entender esse terceiro tipo de
pensamento, temos que voltar ao conceito problemático de espécie,
o gênero – o tipo. Para a linguística de corpus ou para os biólogos
populacionais, o tipo representa a coleção de espécimes: na prate-
leira, na gaveta, distribuída pelo meio ambiente. É uma descrição
de uma multiplicidade empírica. Para os essencialistas, biológicos
ou discursivos, o tipo representa uma capacidade ou possibilidade
fundamental. Mas o que aprendemos da sociologia fenomenológica
e da psicologia cognitiva é que tipos também podem ser pensados
como acordos sociais, reconhecimentos partilhados, sobre o que vale
a pena notar no mundo, sobre o que recorre e o que significa. O
tipo representa o que nós concordamos que aconteceu e o que espe-
ramos que possa acontecer. Essa é uma abordagem nominalista do
problema, o que torna o tipo não uma coleção nem uma essência,
mas literalmente um “nome”, ou melhor, o que é invocado pelo fato
de nomearmos algo, um “conceito” compartilhado13.
Eu já sugeri que gêneros podem ser encontrados onde há nomes
para tipos de discurso, isto é, para expectativas compartilhadas so-
bre qual constelação de aspectos do discurso irá atingir qual ação
social: “os gêneros ‘de facto’, os tipos para os quais temos nomes na
linguagem cotidiana nos dizem algo teoricamente importante sobre
o discurso” (MILLER, 1984). Esse palpite é confirmado pelo trabalho

13. Mayr sugere que o nominalismo medieval influenciou os primeiros empíricos, tais como Francis
Bacon, e pode ter sido uma antecipação do pensamento populacional (1982).

43
Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

de Rosch na psicologia cognitiva sobre categorização e o protótipo


conceitual14, o qual mostra que “categorias são geralmente designa-
das por nomes”, isto é, nomeamos grupos de objetos em nosso mundo
que consideramos ser “equivalentes” de algum modo útil, de acordo
com princípios de economia cognitiva e percepção social (ROSCH,
1978). Ademais, a categorização, assim como a evolução, envolve am-
bas as dimensões: vertical e horizontal (ver Figura 3).

superordenado animal mobília jogo

nível básico cão cadeira video game

subordinado golden espreguiça- ação-aven-


retriever, deira, tura,
inclusão,
poodle, cadeira de de tiro,
abstração
Welsh balanço, simulação,
corgi, poltrona, etc.
etc. carteira,
etc.

segmentação, Variação

Figura 3. Níveis de categorias conceptuais e suas dimensões,


baseado em Rosch (1978).

Na dimensão vertical, os nomes mais comuns e úteis indicam


o que Rosch chama “categorias básicas”, que indicam o nível mais
inclusivo, ou abstrato, que também reconhece o que ela chama de
“descontinuidades naturais” na percepção. O nível básico designa ca-
tegorias que são relativamente fáceis de discriminarmos de variações
de fundo e relativamente importantes para interagirmos e falarmos
sobre. Membros de categorias superordenadas compartilham me-

14. Veja a conexão entre categorias e conceitos em Margolis & Laurence (2011).

44
Carolyn Miller (NCSU)

nos atributos e são, portanto, menos úteis para propósitos comuns;


membros de categorias subordinadas compartilham mais atributos
e, portanto, são mais difíceis de discriminar. A pesquisa psicológi-
ca se concentra nos objetos do mundo tais como gatos e cachorros,
cadeiras e mesas, mas parece razoável supor que os mesmos princí-
pios podem estar ativos com objetos discursivos tais como sonetos,
elogias, blogs e videogames. Pesquisadores têm mostrado que “o co-
nhecimento é organizado principalmente no nível básico”, testando
quantos atributos as pessoas podem listar para diferentes níveis de
abstração (por exemplo, móveis, cadeira, espreguiçadeira), quais ca-
tegorias crianças aprendem primeiro, e em quais níveis as pessoas
podem formar imagens mentais (LAKOFF, 1987)15. Rosch (1978) cita
trabalhos corroborantes demonstrando que “categorias de nível bá-
sico são codificadas mais frequentemente pelo uso de sinais”: por
exemplo, etnobotânicos podem apontá-lo nos nomes de plantas em
várias culturas, e outros têm confirmado esse padrão com a língua
de sinais (ROSCH, 1978).
Na dimensão horizontal, nossas categorias dividem o mundo
em unidades repetíveis, para as quais nos referimos quando usamos
nomes como “cão”, “mesa”, “reportagem”, “romance”, “blog” e “twe-
et”. De acordo com Rosch, esses “cortes básicos na categorização são
feitos nas...descontinuidades” entre “grupos ricos em informação de
atributos perceptuais e funcionais” (ROSCH, E., 1978). Portanto, “a
divisão do mundo em categorias não é arbitrária”, mas é baseada na
“estrutura de correlação do ambiente” (ROSCH. e MERVIS, 1975). As
categorias refletem e constituem a estrutura percebida do mundo
social, bastante semelhante aos tipos de Schutz (1970). Uma vez que

15. Rosch cita trabalhos corroborantes mostrando que “categorias de nível básico são codificadas mais
frequentemente por signos únicos”: por exemplo, etnobotãnicos podem mostrar tal para nomes de
plantas em várias culturas, e outros confirmaram o padrão com a linguagem de sinais (1978).

45
Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

as percepções mudam com o tempo, com novas condições e novas


capacidades e podem diferir entre grupos sociais, os sistemas de ca-
tegorias podem não ser estáveis ou consistentes. Se descontinuida-
des perceptíveis forem relativamente estáveis, todavia, as categorias
podem vir a parecer “tipos naturais”, com essências, aspectos crite-
riosos que discriminam o cachorro do gato, a cadeira da mesa. Mas,
assim como os biólogos evolucionistas tiveram dificuldades em iden-
tificar espécies, os psicólogos cognitivos têm demonstrado que nos-
sas categorias cotidianas são similarmente difíceis de abordar com
uma abordagem essencialista. Como as espécies, nossas categorias
não têm limites claros; elas mudam com o tempo, diferentes locais e
grupos; elas não produzem taxonomias lógicas baseadas em critérios
consistentes (LAKOFF, 1987). Gêneros, tal como Devitt observa em
recente discussão de abordagens literárias, são sistemas de contras-
tes, existentes em relação uns com os outros (DEVITT, 2000).
As categorias conceptuais, assim como as espécies biológicas,
são melhor compreendias através da noção de semelhanças familia-
res de Wittgenstein16, em vez de uma essência ou critérios lógicos
(ROSCH. e MERVIS, 1975; ROSCH, 1978). Isso significa, primeira-
mente, que não precisamos de critérios para julgar quão bem um es-
pécime é adequada a uma categoria e, em segundo, que os espécimes
dentro de uma categoria não necessariamente compartilham quais-
quer aspectos em comum, mas que cada um compartilha pelo me-
nos um aspecto com outro espécime. Dentro de uma família, alguns
membros têm narizes parecidos, talvez muitos tenham peles seme-
lhantes ou cor de cabelo, e alguns terão tipos de corpo semelhantes.
Alguns podem compartilhar muitos aspectos com outros membros e
alguns podem compartilhar apenas um aspecto com apenas alguns
poucos. E todos, como uma “população”, compartilharem poucos as-

16. Para uma breve explicação do tema em Wittgenstein, ver Biletzki e Matar (2009).

46
Carolyn Miller (NCSU)

pectos com membros de outras famílias. Uma categoria é um grupo


solto com instâncias talvez questionáveis nas margens e outras que
parecem bem “centrais” ou mais representativas do conceito. Esses
espécimes centrais são “protótipos” mais facilmente reconhecidos. A
pesquisa de Rosch mostra que espécimes que funcionam como pro-
tótipos são “aqueles que possuem mais semelhanças familiares com
outros membros de suas próprias categorias e têm a menor sobrepo-
sição com outras categorias” (ROSCH,1975).
Na dimensão horizontal, então, a categoria (a espécie ou o gê-
nero) será sempre um pouco confusa, embora o teste relevante seja
de utilidade social. Na dimensão vertical, há duas escalas possíveis:
uma é o nível de abstração, característico da formação de catego-
rias decrescentes, essencialistas, como praticada por Lineu e por vir-
tualmente todos os biólogos antes de Darwin; a outra é diacrônica,
mostrando ancestralidade partilhada, relações de replicação com o
tempo, e distinguida por investigações empíricas crescentes. O pen-
samento biológico tem rejeitado completamente níveis de abstração
para o relacionamento diacrônico de ancestralidade compartilhada,
pois essa é a escala que explica a evolução em duas dimensões, mu-
dança com o tempo e a existência de categorias sincrônicas – espécie
e variações. A pesquisa de Rosch na formação de categorias cogniti-
vas funciona com a escala de abstração, concentrando-se nos níveis
nos quais nossas discriminações perceptuais são funcionais. Eu diria
que a teoria de gêneros precisa considerar ambas as escalas, uma
vez que nossos reconhecimentos partilhados se baseiam nas concor-
dâncias de qual nível de discriminação é funcional e na experiência
partilhada com gêneros antecedentes.
As consequências para as teorias de gênero são que as catego-
rias de interação retórica que os gêneros representam não são nem
“tipos naturais” essencialistas-objetivos nem corpora totalmente

47
Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

materialista-empíricos. Eles são, na verdade, conceitos sociais em ní-


vel cognitivo “básico” que correspondem com a história experiencial
e as necessidades funcionais da comunidade que os postula. Como
estruturas interpretativas, eles ajudam a esculpir unidades signifi-
cativas da nébula de artefatos e estímulos que nos cercam. E são
capazes de mudar com o tempo, pois são constituídos não por quais-
quer aspectos essenciais, mas por reconhecimentos partilhados. Se
quisermos entender porque a combinação de aspectos ocorre como
ocorre, então a genealogia, a dimensão vertical, torna-se útil; mas
se simplesmente quisermos escrever um bom blog, ou ensinar sobre
blogging, precisamos olhar para a dimensão horizontal, a abrangên-
cia de variação dos aspectos que são reconhecimentos, funcionais e
adequados.

propósito

situação  evento comunicativo  objetivo

(meios) (fim)

Figura 4. Componentes da situação comunicativa e direcionalida-


de do propósito comunicativo, baseado em Swales (1990).

Teleologia

As anotações de Darwin mostram que, ainda no final da década


de 1830, ele praticamente havia abandonado as suposições ampla-
mente aceitas da teologia natural de que a adaptação dos organismos

48
Carolyn Miller (NCSU)

a seus ambientes resulta de um desenho e que tal desenho requer


um designer (BOWLER, 1989). Essas suposições têm se mostrado
bem resistentes, todavia, e ainda temos discussões quase vitorianas
sobre criacionismo (ou design inteligente), mesmo julgando somen-
te pelos títulos de várias obras recentes escritas para rejeitá-las – O
Relojoeiro Cego de Dawkins, Not by Design: Retiring Darwin’s Watch-
maker de Reiss, e a obra do próprio Dennett. A “ideia perigosa” de
Darwin, na formulação de Dennett, é exatamente essa de que, com
o tempo, um algoritmo qualquer pode produzir os efeitos do design,
que “os vários processos da seleção natural, apesar de sua subjacente
inconsequência, são poderosos o suficiente para ter feito todo o tra-
balho de design que é manifesto no mundo [natural]” (DENNETT,
1995), que “a biosfera é... o resultado de nada além de uma cascata de
processos algorítmicos se alimentando do acaso” (, 1995). Todavia,
a linguagem que Darwin escolheu para expressar sua ideia central,
“seleção natural”, com suas sugestões de escolha e agência, carrega
constantes lembretes de um designer. Dadas a força e a predominân-
cia da teologia natural na época de Darwin, sua cautela retórica bem
documentada sobre como introduzir as ideias que ele tão bem sabia
serem perigosas (ver, por exemplo, CAMPBELL, 1987) e sua própria
ambivalência ocasional, ele tem grandes dificuldades em não tratar a
seleção natural como um agente, como nesta passagem bem conhe-
cida: “pode ser dito que seleção natural escrutina constantemente,
todos os dias, por todo o mundo, cada variação, até a mais sutil; re-
jeitando o que é ruim, preservando e adicionando o que é bom; tra-
balhando silenciosamente e insensivelmente quando e onde a opor-
tunidade aparece, para o aperfeiçoamento de cada ser orgânico em
relação a suas condições orgânicas e inorgânicas de vida” (DARWIN,
1859). O próprio Darwin aparentemente reconheceu que “seleção na-
tural” foi um “termo ruim” (citado em DENNETT, 1995).

49
Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

Se evolução é um modelo geral de explicação histórica que se


aplica à mudança cultural bem como à mudança biológica, deverí-
amos, nós retóricos, também abandonar a teleologia, abrir mão da
quarta e final causa? Seria a evolução cultural um algoritmo irrele-
vante? Ou, já que pensamos em nós mesmos como seres com pro-
pósitos, e interpretamos os outros como perseguidores de objetivos,
precisamos de um modelo teleológico da mudança, diferente daque-
le dos biólogos? Essas questões enfatizam a relação entre gêneros e
seus usuários e ambientes de uso. E, apesar de alguns de nós sermos
tentados a creditar um Designer Discursivo divino, é preciso consi-
derar a questão da agência discursiva individual e sistemática. Para
o presente, gostaria de dramatizar a questão através do contraste
entre o foco de John Swales no propósito comunicativo com meu
próprio foco na exigência retórica, pois essa é uma diferença antiga
e que aponta para problemas interessantes na caracterização das di-
mensões pragmáticas do discurso.
Em 1990, Swales apresentou uma “definição operacional” de
gênero que oferecia o “propósito comunicativo” como um “critério
privilegiado” para identificar os membros de um gênero (SWALES,
1990). Naquela época, e em trabalhos subsequentes, ele reconheceu
algumas complicações dessa abordagem, por exemplo, que o propó-
sito nem sempre é legível a partir de um evento comunicativo (seja
por um analista ou por um participante), e que o propósito pode ser
múltiplo, contraditório, não realizado, facetado, implícito, inefável,
insincero e assim por diante (SWALES, 1990; ASKEHAVE & SWA-
LES, 2001) – qualidades que não são úteis em um “critério privilegia-
do”. Esses reconhecimentos o levaram a não buscar alhures por um
critério central, mas a recomendar como o analista pode abordar o
problema da identificação do propósito mais responsavelmente: “é
sensato abandonar o propósito social como um método rápido ou

50
Carolyn Miller (NCSU)

imediato para dividir discursos em categorias genéricas, retendo-o


como um valioso resultado de análise de longo prazo” (ver também
ASKEHAVE. e SWALES, 2001; SWALES, 2004). Esse critério central,
todavia, permanece um tanto misterioso: parece estar centrado no
comunicador, o “usuário” ou talvez “animador” do gênero, embora
seja necessariamente social e, portanto, não pode ser o mesmo de
intenções particulares dos indivíduos. Swales também usa algumas
expressões alternativas, equacionando propósito ora com “função”
ora com “valor de uso” (SWALES, 2004). De qualquer modo, inferin-
do a partir de nossa compreensão cotidiana de propósito, talvez pu-
déssemos dizer que o propósito é o aspecto da comunicação que di-
reciona para um objetivo além do próprio evento comunicativo: um
fim para o qual a comunicação é o meio, um estado ou situação, se
atingido, que está fora e além e, geralmente, subsequente ao discur-
so. O objetivo “puxa” o falante ou escritor e o texto e a audiência para
si, e o propósito nos liga ao objetivo avant la letter17, é antecipatório.
Meu próprio foco tem residido não no propósito, mas na exi-
gência e no termo relacionado “motivo”. Esses talvez sejam tão mis-
teriosos quanto o “propósito” (talvez até mais), mas penso que são
diferentes de modos significantes e úteis. Aprendi a palavra “exigên-
cia” de Bitzer, e ainda que pense haver muitos problemas com a for-
mulação de Bitzer, ela permanece útil, especialmente quando com-
plexadas com a noção de Kenneth Burke de “motivo” (BURKE, 1969).
Bitzer define exigência como “uma imperfeição marcada pela urgên-
cia... um defeito, um obstáculo, algo esperando para ser feito, uma
coisa que não é o que deveria ser”. Não é um objetivo para o qual se
é direcionado, mas um problema do qual é necessário se distanciar:
ele motiva ação, empurrando-nos pelas costas, por assim dizer. Um

17. N.doT.: avant la letter,expressão francesa que significa “antes do termo existir”, nesse sentido, Miller
enfatiza o aspecto antecipatório da relação entre propósito e objetivo.

51
Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

“motivo” é o que nos “move”. A exigência recorrente de um gênero é


uma questão não de forças materiais, mas de reconhecimentos, ou o
que tenho chamado de “uma necessidade social objetificada” (1984).
Ambos, propósito e exigência, são modos de se dirigir à ques-
tão “por quê?”, mas oferecem diferentes tipos de respostas. Propósito
põe a questão do ponto de vista de um ator: por que está fazendo
isso? Qual o seu objetivo ou meta? Ele é teleológico, implicando um
movimento para, convidando suposições sobre progresso, melhoria,
perfeição e hierarquia, todas se tornaram suspeitas na biologia evo-
lucionista, mas permanecem prospectos tentadores para a cultura
humana. Em contraste, exigência, ou o que podemos mais geralmen-
te chamar de função, põe a questão do ponto de vista do sistema: por
que isso acontece? O que isso garante não somente para quaisquer
atores ou agentes envolvidos, mas também para a estabilidade e a
viabilidade do resto do sistema com o tempo? Ela implica um mo-
vimento para longe de, invocando suposições sobre instabilidades,
perturbações, mas também sobre continuidade e resistência (ver Fi-
gura 5). Em propósito, vemos o potencial para mudança e inovação;
em função, vemos as forças de estabilização e adaptação. Minha con-
tenção, portanto, é que a função é especificamente útil para pensar
sobre gêneros porque ela nos pede para considerar recorrência, re-
petição, reprodução, enquanto propósito volta nossa atenção para o
indivíduo, a singularidade, o momento presente. Se dissermos que
um gênero é funcional, então olhamos para como ele satisfaz neces-
sidades recorrentes, “genéricas” dentro de um sistema; se dissermos
que um gênero serve a propósitos, não mais olhamos para sistemas
ou para o gênero, mas para textos, pessoas e eventos comunicativos
específicos, e temos que explicar replicação em função de ações múl-
tiplas, individuais, estratégicas.

52
Carolyn Miller (NCSU)

situação situação retórica


retórica recorrente

instituições

tecnologias FUNçÃO

exigência  ação comunicativa  adoção

tradições (fim)

pessoas

Figura 5. Componentes da situação comunicativa e direcionalida-


de da função comunicativa, baseado em Miller (1984).

Eu não quero sugerir que gêneros não permitem inovação, mas


que requerem que nós consideremos inovação em contexto de repli-
cações imperfeitas e estabilizações incompletas; e penso que é exa-
tamente isso que o modelo evolucionário enfatiza. Na biologia, algu-
mas inovações (a maioria, de fato) não são funcionais e muitas são
destrutivas. Inovações não funcionais podem ser replicadas, podem
adquirir função e se tornarem favorecidas, ou podem ser rapidamen-
te eliminadas porque os organismos que as carregam não podem
reproduzir. Mas elas estão sempre sendo julgadas pelo sistema, pelas
interações entre o organismo e seu ambiente. O pensamento evolu-
cionário volta nossa atenção não somente para a recorrência, mas
para o sistema ecológico, o ambiente, no qual ambas, inovação e re-
corrência, têm significado e são julgadas. Se adotarmos o modelo mí-
nimo da mudança evolucionária e postularmos que gêneros mudam
pela “sobrevivência diferencial de entidades replicantes [variáveis]”,

53
Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

então qualquer gênero adquire reconhecimento como gênero, em


virtude de ter sobrevivido, isto é, ter sido replicada suficientemen-
te. E o valor de sobrevivência para um gênero significa que existe
reconhecimento social, realizações práticas e satisfações no mesmo
sob a forma de ação social. Isso, novamente, significa que o gênero
é funcional. Mas, ao mesmo tempo, a sobrevivência pela replicação
também significa que o gênero mudou, uma vez que replicar não é
duplicar, e mesmo porque o fato da replicação muda a importância
de sua força e padrões.
Podemos aqui ver alguma similaridade com a noção de Fishe-
lov de “produtividade genérica”, qque ele oferece como “indicação”
da sobrevivência em vez de procurar a sobrevivência na recepção
(FISHELOV, 1993). Como Fishelov coloca, um gênero é produtivo
quando “exerce um papel ativo na cena literária”, ou seja, quando
“as obras de um gênero servem como ‘estímulo’ para a produção de
outros textos percebidos como ‘pertencentes’ a esse gênero” (FISHE-
LOV, 1993). A produtividade genérica é uma noção útil, mas com
duas ressalvas. Primeiro, a produtividade pode tomar formas outras
além da produção de novos textos por outros retores: um gênero é
produtivo também quando é reconhecido e respondido, quando é
“replicado” nas mentes dos outros. Então, mesmo um gênero com
poucos textos instanciadores pode ser produtivo e, portanto, sobre-
viver. A segunda ressalva trata da rejeição por Fishelov da recepção
como marcador de sobrevivência evolucionária, uma rejeição que
acompanha seu foco nos “textos” e não na ação comunicativa (e que
eu atribuo a seu treinamento na literatura e não na retórica). Na
evolução cultural, a produção e a recepção são marcadores interde-
pendentes da “sobrevivência”. Como Fishelov mesmo pontua, a re-
lação entre produção e recepção é “dialética” (FISHELOV, 1993); ou
seja, a adaptação atua em ambas as direções: a produção se adapta

54
Carolyn Miller (NCSU)

ao ambiente (tanto em sua dimensão específica quanto na sistemá-


tica), e o sistema receptivo é remodelado pelas ações contínuas de
seus constituintes. Os gêneros, eu sugeriria, são formas particular-
mente úteis de se pensar sobre a mudança cultural através do tem-
po: porque são veículos de reprodução cultural, eles nos fazem olhar
para a produção e a recepção, para propósitos particulares (e como
esses se tornam reconhecíveis para outros dentro de um sistema de
limitações múltiplas) e funções sistêmicas.
Quero sugerir, então, que pensar em termos de função pode nos
ajudar a entender a mudança de gêneros devido a seu foco na recor-
rência e no sistema de gêneros como um todo, e que o modelo geral
da evolução pode ser produtivo nesse sentido. Mas não deveríamos
levar a analogia muito longe, além de um modelo mínimo18. Os bió-
logos evolucionários nos dizem que os únicos “propósitos” que genes
e organismos possuem é replicar a si mesmos: essa é sua teleologia.
Na teoria dos gêneros, devemos estar aptos a levar em consideração
o fato experiencial de que nós somos seres com propósitos de ou-
tras formas (ou deveria dizer “adicionais”), e nossa compreensão de
mudança de gênero deve ser capaz de considerar as singularidades,
do indivíduo determinado ou inspirado ou disruptivo e de situações
surpreendentes e inéditas, pois essas são as fontes da variação, su-
jeita às pressões da seleção que incluem não somente convenções
culturais, condições e valores culturais, mas também o propósito de
outrem. Meu argumento é que, para tornar tais especificamente re-
levantes para a teoria dos gêneros, devemos olhá-los sob o aspecto da
recorrência e do sistêmico. O desafio para os estudos de gênero - nos
estudos retóricos de gênero, em particular – é responder a ambas as

18. Para mim a teoria dos memes, sugerida por Richard Dawkins como uma maneira de pesar sobre a
mudança cultural em termos evolucionistas leva a analogia longe demais, procurando análogos dos
mecanismos de reprodução e seleção. Mas isso é tema para outra ocasião.

55
Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

dimensões apropriadamente, em direção ao propósito e em direção à


função. Devemos estudar a variedade de influências na mudança his-
tórica e, portanto, os múltiplos fatores que uma teoria evolucionista
deve reconhecer. Quando os esforços de intenções de agentes indivi-
duais fazem a diferença? Quando instituições, forças econômicas e
de mercado, sistemas e estruturas, o peso da tradição surtem efeito?
Que tipo de influências possui a tecnologia?
Para concluir, não quero que entendam que sugeri que nossa
compreensão de mudança cultural faça empréstimos da biologia. Na
verdade, estou sugerindo que a evolução é um modelo de mudança
mais geral que a biologia ou a linguagem, que se aplica igualmente,
mas diferente a ambas. E não estou advogando que nos tornemos
taxonomistas dos gêneros, ou que desenhemos árvores genealógicas
dos gêneros que ensinamos ou estudamos, ou que abandonemos a
noção de propósito ou intenção na compreensão do nosso ambiente
sociodiscursivo e nossos modos de interação. Eu quero instar que
nos tornemos conscientes das pressuposições que fazemos sobre es-
sências e antecedentes, de como e por que identificamos algo como
gênero; que nos tornemos alerta para as diferenças entre classificar
por abstração e classificar por descendência; que distingamos pro-
pósito e função e suas implicações para agência pessoal vs. pressões
sistêmicas e situacionais. Temos muito que aprender sobre o proces-
so de mudança de gênero e a emergência de novos gêneros, e preci-
samos de todas as ferramentas que pudermos encontrar. Espero que
esse olhar sobre a teoria evolucionista possa ser útil nesse sentido.

56
Carolyn Miller (NCSU)

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61
“Se eu acho que é
educacionalmente apropriado
que eles [os alunos] cheguem
a um lugar ainda não familiar,
posso tentar levá-los até
esse lugar por um caminho
que eles possam entender e
negociar, em vez de ensinar
coisas distantes e estranhas
em termos de gênero, esperando
que, por acaso, eles
compreendam.”

— Charles Bazerman. Série Bate-Papo Acadêmico. v.1


Gêneros Textuais. Recife, 2011. Disponível para acesso
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2
EQUÍVOCOS NO DISCURSO1
SOBRE GÊNEROS
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)2*

Primeiras considerações

Parece consenso que, nos últimos anos, os gêneros entraram na


ordem do dia para o estudo, a pesquisa e o ensino de língua. Em nível
mundial e nacional, variadas perspectivas para a abordagem dos gê-
neros estão disponíveis para pesquisadores, professores e estudantes.
Com as elaboração e publicação dos Parâmetros Curriculares Nacio-
nais (PCN) para o ensino de língua portuguesa na segunda metade
da década de 1990, a temática dos gêneros, antes mais restrita aos cír-
culos da pós-graduação, firmou-se também no horizonte de trabalho
dos professores de língua nas escolas brasileiras, tornando-se uma
questão central também para a educação básica.
Entretanto, um certo tempo de experiência em lidar com o tema
indica que a inserção da categoria de gênero como norteadora do
ensino de língua não se fez sem problemas para as compreensão e
apropriação de estudantes de graduação e pós-graduação e docentes
da educação básica.

1. Usarei aqui o termo “discurso” em um sentido menos técnico, como dizem definições não
especializadas, de “exposição metódica sobre certo assunto” ou “um conjunto de ideias organizadas
por meio da linguagem” ou ainda como “raciocínio” sobre certo tema. Ou seja, o que certas pessoas,
especialistas ou não, dizem sobre os gêneros quando falam sobre gêneros.
2.*E-mail: beneditobezerra@gmail.com

63
Equívocos no discurso sobre gêneros

Em parte, a explicação para o fato parece se encontrar exata-


mente em que se trata de uma história recente. Os professores e por
vezes, aparentemente, a própria academia ainda não teriam tido o
tempo necessário para amadurecer o conceito e todas as suas im-
plicações. Biasi-Rodrigues (2002) se perguntava se a ideia da diver-
sidade de gêneros no ensino seria um “novo modismo com velhos
pretextos”, uma vez que, na sua visão, “a apreensão do novo objeto
de conhecimento ainda se encontra[va] em processo” (p. 49). Nessa
mesma ocasião, a autora fazia referência a como os PCNs utilizavam
o termo gênero “demonstrando uma familiaridade no uso desse ter-
mo que, muito provavelmente, não é correspondida pelos leitores,
pois certamente muitos deles sequer tiveram tempo de digerir a no-
vidade” (p. 56).
Pouco mais de uma década depois, é evidente que a temática
dos gêneros disseminou-se de maneira inusitada, sem precedentes,
fazendo jus à afirmativa de Marcuschi (2008, p. 147), quando lembra
que “o estudo dos gêneros não é novo, mas está na moda”. Na ver-
dade, apesar da frase de impacto, o que Marcuschi realmente queria
ressaltar é que “hoje se tem uma nova visão do mesmo tema” e que
“seria gritante ingenuidade histórica imaginar que foi nos últimos
decênios do século XX que se descobriu e iniciou o estudo dos gê-
neros textuais” (p. 147). Seria ingenuidade inclusive imaginar que o
estudo dos gêneros nas perspectivas contemporâneas se deve exclu-
sivamente à existência dos PCNs.
Modismo, moda? Não importa. O fato é que a questão dos gêne-
ros está posta e é preciso lidar adequadamente com o conceito para
que, afinal, a sua aplicação ao ensino de língua, interesse primordial
no contexto brasileiro, se dê da maneira mais produtiva possível.
Herdeiros que somos de uma tradição de estudo e ensino do
texto como categoria abstrata e difusa, centrada no conceito de ti-

64
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

pos ou sequências textuais, depois de quase duas décadas de discus-


sões mais intensas sobre gêneros, ainda nos deparamos com certas
confusões em sua conceituação. Esses equívocos, conforme ilus-
trarei com exemplos de variada procedência, não se circunscrevem
aos professores da educação básica ou aos estudantes de graduação,
mas são igualmente verificáveis no discurso acadêmico em nível de
pós-graduação, além, é claro, de se encontrarem abundantemente
em formas mais populares de publicação na Web, tais como blogs e
sites dedicados a temáticas educacionais.
Entre os equívocos a que gostaria de me dedicar aqui, desta-
co a confusão entre gênero e texto, gênero e suporte, gênero e do-
mínio discursivo, gênero e forma/estrutura e gênero e tipo textual.
A discussão desses equívocos se apoiará em exemplos retirados de
diversos trabalhos sobre gêneros, de variada procedência teórica, a
maioria deles disponível na Internet.
Minha pretensão, com os exemplos apresentados neste traba-
lho, é apenas ilustrar, à guisa de ensaio, cada um dos equívocos
apontados, numa abordagem inicial ao problema. Não houve a pre-
tensão de um rigor metodológico no que tange à seleção de um cor-
pus homogêneo, uma vez que os textos analisados abrangem tanto
trabalhos científicos como escritos mais populares de divulgação.
Trata-se de escritos diversos sobre gêneros, produzidos no Brasil e
veiculados em artigos científicos, dissertações, blogs e sites educa-
cionais, envolvendo não só autores da área de Letras, mas também
das áreas de Comunicação e Educação, que por razões diversas se
interessam pelo fenômeno.
A organização do texto é simples. Primeiramente, enfoco os
pontos que designei como equívocos no que diz respeito à relação
entre gênero e texto, suporte, domínio discursivo, forma/estrutura e
tipo textual. Nas considerações finais, traço algumas reflexões mais

65
Equívocos no discurso sobre gêneros

abrangentes sobre a relação entre os pontos discutidos e os conceitos


de gênero, texto e discurso.

Gênero e texto

Se, como afirma Marcuschi (2008, p. 154), “é impossível não se


comunicar verbalmente por algum gênero, assim como é impossí-
vel não se comunicar verbalmente por algum texto”, os conceitos de
gênero e texto se mostram tão próximos que não admira que sejam
objetos de confusão teórica. Para ilustrar essa confusão, em que o
texto é identificado diretamente com o gênero, vejamos o seguinte
exemplo, colhido de uma dissertação de mestrado recente, então em
construção:

Exemplo 1. Gênero e texto em dissertação de mestrado

Os gêneros [charge e placa] são misturados e, tanto um quanto


o outro são necessários para que o propósito que o enunciador
pretende seja alcançado. [...] O criador da charge juntou os dois
gêneros intencionalmente.

(Fonte: Dissertação de mestrado em construção)

66
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

No exemplo, o estudante apresenta a imagem da personagem


Mafalda refletindo sobre os dizeres da placa e faz o comentário re-
produzido acima. Percebe-se, pela análise do mestrando, que o texto
em sua materialidade é tomado como equivalente aos gêneros aos
quais faz referência do ponto de vista composicional.
Entretanto, o gênero não deveria ser confundido com o texto
que o “materializa”. Na realidade, esse modo de descrever o fenô-
meno, bastante comum na literatura especializada, pode se revelar
extremamente enganoso. Em que sentido o gênero “se materializa”
no texto? Penso, antes, que do gênero jamais se pode dizer que “se
materializa”. Apenas o texto pode ser descrito como tendo um as-
pecto material ou uma materialidade linguística3.
Quanto ao gênero, numa concepção sociológico-retórica, é bem
definido por Bazerman (2005) como um “fenômeno de reconheci-
mento psicossocial”, passando, portanto, bem longe de qualquer as-
pecto material. Numa linha de raciocínio semelhante à de Bazerman,
a distinção entre gênero e texto é colocada com clareza por Carolyn
Miller em sua entrevista na Série Bate-Papo Acadêmico, publicada
pelo Núcleo de Investigações sobre Gêneros Textuais (NIG) da Uni-
versidade Federal de Pernambuco (UFPE):

O gênero é [...] uma questão de acordo social. O texto tende


a ser um material determinado, ou um modo de materiali-
zação de um enunciado ou de um trecho de discurso verbal.
São designações de dois domínios conceituais muito diferen-
tes. Eu de modo algum os usaria um pelo outro (MILLER;
BAZERMAN, 2011, p. 21).

3. É conveniente ressaltar que os termos “material”, “materialidade” e “materializar” são empregados aqui
sem nenhuma conotação filosófica especial, mas apenas no sentido de que o texto, ao contrário do
gênero, tem sempre um componente material, visível na escrita e audível na fala, ao ser atualizado a
partir de recursos disponíveis no sistema linguístico e noutros sistemas semióticos.

67
Equívocos no discurso sobre gêneros

Assim, uma descrição mais acurada do exemplo em questão, ao


invés de afirmar que o “criador da charge juntou os dois gêneros”,
deverá ressaltar que o texto, tal como foi construído, remete às con-
venções de dois gêneros distintos, a placa e a charge, sendo afinal
identificado como pertencente a este último em decorrência dos pro-
pósitos comunicativos que realiza.

Gênero e suporte

Eis aqui uma questão importante, mas que raramente foi tratada
com a seriedade devida, constituindo uma exceção honrosa o ensaio
de Marcuschi intitulado “A questão do suporte dos gêneros textuais”
(2003)4. A propósito da temática, convém evocar aqui a constatação
de Fraenkel (2004): enquanto a área de história desenvolveu disci-
plinas inteiramente voltadas para o suporte como objeto de estudo
(epigrafia, papirologia, codicologia, paleografia)5, as ciências da lin-
guagem paradoxalmente têm ignorado quase por completo o papel
do suporte na comunicação escrita. Consequentemente, a confusão
entre gênero e suporte será um equívoco relativamente frequente no
discurso sobre gênero, inclusive no discurso científico na área dos
estudos da linguagem. Vejam-se os exemplos:

4. Também dignas de nota são repercussões do trabalho seminal de Marcuschi, como ocorre em Costa
(2008), com suas “contribuições ao debate sobre a relação entre gêneros textuais e suporte”.
5. Em parte com base nessas disciplinas de natureza histórica, desenvolvi todo um capítulo de minha
tese de doutoramento (BEZERRA, 2006) caracterizando e discutindo o livro como suporte de variados
gêneros.

68
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

Exemplo 2. Gênero e suporte em artigos científicos: gêneros


digitais
Diálogos online: as intersemioses do gênero Facebook
O gênero emergente Facebook proporciona, através de sua plata-
forma colaborativa [...]

(Fonte: Revista Ciberlegenda, n. 25, 2011)

Exemplo 3. Gênero e suporte em artigos científicos: escrita con-


vencional
O gênero outdoor apresenta um discurso publicitário que atinge
um público heterogêneo de grande proporção.

(Fonte: Revista Interdisciplinar, v. 5, n. 5, jan.-jun. 2008)

Quanto à relação entre gêneros e suportes digitais, caso do


exemplo 2, Marcuschi (2003, p. 34) apresenta a seguinte análise, que,
embora não se refira ao Facebook, oferece um parâmetro para a dis-
tinção entre o conhecido site de redes sociais e a noção de gênero:

Para alguns autores a homepage e até mesmo o portal é um


gênero, mas para outros é um suporte. Pessoalmente imagi-
no que se trate de um serviço no caso dos portais de servi-
dores, mas já não teria tanta certeza no caso de homepages
pessoais. De um modo geral a homepage é um suporte e não
um gênero.

Concordando-se com a visão do autor, o Facebook seria mais


propriamente um suporte, uma vez que ali se instanciam textos em
diversos gêneros. Seria também um “serviço” no sentido de uma fer-
ramenta virtual que possibilita a formação e a manutenção de inú-
meras redes sociais, cujos membros utilizam gêneros típicos do meio
para interagir socialmente. Vale dizer ainda que, entre os pesquisa-
dores que se dedicam a estudar os gêneros digitais, pelo menos no

69
Equívocos no discurso sobre gêneros

contexto brasileiro, não há um consenso sobre qual seria exatamente


o suporte desses gêneros6, mas dificilmente um desses especialistas
defenderia o Facebook como um gênero.
Um ponto de vista dessa natureza implicaria novamente a di-
luição das fronteiras entre gênero e texto, além de criar a inusita-
da e talvez impossível situação em que um gênero não abrangeria
“uma classe de eventos comunicativos”, como define Swales (1990),
pois o Facebook se constituiria como o único e enorme texto de seu
próprio gênero. Ou, alternativamente, seria necessário considerar os
diversos “facebooks” de cada usuário como instâncias textuais do
“gênero Facebook”, desconsiderando ainda a diversidade de gêneros
que efetivamente é mobilizada nos variados textos que possibilitam
a interação social via Facebook.
Em seguida, analisando o exemplo 3, encontramos uma identi-
ficação relativamente comum do outdoor como gênero, apesar de a
experiência com a temática dos gêneros no ensino de graduação e de
pós-graduação indicarem que se trata de um equívoco pelo menos
em vias de superação. Não é difícil perceber que o outdoor em si é um
suporte físico que, pela sua configuração material, impõe restrições
específicas aos textos quanto a suas dimensão, circulação e forma de
leitura. No mais, o outdoor serve de suporte para textos em diferentes
gêneros, dotados de variados propósitos comunicativos, embora os
gêneros do domínio publicitário estejam entre os mais recorrentes.
Ao classificar o outdoor como um suporte, Marcuschi (2003, p.
26) relembra seu posicionamento anterior, sustentado em um mo-
mento que a distinção entre suporte e gênero ainda não havia sido
colocada com clareza nos estudos de gêneros.

6. Desconheço igualmente a possível existência desse consenso no panorama internacional. Na pesquisa


brasileira, as conjecturas em torno da identificação do suporte de gêneros digitais abrangem desde
sites como o Facebook até a própria Internet, passando pela tela do computador e até pelos softwares
em si (SOUZA; CARVALHO, 2007).

70
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

Trata-se de um suporte e não de um gênero. [...] em alguns


momentos eu o classifiquei como gênero, mas dada a diversi-
dade que esse “suporte” veio assumindo quanto aos gêneros
que alberga e quanto à função desses gêneros, eu o classifico
hoje como suporte. [...] Ele porta gêneros bastante especiali-
zados, mas vem se generalizando cada vez mais.

Para o autor, portanto, a diversidade de gêneros que, como su-


perfície física para a escrita, o outdoor “alberga”, tendendo a expandir
suas possibilidades para além de “gêneros bastante especializados”,
constitui razão suficiente para classificá-lo como suporte e não como
gênero. Considero pertinente e necessária a distinção, nesse caso,
porque mais uma vez contribui para evitar uma visão materialista
ou materializadora do gênero. Noutras palavras, confundir o suporte
com o gênero provavelmente revelaria outro aspecto da já referida
confusão entre gênero e texto.

Gênero e domínio discursivo

Para a discussão dessa terceira modalidade de equívoco, consi-


deremos o seguinte exemplo, também proveniente da escrita cien-
tífica, em que o jornalismo é referido como “gênero discursivo”, de
modo que o autor pode se propor “buscar as delimitações do gênero
jornalístico [itálicos meus]”.

Exemplo 4. Gênero e domínio discursivo em artigo científico

O jornalismo como gênero discursivo


Este artigo tem caráter teórico e debate as características do jor-
nalismo como gênero discursivo. [...] Discute, ainda, as condições
propostas por esse contrato e busca as delimitações do gênero
jornalístico[...]

(Fonte: Revista Galáxia, São Paulo, n. 15, p. 13-28, jun. 2008)

71
Equívocos no discurso sobre gêneros

Claro está que o jornalismo, como atividade profissional, ca-


racteriza-se pela construção e circulação de gêneros peculiares a
essa atividade, de modo que o jornalismo “alberga” diversos gêneros
“jornalísticos”, mas o jornalismo em si não é um gênero. Marcuschi
(2008, p. 155) teoriza sobre essa relação entre o jornalismo como ati-
vidade profissional e os gêneros como categorias textual-discursivas
que possibilitam essa atividade ao lançar mão do conceito de domí-
nio discursivo:

Domínio discursivo constitui muito mais uma “esfera da ati-


vidade humana” no sentido bakhtiniano [...] e indica instân-
cias discursivas (discurso jurídico, discurso jornalístico, dis-
curso religioso etc.). Não abrange um gênero em particular,
mas dá origem a vários deles, já que os gêneros são institucio-
nalmente marcados.

De acordo com Marcuschi, portanto, há um paralelo entre a no-


ção de domínio discursivo e o conceito bakhtiniano de esfera de ati-
vidade humana (BAKHTIN, 1997, p. 279). O jornalismo não deve ser
tratado como gênero e sim como uma esfera de atividade profissio-
nal que, enquanto instância discursiva, “dá origem” a uma variedade
de gêneros que são requeridos e validados socialmente para a viabi-
lização da própria atividade.
No exemplo 5, a seguir, o equívoco se repete, porém com o agra-
vante da retomada de “gênero textual jurídico” como “tipo textual” e
em seguida novamente como “gênero”, o que tanto evidencia como
potencialmente contribui para uma confusão ainda maior por parte
de leitores não especializados na temática (ver discussão sobre a re-
lação gênero-tipo textual mais adiante).

72
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

Exemplo 5. Gênero e domínio discursivo em projeto de extensão


universitária

O projeto pretende mostrar para os alunos a forma do gênero


textual jurídico, com as suas especificidades e assim introduzir
a prática desse tipo textual nas produções dos alunos para que
façam o uso desse gênero tão pouco conhecido por eles.

(Fonte: Anais do 8. SEMEX, n. 3, p. 1-5, 2010)

À semelhança do domínio jornalístico, o jurídico também se re-


fere a uma instância discursiva caracterizada pela circulação de gê-
neros peculiares à atividade jurídica, de modo que é possível falar de
inúmeros gêneros (que são) jurídicos, isto é, vinculam-se ao meio ju-
rídico, mas não existe algo como o gênero jurídico. Considerando-se
o caráter pedagógico do projeto, pode-se lamentar a falta de clare-
za terminológica pelas consequências que possivelmente acarretará
para os alunos envolvidos.

Gênero e forma/estrutura

A redução, especialmente pedagógica, do gênero a uma forma


ou estrutura representa mais uma faceta da confusão conceitual en-
tre gênero e texto. Reitera, noutras palavras, a redução do gênero a
uma categoria material por aproximação com o caráter de materiali-
dade linguística do texto.

Exemplo 6. Gênero como forma/estrutura em site educacional

Carta pessoal
[...] As características desse tipo de gênero textual são simples, ou
seja, não possuem muitas regras e estrutura para serem seguidas.
[...] O tamanho varia entre médio e grande. Quando é pequeno, é

73
Equívocos no discurso sobre gêneros

considerado bilhete e não carta. [...] Quanto à estrutura, a carta


pessoal deve seguir a sequência: 1. local e data escritos à esquer-
da, 2. vocativo, 3. corpo do texto e 4. despedida e assinatura.

(Fonte: Site Brasil Escola)

Nesse exemplo, a par da estranha terminologia “tipo de gêne-


ro textual”, encontramos uma definição do gênero carta cuja ênfase
se concentra decididamente na estrutura formal dos textos que o
instanciam. Assim, o gênero é definido ora pela extensão do tex-
to (“quando é pequeno, é considerado bilhete”), ora por uma sequ-
ência pré-estabelecida de informações aparentemente obrigatórias.
Tal descrição, além de desconsiderar a flexibilidade na configuração
formal dos textos efetivamente produzidos nesse gênero, privilegia
o aspecto estrutural como se ele fosse um aspecto único ou, no mí-
nimo, um aspecto privilegiado para caracterizar o gênero.
Lembremos aqui Marcuschi (2008, p. 154), para quem, em con-
sonância com a concepção sociológico-retórica de Carolyn Miller
([1984] 2012), “quando dominamos um gênero textual não domina-
mos uma forma linguística e sim uma forma de realizar linguistica-
mente objetivos específicos em situações sociais particulares”. Ape-
sar da recorrência da descrição quase exclusivamente estrutural dos
gêneros em sites educacionais, este está longe de ser o aspecto prin-
cipal para uma caracterização adequada do fenômeno.
Entretanto, o equívoco não deixa de ser compreensível se consi-
derarmos com Miller que “a forma é a dimensão em que mais facil-
mente detectamos a tipificação”, correndo assim o risco de se con-
fundir com o conjunto do processo. Contudo, segundo a autora, “o
que o conceito de tipificação nos induz a ver, além das similaridades
de forma, são as similaridades de conteúdo ou substância e as simila-
ridades de ação”(MILLER; BAZERMAN, 2011, p. 34). Em suma, numa

74
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

concepção de gênero como forma de ação social, a forma do texto é


um critério claramente insuficiente para a definição do gênero.

Gênero e tipo textual

Nesse último equívoco, o gênero é reduzido a uma sequência ou


tipo textual, como no exemplo 7, em que o tipo descritivo é “concei-
tuado” como um gênero.

Exemplo 7. Gênero como tipo textual em blog educacional

Gênero textual: descritivo


Conceituando Gênero Descritivo: É a ação de descrever algo ou al-
guém, sendo considerado o ato de narrar, porém minuciosamente,
visando sempre os mínimos detalhes, fazendo um retrato distinto
e pessoal de alguém ou algo que viu.

(Fone: Blog Aprendendo a Aprender)

No exemplo, o “gênero descritivo” é definido ao mesmo tempo


como “ação de descrever” e como “ato de narrar”, gerando uma con-
fusão conceitual difícil de resolver. O mais importante, no entanto, é
que o autor desconsidera que essas ações ou atos constituem, no di-
zer de Marcuschi (2008, p. 154), “uma sequência subjacente aos tex-
tos” e não um gênero. Como sequências subjacentes ou, ainda, como
“uma espécie de construção teórica”, os tipos textuais, em geral asso-
ciados entre si, podem participar da composição de variados textos
vinculados a diferentes gêneros. Desse modo, os tipos textuais são
aspectos da composição de textos pertencentes a diferentes gêneros,
não constituindo, eles mesmos, gêneros como tais nem participando
das convenções sócio-históricas que definem os gêneros.

75
Equívocos no discurso sobre gêneros

No dizer de Marcuschi (2003, p. 17), os tipos textuais são “muito


mais modalidades discursivas ou então sequências textuais do que
um texto em sua materialidade”. Ainda conforme o autor, os tipos
“abrangem um número limitado de categorias conhecidas como: nar-
ração, argumentação, exposição, descrição, injunção” e “constituem
modos discursivos organizados no formato de sequências estrutu-
rais sistemáticas que entram na composição de um gênero textual”.
Não se trata de opor o tipo textual ao gênero, mas de relacionar os
tipos de texto a aspectos da composição dos textos nos diferentes
gêneros, como afirmei acima.

Considerações finais

Após esse breve percurso pelos “equívocos” no discurso sobre


gêneros no contexto brasileiro, me parece inevitável concluir que o
conjunto deles pode ser reduzido a duas subclasses centrais: primei-
ramente, confundir gênero com suporte, com forma/estrutura e com
tipo textual revela, ao fim e ao cabo, diferentes aspectos da confusão
entre gênero e texto; a confusão entre gênero e domínio discursivo,
por sua vez, indica uma sobreposição pelo menos parcial entre os
conceitos de gênero e de discurso7.
Quando se identifica gênero com suporte, a confusão se dá mais
propriamente entre o gênero e o texto ancorado no referido suporte,
e não entre o gênero e a superfície material em questão, embora a
nomeação do gênero se realize com base na dita superfície em um
processo de alguma forma “multimodal”. É pouco provável que um
outdoor sem texto de qualquer natureza, completamente em branco
ou vazio, seja identificado como gênero.

7. É certo ainda que “discurso”, neste caso, remete a linguagens de especialidade, como o discurso
jornalístico, o discurso jurídico, o discurso científico, e poderia também ser tratado na relação com o
conceito de registro na terminologia da Linguística Sistêmico-Funcional.

76
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

Quanto à redução do gênero a um formato ou estrutura textual,


também me parece óbvio que só é possível se o texto e o gênero fo-
rem vistos como uma realidade única. Nesse caso, o gênero é reifica-
do na forma de um dado texto. Ou seria “materializado”?
Por fim, na fusão entre gênero e tipo ou sequência textual, mais
uma vez temos a identificação do gênero com formas estruturais e
composicionais que definem mais propriamente o texto e não o gê-
nero. No que diz respeito ao gênero, a forma tanto pode ser uma pis-
ta segura e conveniente como um engodo e uma dissimulação.
Se a aproximação entre gênero e texto implica a materialização
ou coisificação do gênero, me parece que a identificação do gênero
com o domínio discursivo conduz o gênero a um nível mais alto de
abstração e generalização. O que seria uma das categorias do discur-
so jornalístico passa a ser visto como o próprio discurso jornalístico,
perdendo muito de sua especificidade e contextualidade. Marcuschi
(2002, p. 23) esclarece que “esses domínios não são textos nem dis-
cursos, mas propiciam o surgimento de discursos bastante específi-
cos”. É no interior desses discursos peculiares aos respectivos domí-
nios que circularão textos em gêneros também bastante específicos.
Se essa percepção está correta, então o problema de fundo a
elucidar seria a relação entre texto, gênero e discurso. Não tendo
sido esse precisamente o objetivo deste trabalho, cumpre aqui ape-
nas apontar um caminho para o tratamento da questão: o enfoque
sobre o gênero como categoria mediadora entre o texto e o discur-
so, como visto, por exemplo, em Coutinho (2004). A inter-relação
entre texto e discurso, conforme tratada por essa autora em um
trabalho intitulado “Schématisation (discursive) et disposition (tex-
tuelle)”, foi descrita por mim nos seguintes termos em minha tese
de doutoramento: “O discurso, por um processo de esquematiza-
ção, conduziria a uma dada disposição textual, cuja manifestação

77
Equívocos no discurso sobre gêneros

visível, o texto como objeto empírico, se configuraria na forma de


um gênero” (BEZERRA, 2006, p. 61).
Ainda que essa formulação não pareça bastante clara para mim
hoje, a ideia é que o gênero é a categoria que efetivamente nos per-
mite passar do discurso ao texto sem que persista uma dicotomia
entre ambos, por um lado, e sem que o gênero se reduza a um ou a
outro. Nessa perspectiva, uma discussão que se veria largamente es-
vaziada, apesar das paixões que eventualmente desperta, seria a que
separa “gênero textual” de “gênero discursivo”, mas esta também é
outra história, da qual não tratarei aqui.
A meu ver, é esse posicionamento do gênero como categoria de
mediação que possibilita a visão mais recente da Linguística de Tex-
to acerca da indissociabilidade de texto e discurso. Nas palavras de
Cavalcante e Custódio Filho (2010, p. 61), “em qualquer quadro que
delineie o estatuto do texto na atualidade, é preciso considerar a sua
interdependência em relação ao discurso. Uma tendência cada vez
mais dominante, então, é a da não separação total entre essas duas
instâncias de uso da linguagem.” Acrescento que é precisamente o
gênero que impossibilita que o texto seja visto como “uma mera ma-
terialização do discurso” (ou que se separe “gênero textual” de “gêne-
ro discursivo”, mas eu afirmei que não ia tratar dessa questão).
Espero que essas poucas reflexões e provocações sejam suficien-
tes para nos despertar para a necessidade de uma busca contínua de
refinamento teórico para uma noção que, após um período inten-
so porém curto de trabalho, podemos apressadamente julgar bem
compreendida e bem estabelecida nos meios acadêmico e escolar.
O gênero ainda demanda de pesquisadores e professores um maior
esforço para sua adequada assimilação e aplicação.

78
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

Referências

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criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 279-326.
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como os textos organizam atividades e pessoas. In: BAZERMAN, Charles.
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BEZERRA, Benedito G. Gêneros introdutórios em livros acadêmicos. 2006.
Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal de Pernambuco,
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SWALES, John M. Genre analysis: English in academic and research settings.
Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

79
“Concordo que muitos usos da
linguagem não são deliberados,
e sim, espontâneos. Contudo,
eu também vejo a retórica
levantando a possibilidade
de alguém se tornar mais
consciente e, consequentemente,
mais reflexivo na escolha do
que dizer.”

— Charles Bazerman. Série Bate-Papo Acadêmico. v.1


Gêneros Textuais. Recife, 2011. Disponível para acesso
em: http://www.nigufpe.com.br/serie-academica/volumes

80
3
LINGUÍSTICA DOS GÊNEROS
E TEXTUALIDADE1
François R astier 2 (CNRS, Paris)

Como a questão dos gêneros é tradicionalmente tratada pela


poética, o próprio nome dessa disciplina evoca frequentemente a li-
teratura; entretanto, o conjunto das normas e dos usos linguísticos,
orais e escritos, artísticos ou não, provém do que se poderia chamar
de uma linguística dos gêneros, ramo importante da linguística his-
tórica e comparada. Não querendo repetir proposições descritivas3,
limitar-nos-emos nesta exposição a evocar brevemente o efeito dos
desenvolvimentos da linguística dos gêneros sobre o conceito da tex-
tualidade propriamente dito.

Discurso, gêneros e tipologia dos textos

Ainda pouco estudada na linguística, a noção de gênero suscita


debates sobre sua definição e seu funcionamento, pois é frequente-
mente confundida com aquela, muito vaga, de “tipo de texto”, sendo
ora definida a partir das « funções da linguagem » (Biber, 1988, p.
92), ora associada ao domínio semântico do discurso (Illouz, 1999).

1. Tradução de Rosalice Pinto (Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa (CLUNL) –


colaboradora) e Suzana Leite Cortez (Coordenação PIBID Letras/Português UFPE).
2. frastier@gmail.com
3. Referimo-nos a Rastier (1989, cap. 3; 2001, cap. 8).

81
Equívocos no discurso sobre gêneros

Enquanto os trabalhos pioneiros de Biber (1988, 1993) visavam a de-


senvolver uma tipologia indutiva dos textos, caracterizando-os por
um conjunto de traços linguísticos, a pesquisa que temos desenvolvi-
do combina uma classificação prévia dos gêneros e de testes empíricos
para justificar sua pertinência.
Os gêneros na linguística de corpus – Como os tratamentos au-
tomáticos da linguagem se ocupam dos textos, não das frases, sua
tipologia é uma condição para a sua análise. Para se chegar a trata-
mentos automáticos específicos e eficazes de corpus, é necessário,
evidentemente, que sejam considerados os gêneros, para adaptar as
estatégias de questionamento e de tratamento. A determinação pré-
via dos gêneros permite simplificar os tratamentos, o que não se faz
sem eliminar as ambiguidades: por exemplo, nos prontuários médi-
cos « pense » corresponde apenas à terceira pessoa; o que seria dife-
rente em um corpus de cartas aos colegas.
A demanda social de uma teoria operatória dos gêneros é cres-
cente, tanto para a linguística de corpus quanto para o acesso aos
bancos textuais. O estudo de corpus “em situação” mostra sem dúvi-
da que o léxico, a morfossintaxe, a maneira como se colocam os pro-
blemas semânticos da ambiguidade e do implícito, tudo isso varia de
acordo com os gêneros. Os sistemas de análise e de produção devem
levar em conta essas especificidades. Os projetos de sistemas univer-
sais são, desse modo, irrealistas, linguisticamente falando, porque,
na verdade, eles se sustentam, sobre a ideia preconcebida de que a
língua é idêntica a ela mesma em todos os textos e em todas as si-
tuações de comunicação. Para se alcançar tratamentos automáticos
eficazes, é necessário especificar os funcionamentos próprios aos di-
ferentes gêneros. Por exemplo, em um corpus homogêneo, conhecer
a estrutura do gênero pode permitir a simplificação dos tratamentos:
algumas partes dos textos podem, na verdade, ser eliminadas para

82
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

constituir subcorpus pertinentes para uma dada tarefa. Além disso,


o conhecimento dos gêneros pode se tornar útil para a pesquisa de
informações: nos artigos científicos, por exemplo, a formulação das
hipóteses pode ser encontrada em partes bem definidas da estrutu-
ra do texto, assim como as discussões teóricas. Entretanto, o artigo
experimental não tem a mesma estrutura que o artigo teórico etc.
Assim, uma descrição fina é um pré-requisito necessário.
A linguística de corpus deve permitir que se refunda ou se afine
a distinção intuitiva e empírica nos gêneros. Por isso, exploraremos
as variações morfossintáticas, que são consideráveis. Por exemplo, os
textos literários contêm significativamente menos formas passivas
do que os outros; a posição do adjetivo, a natureza dos determinan-
tes, dos pronomes e dos tempos verbais, o uso da desinência nominal
(de número) também variam consideravelmente. No discurso técni-
co, as variações são relevantes quando se compara um manual e um
folheto comercial: no primeiro, os acrônimos, os imperativos, as elip-
ses de determinantes; no segundo, as frases longas, os pronomes com
grande incidência etc. Os valores posicionais das unidades textuais e
sua distribuição variam também conforme os gêneros: por exemplo,
um estudo contrastivo de Biber (1993a) permitiu destacar uma lista
de 6.000 palavras, sendo a maior parte concretas, próprias aos textos
ficcionais - cf. (impatiently “impacientemente” ou sofa “sofá”).
Ainda sobre o gênero, convém distinguir o campo genérico e
o discurso. Em suma, três níveis podem ser considerados: o dos dis-
cursos (ex. jurídico versus literário versus científico), o dos campos
genéricos (ex. teatro, poesia, gêneros narrativos)4, o dos gêneros pro-
priamente ditos (ex. comédia, romance « sério », romance policial,

4. Um campo genérico é um grupo de gêneros que constrasta entre si, ou melhor, apresenta rivalidade
em um campo prático: por exemplo, no âmbito do discurso literário, na época clássica, o campo genérico
do teatro se dividia em farsa, comédia, comédia heróica e tragédia.

83
Equívocos no discurso sobre gêneros

novela, conto, relato de viagem). Os subgêneros (ex. romance através


de cartas) constituem um nível ainda mais subordinado. As diferen-
ças de status epistemológico entre esses níveis fazem com que não se
possa, a não ser que por simplificação didática, representá-los atra-
vés de um simples gráfico em árvore que aqui se vê, no entanto.

Campos
Discursos Gêneros Subgêneros
genéricos

Comédia
Teatro Tragédia
Drama

Literário Poesia

Policial
Romance por cartas
Relatos
de formação
Novela

Jurídico

Político

Figura 1. Níveis de classificação dos textos

Responsabilidade da linguística

No que se refere aos gêneros, a linguística deve elaborar suas


próprias categorias descritivas, porque as disciplinas vizinhas, estu-
dos literários e filosofia, originam-se de outras problemáticas e seu
aporte permanece limitado.

84
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

Os estudos literários contemporâneos quase renunciaram à re-


flexão sobre os gêneros, ao menos ao que se refere à literatura mo-
derna, em que as teorias românticas e pós-românticas à Barthes mi-
nimizam o interesse por um estudo dos gêneros, defendendo que a
Literalidade de um lado, e o Estilo do outro, transcendem-nos. Em
outras palavras, mesmo que autores, como Le Clézio, apresentem al-
guma desconfiança em relação aos gêneros, os métodos da linguís-
tica de corpus mostram que as obras desmentem essas propostas já
estabelecidas5.
A filosofia da linguagem nos trará ainda menos informação so-
bre os gêneros, porque ela continua a transcender as línguas e os
textos. Por exemplo, tributária da tradição do positivismo lógico que
no fundo ela contesta, a teoria dos jogos de linguagem de Wittgens-
tein permanece dominada pelo individualismo metodológico e sem
alcance empírico para descrever a incidência dos usos particulares
das normas socializadas que são os gêneros. Através de um jogo de
pensamento, Wittgenstein afirma, por exemplo, que a leitura é um
jogo de linguagem: entretanto, ela não é de forma alguma indepen-
dente nem dos gêneros nem das práticas em que estes acontecem6.
O jogo da linguagem não pode instituir o gênero, pois os métodos
de uso da linguagem são definidos nos gêneros: o ato de fala so-
mente cria performance linguística em função das normas genéricas
e discursivas e até demarcando-se delas. De fato, as situações não
são isoladas das práticas que definem seus regimes de pertinência
e permitem identificar inovações. Em suma, longe de definir os gê-

5. Cf. Kastberg-Sjöblom, 2002, pp. 51-55.


6. Os outros jogos são atos descontextualizados: por exemplo, fazer alarde, antigo exemplo de retórica,
já presente em Dumarsais, enquadra-se como um jogo de linguagem (dentre outros), mas é consensual
que o seu funcionamento é diferente em uma cena de teatro ou na sala. Longe de definir um gênero, o
jogo de linguagem o pressupõe para determinar seu sentido. Ar de família, jogo de linguagem e formas
de vida continuam sendo três noções com definições vagas, o que permite inseri-las com comodidade
em todos os lugares.

85
Equívocos no discurso sobre gêneros

neros ou de substuí-los ´por outra categoria´, os jogos de linguagem


os pressupõem, já que estes funcionam nos gêneros ou nas práticas
singulares suscetíveis de se instalar em gêneros (mesmo sendo estes
únicos/privados).
Por seu turno, constantemente invocado como fundador de uma
teoria dos gêneros, Bahktin descreve com todo direito a sua empreita-
da como uma filosofia, visto que esta não demonstrou apresentar uma
capacidade descritiva notável7. Retomando de forma não explícita
muitos dos temas do idealismo alemão, ancorados particularmente na
dialética de Schleiermacher, ele não pôde resolver a contradição entre
o desejo de apresentar uma teoria dos gêneros, de tradição filológica, e
teorias da polifonia e do dialogismo que exploram o tema modernista
da heterogeneidade, originário da teoria romântica do romance.

O gênero determina/condiciona a
semiose textual

O problema da arbitrariedade do signo, de tradição filosófica,


parece não ser pertinente para a linguística. Ao ser compreendido
como a relação entre signo e referente, ele não pode ser colocado
de forma independente a um texto e de suas convenções miméti-
cas. Caso se refira à relação estabelecida entre conteúdo e expres-
são, ele também não pode ser colocado ao mesmo nível do signo
isolado – a unidade correta seria o próprio morfema. Como não há
conformidade entre planos da linguagem, o problema da semiose
deve ser colocado ao nível do texto, não devendo estar em termos
referencias nem ao nível da palavra, nem mesmo no nível da frase.

7. Filósofo e ensaista, Bakhtin não pensou em propor critérios linguísticos para a descrição dos gêneros.
Sua contribuição permanece ainda mais enigmática pelo fato de sua reputação ter vindo a ser assegurada
por obras de outros autores (Voloshinov e Medvedev, notavelmente) e de textos presumidamente de
sua autoria terem vindo a ser crivados de citações não assinaladas, de Cassirer a Husserl.

86
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

Ao nível do texto, deve-se abandonar completamente a noção de


arbitrário: como em uma cultura tudo é convenção, um texto só
tem como legalidade interna suas normas, em primeiro lugar seu
gênero – e o mesmo é válido para outros objetos culturais.
A semiose textual é uma semiose, quer dizer, um ato de expres-
são e de interpretação. Enquanto ato, é originária de uma praxiologia
das performances linguísticas, e não de uma ontologia ou de uma
teoria das representações. A poética descreve normas em ação, levan-
do em conta que essas normas são, por definição, socializadas, e que
estas ações textuais decorrem de práticas sociais e constituem o nível
semiótico dessas mesmas práticas.
Anteriormente, definíamos um gênero, no plano semântico, pela
interação de quatro componentes8 não hierarquizados. Por compo-
nentes, compreendem-se conjuntos de normas de um mesmo tipo:
por exemplo, as da temática.
As componentes semânticas se articulam às da expressão: sem
prejulgar que o “pensamento” escolha sua expressão, como se este
se infiltrasse na linguagem, podem-se descrever imbricações entre
coerções semânticas e coerções no plano do significante. Um gênero
define claramente uma relação normatizada entre o plano do signi-
ficante e o plano do significado ao nível textual: por exemplo, no gê-
nero artigo científico, o primeiro parágrafo, no plano do significante,
corresponde normalmente a uma introdução, no plano do signifi-
cado; na novela, enquanto gênero, trata-se mais frequentemente de
uma descrição.

8. Mais especificamente, a temática dá conta dos temas, descritos como formas semânticas (moléculas
sêmicas); a dialética estuda a sucessão dos intervalos no tempo textual, como os estados que se
posicionam neste e os processos que aí acontecem; a dialética, as relações modais entre universo e
mundo, leva em conta a enunciação representada; a tática considera a linearidade do significado e a
disposição das unidades textuais. Este modelo modular não-hierárquico foi retomado em seu princípio
por diversos gramáticos do texto (Adam, 1992; Roulet e coll, 2001).

87
Equívocos no discurso sobre gêneros

Em síntese, os gêneros determinam, ou melhor, permitem as re-


lações entre os dois planos da linguagem. Observa-se, por exemplo,
nos rascunhos dos escritores e dos pensadores, quer seja de Flaubert,
quer de Saussure, o texto no início sem uma classificação clara se
moldar pouco a pouco a um gênero. Não deixando de evocar aqui
uma ilusória excelência em estabelecer correlações, a enunciação es-
tabelece ainda uma espécie de compromisso entre as coerções da prá-
tica (na qual se define o gênero) e a situação (quer dizer, além do aqui
e agora, a posição histórico-cultural do enunciador e do intérprete).
A semiose limitada proposta pela língua nos níveis inferiores, da
palavra à frase, só se torna efetiva se for compatível com as normas do
gênero, ou melhor, do estilo que asseguram a semiose textual9. Ain-
da, a proposição gramatical faz sentido apenas quando presente em
um período, quer dizer, enquanto passagem de um texto. Enfim, a
semiose do léxico é também determinada pelo gênero ou pelo campo
genérico: por exemplo, amor em poesia tem pouquíssimos contextos
comuns com amor em romance, embora essas duas palavras sejam
quase homônimas10. Acresce ainda o fato de que nenhum léxico é in-
dependente do discurso e as ontologias hoje florescentes (Wordnet,
EuroWordnet, Semantic Web) constituem artefatos em escala mundial
com grande custo.

9. O sistema da língua, tal qual o concebem geralmente os linguistas, não determina a semiose textual
e só estabelece coerções à semiose ao nível de complexidade mais elementar, o dos morfemas: ao nível
dos morfemas, a língua propõe, ou melhor, impõe emparelhamentos entre significante e significado (ex.
re- é iterativo); mas os morfemas não têm neles mesmos uma significação definida, isto porque o (falso)
problema da referência nunca foi posto a respeito. Ao nível imediatamente superior, o do léxico (o dos
lexemas), as palavras já são unidades “de discurso”, pois a relação estabelecida entre seus morfemas é
regulada por uma sintaxe interna: a sua significação e a sua forma de semiose já dependem das relações
contextuais entre os morfemas que as compõem.
10. Assim, no romance, amor tem como antônimo casamento ou dinheiro. Na poesia, não é nem
casamento, nem dinheiro. Para uma análise em corpus no banco de dados Frantext, cf. Bourion, 2001,
pp. 42-45.

88
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

Além dos regimes de produção e de interpretação dos textos, a


semiose textual coíbe a forma de mimese. Em regra geral, quanto
mais as relações entre os dois planos do texto estiverem sujeitas a
normas, maior será o efeito de empírico real ou transcendente, como
o atestam os textos gnômicos ou religiosos.
A interação complexa entre planos da linguagem, relacionada à
enunciação do texto como performance semiótica, não atua apenas
na língua, mas também no gênero. Assim, um gênero constitui “um
aro que ainda falta” dos modelos enunciativos. Suas normas substi-
tuem com muita vantagem as representações mentais intermediárias
e protótipos diversos, pois permitem planificações da ação enuncia-
tiva compatíveis com a prática e a situação. O mesmo acontece com
a interpretação, pois o texto deve ser lido de acordo com seu gênero:
sua literalidade e até mesmo sua pronúncia dependem disso (não se
lê um trecho de romance como um poema).
Enfim, o problema do gênero ultrapassa as ciências da lingua-
gem, pois encontram-se problemas análogos em outras semióticas
em que se considera a existência de gêneros. Além disso, enquan-
to as diversas semióticas (linguagem, música, danças) são descritas
normalmente como sistemas isolados, é em alguns gêneros pluris-
semióticos como a ópera, o cinema, o site interativo que elas encon-
tram modos de interação que seguem regras: ou seja, o estudo dos
gêneros comanda o da intersemioticidade. Dessa forma, a linguística
dos gêneros ocupa indubitavelmente um lugar importante tanto na
linguística quanto na semiótica.

O gênero pertence ao texto

Diz-se normalmente que um texto pertence a um gênero. Essa


proposição mereceria ser invertida: o gênero pertence ao texto, que

89
Equívocos no discurso sobre gêneros

contém indicações de seu gênero (no título, no suporte, bem como


no seu léxico, na sua composição etc.). Consequentemente, não rete-
remos as noções comuns nem de peritexto nem de arquitexto, pois
nada contribuem para a compreensão da textualidade.
A menos que o texto seja reduzido a uma simples e única cadeia
de caracteres, o peritexto pertence integralmente ao texto. Podem-se
distinguir três níveis de análise do texto: o peritexto (títulos, títulos
correntes, ligações etc.); em seguida, o intratexto (colunas gráficas,
« caixas »); por fim, o infratexto subordinado (notas etc.). Esses ní-
veis são válidos para a modalidade escrita, mas encontram análogos
para a oral: o peritexto é então epilinguístico (cf. vou te contar algo
que vai surpreender), o mesmo para o infratexto (detalhamentos de
certos pontos).
Apesar de ser localizável, o peritexto concretiza índices globais
(gênero, tema geral, ponto de vista ou posição dialógica). Então, ele
determina o infratexto, uma vez que o global determina o local. Ci-
tam-se frequentemente, no prolongamento de Adam e de Goldens-
tein, o artigo de jornal que se tornou poema em Blaise Cendrars, os
artigos do dicionário Littré que se tornaram poema em René Char.
A recategorização, como a retomada (seletiva) em Char de artigos do
Littré transformados em poemas a partir dessa transferência, não
corresponde a um simples deslocamento de uma cadeia de caracte-
res: a categoria do texto muda com a mudança do suporte, do autor, e
com a proximidade de outros poemas. A expressão pode até parecer
idêntica a partir do momento em que se suspende a interpretação,
contudo ela deve ser reconhecida por ela mesma, processo que não
é de forma alguma independente do contexto e da situação. A deter-
minação do global sobre o local é de tal forma que o texto recatego-
rizado muda de regime hemenêutico, mimético e referencial.
Não há também arquitexto, considerando-se que o gênero não
é nem uma classe, nem um tipo, mas uma linhagem. No centro des-

90
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

ta, um texto leva em conta, se assim pode se dizer, ancestrais, ri-


vais, mas não um « patrimônio genérico » que o transcenderia. Ele
não corresponde a uma ocorrência de um gênero, mas um momento
numa série de transmissões, em uma tradição feita de rupturas.

A semiose textual e o corpus determinam


os fenômenos locais

Da mesma forma que todo uso modifica e configura potencial-


mente a língua, cada texto atesta e modifica o gênero ao qual pertence.
Mas essas modificações locais só são perceptíveis no interior de uma
estabilidade global; em contrapartida, o gênero configura o texto. As-
sim, o gênero e o texto, de certa forma, interpretam-se mutuamente.
Resultados recentes confirmam a incidência do gênero sobre as
variações morfossintáticas11. A partir de um corpus de 2500 textos
completos classificados por gêneros e discursos e etiquetados em 251
tipos, etiquetas morfossintáticas em sua maioria, foram encontrados
e validados os diferentes níveis de classificação apresentados a seguir,
utilizando percentagens calculadas nas etiquetas. Foram realizadas
análises univariadas para qualificar as variações segundo as catego-
rias das etiquetas, posteriormente uma análise multivariada utilizan-
do métodos de classificação automática. Os resultados, ainda a serem
refinados, mas válidos de qualquer forma, já confirmam a correlação
existente entre as variáveis globais do gênero, campo genérico e dis-
curso, por um lado, e as variáveis morfossintáticas, locais por defini-
ção, por outro. Assim, as condições de aplicação das regras da gramáti-
ca, supostamente representativa da língua em sua pureza sistemática,
variam segundo os discursos, campos genéricos e gêneros.

11. Cf. Malrieu e Rastier, 2001.

91
Equívocos no discurso sobre gêneros

G3: Poesia = 84%


G4: Teatro = 84%

G1: Relatos = 81% (XVIIIe, XIXea)


Ensaios = 18%

G2: Ensaios = 55%


Textos científicos = 14%

G5: Relatos = 87%, XXe a e b


G6: Relatos = 97%, XXe b e a

G7: T. jurídicos = 98,6%

Figura 2: Classificação hierárquica ascendente.


Primeira metade de um século: a; segunda metade de um século: b.

A oposição entre discurso jurídico, de um lado, e discurso li-


terário e científico, do outro, domina inicialmente a oposição en-
tre campos genéricos (teatro, poesia, narrativas) e, ainda, a oposição
entre romances e ensaios. A classificação ascendente hierárquica
apresenta, então, diferenças entre discursos e também entre campos
genéricos. Por outro lado, no plano imediatamente inferior, esta não
faz notar divisões entre gêneros narrativos e conduz evidentemen-
te a uma tripartição das narrativas, particularmente dos romances
“sérios”12. Para se perceber a existência desta não distinção, alguns
esclarecimentos merecem ser feitos: os romances “sérios” do grupo
1 da classificação correspondem ao romance dos séculos XIII e XIX,

12. Não é surpreendente, pois o romance tradicionalmente é um gênero muito diversificado, rapsódico
e heterogêneo, como já o observa o “pároco” no capítulo 47 de Don Quichotte.

92
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

que partilham traços com os ensaios (filosóficos e políticos)13; os ro-


mances “sérios” do Grupo 5 são romances modernos que se aproxi-
mam do romance policial (principalmente do início do século XX);
os romances “sérios” do Grupo 6 são também romances modernos
mas sobretudo autobiográficos, de onde advém a sua aproximação
com os diários de viagem e as memórias.
A partir das variáveis morfossintáticas de que dispomos, as três
técnicas utilizadas: a análise univariada, a análise em componentes
principais e a classificação hierárquica ascendente contribuem para
evidenciar diferenças significativas tanto entre discursos, quanto
entre campos genéricos e entre gêneros. A amplitude muito eviden-
ciada dessas variações confirma a diversidade das normas linguís-
ticas de acordo com os tipos de discurso e o caráter instituinte do
gênero. Essa diversidade ignorada – ou, em outras palavras, ainda
pouco estudada – constitui um domínio de estudo futuro para a lin-
guística: após a pesquisa sobre a diversidade das línguas, é necessá-
rio, efetivamente, estudar a diversidade interna de cada língua, tal
como esta é expressa em sua diversidade de usos no oral e no escrito.
Evidentemente, a análise serial de corpus ampliado constitui uma
forma privilegiada desse estudo.
No plano semântico, o gênero regula de forma importante as
aferências socialmente padronizadas. Há algum tempo, evocamos
essas instanciações de semas: estas dependem de um tópico e, con-
sequentemente, de um gênero ou de um campo genérico. Por exem-
plo, em poesia barroca, um traço é luminoso, por se tratar de uma
metáfora recorrente do olhar. É a redundância desse sema no corpus
do campo genérico que permite inferir esse sema.
Enquanto unidade mínima de análise, o texto age como instân-
cia global em relação a seus elementos, mas também como instân-

13. Cf. Os Miseráveis, romance que alterna capítulos romanescos e capítulos ensaísticos.

93
Equívocos no discurso sobre gêneros

cia local em relação a seu corpus. Evidentemente, pelo viés de seu


gênero, o texto aponta sobre seu corpus e seleciona, de certa forma,
os outros textos que permitem interpretá-lo. Como o gênero não é
uma instância abstrata, a relação de um texto com seus vizinhos
não é mediada por uma abstração arquitextual, mas pelos percursos
intertextuais próprios ao gênero comum desses textos. O primeiro
círculo do corpus, corpus necessário mas nem sempre suficiente, é
também constituído de textos do mesmo gênero.
O gênero determina, assim, um modo de regulação do contex-
to interno e externo (textualidade e intertextualidade). Enfim, ele
permite que o texto escrito se torne compreensível, muito embora a
situação que o tenha desencadeado ou que tenha servido de pretexto
para a sua origem possa não vir mais a ser recuperada.

Linguística(s) da língua, da fala e das normas

A leitura das lições e manuscritos de Saussure confirma que Bally


apagou a contribuição de Saussure à linguística da fala. As duas lin-
guísticas, a da língua e a da fala, ficaram separadas porque a linguís-
tica das normas ainda não foi construída. Pensa-se erroneamente que
pode não existir ciência das normas: esta seria uma deontologia que
fugiria, por seu caráter relativo e condicionado ao imaginário lógico-
-gramatical, das regras, e mesmo do imaginário cientista das leis.
A relação entre língua e fala é ora pensada como uma passagem
do virtual ao real, ora pensada como uma passagem dos condiciona-
mentos a uma liberdade, e tem-se dificuldade de conciliar as virtu-
alidades que a língua impõe com as liberdades reais da fala. Na rea-
lidade, da língua, concebida de forma arbitrária, à fala, passa-se não
apenas por graus de sistematicidade decrescentes, mas também por
estatutos epistemológicos diversos.

94
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

Pode-se propor a seguinte representação:

LÍNGUA
discurso

campos genéricos

paradigmático
gêneros

FALA
sintagmático

Figura 3. Espaço de uma linguística das normas



Ao serem consideradas as diversidades efetivas dos discursos,
campos genéricos e gêneros, o núcleo invariante a que se pode chamar
língua reduz-se drasticamente ao inventário dos morfemas, a imposi-
ções como a estrutura da sílaba, a estrutura do sintagma etc.; os lexe-
mas, por exemplo, já não fazem parte desta, por já serem fenômenos
de « discurso »14.
Nenhum texto é escrito « em uma língua » apenas, ele é escrito
em um gênero, levando-se em conta as regras de uma língua. Aliás, a
analogia das práticas e a dos gêneros decorrentes desta permite a tra-
dução, ou ainda, de forma mais simples a intercompreensão.
Notam-se, certamente, regularidades transgenéricas e transdis-
cursivas. Por exemplo, domínios como a literatura e os ensaios são
vizinhos: pode acontecer, inclusive, que os mesmos transponham para
os dois temas comparáveis. No nível morfosintático e no plano da ex-
pressão, essas regularidades provêm da língua; no plano semântico,
estão relacionadas à ideologia e à doxa.

14. É por isso que o léxico, ao menos o dos lexemas, não pertence à língua.

95
Equívocos no discurso sobre gêneros

Enquanto a morfossintaxe permanece essencialmente alvo de


regras, embora não seja de forma alguma indiferente às normas, a
semântica é essencialmente alvo de normas. Mesmo definindo-se
com razão, as regras como normas fixadas, é necessário que sejam
destacadas as diferenças entre suas formas de evolução diacrônica.
A ligação problemática entre línguas e representações coleti-
vas permanece crucial: uma língua coíbe, mas não dita uma visão de
mundo, como o pretendem, após alguns linguistas nazistas, certos
culturólogos russos de hoje em dia.
Para melhor apreender essa ligação, é necessário se apropriar
do programa de uma linguística dos gêneros. O estudo dos gêneros
faltou à escola francesa de Análise do discurso para poder ligar efe-
tivamente a linguística ao estudo das ideologias. Com os métodos da
linguística de corpus, dispõe-se atualmente de meios novos para tes-
tar hipóteses sobre a relação entre normas e regras, bem como sobre
a existente entre os dois planos da linguagem.

Referências

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Bronckart, J.-P.  ; Bain, D.  ; Schneuwly, B.  ; Davaud, C. & Pasquier, A. Le
fonctionnement des discours – Un modèle psychologique et une méthode
d’analyse. Paris: Delachaux & Niestlé, 1985.
Bourion, E. L’aide à l’interprétation des textes électroniques. Thèse,
Université de Nancy II, 2001.
Kastberg Sjöblom, M. L’écriture de J.M.G. Le Clézio – Une approche
lexicométrique. Thèse, Université de Nice, 2002.
Malrieu, D. et Rastier F. Genres et variations morphosyntaxiques. Traitements
automatiques du langage, 42, 2, 2001, p. 547-577.
Rastier, F. Sens et textualité. Paris: Hachette. Rééd, 1989. Disponível em: <http:
//revue-texto.net>.
Rastier, F. Arts et sciences du texte. Paris: PUF, 2001.
Rastier, F. La mesure et le grain – Sémantique de corpus. Paris: Champion, 2011.
Roulet, E. ; Filliettaz, L. & Grobet, A. Un modèle et un instrument d’analyse
de l’organisation du discours. Berne: Lang, 2001.

96
4
ALGUMAS IDEIAS PARA ENSINAR
NOVOS GÊNEROS A PARTIR DE
VELHOS GÊNEROS1
Amy J. Devitt2 (KU/USA)
Heather Bastian3 (CSS/USA)

Introdução4

Quando os alunos chegam a nossas salas de aula, chegam não


como tábulas rasas, mas como leitores e escritores funcionais com
complexos repertórios de gêneros os quais incluem conhecimento
prévio sobre gêneros acadêmicos, públicos e pessoais, e que são, em
alguns aspectos, parciais, incompletos e incertos, enquanto em ou-
tros sentidos são complexos e totalmente internalizados. Quando
usamos os gêneros – em qualquer pedagogia – para ensinar línguas,
leitura e escrita, nosso ensino é afetado pelo conhecimento prévio
sobre gêneros O conhecimento prévio dos alunos tanto pode benefi-
ciá-los quanto inibi-los e prejudicá-los, assim como interfere positiva
ou negativamente em nosso ensinar. Tem-se desenvolvido vários es-
tudos para investigar os efeitos do conhecimento prévio de gêneros

1. Tradução de Larissa de Pinho Cavalcanti (UFRPE), revisão de Rodrigo Farias de Araújo (UFPE), revisão
e coordenação de tradução Judith Hoffnagel (UFPE).
2. devitt@ku.edu
3. bastianhm@gmail.com
4. O texto desta conferência permanece em grande parte fiel ao produzido em 2009. Claro, muito de
nossa pesquisa sobre transferência e conhecimento de gêneros já foi publicada desde então.

97
Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

nas pesquisas de ensino de segunda língua, já iniciaram pesquisas


na instrução de escrita em primeira língua. Embora possamos estar
bastante confiantes no fato que os alunos possuem conhecimento
prévio de gêneros, podemos estar igualmente confiantes que o co-
nhecimento prévio pode ser transferido de um contexto para o ou-
tro? Ou de uma situação para outra? Ou de um gênero para outro?
Christine Tardy (2006, p.95), em sua excelente síntese das pesqui-
sas em segunda língua sobre o desenvolvimento do conhecimento
de gêneros, conclui que “os aprendizes usam suas experiências em
práticas anteriores e atuais quando constroem conhecimento de gê-
neros” em contextos baseados em práticas (2006, p.82). Revisando
estudo após estudo, Tardy conclui que “as experiências e práticas an-
teriores provavelmente influenciam todos os escritores, quer estejam
escrevendo em primeira ou segunda língua, mas estes também po-
dem ser prejudicados por práticas residuais que entram em conflito
com expectativas atuais”. Com o crescente número de pesquisas, se
torna claro que professores podem melhorar o desenvolvimento do
conhecimento de gêneros dos alunos se melhor entenderem como os
estudantes usam seu conhecimento prévio sobre gêneros.
Para ajudar os alunos a melhor utilizarem seu conhecimento
prévio, seria importante para os professores descobrir do que consis-
te esse conhecimento prévio. Todavia, descobrir o que os estudan-
tes conhecem sobre gêneros e quais gêneros eles conhecem quando
chegam a nossas salas de aula não é tarefa fácil. Mesmo através de
questionamento deliberado, os estudantes não são capazes de rela-
tar confiavelmente seus próprios conhecimentos prévios. A pesquisa
sobre o uso de conhecimento prévio é amplamente retrospectiva,
examinando como crianças e estudantes relatam que usaram conhe-
cimento prévio em uma situação de escrita nova ou seguindo um
caso de como um escritor aprende um novo gênero. Como professo-

98
Amy Devitt (KU) & Heather Bastian (CSS)

res, podemos querer interferir no processo tal como ele ocorre para
possibilitar aos alunos o melhor uso de seus conhecimentos prévios.
Mas o que podemos descobrir sobre o conhecimento prévio sobre
gêneros que nossos alunos trazem para a sala de aula? E como po-
demos ajudar os alunos a aprenderem a fazer melhor uso de seus
conhecimentos prévios com o que descobrirmos?
Para melhor compreender o uso de conhecimentos prévios sobre
gêneros pelos alunos em uma aula de escrita de nível universitário,
estudamos um grupo de alunos de nível superior numa universida-
de dos Estados Unidos, investigando o que eles relataram conhecer
sobre gêneros antes de entrar na universidade e como aquele conhe-
cimento era ou não era visível em sua escrita para o curso universitá-
rio. Esse estudo inicial, exploratório, foi sucedido por pesquisas mais
elaboradas por Mary Jo Reiff e Anis Bawarshi [desde a publicação
em 2011] em diferentes universidades. Aqueles estudos têm feito des-
cobertas instigantes sobre transferências entre diferentes domínios,
dentre outras. Em nosso estudo, mais reduzido, nos concentramos
em casos individuais, na natureza de seus conhecimentos prévios
relatados e nos traços textuais do conhecimento de gêneros visíveis
no material escrito para as aulas. Neste trabalho, reportaremos o que
temos descoberto acerca da natureza do conhecimento prévio des-
ses estudantes e suas potenciais consequências para ensinar novos
gêneros. Embora nosso relato parta de uma pequena amostra de alu-
nos universitários dos Estados Unidos, esses resultados podem ser
aplicados mais geralmente por nós professores enquanto tentamos
usar mais eficientemente os conhecimentos prévios sobre gêneros
dos nossos alunos para ajudá-los a desenvolver novos conhecimentos
de gêneros.

99
Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

Teoria e pesquisa sobre conhecimentos


prévios de gêneros

Devitt (2004) argumenta em seu livro Writing Genres que a aula


de escrita no primeiro período deveria ser vista como um lugar onde
os estudantes adquirem consciência de gêneros – uma compreensão
consciente de como tipos de escrita modelam as respostas do escritor
a situações retóricas. Estudantes de todos os níveis, falantes nativos
ou de segunda língua podem se beneficiar da consciência de gêneros
além dos conhecimentos específicos sobre gêneros. Com habilidade
para analisar os gêneros que precisarão escrever, os alunos poderão
se envolver mais criticamente com os gêneros que encontrarem e po-
derão agir mais deliberadamente ao modelarem tudo, do propósito
e da audiência à organização e ao estilo das sentenças. Mas nossos
alunos não chegam a nossas salas de aula como tábulas rasas. Nossos
cursos de escrita são, de fato, espaços intermediários entre a educa-
ção básica do Ensino Médio e a universidade, entre a escola pública
e a vida pós-escola. Nesses espaços intermediários, os alunos trazem
consigo gêneros que já conhecem de outros ambientes; e, nesses espa-
ços intermediários, os alunos planejam ir adiante para espaços inte-
lectuais e profissionais que tragam gêneros que aindanão conhecem.
Se ensinarmos aos alunos em nossos cursos como os gêneros ope-
ram, sua natureza retórica e ideológica, e as escolhas que os escritores
podem fazer, podemos habilitá-los para adentrar esses mundos com
uma consciência mais aguçada de seus efeitos, bem como maior sen-
sibilidade retórica e habilidade de agir efetivamente na escrita.
Devitt também argumenta que, no processo de ensinar a cons-
ciência de gêneros, também devemos ensinar gêneros específicos
que sirvam como fundação para aprender novos gêneros. Devemos
ensinar o que Devitt chama de gêneros antecedentes (estendendo o
trabalho de Kathleen Jamieson (1974) com antecedentes históricos

100
Amy Devitt (KU) & Heather Bastian (CSS)

para novas situações genéricas). Gêneros antecedentes são os gêne-


ros específicos com os quais se têm experiência e a partir dos quais
se parte quando escreve um novo gênero. Mesmo se não ensina-
mos em um currículo baseado na percepção de gêneros, ensinamos
a escrever determinados textos, sejam argumentações acadêmicas,
trabalhos analíticos, artigos científicos, narrativas ou etnografias.
Esses gêneros, Devitt alega, se tornam os tipos de escrita que os alu-
nos têm em seus repertórios posteriormente, gêneros antecedentes
potenciais para futuras situações de escrita. Quando diante da es-
crita de um novo texto, os estudantes podem partir desses gêneros
conhecidos à medida que aprendem a escrever novos gêneros. Mas
não estamos criando uma nova caixinha de truques para os alunos;
estamos acrescentando à caixinha que já possuem. Os indivíduos
possuem repertórios de gêneros, para usar o termo de Orlikowski e
Yates (1994), para comunicação organizacional, um grupo de gêneros
que os indivíduos adquiriram ou aprenderam. Também há um grupo
mais amplo de gêneros cercando o repertório de gêneros do indiví-
duo, um contexto cultural de gêneros mais abrangente do qual os
alunos podem estar cientes mais perifericamente, não havendo pra-
ticado tais gêneros. Quando escrevem novos gêneros, os indivíduos
o fazem em um contexto de rica intergenericidade, um contexto de
gêneros que existe cultural, comunitária e individualmente.
Uma vez que nossas aulas exigem que os alunos produzam no-
vos gêneros (quer sejam trabalhos analíticos de nível universitário,
relatórios de pesquisa, narrativas ou híbridos multigenéricos), preci-
samos observar mais de perto os repertórios de gêneros já existentes
de nossos estudantes e quais gêneros eles usam como antecedentes.
De fato, pesquisas mostram que ensinar gêneros específicos explici-
tamente pode ser ineficaz se o conhecimento prévio não foi levado
em consideração. Debra Myhill (2005b, p. 291) explica que o “conhe-
cimento prévio” “articula uma conceptualização do aprendizado na

101
Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

qual o aprendiz constrói a relação entre o dado e o novo”. Ela defende


(Myhill, 2005a) que ensinar gêneros explicitamente como nas escolas
australianas e do Reino Unido nem sempre é bem sucedido se não
se consideram os conhecimentos prévios das crianças. Sem observar
o conhecimento prévio de gêneros, as crianças ou seguiam formas
linguísticas sem entenderem suas funções, ou a retórica do gênero,
ou usavam formas linguísticas “criativamente” dentro de estruturas
gerais (MYHILL, 2005a, p.127).
A importância do conhecimento prévio para aprender novos gê-
neros também é evidente nas pesquisa sobre conhecimento prévio
de gêneros que Tardy (2006) revisou. Tardy (2006, p.83) concluiu,
a partir de Palmquist, que escritores “se baseiam em experiências
prévias” com outros gêneros ao criar gêneros não familiares – e, a
partir de Myhill, as crianças britânicas “se baseavam em vários tipos
de conhecimento prévio”. A pesquisa deixa claro, como Tardy (2006,
p.83) relata, que “experiências e práticas em um número de domínios
e gêneros podem vir a influenciar experiências com gêneros pouco
familiares”. Em outras palavras, o conhecimento dos escritores so-
bre gêneros familiares pode ajudar a escrever gêneros não familiares.
Tardy (2006, p.83) também conclui que “experiências prévias podem,
às vezes, todavia, inibir o aprendizado” retomando a descoberta de
Ann Blakeslee de que “as ‘práticas residuais’ dos escritores podem,
portanto, funcionar como obstáculos bem como estratégias”. Em ou-
tras palavras, o conhecimento dos escritores sobre gêneros familiares
pode prejudicar a habilidade de escrever em gêneros não familiares.
Uma forma de o conhecimento prévio afetar nosso aprendiza-
do são os traços daqueles gêneros conhecidos aparecerem em no-
vos textos, uma vez que os escritores partem de gêneros conhecidos
para escrever os novos. Nesses casos, gêneros não necessariamente
permanecem distintos, mas podem entrelaçar-se com outros, espe-
cialmente quando os estudantes abordam gêneros não familiares

102
Amy Devitt (KU) & Heather Bastian (CSS)

através de suas experiências com gêneros de maior familiaridade.


Cathy Tower (2003, p.36), por exemplo, relata que estudantes podem
empregar “formas intermediárias de escrita” “em seu caminho para
a competência com [um] novo gênero” e encoraja professores a acei-
tarem tais formas intermediárias como parte do processo de apren-
dizado, mesmo quando elas propiciam maior exposição aos gêne-
ros que desejam que seus alunos escrevam. De modo similar, Robyn
Woodward-Kron (2005) vê o que denomina de gêneros embutidos/
microgêneros dentro de estruturas de gêneros mais amplas e argu-
menta que estas mostram o que os estudantes precisam trabalhar
enquanto aprendem a fazer o tipo de escrita disciplinar exigida deles:

a presença de gêneros embutidos como microgêneros nos


vários argumentos em estruturas expositivas [exposição tal
como definido pela escola australiana] sugere que os micro-
gêneros têm uma função didática, referidas nesse trabalho
como pontes de aprendizado textual. (WOODWARD-KRON,
2005, p.38)

Outros estudos também têm reportado que características de gê-


neros já conhecidos aparecem em textos que tentam novos gêneros,
talvez revelando andaimes necessários, mas impactando potencial-
mente o aprendizado bem-sucedido. Em seu próprio estudo, Tardy
(2005) expõe que um pós-graduando falante não nativo usou seu co-
nhecimento de trabalhos acadêmicos para escrever sua dissertação,
percebendo suas semelhanças, mas ainda supergeneralizando al-
guns aspectos do trabalho acadêmico na dissertação. Mike Palmquist
(2005) descobriu a partir de entrevistas com seis estudantes escreven-
do documentos na web, que todos menos um website mostravam não
somente as experiências dos alunos como leitores de websites, mas
também a influência de documentos impressos que conheciam – por
exemplo, alguns lembravam ensaios acadêmicos ou antologias literá-

103
Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

rias. Apenas um estudante criou um gênero sem modelo impresso,


e Palmquist (2005, p.232) sugere que isso se deve “muito provavel-
mente ao seu trabalho em um tipo de site que não possui um análogo
impresso – um site comercial para um pequeno negócio”.
O conhecimento prévio sobre gêneros pode, claramente, inter-
ferir com o desenvolvimento de novas práticas de gênero pelos estu-
dantes. Melanie Kill (2004, p.12) argumenta que estudantes “sabem
que podem se fazer legíveis em certos gêneros, e então arriscam dis-
cordância ao incorporar aqueles gêneros, mesmo quando não são,
de outro modo, necessários”. Ela continua: “a apropriação da forma
antes da função claramente explica parte da discordância que pode
surgir quando os estudantes começam a escrever na universidade,
mas penso que o reconhecimento dessas questões de identidade ex-
plica ainda mais” para aquelas ações (2004, p.12). Blakeslee (1997)
chega a uma conclusão similar ao estudar um aluno avançado de
pós-graduação aprendendo a escrever como aprendiz (aprendizado
situado) na composição de um artigo científico com um professor
titular de física. O aluno estudado por ela usou gêneros mais fami-
liares, incluindo relatórios de progresso e trabalhos de conferências,
para esboçar o artigo. Ela observa que “a familiaridade dos calouros
e seu conforto com suas habilidades e estratégias já existentes – sua
dependência das práticas residuais – pode interferir no reconheci-
mento e uso, por parte do aluno, de novas abordagens e novas for-
mas de aprendizado” (BLAKESLEE, 1997, p.133). Ela conclui: “práticas
residuais trazidas das experiências e do treinamento prévios dos alu-
nos podem se tornar estratégias importantes, e até obstáculos, con-
forme os alunos encontrem novas formas de pensar e agir em seus
domínios” (1997, p.138).
O grau e a dificuldade de aplicação de conhecimentos prévios
a novas situações também varia de indivíduo para indivíduo. Reiff e

104
Amy Devitt (KU) & Heather Bastian (CSS)

Bawarshi (2011) encontraram alguns estudantes (atravessadores de


fronteiras5) mais dispostos que outros a atravessar domínios de Gê-
nero. Comparando pesquisas sobre aprendizagem baseada na prá-
tica e sobre contextos instrucionais de aprendizagem, Tardy (2006,
p.94) conclui: “ambos os contextos mostram que a a experiência ou
a exposição prévias a gêneros podem influenciar no aprendizado de
gênero, embora nem sempre positivamente. De outro modo, o que
os aprendizes trazem [sic] para um novo gênero – em termos de ex-
periência, exposição, prática ou conhecimento prévio – é importan-
te, embora não possamos predizer se essas experiências anteriores
serão positivas ou negativas”. No final, a pesquisa deixa claro que
aprender do conhecimento prévio é, como Tardy (2006, p.84) descre-
ve, “um processo altamente individual”.
Enquanto um número de pesquisas demonstra que estudantes
usam o conhecimento prévio de modos úteis e pouco úteis, outro nú-
mero de pesquisas questiona se o conhecimento pode ser transferido
de uma situação para outra e, especialmente, de um domínio para
outro. Como Tardy (2006, p.94) escreve, os alunos têm “dificulda-
des em transferir conhecimento desenvolvido em um domínio para
outro”. Reiff e Bawarshi (2011) também descobriram que estudantes
geralmente não se baseiam em um domínio para escrever em outro.
Aparentemente existem barreiras entre conhecimento de gêneros
públicos, profissionais e pessoais (como blogs, relatórios, emails) e
conhecimento de gêneros acadêmicos. Graham Smart (2000, p. 245)
chega a uma conclusão similar, sugerindo que:

Expertise em escrita não é facilmente transferível de um do-


mínio do discurso para outro, mesmo por profissionais alta-
mente habilidosos trabalhando dentro de uma situação ocu-

5. O termo “boundary crossers” se refere a pessoas que têm o hábito de ultrapassar os limites
conhecidos

105
Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

pacional única. Quando atingida, a reinvenção de expertise


requerida para suceder em um novo domínio significa apren-
der a exercer um papel em um ‘jogo’ sociorretórico não fami-
liar (para usar o termo de Wittgenstein) e envolve o desen-
volvimento de vários níveis diferentes que somente podem
vir da experiência.

A transferência, teórica e experimentalmente, certamente re-


quer experiência direta e conhecimento explícito, mas a questão de
transferibilidade da consciência de gênero ainda deve ser estabeleci-
da. Movimentos entre domínios são claramente difíceis, mas e quan-
to à transferência dentro de domínios? Talvez alguns dos usos menos
bem sucedidos de conhecimento prévio, descrito nos estudos acima,
derivem das dificuldades de transferências entre domínios. As pes-
quisas sobre conhecimento prévio sugerem, todavia, que os estudan-
tes irão tentar usar o conhecimento prévio em novas situações. Tam-
bém pode sugerir que transferir conhecimento dentro do domínio
acadêmico cria menos obstáculos que passar do domínio pessoal ou
público para o acadêmico. Poderia a instrução de como transferir
conhecimento, dentro de um contexto de ensino da consciência de
gênero em vez de apenas gêneros específicos,, ajudar os estudantes
a conectar o aprendizado anterior ao novo aprendizado mais facil-
mente? Tardy (2006, p.86-87) também reconhece que os achados so-
bre transferibilidade são baseados principalmente em entrevistas e
não em textos de fato: “é possível que escritores possam transferir
padrões particulares de discursos ou gêneros sem a consciência de
que o fazem”, ela diz, pontuando que transferibilidade é um questão
particularmente “desconcertante” para a pesquisa e para a pedago-
gia. Como Tardy (2006) sugere, o que mais poderia contribuir para
resolver questões de transferibilidade são estudos longitudinais, que
tracem o conhecimento de gênero dos estudantes através de múlti-

106
Amy Devitt (KU) & Heather Bastian (CSS)

plos domínios e que incluam instrução de consciência de gênero e de


como transferir o conhecimento de gêneros.
Com tal programa de pesquisas sobre a influência do conheci-
mento prévio no aprendizado de novos gêneros, professores devem
certamente se perguntar quais os efeitos que o conhecimento pré-
vio e o repertório de gêneros existentes dos alunos têm sobre o seu
aprendizado em nossas aulas. Com esse estudo, levamos essas preo-
cupações para a aula de Devitt de escrita para recém-ingressados e
perguntamos: quais gêneros os alunos no curso de escrita de Devitt
já conhecem quando chegam a sua aula? E como aqueles estudantes
usam os gêneros já conhecidos para escrever novos gêneros para a
aula? Dado o escopo limitado do estudo, podemos relatar somente
nossas tentativas de ganhar acesso ao conhecimento prévio sobre gê-
neros dos estudantes, para aprender quais gêneros e conhecimento
sobre gêneros os alunos trouxeram consigo para a aula.

Métodos

Para começar a responder essas questões, desenhamos um es-


tudo de como escritores falantes nativos, de idade universitária, re-
tomam os gêneros que conhecem quando escrevem novos gêneros
dentro de um domínio acadêmico. Como parte desse estudo, procu-
ramos descobrir o conhecimento prévio dos estudantes de três for-
mas primárias: perguntando quais gêneros já conheciam, pedindo
que descrevessem o que sabiam sobre os gêneros mais familiares e
examinando seus textos para traços de conhecimento sobre gêneros.
Reportamos aqui apenas o que os alunos declararam sobre seus co-
nhecimentos prévios e o que descobrimos daquela porção do estudo
que pode informar e influenciar nossas tentativas de usar o conheci-
mento prévio dos alunos em nosso ensinar.

107
Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

Examinamos as práticas e estratégias de escrita de um grupo


de quinze alunos universitários que completaram o curso de escri-
ta para recém-ingressados, ministrado por Devitt na Universidade
do Kansas durante o outono de 20066. Catorze dos quinze partici-
pantes relataram que esse era o primeiro semestre em universidade
ou faculdade, e um estudante mencionou cursos isolados em uma
faculdade local. Dado que a matrícula no curso é controlada mais
pela preferência dos estudantes pelo horário das aulas do que pelo
instrutor, os estudantes representavam uma coleção razoavelmente
aleatória de recém-ingressados, com diferentes interesses, opções de
curso, classe social e experiência educacional7.
Durante o semestre, usando o livro Scenes of Writing (2004) de
Devitt, Reiff, e Bawarshi, e mantendo os objetivos do programa de
escrita do curso, os estudantes aprenderam como observar, descre-
ver, analisar cenas, situações e gêneros, fizeram análises e críticas
de gênerose compuseram ensaios comparativos/contrastivos, artigos
analíticos, autoavaliações e uma variedade de gêneros não acadêmi-
cos de escolha própria. De cada estudante, coletamos quatro textos
que haviam produzido como parte de requerimentos formais do cur-
so e dois questionários acerca de suas prévias experiências com e do
conhecimento sobre gêneros. Para capturar a escrita acadêmica que
os alunos produziram antes do ensino explícito de gêneros no curso,
também coletamos suas respostas a uma atividade de escrita no pri-
meiro dia de aula. Essa atividade deixava o gênero não especificado,
requerendo apenas um escrito de nível superior: “para fornecer um

6. Originalmente, dezenove dos vinte e dois estudantes matriculados no curso (86%) concordaram em
participar do estudo; todavia, o curso passou por reduções (três alunos). Esses três estudantes foram
levados em consideração apenas quando examinando a informação relatada no primeiro questionário,
mas não nas demais análises.
7. Os estudantes também representaram a universidade tipicamente com todos à exceção de um sendo
caucasianos. Não coletamos dados demográficos.

108
Amy Devitt (KU) & Heather Bastian (CSS)

exemplar de sua escrita, por favor, use o tempo restante da aula para
escrever sobre o ensino médio (você poderá escolher o escolher qual-
quer abordagem ao tema que desejar)”. Tais trabalhos, escritos em
uma única aula, deram um vislumbre de qual gênero cada estudante
poderia escolher para escrever no domínio acadêmico dentre todos
os gêneros de seu conhecimento – acrescido, claro, das expectativas
dos estudantes sobre a universidade, cursos de escrita universitários
e o professor.

Quais gêneros os estudantes relataram


se lembrar do Ensino Médio

Em uma tentativa de descobrir o que os estudantes poderiam


relatar como repertório prévio sobre gêneros, nós coletamos dois
questionários nos quais os alunos relatavam os tipos de escrita que
lembravam ter realizado no Ensino Médio e alhures, a natureza de
tais gêneros e quais gêneros gostavam mais e menos de escrever.
Não estávamos tão interessados aqui no que os estudantes lembra-
vam ter aprendido de fato no Ensino Médio, mas o que lembravam
ter aprendido no Ensino Médio. Aplicamos o primeiro questionário
no primeiro dia de aula, antes de qualquer aula sobre gêneros, e o
segundo questionário no último dia de aula, pedindo aos estudantes
para usar seus novos conhecimentos analíticos sobre gêneros para
discorrer sobre aqueles relatados no primeiro questionário.
Na primeira pesquisa, fizemos aos alunos duas perguntas acerca
dos gêneros que aprenderam a escrever no Ensino Médio: “seus pro-
fessores podem ter pedido que escrevessem diferentes textos no En-
sino Médio. Que tipos de escrita lembra ter aprendido nas aulas de
língua Inglesa?” e “que outros tipos de escrita lembram ter praticado
no ensino médio?”. Para ambas as perguntas, solicitamos dos alunos
a listagem e descrição dos tipos de escrita e dos projetos de escrita.

109
Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

Textos persuasivos/Ensaios 6
Pesquisas 5
Comparar e constrastar 7
Ensaios 4
Poemas/Poesia 4
Trabalhos informativos 3
Trabalhos comparatives 2
Estórias não ficcionais 2
Trabalhos opinativos 2
Trabalhos de conclusão 2

Figura 1. Os gêneros mais comuns lembrados pelos estudantes de


seu aprendizado em aulas do ensino médio.

Os estudantes relataram um total de quarenta e dois tipos de


escrita aprendidos no Ensino Médio nas aulas de língua inglesa. A
Figura 1 expõe as respostas mais comuns a essa pergunta. Outras
respostas (aquelas mencionadas apenas uma vez) incluem trabalhos
dissertativos, análise literária, escrita temporizada, contos, estórias,
memórias especiais, artigos, cartas, vinhetas, ensaios detalhistas,
ensaios, haiku, bilhetes, portfólio de desempenho acadêmico, resu-
mos, textos argumentativos, redações, sumários, ensaios analíticos,
trabalhos narrativos, trabalhos descritivos, currículos e instruções.
Além dos tipos de escrita aprendidos nas aulas de língua portu-
guesa [língua inglesa, no original] a primeira pesquisa solicitou que
os alunos nomeassem e descrevessem os gêneros aprendidos em ou-
tras disciplinas no Ensino Médio. Os estudantes deram vinte e duas
respostas, muitas das quais se sobrepuseram às respostas da primeira
questão, incluindo pesquisas (2), comparar e contrastar (1), contos (1),

110
Amy Devitt (KU) & Heather Bastian (CSS)

persuadir (1) e narrativas (1). Os gêneros não mencionados antes inclu-


íam biografia, ensaio surpresa, diários, reflexões, documentos formais
e escrita livre. Dois alunos também mencionaram análise, “análise
de poesia” e “análise de um livro”. Se as respostas para essa pergunta
são combinadas com a resposta anterior, os gêneros mais comuns re-
portados pelos estudantes como aprendidos durante o Ensino Médio
afastam-se um pouco da Figura 1 com a adição de contos e narrativas
(ver Figura 2).

Textos persuasivos/Ensaios 7
Pesquisas 7
Comparar e constrastar 6
Ensaios 5
Poemas/Poesia 4
Trabalhos informativos 3
Trabalhos comparatives 2
Estórias ficcionais 2
Estórias não ficcionais 2
Textos persuasivos/Ensaios 2
Contos 2
Trabalhos narrativos/ narrativas 2
Trabalhos opinativos 2
Trabalhos de conclusão 2

Figura 2. Total de tipos de escrita que os estudantes lembram ter


aprendido no Ensino Médio.

Finalmente, perguntamos que tipos de escrita os alunos haviam


aprendido fora do Ensino Médio (Figura 3). A lista de gêneros rela-

111
Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

tados, claro, não representa todo o conhecimento prévio de gênero


dos alunos. Os indivíduos conhecem bem muitos gêneros os quais
não são pensados como “tipos de escrita”, a menos que sejam explici-
tamente levados a pensar dessa maneira (Devitt, 1991). No segundo
questionário, ao final de um semestre de imersão em análise retórica
de gênero e prática de uma vasta gama de gêneros, a lista de gêne-
ros que os alunos haviam vivenciado dentro e fora do Ensino Médio
foi muito mais específica em nomenclatura e abrangeu uma gama
maior de gêneros, incluindo cartas de candidatura a emprego, cartas
de recomendação e discursos, por exemplo. Todavia, os alunos não
reportaram escrever emails, cartões ou, um de nossos exemplos fa-
voritos, listas de compras.

Poemas/Poesia 4
Currículo 3
Informativo 2
Cartas 2
Contos 2
Diários 2
Estórias cômicas 1
Cartas oficiais 1
Persuasivo 1
Pesquisas 1

Figura 3: Gêneros mais comuns lembrados pelos estudantes como


aprendidos fora do ensino médio.

Mesmo que pudéssemos criar uma longa lista de todos os gê-


neros que um estudante possa ter em seu repertório de gêneros, ela
ainda não capturaria a totalidade ou riqueza do conhecimento pré-

112
Amy Devitt (KU) & Heather Bastian (CSS)

vio sobre gêneros dos estudantes. Ter experiência com um gênero


não significa saber tudo sobre ele, ou mesmo ser fluente no gênero.
Aprender é sempre parcial, fragmentado, individualizado e mutável.
Todavia, uma forma de termos pelo menos vislumbres do que a lis-
tagem de gêneros que os alunos lembram significa para os alunos
é perguntar a eles. Assim, além de nomear os gêneros lembrados,
pedimos aos alunos que descrevessem as qualidades desses gêne-
ros. Embora nem todos os tenham descrito ou descrito em detalhes,
aqueles que o fizeram ofereceram insights quanto à natureza do que
conscientemente lembravam e reportaram sobre os gêneros que vi-
venciaram.

Como os alunos descreveram os gêneros


que conheciam

O que os estudantes relataram ter lembrado sobre os gêneros


que escreveram no Ensino Médio, na primeira pesquisa é, de fato,
parcial, concentrado no conteúdo e no formato em detrimento do
propósito retórico e da audiência. A maioria dos estudantes, com
poucas as exceções, não relatou a compreensão de seus gêneros aca-
dêmicos em termos de situações retóricas. Um estudante, Eric, en-
capsula muitos dos gêneros nomeados com seu propósito:

Persuasivo ‘tentar persuadir o leitor’


Comparar e contrastar ‘mostrar similaridades e diferenças’
Argumentativo ‘mostram lados + e –’
Redação ‘trabalho de ficção’
Informativo ‘explicar’
Resumo ‘revisar’

113
Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

Três estudantes mencionam e nomeiam diretamente o leitor


como um componente ou aspecto significante do gênero: Eric des-
creve o texto persuasivo como uma tentativa de “persuadir o leitor”;
Kristen descreve o texto persuasivo como aquele no qual se “descreve
algo com o qual se importa muito e tenta fazer seu leitor se sentir do
mesmo modo”; e Julie caracteriza “textos descritivos” como “éramos
pedidos para descrever por escrito um cômodo usando imagética e
nossos sentidos. Descrever um cômodo e lembrar que o leitor não
pode vê-lo fisicamente é desafiador”. Salientamos que o propósito
também possui um papel importante nessas descrições, tal como
na descrição de Kristen para textos comparativos e contrastivos na
comparação ou exposição de similaridades e na exposição ou des-
crição de diferenças. Kristen caracteriza a análise literária em fun-
ção do propósito, também, mas de modo que certamente não seria
bem visto por seus instrutores de nível superior: você “lê um trecho
de literatura e descreve o que houve”. Curtis pode estar criando um
novo gênero quando descreve que o propósito do seu professor de
Ensino Médio para as tarefas escritas: “muitas vezes líamos um livro
e respondíamos perguntas sobre questões morais dele. Algumas das
perguntas tentavam nos preparar para a prova, outras eram apenas
questões porque meu professor adorava ler nossos pensamentos”. Se
excluirmos a palavra “comparar” e “descrever” apenas como consti-
tuindo uma descrição do propósito, então somente quatro dos treze
estudantes que fizeram descrições usaram algum elemento da situa-
ção retórica para descrever pelo menos um dos gêneros com os quais
tinham experiências anteriores.
O conteúdo dos gêneros aparece nas descrições dos estudantes
mais comumente que elementos de situação retórica. Doze dos tre-
ze estudantes especificaram o conteúdo de pelo menos um gênero.
Conteúdo e propósito estão combinados na descrição de Andrea de

114
Amy Devitt (KU) & Heather Bastian (CSS)

seu trabalho de conclusão “tínhamos que ler dois livros e compará-


-los não somente com nossas próprias palavras, mas levando a crítica
e a opinião do autor em consideração, também”. Gail combina o pro-
pósito e o conteúdo na descrição do trabalho comparativo/contrasti-
vo: “para trabalhos comparativos[,] nós comparamos nosso tópico a
outro com raciocínio e fatos”, mas ela reduz o trabalho de pesquisa à
natureza de sua evidência, como “predominantemente factual”. Ela
descreve os trabalhos opinativos também em função das evidências,
“baseado em nossa opinião”. A descrição de Felix sobre ensaios é
exemplo específico do conteúdo, “os ensaios que escrevemos se con-
centravam nos trechos dos romances que líamos, tais como simbo-
lismo e estrutura”. O conteúdo se torna tudo quando Diane especi-
fica que trabalhos de comparação e contraste eram “sempre sobre
um livro e um filme ou 2 livros”. E uma estudante, Rachel, não faz
nenhuma generalização ao nomear somente o conteúdo de seu tra-
balho: “trabalho o rei das moscas, 1984”.
Três estudantes lembram o formato dos gêneros em termos vi-
vidamente específicos que deixam claro que a solicitação numéri-
ca do professor causou impacto. A descrição de Sara dos trabalhos
persuasivos/informativos especifica que “trabalhos persuasivos/in-
formativos têm tipicamente 5 páginas, alguns com páginas de obras
citadas etc.”. Ela também nota que “escrita temporizada eram textos
de 5 parágrafos voltados para o que estávamos aprendendo”. Oliver
lembra que o “ensaio detalhado” “[deve] incluir 10-15 citações ao lon-
go de 10-15 páginas”. Ele combina esses detalhes do formato com a
descrição do processo de escrita do que parece ser uma pesquisa:
“incluindo 100 cartões de anotação, cada um com um fato sobre o
autor. Vinte deviam ser citações”. O processo genérico de escrever
um trabalho de pesquisa aparece na descrição de três estudantes.
Quentin observa que o trabalho de pesquisa envolvia “fazer anota-

115
Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

ções, bibliografia e esboços”. Similarmente, Kristen explica que em


um trabalho de conclusão, você “escolhe um tópico, faz anotações,
entrevistas, esboços, trabalhos citados/consultados e a versão final”.
Andrea indica alguns elementos do processo em sua descrição de
“trabalho de conclusão”: “tínhamos que ler dois livros e compará-los
não somente com nossas próprias palavras, mas levando a crítica e a
opinião do autor em consideração, também”.
As memórias afetivas dos gêneros que os alunos aprenderam fo-
ram lembrados mais comumente para os assim chamados gêneros
“criativos” (descritos por Eric como “obras de ficção”). Por exemplo,
Andrea observa “poesia era divertido. Nós aprendíamos sobre di-
ferentes tipos de poesia e fazíamos um portfólio de poesia nossa e
dos outros”. Matthew acrescenta que “os trabalhos de escrita criativa
eram meus favoritos”. Gêneros acadêmicos também tiveram memó-
rias afetivas associadas a eles, mas frequentemente mais negativas.
Trabalhos comparativos “eram divertidos às vezes”, de acordo com
Diane. Sara declara que “trabalhos dissertativos eram particular-
mente difíceis para mim. Eles tomavam mais tempo, e às vezes era
difícil expor meu ponto de vista do jeito certo”. E Peter descreve to-
das as suas atividades de língua inglesa de forma negativo “longos,
chatos, repetitivos. Era difícil escrever sobre tópicos que não tinha
interesse”. Claro, a pesquisa posteriormente questionou os alunos
por quais gêneros tinham mais ou menos apreço, portanto a respos-
ta afetiva pode ter sido suscitada por nossas perguntas.

O que fazer com essa informação na sala de aula

O nosso estudo descobriu o conhecimento prévio sobre gêneros


dos alunos de Devitt? Certamente que não. Outro método de pes-
quisa teria conseguido relatos de outros conhecimentos sobre gêne-
ros. Grupos focais, em particular, poderiam ter lembrados os alunos

116
Amy Devitt (KU) & Heather Bastian (CSS)

de conhecimentos sobre gêneros que tivessem aprendido e de gê-


neros que tivessem escrito. Os textos que esses estudantes escreve-
ram posteriormente também demonstraram que eles tinham conhe-
cimento de características de gêneros que não eram indicados em
suas respostas. Mas queríamos abordar esse estudo primeiramente
da perspectiva do professor: o que o professor poderia facilmente
descobrir sobre o conhecimento prévio de seus alunos que pudesse
usar para ministrar aquele curso? Qualquer combinação de métodos
de pesquisa muito provavelmente não poderia descobrir, de verdade,
o conhecimento prévio sobre gêneros dos alunos. O conhecimento é
simplesmente demasiado complexo, submerso e individual. De modo
mais relevante, pesquisas existentes sobre o conhecimento prévio
de gêneros podem suscitar relatos de conhecimentos a que os es-
tudantes não teriam, de fato, acesso imediato em nossos cursos. Os
estudantes poderiam alegar “saber” que trabalhos persuasivos preci-
sam persuadir o leitor, por exemplo; entretanto, sem nosso estímulo,
primeiro se concentraram no conteúdo em detrimento de qualquer
audiência retórica. Se quisermos fazer uso do conhecimento prévio
dos alunos em nosso ensino, precisamos fazer uso do conhecimento
que os alunos podem facilmente ter, não o conhecimento que eles
fingem ter para nosso benefício. Se quisermos ajudá-los a transferir
seu conhecimento prévio para novas situações em nossas aulas, pre-
cisamos começar com o conhecimento a que eles têm pronto acesso.
Foi isso que tentamos descobrir com nosso pequeno estudo explora-
tório. Um resultado desse estudo é que conhecimento prévio sobre
gêneros é fortemente baseado no conteúdo, com formas superespe-
cificadas e reações afetivas em afastado segundo lugar. Uma vez que
a nossa compreensão e nosso ensino de gêneros atuais são tão reto-
ricamente baseados, fica claro, com esses pequenos resultados, que
precisaremos trabalhar para ajudar os estudantes a verem gêneros
primeiro e acima de tudo como retóricos.

117
Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

Outro resultado notável desse estudo é quão pouco conheci-


mento partilhado os estudantes trouxeram para a aula. Sua atenção
para o conteúdo era o maior aspecto em comum do grupo. Nenhum
gênero acadêmico foi listado por sequer metade dos estudantes.
Nem um vocabulário em comum apareceu em suas descrições. No-
vamente, um método como grupos focais poderia ter resgatado mais
conhecimento partilhado, porém os autorrelatos dos estudantes re-
gistraram pouco conhecimento de mundo em comum – ainda que
os estudantes da universidade fossem relativamente homogêneros,
com poucas escolas fornecendo grande parte dos estudantes. Essa
falta de conhecimento de mundo partilhado representa uma falha
no currículo escolar ou nos padrões educacionais do estado? Talvez,
mas o sistema escolar do Kansas possui um currículo específico com
gêneros específicos bem como aspectos primários a serem ensina-
dos, mesmo que tais gêneros e tal linguagem não tenham aparecido
visivelmente em nossa pesquisa. Mais provavelmente, a falta de co-
nhecimento partilhado relatada indica uma lacuna entre instrução e
aprendizado e a lacuna entre aprender e reter conhecimento. O cur-
rículo pode indicar gêneros e critérios, mas a menos que todos eles
consistam de números particularmente memoráveis (20 cartões ou
10 citações ou 5 parágrafos com 3 sentenças cada), esse estudo suge-
re que a informação não estará prontamente disponível nas mentes
dos alunos quando trabalhando conscientemente para lembrar o que
sabem sobre gêneros.
E o que o professor pode fazer? A pesquisa sobre conhecimento
prévio de gêneros deixa claro que o conhecimento prévio tanto au-
xilia quanto inibe o aprendizado de novos gêneros. Os estudantes
em nossas aulas serão auxiliados e inibidos por seus conhecimentos
prévios de gênero. Queremos ajudá-los a fazer melhor uso desse co-
nhecimento para auxiliá-los quando possível, e queremos ajudá-los
a minimizar a quantidade de interferência causada. Dada a pouca

118
Amy Devitt (KU) & Heather Bastian (CSS)

probabilidade de nosso acesso ao conhecimento prévio de mesmo


um indivíduo, muito menos de descobrir como trabalhar com uma
turma inteira de conhecimentos individuais variantes, nós provavel-
mente não poderemos desenhar um currículo baseado em conheci-
mento prévio de gêneros. O máximo que podemos fazer é estimular
estudantes a se lembrarem de alguns conceitos previamente apren-
didos e trabalhar a partir deles. Muitos dos alunos de Devitt, por
exemplo, quando estimulados em aula, lembraram ter escrito reda-
ções de cinco parágrafos. Ela poderia usar esse conhecimento, lem-
brado por alguns alunos, para distinguir seus trabalhos analíticos
de suas redações temáticos de cinco parágrafos, e poderia ajudá-los
a trabalhar a partir das habilidades que haviam aprendido na escrita
daquele gênero (tais como a redação) para desenvolver as habilida-
des das quais necessitavam (como a ideia complexa controladora).
Mas tal instrução direta, baseada em um conhecimento prévio pres-
suposto, não ajudará todos os alunos, uma vez que nem todos os alu-
nos compartilham o mesmo conhecimento. E nem todos os alunos
estarão aptos a transferir seus conhecimentos do ensino médio para
a universidade com sucesso.
Uma estratégia específica pode tornar os novos gêneros que os
alunos aprendem nas aulas em gêneros antecedentes que nós os aju-
daremos a transferir para o próximo gênero a ser aprendido em nos-
sas aulas. Se ensinarmos os alunos a escrever trabalhos analíticos,
por exemplo, podemos usar esse conhecimento explicitamente para
ensinar a criticar. Podemos demonstrar, dessa forma, como o conhe-
cimento prévio é transferido para novas situações prestativamente
e como se defender dos obstáculos do conhecimento prévio. Essa
estratégia tem falhas, claro, uma vez que o conhecimento recém-
-adquirido mal foi processado como conhecimento prévio cognitivo
e genuíno, mas talvez sirva para demonstrar aos estudantes como
tal transferência pode ocorrer. Mais significativamente, ela enfatiza

119
Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

que precisamos ensinar consciência de conhecimento prévio sobre


gêneros como parte do ensino da consciência de gêneros.
Enquanto não temos dúvidas da importância do conhecimento
prévio para o aprendizado, ficamos a imaginar como usar os achados
dessa pesquisa no ensino. Se não podemos saber o que os estudan-
tes sabem, como podemos ajudá-los a usar tal conhecimento para
aprender? Se não podem necessariamente transferir o conhecimen-
to para uma nova situação sem orientação, e não podemos guiá-los
porque não sabemos o que sabem, como irão aprender a maximizar
os benefícios e minimizar os empecilhos do conhecimento prévio?
Nossa resposta final a essas questões não é tão desanimador quanto
provavelmente parece. Podemos estar aptos a ensinar a percepção
da influência do conhecimento prévio para que os alunos comecem a
perceber quando estão recorrendo a estratégias ou gêneros já conhe-
cidos. Podemos estar aptos a ensinar algumas estratégias de trans-
ferência, as quais poderão ser usadas independentemente do conhe-
cimento prévio que tentem transferir: por exemplo, notar a situação
retórica subjacente ao novo gênero e salientar o que é similar e o que
é diferente do que já se encontrou antes. Uma vez que o conteúdo
parece se destacar no conhecimento sobre gêneros dos alunos de De-
vitt, poderíamos ter trabalhado para ver o grande número de gêne-
ros que recorrem a conteúdos similares e os elementos retóricos que
modelam esse conhecimento. Na melhor das hipóteses, poderíamos
adicionar ao nosso currículo de gêneros a compreensão consciente
do conhecimento prévio para acrescentar à compreensão consciente
de gêneros. Consciência não é tudo, mas pode ser tudo que temos.

Referências

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121
“Penso que toda a minha
pedagogia de alguma forma foi
moldada por uma consciência
de gênero. Como fui me
tornando cada vez mais
consciente dos gêneros,
essa consciência teve um
efeito cada vez maior em
moldar meu pensamento sobre
o ensino.”

— Charles Bazerman. Série Bate-Papo Acadêmico. v.1


Gêneros Textuais. Recife, 2011. Disponível para acesso
em: http://www.nigufpe.com.br/serie-academica/volumes
5
Memórias literárias: reflexões
sobre práticas de escrita1
Beth Marcuschi 2 (UFPE)

Introdução

Nas duas últimas décadas, temos observado, no Brasil, uma


efervescente produção relacionada à pesquisa sobre gêneros (textu-
ais e discursivos), incluindo-se aí publicações de autores nacionais e
de traduções para o português. Para exemplificar, indicamos algu-
mas das obras mais recentes que trazem a palavra gênero no título3:
“Gênero: história, teoria, pesquisa e ensino”, Bawarshi e Reiff (2013);
“Gêneros textuais, tipificação e interação”; “Gênero, agência e escri-
ta”; “Escrita, gênero e interação social”, Bazerman (2005; 2006; 2007);
“Gêneros textuais e cognição”, Bonini (2002); “Gêneros do discurso
na escola”, Brandão (2000); “Gêneros textuais: teoria e prática”, Cris-
tovão e Nascimento (2004); “Gêneros textuais & ensino”, Dionisio,
Machado e Bezerra (2002); “Gêneros textuais, reflexões e ensino”,
Karwoski, Gaydeczka e Brito (2011); “Gêneros: reflexões em análise
do discurso”, Machado e Mello (2004); “Produção textual, análise de

1. Essa é uma versão revista do artigo “A escrita do gênero memórias literárias no espaço escolar: desafios
e possibilidades”, publicado nos Cadernos Cenpec. São Paulo, v.2, n.1, p.47-73, julho 2012.
2. E-mail para contato: bethmufpe@gmail.com.
3. Apesar de não trazer a palavra gênero no título, que aparece somente numa das seções da obra
publicada em português, não podemos deixar de citar, por sua relevância na área, o texto “Os gêneros
do discurso”, em Estética da criação verbal, de Bakhtin/ Voloshinov (1997).

123
Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

gêneros e compreensão”, Marcuschi (2008); “Hipertexto e gêneros


digitais”, Marcuschi e Xavier (2004); “Gêneros textuais e práticas dis-
cursivas”, Meurer e Motta-Roth (2002); “Gêneros: teorias, métodos,
debates”, Meurer, Bonini e Motta-Roth (2005); “Gênero textual, agên-
cia e tecnologia”, Miller (2012); “Gêneros textuais: da didática das lín-
guas aos objetos de ensino”, Nascimento (2009); “Gêneros orais e es-
critos na escola”, Schneuwly, Dolz e colaboradores (2004a); “Gêneros
literários”, Soares (2007). Certamente, há muitas outras produções,
em livros, coletâneas e revistas, com ou sem a expressão gênero dis-
cursivo ou gênero textual no título que tratam da temática, mas os
exemplos citados nos parecem suficientes para destacar o expressivo
espaço que a questão tem recebido nos estudos da linguagem e, mais
especificamente, no ensino de língua materna e estrangeira.
Também não podemos deixar de reconhecer que a publicação dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Fundamen-
tal, 3º e 4º ciclos (BRASIL, 1998) e para o Ensino Médio (BRASIL, 1999),
o estabelecimento de critérios para um Programa Nacional de Ava-
liação de Livros Didáticos – PNLD (BATISTA, 2003), a consolidação
do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM (INEP, 2005), a ampla
divulgação da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro
(doravante Olimpíada)4, dentre outras políticas educacionais, deram
visibilidade e força ao estudo dos gêneros associado às práticas sociais
como orientador dos eixos de leitura, produção de texto escrito, orali-
dade e conhecimentos linguísticos no ensino de língua materna.
No presente trabalho, nosso objetivo é trazer algumas contribui-
ções para a abordagem dos gêneros, mais precisamente dos gêneros
vinculados ao discurso das memórias literárias, na sua relação com as
práticas extraescolares, bem como do gênero memórias literárias em

4. Informações detalhadas a respeito do programa estão disponíveis em: www.escrevendoofuturo.org.


br/conteudo/a-olimpiada/o-que-e-a-olimpiada Acesso em 10/03/2015.

124
Beth Marcuschi (UFPE)

seu contexto de sala de aula. A escolha do gênero memórias literárias


na relação com a escola está diretamente ligada ao crescente espaço
a ele destinado nacionalmente no contexto da Olimpíada, aspecto
que favoreceu nosso acesso a materiais que orientam sua proposta
de ensino, via sequência didática, bem como a textos produzidos por
alunos do sétimo e do oitavo anos5.
Para darmos conta da empreitada, debatemos, nesta Introdução,
conceitos básicos para a investigação, tais como as noções de gênero
textual, produção escrita e processo de didatização. No item subse-
quente, exploramos o funcionamento dos gêneros associados ao dis-
curso das memórias literárias, na relação com as práticas sociais nas
quais esses gêneros se acham inseridos. Em seguida, trazemos para o
debate as escolhas realizadas pelos alunos na elaboração de seus tex-
tos, tendo em vista as condições de produção disponibilizadas para
os aprendizes nos materiais pedagógicos da Olimpíada. Nas Consi-
derações Finais, apontamos os desafios e as possibilidades que estão
postos, à escola, agência de letramento por excelência em nossa cul-
tura, na abordagem dos gêneros como perspectiva estruturante dos
objetos de ensino nas aulas de língua materna e, em particular, no
tratamento pedagógico do gênero escolar memórias literárias.
Bazerman, cujos trabalhos influenciaram largamente os estudos
sobre gêneros no Brasil, nos ensina que “os gêneros são os lugares
familiares para onde nos dirigimos para criar ações comunicativas
inteligíveis uns com os outros e são os modelos que utilizamos para
explorar o não-familiar” (BAZERMAN, 2006, p.23). Assim, frente a
contextos próximos, nos sentiremos, na maioria das vezes, mais con-
fortáveis e confiantes social e cognitivamente no uso de gêneros que
frequentam o nosso cotidiano privado, profissional, institucional

5. Os textos analisados no presente trabalho foram escritos em 2010. Detalhes sobre o corpus analisado
são apresentados na seção 3 deste artigo.

125
Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

etc. Por sua vez, diante de situações pouco corriqueiras, os gêneros


que nos são familiares serão acionados para orientar nossas ações
de linguagem, tendo em vista os propósitos interacionais que nos
movem. Essas reflexões nos remetem à convicção de que o processo
de escrita não se dá no vazio social, não é a-histórica, não ocorre à
revelia de contextos culturais. Ao contrário, envolve sempre gêneros
e sujeitos situados em práticas sociais das esferas pública e privada.
Na perspectiva da Nova Retórica (MILLER, 2012; BAZERMAN, 2006,
dentre outros), os gêneros são tidos como construções sociais que os
sujeitos vão aprendendo e processando em função de suas necessida-
des. Nesse sentido, no dizer dos autores, os gêneros envolvem ações
interlocutivas que organizam a vida das pessoas. Há, com certeza,
práticas que dominamos com mais destreza, por integrarem nossa
rotina, enquanto noutras não seremos tão fluentes. Um publicitário,
por exemplo, conhece bem os gêneros textuais que circulam na es-
fera midiática, mas poderá não ter o mesmo domínio dos gêneros do
âmbito do judiciário. Já um juiz estará, possivelmente, mais familia-
rizado com a escrita de sentenças e cartas precatórias do que com a
elaboração de anúncios e jingles.
Daí decorre, que, no processo de escrita, os gêneros, ao mes-
mo tempo em que colocam para os sujeitos condições de produção
diferenciadas, deles requerem uma compreensão do contexto situ-
acional e um repertório heterogêneo e variado de estratégias dis-
cursivas (MARCUSCHI, B., 2010). De fato, o autor precisa levar em
conta, consciente ou inconscientemente, para quem, com que obje-
tivo, sobre o que escreve; o tom (irônico, polido, formal, informal,
crítico, conciliador etc.) que deseja imprimir ao seu texto; o suporte
(livro, revista, jornal, encarte, mídia) em que o texto irá circular;
os princípios básicos da textualização (progressão, articulação, co-
esão, coerência), dentre outras peculiaridades. Ele deve igualmente

126
Beth Marcuschi (UFPE)

considerar que os gêneros não funcionam linearmente e, em graus


bastante distintos, tanto impõem regularidades, quanto demandam
escolhas e improvisos no contexto das práticas sociais. Deste modo,
para ficarmos apenas num exemplo, o preenchimento de um formu-
lário, em função de seus objetivos burocráticos, certamente coloca
restrições mais salientes para o sujeito do que a elaboração de uma
crônica, que oferece um espaço maior de escrita autoral.
Essas breves reflexões apontam para questões relevantes que ne-
cessitam ser dimensionadas pela escola. Para Bazerman (2006, p. 53),
“a sala de aula de escrita é um fórum complexo”, para onde adentram
gêneros “que fluem de instituições vizinhas”. Por sua vez, como nos
alertam Schneuwly e Dolz (2004b), na sala de aula, o gênero textual
não é observado como constitutivo das práticas sociais apenas, mas é,
ao mesmo tempo, objeto de ensino-aprendizagem. Assim, no trabalho
pedagógico com os gêneros textuais, professores e alunos encontram-
-se num lugar social em que o espaço, o tempo e as ações discursivas
do gênero de referência são comprimidos tanto espacial quanto tem-
poralmente e funcionam de modo distinto daquele em que o gênero
costuma circular. O gênero torna-se, portanto, dadas as condições
escolares, em ‘gênero a aprender’. Como destacam os autores,

para compreender bem a relação entre os objetos de lingua-


gem trabalhados na escola e os que funcionam como refe-
rência é preciso, então, de nosso ponto de vista, partir do
fato de que o gênero trabalhado na escola é sempre uma va-
riação do gênero de referência, construída numa dinâmica
de ensino-aprendizagem, para funcionar numa instituição
cujo objetivo primeiro é precisamente este (SCHNEUWLY e
DOLZ, 2004b, p. 81).

127
Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

Para dar conta do desafio de tratar o gênero textual como objeto


de ensino, sem, contudo, desvirtuar sua prática social de referência,
os encaminhamentos pedagógicos precisam ser cuidadosa e adequa-
damente conduzidos. Embora alguns procedimentos didáticos se-
jam potencialmente generalizáveis, outros são bem mais específicos
e devem levar em conta as características próprias do gênero, bem
como as possibilidades de subvertê-las. Uma das conclusões que se
pode extrair dessas ponderações iniciais é que o ensino de gêneros
entendidos como constitutivos das práticas sociais não pode estar
relacionado a um roteiro fixo de atividades. No nosso estudo, são os
textos produzidos pelos estudantes, por ocasião da Olimpíada, edi-
ção 2010, na relação com o gênero de referência e com as condições
de produção oferecidas aos aprendizes, que nos indicam os ganhos
obtidos e os obstáculos enfrentados por professores e alunos no de-
correr do processo de ensino-aprendizagem do gênero focalizado.
Antes de nos debruçarmos sobre o contexto da sala de aula, so-
bre os materiais pedagógicos disponibilizados pela Olimpíada, bem
como sobre os textos elaborados pelos alunos, exploramos, na próxi-
ma seção, o funcionamento, no contexto de diferentes gêneros que
circulam nas práticas sociais não escolares, do discurso envolvido
nas memórias literárias.

Gêneros, discurso e memórias literárias


no contexto de práticas sociais diversas

Podemos dizer que, em graus variados de abrangência, os mais
variados gêneros possibilitam uma visada sobre contextos sócio-his-
tóricos passados, sem, contudo, se configurarem necessariamente
como literários. Por sua vez, há igualmente textos literários que não
se ocupam de questões vinculadas às lembranças das pessoas. Os

128
Beth Marcuschi (UFPE)

gêneros relacionados às memórias literárias, como tentaremos deixar


claro, contemplam essas condições discursivas: a remissão a tempos
antigos, desde uma perspectiva contemporânea, e a valorização da
singularidade e da estética literária.
O desejo de compreender o universo e seus fenômenos, preser-
var o passado e manter as tradições da comunidade, via memórias
dos mais sábios e experientes, transmitidas oralmente de geração
em geração, sempre obcecou as sociedades humanas, desde seus pri-
mórdios. Daí a abundância de narrativas, mitos e lendas que flores-
ceram no período. Para Lima (2007, p. 276), as sociedades ágrafas
dependiam basicamente

de sua memória para, ao longo do tempo, reter e transmitir as


representações que lhes eram convenientes de perdurar. Para
isso, utilizavam recursos como a dramatização, personaliza-
ção e artifícios narrativos diversos, a fim de que as represen-
tações tivessem mais chances de sobreviver em um ambiente
composto quase unicamente por memórias humanas.

Com o advento da escrita, as pessoas começaram a fixar na pe-


dra, na madeira, no tecido, no pergaminho, no metal, no papel e
em outros suportes, as ações, as invenções, as tragédias, as artes, os
sentimentos humanos, entre outros acontecimentos, simples ou de
maior magnitude. Assim, graças ao empenho de nossos obstinados
antepassados, hoje dispomos de registros em razoável quantidade
dos saberes e bens culturais construídos ao longo dos séculos pela
humanidade. Esses registros nos permitem, a partir de um inevitável
ponto de vista contemporâneo, analisar, conhecer, estudar, pesqui-
sar e tentar reconstruir as mais diversas práticas sociais de períodos
passados. É, em função desse potencial, que nos atrevemos a afirmar
que a capacidade latente de acionar práticas discursivas diversas e

129
Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

de favorecer a recuperação e a investigação de contextos sociais mais


antigos parece estar subjacente (em menor ou maior extensão) aos
mais variados gêneros.
Tomemos, como exemplo para respaldar nossas ponderações,
o anúncio que, no século XIX, veiculava no Diario de Pernambuco
(DP), a venda de “Uma maquina para copiar cartas, e uma burra tudo
em bom estado: no Trapiche novo n.176”6. O anúncio do jornal tanto
nos permite, hoje, reconstruir alguns dos costumes e necessidades
sociais da época7, como nos oferece pistas a respeito da composição
textual e da função sociocomunicativa8 assumidas pelo gênero anún-
cio no período (para ficarmos somente em dois aspectos, dentre os
muitos que poderiam ser aprofundados). As condições de produção
por nós reconstruídas nos possibilitam extrair algumas conclusões
sobre o anúncio do DP: sua autoria não é identificada9; à época em
que foi publicado, ele certamente remetia a uma ação retórica atual
(oferecer um produto para venda) e não de tempos idos; parte do
léxico nele utilizado não é mais de uso corrente e, para uma melhor
compreensão do anúncio, hoje, precisa ser explicado e contextuali-

6. Diario de Pernambuco, Recife, 29 de agosto de 1842. Anúncio reproduzido na coluna “Os pequenos
anúncios curiosos do Diário”, do mesmo jornal, em 16 de março de 2011, página A3.
7. Os costumes e necessidades do período precisariam ser melhor aprofundados e pesquisados, o que
não é nosso objetivo aqui, mas é possível supor que ‘cartas’ eram escritas e distribuídas em quantidade
razoável por certas instâncias (comércio, escritórios, judiciário, por exemplo), daí a ajuda que uma
máquina poderia oferecer. Também é possível inferir que objetos valiosos eram cuidadosamente
armazenados, por isso a expectativa de que uma ‘burra’ (caixa ger. de madeira em que se guardavam e/
ou transportavam coisas diversas, esp. valores, dinheiro etc.; cofre, dentre outros significados, segundo
o Houaiss, Grande Dicionário da Língua Portuguesa) encontrasse compradores.
8. Sabe-se que os jornais, à época, tinham circulação restrita, mas também que o DP gozava de
grande prestígio na Região. Portanto, pode-se inferir que o anúncio se dirigia a pessoas com razoável
proficiência em leitura, conhecimento da linguagem quase cifrada da publicidade, algum poder
aquisitivo etc.; percebe-se ainda, pela expressão “tudo em bom estado”, que o anúncio cuidava de
destacar as qualidades que poderiam valorizar os produtos.
9. O que ‘personaliza’ o anúncio é a indicação do endereço, mais precisamente, do “Trapiche” (espécie de
píer pequeno e de madeira associado a um armazém para embarque, desembarque e comercialização
de mercadorias) em que os produtos se encontravam à venda.

130
Beth Marcuschi (UFPE)

zado. Esses aspectos (por sua presença ou ausência), dentre outros,


são de significativa relevância na caracterização do gênero memórias
literárias, como veremos adiante.
Consideremos, na continuidade de nossas reflexões, um trecho
extraído de um artigo acadêmico, de autoria declarada:

Até os séculos II-III d.C., ‘ler um livro’ significava normal-


mente ler um rolo: pegava-se o rolo com a mão direita, desen-
rolando-o progressivamente com a esquerda, a qual segurava
a parte já lida; acabada a leitura, o rolo permanecia enrolado
na mão esquerda. Essas diversas fases, bem como certos ges-
tos e atitudes complementares, são largamente demonstrados
nas representações iconográficas, sobretudo nos monumen-
tos funerários. Neles encontramos o rolo que é seguro com a
mão direita, enquanto a esquerda começa a desenrolá-lo, na
fase inicial da leitura; (...) o rolo aberto no tipo chamado da
‘leitura interrompida’, seguro com apenas uma mão que, reu-
nindo os dois cilindros nas extremidades, deixa livre a outra
mão; (...) o rolo, enfim, novamente enrolado, seguro pela mão
esquerda (CAVALLO, 1998, p. 78; ênfases do autor).

No trecho em questão, Guglielmo Cavallo, conhecido palentólo-
go e historiador italiano, descreve o que significava ‘ler um livro’ nos
primeiros séculos depois de Cristo. O autor escreve, em princípio,
para seus pares, e fala sobre “certos gestos e atitudes complemen-
tares” à leitura, de sujeitos que viveram há séculos atrás, em Roma.
Esses atos, apesar de estarem localizados num passado distante, são
apresentados como plenamente exequíveis (condição tida como re-
levante numa pesquisa científica), pois, no entender de Cavallo, são
“largamente demonstrados nas representações iconográficas”. O vo-
cabulário do artigo em sua tradução para o português é atual e de
fácil compreensão, apesar do uso de alguns poucos termos técnicos
mais sofisticados e específicos da área.

131
Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

As condições de produção do artigo acadêmico e do anúncio, aqui


brevemente alinhavadas, são bastante distintas. Por ser de interesse
para o nosso estudo, é importante, no entanto, trazermos à tona duas
características comuns aos dois gêneros textuais: ambos permitem
recuperar, por caminhos discursivos totalmente distintos, aconteci-
mentos constitutivos de nossa memória cultural, seja local ou uni-
versal; e ambos se distanciam de gêneros da esfera literária, pois não
lidam com o ficcional e também não evidenciam uma preocupação
de natureza estética. Considerando a segunda característica, direcio-
nemos então nossa atenção para o contexto discursivo da literatura.
Gêneros como conto, romance, poema, crônica etc. são rotineira-
mente vinculados à esfera literária, enquanto gêneros como anúncio,
receita culinária, reportagem, artigo científico etc. não o são. Apesar
dessa constatação aparentemente simples e óbvia, não há consenso,
nem entre os teóricos da literatura, nem entre os críticos literários,
nem entre os aficcionados pela literatura, e nem entre os usuários de
modo geral, sobre quais fenômenos essencialmente determinam as
fronteiras da literariedade de um texto. Estabelecer esses limites não
é tarefa simples, nem talvez possível. Conforme Paulino (2005, p. 57),
“o ponto de equilíbrio entre o que une e o que separa práticas cultu-
rais nunca foi fácil de encontrar”. A noção de literariedade constitui,
não há dúvida, um conceito complexo, polissêmico, histórica e cul-
turalmente situado, e, ao debatê-lo, não é nossa pretensão esgotá-lo,
nem estabelecer uma dicotomia entre o literário e o não literário,
mas simplesmente situar a perspectiva aqui assumida.
Cosson nos ajuda a refletir sobre a noção de literatura, ao dar
saliência ao lugar único por ela ocupado em relação à linguagem.
Para o autor, cabe à literatura “(...) tornar o mundo compreensível
transformando a sua materialidade em palavras de cores, odores,
sabores e formas intensamente humanas” (COSSON, 2006, p. 17),

132
Beth Marcuschi (UFPE)

bem como proporcionar um modo peculiar “de inserção no mundo


da escrita, posto que conduz ao domínio da palavra a partir dela
mesma” (SOUZA; COSSON, 2011, p. 102).
Paulino (2005, p. 60), por sua vez, nos ensina que “o texto lite-
rário, além de acumular esteticamente muitos outros textos, revela
e questiona também convenções, normas e valores sociais”, pressu-
pondo, nos papéis de autor e de leitor, sujeitos que se posicionam
sobre o mundo. Complementarmente, entendemos que o gênero li-
terário “tem como uma de suas características principais a ficciona-
lidade” (JAGUARIBE, 2007, p. 221-222), ou seja, embora se assente no
real, seu discurso sobre o mundo pode subverter a lógica tida como
natural. Mais explicitamente, os gêneros da literatura se distinguem
(embora essa distinção nem sempre seja simples de ser identificada)
dos gêneros de outras práticas sociais por uma certa transgressão do
real, por um olhar próprio e reflexivo dos acontecimentos históricos
e sociais, pelo uso mais intenso de recursos estilísticos da lingua-
gem, pela aspiração de provocar experiências estéticas, éticas, ideo-
lógicas etc. no leitor presumido. Como destaca Paulino, nos gêneros
da esfera literária,

os automatismos de percepção textual do leitor passariam


para um segundo plano, embora, por outro lado, os protoco-
los culturais estabeleçam limites e regras para as suas ações,
como estabelecem para as textualizações. Institui-se assim
um jogo entre tais protocolos e o caráter difuso, alógico, do
imaginário, configurado e mobilizado pela ficção. Cria-se, ao
mesmo tempo, uma ponte e um abismo entre um real social
representado ficcionalmente – representação esta que, entre
outras dimensões sociais, impõe uma necessidade de inter-
pretação coerente pelo leitor – e a dimensão imaginária en-
volvida na leitura (PAULINO, 2005, p. 60).

133
Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

Há, certamente, um conjunto expressivo de gêneros da esfera


literária que atendem aos parâmetros elencados e precisamos ir em
busca de outros critérios, se quisermos distingui-los entre si, se qui-
sermos, mais precisamente, caracterizar os gêneros que atendem às
memórias literárias. Observemos, por exemplo, que, no âmbito so-
cial, há uma expectativa de que certas temáticas e/ou peculiaridades
discursivas estejam mais relacionadas a determinados gêneros lite-
rários do que a outros.
Assim, por sua tipificação sócio-histórica no âmbito das práticas
sociais (BAZERMAN, 2005; 2006; 2007), os relatos de experiências
simples do cotidiano são comumente relacionados a crônicas literá-
rias; as narrativas envolvendo um ensinamento moral e animais com
propriedades antropomórficas a fábulas; as narrativas que exploram
a relação do homem com o mundo e procuram explicar, de maneira
mágica, os fenômenos da natureza, o surgimento do mundo e do
universo a mitos etc. Como se percebe, os gêneros citados não são,
em primeiro plano, associados à recuperação, no presente, de lem-
branças antigas atravessadas pelo imaginário do autor e, por essa
razão, não atendem a uma das especificidades mais esperadas no
discurso das memórias literárias.
As memórias literárias têm como propósito sociocomunicativo
mais saliente recuperar, numa narrativa escrita de uma perspectiva
contemporânea, vivências de tempos mais remotos (relacionadas a
lugares, objetos, pessoas, fatos, sentimentos, valores etc.), experien-
ciadas pelo autor (ou que lhe tenham sido contadas por outrem, mas
que lhe digam respeito), numa linguagem que se configure como um
ato discursivo próprio e recrie o real, sem um compromisso com a
veracidade ou com a magnitude das ocorrências. De fato, o distan-
ciamento temporal e as mudanças de valores, experiências e desejos
a ele associadas inevitavelmente levam o memorialista a reconfigu-

134
Beth Marcuschi (UFPE)

rar as passagens que as lembranças trazem à tona. Recordar é, assim,


adicionar ao passado detalhes e cores que (provavelmente) não esta-
vam lá, mas que foram sendo elaborados e reconfigurados ao longo
dos tempos. Como bem aponta Saramago, na obra em que resgata
histórias de seus primeiros quinze anos de vida,

a criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em


que se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de
homem. A criança, durante o tempo que o foi, estava simples-
mente na paisagem, fazia parte dela, não dizia nem pensava,
por estas ou outras palavras: ‘Que bela paisagem, que magní-
fico panorama, que deslumbrante ponto de vista!’ (...) Já não
existe a casa em que nasci (...). Essa perda, porém, há muito
tempo que deixou de me causar sofrimento porque, pelo poder
reconstrutor da memória, posso levantar em cada instante as
suas paredes brancas, plantar a oliveira que dava sombra à en-
trada, abrir e fechar o postigo da porta e a cancela do quintal
(...). (SARAMAGO, 2006, p. 13-16, ênfases do autor).

Nas práticas sociais, a noção de memórias literárias tem delimi-


tações difusas e opacas e pode ser entendida como um discurso que
atravessa tanto gêneros de maior fôlego (como na obra “Anarquis-
tas, graças a Deus - Memórias”, de Zélia Gattai; ou no romance “O
filho eterno”, de Cristóvão Tezza), quanto de menor extensão (como
no poema “Confidência do Itabirano”, de Carlos Drummond de An-
drade). Em qualquer dos casos, o(a) autor(a) retoma lembranças por
ele(a) vivenciadas ou a ele(a) relatadas, opera com múltiplas vozes,
ao narrar as ocorrências em primeira pessoa, preferencialmente, ou,
por delegação do narrador, em terceira pessoa, e assume graus de
ficcionalidade diversos. Não há, nas memórias literárias, um compro-
misso com a fidelidade histórica, nem com os acontecimentos mais
grandiosos ou proeminentes, mas com as vivências que afetam a me-

135
Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

mória afetiva, a memória involuntária e a memória dos sentidos. É


importante, por isso mesmo, distinguir esses gêneros relacionados às
memórias literárias da autobiografia. Essa retrata preferencialmente
momentos e aspectos de uma vida que, por diferentes razões, se tor-
nou célebre, via depoimentos pessoais, e que, “através de algumas
pistas textuais – como nomes completos de familiares, localizações
temporais e espaciais mais específicas – propõe ao leitor um pacto
autobiográfico” (CORRÊA, 2007, p.166).
O tempo e a experiência de vida vivida parecem ser os gran-
des aliados do memorialista, pois é preciso primeiro viver para de-
pois narrar. Talvez por isso, o memorialista se configure, via de regra,
como uma pessoa madura, de olhar atento, capaz de, na relação com
as práticas culturais, reelaborar os acontecimentos de sua história de
vida, reconstruir acontecimentos arquivados na memória, sem se im-
portar e até lidando com o fato de que, a qualquer momento, a memó-
ria pode traí-lo, levando-o a inventar e lapidar cenas e cenários.
É bastante significativa a passagem em que Pedro Nava, um dos
mais reconhecidos memorialistas brasileiros, revela, em seu roman-
ce “Balão Cativo”, muito do seu processo de maturação. O autor se
define como um

menino, moreno, tímido, meio sonso que se esgueirava en-


tre os grandes e gostava de ficar pelos cantos olhando tudo,
ouvindo tudo, guardando tudo, tudo. Armazenando na me-
mória (meu futuro martírio) os fragmentos de um presen-
te jamais apanhável, mas que ele sedimentava e ia socando
quando eles caíam mortos e virados no passado de cada ins-
tante (NAVA, 1977, p. 228).

Em seu estudo sobre Pedro Nava, Aguiar (1998, p. 17) nos revela
a postura de arquivista do escritor, que guardava “documentos de

136
Beth Marcuschi (UFPE)

família, fotografias, cartas, diários, bilhetes, frases soltas, citações de


livros etc.”. Aguiar também nos ajuda a compreender a importância
da etapa de ‘garimpagem’ dos acontecimentos passados no processo
de escrita de Nava, pois nem tudo que está no ‘baú das memórias’
será retomado, e nem tudo que será retomado tem um compromisso
com o real:

Para Nava, rememorar é dar vida aos desaparecidos no tem-


po, assim como escrever sobre eles é convertê-los em matéria
literária. As figuras mortas deixam a sua condição ‘de reali-
dade’ e saltam para a configuração de personagens. De algum
modo, rememorar está para o documento – aqui no sentido
de ‘pura lembrança’ – assim como dar vida nova aos mortos
está para a ficção, no sentido de lembrança transfigurada pela
criação artística. Combinados, os dois processos explicam a
arte do escritor das Memórias (...). Como não poderia deixar
de ser, a fonte principal do trabalho literário de Nava é ele
mesmo, ou seja, sua capacidade de operacionalizar criativa-
mente a própria memória. Contudo, esta somente, sem apoio
da documentação e do método, não o teria levado tão longe
(AGUIAR, 1998, p. 17-18, ênfases do autor).

Poderíamos acrescentar ainda que a subjetividade criadora de


Nava está estreitamente relacionada ao seu contexto sócio-histórico;
às práticas sociais familiares; à convivência intensa com o Modernis-
mo e com os escritores marcantes da literatura brasileira do período;
ao espaço que ele passou a ocupar no contexto literário nacional,
após a eclosão tardia, aos 65 anos, de sua obra.
No âmbito da Olimpíada Escrevendo o Futuro, as condições de
produção textual são didatizadas e ensinadas para os alunos via ofi-
cinas, na perspectiva metodológica das sequências didáticas propos-
tas pela Escola de Genebra, mais especificamente, por Dolz, Nover-

137
Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

raz e Schneuwly (2004) e Dolz, Gagnon e Decândio (2010). Assim, as


memórias literárias, no contexto da Olimpíada, além de absorver os
efeitos discursivos das memórias, são tratadas como um gênero em
si mesmo, com traços mais definidos e transparentes dos que os até
aqui debatidos. Nesse trabalho de transposição didática, o gênero
assume um novo e decisivo contorno: as ‘memórias’ não são propria-
mente do narrador/autor do texto (aluno), mas de uma terceira pes-
soa, cuja perspectiva, todavia, precisa ser assumida pelo narrador/
autor (aluno) em primeira pessoa. Desse modo, cabe ao aprendiz,
com base no tema previamente delimitado, ir em busca de memórias
de pessoas mais velhas da comunidade, que se configurem como in-
teressantes para os propósitos previstos pela Olimpíada. Em seguida,
o estudante deve relatá-las como se fossem suas próprias memórias,
ou seja, em primeira pessoa. Trata-se, pois, de um processo bastante
complexo para jovens escritores ainda em processo de formação e
que, por isso mesmo, precisa ser devidamente dimensionado e enca-
minhado no decorrer das atividades de didatização.
No próximo item, buscamos explicitar como os alunos cuida-
ram desta e de outras questões relacionadas à produção das memó-
rias literárias no contexto de um concurso.

Os textos de memórias literárias elaborados
por alunos no contexto escolar

Para a construção da análise que se segue, foram lidos 385 tex-


tos do gênero memórias literárias elaborados por alunos de sétimo e
oitavo ano do Ensino Fundamental participantes da Olimpíada da
Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro10 , edição 2010.

10. A Olimpíada é uma iniciativa do Centro de Estudos em Pesquisas em Educação, Cultura e Ação
Comunitária–CENPEC, Ministério da Educação e Fundação Itaú Social. A amostra, organizada pelo

138
Beth Marcuschi (UFPE)

Ao longo de uma sequência didática, organizada em dezesseis


oficinas ministradas pelos professores no primeiro semestre de 201011,
os alunos foram sendo preparados, como anunciado anteriormente,
para a realização de uma tarefa bastante específica: redigir um texto
do gênero memórias literárias que trouxesse à tona as vivências de
moradores da comunidade (em primeira pessoa e em linguagem li-
terária); atendesse ao tema “o lugar onde vivo”12; levasse em conta os
leitores das várias etapas (municipal, estadual, regional e nacional)
da Olimpíada; considerasse determinados critérios de textualidade
(coesão, progressão e coerência próprias à lógica interna da narrati-
va) e as convenções da escrita. Vê-se que as condições de produção
disponibilizadas no espaço escolar para o aluno, a começar pelas mo-
tivações para a escrita (participar de um concurso), delimitação do
gênero a ser elaborado (no caso, memórias literárias) e do tema a ser
desenvolvido (O lugar onde vivo), são bastante distintas daquelas que
se apresentam nas práticas sociais extraescolares. Essa divergência é
um dos desafios enfrentados pela didatização dos gêneros textuais,
pois a escola precisa operar com uma espécie de modelo do gênero de
referência a ser ensinado, enquanto, nas práticas sociais, esse mesmo
gênero está sujeito a variabilidades de natureza sócio-histórica, cul-
tural e até mesmo estrutural.

CENPEC, representa equitativamente os diferentes municípios, regiões e escolas do país envolvidos nas
atividades da Olimpíada de 2010.
11. As oficinas foram efetivadas com base em materiais pedagógicos sobre o gênero memórias literárias
elaborados e disponibilizados pelo CENPEC, a saber: “Caderno do Professor ‘Se bem me lembro...’”
(ANDRADE; ALTENFELDER; ALMEIDA, 2010), com orientações para o ensino da escrita do gênero em
pauta; “Coletânea: memórias literárias”, com os textos de memórias completos trabalhados nas oficinas;
e CD-ROM, contendo textos da coletânea e outros complementares em duas modalidades: áudio ou
para impressão/apresentação em Datashow.
12. O tema é estabelecido pelo concurso e deve ser desenvolvido por todos os participantes,
independentemente do gênero textual envolvido na escrita.

139
Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

Tendo em vista as condições de produção estipuladas pelos ma-


teriais da Olimpíada, os comentários sobre os textos dos aprendi-
zes a seguir apresentados estão organizados em três grandes focos:
atendimento ao gênero textual, ao tema e à organização textual. Não
há, ao longo da análise, uma preocupação com informações estatís-
ticas, mas sim com dados indiciários que contribuam para reflexões
a respeito das decisões e dos percursos assumidos pelos alunos no
decorrer de suas produções.

O gênero memórias literárias e os textos dos alunos



Como adiantamos anteriormente, para dar conta do gênero me-
mórias literárias, no contexto da Olimpíada, o aluno deveria: 1) recu-
perar lembranças sobre o passado cultural da localidade pela pers-
pectiva de um antigo morador; 2) apresentar as reminiscências por
ele recolhidas como se fossem suas, ou seja, escrever uma narrativa
em primeira pessoa; e 3) cuidar para que o texto entremeasse aconte-
cimentos reais e ficcionais, com uma linguagem própria e pertinente
à esfera da literatura, buscando envolver o leitor. Na amostra anali-
sada, poucos textos atendem aos três critérios elencados. Em grande
parte, os textos reconstroem lembranças de tempos antigos, mas na
forma de constatações e depoimentos objetivos. Por sua vez, o ponto
de vista narrativo oscila entre a primeira e a terceira pessoa, enquan-
to o entrelaçamento realidade/ficção e o uso da linguagem literária
são bastante restritos. Vejamos alguns exemplos13.

13. Os nomes dos estudantes, das pessoas entrevistadas por eles e das localidades a que se referem
foram retirados. A estrutura e a organização formal dos textos foram mantidas tal como no original, mas,
por uma questão de espaço, não são reproduzidos na íntegra. Os cortes estão devidamente indicados
por sinais gráficos.

140
Beth Marcuschi (UFPE)

Exemplo 1

Custo a acreditar que tudo aquilo que por nós, a molecada de mi-
nha infância, era tido como um paraíso, hoje já não o seja mais. É
a influência do progresso... Tenho saudades daqueles tempos em
que simplicidade das coisas e o valor a natureza, mesmo frente às
dificuldades da vida, prevaleciam sempre. O meu paraíso se en-
contrava em uma pacata localidade do interior do Paraná, [nome
do município], cidade que carrega em si traços bastante visíveis da
colonização dos imigrantes poloneses, alemães e ucranianos. Me
lembro bem de cada trilha que era percorrida por mim e por meus
amigos A. e M. ... Em cada folha de árvore, misturado ao cheiro da
mata, predominava o cheiro do poeirão. Toda vez era assim, e cada
uma delas parecia única, no meio da trilha sentíamos um “click”
que nos chamava para o mesmo lugar: a belíssima cachoeira [...],
rio que ficava próximo de minha casa. Lá brincávamos até o sol
nos abandonar. (...) Comparado, aos tempos de minha infância,
[nome do município] mudou muito. Hoje vivo com minha esposa
e filhos procurando passar a eles um pouco dos ensinamentos que
tive e do valor representado pelas coisas mais simples da vida (...).
Memórias do Sr. B. K por V.K., aluna-autora.

O aluno/autor do texto reproduzido no exemplo 1 elaborou com


êxito uma narrativa em primeira pessoa. As lembranças resgatadas
se reportam a vivências pessoais e à “pacata localidade”. Para carac-
terizá-la, o narrador salienta, por exemplo, a beleza da cascata, a pro-
ximidade do rio, o “cheiro da mata” e os “traços bastante visíveis da
colonização dos imigrantes poloneses, alemães e ucranianos”. São
detalhes esparsos, que apelam aos sentidos (olfato, visão, audição) e
que, mesmo sendo parcimoniosamente desdobrados, permitem ao
leitor acompanhar as reminiscências do autor e elaborar uma ima-
gem sobre a topografia, o cotidiano e as brincadeiras do lugar. A lin-
guagem literária se faz presente, ainda que de forma episódica, no

141
Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

uso de metáforas e outras figuras de linguagem, como nos trechos:


“o meu paraíso”; “toda vez era assim, e cada uma delas parecia úni-
ca”; “sentíamos um ‘click’ que nos chamava”; “lá brincávamos até o
sol nos abandonar”.
As evidências de uma narrativa ficcional que, em alguns mo-
mentos, perpassam as memórias do exemplo 1, sofrem, no entanto,
uma quebra de continuidade ao término do texto. Há uma espécie de
‘retorno a uma realidade objetiva’ (comparado, aos tempos de minha
infância, [nome do município] mudou muito. Hoje vivo com minha
esposa e filhos procurando passar a eles...), o que causa prejuízos ao
envolvimento do leitor com o gênero. Por sua vez, na indicação final
de que as recordações são de ‘B. K’, enquanto a elaboração textual
é de ‘V.K.’, a didatização do trabalho com as memórias fica bastan-
te saliente. Como não se espera que alunos adolescentes já tenham
acumulado vivências próprias, passíveis de serem retomadas na for-
ma de memórias, a recomendação pedagógica de levar os alunos a
buscarem contato com pessoas mais experientes da comunidade e
de resgatarem suas reminiscências é, certamente, produtiva. No en-
tanto, a objetivação dessas informações, sem a desejável integração
das múltiplas vozes no discurso, acaba por distanciar o texto escolar
das memórias literárias do espaço social. Para o aprendiz, essa é cer-
tamente uma condição de complexa operacionalização no encami-
nhamento da produção textual, que necessita ser cuidadosamente
conduzida.

Exemplo 2

O texto a seguir relata praticamente quase toda história de B. C.


Ele gostou de relembrar junto a mim os acontecimentos e histó-
rias do passado. “Quando era pequeno, aí pelos 5 anos, éramos
pobres. As famílias eram grandes com aproximadamente 9 ir-

142
Beth Marcuschi (UFPE)

mãos. Lembro que sempre íamos a igreja sem calçados, pois não
tínhamos condições de comprá-los. (...). Com 7 anos eu era obri-
gado a ir buscar leite na comunidade de 37 [nome da comunidade]
e depois ia para a escola. (...). Naquela época não existia telefone
e o meio de transporte era o cavalo. Depois surgiu um ônibus
velho movido a lenha. (...). Íamos aos bailes a pé, a uma distância
de 8 km. Mais tarde foi comprado um caminhão e íamos em todo
lugar com ele. Era uma felicidade só! (...)”. Hoje ele é feliz e adora
todos e eu me senti muito feliz por poder ser seu confidente nesta
história. Texto escrito por G.L.M., aluno-autor, com base no de-
poimento de B. C., 75 anos.

O aluno/autor inicia o texto apresentando seu entrevistado/
narrador/personagem, B.C. Em seguida, o aluno passa a palavra para
B.C. (estratégia adequadamente reforçada pelo uso das aspas), que
desenvolve então sua fala em primeira pessoa. Quase ao término do
texto, as aspas são fechadas e o aluno reassume sua voz. Mesmo com
alguns problemas na organização textual, o aluno faz uso de uma
estratégia discursiva bastante plausível no âmbito do gênero memó-
rias literárias, ou seja, demarca as vozes de quem fala no discurso e
garante que as reminiscências propriamente ditas sejam relatadas
em primeira pessoa. O estranhamento que fica para o leitor, no en-
tanto, é que o autor não é parte integrante das memórias, nem mes-
mo como um personagem coadjuvante. Ele está ali mais como um
espectador encarregado de registrar depoimentos, tal como aconte-
ce no texto do exemplo 1.
A caracterização do local feita por B.C., via contexto familiar
(éramos pobres; as famílias eram grandes), práticas sociais mais fre-
quentes (íamos a igreja; era obrigado a ir buscar leite; ia para a escola;
íamos aos bailes a pé) e serviços públicos disponíveis ou ausentes
(não existia telefone e o meio de transporte era o cavalo; ônibus mo-
vido a lenha; íamos em todo lugar com ele [caminhão]), ajuda o leitor

143
Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

a construir uma imagem sobre o dia a dia na comunidade. Todavia,


elementos ficcionais e próprios da linguagem literária, que poderiam
tornar a narrativa mais vibrante e envolvente, e menos fragmentada
e reificada, não se fazem presentes no texto. O término do texto ba-
sicamente reproduz a estratégia já comentada no exemplo 1. Há uma
quebra na expectativa do leitor, ainda que (e isso é importante de ser
ressaltado) a estratégia fique dentro dos limites postos pelos mate-
riais pedagógicos da Olimpíada.

Exemplo 3

Como sempre quis saber como era antigamente, talvez por curio-
sidade – tive o privilégio de poder participar deste maravilhoso
trabalho de pesquisa conhecimento e sabedoria entrevistando o
meu avô, então em uma determinada data peguei uma caderneta
e um lápis e me passei por jornalista perguntando ao meu avô
A.A.R., de 67 anos e sua companheira A.S.O. de 63 anos, algumas
perguntinhas da lista que fiz. Comecei questionando como era o
nosso município, disseram que a cidade era muito simples, estrada
de chão, poucas casas, uma igrejinha: Nossa Senhora Aparecida.
Meu avô disse até que ele tinha estudado em uma escolinha (...).
Perguntei se existia luz elétrica, segundo ele luz só tinha em casa
da antiga firma: [nome da firma] e quem não tinha só usavam lam-
piões, a água utilizada era de poços artesianos, da bica ou com-
pravam de carroceiros. Disseram que as moças só iam aos bailes
acompanhadas com os pais (...). Então perguntei se os tempos de
hoje são melhores do que antigamente. Responderam com a maior
certeza, de que hoje é muito melhor do que antes (...). Quando
parei de entrevistá-los fiquei muito feliz, pela sabedoria dos mais
velhos e pela incrível evolução que o município de [nome da cida-
de] preserva.

A proposta dos materiais da Olimpíada de realizar um conjunto
de atividades anteriores à produção das memórias literárias acabou

144
Beth Marcuschi (UFPE)

se tornando parte integrante do relato dos alunos, como no caso do


exemplo 3 (sempre quis saber como era antigamente; pude participar
deste maravilhoso trabalho de pesquisa; peguei uma caderneta e um
lápis; me passei por jornalista; perguntinhas da lista que fiz; comecei
questionando; quando parei de entrevistá-los). Assim, apesar do aluno
se reportar a algumas características do lugar (cidade era muito sim-
ples; estrada de chão; poucas casas; uma igrejinha) e práticas sociais
(tinha estudado em uma escolinha; luz só da antiga firma; uso de lam-
piões; água de poços artesianos, bica ou carroceiros; moças iam aos
bailes com os pais), o texto distancia-se do gênero memórias literá-
rias. O aluno dedica-se muito mais a relatar uma situação de entre-
vista e revela alguma dificuldade em operar com as múltiplas vozes
introduzidas no discurso. Mais precisamente, o aprendiz não con-
cede a palavra aos entrevistados, mas assume ele próprio o papel de
mediador das trocas de falas, demarcadas por verbos de elocução ou
declarativos, como perguntar, dizer, questionar, acrescentar, contar.
Por essa estratégia, as reminiscências são relatadas, pelo viés do dis-
curso indireto, de forma fragmentada. Há quebra, como se percebe,
na articulação e no ritmo do texto, bem como na estrutura narrativa.
Tal como no exemplo 2, o aluno também não recorre à literariedade
e à ficcionalidade no desenrolar de seu texto, capacidade que, sem
dúvida, se apresentou como um dos grandes desafios enfrentados
pelos estudantes na escrita do gênero solicitado.

O tema O lugar onde vivo e os textos dos alunos

No desenvolvimento do tema O lugar onde vivo (estabelecido
pela Olimpíada para todos os gêneros), os aprendizes foram orienta-
dos, no caso da escrita das memórias literárias, a realizar entrevis-

145
Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

tas14 com antigos moradores locais e a buscar, junto aos entrevista-


dos, informações particulares, interessantes, pitorescas e relevantes
sobre a comunidade em épocas passadas. Para tanto, no decorrer das
entrevistas, os alunos deveriam empenhar-se em conseguir detalha-
mentos a respeito dos modos de viver do passado, das transforma-
ções físicas ocorridas no local, de profissões que deixaram de existir,
de eventos marcantes, por exemplo.
Assim, no atendimento à temática, o momento da entrevista
pode ser tido como o mais crucial do processo, pois, por serem muito
jovens, os estudantes não possuem, eles próprios, lembranças dife-
renciadas sobre um passado mais remoto de sua localidade. A en-
trevista seria, neste sentido, a ocasião mais propícia, senão a única,
para que os alunos recolhessem subsídios que, associados a eventos
ficcionais, lhes permitissem ter o que dizer sobre a vida na localida-
de, nos tempos de outrora.
Em função dessas condições, a escolha adequada da pessoa a ser
entrevistada cresce em relevância, pois ela deveria não apenas co-
nhecer histórias antigas do lugar, mas também saber contá-las com
vivacidade e envolvimento, de modo a motivar os aprendizes a re-
construir a narrativa apresentada com um enfoque pessoal e do pon-
to de vista literário. Além disso, a própria preparação da entrevista
deveria receber um espaço considerável no encaminhamento peda-
gógico do processo de escrita do texto solicitado, pois perguntas que
simplesmente ‘não rendem’, ou seja, que não estimulam o entrevis-
tado a falar, ou ainda perguntas desviantes (não direcionadas para o
tema em questão), tendem a oferecer pouco material para registro.
Na amostra de textos explorada, embora, via de regra, reminis-
cências sejam recuperadas, em grande parte elas ficam restritas à

14. De preferência, a entrevista deveria ser efetuada na escola, como indicado na p. 108 do “Se bem
me lembro... Caderno do professor”.

146
Beth Marcuschi (UFPE)

esfera privada do autor/narrador, sem que um elo mais consistente


com o lugar seja estabelecido. Deste modo, acabam retratando as-
pectos rotineiros, mas não singulares, aspectos situados num lugar
genérico e sem identidade própria. Observemos os exemplos 4, 5, e
6, a seguir.

Exemplo 4

Há muitas lembranças de meu tempo de criança que guardo em


meu peito até hoje e levarei comigo a vida toda, mas nenhuma me
emociona tanto quanto a de minha boneca de pano. (...). Durante
toda minha infância, esses domingos deliciosos [de almoço com
toda família] se repetiam, mas um deles sempre estará mais mar-
cado no meu coração, porque nesse eu ganhei (...) a minha preciosa
boneca Emília. (...). Hoje, já adulta e mãe (...) a bonequinha Emília
ainda está guardada em meu quarto e quando eu a abraço sinto
novamente o cheirinho e a energia de toda aquela feliz vivência
(...). (Texto elaborado a partir da entrevista com M.C.C.C., 31 anos,
moradora do bairro [nome do bairro]

Exemplo 5

“(...) Sou o filho mais velho de oito irmãos e meus pais, J.M.A. e
J.A.A., são nordestinos. (...) Nasci ali e cresci ajudando meu pai
na lida das lavouras. Aos 15 anos, saí à procura de uma nova vida,
pois ali não tínhamos opção de trabalho e eu queria muito cres-
cer profissionalmente. Saí pelos caminhos do sertão nordestino só
com algumas roupas na mala e dormindo pelas estradas”. (...). Esta
história é da vida do meu avô que viveu 83 anos já faz 10 anos que
ele veio a falecer. (...). Saudades vovô J.M.A., quantas saudades. J.P.
V.P. [aluno-autor].

147
Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

Exemplo 6

Viajando pelo tempo, voltando ao passado, navegando nas lem-


branças do Sr. J., pessoa humilde, batalhador, com uma história
de vida incrível. (...). Meados de 1929, quando tinha 8 anos, já era
um garoto que ajudava o pai no campo, e ainda arranjava um tem-
pinho para brincar de “boizinho” que era uma brincadeira onde
ele pegava frutas como: manga, goiaba etc. enfiava gravetos simu-
lando as pernas do boi e se sentia um grande fazendeiro, com sua
fazenda “abarrotada de gado”. (...). Lembro-me da minha primeira
professora Dna D. e de sua palmatória que me castigava todas as
vezes que me atrasei para ir a escola (...).Texto escrito com base no
depoimento do Sr. J.B.S., conhecido como Sr ‘J.’ de 89 anos.

Os exemplos 4, 5 e 6, associados aos exemplos 1, 2 e 3, são bas-
tante representativos do que a amostra de textos nos proporciona
em termos da abordagem temática. Assim, ora as produções trazem
informações pontuais sobre características da localidade (textos 1 a
3), ora fogem ao tema proposto, por apresentarem reminiscências
que tangenciam o contexto cultural e os valores do lugar onde vivem
os narradores (textos 4 a 6), muito em função das informações pro-
curarem espelhar a realidade, sem movimentos de aproximação em
direção ao inventado e sem preocupação com o resgate da lingua-
gem literária.
No texto 4, o foco temático está voltado para os almoços de do-
mingo e a boneca que a moradora ganhou em certa ocasião; no texto
5, o tema central é a história de vida do avô do aluno-autor, da in-
fância à vida adulta, transcorrida em lugares diferentes; no texto 6,
ainda há uma recuperação interessante de algumas das brincadeiras
de infância do Sr. J.B.S, mas o restante do texto não constrói para
o leitor memórias literárias do local em que o entrevistado vivia. É
possível que, nos casos dos textos 4 a 6, as entrevistas não tenham

148
Beth Marcuschi (UFPE)

sido bem conduzidas, ou ainda que as pessoas não tenham sido ade-
quadamente selecionadas, em termos do subsídio que poderiam ofe-
recer para a escrita do aluno. No exemplo 4, a moradora tinha apenas
31 anos à época da entrevista, idade insuficiente para que ela pudesse
maturar e relatar casos mais interessantes sobre a cidade, para além
de suas vivências nos almoços em família e seu apego à boneca. No
exemplo 5, não houve propriamente entrevista, pois, segundo o au-
tor relata, as reminiscências são do avô, falecido há dez anos. No
exemplo 6, o aluno informa que o morador tem “uma história de vida
incrível”, mas esta narrativa não se expande para a caracterização de
peculiaridades da história cultural da comunidade na qual o entre-
vistado e o entrevistador estão inseridos.

As condições de textualidade e os textos dos alunos

No âmbito da textualidade, se considerados os materiais peda-


gógicos da Olimpíada, esperava-se que os alunos redigissem textos
que atendessem à coesão, à articulação e à progressão, de forma a ga-
rantir a coerência esperada no gênero ensinado e, por esse caminho,
ajudassem o leitor a atribuir um sentido ao texto. Para tanto, seria
importante que o aluno-autor estivesse atento, entre outros aspec-
tos15, ao manejo adequado da retomada dos referentes, ao emprego,
quando necessário, de conectores, ao uso de tempos verbais e indi-
cadores espaciais que recuperassem adequadamente as épocas e os
lugares reportados nos textos. Outro aspecto a ser levado em conta
seria a observância às convenções da escrita, tendo em vista que a
situação comunicativa pressuposta – participação em um concurso
de âmbito nacional – exigia uma cuidadosa releitura, revisão e, even-

15. Outros fenômenos, além dos aqui citados compõem a textualização. Preferimos, no entanto, nos
ater aos indicados, por serem os mais salientes nos textos dos alunos.

149
Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

tualmente, também uma reescrita dos textos. Os exemplos inseridos


na sequência nos ajudam a compreender como os textos dos alunos
se apresentam quanto aos fenômenos mencionados.

Exemplo 7

Nasci em [nome do município] em um período que as coisas eram


muito diferentes de hoje, naquela época namorar era um assunto
muito sério (...). Outro assunto da minha época era a vida difícil,
muitas pessoas morriam de doenças que ninguém conhecia ou de
fome, nós tínhamos de trabalhar na roça (...). Em 1958 houve a
maior seca já vista nesta região nem sei como nós sobrevivemos,
porque as roças não deram sequer um pé de arroz ou de feijão. (...).
Eu lembro das danças daquela época como a dança de São Gonça-
lo, a família toda gostava de participar, íamos de jumento, os pe-
quenos iam no grajau16 e os maiores iam no meio da cangalha e nós
íamos a pé, outra coisa diferente era o jeito das roupas, eu gostava
de comprar algodão para fazer redes e algumas peças de roupas.

Para que um texto progrida17, é importante que as informações


novas sejam ancoradas em referentes anteriores, de forma que o lei-
tor não perca o ‘fio da meada’. Este cuidado não se fez presente de
modo satisfatório nos textos estudados na amostra. Com relativa fre-
quência, os autores elaboraram grandes listagens das reminiscências
que lhes foram contadas, sem a preocupação de organizá-las numa
narrativa coerente e articulada.
No exemplo 7, o narrador informa seu local de nascimento e, em
seguida, indica como aconteciam os namoros. Posteriomente, sem
estabelecer qualquer vínculo com o assunto ‘namoro’, explicita a di-

16. Pequenos cestos.


17. A progressão pode ocorrer de forma diferenciada, tendo em vista o gênero textual, o espaço social
em que o texto irá circular, o leitor presumido, o conhecimento de mundo partilhado etc.

150
Beth Marcuschi (UFPE)

ficuldade causada, na época (não situada), pelas mortes provocadas


por doenças desconhecidas ou mesmo pela fome. O texto prossegue,
introduzindo ocorrências que guardam pouca relação entre si. Do
ponto de vista temporal, a única referência disponível é o ano de
1958, quando, segundo informa o texto, “houve a maior seca já vis-
ta na região”. Todavia, na sequência, o narrador diz lembrar-se “das
danças daquela época”, das quais “a família toda gostava de partici-
par”. A qual época refere-se o narrador? Provavelmente não à mesma
em que ocorreu a grande seca, mas isso não é esclarecido. E mais,
os fatos relatados foram vivenciados quando o narrador era criança,
jovem ou adulto? Esta é uma questão que o leitor não consegue resol-
ver, sobretudo quando se considera o trecho: “íamos de jumento, os
pequenos iam no grajau e os maiores iam no meio da cangalha e nós
íamos a pé” (ênfases acrescidas).

Exemplo 8

(...) quando lembro do tempo em que era jovem recordo de muitas


coisas diferentes. O jeito de namorar era uma delas, eu de um lado
minha mãe do outro e meu namorado perto de mim. Gostava de
frequentar a escola, minha professora era muito brava. (...). Minha
mãe costurava, fazia balaios (...) ela também preparava as refei-
ções, elas eram feitas num fogão a lenha. Eu usava vestidos longos
abaixo do joelho. Comprava tecidos para fazer os vestidos, os teci-
dos e outras coisas era comprado nos armazéns. O relacionamento
com meus pais havia muito respeito com eles, com os idosos e
também com as demais pessoas. Aos domingos eu sempre reu-
nia com meus vizinhos ou parentes para almoçar-mos juntas. (...).
A maioria das pessoas morava na zona rural assim como minha
família em pequenas casas. A escola que eu estudava era muito
simples. Eu e meus colegas sentávamos em bancos e em dupla. O
hospital da cidade tinha poucos recursos. (...).

151
Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

No texto 8, a autora introduz vários referentes, sem articulá-los


entre si. Com isso, vai deixando lacunas que dificultam a construção
da progressão textual. Observa-se que, do assunto “jeito de namorar”,
o narrador passa para o prazer de “frequentar a escola” e, de forma
aparentemente contraditória, justifica este prazer pelo fato da “pro-
fessora ser muito brava”. Na sequência do texto, depois de apontar as
atividades desenvolvidas pela mãe (costurava, fazia balaios, preparava
as refeições), a jovem se reporta aos ‘vestidos longos abaixo do joelho’
que usava. Em seguida, o foco temático passa do relacionamento res-
peitoso com os pais e idosos para as reuniões de domingo, e deste para
a constatação de que as pessoas moravam, em sua maioria, na zona
rural. Evidenciando mais uma vez a quebra na progressão temática, a
aluna retoma o tópico ‘escola’ e, posteriormente, declara que “o hos-
pital da cidade tinha poucos recursos”. Pode-se supor que a aluna foi
exposta a variadas informações sobre a biografia do entrevistado e
não conseguiu dar uma unidade à narrativa (ou não foi devidamente
orientada para isso), tangenciando a articulação temática. Outro fator
que dificulta a integração das várias passagens numa compreensão
global é a ausência da contextualização temporal.

Exemplo 9

Eu, meus três irmãos, minha irmã e meus pais, vivíamos uma vida
simples, (...) eu e meus colegas adorávamos brincar de pular corda,
pega-pega. (...). Na escola, eu e minha irmã nem tínhamos muita
roupa para vestir, então vestíamos as roupas iguais e o povo da
escola ria muito, mas nada disso nos importava, pois nossa família
vivia unida e adorávamos ir ao sítio da minha avó afinal, o ar de lá
é muito puro, bebíamos leite de vaca, subíamos nos pés de frutas
e havia muita plantação de roça. O momento mais marcante foi
na minha formatura, onde todos nós, da nossa classe e os meus
professores fizemos uma viagem de navio e tivemos um almoço

152
Beth Marcuschi (UFPE)

muito especial. Esse dia foi inesquecível... Houve também um dia,


na sala de aula, que uma professora chegou a quase me bater com
a régua, só porque eu desenhei no caderno afinal, naquela época
o ensino era muito rigoroso. O namoro na minha juventude era
muito respeitoso, agora hoje em dia muitas coisas mudaram... (...).

Tal como nos exemplos anteriores, há pouca articulação entre as
informações. Algumas delas, inclusive, parecem não guardar qualquer
relação com a anterior nem com a subsequente. Assim, após um rela-
to a respeito da ‘vida simples e das brincadeiras da infância’, a aluna/
autora declara que ‘ela e a irmã não tinham muitas roupas para vestir,
mas isso não importava, pois a família era unida e adorava ir ao sítio
da avó beber leite e subir nos pés de frutas’. Do sítio da avó, a jovem
passa para o momento da formatura, para, em seguida, retornar a um
fato transcorrido em sala de aula, provavelmente antes da formatura,
sem que, ao longo deste percurso, seja providenciada a devida con-
textualização. Fica-se com a impressão de que, no processo de produ-
ção, o aprendiz elimina as perguntas preparadas para a entrevista e
compõe seu texto apenas justapondo as respostas, sem atentar para a
importância de articuladores adequados ao gênero. Em função destas
quebras, as ideias ficam soltas e a tessitura textual sofre prejuízos.

Reflexões finais

Embora o contato com histórias de vida seja bastante frequente


na faixa etária em que se encontram os alunos do 7º e do 8º ano do
Ensino Fundamental, a familiaridade dos aprendizes com os gêne-
ros da escrita nos quais circulam o discurso das memórias literárias
é bastante restrita. Também a experiência com a transposição de
narrativas da oralidade vivenciadas por terceiros para a autoria em
primeira pessoa, igualmente na modalidade escrita, é escassa. Con-

153
Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

sidere-se ainda que, nas práticas sociais, as memórias literárias apa-


recem associadas a autores mais experientes e maduros e a gêneros
de maior fôlego, como romances, ainda que sejam perceptíveis em
outros, como poemas e contos.
No contexto pedagógico da Olimpíada, todavia, o discurso e o
gênero memórias estão estreitamente entrelaçados, e vinculados, so-
bretudo, a narrativas curtas, na produção escrita, e a fragmentos de
romance, na leitura. Aparecem também associados a um tema fixo
que deve ser alimentado por entrevistas nem sempre pródigas em
subsídios para o desenvolvimento da tarefa. Assim, a tensão provo-
cada por um certo distanciamento entre as práticas sociais extraes-
colares e as práticas de sala de aula poderia, pelo menos em parte,
explicar a dificuldade encontrada por muitos alunos no desenvolvi-
mento do gênero memórias literárias, tal como solicitado nas condi-
ções de produção da Olimpíada.
Por outro lado, retomando as palavras de Bazerman, para quem
“os gêneros são os lugares familiares para onde nos dirigimos para
criar ações comunicativas inteligíveis uns com os outros e são os
modelos que utilizamos para explorar o não-familiar” (BAZERMAN,
2006, p.23), na medida em que os jovens envolvidos com a escrita das
memórias literárias frequentemente estão bastante familiarizados
com narrativas orais, caberia à escola recorrer a esse conhecimento
para ajudar os alunos a “explorar o não-familiar”, que é justamente
o registro escrito dessas memórias num texto direcionado para as
práticas sociais públicas não-escolares.
É importante lembrar que, para muitos aprendizes, o trabalho
nas oficinas, no âmbito da Olimpíada, representou/a, provavelmen-
te, o primeiro contato sistematizado com a elaborada estratégia dis-
cursiva de lidar com as múltiplas vozes do discurso; a primeira opor-
tunidade de ampliar, de modo consequente, sua bagagem de leitura

154
Beth Marcuschi (UFPE)

literária; e uma das poucas chances de desenvolver competências de


escrita para interagir com leitores virtuais, bem como de se expor à
crítica na posição de autor, para além da sala de aula.
Assim, na superação das questões identificadas, a Olimpíada
tem uma importante contribuição a oferecer. De fato, a natureza de
sua proposta é bastante promissora, pois se constitui num trabalho
que investe na formação de um aluno capaz de colocar-se no papel
de um leitor crítico do seu próprio texto, sem perder de vista as prá-
ticas sociais em que o gênero produzido irá circular.
Ressalte-se ainda que a capacidade para a produção de textos
dos jovens autores não será construída com a realização de uma úni-
ca sequência didática visando à aprendizagem de um único gênero.
Por isso mesmo, a participação na Olimpíada precisaria ser vista por
alunos e professores como uma significativa oportunidade a mais,
mas, certamente, não exclusiva, de trabalho com a escrita. Em suma,
a Olimpíada oportuniza um momento rico de formação, que pode
ser transposto para a prática pedagógica de escrita de outros gêneros
textuais e de outros temas.

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157
“Gênero pode ser aplicado a
qualquer tipo de artefato ou
qualquer tipo de declaração
que possa ser visto como
um enunciado significativo,
portanto, não está
imediatamente ligado a um
texto. Outra diferença é que
a delimitação do gênero o
torna diferente do texto,
a menos que se especifique
um texto único completo.”

— Charles Bazerman. Série Bate-Papo Acadêmico. v.1


Gêneros Textuais. Recife, 2011. Disponível para acesso
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6
Gêneros e a construção
do discurso ambiental de
campanha de conscientização
Maria Cl ara Catanho Cavalcanti 1 (IFPE)

Introdução: a propaganda, suas funções


e o ambientalismo

Não é novidade que vivemos uma época de crise ambiental. Pelo


menos, é essa a ideia sociológica que as mídias nos transmitem. Essa
é uma construção discursiva típica da nossa época; se é uma reali-
dade histórica, física ou geográfica, não podemos comprovar, nem
é esse o nosso interesse, mas não podemos negar que é uma mar-
ca da atual modernidade. Preferimos chamar “atual modernidade” e
não “pós-modernidade”, pois concordamos com Giddens (1991, 2002,
2003) quando afirma que vivemos o auge da modernidade, a Alta
Modernidade, para usar o termo do sociólogo inglês. Modernidade
Tardia ou Alta Modernidade é a nomenclatura utilizada por ele para
designar as características histórico-sociais que a própria Moderni-
dade adquiriu nos últimos cinquenta anos.
As questões ambientais marcam e afligem a atual modernidade,
e uma das maiores tensões envolve o ato de consumir, o qual é um
dos mais conflituosos para quem produz, manipula ou adquire um
bem, uma vez que essas atitudes, diante da crise ambiental que vi-

1. claracatanho@gmail.com IFPE – Campus Recife – DAFG

159
Gêneros e a construção do discurso ambiental de campanha de Conscientização

vemos hoje, envolvem reflexões tanto das empresas quanto dos con-
sumidores. Esse é um conflito típico da Alta Modernidade e envolve
o conceito de reflexividade, ou seja, é quando a Modernidade, longe
das certezas trazidas pela razão iluminista, avalia suas próprias ins-
tituições sociais.
Vejamos essas questões, e outras mais, a partir da análise de
dois textos. São duas propagandas em vídeo: uma, comercial; outra,
institucional (ou não!).

Exemplo 01. [re]pense Panasonic – 2012

Imagem 1 Imagem 2

Imagem 3 Imagem 4

Você já parou pra pensar que natureza e tecnologia podem


conviver em harmonia? Repense. A Panasonic lança a pri-
meira fábrica Eco Ideas de Eletrodomésticos do Brasil. É
a tecnologia japonesa em harmonia com a nossa natureza.
Repense suas escolhas. Panasonic – Ideas for life.

160
Maria Clara Catanho Cavalcanti (IFPE)

Optamos por fazer um recorte nas cenas e selecionamos as qua-


tro imagens acima. O texto oralizado, entretanto, foi reproduzido na
íntegra. Esse é um dos vídeos da campanha [re]pense, da Panaso-
nic, que foi ao ar no ano de 2012.A campanha apresenta aos consu-
midores perguntas que os levam a refletir sobre os critérios de escolha
de produtos, passando a considerar também o impacto ambiental que
tais produtos geram durante a produção e o uso. As peças publicitá-
rias dessa campanha possuem como identidade visual as cores branca
e azul, uma vez que fazem parte da logomarca da Panasonic, como
podemos observar com a imagem da arara na publicidade de geladeira
transcrita acima (confira as imagens 01 e 04). A inspiração para a cria-
ção da campanha surgiu do princípio sustentável dos “Rs” – recicle,
reuse e reduza. A ideia foi acrescentar um quarto “R”, que incentive o
comportamento dos outros três – o “repense”.
Na propaganda da Panasonic, notamos a seguinte sequência: ini-
cialmente, há a referência ao elemento da natureza – a arara azul –,
que aparece em um habitat bastante verde e arborizado antes de en-
trar na cozinha e pousar em cima da geladeira. A escolha dessa ave se
relaciona à necessidade de sua preservação, uma vez que é vítima do
comércio ilegal, assim como remete à cor da logomarca da Panasonic.
Na primeira imagem do exemplo, vemos a atriz Fernanda Lima posi-
cionada à frente da arara e da geladeira. Ela faz a seguinte pergunta:
“Você já parou para pensar que natureza e tecnologia podem conviver
em harmonia?”. Notamos, de início, o uso do pronome “você” estabe-
lecendo uma interação bastante próxima com o interlocutor. Quanto
ao léxico, há o uso dos substantivos “natureza”, “tecnologia” e “harmo-
nia”, os quais constituem a ideia central da campanha, que traz como
ação principal o jogo entre os verbos “pensar” e “repensar”. Isso fica
evidente na sequência, quando a atriz, no imperativo, aconselha: “re-
pense” (imagem 03), fortalecendo o conselho com a posição do dedo

161
Gêneros e a construção do discurso ambiental de campanha de Conscientização

indicativo na cabeça (terceira imagem). Então, inicialmente, chama-se


a responsabilidade para o consumidor, o qual, logo após ser orientado
a repensar suas escolhas, é apresentado às vantagens ecológicas da
empresa. Assim, enquanto a atriz afirma que a Panasonic havia lan-
çado a primeira fábrica Eco Ideas de Eletrodomésticos do Brasil, a ge-
ladeira, foco da peça em análise, vai sendo mostrada por dentro e por
fora, ao mesmo tempo, a imagem salienta uma parte do painel com o
sensor ECONAVI (imagem 02), cujo indicador é uma luz verde. E, na
última imagem, novamente a empresa aparece como solução, como
caminho para um consumo ecologicamente correto.
Giacomini Filho (2004) classifica esse tipo de propaganda como
“propaganda comercial”, pois sua organização textual gira em torno
da função de apresentar um produto com o intuito de vendê-lo. O
principal argumento da propaganda da Panasonic baseia-se no incen-
tivo ao consumo verde, o consumidor preocupado com a sustentabili-
dade deve investir num produto que trará menos gastos energéticos e,
portanto, uma economia para quem comprá-lo.
Vejamos agora um segundo exemplo, uma propaganda institu-
cional, na classificação de Giacomini Filho (2004); é o primeiro episó-
dio da série Consciente Coletivo. A função desses textos é divulgar um
conteúdo educacional, expor ou, até mesmo, explicar conceitos am-
bientais e também divulgar marcas como patrocinadoras de campa-
nhas de conscientização ambiental. A campanha Consciente Coletivo
é resultado de uma parceria de troca sociocomercial entre a HP, em-
presa de produtos de tecnologia da informação; o Canal Futura, canal
educativo das organizações Globo; e Instituto Akatu, ONG especiali-
zada em consumo consciente. Essas instituições têm papeis diferentes
na produção e na divulgação da campanha: a HP financia; o Futura
divulga; e o Akatu empresta seu discurso e sua experiência ao tratar
de meio ambiente e consumo.

162
Maria Clara Catanho Cavalcanti (IFPE)

A campanha é composta por uma série audiovisual de dez víde-


os, cada um com cerca de dois minutos, sete papeis de parede, cinco
rodapés para e-mail e doze avatares. A principal peça da campanha
são os vídeos para a TV, os quais possuem dois minutos e não apenas
alguns segundos, como normalmente acontece com as campanhas em
geral. Na verdade, os filmes da Consciente Coletivo eram interprogra-
mas contemplados pela grade de programação do Canal Futura. Cada
episódio desenvolve uma temática relacionada ao consumo conscien-
te, como sustentabilidade, energia, água, lixo, entre outros. A reflexão
sempre parte da comparação entre o homem e algum elemento da
fauna ou da flora brasileira. Como são dois minutos de vídeo, reprodu-
ziremos alguns trechos do episódio 01, cujo tema é sustentabilidade.

Exemplo 02. Consciente Coletivo – Episódio 01 – 2010

Essa é uma das primeiras ima- Depois que a logomarca da


gens da série, todos os epi- campanha se forma na tela,
sódios iniciam-se dessa forma. aparece o interior do cole-
O ônibus é uma metáfora vi- tivo, com alguns indivíduos
sual resultante da polissemia carregando ou segurando bens
da palavra “coletivo”. É im- de consumo. Nota-se que os
portante notar alguns aspec- bens têm o destaque de cores
tos visuais, como o fato de vivas. O personagem principal
a animação imitar papel reci- aparece em destaque nas cenas
clado. do ônibus; ele sempre segura
vários objetos ao mesmo tem-
po, indicando seu consumismo.

163
Gêneros e a construção do discurso ambiental de campanha de Conscientização

Em todos os episódios, o per- Enquanto o tatu é exemplo


sonagem principal, chamado de de pouco consumo, o episó-
“jovem humano”, é comparado a dio mostra o jovem humano
outros elementos da fauna ou mais cheio ainda de bens de
da flora brasileira. Nesse epi- consumo. A partir dessa com-
sódio, o tatu serve de exem- paração, a temática começa
plo, pois, segundo o narrador, a se desenvolver. No caso do
consome só o necessário para primeiro episódio, o tema é
sua sobrevivência. sustentabilidade.

A partir do sapato do jovem Ao final dos episódios, su-


humano, o episódio vai mos- gerem-se ações de consumo
trando como os bens de con- consideradas corretas, como
sumo, em sua maioria, são comprar produtos certificados,
produzidos, enfatizando a apagar a luz, fechar a tor-
quantidade de água e energia neira, entre outras.
gastas na fabricação. Informa-
-se também sobre os processos
de descarte de lixo e resídu-
os, e destaca-se a responsabi-
lidade que as empresas devem
ter nessas produções.

164
Maria Clara Catanho Cavalcanti (IFPE)

Nesse episódio, especificamen- No final, o tatu e seus filhos


te, destaca-se que a escolha aplaudem as atitudes sugeri-
de empresas sustentáveis – das como corretas.
certificadas, que se preocupam
com o bem estar dos funcio-
nários e com os moradores da
região – é de responsabilida-
de do consumidor.

Com as análises, podemos observar que os dois textos são bas-


tante diferentes, pois suas funções são diferentes, seus processos de
produção e circulação também; assim, os textos se organizam para
cumprir a exigência social que se estabelece sobre eles.
A sociedade contemporânea ainda opera num modelo capitalis-
ta com base econômica em mercados. Esses mercados – ambientes
onde ocorrem trocas, podendo ser um espaço físico ou virtual (SAN-
TOS, 2005) – baseiam-se em modelos de produção intensiva, ou seja,
diversos produtos são fabricados para que sejam adquiridos pela po-
pulação. Tendo em vista essas características mercadológicas que
marcam nossa sociedade, percebemos que a relação entre os merca-
dos e a população é intermediada pelos textos publicitários. Sampaio
(2003, p. 30) ratifica esse papel social da publicidade quando afirma:

165
Gêneros e a construção do discurso ambiental de campanha de Conscientização

A propaganda adquire importância fundamental no processo


econômico, uma vez que, de um lado, funciona como elemen-
to vital para que as empresas conquistem mais consumidores
e expandam suas atividades e, de outro, para que os consu-
midores estejam melhor informados e possam escolher ade-
quadamente o que consumir.

Assim, notamos que, embora sua função primordial seja infor-


mar, nem sempre a publicidade teve a importância que possui nos
dias atuais. Se hoje ela tem papel fundamental na composição do
modelo econômico de mercado, em outros tempos não havia a ne-
cessidade de divulgação de marcas e produtos. Obviamente, a persu-
asão para a venda de produtos existe na sociedade desde que houve
as primeiras relações de compra e venda. No entanto, a organização
do mercado publicitário do modo como se estabelece hoje para a di-
vulgação da produção em larga escala nem sempre teve esse formato.
A publicidade foi se moldando às necessidades socioeconômicas à
medida que a produção se intensificava, pois os mercados ficaram
mais amplos, provocando o distanciamento entre o fornecedor e o
consumidor. Para reaproximar mercado e consumidor, várias técni-
cas de comunicação foram sendo experimentadas e se consolidando
pela sua eficácia. Com o tempo, ocorreu uma sistematização, numa
tentativa de buscar estratégias cada vez mais específicas de comu-
nicação entre produtores e a população. Além disso, não existia a
quantidade de meios de divulgação em massa que existe hoje. En-
quanto que, no início do século passado, se anunciavam produtos em
jornais e quermesses, hoje temos acesso a meios diversos como TV,
rádio e internet. Outro fator que impulsionou as campanhas publici-
tárias foi a velocidade da comunicação, fenômeno que nos integra e
globaliza em tempo real.

166
Maria Clara Catanho Cavalcanti (IFPE)

Apelamos para esse aparato histórico para explicar a função so-


cial das propagandas, pois, se vamos tratar de gêneros, esse é o cer-
ne, uma vez que os gêneros emanam das relações humanas e tam-
bém as realizam ou as concretizam. É marca da nossa atualidade
a preocupação com o meio ambiente, e essa característica apresen-
tou-se de forma distinta nos dois textos analisados. O primeiro é
uma típica propaganda comercial, que informa sobre um produto;
no caso, uma geladeira com funções de baixo consumo. Essas fun-
ções são argumentos de consumo sustentável. Já o segundo texto
tem características diferentes: não vende um produto específico e
possui um aspecto instrucional interessante, pois as instruções se
misturam com sugestões de consumo que, algumas vezes, podem
ser associadas às próprias empresas produtoras da campanha. Es-
sas sugestões são mais sutis, mas fica evidente que essa não é uma
campanha apenas pela causa ambiental; é uma organização cada vez
mais comum na atualidade para construir e divulgar uma imagem
empresarial sustentável. Essa é a principal função. Então, apesar de
classificarmos Consciente Coletivo como propaganda institucional,
ficam claros seus fundamentos comerciais.

Gêneros: exigência, recorrência e tipificação

A noção de gêneros enquanto ação social é desenvolvida prin-


cipalmente pelos Estudos Retóricos de Gêneros (ERG), grupo forma-
do por pesquisadores norte-americanos e canadenses, cujo objetivo
principal é investigar a natureza social do discurso. Duas importan-
tes influências recebidas por essa abordagem são a Nova Retórica e
a teoria de Mikhail Bakhtin acerca da linguagem e dos gêneros do
discurso. Durante os anos de 1960 a 1970, a retórica clássica passou
por uma revitalização nos Estados Unidos e foi associada ao ensino

167
Gêneros e a construção do discurso ambiental de campanha de Conscientização

da persuasão. A Nova Retórica foi um movimento com preocupa-


ções pedagógicas acerca do ensino da composição argumentativa.
Com relação aos pensamentos bakhtinianos, estes formam a base fi-
losófica dos ERG. Partindo da visão dialógica da linguagem, toma-se
como conceito central a ideia de gêneros como tipos relativamente
estáveis de enunciados. Há uma valorização intensa de gêneros como
“ressonância de enunciados com histórias de enunciados anteriores,
reconhecíveis como o mesmo gênero” (Bazerman, 2007, p. 163).
A partir da noção de estabilidade relativa, entende-se que os
gêneros são respostas a situações sociais recorrentes e são responsá-
veis por organizar a experiência humana, atribuindo-lhe significado.
É nesse sentido que se desenvolveu a noção de gênero enquanto ação
social tipificada, tal qual defendida por Carolyn Miller (1984; 1994).
Em “Gênero como ação social”, artigo publicado em 1984, no Quar-
terly Journal of Speech, Miller mostra que a definição de gênero pro-
posta por ela pode ajudar a explicar a maneira que os sujeitos encon-
tram para interpretar, reagir e criar textos particulares. Ela ratifica a
posição de Karlyn Kohrs Campbell e Kathleen Hall Jamierson (1978)
de que o estudo de gêneros é importante não por permitir a criação
de taxonomias, mas por enfatizar aspectos sociais e históricos da
retórica que outras perspectivas não faziam na época. Essa definição
retórica de gênero se concentra não apenas na substância ou na for-
ma do discurso, mas na ação recorrente que ele realiza.
Os gêneros não são, portanto, apenas sócio-históricos, são tam-
bém cognitivos, pois envolvem a apreensão dos fenômenos sociais.
Aviva Freedman (1994), num ensaio sobre cerimoniais, mostra como
gêneros e apreensões estão ligados, uma vez que, em um sistema de
relações, não podemos compreendê-los completamente como ações
sociais sem levar em consideração a apreensão. Ou, como aponta
Bazerman (2006, p. 31), gêneros são entendidos como “fenômenos de

168
Maria Clara Catanho Cavalcanti (IFPE)

reconhecimento psicossocial que são parte de processos de ativida-


des socialmente organizadas”.
Assim, esse conhecimento é aprendido, como afirmamos ante-
riormente, em situações retóricas recorrentes. Miller (1984, p. 156)
desenvolve a noção de recorrência, afirmando que:

o que recorre não é uma configuração material de objetos,


eventos e pessoas, tampouco uma configuração subjetiva, ou
uma percepção, uma vez que essas também são únicas de
momento a momento e de pessoa para pessoa. A recorrência
é um fenômeno intersubjetivo, uma ocorrência social e não
pode ser entendida em termos materialistas.

Dessa forma, com relação à situação, devem-se rejeitar tendên-


cias materialistas, pois o que recorre não é a configuração material,
tampouco relações individualistas ou subjetivas. A recorrência é im-
plicada pelo entendimento que os sujeitos têm das situações como
algo comparável, similar ou análogo a outros eventos por eles já co-
nhecidos. Dessa forma, ocorrem identificações baseadas em atribui-
ção de significado. O que precede a ação humana é a interpretação
do ambiente material em que ela ocorre; os indivíduos definem ou
determinam a situação.
Central para essa noção de situação e recorrência é o conceito
de exigência desenvolvido por Miller (1984). Entendendo a situa-
ção retórica como constructo intersubjetivo e social, a exigência não
pode ser definida como percepção individual ou no âmbito apenas
de circunstâncias materiais. A exigência é apresentada como mo-
tivação social, é uma forma de conhecimento social, é construção
mútua de objetos, eventos, interesses e propósitos que não somente
os relaciona, mas também os fez o que eles são: uma necessidade
social objetiva.

169
Gêneros e a construção do discurso ambiental de campanha de Conscientização

É através do processo de tipificação que se criam recorrências,


analogias e similaridades. O que ocorre não é uma situação material,
mas a construção intersubjetiva de um tipo. O sucesso da comuni-
cação exige que os participantes partilhem tipos comuns, e isso só é
possível porque eles são socialmente criados.
Bazerman (2006, p.29), tratando de tipificação e gêneros, afir-
ma que “uma maneira de coordenar melhor nossos atos de fala uns
com os outros é agir de modo típico, modos facilmente reconhecidos
como realizadores de determinados atos em determinadas circuns-
tâncias”. Essas formas padronizadas e reconhecíveis emergem como
gêneros. O autor define tipificação como “o processo de mover-se em
direção a formas de enunciados padronizados, que reconhecidamen-
te realizam certas ações em determinadas circunstâncias, e de uma
compreensão padronizada de determinadas situações é chamado de
tipificação” (BAZERMAN, 2006, p. 29-30).
Após apresentarmos o conceito de tipificação ao lado das no-
ções de situação retórica e exigência, é importante retomarmos a no-
ção de gêneros do discurso definida por Bakhtin (1997[1952; 1979], p.
280) como “tipos relativamente estáveis de enunciados”, ressaltando
o advérbio “relativamente”. À primeira vista, ao discutirmos sobre
tipificação, pode parecer que tratamos de uma estabilidade total das
interações humanas, porém o conceito de tipificação leva em conta a
criação de novas formas comunicacionais. No entanto, essas formas
não são totalmente novas, mas sempre se baseiam em situações re-
conhecidas em determinada sociedade.
Por fim, a teoria da estruturação de Antony Giddens (1991; 2003),
que é fundamental para os ERG, mostra a constitutividade entre su-
jeitos e sociedade, em que a sociedade é formada pelas ações dos
atores. No entanto, tais atores estão inseridos na sociedade e têm,
portanto, suas ações regidas por ela, o que, por outro lado, não inibe

170
Maria Clara Catanho Cavalcanti (IFPE)

a agência dos sujeitos. Com relação aos gêneros textuais, um bom


exemplo de agência e estabilidade relativa são os gêneros criados
com a invenção da internet. Os blogs, e-mails, charges virtuais, re-
portagens interativas, entre outros, são formas de comunicação cria-
das a partir dos recursos fornecidos pela tecnologia, mas também
remontam formas já instituídas de comunicação humana, como as
cartas, os diários, as charges impressas etc. Assim, notamos que a
ação parte de formas tipificadas que não suprem mais totalmente as
necessidades de comunicação; então, novas formas não são criadas
num vácuo estrutural, mas a partir de estruturas já compartilhadas
em sociedade.
Na primeira seção deste artigo, retomamos historicamente o sur-
gimento da propaganda. Vimos que os textos publicitários tinham e
têm a função principal de intermediar a relação entre os mercados e
a população consumidora. Quando os mercados foram ficando mais
amplos, houve um distanciamento com relação ao consumidor. En-
tão, o texto publicitário passou a cumprir a função de reestabelecer
essa comunicação, de um lado, divulgando as qualidades dos produ-
tos e, de outro, apresentando informações para que os consumidores
fizessem suas aquisições.
Com relação à nossa discussão teórica sobre gêneros textuais,
podemos perceber uma exigência social quanto à publicidade. Ini-
cialmente, há a motivação. A partir de então, com a percepção da si-
tuação retórica, surge uma necessidade discursiva. No entanto, para
suprir tal necessidade, o gênero – no caso do nosso exemplo, o texto
publicitário – é criado a partir de situações recorrentes, já que os
gêneros não surgem aleatoriamente. Encontramos, nesse sentido, a
base filosófica do dialogismo. É assim que vão surgindo as formas ti-
pificadas dos gêneros, de acordo com as exigências que emergem de
situações retóricas, as quais são constructos intersubjetivos e sociais.

171
Gêneros e a construção do discurso ambiental de campanha de Conscientização

Nos dois textos analisados, encontramos a demanda social do


ambientalismo. No primeiro exemplo, não percebemos alterações no
gênero, uma vez que, com relação à forma e à função, se apresenta
como uma forma bastante tipificada na sociedade atual: um comer-
cial de TV, de trinta segundos, que empresta seu discurso a uma
personalidade como forma de argumento de autoridade e usa o ar-
gumento verde para vender seu produto. Nada além de uma resposta
do próprio produto vendido à demanda de consumo sustentável.
Enquanto gênero, o exemplo 01 não apresenta novidades e o
exemplo 02 possui uma tipificação nova, resultado de exigências so-
ciais mais complexas. Sua produção, como afirmamos, emerge de re-
lações sociais bastante atuais: ONG especializada empresta sua ex-
periência sociodiscursiva para a construção de uma campanha que
não irá vender um produto específico, mas manipular a construção
da identidade empresarial. Com essa necessidade de uma identidade
empresarial verde, começamos a observar o surgimento de algumas
campanhas tidas como “de conscientização”, com textos bastante
instrucionais, com indicações de consumo e descarte de produtos de
forma que se diminua a agressão à natureza. A campanha Consciente
Coletivo é um exemplo dessa demanda social. No entanto, a forma
como esse tipo de campanha é divulgado leva os consumidores a,
desavisadamente, ou numa leitura mais superficial, entenderem tais
campanhas como instrucionais ou “de conscientização”, sem perce-
ber que, na verdade, são propagandas institucionais que têm o prin-
cipal objetivo de construir uma identidade empresarial adequada às
demandas sociais da atualidade.

172
Maria Clara Catanho Cavalcanti (IFPE)

Finalmente... a responsabilização do consumidor

Nas análises dos dois exemplos, desde o início do artigo, mostra-


mos uma série de diferenças entre eles, mas há algumas semelhan-
ças. A primeira e mais evidente é a presença do discurso ambiental,
no entanto há outras não tão evidentes assim. Defendemos a tese
de que, nas propagandas que se utilizam do discurso da ecologia,
há um processo de isenção das empresas e de responsabilização do
consumidor.
Consolidando esse argumento historicamente, temos que a cha-
mada Sociedade de Consumo, atualmente compreendida como “uma
sociedade simbólica e de sinais e significados, enfatizando a constru-
ção e fortalecimento das identidades individuais e sociais através da
aquisição e uso de bens” (PORTILHO, 2005, p. 73), começou a se ins-
talar no mundo ocidental a partir do industrialismo, século XVIII,
com a Revolução Industrial, na Inglaterra. Para Campbell (2002 apud
PORTILHO, 2005), a Revolução do Consumidor ocorreu nessa épo-
ca, introduzindo mudanças nas técnicas de produção industrial.
Embora a necessidade de consumo crescente da sociedade tenha
sido a causa principal para a Revolução Industrial, aquela era uma
sociedade prioritariamente de produtores. Na contemporaneidade,
tem-se cada vez menos necessidade de mão de obra industrial em
massa. Em vez disso, a sociedade precisa engajar seus membros na
condição de consumidores, com o dever, a capacidade e a vontade de
desempenhar esse papel. O consumo passa a ser encarado, mais do
que como um direito ou um prazer, como um dever do cidadão. Por-
tanto, a diferença entre as Sociedades de Consumo que se alteram
desde a Revolução Industrial até a atualidade não são tão visíveis ou
estáticas. Na atual sociedade moderna, por exemplo, desponta o con-
sumidor verde. Como vimos, os problemas ambientais se apresentam

173
Gêneros e a construção do discurso ambiental de campanha de Conscientização

num patamar privilegiado na agenda global e, em decorrência disso,


a mídia dá ampla divulgação aos assuntos ecológicos. Essa proemi-
nência de discursos ecologicamente corretos, conforme Dias (2008),
tem levado uma parcela de consumidores a ações concretas, como
evitar a compra de produtos que agridem o meio ambiente e boicotar
produtos de empresas que apresentam uma imagem ambientalmen-
te negativa. Portanto, em todos os estágios são imprescindíveis as
atividades de consumir e de produzir. A diferença é, pois, de ênfase e
prioridades. Dessa forma, numa economia de mercado, não há como
compreender consumo e produção fora de um processo contínuo e
complementar. Dicotomizar consumo e produção tem sido uma es-
tratégia discursiva recorrente utilizada por empresas no intuito de
valorizar suas ações de responsabilidade socioambiental.
Desde a década de 1960, o movimento ambientalista vem ga-
nhando espaço e consistência. Mas foi na década de 1990, com a ECO
Rio 92, que se instauraram alguns acordos de produção sustentável.
Até então, as indústrias eram tidas como as grandes vilãs da degra-
dação. Para começar a diminuir as agressões ambientais durante a
produção, algumas estratégias foram sendo propostas, tais como os
selos de certificação. Além disso, leis de responsabilidade ambiental
foram sendo criadas. Com a pressão de leis, das certificações, da mí-
dia e de um consumidor mais exigente em termos ambientais, houve
uma crescente adesão a produções mais limpas.
Sendo assim, houve e ainda há uma tendência à dicotomização
entre produção e consumo. A ideologia subjacente ao discurso em-
presarial é de que as empresas cumpriram suas metas, agiram com
responsabilidade; agora, seria a vez do consumidor. Então, as propa-
gandas, principal meio de comunicação entre quem produz e quem
consome, ao usarem o discurso ambiental, tendem a responsabilizar
o consumidor como se seus atos de consumo fossem o motivo da

174
Maria Clara Catanho Cavalcanti (IFPE)

crise ambiental. Como solução para que esse consumidor se torne


ecologicamente correto, a empresa se apresenta como um caminho.
No exemplo 01, um raciocínio bastante evidente é “todos preci-
sam ter uma geladeira; se é para comprar, é melhor que compre da Pa-
nasonic porque é ecologicamente correta”. No exemplo 02, o processo
de culpar o consumidor é absurdamente crescente durante a série.
Primeiro, o jovem humano é injustamente comparado a outros ani-
mais ou plantas, e seu processo de consumo é questionado. No final
de cada episódio, as ações que devem ser modificadas são sempre as
do consumidor, muitas vezes, como vimos no episódio 01, a sugestão
de mudança de hábito envolve a escolha por uma empresa certifica-
da e sustentável. Ao final, obviamente, aparecem as logomarcas das
produtoras da propaganda.
Esse tipo de reflexão é importante porque as ações de produção
continuam sendo as grandes responsáveis pela degradação ambien-
tal. O consumidor, que aparece como indivíduo de um coletivo, ter-
mina assumindo toda uma responsabilidade num processo de dico-
tomização entre produção e consumo que simplesmente não existe.
Muito se pode fazer com o discurso, realidades podem ser cria-
das. Leituras atentas podem desvelar processos de relações de poder,
permitindo que o cidadão perceba melhor as estratégias argumen-
tativas que podem o estar pressionando. Interessante é que nossas
análises partiram da reflexão sobre gêneros, mas, como os gêneros
são sociais, históricos e cognitivos, precisamos, algumas vezes, re-
correr a aspectos históricos e apontar possíveis estratégias de repro-
dução ideológica e de relações injustas de poder, como foi o caso dos
exemplos analisados. Assim, esperamos ter refletido sobre as ideias
dos Estudos Retóricos de Gêneros de forma clara, por meio de práti-
cas sociais relevantes para essa modernidade que vivemos.

175
Gêneros e a construção do discurso ambiental de campanha de Conscientização

Referências

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176
7
A relativa estabilidade dos
textos de divulgação científica:
um caso de hibridismo1
Regina L.Péret Dell´Isol a (UFMG)

Introdução

Visto como prática social e prática textual-discursiva, o gênero


textual opera como a ponte entre o texto e o discurso. De um lado, o
texto, unidade empírica a que temos acesso, é um evento sociointera-
tivo, um ato enunciativo em que vários aspectos da significação são
materializados através de categorias linguísticas, sociais, cognitivas,
culturais. Do outro lado, o discurso é o lugar de enunciação em que
estão envolvidos os participantes, a situação sócio-histórica, além de
aspectos pragmáticos, tipológicos, processos de esquematização, en-
tre outros elementos. Entre ambos, textos e discursos, estão os gêne-
ros textuais que, conforme Bazerman (2005, p.31), são fatos sociais,
são os tipos que as pessoas reconhecem como sendo usados por elas
próprias e pelos outros e, dessa forma, “emergem nos processos so-
ciais em que pessoas tentam compreender umas às outras suficien-
temente bem para coordenar atividades e compartilhas significados
com vistas a seus propósitos práticos”.

1. Este trabalho foi apresentado no NIG e o artigo é versão atualizada e modificada do texto publicado
em DELL´ISOLA, Regina L. P. Dos limites entre o estável e o instável em textos de divulgação científica.
In. SARAIVA, Maria Elizabeth e MARINHO, Janice. (Orgs.). Estudos da língua em uso: da gramática ao texto.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. p. 263 -287.

177
A relativa estabilidade dos textos de divulgação científica: um caso de hibridismo

Neste trabalho, focaliza-se a constituição do gênero relatório de


pesquisa, abordam-se aspectos relativos ao discurso acadêmico e ao
discurso de divulgação científica, explora-se a noção de intertextua-
lidade inerente aos textos da esfera acadêmico-científica, com o ob-
jetivo de apresentar uma análise de um texto híbrido. Nessa análise,
leva-se em conta que os textos operam basicamente em contextos
comunicativos e são consideradas as relações intertextuais que se
estabelecem entre o texto e sua situacionalidade ou inserção cultu-
ral, social, histórica e cognitiva – o que envolve os conhecimentos
individuais e coletivos.
A presente discussão focaliza um exemplo de texto híbrido, re-
conhecendo-se a hibridização como fenômeno inerente às formações
genéricas e a intertextualidade como aspecto constitutivo dessas for-
mas retóricas. A partir de subsídios do arcabouço teórico proposto
por Bazerman (2006), nosso interesse concentrou-se no estudo do
processo de organização desse exemplo de texto híbrido. Para isso,
analisamos a composição prototípica do relatório de pesquisa, esta-
belecendo as possibilidades de interação desse gênero com públicos
diferenciados: com os membros da academia e com o público exter-
no ao meio acadêmico. Assim, considerando-se a existência de dois
diferentes discursos – ­­o científico e o de divulgação científica –, fo-
calizamos a constituição de um gênero híbrido em que são exigidos
conhecimentos específicos de uma esfera social para que a intertex-
tualidade presente seja compreendida com a clareza desejada.
Tomando-se o discurso como prática social e cultural – pressu-
posto presente em diversos estudos (Schffrim, 1994; Maingueneau,
1989; Fairclough, 1995; Bazerman, 2004; Coutinho, 2012; para citar
alguns) – e considerando-se, com Bakhtin (1981, p.96), que “a lín-
gua, no seu uso prático, é inseparável do seu conteúdo ideológico ou
relativo à vida”, focalizou-se a constituição de significados sociais a

178
Regina L. Péret Dell’Isola (UFMG)

partir da análise de um gênero híbrido que expõe as práticas sociais


de determinado grupo, como se verá adiante.

As convenções dos gêneros da esfera acadêmica

Os gêneros da esfera acadêmica ou científica tendem a apresen-


tar uma configuração que lhes é peculiar e que tem servido de orien-
tação para a escrita de outros textos que circulam em um ambiente
denominado academia – uma agremiação de profissionais que atuam
em universidades, centros de pesquisa, núcleos tecnológicos, grupos
de investigação, associações científicas, cuja macroação consiste em
produzir, contrastar, aplicar e divulgar conhecimentos sistemático-
-socializados, que passam a constituir patrimônio de uma sociedade.
Essa macroação é basicamente de caráter linguístico e seus produtos
são as investigações registradas nos chamados textos acadêmicos.
O conjunto de investigadores que trabalha regularmente no
meio acadêmico tem uma noção estável, embora em evolução, dos
objetivos propostos pelo seu grupo e desenvolve uma gama de gêne-
ros falados e escritos para monitorar suas propostas, seus trabalhos
e pesquisas. Esses gêneros são identificados por aspectos discursivos
e retóricos evidentes para os membros da academia. Vinculados a si-
tuações sociais desse âmbito, os gêneros que circulam nesse contexto
caracterizam-se pela demanda de conhecimentos de formas retóricas
típicas de interação entre os membros da comunidade acadêmica. Sua
prototipicidade os torna familiares a esse grupo específico de pessoas
e funciona como um sistema de produção de novos textos.
Segundo Swales (1998), há comunidades discursivas que ‘pos-
suem’ gêneros, impondo, a eles, suas normas, convenções e ideolo-
gias, e há outras que são possuídas pelos gêneros, na medida em
que os membros da comunidade procuram reproduzir os gêneros tal

179
A relativa estabilidade dos textos de divulgação científica: um caso de hibridismo

como os receberam da tradição e da ideologia da comunidade. Am-


bos os fenômenos apontados por Swales (1998) ocorrem em comuni-
dades discursivas como a acadêmica, e, reconhece-se aqui, conforme
afirmam Figueiredo e Bonini (2006, s/p)2, que

os membros seniores da comunidade criam e alteram gê-


neros, e imprimem nesses gêneros as ideologias, normas e
convenções de seu grupo social. Por outro lado, os membros
aprendizes, ou juniores, da comunidade tendem a utilizar os
gêneros sancionados de forma tradicional, reproduzindo pa-
drões lingüísticos, retóricos, discursivos e ideológicos. Essa
‘reprodução’ de gêneros funciona como uma forma de ingres-
so à comunidade.

Essa ideia está em consonância ao que afirmam Hemais e Bia-


si-Rodrigues (2005, p.115), segundo os quais “o discurso mostra o
conhecimento do grupo. As convenções discursivas facilitam a ini-
ciação de novos membros na comunidade, ou seja, os novatos são
estimulados a usar de forma apropriada as convenções discursivas
reconhecidas pela comunidade”. Assim, assume-se a visão de discur-
so como prática social, produzida dentro de uma comunidade social-
mente situada, que possui convenções específicas sobre conteúdo e
forma textuais, e que apresenta caráter interativo, inclusivo e identi-
tário das práticas discursivas utilizadas por essa comunidade.
A maior parte da produção textual acadêmica é predominante-
mente do tipo dissertativa. O texto dissertativo acadêmico é orga-
nizado esquematicamente por categorias canônicas e de estrutura
argumentativa ou expositiva, dependendo do enfoque desejado pelo
pesquisador. As modificações apresentadas no texto da esfera aca-
dêmica dependem de suas condições de produção discursiva. Den-

2. Disponível em http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem acessado em maio de 2015.

180
Regina L. Péret Dell’Isola (UFMG)

tre os gêneros científicos estão: a palestra, a comunicação oral, o


seminário, o ensaio, a monografia, o artigo científico, as resenhas e
outras formas típicas com que a comunidade científica lida em situ-
ações recorrentes.
Esses gêneros textuais operam basicamente em contextos es-
pecíficos e têm representação cultural, social e histórica. Cada vez
que um gênero é produzido para atender a um contexto situacio-
nal, ele se torna modelo para outro texto, funcionando como um
produto acabado. Ao mesmo tempo, um novo processo de produ-
ção se inicia e esse gênero torna-se dinâmico uma vez que, inevita-
velmente, haverá alguma transformação do modelo original, como
lembra Threadgold (1989). Para que seja reconhecido, esse gênero
deve guardar características que mantêm sua identidade e que ga-
rantem seu reconhecimento.
O discurso acadêmico é entendido como uma prática socioin-
terativa realizada por um determinado conjunto de pesquisadores –
dispersos por todo o mundo – que constituem um grupo que produz
conhecimento e está comprometido a divulgar esse conhecimento
para um auditório. Em princípio, o papel dos acadêmicos ou cientis-
tas engloba a produção de um discurso resultante de uma investiga-
ção que culmina na comunicação de resultados. O texto produzido é
a unidade de manifestação, o lugar do agenciamento do(s) sentido(s)
que, por meio de mecanismos de enunciação, configura-se no dis-
curso acadêmico.

A configuração prototípica de um relatório


de pesquisa

Entre o texto e o discurso acadêmico estão os gêneros que resul-


tam em escolhas dentro de uma prática que remete a esquematiza-

181
A relativa estabilidade dos textos de divulgação científica: um caso de hibridismo

ções resultantes dessa prática. Conforme Marcuschi (2002), muitas


decisões de textualização – de configuração textual – devem-se à
escolha do gênero. Desse modo, o gênero inscreve também formas
textuais que se manifestam no artefato linguístico. Considere-se,
por exemplo, uma produção textual escrita prototípica do discur-
so acadêmico: o relatório de pesquisa, gênero presente em qualquer
área da academia.
A necessidade de se produzir um relatório de pesquisa exige um
tipo de configuração, ações discursivas e seleções específicas a fim de
que ele seja reconhecido e aceito pela comunidade acadêmica. Assim,
para escrever um relatório, o pesquisador deve contar com conheci-
mento de esquemas textuais convencionados na e pela academia.
Para circular nesse ambiente, o relatório de pesquisa apresenta
uma configuração específica. Basicamente, é constituído por uma
introdução, seguida de uma justificativa ou de uma exposição, acom-
panhados dos resultados, discussão ou conclusão. É sabido que, na
introdução, apresenta-se o assunto, permitindo ao leitor ter uma vi-
são de conjunto do tema. Para tanto, geralmente, especifica-se o ob-
jeto de estudo, esclarece-se o ponto de vista sobre o qual o assunto
foi tratado, apresentando aos interessados a síntese do que será abor-
dado, auxiliando e conduzindo o leitor na construção da coerência
geral do conteúdo do relatório.
Na justificativa, o pesquisador pode citar trabalhos anterior-
mente realizados por outros investigadores que abordaram o mes-
mo tema. Espera-se que ele justifique a razão da necessidade de seu
trabalho e que deixe claros os motivos que o levaram a escolher o
tema, o problema da sua pesquisa, suas hipóteses de estudo e os ob-
jetivos pretendidos. De certa forma, ele deve mostrar a relevância do
trabalho que realizou, cabendo ao público-alvo inferir a respeito da
importância do estudo.

182
Regina L. Péret Dell’Isola (UFMG)

Na exposição, em geral, o pesquisador descreve as etapas, define


termos e conceitos que adota, apresenta os dados e as variáveis com
que trabalhou, a delimitação do universo estudado e as limitações
de sua pesquisa. Nessa parte do trabalho, ele pode orientar futuros
estudiosos quanto aos problemas enfrentados durante a realização
de sua pesquisa.
Os resultados, alcançados após a análise dos dados, devem ser
apresentados de modo coerente com os argumentos defendidos pelo
pesquisador à luz das evidências. Espera-se que os resultados sejam
expostos de forma direta, clara, objetiva e sucinta, acompanhados de
significância e relevância. Nessa parte do texto, o estudioso faz saber
à sua comunidade aquilo que não era sabido.
Finalmente, a discussão ou conclusão é a parte do relatório em
que se espera que o pesquisador interprete, critique, justifique e en-
fatize os resultados alcançados, mostrando as relações existentes en-
tre os dados coletados na pesquisa e as hipóteses confirmadas ou
refutadas. Discutem-se os resultados à luz das teorias, podendo ser
feita uma comparação entre esses resultados com os de pesquisas
anteriores, levantados na revisão de literatura. Ao final de um relató-
rio, o pesquisador pode ou não apresentar uma conclusão definitiva
a partir de seus dados analisados. Isso dependerá da complexidade
de sua análise.
O relatório de pesquisa é um gênero textual do discurso cien-
tífico que compreende uma configuração típica estabelecida pelos
acadêmicos. Trata-se do fruto de um trabalho realizado em duas
etapas que se complementam. A primeira, quase sempre solitária,
é organizada pelas categorias textuais: problema, métodos, análise
e resultados obtidos. A segunda etapa é voltada para a divulgação
da descoberta para a comunidade científica. Nesse momento, cabe
ao cientista um discurso envolvente e persuasivo, em que seus argu-

183
A relativa estabilidade dos textos de divulgação científica: um caso de hibridismo

mentos objetivam convencer o leitor ou o ouvinte (público-alvo) do


valor que ele, pesquisador, atribui ao seu estudo, à sua investigação,
à sua descoberta.
Grosso modo, esse gênero, do tipo dissertativo, é resultado de
uma investigação destinada a ser divulgada oralmente ou por es-
crito. Quando publicado em periódicos científicos, submete-se aos
critérios de publicação da revista ou a normas estabelecidas por um
corpo editorial. Embora esses critérios possam variar de revista para
revista, a organização textual de um relatório de pesquisa apresenta
uma orientação de modo a manter racional e uniforme a sequência
da produção desse gênero. Entretanto, esse relatório pode vir a ser
publicado em um jornal diário e, nesse caso, como veremos adiante,
seu texto sofre modificações para que seja compreendido por leigos
ou iniciantes.

Discurso científico ou de divulgação científica?

É sabido que os resultados dos estudos científicos não devem


circular dentro da academia, é preciso que o conhecimento e as des-
cobertas ultrapassem os muros das universidades e dos centros de
pesquisa. Por isso, há o discurso do cientista – a que denominamos
discurso científico – que é uma atividade exercida pelo cientista que
interage, com seus pares, tratando de ciência.
E há o discurso de divulgação científica que consiste na interação
de um divulgador (que pode ser o próprio pesquisador, ou outra pes-
soa como, por exemplo, um jornalista) com um público de não espe-
cialistas, a fim de que o conhecimento seja difundido. Para propagar
esse “saber científico”, no discurso de divulgação científica, tende-se
a se empregar uma linguagem mais simplificada e menos técnica do
que a usada no discurso acadêmico.

184
Regina L. Péret Dell’Isola (UFMG)

Conforme Authier-Revuz (1998, p. 107),

a divulgação científica é classicamente considerada como


uma atividade de disseminação, em direção ao exterior, de
conhecimentos científicos já produzidos e em circulação no
interior de uma comunidade mais restrita: essa disseminação
é feita fora da instituição escolar universitária e não visa a
formação de especialistas, isto é, não tem por objetivo esten-
der a comunidade de origem.

Nos textos de divulgação científica, nota-se um certo distan-


ciamento do locutor em relação ao que divulga; ao mesmo tempo,
percebe-se a presença da necessidade desse locutor apresentar-se
como detentor de um conhecimento que lhe autorize a propagação
desse saber aos considerados “leigos” no assunto de que trata o texto
originado do discurso acadêmico. Segundo Agustini (2006, p.327),
existe uma

confluência das formas de dizer da ciência com as formas de


dizer da didaticidade pedagógica, fazendo emergir aí um lu-
gar enunciativo: o divulgador - uma espécie de efeito locutor
“tradutor” da língua da ciência para a língua do cotidiano:
uma lacaização de conhecimentos científicos. Por conseguin-
te, mesmo que o indivíduo no mundo também ocupe o lugar
social de cientista, para que ele produza um texto de divul-
gação científica será necessário pôr-se no lugar enunciativo
do divulgador. Portanto, não se trata da relação do indivíduo
empírico com um texto, mas da configuração (social) de um
lugar de enunciação específico: o do divulgador, elemento
constitutivo do discurso de divulgação científica.

Tanto o discurso científico quanto o discurso de divulgação
científica, inevitavelmente, caracterizam-se pela intertextualidade.

185
A relativa estabilidade dos textos de divulgação científica: um caso de hibridismo

Como lembra Bazerman (2005, p.25), “a intertextualidade frequen-


temente procura citar uma compreensão compartilhada sobre o que
foi dito anteriormente e a situação atual como se apresenta. Isto é, as
referências intertextuais tentam estabelecer os fatos sociais sobre os
quais o escritor tenta fazer uma nova afirmação”.
O saber novo adquirido está frequentemente sustentado na pro-
dução de outros saberes acadêmicos anteriores, já expressos em ou-
tros textos apresentados na e pela comunidade científica. Isso faz com
que a intertextualidade seja uma característica do discurso científico.

A intertextualidade no discurso da
esfera científica

No caso dos textos da esfera científico-acadêmica, a intertex-


tualidade é um fenômeno até certo ponto esperado, previsível, por
integrar a organização composicional da produção acadêmica. Am-
plamente reconhecida como um fator de constituição do texto cien-
tífico, a intertextualidade compreende algumas conhecidas técnicas,
tais como: o uso de citação direta, de citação indireta; menção a uma
pessoa, a um documento ou a declarações; comentário ou avaliação
acerca de uma declaração, de um texto ou de outra voz evocada; uso
de estilos reconhecíveis, de terminologia associada a determinadas
pessoas ou de documentos específicos; uso de linguagem e de for-
mas linguísticas que parecem ecoar certos modos de comunicação,
discussões entre outras pessoas e tipos de documentos, conforme
aponta Bazerman (2006). O autor distingue níveis de intertextuali-
dade por meio dos quais um texto evoca explicitamente outros textos
e se apoia nele como um recurso consciente. Assim, na tentativa de
apreender as dimensões e os aspectos centrais da intertextualidade,
Bazerman (2006, p.92-94) apresenta os seguintes níveis:

186
Regina L. Péret Dell’Isola (UFMG)

1. O texto pode remeter a textos anteriores como uma fonte


de sentidos, usada como valor nominal. Isso ocorre sem-
pre que um texto apresenta declarações de outras fon-
tes consideradas autorizadas, repetindo essa informação
autorizada para os propósitos do novo texto;
2. o texto pode se remeter a dramas sociais explícitos de tex-
tos anteriores mencionados na discussão;
3. o texto pode também explicitamente usar outras declara-
ções como pano de fundo, apoio ou contraposição.
4. de forma menos explícita, o texto pode se apoiar em
crenças, questões, ideias e declarações amplamente difun-
didas e familiares aos leitores, quer sejam relacionadas a
uma fonte específica, quer sejam percebidas como senso
comum.
5. através do uso de certos tipos reconhecíveis de linguagem,
de estilo e de gêneros, cada texto evoca mundos sociais
particulares onde essa linguagem ou essas formas lin-
güísticas são utilizadas, normalmente com o propósito
de identificá-lo como parte daqueles mundos;
6. através apenas do uso da linguagem e de formas lin-
güísticas, o texto recorre aos recursos lingüísticos dis-
poníveis, sem chamar a atenção de modo particular
para o intertexto.
7. cada texto, a todo instante, depende da linguagem dis-
ponível no momento histórico e faz parte do mundo cul-
tural de todos os tempos.

À luz das perspectivas teóricas desenvolvidas no âmbito acadê-
mico anglo-americano, os gêneros devem ser entendidos como ações
retóricas típicas em situações sociais recorrentes, tal como denomi-
nam Fredman e Medway (1994), e também são como estruturas retó-
ricas dinâmicas, como apontam Berkenkotter e Huckin (1995).
Nessa dinâmica, o processo da intertextualidade tem ultrapas-
sado os limites, o que tem obrigado os estudiosos a investigar de-

187
A relativa estabilidade dos textos de divulgação científica: um caso de hibridismo

terminadas produções textuais controversas (que causam embaraço).


Entendemos com Bazerman (2006) que intertextualidade não é ape-
nas uma questão ligada a que outros textos um texto faz referência, e
sim como outros textos são usados, as razões pelas quais esses outros
textos são usados e como o escritor-produtor do texto se posiciona
enquanto escritor diante deles para elaborar seus próprios argumen-
tos. Outros autores, como Fairclough (1995), denominam esse meca-
nismo como interdiscursividade, pelo fato de os textos estabelecerem
de maneira implícita posições interpretativas para sujeitos interpre-
tantes que possuem a capacidade de fazer inferências, baseadas em
suas experiências prévias para o estabelecimento de conexões através
dos diversos elementos intertextuais de um texto.
Assim, uma discussão interessante sobre intertextualidade é a
que desperta a leitura do texto “Confirmado: o brasileiro é doido varri-
do” (a seguir), publicado no jornal “O Tempo” em 26 de maio de 2002.
Superficialmente, observamos seu formato, sua fonte e outros compo-
nentes que nos conduzem a identificá-lo, à primeira vista, como um
texto de divulgação científica. Mas estamos diante de uma intertextu-
alidade de gêneros textuais, após uma análise mais detalhada.

Confirmado: o brasileiro é doido varrido

Realizado em São Paulo no mês passado, o 33° Congresso Bra-


sílico de Patafísica em que foram divulgadas conclusões interes-
santíssimas de uma ampla pesquisa realizada em todo o país. A
principal delas é a de que o brasileiro é doido varrido. A Sociedade
Brasileira de Patafísica (SBP) é uma entidade sem fins lucrativos e
congrega nossos mais im­portantes psicólogos, psiquiatras, soció-
logos, cientistas políticos e historiadores. A entidade funciona de
forma semiclandestina e nenhum de seus membros concede en-
trevistas à imprensa, mas as conclusões dos trabalhos são dispu-
tadas a tapa por revistas científicas internacionais, como “Nature”

188
Regina L. Péret Dell’Isola (UFMG)

e “Science”. Participam das reuniões alguns observadores, quase


sempre escritores, sempre selecionados por meio de sorteio. Tive
dupla sorte este ano: além de sorteado, recebi permissão para di-
vulgar com exclusividade algumas das conclusões, que sem dúvi-
da interessam ao povo brasileiro, e também aos governantes que
nos desgovernam.

Metodologia de pesquisa

Durante um ano inteiro (de abril 2001a março de 2002), grande


equipe de estudantes universitários realizou ampla pesquisa de
campo, patrocinada pela SBP. A pontuação conferida variava de
1 (sanidade-quase-completa) a 10 (doido-completamente-varrido).
A amostragem da população foi estabelecida com base nas classes
sociais existentes, ou seja, A, B, C, D e E.
De modo geral, a classe A é constituída dos ricos e poderosos; a
classe B, dos que querem ser ricos e poderosos; a classe C dos que
querem ser Classe B; a classe D dos que aspiram subir para a classe
C; e a classe E, finalmente, é formada pelos que esperam morrer em
paz. Foram entrevistadas 70.347 pessoas, mais ou menos um milé-
simo da população nacional, número bastante expressivo. As des-
pesas, financiadas pelo FMI, ficaram era US$ 170.347.000.000,00,
com juros de 60% no ano, sem carência. Não se sabe quem vai
pagar.

Exemplos de perguntas e de respostas

Existe democracia no Brasil? Quem respondeu “sim” recebeu


nota 10, sendo considerado doido-completamente-varrido, pois é
absurdo considerar democrático um país cuja opinião pública é
formada pelos programas de televisão. Respostas do tipo “mais ou
menos” tiveram pontuação 5, de doidos-mais-ou-menos-varridos.
Qual é seu meio de informação preferido? Quem respondeu
«televisão recebeu 10 (doido-com-som-e-imagem. Quem respon-
deu “rádio” recebeu 8 (doido-papagaio). Respostas tipo “conversa

189
A relativa estabilidade dos textos de divulgação científica: um caso de hibridismo

com vizinhos” tiveram nota 7 (reservada aos doidos-fofoqueiros).


Respostas “livros, revistas e jornais» obtiveram entre l e 10, depen-
dendo do livro, da revista e do jornal. Exemplificando: livros de au-
to-ajuda, que nunca ajudaram ninguém, exceto quem os escreveu,
vale nota 10 (doido-para-ser-embromado). Leitores de revistas de
variedades televisivas, também receberam 10 de doido-com-ima-
gem-sem-som. Já a resposta livro de “colégio/universidade” teve
notas en­tre 2 e 10, dependendo do colégio e da universidade.
O Brasil conseguirá pagar a dívida externa? Como? Quem res-
pondeu “sim” ganhou nota 10, é lógico, pois não existe doidice
mais varrida do que acreditar nisso. A resposta “não” obteve 2, óti-
ma pontuação, que demonstra sólidos conhecedores de economia,
política e sociologia. No complemento “Como?” houve respostas
bastan­te variadas. “Pagando, ué!” e “cedendo a Ama­zônia em tro-
ca” também levaram 10. Já a resposta “dando o tombo recebeu 2,
por revelar inteligência, sabedoria e objetividade.
Qual seu tipo preferido de mulher (ou de homem? Todas as
respostas tiveram nota 10, de doido-completamente-varrido, pou-
co importando se a resposta foi loura(o), negro(a), morena(o),
mulata(o), magra(o), gordo(a),etc. O simples fato de preferir um
tipo em detrimento de outro já caracteriza, segundo os patafísi-
cos, a doido-varridice-completa.
Você acredita no amor? Interessantíssimo este item. A gran-
de maioria dos que responderam com forte, maiúsculo e sonoro
“SIM!” a esta questão é constituída de presos, e são os que ma-
taram por amor. Assim, 7896 dos que acreditam no amor, e se
declararam amorosíssimos, esfaquearam, assassinaram a tiros ou
estrangularam os consortes ou namorados. “Matei por amor”, dis-
seram todos, cheios de convicção e saudade, com os olhos rasos
d’água.
Em sua opinião, como é o inferno? 50% disseram o óbvio: o infer-
no é um buraco escuro, cheio de capetas pelados, com rabo pontu-
do, chifres, pés de bode e barbicha. Passam a eternidade no maior
tédio, espetando os condenados com garfos e­normes e jogando-os
cm caldeirões de azeite fervendo. Os mais teóricos, disseram que o

190
Regina L. Péret Dell’Isola (UFMG)

inferno é a ausência de Deus. Os mais ligados, que inferno é morar


era favela. Os mais cínicos, que o inferno é parecido com o Brasil,
todos, se devorando uns aos outros. Nota 10 para todos; por acre-
ditarem inferno, apesar de algumas respostas brilhantes.

Resultado geral.

Depois de análise em computador por espe­cialistas em estatís-


tica e cruzamento de dados, chegou-se ao seguinte percentual:

Brasileiros doidos-completamente-varridos: 58%


Brasileiros doidos-parcialmente-varridos: 12%
Brasileiros doidos-mais-ou-menos-varridos: 20%
Brasileiros doidos-regularmente-varridos: 9,99999%
Brasileiros doidos-pouco-varridos: 0,001%
Brasileiros mentalmente sadios: 0,000%

Serve de consolo lembrar que é apenas mais uma pesquisa, em-


bora realizada pelo mais sério dos institutos dedicado a esse árduo
trabalho de perguntar e não responder.

Fonte: NUNES, Sebastião. O Tempo, Belo Horizonte, 26


mai.2002, p.8

Intertextualidade em um gênero híbrido

A partir da leitura desse texto, percebemos a presença de uma


forma estrutural de um discurso prototipicamente científico em que
se revela uma paródia. Como se dá essa constituição? O título Con-
firmado: brasileiro é doido varrido induz o leitor a acreditar que se
trata de uma conclusão baseada em resultado de uma investigação:
comprovado (algo que vai além de uma especulação, vai além do sen-

191
A relativa estabilidade dos textos de divulgação científica: um caso de hibridismo

so comum. Certamente, uma conclusão a que se chegou com base


em uma pesquisa); brasileiro (recorte do corpus, a pesquisa teria sido
feita a partir de uma coleta de dados cujos informantes – sujeitos in-
vestigados – são brasileiros); é doido (pessoa demente, insana, louca,
diz-se daquele indivíduo que age de modo insensato, imprudente ou
exagerado); varrido (temos aqui uma palavra que pode levar ao estra-
nhamento, uma vez que há indícios de uma inadequação vocabular.
A expressão “doido varrido” é coloquial e significa pessoa muito doi-
da, com alto grau de loucura; corresponde a “doido de pedra”, tam-
bém usual em certas regiões do Brasil.) Embora essa expressão possa
parecer imprópria para o título, entendendo-se as condições de pro-
dução do texto, considerando-se que se trata aparentemente de um
texto de divulgação científica, veiculado por um jornal de grande cir-
culação, são fortes os indícios de que o suporte (esse jornal) permi-
te o uso de uma linguagem mais coloquial para “vender” a matéria.
Trata-se, portanto, aparentemente, de um texto de vulgarização do
resultado de uma pesquisa feita.
O texto preenche as condições mínimas que levam o leitor a
associá-lo a um texto de divulgação científica, pois, além de ter sido
escrito por um divulgador (jornalista), interage com um auditório
formado pelos leitores do jornal, ou seja, está aberto a todos os que
se interessarem pelo assunto, mesmo os que não são especialistas na
temática abordada. Percebe-se claramente, nesse texto, a exploração
de esquemas textuais convencionados que configuram um produto
acadêmico que guarda semelhanças a um relatório final de uma pes-
quisa ou pode ser visto como um discurso aparentemente gerado a
partir de um relatório realizado no meio acadêmico.
Observando-se seu formato, sua disposição e componentes, esse
texto pode ser identificado como um resultado de uma pesquisa,
pois obedece a várias das convenções desse gênero tais como: título,

192
Regina L. Péret Dell’Isola (UFMG)

subtítulos, identificação do tema, dados numéricos, supostamente


estatísticos. Os subtítulos remetem à metodologia empregada, refe-
rem-se a exemplos de perguntas e de respostas (critérios avaliativos
dessas respostas que fundamentam a análise dos resultados), além
do subtítulo de encerramento para apresentação do resultado geral.
Características lexicais e gramaticais discursivas típicas dos textos
acadêmicos estão presentes. O uso do verbo no passado indica que
a investigação já se completou e a temporalidade da sua realização é
evidenciada no trecho “de abril de 2001 a março de 2002”. O número
de pessoas que foram entrevistadas e o valor da despesa gerada com
os gastos realizados também são apontados.
Destacam-se, além dessas características, outros aspectos como:
o emprego de verbos no presente para apresentar afirmativas irrefu-
táveis: “A classe A é constituída... e a classe E, finalmente é forma-
da pelos que esperam morrer em paz”; a escolha de termos típicos
do âmbito acadêmico (pesquisa de campo, amostragem, população,
análise, cruzamento dos dados, especialistas); padrões coesivos e ar-
gumentativos e uma macroestrutura típica da pesquisa acadêmica,
apresentada através de movimentos argumentativos como os apon-
tados em manuais de metodologia de pesquisa.
Na introdução, o divulgador situa a origem das informações que
ele propaga, comunicando que as conclusões apresentadas por ele
foram divulgadas em um evento denominado “33º Congresso Brasíli-
co de Patafísica”, ocorrido em São Paulo, e promovido pela Sociedade
Brasileira de Patafísica (SBP). De início, uma dúvida é gerada por
qualquer leitor, ainda que tenha bom vocabulário em língua portu-
guesa do Brasil: o que é Patafísica?, tendo em vista que essa não é
uma palavra que consta em dicionários brasileiros de língua portu-
guesa. A única explicação que se encontra para o termo está em enci-
clopédias em que consta que essa palavra remonta à segunda meta-

193
A relativa estabilidade dos textos de divulgação científica: um caso de hibridismo

de do século XX, quando surgiu um movimento cultural na França,


vinculado ao Surrealismo. Nesse contexto, nasce a Patafísica, ciência
das soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções, criada
pelo dramaturgo francês Alfred Jarry, autor das obras “Ubu Rei” e
“Dr. Faustroll”3.
A palavra patafísica é uma contração de “epi ta meta ta physika”,
que se refere a aquilo que se encontra ao redor do que está depois da
física, entendendo por “depois da física” aquilo a que se chama meta-
física. A Física é a ciência do mundo natural – ramo da filosofia que
estuda o mundo como ele é – estudo do ser ou da realidade que se
ocupa em procurar responder perguntas tais como: o que é real? o que
é natural? o que é sobrenatural?”. Enquanto a Física trata dos com-
ponentes fundamentais do universo, as forças que eles exercem, e os
resultados dessas forças, a Metafísica remete a temas que ultrapas-
sam a física (Metha = depois, além; Physis = física), como ética, políti-
ca etc., assuntos que tratam de seres não físicos existentes apesar da
sua imaterialidade. O ramo central da Metafísica é a ontologia, que
investiga em quais categorias as coisas estão no mundo e quais as re-
lações dessas coisas entre si. A metafísica também tenta esclarecer as
noções de como as pessoas entendem o mundo, incluindo a existên-
cia e a natureza do relacionamento entre objetos e suas propriedades,
espaço, tempo, causalidade e possibilidade; trata de problemas sobre
o propósito e a origem da existência e dos seres, da especulação em
torno dos primeiros princípios e das causas primeiras do ser. A Pata-
física teria por missão explorar os campos negligenciados pela física

3. Jarry expõe os princípios e os fins dessa “abordagem” no romance “Gestes et opinions du docteur
Faustrol”, definindo-a como “ciência do particular, ciência da exceção”. Durante todo o século XX, a
proposta de Jarry, aparentemente absurda, inspirou outros autores. Existe um Collège de Pataphysique,
fundado em 1948, que publica uma revista os “Carnets du Collège”. Nessa publicação, apareceram os
primeiros textos de Ionesco (o criador do “teatro do absurdo”, 1090-1994), muitos inéditos de Boris Vian
(1920-1959), Jarry ou Julien Torma (1902-1933) e os primeiros trabalhos do grupo OuLiPo.

194
Regina L. Péret Dell’Isola (UFMG)

e a metafísica. Como ciência, pressupõe-se que a Patafísica faria uso


do método científico, recorreria a um conjunto de regras básicas para
o desenvolvimento de um estudo destinado ao reconhecimento pela
comunidade científica.
Possivelmente, teríamos um conceito que remeteria a um Con-
gresso (evento construído por grande diversidade de gêneros acadê-
micos), Brasílico (instituição – termo ambíguo que pode se referir ao
povo brasileiro como também pode remeter apenas aos povos indí-
genas brasileiros), de Patafísica (ciência das soluções imaginárias e
das leis que regulam as exceções – o que poderia conduzir ao signifi-
cado “física do nada”?). Esse Congresso acontece pela 33ª vez e, nele,
reúnem-se pesquisadores de várias áreas, o que, em princípio, pode
gerar surpresa dado que eventos acadêmicos congregam profissio-
nais que têm interesse nas mesmas áreas temáticas. Apesar disso,
podemos assumir que a intertextualidade até aqui presente remete
ao que Bazerman (2006:95) tipifica como “uso de estilos reconhecí-
veis, de terminologia associada a determinadas pessoas ou de docu-
mentos específicos”, considerando-se que estamos até aqui lidando
com a possibilidade de esse ser um gênero de divulgação científica
que guarda características do discurso acadêmico.
Até aqui temos a expectativa de que o texto traga informações
resultantes de um trabalho científico. Porém, não é exatamente o
que acontece de fato. Percebe-se com clareza o hibridismo que pare-
ce surgir da recontextualização; há, nesse texto, uma ressemantiza-
ção, que produz uma perceptível relação entre o gênero relatório de
pesquisa e a notícia sobre a pesquisa, através do discurso de divulga-
ção em um jornal. Como percebemos que seu conteúdo não atende a
essa expectativa inicial?
Uma leitura atenta desperta dúvida e conduz a uma certa con-
fusão. O estilo desse texto guarda alguma intertextualidade com o

195
A relativa estabilidade dos textos de divulgação científica: um caso de hibridismo

acadêmico, porém uma entidade de pesquisa normalmente não fun-


ciona de “forma semi-clandestina”, nem mesmo seus membros não
se deixam entrevistar. O conteúdo apresentado e as expressões uti-
lizadas não parecem vincular-se a um tópico e a uma metodologia
tradicionalmente associados ao trabalho científico.
A tese desenvolvida não representa uma tese plausível ou possí-
vel de ser estudada sob a perspectiva da ciência. A categorização dos
seguimentos de classes sociais apresentados como A, B, C, D e E são
inconsistentes e abstratos.
O número de brasileiros entrevistados representa “um milésimo
da população nacional” e, ao contrário do que está afirmado no texto,
não é uma quantidade expressiva para a generalização das conclusões
apontadas no resultado geral, ao final do texto. Expressões emprega-
das para a classificação do grau de insanidade do brasileiro tais como
“doidos-mais-ou-menos-varridos”, “doido-papagaio”, “doidos-fofo-
queiros”, “doido-para-ser-embromado”; os exemplos de perguntas fei-
tas e o grau de subjetividade na atribuição dos pontos a cada categoria
de respostas não constituem proposições esperadas para um texto
de divulgação científica. A confusão aumenta à medida que avança-
mos na leitura, provocando riso ao longo do texto, principalmente
nos critérios de pontuação e nos percentuais do resultado. Quando
chegamos ao fechamento, percebemos o tom de crítica do autor que,
ironicamente, faz alusão àquelas pesquisas que não apresentam res-
postas às perguntas que motivaram as investigações.
Portanto, esse texto, embora mantenha intertextualidade tanto
com o discurso científico quanto com o de divulgação científica, tem
uma configuração própria. Sua função é basicamente gerar humor e
promover reflexão, favorecendo a geração de inferências fundamen-
tadas em críticas implícitas e explícitas a respeito de certos trabalhos
acadêmicos.

196
Regina L. Péret Dell’Isola (UFMG)

Que nome dar a esse gênero? Quantas possibilidades de compre-


ensão são geradas a partir de sua leitura? A quem ele se dirige? Quais
as intenções de seu autor? O que está sob o seu controle e o que ultra-
passa suas intenções?
Ainda que o leitor do jornal não tenha conhecimentos prévios
necessários para reconhecer a intertextualidade, ela não deixa de
existir. Mas, nesse caso, teríamos um leitor que, confiante na veraci-
dade dos resultados da pesquisa, passaria a acreditar nas conclusões
apresentadas. Mesmo que concordemos que seja muito difícil existir
grande quantidade de leitores com o perfil de uma pessoa tão ingê-
nua, sabemos que é possível a existência de leitores sem o letramento
mínimo necessário que os capacite a perceber o aspecto humorístico
e crítico do texto.
Trata-se de uma paródia publicada pelo articulista Sebastião Nu-
nes no jornal O tempo. O escritor trata de uma vasta diversidade de
temas e não pode ser identificado ou reconhecido como um divulga-
dor da ciência.
A pluralidade de compreensões do texto desse autor é bastante
ampla e depende do grau de letramento e da familiaridade dos leito-
res com os gêneros acadêmicos. São fortes os indícios de que esse tex-
to destina-se a pessoas ligadas a instituições acadêmicas e científicas
como as universidades, centros tecnológicos, núcleos de investigação,
lugares ligados à produção de conhecimento. Trata-se igualmente de
um texto de divulgação científica divulgado naquele jornal, que tem
sido suporte pelo qual se veiculam resultados de pesquisa.
Há evidências de que o autor, que escreve para esse jornal, tenha
produzido um texto com a finalidade de criticar determinadas pes-
quisas, certos resultados de algumas investigações, dirigindo-se para
a comunidade acadêmica, que compreende toda a terminologia – em-
pregada nos gêneros acadêmicos – de que ele se apropriou para cons-

197
A relativa estabilidade dos textos de divulgação científica: um caso de hibridismo

truir seu texto. Mas, como o público do jornal é vasto, certamente,


houve pelo menos duas possibilidades de reação para os leitores não
familiarizados com a composição geral do texto acadêmico (tanto o da
Academia para os pares quanto o de divulgação científica). Leitores
mais eficientes provavelmente perceberam a crítica, e o texto pode ter
promovido uma reflexão sobre o “fazer” científico. O mesmo efeito
não teria sido gerado nos leitores que possivelmente acreditaram na
veracidade das informações. Logo, este teria sido um “efeito colateral”
de um texto dirigido especialmente para aqueles que conhecem am-
bientes acadêmicos e o processo de construção dos textos na academia.

Considerações finais

Retomando a noção de intertextualidade proposta por Bazer-


man (2006) de que, através do uso de certos tipos reconhecíveis de
linguagem, de estilo e de gêneros, cada texto evoca mundos sociais
particulares em que essa linguagem é utilizada, normalmente com
o propósito de identificá-lo como parte daqueles mundos, é neces-
sário que sejam colocados em evidência os mundos de referência da
escrita híbrida para ampliar a capacidade de percepção da intertex-
tualidade pelos leitores.
Esse texto híbrido apresentado não é um único exemplar que
circula na sociedade brasileira. Escolhido para essa análise, trata-se
de um entre muitos textos que apresentam a forma de um gênero
acadêmico com uma função que não lhe é peculiar: a de gerar re-
flexão e, ao mesmo tempo, satirizar a produção de um segmento
social. Com um formato que guarda semelhanças com a estrutura
prototípica do discurso científico, especificamente, do gênero rela-
tório de pesquisa, com aspectos que remetem a uma associação ao
gênero de divulgação científica, mas que com função de crítica à

198
Regina L. Péret Dell’Isola (UFMG)

academia, o exemplo estudado remete ao tipo de texto dissertativo


acadêmico que é organizado, esquematicamente, pelas categorias
canônicas de um relatório sobre as quais tratamos sucintamente: in-
trodução, justificativa, exposição, resultados discussão, conclusão.
Tal tipo de texto é de estrutura argumentativa para justificar de
forma avaliativa a conclusão do pesquisador.
A partir das práticas convencionadas socialmente para a inte-
ração humana, tanto o discurso científico quanto o de divulgação
científica são definidos como práticas sociais que têm como pres-
suposto a necessidade de se argumentar a respeito de um “saber”
não conhecido, pouco conhecido, não explorado ou mal explorado
na esfera acadêmica. Na argumentação está embutida persuasão,
uma vez que a ciência é movida ao serem construídos novos co-
nhecimentos. O texto híbrido analisado, ao mesmo tempo em que
contempla características do discurso acadêmico, evidencia uma re-
contextualização a ser identificada pelo leitor: trata-se de uma clara
amostra de um texto que procura nos enganar fazendo com que ati-
vemos uma associação com o gênero acadêmico, para mostrar uma
construção irônica, uma paródia de um formato textual que jamais
poderia ser um texto de divulgação científica, dado o seu conteúdo.
Este estudo aqui realizado não se quer conclusivo, apenas abre
uma discussão sobre o tema e permite novas perspectivas para o
estudo de textos híbridos, sobre intertextualidade e interdiscursi-
vidade.

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201
APRESENTANDO
O ARQUIPÉLAGO DOS GÊNEROS:
UMA VIAGEM INTELECTUAL
Peron Rios (Colégio de Aplicação/UPFE)

Uma vela panda e acesa

Michel de Montaigne observou, certa vez, que só podemos es-


tabelecer a identidade de alguém quando a morte, enfim, o abra-
çar1. E a frase é inteiramente aplicável a tudo quanto existe entre
nós: animais e plantas, mas também língua e cultura. Qualquer
paralisia que permita vislumbrar com tranquilidade um objeto nos
leva à desconfiança de que o sopro vital que impõe o movimento o
abandonou definitivamente. Vitalidade e metamorfose, portanto,
consistem numa daquelas dualidades recíprocas, nas implicações
de mão dupla que a matemática enunciaria com a expressão “a se,
e somente se, b”.
Os seis ensaios que seguem nesta coletânea – versando a res-
peito dos gêneros textuais – serão um ato, para dizer com Rimbaud,
de fixar vertigens (Une saison en enfer). Reflexão que, iniciada na
senda literária há pelo menos vinte e cinco séculos, não pode estan-
car porque seu objeto se transforma sempre, em novas realizações
discursivas. Cada texto, aqui, iluminará faces específicas desse de-
bate amplo, mas com luz concentrada sobre o papel da literatura

1. MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Penguin Companhia, 2010.

203
Apresentando - O arquipélago dos gêneros: uma viagem intelectual

e de seus multimeios. A discussão, embora antiga, resguarda sua


relevância: perceber como circulam as produções verbais significa,
em última instância, uma tomada de consciência das novas práticas
sociais e das exigências que elas impõem, frente aos modelos cole-
tivos que se afiguram. “Curta vida. Longo mar. Por água brava ou
serena deixamos o nosso cantar”, lembrava Cecília Meireles (“O Rei
do Mar”). A insuficiência de nosso tempo diante de tão largo assun-
to pede, portanto, continuação: as gerações insistem em alimentar a
chama da vela – para que os olhos vejam melhor. E no inflar do peito
de uma vela outra – de modo que essa embarcação veleje.
Não podemos deixar de destacar o mérito da abordagem pri-
vilegiada pelo repertório, observando sempre o duplo eixo da es-
peculação técnica e da reflexão pedagógica. Afinal, se a função dos
cursos de Letras – em cujo meio Gêneros na Linguística e na Lite-
ratura. Charles Bazerman: 10 anos de incentivo à pesquisa no Brasil
se costura – é, em boa medida, formar um corpo docente respeitá-
vel, todo conhecimento ali produzido ou transmitido deve repensar
suas bases epistemológicas sem jamais perder de vista uma media-
ção para espaços pedagógicos em diversos níveis. E qualquer rare-
fação meditativa que recaia sobre um desses caminhos comunican-
tes bloqueará inevitavelmente a fluidez e o arejamento do outro.

Provisão e aventura

Para a “aventura literária” (José Paulo Paes), um quinhão seguro


de provisões mentais. Lourival Holanda, com o estilo que habitu-
almente o singulariza, fará Um giro através da noção de gênero em
literatura. Aqui, ele nos recordará de que a sanha classificatória se dá
pelo desejo de ordem perante a profusão do mundo. Assim, busca-se
evitar “a vitória do caos sobre a vontade augusta de ordenar a cria-

204
Peron Rios (UPFE)

tura”, como diria Mário Faustino, em O Homem e Sua Hora. Longe


de ser uma malha justa, porém, o conceito sempre deixa uma mar-
gem da pele à mostra: porque algo da escritura lhe escapa. De fato,
os gêneros são virtualmente infinitos, já que a vida à qual desejam
responder é ilimitada e imprevisível. Aderindo à noção de multimo-
dalidade, Lourival nos diz em seu ensaio: “[...] a questão de gênero,
no contemporâneo, deixa de lado a pretensão à essência e mira na
possibilidade, na enorme variação de classes”. Erich Auerbach, lan-
çando mão da noção de estilo, não terá outra tese em seu clássico
Mimesis: a literatura ocidental, rompendo com as gavetas da assepsia
genérica verificada na Idade Clássica, ganhará novos contornos na
mistura dos modos tão notórios na obra virgiliana: o estilo simples
(As Bucólicas), o temperado (As Geórgicas) e o sublime (A Eneida).
Fazendo o leitor perceber, de modo breve e panorâmico, a via-
gem do conceito de gênero – desde os tempos antigos de Platão, Aris-
tóteles e Horácio para logo chegar aos modernos Blanchot, Curtius e
Genette (passando posteriormente pelos dogmáticos Gustave Lanson
e Ferdinand Brunetière) –, o autor nos mostra de modo mais palpável
a transitoriedade que poreja no corpo da linguagem. Em determina-
do instante, com um jeu de mots, ele assevera: “Mesmo sob a forma
de recusa ou paródia, a noção de texto volta; literatura vem de litera-
tura [o mercado é que vende qualquer coisa]”.
Assim como o conceito de gênero, a própria ideia de literatu-
ra – clássica ou moderna – obedece aos desígnios de Clio e somen-
te no século XVIII passa a significar o guarda-chuva de variedades
que hoje verificamos. É o que o professor Roberto Acízelo de Sou-
za, ao organizar duas obras magistrais, busca elucidar2 . Supondo-se

2. Roberto Acízelo organizou dois volumes essenciais a quem trabalha com a genealogia literária:
Uma ideia moderna de literatura. Chapecó, SC: Argos, 2011; Do mito das musas à razão das letras.
Chapecó, SC: Argos, 2014.

205
Apresentando - O arquipélago dos gêneros: uma viagem intelectual

que ela existisse, com os escritores destacados do rio do tempo (para


usarmos a metáfora problemática de E.M. Forster3), essa literatura
geratriz e solicitante do literário corresponderia, de todo modo, a um
determinado mercado, que igualmente não é uma realidade abstrata
ou hipostasiada.
Na sequência, Darío Sánchez, em seu Literatura e Teatro: a pa-
lavra no palco, pensará a relação longínqua entre a arte dramática
e o texto literário. O autor destacará o quanto o teatro, gênero ma-
tricial da literatura, resulta incontornável mesmo entre os escri-
tores contemporâneos (muitos dos quais guardando o vão intento
de negar os núcleos da tradição). Mas não ingressa no debate sem
antes mandar seu recado para os culturalistas mais desavisados:
“[...] é curioso perceber que hoje, nos 450 anos de seu nascimento,
Shakespeare parece reduzido a roteirista de filmes. As novas gera-
ções, mais dedicadas aos estudos culturais, estão perdendo um dos
maiores prazeres que a literatura pode oferecer: a leitura das obras
monumentais do Cisne de Avon”.
Sánchez, em síntese, esclarece que os teatros clássico e mo-
derno se opõem na medida em que aquele apresenta intensa iden-
tidade com a literatura, ao passo que a dramaturgia moderna se
divorcia das artes verbais:

3 “Scott é um romancista sobre o qual haveremos de divergir violentamente. De minha parte, não
ligo muito para ele, e acho difícil entender por que sua reputação perdura. Por que ele teve uma boa
reputação na sua época, é fácil entender. Há importantes motivações históricas para isso, que devíamos
analisar se o nosso esquema fosse cronológico. Mas se o fisgamos para fora do rio do tempo, e o levamos
para escrever naquele salão circular, junto com os outros romancistas, sua figura não impressiona tanto.”
(FORSTER, E.M. Aspectos do romance. Trad. Sérgio Alcides. São Paulo: Globo, 2005. p. 57). O problema da
hipótese do escritor inglês é que, justamente, não se pode sair desse rio temporal para valorar. Quando
Forster pretende isso, ele se esquece de que, na verdade, está pondo Scott não fora do rio, mas em outro
ponto de seu leito: aquele em que nos encontramos. E de que mais adiante o autor de Ivanhoé pode ser
novamente admirado, banhado por águas e futuras.

206
Peron Rios (UPFE)

A oposição entre literatura e teatro obedece à evolução da


prática teatral a partir do surgimento do Drama e dos gê-
neros híbridos, por oposição ao denominado teatro clássico,
durante o século XIX, e posteriormente com o desenvolvi-
mento das diversas correntes do teatro moderno e do teatro
de vanguarda na primeira metade do século XX.

Entre as diversas distinções ali detectadas, uma que aflora é a


ênfase sobre o conflito, no oitocentismo; nos novecentos, sob influ-
ência da Linguística e das teorias formalistas, a desautomatização
do signo passou a ganhar primazia nas intenções dos dramaturgos.
Agora, como numa vestimenta às avessas, a costura se faz explícita,
instalando-se a recusa do jogo ilusionista. Desde o Período Clássico,
via-se o gênero dramático enquanto uma “espessura de signos” (co-
munhão entre a palavra e a performance). Nessa linhagem de inter-
semioses, “o drama romântico e o drama moderno, o Simbolismo e
o Naturalismo, o Realismo e o diretor de cena, o Teatro do Absurdo
e o Expressionismo são alguns dos momentos cruciais no processo
de separação entre a literatura e o teatro”. Como se poderá cons-
tatar, é um cuidadoso olhar histórico, de sucinta mas norteadora
genealogia, que Darío Sánchez cultivará em seu produtivo ensaio.
André de Sena, com Os dois Teodoros: mutações do gótico de
Horace Walpole e E.T.A. Hoffmann, discorre sobre o vínculo entre
os dois autores destacados no título do ensaio. E digo vínculo, não
oposição ou contraste porque, embora revelem em medida conside-
rável procedimentos dissonantes nas suas composições, há ali mais
uma intervalo de maturação ou prolongamento de uma percepção
de mundo que propriamente qualquer negação ou variação perpen-
dicular entre os escritores.

207
Apresentando - O arquipélago dos gêneros: uma viagem intelectual

Temos, na mesa de observação, Horace Walpole, autor d’O Cas-


telo de Otranto (1764), e o célebre E.T.A. Hoffmann, prosador fan-
tástico – na dupla acepção que a palavra agrega –, com seu conto O
morgadio (1816). André de Sena irá comparar os motivos noturnos
presentes em ambos os criadores, sobretudo seus modos e inten-
sidades, para que uma certa genealogia do Gótico e do Romântico
seja satisfatoriamente flagrada. Nos dois casos, estará presente a
hybris – insurreição verificada na quebra da moderação racional,
que tanto prezavam os classicistas –, mas deliberadamente ousada
em Hoffmann, enquanto surge na criação walpoliana com timidez
e ressalvas, feitas pelo próprio romancista em seus prefácios.
Com efeito, em O Castelo de Otranto se verificam tanto a clás-
sica verossimilhança quanto a extrapolação típica do Romantis-
mo consolidado: fusão entre a mimese documental e o imaginário
excedente, característico do horror gótico. E se, por um lado, o
terror walpoliano se retrai e paga tributo à cartilha classicista, ali
já se notabiliza, em contrapartida, o anseio romântico de desregu-
lamentação dos gêneros, de abertura liberal das fronteiras. A mis-
tura dos estilos, por exemplo, até então evitada, aqui receberá seu
elogio, como Sena observa: “A presença de personagens plebeus,
explicitada de forma negativa no primeiro ‘Prefácio’, agora será
percebida sob um novo prisma, também pioneiro no que toca aos
estudos sobre a binomia romântica – a conjunção entre o sublime
e o grotesco. Ariel e Caliban”.
Muito embora devedor dos avanços de Walpole, O morgadio,
por sua vez, absorverá de modo mais arrojado os parâmetros da
nova estética. Fazendo-nos vislumbrar o quanto Hoffmann leva
a imaginação a limites efetivamente românticos (e não mais de
moldura clássica), Sena finalizará seu elucidativo texto mencio-
nando certa recepção negativa que, naturalmente (como ocorre a

208
Peron Rios (UPFE)

tudo o que rompe alguma inércia), Hoffmann experimentou. O Sir


Walter Scott, digno de ressalvas como as que já pontuamos nesta
apresentação (advindas de E.M. Forster) e em tudo avesso ao claro
hybrismo ali presente, faria duras restrições à escrita inovadora
d’O morgadio. O que, aliás, em nada nos deve causar espanto, uma
vez que a criação scottiana se apoia, em pleno Romantismo, numa
sensibilidade realista avant la lettre – similar à que György Lukács
denuncia, em seu livro O romance histórico.
O capítulo 11, Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor, subs-
crito por Fabiane Burlamaque e Pedro Barth, responde às urgentes
demandas de seu tempo. Efetivamente, depois da polêmica decla-
ração da escritora Ruth Rocha (“Harry Potter não é literatura”4), o
debate a respeito da inclusão ou do alijamento de obras com na-
tureza semelhante às de J.K. Rowling se inflamou. Ao retomarem
o assunto de modo mais especulativo do que axiológico 5 , os auto-
res mostram que, de antemão, tais fenômenos contemporâneos ao
menos pertencem a um gênero consagrado pela literatura: a saga.
Apoiados em Alberto García e em Eloy Martos Núñes, defen-
dem a transfiguração do gênero, reemoldurado pelo público-alvo
atual, experimentando formas, usos e suportes contemporâneos.
Tudo isso é que mantém vivo qualquer gênero de texto:

[...] Sagas fantásticas, segundo esses autores, se converteram


em um fenômeno que arrasta um público muito heterogêneo
e variado (não somente jovens) e cujo êxito transbordou os
conceitos de autor, gênero e livro, filme ou revista em quadri-
nhos, para situar-se em outras coordenadas mais amplas e,

4. Cf. http://on.ig.com.br/palavra/2015-04-27/ruth-rocha-comemora-50-anos-de-carreira-harry-potter-
nao-e-literatura.html (acesso em 10/08/2015).
5. Como se verá, à emissão explícita de juízo crítico prévio referente às sagas fantásticas, Barth e
Burlamaque preferem entabular análises dos procedimentos técnicos e das circunstâncias de recepção
das obras.

209
Apresentando - O arquipélago dos gêneros: uma viagem intelectual

além do literário, a multiplicação dessas ficções em formatos


tão diferentes como a revista em quadrinhos, a televisão, o
cinema ou os jogos de estratégia.

Em seguida, podemos fazer uma varredura no conceito por-
que os ensaístas oferecem a definição clássica de saga e relatam os
processos que foram mantidos até os dias de hoje (os laços com a
mitologia, por exemplo) ou que se alteraram, respondendo melhor
ao nosso tempo: o hibridismo típico da “pós-modernidade” é o caso
talvez mais relevante. Vale advertir, ainda, que mesmo a utilização
dos mitos como cimento literário ocorre com o diferencial moder-
no da paródia ou da estilização. Ou seja, semas de semelhança e de
diferença convivem agregando os tempos e arejando a narrativa.
A relação entre psicologia e literatura é recuperada, então, para
se fazer, a partir da ideia de paracosmos (mundo paralelo e imagi-
nativo), a aferição do quanto uma criança que viveu o vigor da pro-
jeção em gêneros como as sagas contemporâneas – repletas desse
destaque radical do mundo empírico – se comporta no jogo social.
Na saga fantástica, a criação desse mundo que se ergue necessita de
uma plasticidade, uma visualidade muitas vezes concretizada em
paratextos cartográficos. Outras especificidades do novo gênero
serão detectadas por Barth e Burlamaque: o caráter multimídiatico
das narrativas, a presença de fanfictions (leitores interativos), a ex-
trapolação de um único volume para a composição de verdadeiras
séries etc. A defesa dessa nova literatura se fará pela pauta do leitor
revigorado, com leituras extensivas que reúnem vários códigos e
linguagens. Um leitor, em certa medida, até mais exigente e reivin-
dicativo – porque pode emitir suas impressões aos próprios escrito-
res ou ainda às comunidades de leitura a que ele pertence.

210
Peron Rios (UPFE)

Os dois últimos estudos vão destinar sua atenção, mais en-


faticamente, ao ensino de literatura – área carreada de impasses,
muito por conta da negligência dos cursos de Letras para uma de
suas funções basilares: a de formar professores. O ensaio de Hélder
Pinheiro (Poesia, Oralidade e Ensino), trazendo um título quase au-
toexplicativo, transita pelas especulações sobre três eixos: a própria
ideia de poesia, a oralidade que ela pede e o instante da docência.
Ao discorrer sobre o primeiro tópico, Pinheiro procura elen-
car algumas concepções de poesia, para mostrar seu caráter fluido,
ao modo de Proteu. Aqui, ele constata que toda e qualquer tenta-
tiva de flagrar um poético paralisado é completamente vã: como
na Química, o que se pode fazer é adivinhar-lhe o orbital – lugar
em que é máxima a possibilidade de surpreender o poético/elétron.
Ainda que propondo práticas centradas na primazia da hermenêu-
tica, o professor sublinha um problema considerável do ensino bra-
sileiro de literatura: a apatia docente frente ao próprio objeto com
que pretendem os professores inflamar os seus alunos. O escritor
André Malraux, em L’homme précaire et la littérature, observava
que o discurso literário, ao contrário de tantos outros, não conven-
ce o leitor pelo rigor lógico, senão pelo contágio. Ora, mas parece
evidente que não se pode contagiar alguém com uma febre que não
se possui; e é pela indiferença à linguagem poética, recorrente nos
formadores, que Hélder Pinheiro aconselha: “Se o professor ain-
da não experimentou este ‘estado poético’ a que se refere o crítico
[Paul Valéry] ou se já experimentou mas não se deu conta desta
experiência, seria interessante buscar uma vivência com a leitura
do poema de modo mais cuidadoso”.
Encontramos o ponto alto do ensaio nas inquisições a respei-
to da oralidade a que a poesia se submete. Aqui, Hélder Pinheiro

211
Apresentando - O arquipélago dos gêneros: uma viagem intelectual

é certeiro quando nos lembra que o texto deve ganhar vida com
todos os recursos disponíveis da enunciação (gestos, olhar, tom
de voz, movimento). Entretanto, a performance vocal deve receber
primazia na realização do poema. É o que o saudoso Paul Zumthor,
convocado pelo ensaísta, nos afirma: “Melhor do que o olhar, a face,
a voz se sexualiza, constitui (mais do que transmite) uma mensa-
gem erótica”. Pinheiro insiste para que a proclamada multiplici-
dade de leitura comece no próprio ato de emprestar som ao texto:
vários alunos devem ler o mesmo poema, com variações melódicas,
pausas mais longas ou mais breves etc. O poema, como na música,
só ocorre com a vitalização pela voz (ainda que mental), do mesmo
modo que os instrumentos fazem as notas de uma partitura real-
mente acontecerem.
As considerações acerca do ensino, por sua vez, se ancoram em
dois pontos principais: a importância de não escolarizar excessiva-
mente a literatura (o que retira o potencial primevo da arte) e a ne-
cessidade de socializar a leitura sem que limitadoras hierarquias im-
ponham sua presença. Quanto ao primeiro quesito, Pinheiro adverte:

Os poemas trazem um saber sobre o mundo, mas um saber


permeado pela vivência, pela percepção sensorial do referi-
do mundo. Não necessariamente um saber racional, ou, me-
nos ainda, uma espécie de didática, de lição, embora muitas
vezes a escola se aproprie do texto literário apenas pensan-
do em lições e informações que os textos possam trazer. O
que me ensina, portanto, um poema? Ou ainda: como o po-
ema me ensina alguma coisa? Enfrentar estas questões, sem
cair no didatismo, me parece essencial para pensar o lugar
da literatura na escola e na vida.

212
Peron Rios (UPFE)

A convivência entre o literário e o espaço escolar, nunca é de-


mais sublinhar, é tensa e ambígua: infração do signo para gerar a
inflação do olhar, a poesia entra em rota de colisão com uma insti-
tuição que já foi, de forma precisa, comparada às prisões. Foucault
dixit6. De tal modo, a poesia na escola é uma subversão controlada –
o que gera um paradoxo digno de Drummond, com seus “claro enig-
ma”, “paixão medida” ou “impurezas do branco”. O segundo tópico
abordado por Hélder Pinheiro no âmbito do ensino (a socialização)
descreve a partilha da experiência literária como um modo de alar-
gar (ou corrigir, quando for o caso) a leitura, sem que uma autori-
dade detentora do sentido emerja e silencie a todos, transformados
etimologicamente em meros alunos, indivíduos sem luz interna ou
viva inteligência.
Finalizando o périplo reflexivo, Maria Amélia Dalvi oferece os
resultados de uma pesquisa realizada durante um ano (agosto de
2013 a julho de 2014). Nessa investigação, o grupo representado por
Dalvi dedicou-se à análise – a partir do gênero entrevista e de docu-
mentos escritos pedagógicos e oficiais – da situação docente na cida-
de de Vitória/ES, abrangendo o arco temporal de vinte e cinco anos
(1985-2010). O artigo (Literatura dos anos iniciais ao ensino superior:
contribuições do gênero entrevista à pesquisa e à formação docente)
dará prioridade, porém, à análise das enquetes e dos depoimentos em
vídeo. O trabalho, de largo rigor metodológico e padrão ético infle-
xível (o leitor terá a oportunidade de verificar), tinha como objetivo
“colaborar para o engendramento de uma história da educação leito-
ra e literária local, em correlação com a história da educação leitora
e literária no Brasil, no mesmo período [...]”. Todo esse empenho con-
tou com o teórico suporte de Mikhail Bakhtin, Peter Burke, Michel
de Certeau e Roger Chartier, que abordam a leitura segundo uma voz

6. Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

213
Apresentando - O arquipélago dos gêneros: uma viagem intelectual

plural, descentralizada e culturalista. As ferramentas da história oral


pautada em Verena Alberti foram outro elemento altamente valori-
zado pela investigação. Um dos dados curiosos que a pesquisa nos
revela: além do caráter formativo (a inquisição viabiliza a heuresis,
afinal), as entrevistas proporcionaram um “efeito ‘terapêutico’ ”. Eis
a linguagem, portanto, exercendo suas funções fármaca e cosmética,
como Platão já reparava. É nesse momento, portanto, que o gênero
entrevista extrapola sua condição instrumental para se transformar
no próprio objeto de exame.
Alguns resultados reforçam, infelizmente, os modelos enges-
sados que guardamos da educação brasileira. A título de exemplo:
os professores lamentam recursivamente a falta de interesse dos
alunos ou de tempo hábil para que as atividades literárias sejam
desenvolvidas; desconhecem o que seus alunos leem fora da sala
de aula e relatam a dificuldade inicial para lidar pedagogicamente
com a literatura – sintoma da pouca importância que nossos cur-
sos de Letras dedicam à formação docente. Fundamental, porém:
um dado colhido confirma hipótese da investigação e caminha na
contramão de boa parte das percepções atuais do ensino de lín-
gua. É o que Maria Amélia Dalvi nos assevera: “Reiteramos, ain-
da, a partir de Leahy, que é possível pensar a educação literária
como uma disciplina relativamente autônoma (como área apendi-
cial de ‘Língua Portuguesa’) dentro do currículo escolar – embo-
ra não goze desse prestígio, no contexto histórico estudado [...]”.
Conclusão polêmica e instigante, que vem revigorar a água parada
daquilo que, uma vez revolucionário, volta inerte para adormecer
no colo do senso comum.
Em suma e para finalizar: estas seis ilhas, agregadas no pre-
sente volume – formando o arquipélago reflexivo sobre os gêneros
de textos – foram contornadas, sem dúvida, com máxima técnica e

214
Peron Rios (UPFE)

paixão, pelos ensaístas acima elencados. Resta a contrapartida da


atividade escritural, a outra metade imaginativa a que se referia
Valéry: o ataque da leitura. E que se realize a plena degustação do
que, nesse primeiro momento, foi um simples e pálido aperitivo.

215
PARTE 2
Literatura
8
Um giro através da noção de
gênero em literatura
Lourival Hol anda (UFPE)1

Há questões que volta e meia retornam à discussão: o objeto se-


gue sendo aparentemente o mesmo, mas a perspectiva renova sua
percepção. Assim, a questão dos gêneros em literatura. A cultura
contemporânea exacerbou a democratização dos valores e dessacra-
lizou, ou pôs em suspeição, o peso de hierarquias e taxonomias. Os
grandes sistemas classificatórios ficaram saturados (quase na acep-
ção que os químicos dão à palavra); sem, no entanto, perder sua va-
lidade referencial. Se a questão volta à discussão é porque a presença
das classificações ainda está aí; e seguindo os três movimentos cos-
tumeiros: a emergência do fato literário, sua produção; a necessida-
de de racionalizar o real de tal produção; e uma marcada retração
na conformação, quando as formas literárias já ficam enquadradas
nas normas classificatórias. A partir daí o costume tem força de lei:
o peso do mores maiorum – ou: o que vem sendo assim desde a
tradição. A escola faz interiorizar o esquema – que doravante é inte-
grado ao sistema literário. Uma certa lógica conjuntista projeta nos
gêneros a hierarquia com que o grupo organiza seu mundo e assim
lhe dá sentido: direção e significação. O modo de organização e clas-
sificação é a própria época concretizada em pensamento. Serve como
peneira epistemológica: por aí passam as valorações de um tempo.

1. lourivalholanda@yahoo.com.br

217
Um giro através da noção de gênero em literatura

Uma classe hegemônica propõe – quase sempre: impõe – certa ho-


mogeneização de mundo que, por economia mental de inércia, se
mantém.
É assim que o imaginário social da época de Virgílio percute em
sua reorganização dos gêneros. Os estilos correspondem às hierar-
quias daquele imaginário: os ofícios, as árvores, os animais, tudo fica
codificado. Se o poeta fala sobre pastores, o modo deve ser o stilus
humilis; se sobre camponeses, então o stilus mediocris; mas, se sobre
tema heroico ou guerreiro, então o stilus gravis. Ainda: a cada esti-
lo corresponde uma árvore simbólica; o carvalho, árvores frutíferas
ou o louro ou o cedro, no caso de temática guerreira. O mundo se
codifica nestas “enciclopédias”, nestes protocolos. É um imaginário
organizador de mundo – assim agem a ciência ou a religião: uma
racionalização para amansar a fereza do absurdo possível, do sem
sentido que sempre ameaça o mundo cotidiano.
Sua forma de transfigurar o real em inteligível deixa de ser uma
aventura de um momento histórico e se pretende razão única. A mo-
dernidade reage com veemência a essa homogeneização [no sentido
dos cosmólogos: a definição de gêneros se impondo independente-
mente do lugar e da cultura onde foi instituída]. Novas formas pe-
dem novas normas.
Nos anos 60, especialmente na França, a questão de gênero em
literatura chegou ao extremo de ficar ameaçada de extinção. Pre-
mência da paixão de certos momentos históricos. A dificuldade de
classificar se resolvia pelo rechaço da classificação. Passou-se do la-
xismo conceitual à negação. O pensamento contemporâneo, sobre-
tudo a partir daquele contexto e sob o impacto das ciências e das
tecnologias, é cada vez mais avesso às prescrições fechadas, impo-
sitivas. No entanto, mesmo no mundo das ciências, a classificação
segue sendo uma questão incontornável: é o primeiro constituinte

218
Lourival Holanda (UFPE)

de qualquer definição. E, até a Revolução Francesa, o mundo se or-


ganizou em categorias. Se as definições não têm mais o mesmo peso
definitivo de arbítrio, sua pertinência permanece. [Mesmo quando,
como na quântica, o cientista assume a limitação da definição, como
Heisenberg; no mundo subatômico, é impossível dar conta de volu-
me e lugar; assim o homem de ciência recorre à figura, à analogia –
que em literatura é, desde muito, um modo de conhecimento].
Um giro pelos gêneros: periodicamente os gêneros são questio-
nados. A geração mais recente conquistou sobre a nossa uma maior
liberdade na discussão das questões de gêneros literários. Perdeu o
temor da especulação heterodoxa. Há pouco, as discussões e contro-
vérsias levantavam mais que os entusiasmos: às vezes, os punhos.
Discussões carregadas de humores, obsessões, azedumes. Choque
de encouraçados – que paralisavam o debate. À destreza da razão
classificatória, os mais novos repõem a astúcia do desejo inventivo.
Constroem por entrecruzamentos de registros, de possibilidades. A
cultura Web 2.0: interação com outras linguagens; que, de tão rica
em possibilidades, torna mais complexa a análise, por exemplo, de
um poema de Jussara Salazar onde o elemento sonoro, o pictural, o
textual, tudo se funde num efeito feliz de surpresa e comoção.
Há que se levar em conta a contingência valorativa das classifi-
cações: os valores são, em larga parte, tributáveis da história, do mo-
mento cultural. No século XVII, Bossuet condena veementemente a
comédia: o Cristo nunca teria rido... Como parte de um pressupos-
to de doutrina, seu sistema é deliberadamente fechado; daí diferir
tanto de um Lessing, mais linkado com a sensibilidade estética mo-
derna. Bossuet não pensa os antigos, ele os repete; por isso facil-
mente condena com veemência. Bem poderia ser uma fantasia de
Jorge Luís Borges; ou o mesmo gesto de condenação do outro Jorge,
já personagem de Umberto Eco, em O nome da rosa. No entanto, a

219
Um giro através da noção de gênero em literatura

base referencial dos gêneros permanece. James Joyce, em Dedalus,


vai se confrontar com a tradição; com o intuito de renová-la. O épico
enquanto relação intermediária entre si e o mundo. O lírico como
apropriação de um mundo; ou: a relação imediata consigo. O drama
como a pressão do outro; ou: a relação imediata com os outros. Mas,
ao menos em literatura, as coisas não se resolvem num quadro con-
ceitual imutável. A sátira, dita menipeia, já é a conjunção de prosa
e poesia; admite, desde o início, grande variação de metro: versos
longos, curtos, experimentais; um gênero mesclado, driblando te-
mática e forma definidoras. Poetas modernos – que já embutem o
crítico na sua prática poética – vão ver no poema, ser de linguagem,
uma dimensão dialógica: há sempre um interlocutor fictício, virtual;
toca então a tensão dramática do tu – antes, própria do drama. Ossip
Mandelstam reivindica essa dimensão dialógica que o lírico também
convoca. No contemporâneo, o embaralhar as cartas faz parte das
regras do jogo. Por essas e outras, o entendimento de Lessing está
mais próximo do nosso. E, para avançar sobre essas questões hoje,
um nome irrinunciabile. Por isso, temos a recuperação das noções
fundamentais de gênero – mesmo no momento em que pareciam
entrar em crise conceitual, com Todorov, Genette e Barthes.
Questão antiga e atual: desde Platão [em Filebo] há alusão aos
gêneros: há o geral de uma figura e, segundo ele, um número enorme
de modalidades. Platão põe a ênfase no modelo; nós, nas modalida-
des. A filosofia clássica carregava no termo “essência”; a contempo-
rânea, suspeitosa, à essência prefere as modalidades. A hegemonia
daqueles princípios traduzia um momento cultural também mais
hegemônico culturalmente. No momento de Aristóteles e Platão,
prevalece a noção de princípio; na nossa, a de potência.
A questão lógica desemboca na questão ontológica: podemos
definir um gênero como alguma coisa de imune ao tempo? Quem

220
Lourival Holanda (UFPE)

é fiel a sua carteira de identidade? Ela é o que fomos; e, ao mesmo


tempo, há uma constância no nosso devir: ainda sou aquele ali re-
tratado. A noção de identidade de gêneros pode ser entendida assim.
[Não como a noção de identidade em matemática: a repete a. Não
repetimos etapas da vida, mas seguimos esse gerúndio rico: vamos
sendo vida a fora. Aristóteles resolveria a questão dizendo estar ali
nossa substância segunda – expressão necessária, mas não de defini-
ção exclusiva (em Categorias, 5, 2b)]. Portanto, a questão de gênero,
no contemporâneo, deixa de lado a pretensão à essência e mira na
possibilidade, na enorme variação de classes. A ciência ajuda a ver
de modo prático: as mangas já aparecem nos textos clássicos da Ín-
dia, no século IV; e as mangas advindas de enxertos e manipulações
genéticas, essas nunca existiram antes, na natureza... A classificação
se alarga porque o real da produção literária, sobretudo na cultura
contemporânea, é mutação exacerbada, vertiginosa.
Há uma marcada prevalência inaugural: um canto, uma odis-
seia. Só depois é que vem a expectativa de ouvir de novo. O gênero
começa com essa expectativa. Depois, a classificação, a gramática
daí deduzida. Assim, cada vez que há um ajuntamento em torno da
expectativa de um canto, da alegria grave de ouvir uma odisseia,
ali já radica um gênero. Com as variações de tom, de timbre, as va-
riações de expectativas; e um sistema de expectativas já prenuncia
o gênero que assim se cria e consolida. O contemporâneo quebrou
esse pacto subliminar: o leitor espera ser surpreendido. O mercado,
a mão invisível de que falou Adam Smith, cedo entendeu isso e pôs
a seu favor: a novidade virou sinônimo de valor em si – sobretudo
levado pela pressão permanente da trilogia mercado-tecnologia-
-mídia. Os critérios de classificação obedecem menos à necessidade
de secionar áreas para melhor compreender e mais à pragmática da
extensão do consumismo generalizado.

221
Um giro através da noção de gênero em literatura

Desde a entrada da Poética, Aristóteles delimita e expõe as opo-


sições com o intuito de classificar os gêneros. Tal classificação pesou
demais sobre a tradição; e dá para entender, volta e meia, o gesto
desenvolto das insurgências contra as classificações. Questão anti-
ga e atual: desde Platão [Filebo] há alusão aos gêneros: há o geral
de uma figura e, segundo ele, um número enorme de modalidades.
Platão põe a ênfase no modelo; nós, nas modalidades. No entanto,
nem tudo é definitivo, sem espaço à controvérsia. Quando Aristó-
teles fala de poiètikè, deixa a noção em aberto, porque compreende
muita coisa; comentadores e tradutores trabalham o termo mimese
[47 a 13] como imitação, como representação e, recentemente, como
ficção (Käte Hambuger e mesmo Gérard Genette).
Mesmo sob a forma de recusa ou paródia, a noção de texto volta;
literatura vem de literatura [o mercado é que vende qualquer coisa].
O contemporâneo é sobretudo experimental (essa agudeza é nietzs-
chiana): os textos se indefinem pela mescla de registros: difícil clas-
sificar, sem reduzir, o texto de Michaux? O Homem sem qualidade, de
Robert Musil, romance com uma boa “pegada” de ensaio? [E, já Mau-
rice Blanchot via aqui um texto que não se submetia à distinção dos
gêneros]; OPlatero y yo, de Juan Ramon Jiménez, cuja prosa poética
desde 1914 já se indefinia enquanto gênero híbrido? Neste sentido, é
emblemático o embaraço – fingido ou sentido – de Proust se pergun-
tando em 1908: Sou mesmo um romancista? Cabe a dúvida, porque o
que ele propunha, naquele momento, ia além do conceito consensual
de romance. O texto literário se define por ter um potencial de per-
formance que ultrapassa a noção de gênero.
Nunca é demais lembrar que o gênero lírico não está contempla-
do no primeiro momento: na intenção de Platão e Aristóteles parece
pesar, primeiro, a função social e política; fundar e armar um legis-
lador público. E isso fica explícito já no livro III d’A República: menos

222
Lourival Holanda (UFPE)

poesia na formação do estadista... A poesia convoca uma inusitada li-


berdade, quando o estadista precisa deixar prevalecer o princípio da
“ordem” [387b]. É só no século IV, com o gramático Diomedes, que
o gênero poesia ganha ares de cidadania na república dos gêneros
literários. E ele põe enquanto modelos Arquíloco e Horácio. Curtius
(1957, p. 222) explana isso com clareza.
A história dos gêneros, como a história tout court, retém al-
guns pontos, dispensa outros, de acordo com o humor dos valores
vigentes. A “doutrina” dos gêneros é colocada no mesmo patamar e
com tantas variações quanto as partes do discurso. Daí as forçações
de barra necessárias para incluir tipos de poesia desconhecidas ain-
da por Aristóteles e Platão e, no entanto, tornadas clássicas depois
de Virgílio: como a poesia pastoral, que sustenta nosso bucolismo; e
a poesia didática, comum às escolas e ao mercado – e sem nenhuma
complacência de poetas modernos, como Edgard Alan Poe, Mallar-
mé ou Valéry. Ainda aqui, as categorias são tributárias de um dado
momento da cultura: as distinções de Horácio já não são as nossas.
Para ele, poesis é a composição; para nós, é o sentimento, a percep-
ção [alguém apaixonado cai em estado poético [...]; mas, o poema é
a transcrição singular de tal experiência]; para Horácio, poema é o
mesmo que as obras.
A resistência à classificação dos gêneros, pelo enquadramento
dogmático que trazia, ficou acentuadamente mais forte com a recen-
te democratização cultural, que trouxe o alargamento dos cânones,
e a liberação das peias classificatórias. Texto e produção eram termos
correntes nos anos 70. Poesia, romance, ensaio, isso parecia reacio-
nário. A nomenclatura antiga passava por uma dogmática; rebelde à
classificação, a pragmática do texto novo bastava. Tudo era pretexto
para rever a pesada herança passada – que, no entanto, era feita de
convicções comuns e valores partilhados. Etpour cause. Quanto mais

223
Um giro através da noção de gênero em literatura

se radicaliza, mais cedo se tende a voltar ao ponto anterior. Assim


como a castidade chama a luxúria, as intolerâncias se chamam: de
um lado, o enquadramento fechado; de outro, a dificuldade em no-
mear um gato, um gato. Como se sua variedade tornasse abstrata
sua realidade. Não há jogo de futebol – ou literatura – sem qualquer
convenção ou obstáculo a vencer.
A pertinência de se repensar a questão dos gêneros literários
depois da ressaca teórica dos anos 70 é de guardar a vigilância críti-
ca – sobretudo contra a tentação dos sistemas totalizadores, a con-
tinuação inercial das ementas departamentais; como se a memória
dispensasse de repensar criticamente o que foi, em dado momento,
instituído. E isso não se faz sem o sal do humor - uma desconstru-
ção recente se fez com raiva. O deslocamento crítico dos gêneros
pode ser sinal de saúde intelectual. De madurez criativa da teoria,
como foi Erich Auerbach, Jean Starobinski ou Benedito Nunes. Sem
as adesões tranquilizadoras aos sistemas mais em voga. Nos nossos
programas não é raro encontrar, ainda hoje, o fantasma taxonômico
do XIX: a Universidade prefere as certezas estabelecidas, quantifi-
cadas, tranquilizadoras. Lição de Einstein: a grande ciência procede
por avanços e aventuras; a vulgata científica opera como martelo:
cada golpe é por distinção, separação; a literatura prefere as cone-
xões; salta por sobre as origens e temporalidades e assim rende ho-
menagem à continuidade dos gêneros. Gonçalo M. Tavares refaz o
gesto de Camões numa epopeia contemporânea, em Viagem à Índia
(2010); a página da Wikipédia é emblemática: ali a obra é classificada
como gênero híbrido entre romance e epopeia. Ainda uma observação
pertinente à nossa matéria: Eduardo Lourenço prefacia a obra apre-
sentando-a como uma anti-epopeia; seja – mas o autor, ali mesmo
fala de seu texto enquanto uma epopeia. Trata-se de uma corrupção
genológica, como dizem nossos amigos portugueses? Sim, por certo,

224
Lourival Holanda (UFPE)

se atentarmos para o étimo da palavra: co-ruptus – o que delibera-


damente altera um trato; ali quebrou-se o modelo antigo para deixar
soldar as partes de um outro modo. E é já uma outra leitura; o des-
locamento é um distanciamento crítico. É o que faz Marcus Accioly
quando retoma o fôlego odisseico na sua Latinomérica (2001): relê a
história do Continente com agudeza de quem reverte criticamente
os valores consensuais da cultura.
A dogmática dos gêneros: em dado momento, sobretudo com
Ferdinand Brunetière ou Gustave Lanson, o gênero tendia a definir
a literatura; poucas gerações depois, o gênero era execrado por ser
ideológico, essencialista, historicista; certamente, um erro de lógica:
tomar um dos componentes enquanto definidor. O antídoto contém
veneno – mas o veneno não o define. O dito político, a assertiva fi-
losófica, a palavra do dogma, tudo isso pesa diferente nos genera
dicendi da literatura. Mesmo a realidade fica ali suspensa – para ser
pensada diferentemente.
A recusa – antes mesmo que sua crítica – faz reviver a querela
dos realistas e dos nominalistas: apenas os indivíduos existem, os
nomes que os classificam são supérfluos; assim, a rejeição dos gêne-
ros: apenas há, de real, os textos. No fundo, há uma forma, um modo
de escritura que tangencia o espaço incerto entre o pensar e o sentir.
O protocolo literário vive [e se esgota] de convenção; e de contraste.
Acontece de, às vezes, sobretudo depois da modernidade, a conven-
ção ser contrastar. O poema antilírico, o romance com o mínimo
de acontecimentos, e assim segue – e se pauperiza: fica previsível;
nada mais obsoleto que um poema se pretender moderno repetindo
os modos de 22. E, no entanto, se aquela forma se esgotou, o espí-
rito de experimentação, o direito à pesquisa, dizendo com Mário de
Andrade, continua sendo uma exigência. As etiquetas, os protocolos
classificatórios virão depois.

225
Um giro através da noção de gênero em literatura

Mudando de mundo mudamos o modo de pensar, o modo de en-


carar o texto literário. Numa sociedade mais consensual, tendendo
mais a uma relativa hegemonia, a convenção é de lei. O texto devia
responder a uma expectativa, agradar. No contemporâneo, quando a
falta de consenso marca a presença de maior liberdade produtiva, o
texto pode mover, comover, fazer agir o leitor. Em termos mais atu-
ais: tirá-lo de sua zona de conforto. Em testemunho, Guimarães Rosa
ousa dizer: Eu não crio facilidade, crio dificuldade. [Entrevista a
Pedro Bloch, Revista Manchete, 15/06/1963]. Os gêneros são recebi-
dos já por outra postura mental, no contemporâneo. Quer no gênero
conto, quer no romance, o autor prima por frustrar a expectativa do
leitor. Por mais singular que seja, o texto ainda guarda na forma, sua
ligação com o gênero.
Quando Aristóteles fala, analisa, classifica, é desde seu horizon-
te histórico: daí o discurso mais prescritivo: as histórias devem ser
compostas assim [Poética, 47a 8]. E, como a tragédia é o modelo, tem
também uma finalidade: a catharsis. Sua descrição já é normativa.
Ora, já não é mais uma preocupação, no pensamento contemporâ-
neo. Dificilmente interessa ao crítico atual, e ainda menos ao leitor
consensual, o policiamento se o autor cumpre ou extrapola as regras
do gênero. E, no entanto, essa postura é a de Platão n’A República:
policiar o poeta, estabelecer o que o público “precisa” receber. Na
cultura política contemporânea, a má memória dos momentos tota-
litários do século XX tornou isso um horror que se espera expurgar;
mas, ainda assim, algo reconhecido, familiar. Não surpreende que ele
também retire o direito ao riso – esse sal do contemporâneo. Poder e
sacralização, sempre. Por isso, a pertinência de repensar os gêneros
no contexto atual; quando já desconfiamos de toda cristalização – de
forma ou poder. Nossa forma mental é outra. Ao leitor interessa o
gozo surpreso do texto; ao crítico, rastrear o processo de criação para
conjugar ao gozo a inteligência que o proporciona. Mas, ainda aqui:

226
Lourival Holanda (UFPE)

a noção de gênero serve enquanto referência, escala – a partir daí se


pode ver o quanto uma criação renova, avança.
Nosso mundo já pretende menos a estabilidade – que, no entan-
to, era o fundamento do mundo clássico; com apoio de Aristóteles e
Platão, claro. Já a instabilidade e a mudança não nos angustiam; tudo
no mundo contemporâneo nos habitua a elas. Por isso a questão da
permanência do enquadramento dos gêneros nos toca menos. O de-
safio das gerações recentes pode ser o de lançar um olhar novo sobre
a questão, resistir ao automatismo mental das classificações. Há uma
poética na própria variação dos modos de apreensão poética. No su-
porte papiro, papel ou pendrive, questão de somenos: guardaremos
certamentea memória e a pulsão dessa inscrição peculiar de nossas
experiências vividas ou sonhadas, a literatura. A noção de poética
do texto prevalece: Cobo Borda, crítico e poeta colombiano, diz que
no contemporâneo a poesia desaguou para a prosa. Com Aristóteles,
a questão se resolve cedo: a poesia é mimese – e os critérios que ele
usa: poesia é metro e é também representação. Em que pese a discor-
dância veemente e moderna encabeçada por Mallarmé e seguida por
boa parte dos poetas até a contemporaneidade. No mínimo, as coisas
se entrecruzam, poièsis e logos – poesia e prosa estão plenamente na
sensibilidade moderna. Genette junta: há aqui a dictio e a ficcio – isso
explica a concepção de poeta que a tradição popular mantém: uma
máquina de fazer rimas em eco, eco, eco. Desde o início da Poética,
o conceitual é mais polêmico que pacífico.
Outra leitura onde divergimos do clássico: ali cada qual deve sa-
ber e fazer seu papel, como bem pede Aristóteles; a modernidade nos
pede aptidão a muitos papéis. A relação com a teoria dos gêneros ali
é imediata: imitar, simular, querer ser mais ou ser outro é negativo;
ora, a modernidade assume a cisão do sujeito com o orgulho de uma
condenação reivindicada.

227
Um giro através da noção de gênero em literatura

No entanto, a convenção dos gêneros segue sendo necessária.


Mesmo quando instala o novo dentro do protocolo consabido. Por-
que o força a largar o enquadramento do consenso sobre o gêne-
ro. Rimbaud, quando impaciente e lúcido, cobra de Baudelaire uma
forma mais adequada àquele momento de fratura social. Guimarães
Rosa “força” o romance brasileiro a sair da dicotomia romance rural,
romance urbano – a travessia no fundo da linguagem é que carrega
riqueza imprevisível de índices culturais. Mas ainda guarda a conven-
ção do romance, malgrado a violência formal inovadora, a criativida-
de desnorteante. O texto novo modifica, reforma – e mesmo quando,
grande, se insurge contra a convenção, é ainda diante do gênero que
ele se põe; e a que se opõe. É, portanto, dentro da pragmática dos gê-
neros que o texto se põe; seu gesto se instala dentro do protocolo, da
convenção literária. Assim, em 1902, Os sertões desnorteavam leito-
res e críticos por já ser um texto estruturado na conjunção de regis-
tros: o sociológico, o antropológico, o histórico, com marcada pontu-
ação científica – e nenhum desses aspectos isolados atingia a enorme
força criativa e crítica, própria do modo literário ali investido. Ainda
recentemente um crítico considerável feito Luís Costa Lima recusa-
va ao texto sua legitimidade literária à partentière. Advoguei causa
contrária, em Fato e fábula (1999); comigo, o crítico português Casais
Monteiro e Berthold Zilly; e Leopoldo Bernucci, atualmente na cáte-
dra Russel H. e Jean H. Fiddment em Estudos Latino-americanos na
Universidade da California, em Davis, EUA. Claro, nossa querela não
se arma em ponta de faca, mas em argumentações que respondem
a enfoques e sensibilidades literárias diferentes frente ao texto que,
grande, apesar dos equívocos, segue sendo um dos marcos consti-
tuintes e fundadores de nossa cultura literária. Seu enquadramento
fosse incerto, nunca é menor o impacto no leitor atento. O nãores-
peito às convenções e aos protocolos não impede o acesso à obra. É o

228
Lourival Holanda (UFPE)

caso, recente, de Aos 7 e aos 40, de João Anzanello Carrascoza (2013):


a inovação do gênero aqui passa pela ousadia do estilo, pela surpresa
da forma e pela diagramação proposital. A surpresa que satisfaz, an-
terior mesmo à noção de gênero, dá o tom do texto contemporâneo.
O texto de Verônica Stigger – Opisanie Świata (2013) – desnorteava e
surpreendia pela fusão de registros; ontem, com a poesia visual dos
Calligrammes, Apollinaire reabria as possibilidades de um gênero. A
severa lei da criação literária (porque implica esforço sobre o já feito)
permite, então, a liberdade de proposição; ou de reproposição que,
como no xadrez, renova, a cada lance, o jogo literário.
Em outro ponto, percebemos porque não há, propriamente,
uma discussão sobre os gêneros, em Platão e em Aristóteles: porque
a preocupação com o projeto político prima sobre os pormenores de
classificação entre o mimético e o fictício. Ou: entre o poético e o
representativo. O olhar está voltado para a cidade ideal, não o texto
ideal. O contemporâneo está atento menos às classificações e mais
às experimentações. Nos anos 70, enquanto os franceses no entorno
da Tel Quel arbitravam a extinção dos gêneros, na Colômbia, Cobo
Borda apontava o deslocamento do poético para a narrativa. A alta
qualidade poética da prosa latinoamericana testemunha essa fusão
feliz entre prosa e poesia. Tradição da transgressão? Porque desde
Baudelaire o poema em prosa e o verso livre abrem caminho para a
fusão dos gêneros que define o contemporâneo. A riqueza do Livro do
desassossego torna inócua qualquer classificação; Flaubert sonhan-
do com a obra sobre nada, a Obra total arquitetada por Mallarmé.
Sem sequer necessidade de um termo esdrúxulo para nomeá-la. Isso
contraria o regime da cidade política em Aristóteles: cada um deve
fazer uma coisa, e uma coisa só. Se alguém começa a imitar muitas
coisas ao mesmo tempo, “não há entre nós ninguém assim; nem es-
peramos que haja”[398]. Se poeta, faça versos com essa medida; se

229
Um giro através da noção de gênero em literatura

trágico, com esse tom – nada disso perdura na cultura contempo-


rânea; aquele modo diz o tempo e os valores ali vigentes. Mas, aqui,
já há outro conhecimento da singularidade do indivíduo e de suas
possibilidades. Importava, na república antiga, que cada qual sou-
besse seu papel: se soldado, se camponês, se poeta. Neste ponto con-
vergem Platão, Aristóteles e Horácio – são os “ares de um tempo” que
perduraram muito. A compreensão da modernidade é bem outra:
Bakhtin louva em Dostoievski justamente a impressão que este dá de
não parecer ser um, mas muitos. [Bakhtin virou evidência nas notas
acadêmicas, mas aqui não é sequer citação, mas apenas referência].
Os encaixes ou a coordenação dos atos de fala, isso faz a complexi-
dade e a força do texto literário. Baste como exemplo um romance
recente, Lisario – o il piacere infinito dele donne, de Antonella Cilento
(Mandadori, 2014); um contraponto feliz aos tantos tons cinzas da
literatura contemporânea; aqui há a maestria de um texto literário
que serve ao erotismo fabuloso; l´uso ricercato del linguaggio faz toda
a diferença; e lá a autora diz: “Todas as naturezas estão dentro de
mim”. Certamente Aristóteles não assinaria isso – e, no entanto, faz
parte da sensibilidade contemporânea. Há uma enorme plasticidade
em nossas possibilidades; e recusamos nos resignar a um papel, a
um lugar. É próprio do macaco passar por muitos galhos. A mobili-
dade, a versatibilidade, a leveza alerta. O texto que vira teatro, que
vira filme, que vira dança. A transformação rende homenagem ao
momento criador inicial. Pena: depois, o inicial se torna, à força de
repetição, inercial.
Memória dos gêneros: é possível ver índice da classificação de
Quintiliano na raiz da impregnação do “martelo agalopado” no can-
cioneiro popular: na Instituição oratória, Livro X, ele aconselha os
poetas a ler, sobretudo, os hexâmetros; ora, são justamente os ver-
sos que ficaram, desde a tradição, introjetados na memória popular;

230
Lourival Holanda (UFPE)

porque se prestam bem ao poema narrativo e às descrições – tão ao


gosto do grande público ouvinte, cuja memória se estendia e disse-
minava na circulação do texto oral. Há, aqui, uma exposição sim-
ples [haplèdiégesis] que o verso de dez pés facilita e entrega melhor
à memória. Assim, pela frequentação, a memória do repentista sabe
melhor de Quintiliano que o excesso da teoria. E é assim, de oitiva
[auditiva], que se entende a enorme recepção popular dos versos de
Castro Alves ou de Augusto dos Anjos. O texto fala ao público, pouco
leitor, pela imagem e pelo ritmo. Com a circulação, com a reprodu-
ção, a inflação da forma no tempo, aquela ênfase findou sendo uma
definição do gênero poético. Ainda aqui se percebe a questão dos gê-
neros enquanto depositária da memória cultural. [Razão suficiente
para não suprimi-los das ementas; desafio em repensá-los constan-
temente na proliferação incessante de suas formas]. Porque as clas-
sificações, quando não subjugam, ajudam. É possível ver na teoria
dos gêneros um conhecimento que inclua, mas também transborde
o saber classificatório. Necessário, mas sempre insuficiente – sobre-
tudo nas coisas literárias. Há a necessidade de, guardando a baliza
dos antigos, encarar os gêneros de acordo com critérios mais condi-
zentes com a sensibilidade estética contemporânea.
Transgredir na questão gênero? Já se tornou um lugar comum
da literatura contemporânea. Já não é tanto a originalidade, como
na época dos românticos, mas a novidade o que conta – sobretudo
nas contas como imperativo categórico do Mercado. A necessidade
de classificar continua; é parte de nossa forma de tornar inteligível o
real. “E tudo isso – arranjar, dispor, organizar – o que é senão esforço
realizado – e quão desoladoramente isso é a vida!” (PESSOA, p.99).
Portanto, e à guisa de conclusão dessas considerações intempestivas,
a questão dos gêneros em literatura guarda ainda sua pertinência.
Somos aristotélicos: apenas, a categorias fechadas, preferimos dizer

231
Um giro através da noção de gênero em literatura

modais nossas classificações; e porque é ainda à sua sombra que me-


dimos divergência e memória. O giro recorrente pelas questões de
gênero, em literatura, impede o apagamento a que a indiferença leva.
Em alguns momentos é pela distância dele que definimos nossa po-
sição – como Tales ao pé da pirâmide: pela sombra dando conta de
sua dimensão real.

Referências

COMBE, Dominique. Poésie et récit: une rhétoriquedesgenres. Paris: Corti, 1989.


COMPAGNON, Antoine. Le démon de la théorie. Paris: Seuil, 1998.
CURTIUS, Ernest. Literatura e Idade Média Latina. Rio de Janeiro: INL, 1957.
DICTIONNAIRE des genres et notions littéraires. Paris: Albin Michel, 1997.
FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973.
HIRSCH Jr, Eric. Validity in Interpretation. Yale University Press: Yale, 1967.
LACOUE-LABARTHE, Philippe. L’imitation des modernes. Paris: Galilée, 1986.
LIMA, Luiz Costa. Mímesis – desafio ao pensamento. Florianópolis: UFSC, 2014.
PESSOA, Fernando. O livro do desassossego. Lisboa: Ática, 1997.
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1980.

232
9
Literatura e Teatro:
a palavra no palco
Darío Gómez Sánchez 1 (UFPE)

El teatro es la poesía que se levanta del libro y se hace huma-


na. Y al hacerse, habla y grita, llora y se desespera
Federico García Lorca

Introdução

Dentro do campo de pesquisa das denominadas intersemioses,


cada vez é mais frequente o estudo das diversas relações que a litera-
tura estabelece com outras manifestações artísticas, como a música
e a pintura. Nessa perspectiva, uma das afinidades mais prolíficas
e interessantes é a que a literatura estabelece com as artes cênicas,
e mais exatamente com o teatro. Entre as múltiplas possibilidades
dessa relação, temos a inclusão ou complementaridade, a exclusão
ou oposição e a semelhança ou assimilação.
A noção de gênero dramático nos faz pensar no teatro como
parte do universo literário. Todavia, a história da literatura abunda
em referências a autores de teatro. Daí identificarmos uma inclusão
ou complementaridade entre as duas artes. Também é verdade que,
com a modernidade, as artes cênicas começaram uma busca pela
sua autonomia, com independência ou, por oposição ao componente
literário, determinando o questionamento do gênero dramático e o

1. dajego@hotmail.com

233
Literatura e Teatro: a palavra no palco

surgimento de um novo teatro. Finalmente, e desde a perspectiva


da estética da recepção, todo texto literário gera uma espécie de re-
presentação durante o processo de leitura, e nesse sentido pode ser
assimilado à escrita para teatro.
Nas seguintes linhas, procuraremos ilustrar, de maneira mais
introdutória que exaustiva, algumas das implicações que a relação
entre essas duas artes possibilita, fazendo ênfase no processo de se-
paração que aconteceu a partir do século XIX e com a intenção de
gerar prováveis linhas de reflexão relacionadas com o problemático
conceito de gênero dramático, dentro do vasto campo da intersemio-
se literatura/teatro.

O teatro na literatura

Seria impossível falar do denominado cânone ocidental sem fa-


zer referência aos autores de teatro: os grandes trágicos gregos, os
mestres da Renascença, os dramaturgos modernos são nomes pri-
mordiais na história da literatura. Shakespeare, por exemplo, não é
só um grande autor teatral, mas também um nome central da his-
tória literária e, em consequência, da história da humanidade: “o in-
ventor do humano”, como o apresenta o crítico literário americano
Harold Bloom. Aliás, é curioso perceber que hoje, nos 450 anos de seu
nascimento, Shakespeare parece reduzido a roteirista de filmes. As
novas gerações, mais dedicadas aos estudos culturais,estão perden-
do um dos maiores prazeres que a literatura pode oferecer: a leitura
das obras monumentais do Cisne de Avon. O famoso monólogo de
Hamlet sobre a dúvida, as palavras de Julieta quando acorda ao lado
de seu Romeo morto ou o estímulo à morte na voz de Lady Macbeth
são textos nos quais se faz presente a poesia encarnada num corpo.

234
Darío Sánchez (UFPE)

E a poesia, em toda sua possibilidade expressiva, está também


presente nos autores barrocos do teatro espanhol e nos autores neo-
clássicos franceses. Uma curiosidade: parece que os grandes drama-
turgos vêm em pacotes de três: Pierre Corneille, Jean Racine e Jean
Baptiste Molière na França neoclássica; Félix Lope de Vega, Pedro
Calderón de la Barca e Tirso de Molina no barroco espanhol; William
Shakespeare, Cristopher Marlowe e Bem Jonson na Inglaterra Isa-
belina; Esquilo, Sófocles e Eurípides na Grécia antiga. E falando do
clássico teatro grego, seus personagens são tão definitivos que ainda
fazem parte de nosso imaginário, como é o caso de Medeia ou Édipo.
E nem falar do valor literário do Coro: esse misterioso personagem
coletivo que, em ocasiões, fala textos líricos não poucas vezes hermé-
ticos e, outras vezes, sintetiza a história com parágrafos narrativos.
Assim como a poesia, a narrativa também está presente no te-
atro, no caso dos gregos, de Shakespeare ou de um autor mais con-
temporâneo como Bertold Brecht e seu teatro épico. Também por
esse caminho da mistura de gêneros, poderíamos pensar na adapta-
ção de textos narrativos para o teatro, como as excelentes teatraliza-
ções de O retrato de Dorian Gray ou, no caso brasileiro, da adaptação
de Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto com música
de Chico Buarque, sem falar das adaptações de textos literários para
o cinema, o que resultaria em um extenso desenvolvimento, assim
como o assunto dos roteiros de cinema que alcançam status literário.
O fato é que não seria possível descrever a história da literatu-
ra sem fazer referência ao teatro. Mas, se deixamos de lado o plano
histórico, também podemos evidenciar essa estreita relação de in-
clusão desde um plano teórico, partindo da noção de gênero dramá-
tico, a qual oferece um amplo espectro do que são as relações entre
literatura e teatro, seja de uma perspectiva clássica considerando só
a tragédia e a comédia, ou de uma consideração mais moderna, in-

235
Literatura e Teatro: a palavra no palco

cluindo a ópera e o teatro musical, assim como os gêneros híbridos


e o drama; seja de uma perspectiva mais contemporânea, incluindo
nesse gênero formas como a teledramaturgia presente nas novelas
latino-americanas, tão desprezadas no âmbito acadêmico.
Mas essa riqueza incontestável do gênero dramático é também
sua maior dificuldade com relação a uma perspectiva literária; isso
porque, em sua diversidade, o teatro se afasta da literatura e aca-
ba fundando um campo à parte. Falamos, então, de uma relação de
oposição, de um divórcio entre literatura e teatro.

Literatura VS. teatro: a dissolução do


gênero dramático

A oposição entre literatura e teatro obedece à evolução da prá-


tica teatral a partir do surgimento do Drama e dos gêneros híbridos,
por oposição ao denominado teatro clássico, durante o século XIX,
e posteriormente com o desenvolvimento das diversas correntes do
teatro moderno e do teatro de vanguarda na primeira metade do sé-
culo XX. É na diferenciação entre a teoria clássica e a teoria moder-
na dos gêneros literários, e mais exatamente no Romantismo, que a
relação de inclusão do teatro na literatura começa a ser questionada
até o ponto de chegarem a ser, nos começos do século XX, mutua-
mente excludentes.
A liberdade criativa promovida pelos românticos afeta especial-
mente ao teatro com a aparição de gêneros híbridos como a tragico-
média, o melodrama e, principalmente, o drama, os quais rompem
com a unidade apregoada pelo teatro neoclássico e misturam ele-
mentos de diversas índoles: a comédia e a tragédia, o nobre e o po-
pular, a prosa e o verso, todos na busca de impactar e de responder
às necessidades de um novo público que já não se identifica com as
grandes situações representadas durante o Renascimento.

236
Darío Sánchez (UFPE)

Exemplos desses dramas românticos são, na França,  Herna-


ni ou Cromwellde Victor Hugo; e no Romantismo espanhol, Don Ál-
varo o La fuerzadel sino do Duque de Rivas, El trovador de Antonio
García Gutiérrez, Los amantes de Teruel de Juan Eugenio Hartzenbus-
ch e, muito especialmente, o Don Juan Tenorio de José Zorrilla, cujo
personagem principal sintetiza muitas das características do herói
romântico. Mas esses dramas românticos, ainda que revolucionários,
são caracterizados pela precisão do conflito, a progressão da intriga e
a unívoca concepção da personagem; características que só começam
a ser definitivamente questionadas nos finais do século XIX.
Isso porque, estimulado pelas teorias psicoanalíticas que fazem
do subconsciente uma “personagem”, o teatro começa a dar prepon-
derância a um universo relativizado onde se reconhece a possibili-
dade dos microconflitos ou de um conflito interno e inconsciente
do indivíduo. Trata-se do começo da dissolução da escrita dramática
como gênero literário e cujas origens mais evidentes se encontram
em obras como Casa de bonecas de Henrik Ibsen, As três irmãs de
Anton Tchekhov e A senhorita Julia de August Strindberg. Graças
a esses autores, o teatro quebra definitivamente as amarras que o
prendem formal e ideologicamente com a concepção clássica da arte,
orientando-se para novos horizontes.
Por outro lado, o Simbolismo teatral, assim como o Naturalismo,
evidencia a preocupação do artista diante do aparente equilíbrio da
sociedade burguesa e centram o seu interesse no trágico cotidiano;
mas, em oposição à concepção positivista – ainda presente em Ibsen,
Tchekhov e, em menor medida, em Strindberg –, os autores simbo-
listas procuram aceder a outras dimensões da realidade se ocupando
da sugestão, do mistério e do mundo invisível, e operando uma es-
pécie de retardamento ou aprazamento do conflito dramático, eixo
fundamental do teatro clássico.

237
Literatura e Teatro: a palavra no palco

É o caso de Maurice Maeterlinck, quem ressalta a importância


da presença da morte e das forças misteriosas, intangíveis e desco-
nhecidas, todo o qual se materializa nos seus denominados dramas
estáticos, como Os cegos. Também Fernando Pessoa escreve um dra-
ma estático: O Marinheiro. E em consonância com esse resgate do
oculto,os autores simbolistas se preocupam por instaurar um lugar
para a poesia no teatro, o que, paradoxalmente, acaba estimulando a
progressiva separação entre o texto dramático e o espetáculo ou, em
outros termos, uma liberação da tutela literária no teatro.
Derivado dessa crise do drama e simultaneamente com o auge
do Realismo, faz sua aparição a figura do diretor de cena, que co-
meça uma exploração das novas linguagens cênicas: luzes, sons, re-
cursos cenográficos. Durante a maior parte do século XIX, as ideias
arquitetônicas e cenográficas se mantiveram inalteráveis, mas as
exigências de liberdade criativa que começaram com os autores ro-
mânticos conduziram, nos finais da centúria, a uma redefinição da
arte dramática em seus aspectos mais diversos. Fundamental nesse
sentido foi a construção do monumental  teatro de ópera Festspie-
lhaus de Bayreuth, na Alemanha, erigido em 1876 de acordo com as
instruções do compositor Richard Wagner, constituindo a primeira
ruptura aos modelos italianos. Seu desenho em abanico, com a pla-
teia escalonada, o obscurecimento do auditório durante sua repre-
sentação e a locação da orquestra num pequeno fosso, eram elemen-
tos concebidos para centrar a atenção dos espectadores sobre a ação
e abolir ao máximo possível a separação entre o público e o cenário.
A crescente importância concedida à figura do diretor e a exi-
gência de integração entre o marco arquitetônico, a cenografia e a
representação foram acentuadas nos últimos decênios do século XIX
e primeiros do século XX com a aparição de personalidades como
o alemão Max Reinhardt, autor de espetaculares montagens,o rus-

238
Darío Sánchez (UFPE)

so Constantin Stanislavski, diretor e ator cujo método de interpreta-


ção exerceria grande influência sobre o teatro moderno, e o cenógra-
fo britânico Edward Gordon Craig, que em sua defensa de um teatro
poético e estilizado advogou pela criação de cenários mais simples
e dúcteis. A aparição do teatro moderno se caracterizou, pois, pela
absoluta liberdade de propostas mediante o diálogo de formas tra-
dicionais com novas possibilidades técnicas, as quais deram lugar a
uma singular transformação da arte teatral baseada na autonomia
do espetáculo.
A maior independência do teatro com relação ao componente
verbal ou literário está diretamente relacionada com a dissolução
progressiva da escrita dramática. Enquanto os dramaturgos do sé-
culo XIX põem em questão a noção de conflito, os criadores teatrais
dos começos do século XX (que não são só dramaturgos) geram uma
ruptura com a noção de representação, a qual se manifesta, entre
outras formas, a partir do questionamento da função comunicativa
da linguagem. A língua é estruturalmente desarticulada com a in-
tenção de atacar a base lógica do pensamento e também de atacar
metaforicamente a organização social ou econômica da sociedade. A
intenção é produzir uma alteração das funções do signo linguístico,
afetando a compreensão do conteúdo e questionando a possibilidade
da transmissão de uma mensagem. Assim sendo, a linguagem perde
seu valor denotativo realista ou conotativo simbolista para entrar no
plano da ambiguidade, o non sense e o humor.
Entre os movimentos da vanguarda se incluem geralmente Fu-
turismo, Dadaísmo, Cubismo e Surrealismo; mas,no nível teatral,
a referência ao teatro de vanguarda é muito mais ampla e impreci-
sa, pois abarca desde o Expressionismo alemão até as performan-
ces norte-americanas, passando pelo teatro intimista, o teatro do
absurdo e o antiteatro. Em termos gerais, trata-se de um teatro ali-

239
Literatura e Teatro: a palavra no palco

mentado por uma ânsia de originalidade e provocação, pela desin-


tegração da linguagem e a manifestação permanente de um estado
de crise com o objetivo de colocar em questão os valores morais e
institucionais vigentes.
Historicamente vários estudiosos coincidem em considerar a
Ubú Rey (1896) de Alfred Jarry e a Seis personagens a procura de au-
tor (1921) de Luigi Pirandello, como as peças precursoras e fundado-
ras do teatro vanguardista. Na primeira, apresenta-se um retrato an-
tecipado das consequências sangrentas dos abusos da burguesia com
uma linguagem e uma estrutura formal revolucionárias, evidentes
desde a primeira fala: “Merde!” – dela diz André Breton que é “a gran-
de peça profética vingadora dos tempos modernos”. Pela sua parte,
a obra de Pirandello – da qual diz Bernard Shaw que é “a obra mais
poderosa e mais original de todos os teatros, antigos e modernos, de
todos os tempos”– com seu argumento totalmente inaugural e cujo
processo de gestação está detalhado num texto do próprio autor so-
bre a criação artística, gera múltiplas transformações cênicas, entre
elas a “des-psicologização”e a relativização da personagem, a trivia-
lização do conflito dramático e o rompimento da quarta parede: ca-
racterísticas gerais do que logo depois vai se denominar o antiteatro.
É no interior desse movimento do Absurdo que surge um au-
tor cujos revolucionários delineamentos vão ser fundamentais neste
processo de catarse teatral diante da crise da modernidade: Antonin
Artaud, quem, em oposição radical à verossimilhança psicológica,
recorre às formas rituais e à exaltação mágica com sua proposta do
Teatro da crueldade,na qual se continua com o progressivo rompi-
mento da função preponderante do literário ou verbal.
O Expressionismo alemão (alguns de cujos rasgos já aparecem
em parte da obra de Strindberg) surge a princípios do século como
uma oposição ao retrato naturalista individual para apresentar a ra-

240
Darío Sánchez (UFPE)

diografia, a vida interior da condição humana entendida como abs-


tração. Seguidor dos delineamentos do Teatro Documental de Erwin
Piscator, para quem o fundamental é a dramatização do cotidiano
inscrito no histórico, Bertold Brecht procura mostrar o mundo tal
como é e, especialmente, modificá-lo a partir da ação cênica; e, para
isso, aproveita as conquistas prévias dos experimentalismos teatrais,
tais como a posta em interdito da noção do conflito e do estatuto da
representação, mas vai lograr transcendê-las com sua preocupação
pela função social do teatro.
O ponto de partida do teatro épico é a modificação das relações
teatrais convencionais: entre as personagens, a cena e o público, o
texto e a interpretação, os atores e o diretor. No teatro clássico– e in-
cluso no drama burguês antes de Ibsen –, as personagens são carac-
teres bem definidos, o conflito está claramente delimitado, a lingua-
gem verbal é o eixo da representação e esta se sustenta na ilusão de
realidade, favorecendo assim a identificação acrítica do espectador.
Para Brecht, a personagem é um ser contraditório, relativo, definido
pelas ideologias e não por si mesmo; o conflito não é autônomo senão
uma construção cênica, a multiplicidade das linguagens (gesto, mú-
sica, palavra) é definitiva para a posta em cena e tanto o ator como
o espectador têm consciência de que se trata de uma representação.
Trata-se de substituir a emoção paralisante do teatro convencional
por uma emoção intelectual que favoreça o diálogo entre o especta-
dor e o espetáculo, e isto só é possível reconhecendo a realidade com
estranheza, gerando distância entre as personagens e o espectador.
Propõe Brecht que, para o perfeito rendimento desta interpre-
tação que renuncia a uma transformação completa e procura distan-
ciar a expressão e o comportamento da personagem, três expedientes
poderão ser utilizados: a transposição para a terceira pessoa; a trans-
posição para o passado; e a introdução de comentários e instruções

241
Literatura e Teatro: a palavra no palco

técnicas; mediante a conjugação de todos estes processos, o texto se


distancia no decorrer dos ensaios e, por via de regra, assim se man-
tém nas representações. Nesse sentido, o texto já não é mais uma
expressão referencial ou emotiva, e sua função comunicativa é posta
em xeque, já não com o humor ou a ironia das vanguardas, senão(,)
principalmente com o reconhecimento contínuo do valor relativo,
testemunhal, parcial, ideológico ao fim, das falas das personagens.
O drama romântico e o drama moderno, o Simbolismo e o Na-
turalismo, o Realismo e o diretor de cena, o Teatro do Absurdo e o
Expressionismo são alguns dos momentos cruciais no processo de
separação entre a literatura e o teatro. O importante é destacar que
durante esse processo se consolida a oposição entre uma escrita para
o teatro, que pode ser entendida como um objeto verbal (gênero li-
terário) ou um objeto plástico (instrução cênica), e que essa oposição
pode ser expressa em outros termos: leitor vs. espectador, texto vs.
representação e linguística vs. semiótica, cada um dos quais reque-
reria um desenvolvimento particular.

O teatro como literatura e a literatura


como teatro

Ainda que nos dois últimos séculos o teatro tenha tentado rom-
per definitivamente com a linguagem verbal e com a condição de
gênero literário, é fato que a palavra continua sendo a ferramenta
de trabalho do escritor de teatro. Mais ainda: existem estudos que
falam de um retorno ao autor nas décadas finais do século passa-
do, mas ao autor entendido como dramaturgo, no sentido originário
desse vocábulo.
Dramaturg, na sua acepção originária em alemão, refere-se ao
fazedor teatral que reúne e organiza diversos elementos teatrais, en-

242
Darío Sánchez (UFPE)

tre eles um conjunto de atores e um texto literário. Na acepção em


línguas românicas a palavra é restringida ao autor de teatro. Mas
o dramaturgo e o drama reúnem ambas as dimensões: o verbal e o
teatral. E é precisamente essa noção de dramaturgo que serve para
confirmar essa dupla dimensão da escrita teatral, a qual implica o
verbal e o cênico, o literário e o teatral. Um exemplo desse dramatur-
go no sentido moderno poderia ser o nome de Heiner Müller, quem
escreve textos dramáticos desde uma perspectiva performática.
O mais importante neste ponto é reconhecer que o teatro é uma
superposição de códigos (linguísticos, cinésicos, proxêmicos, lumí-
nicos etc.) – espessura de signos – e nele podem ser identificadas
duas dimensões: a dimensão verbal ou literária e a dimensão teatral
ou performática.
Mas é evidente que desde uma teoria clássica dos gêneros não é
mais possível pensar essa dupla dimensão da escrita dramática. Aqui
a linguística do texto e a semiótica aparecem como os instrumentos
teóricos mais pertinentes ao propor as noções de texto dramático e
texto do espetáculo, e entre essas duas instâncias o texto de ence-
nação: resultante do componente linguístico, as condições cênicas
nele inscritas e as lagoas mentais. É partindo desse texto da ence-
nação (cuja manifestação concreta é o texto dramático) que o leitor
(e posteriormente o diretor e o ator) realiza a representação, uma
representação que, no caso do leitor, não é mais real, mas mental. E
aqui entramos no espaço da estética da recepção e da caracterização
do literário como uma atividade da recepção e não da produção. As-
sunto que reclamaria um desenvolvimento particular.
Mas, para fechar essas anotações, gostaria de pensar que se todo
texto dramático é um texto literário pelo fato de ser verbal, também
seria possível pensar que todo texto literário é um texto dramático,
no sentido que propõe uma realização cênica que não tem de ser ne-

243
Literatura e Teatro: a palavra no palco

cessariamente real. E também no sentido de que a literatura é uma


encenação da palavra. De fato, o leitor de um romance ou um conto
realiza uma representação dos personagens e das ações, uma ence-
nação da narração. E o poeta se preocupa não só pelo sentido e o
som, mas também pela disposição dos significantes na página, como
um cenógrafo ou como um pintor. Nessa perspectiva, toda a litera-
tura é teatro: proposta de representação. E, como diria Shakespeare,
o mundo é um teatro.

Referências

Hausser, A.Historia social del arte y la literatura. Tomo 2 . Trad.: A Tovar.


Barcelona: Labor, 22ª ed.,1993.
Rebello, L.F. Teatro moderno.Lisboa: Prelo, 1964.
Strindberg, A.Senhorita Julia.(Prefacio). Trad. Mario da Silva. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 1977.
Marinetti, F. T.“Fundação e Manifesto do teatro futurista”.In: Bernardini, A.
F.(org).O Futurismo Italiano – manifestos. São Paulo: Perspectiva, 1980.
Templado García, J.La crisis del lenguaje en el nuevo teatro español.
Madrid:Universidad Complutense, 1996.

244
10
Os Dois Teodoros: mutações do
gótico de Horace Walpole a
E. T. A. Hoffmann1
André de Sena (UFPE)

As pioneiras experiências estéticas relativas ao gótico literário,


em sua vertente ligada ao horror, se embasaram exponencialmen-
te nos motivos noturnos como contraproposta sui generis ao classi-
cismo iluminista da segunda metade do século XVIII, este, grosso
modo, defensor das regras de composição e decoro literários, de uma
postura pragmática no plano científico e do mimetismo pautado em
aspectos moralistas e propedêuticos.
Digo sui generis pelo fato de que, impondo-se aos poucos como
fecundo e original veio ficcional – aparentemente em tudo contrário
à Aufklärung –, o gótico, em seus inícios, também endossou um tipo
de mímese própria que, se por um lado, ofereceu infinitas possibi-

1. As ideias que servem de substrato a este artigo foram inicialmente apresentadas e discutidas na palestra
intitulada “Mutações do gênero horror na literatura oitocentista”, durante o V Encontro Acadêmico
Gêneros na Linguística e na Literatura, evento do Núcleo de Investigações sobre Gêneros (NIG), no
Auditório do Centro de Artes e Comunicação da UFPE, no dia 19 de setembro de 2014. Posteriormente,
transformou-se em artigo escrito, que foi publicado na revista semestral Soletras, de número 27
(segundo semestre de 2014, págs. 11-31), do Departamento de Letras da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (UERJ). O artigo compõe um dossiê especial sobre a literatura gótica, organizado pelos Profs.
Drs. Fernando Monteiro de Barros Jr & Júlio César França Pereira. A revista possui ISSN 23168838, está
indexada em Qualis/CAPES (B4) e pode ser acessada no endereço eletrônico http://www.e-publicacoes.
uerj.br/index.php/soletras/article/view/11273. Esta é uma re-publicação, sem modificações, a pedido
do NIG/UFPE, do artigo original publicado na Revista Soletras.

245
Os dois Teodoros: mutações do gótico de Horace Walpole e E.T.A. Hoffmann

lidades imaginativas para ulteriores diegeses, por outro, continuou


atento à necessidade de um certo controle, de uma verossimilhança
ainda cara aos artefatos ficcionais setecentistas como um todo.
Exemplo icônico disso é o livro O Castelo de Otranto (1764), de
Horace Walpole (1717-1797), em cuja composição se fazem presentes
tanto a verossimilhança de base mimética (Romantismo mimético)
do romance histórico, como os elementos ligados ao horror sobre-
natural ou de origem humana, atinentes a uma escrita imaginativa
e não mimética (Romantismo imaginativo), além de sobrevivências
classicistas.
No “Prefácio” à primeira edição do livro, Walpole, sob pseudô-
nimo, opta por um procedimento que fará escola no Romantismo,
quando, ficcionalmente, afirma ser a obra a publicação póstuma de
um antigo manuscrito medieval, de origem italiana, que hipotetica-
mente estaria datado entre 1095 e 1243, épocas da primeira e última
Cruzadas, respectivamente. A escolha de tal cronotopo não é aleató-
ria, já que a ontologia medieval acataria os elementos sobrenaturais
e maravilhosos:

Os milagres, as visões, a necromancia, os sonhos e outras coi-


sas sobrenaturais são hoje assunto explorado mesmo fora dos
romances. No tempo em que o nosso autor escrevia, as coisas
não eram assim; muito menos o seriam na época em que se
supõe que a história tenha acontecido. A crença em toda a
casta de prodígios estava tão enraizada nessas épocas obscu-
ras que autor que não os referisse era infiel aos costumes do
tempo. Não era obrigado a acreditar, mas tinha de represen-
tar os seus actores como crentes. (WALPOLE, 1978, p. 18)

Ao situar sua história em tempos em que – acreditava-se – as


experiências sobrenaturais seriam mais comuns, Walpole estaria re-
alizando, de antemão, uma espécie de mea culpa, defendendo-se de

246
André de Sena (UFPE)

uma escrita que não seria unicamente pautada pelo estro mimético?
A pergunta é pertinente, pois, noutras passagens do mesmo “Prefá-
cio”, o autor revelará ânsias classicistas ao discutir o fim da obra e os
caracteres de seus personagens, descritos à semelhança dos elemen-
tos que configurariam uma típica tragédia:

Tudo tende para a catástrofe. A atenção do leitor nunca so-


fre afrouxamento. As regras do drama são sempre seguidas
ao longo do desenrolar da peça. As personagens são dese-
nhadas com mestria e segurança. O terror, que é o principal
artifício do autor, evita que a história alguma vez decaia em
vivacidade; tem na piedade um tal contraponto que a mente é
obrigada a fixar-se constantemente na luta entre paixões tão
adversas. Talvez algumas pessoas achem que as personagens
dos criados são demasiado pouco sérias, se comparadas com
o nível geral da história. Mais do que na oposição às perso-
nagens principais, o engenho do autor é bem visível no modo
como pinta os subalternos. Há na história muitas passagens
essenciais que, só pela naiveté e simplicidade deles, podiam
ser trazidas à luz: mormente, no último capítulo, o terror ti-
picamente feminino e a fraqueza de Bianca, que, progressiva-
mente, se ergue até ao auge da catástrofe. (...) [Não sou] tão
cego que não veja os defeitos do autor que traduzo. Eu gosta-
ria mais que ele tivesse baseado o seu plano numa moral mais
útil que aquela em que se baseia: serem os pecados dos pais
castigados na pessoa dos herdeiros, até à terceira e quarta
geração. (WALPOLE, 1978, p. 19)

O excerto revela as preocupações usuais que norteavam a cria-


ção de obras artísticas naquele período (século XVIII). O olhar clas-
sicista e mimético está presente na configuração da catástrofe, na
constatação da unidade de ação, no pedido de desculpas por se co-
locar numa mesma cena personagens nobres e plebeus, na neces-

247
Os dois Teodoros: mutações do gótico de Horace Walpole e E.T.A. Hoffmann

sidade de um escopo moral bem definido e até mesmo nomeado,


para contrabalançar a hybristrágica... Por outro lado, a experiência
do “terror” é nova, apesar de baseada, aparente e conceitualmente,
nas exigências da imitativo pseudo-aristotélica típica do classicismo
(lembremos ainda que o “terror” se conjuga, no excerto acima, à “pie-
dade”, como se prefigura na Poética aristotélica). Ao fim e ao cabo,
atutela conceitual servirá de apoio ao óbvio incremento do “terror”
– em medidas discretas, amparadas no decoro, tão caro à irrupção da
catarse nas tragédias clássicas – presente e preponderante em toda
a tessitura d’O Castelo de Otranto, como fica evidente ao longo de
sua leitura. Assim, baseando-se inicialmente em premissas classicis-
tas, o gótico assegurará novos construtos ficcionais, a reverberar um
imaginário (noturno) até certo ponto inaugural (sem nos esquecer-
mos do dionisíaco existente no aticismo) e a delinear seus próprios
procedimentos inaugurais referentes ao universo da narrativa: esti-
lísticos, cronotópicos, tipológicos, tópicos etc.
O incremento do “terror” nas diegeses góticas – assegurado,
como dito, pela plena ocorrência do maravilhoso no cronotopo me-
dievo – dará ensejo a todo um universo ligado à expressão do so-
brenatural, ainda que modalizado pela perspectiva mimética do ro-
mance histórico. O sobrenatural, no gótico inicial, cria fissuras num
universo em que o “terror” já se encontra instalado, graças às atmos-
feras opressivas e noturnas nas quais deambulam os personagens. As
atitudes hybristas do protagonista Manfredo, príncipe de Otranto,
acusam ainda a tópica medieval do desconcerto do mundo, contudo
reconfigurada numa nova cravelha, que revela um novo horizonte de
expectativas por parte do público setecentista, aparentemente ávido
de brumas literárias.
O sucesso entre os leitores realmente demandará novas edições.
No “Prefácio” à segunda edição d’O Castelo de Otranto, publicada

248
André de Sena (UFPE)

um ano depois, Walpole sai do anonimato e discute os conceitos de


imaginação e verossimilhança, ao tratar do que chama de romance
“antigo” (narrativas medievais e renascentistas) e “moderno” (sete-
centista), defendendo a união das características de ambos, para a
geração do que hoje compreendemos como romance gótico:

Grande cometimento é querer combinar dois gêneros de ro-


mance, o antigo e o moderno. Naquele tudo é imaginação e
inverossímil; neste, há sempre a pretensão, por vezes conse-
guida, de copiar fielmente a natureza. Não há falta de imagi-
nação; mas têm sido condenados os grandes recursos de fan-
tasia, em favor de uma rigorosa obediência à vida quotidiana.
A razão de nesta última espécie de romance a Natureza ser
empecilho à imaginação, a razão está no facto de querer des-
forrar-se por, nos antigos romances, ter sido completamente
posta de lado. Os actos, sentimentos e falas dos heróis e hero-
ínas de antigamente eram tão pouco naturais como os meca-
nismos que os moviam. Achou o autor da presente obra que
era possível reconciliar esses dois gêneros. Desejando deixar
aos poderes da fantasia liberdade para se espraiarem pelos
reinos ilimitados da invenção, criando a partir daí situações
mais interessantes, houve o autor por bem descrever os mor-
tais agentes do seu drama de acordo com as normas da veros-
similhança, ou seja, pô-los a pensar, a falar e a agir como é
suposto que devem agir todos os homens e mulheres que de-
frontam situações extraordinárias. (WALPOLE, 1978, p. 24)

Este segundo “Prefácio” é importantíssimo no que toca aos pri-


meiros passos teóricos atinentes ao progressivo afastamento que o
Romantismo autoconsciente ulterior proporá em relação ao real e à
mímese, para a gestação de enredos imaginativos. A mediania pro-
posta por Walpole para o novo romance de sua época – consensual
entre os aspectos sobrenaturais e verossímeis, norteada pela “inven-

249
Os dois Teodoros: mutações do gótico de Horace Walpole e E.T.A. Hoffmann

ção” e não mais pelo decoro – constitui um dos primeiros momentos


afirmadores da “imaginação” romântica pela vertente inglesa, numa
longa jornada da qual participará todo o continente literário euro-
peu. O próprio Walpole antevê isso, quando afirma:

Se esta nova estrada por ele [o autor d’O Castelo de Otranto]


aberta puder facilitar o caminho a homens de mais brilhan-
tes talentos, o autor não deixará de reconhecer, com todo o
gosto e modéstia, o facto de sempre também ter tido a cons-
ciência de que o seu esquema era passível de um embeleza-
mento superior ao que a sua imaginação e a sua pintura das
paixões lograram conseguir. (WALPOLE, 1978, p. 24)

De mais a mais, uma vez que o romance conquistou sucesso


entre os leitores, Walpole pôde obliterar, neste segundo “Prefácio”,
os aspectos ostensivamente classicistas do anterior, e assegurar, con-
ceitualmente, os elementos imaginativos caros à/ao série/estética/
gênero/modo nascente (o gótico e a própria literatura romântica). A
presença de personagens plebeus, explicitada de forma negativa no
primeiro “Prefácio”, agora será percebida sob um novo prisma, tam-
bém pioneiro no que toca aos estudos sobre a binomia romântica – a
conjunção entre o sublime e o grotesco, Ariel e Caliban:

A respeito do comportamento dos criados, a que já me refe-


ri no prefácio anterior, seja-me permitido acrescentar mais
umas palavras. A simpleza dos ditos criados, que quase tende
para o ridículo e que a princípio parece em desacordo com a
seriedade da obra, sempre se me afigurou, mais do que apro-
priada, muito adaptada ao fim em vista. A minha norma era
ser natural. Embora sejam graves, importantes e merencó-
rias, as sensações dos príncipes e dois heróis não apresentam,
nos seus criados, cunho idêntico; pelo menos, estes últimos
não exprimem nem podem exprimir as suas paixões com

250
André de Sena (UFPE)

idêntica dignidade. Na minha humilde opinião, o contraste


entre o sublime de uma coisa e a naiveté da outra coloca o
carácter patético dos primeiros em maior evidência [...]. Mas,
mais importante do que a minha opinião a esse respeito, é a
desse grande mestre do natural, Shakespeare, cujo modelo eu
copiei. Deixai que vos pergunte se as tragédias de Hamlet e
de Júlio César não perderiam uma parte considerável do seu
espírito e das suas maravilhosas belezas no caso de o humor
dos coveiros, as tolices de Polônio e as facécias desajeitadas
dos cidadãos romanos serem omitidas ou transformadas em
falas heróicas? (WALPOLE, 1978, pp. 24-25)

O conúbio entre o sublime e o grotesco é ensaiado por Walpole


ainda no século XVIII, mais de 60 anos antes das teorias de Vic-
tor Hugo (1802-1885) sobre o mesmo tema, enfeixadas no prefácio à
sua peça Cromwell (1827). A defesa walpoliana da binomia culmina
num franco elogio a Shakespeare (que Hugo também repetirá) e em
diversas críticas à obra ficcional e teórica de Voltaire – a antecipar
também o Racine e Shakespeare (1825) de Stendhal (1783-1842) – ao
longo de várias páginas, que reverberam uma postura anticlassicista
e a defesa de um novo tipo de literatura, em que o real (diegético)
não prescinde do grotesco e do sobrenatural.
Shakespeare substitui Aristóteles – ou a leitura ideologizada que
o classicismo faz das teorias deste –, como patrono da nova literatu-
ra, no segundo “Prefácio”. Por outro lado, não há cenas e passagens
como esta, d’O Castelo de Otranto, no teatro do bardo de Stratford-
-upon-Avon:

Crendo, pelo que podia observar, que estava perto da aber-


tura da cripta, aproximou-se da porta que tinha visto en-
treaberta. Uma súbita corrente de ar vinda da dita porta
apagou-lhe nesse momento a luz e ela ficou mergulhada na
mais completa escuridão. Não há palavras que possam des-

251
Os dois Teodoros: mutações do gótico de Horace Walpole e E.T.A. Hoffmann

crever o horror em que a princesa ficou. Sozinha em tão


tenebroso local, com a mente povoada pelos terríveis acon-
tecimentos. (WALPOLE, 1978, pp. 47-48)

A cena da escuridão abrupta em que um personagem – estando


ou não em fuga – se vê lançado, com óbvias associações sobrena-
turais, ainda hoje é repercutida ao infinito pelo cinema de horror e
tem sua origem na obra de Walpole. Neste caso específico, trata-se
da personagem Isabella, perseguida ao longo dos corredores escu-
ros e masmorras pelo príncipe Manfredo, após a morte do filho des-
te, Conrado, com quem aquela iria se casar. Ansioso por continuar
sua linhagem e gerar um novo herdeiro, Manfredo passa a desprezar
suas virtuosas filha e esposa – esta última, por conta de não mais
poder conceber – e de maneira insana tenta desposar Isabella, an-
tes mesmo da realização dos funerais de Conrado. A atmosfera de
pesadelo que ressumbra da narrativa é corroborada pelos motivos
de ordem sobrenatural: Conrado morre esmagado pelo peso de um
elmo gigante vindo não se sabe de onde e, durante a perseguição de
Manfredo, um espectro gigante (provável origem do elmo) é visto
pelas galerias do castelo, enquanto pinturas ganham vida e os seres
nelas representados saem das molduras.
De fato, a escuridão, elemento onipresente, é o principal mo-
tivo – quase personagem – a endossar o estranhamento diegético
e os elementos fantásticos d’O castelo de Otranto. O protagonista
Manfredo sempre se isola em seus aposentos e permanece em meio à
escuridão, prescindido de lumes (p. 40); ele vê um espectro num apo-
sento escuro (p. 44); os serviçais do castelo percorrem os corredores
escuros do castelo temendo encontrar o espectro do finado príncipe
Conrado (p. 55) etc. Por vezes, as réstias de luz que deixam entrever
fenômenos surpreendentes também têm origem noturna, como na-
quela passagem em que Manfredo, no interior do castelo, observa

252
André de Sena (UFPE)

o estranho elmo banhado pela cambiante luz da lua: “O luar que se


erguia no céu e iluminava as janelas defronte mostrou a Manfredo as
plumas do elmo fatal, que se erguiam à altura das janelas, balouçan-
do ao vento tempestuoso e produzindo enorme zunido” (WALPOLE,
1978, p. 44). Num dos ápices da peripateia de horror, o nobre Frederi-
co, pai de Isabella, indo ao oratório do castelo em busca da princesa
Hippolita, para indagar-lhe a respeito de suas suspeitas referentes a
Manfredo, dá de cara com um vulto ajoelhado em meio às sombras,
e pensa tratar-se do padre confessor:

Não ficou o marquês surpreendido com o silêncio que reinava


no aposento da princesa. De acordo com o que lhe tinham dito,
julgou-a no oratório e para lá se encaminhou. A porta estava
entreaberta e reinava lá dentro espessa treva. Empurrando a
porta, lobrigou uma pessoa ajoelhada diante do altar. Apro-
ximando-se, pareceu-lhe que não seria mulher, mas alguém
que envergava hábito de burel e lhe virava as costas. Parecia
estar absorto em oração. Ia o marquês retroceder quando o
vulto, erguendo-se, se ficou por momentos em contemplação,
sem para ele erguer o olhar. Enquanto esperava que a sacra
personagem se aproximasse, o marquês, desculpando-se de
tão indelicada interrupção, disse:- Reverendo Padre, procu-
ro a princesa Hippolita. - Hippolita? – tornou-lhe uma voz
cavernosa. – Viestes a este castelo à procura de Hippolita? E
o vulto, voltando-se compassadamente, mostrou a Frederico
o semblante descarnado e as órbitas vazias de um esqueleto,
rebuçado na estamenha de um eremita. (WALPOLE, 1978, p.
157-158)

Os motivos religiosos são trabalhados de maneira disfórica em


meio ao bizarro e ao fantasmagórico, contudo ainda não se observa
a realização de uma experiência ficcional de total inversão, ou mal
absoluto, como as que obras ulteriores do Romantismo soerão reali-

253
Os dois Teodoros: mutações do gótico de Horace Walpole e E.T.A. Hoffmann

zar, a exemplo de Os elixires do diabo (1813; 1816), de E.T.A. Hoffmann


(1776-1822). Ao término do excerto transcrito acima, descobre-se que
o espectro aparentemente nefasto traduz alegoricamente o condão
da virtude, e reencaminhará – como os típicos personagens eremíti-
cos das novelas de cavalaria medievais – o marquês Frederico às sen-
das da virtude. O mesmo excerto também revela um procedimento
icônico da escrita de horror, que tem em Horace Walpole um de seus
criadores, a saber: o retardamento do clímax, gerador de suspense,
tão utilizado pelo cinema de horror contemporâneo, muitas vezes,
também conjugado ao silêncio e à escuridão.
Como afirmado, é em meio à escuridão que se passam os acon-
tecimentos d’O castelo de Otranto, sobrenaturais ou não. É ela a real
motivadora do estranhamento fantástico, da tensão diegética. Por
sinal, os elementos efetivamente fantásticos ligados ao sobrenatural,
são em geral desmistificados ao longo da narrativa, a exemplo da
aparição do espectro do gigante. Só os serviçais do castelo o veem
e tal fato é associado às crendices populares – quando não, à bebida
–na perspectiva dos nobres. Contudo, ao término da história, o gi-
gante é visto – quase trágico deus ex-machina – por todos os persona-
gens, nobres e plebeus, constituindo-se algo próximo do Fantástico-
-maravilhoso todoroviano, embora o signo do estranhamento típico
do horror não se dilua.
O castelo de Otranto será base para uma série de outros roman-
ces e novelas góticas e sua influência se estenderá a todo o movimen-
to romântico. Em O morgadio (1816), conto de E. T. A. Hoffmann, por
exemplo, veremos como o imaginário noturno continuará servindo
de base para novas experiências da literatura imaginativa, contudo
com características bem próprias. Na trama d’O morgadio também
se observa a imagem do castelo perdido em meio ao locushorrendus:

254
André de Sena (UFPE)

Região selvagem e deserta. Alguns talos de erva conseguem,


penosamente, furar o solo de areia movediça, aqui e ali. Em
geral, um parque embeleza as cercanias da habitação senho-
rial, mas nessa se ergue miserável bosque de pinheiros, mais
altos do que a muralha nua, de cor eternamente escura, pa-
recendo desprezar a vestimenta da primavera. Nesse bosque,
o pipilar contente dos pássaros é substituído pelo crocitar es-
pantoso dos corvos e o silvar das gaivotas, cujo vôo prenuncia
a tempestade. (HOFFMANN, [19..], p. 97)

Trata-se do castelo do barão Roderich, lugar afastado e deser-


to só preenchido por outros nobres convivas durante as estrepito-
sas caçadas invernais, anunciadas pelos altissonantes clangores dos
metais. Ao lado da esposa, a melancólica baronesa Serafina – alma
poética avessa a tais alaridos, nostálgica pela poesia e música deli-
cadas que os membros de sua casta desprezam –, Roderich é outro
sisudo Manfredo, a contrabalançar o temperamento despótico com
os prazeres que a caça proporciona. Mas o protagonista do conto é
na verdade o personagem Theodor, jovem sobrinho de um velho juiz
que anualmente se desloca ao castelo de Roderich para dar conse-
cução às atividades burocráticas e judiciárias do povoado. Theodor,
uma espécie de estagiário da área jurídica, escrevente, irá ao castelo
pela primeira vez, onde se apaixonará pela baronesa Serafina desde
a primeira troca de olhares, com quem compartilhará dos mesmos
gostos poéticos e musicais (depois de muitas reviravoltas, Theodor e
Serafina conseguirão realizar – longe dos olhos do barão Roderich –
alguns saraus musicais, com um piano trazido às ocultas do vilarejo,
ao mesmo tempo que um amor secreto).
O morgadio, apesar de todas as influências d’O castelo de Otran-
to, já demonstra outra experiência relativa ao gótico, ligada aos pla-
nos intertextuais e metalinguísticos, pari passu à completa assimi-

255
Os dois Teodoros: mutações do gótico de Horace Walpole e E.T.A. Hoffmann

lação da estética romântica2. Walpole – talvez mesmo por injunções


de ordem biográfica – respeita e reitera as convenções aristocráti-
cas relativas aos personagens em sua obra, enquanto Hoffmann as
despreza, valorizando o típico personagem descentrado romântico,
cuja sensibilidade e talentos são mais importantes do que as castas
e genealogias. N’O castelo de Otranto – apesar de toda importân-
cia, como afirmado, de seus prefácios para a gestação de uma noção
de binomia romântica inglesa e da utilização do sobrenatural como
processo imaginativo –, o único personagem efetivamente virtuoso
tido como pertencente às camadas populares, o camponês Teodoro,
ao final da diegese será inserido no universo da aristocracia, com
a descoberta de que descenderia da alta nobreza italiana. As últi-
mas barreiras que impediam o liame entre as ações virtuosas e o
sangue aristocrático são eliminadas, numa postura conservadora e
reacionária. Por sua vez, o Theodor do conto hoffmanniano é ape-
nas um estudante de Direito e músico (pianista) – por sinal, como
seu próprio autor, Ernest Theodor “Amadeus” Hoffmann, também
advogado e virtuose pianista, segundo o processo de espelhamen-
to biográfico na ficção, tipicamente romântico –, contudo, capaz de
gerar a féerie poética, os devaneios langorosos de onde promanam
doses de erotismo sucinto e aquela melancolia inspiradora capaz de
implodir as genealogias e outros ademanes nobiliárquicos. Persona-
gem iconoclasta sem o desejar, incômodo por sua própria condição
social e temperamento poético, Theodor é uma das grandes criações
de Hoffmann, um daqueles estudantes meio desastrados chamados a
participar, como protagonistas, de alguma história excêntrica, seme-

2. Lambert (1979, p. 303) avulta os aspectos intertextuais e as citações/alusões a obras de Kleist, Schiller,
Shakespeare, Jean-Paul Richter, Schnabel etc., presentes à narrativa de O morgadio, os quais dão “um
relevo especial” ao conto. Trata-se de um novo caminho ligado ao gótico, ou seja, a busca por uma
essência efetivamente literária e sem pretensões de associar a obra ficcional ao real empírico

256
André de Sena (UFPE)

lhante ao que ocorre em muitas outras obras suas.Com este persona-


gem, Hoffmann leva o Teodoro inicial walpoliano a um novo nível de
maturidade ficcional, redimensionando-o num universo que é todo
seu – e não mais o dos autores romântico-classicistas das primeiras
gerações românticas europeias –, composto a um só tempo de atmos-
fera burguesa, de registros do universo das leis e da jurisprudência,
bem como de boêmia, delírio e imaginação sem fronteiras que faz
do horror um dos mais lúdicos exercícios ficcionais imaginativos do
período oitocentista. O Theodor hoffmanniano possibilitará a meta-
linguagem do horror e a experiência fantástica do sobrenatural, pois,
dotado de imaginação excêntrica, deixar-se-á impregnar em várias
passagens não apenas pelas ambiências soturnas e inspiradoras do
castelo, mas também da literatura:

Quem não sabe quantas emoções se despertam pela estrada


em local pitoresco, mesmo para as almas mais frias? Quem
não teve um sentimento desconhecido, em meio a um vale
rodeado por rochedos, ou entre as umbrosas paredes de cer-
ta igreja? Agora, imaginem: eu tinha vinte anos, o álcool do
ponche excitara meus pensamentos, e poderão facilmente
compreender o estado de espírito em que me encontrava na-
quela sala. Imaginem também o silêncio da noite, em que o
surdo murmúrio do mar e estranhos assobios do vento resso-
am como sons de um órgão gigantesco, tocado por espíritos.
E nuvens que passavam velozmente e que, muitas vezes, em
sua brancura e fulgor, semelhavam gigantes, contemplando-
-me através das imensas janelas. Tudo ajustado para causar
a ligeira inquietação que experimentava. Esse mal-estar, po-
rém, se parecia com a sensação que temos, durante a nar-
rativa de uma história fantasmagórica, vivamente contada,
e que, por fim, nos causa prazer. Assim, pensei: era a veia
adequada para ler o livro que trazia no bolso, o Visionário,
de Schiller. Li e reli, esquentando cada vez mais a mente. Até

257
Os dois Teodoros: mutações do gótico de Horace Walpole e E.T.A. Hoffmann

que cheguei à história das bodas em casa do conde de V... tão


encantadora. Bem no momento em que o fantasma de Jerôni-
mo entra na sala, a porta que dava para a antecâmara se abre
estrepitosamente. (HOFFMANN, [19..], p. 104)

A partir da última frase, o personagem dá início ao relato das


fantasmagorias testemunhadas naquele salão do castelo em que lia
a obra schilleriana. A típica autossugestão romântica, em grande
parte, haurida inicialmente das obras de J. J. Rousseau (1712-1778)
e suas experiências ligadas ao devaneio, é sugerida neste momento
específico pelo ato de leitura do protagonista, no caso, de um livro
de horror em meio à atmosfera sombria do castelo, sinergia entre a
imaginação e o universo imanente muito cara ao romantismo ale-
mão. O medo não é mais trabalhado como simples motivo episódico,
a exemplo do que ocorre no gótico walpoliano, mas autonomeado de
forma metalinguística, também a gerar o mise em abyme (um leitor
de histórias mal assombradas também é o personagem de outra a
que lemos, estando ou não [nós, os leitores empíricos] em espaços
desencadeadores de horror...), um efeito literário que atesta a verti-
calização da estética inaugurada por Walpole, a qual ele próprio já
havia entrevisto. O excerto iconiza as características da novela no-
turna alemã (Nachtstück), que, se também faz uso de todos os cro-
notopos ligados ao gótico setecentista, por outro lado, trabalhará o
horror numa dimensão mais psicológica e subjetiva. Segundo Volo-
buef (1999, pp. 67-68),

Para chegar a tanto [a passagem do gótico tradicional à Na-


chtstücke], o modo por que era considerada a noite e outros
motivos congêneres (escuridão, sombras, paisagem à luz da
Lua etc.) foi sofrendo alterações [...]. A noite, portanto, foi
transferida para dentro do indivíduo. Tal circunstância in-
fluiu diretamente na peça noturna romântica cuja propensão

258
André de Sena (UFPE)

foi a de abandonar o tipo de motivo explorado pelo roman-


ce gótico (castelos mal-assombrados, fantasmas vagando por
corredores escuros, escadas sombrias, masmorras tenebrosas
etc.) – os quais localizavam a origem do horror no ambiente
fora do indivíduo –, para explorar o abismo soturno que o
homem traz dentro de si, desfraldando todo um veio de mo-
tivos que concentraram o terror dentro do sujeito (tais como
medo, solidão, loucura).

Acrescente-se a estas últimas características a imaginação des-


bordante de certos personagens românticos, a exemplo de Theodor,
e teremos a experiência da fantasmagoria noturna mais típica da
Nachtstück. De fato, muitas experiências sobrenaturais são atesta-
das pelo protagonista, ao tempo que revela seu temperamento po-
ético: “minha exaltação [dava] especial ímpeto às minhas palavras,
talvez porque estivesse disposta [a baronesa Serafina] a me ouvir,
ela se embevecia cada vez mais com as histórias fantásticas que eu
inventava” (HOFFMANN, [19..], p. 109). Ora, com tais declarações, o
leitor começa a desconfiar da referencialidade ligada ao sobrenatu-
ral na diegese; contudo, há cenas em que outros personagens tam-
bém o experienciam, como aquela em que o tio de Theodor che-
ga a esconjurar um suposto fantasma, gerando-se, muitas vezes, a
ambiguidade fantástica. Ao término da narrativa, este último irá
explicar os fatos históricos deflagradores do sobrenatural no castelo
de Roderich numa analepse, mas não teremos ainda o “sobrenatural
explicado” típico do gênero Estranho que Todorov (2007) associa ao
gótico setecentista (com a ulterior desmistificação dos fantasmas e
fenômenos a eles ligados), devido ao fato de que Hoffmann continua
possibilitando a presença do sobrenatural e do horror. O efeito esté-
tico do medo permanece ao fim da diegese, indo além do subgênero
Fantástico-maravilhoso também asseverado por Torodov, caracte-

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Os dois Teodoros: mutações do gótico de Horace Walpole e E.T.A. Hoffmann

rística da típica literatura de horror. Assim, os potenciais de estra-


nhamento do texto são garantidos por um discurso elíptico e polis-
sêmico que atesta a maioridade estética do gótico, que prescindirá
das marcações temporais (as datas de O morgadio são construídas
com reticências – [17...], e os fatos ocorridos não são possibilitados
pela ontologia miraculosa medieval, mas aparentemente a de todas
as épocas, pela via da imaginação), da ânsia mimética e dos ideais
conservadores ainda existentes na época de Walpole. É o indivíduo
poético em contraste com a frieza e a indiferença daqueles que per-
dem o contato com as forças criativas da natureza, que O morgadio
busca evidenciar em suas entrelinhas, pondo em suspensão os sis-
temas hierárquicos e a própria noção de real instituído, além dos
procedimentos estritamente miméticos e verossimilhantes cultiva-
dos pelo romance histórico romântico tradicional.
Essa liberdade criativa e o franco incremento imaginativo, que
catapultam o surgimento de uma nova verossimilhança interna ou
diegética e prescindem dos efeitos de real ansiados pelo romance his-
tórico, não foram bem compreendidos por alguns teóricos da épo-
ca. São famosas as críticas que o romancista histórico Walter Scott
(1771-1832) tece em relação às liberdades hoffmannianas – estendidas
a toda a literatura fantástica –, especialmente quando o autor de O
vaso de ouro se aproxima deste gênero caro ao crítico (o romance
histórico), a exemplo do que ocorre em O morgadio. Scott inicia a
crítica intitulada Sobre Hoffmann e as composições fantásticas com
as seguintes palavras, que dão o tom geral de seu conteúdo:

O gosto dos alemães pelo misterioso levou-os a inventar um


gênero de composição que talvez só pudesse existir no seu
país e na sua língua. É aquele a que se poderia chamar o
gênero FANTÁSTICO [sic], em que a imaginação se aban-
dona a toda a irregularidade dos seus caprichos e a todas

260
André de Sena (UFPE)

as combinações das cenas mais estranhas e mais burlescas.


(SCOTT, 1998, p. XXI)

Em seguida, após se mostrar desgostoso pelo fato de Hoffmann


não ter escrito uma obra realista e histórica a respeito das batalhas
que havia presenciado na cidade de Dresden contra os exércitos na-
poleônicos, prossegue em sua crítica biografista, ressaltando o per-
sonagem do velho juiz de O morgadio, tio de Theodor, como exemplo
de fidelidade realista:

Há, principalmente, no conto intitulado O Morgadio um


personagem que é talvez peculiar à Alemanha e que forma
um contraste notável com os indivíduos da mesma classe tal
como estão representados nos romances e tal como, talvez,
existem na realidade nos outros países. O justiceiro B... exer-
ce, na família do barão Roderic de R..., nobre proprietário de
vastos domínios na Curlândia, quase o mesmo ofício que o
famoso bailio Macwhecble exercia nas terras do barão de Bra-
dwardine (se me for permitido citar Waverley) [...]. Tem as
manias da velhice e um pouco de seu mau humor satírico;
mas suas qualidades morais fazem dele, como diz com razão
La Motte-Fouqué, um herói dos velhos tempos, que tomou o
roupão e os chinelos de um velho procurador dos nossos dias.
Seu mérito natural, sua independência, sua coragem são an-
tes realçadas que empanadas por sua educação e sua profis-
são, que supõe um conhecimento exato do gênero humano.
(SCOTT, 1998, pp. XXII-XXIII)

Por outro lado – e de maneira inversa – o elogio a este persona-


gem que mais se aproximaria da vida, logo se transmutará numa sé-
ria crítica à obra como um todo, no momento em que o autor escocês
analisa outras características e personagens do conto hoffmanniano,
sempre comparado às suas próprias produções de romance histórico
e gótico tradicionais:

261
Os dois Teodoros: mutações do gótico de Horace Walpole e E.T.A. Hoffmann

O conto que acabamos de citar mostra a imaginação desregrada


de Hoffmann, mas prova também que ele possui um talento que de-
veria contê-la e modificá-la. Infelizmente, seu gosto e seu tempera-
mento o arrastam com demasiada força para o grotesco e o fantásti-
co para lhe permitir retornar com freqüência, em suas composições,
ao gênero mais razoável no qual ele teria sido facilmente bem-su-
cedido [...]. Às vezes podemos deter nosso olhar com prazer num
arabesco executado por um artista dotado de rica imaginação; mas
é penoso ver o gênio se exaurir em objetos que o gosto reprova. Não
gostaríamos de lhe permitir uma excursão nessas regiões fantásticas
a não ser sob a condição de que ele trouxesse de lá idéias doces e
agradáveis. Não poderíamos ter a mesma tolerância para com esses
caprichos que não só nos espantam por sua extravagância como nos
revoltam por seu horror. (SCOTT, 1998, pp. XXIII-XXIV)

É interessante observar como o julgamento do tempo se-


guiu na contramão da imposição de mimetismo e verossi-
milhança por parte da crítica de Walter Scott às obras de
Hoffmann. Sabe-se hoje que a “extravagância”, o “horror”, as
“excursões” às “regiões fantásticas” se impuseram justamente
como os grandes impulsos criativos renovadores do Roman-
tismo. Além disso, cumpre lembrar que críticos posteriores,
a exemplo do György Lukács de O romance histórico, revela-
ram como o romance histórico romântico – especialmente o
scottiano – antecipam a estética realista, e se dissociam, em
várias perspectivas, da própria série romântica. Sem deméri-
to às obras ficcionais do romancista escocês, apenas não mais
se compactuou de sua visão crítica que afirma a negatividade
daquela “índole poética e metafísica levada ao excesso [...] su-
jeita à influência da imaginação” (SCOTT, 1998, p. XXV) que
constitui, metalinguística e intertextualmente, a caracteriza-
ção do novo Theodor o qual os novos tempos demandavam.

262
André de Sena (UFPE)

Referências

HOFFMANN, E. T. A. O morgadio. In: HOFFMANN, E. T. A. O castelo mal-


assombrado. Trad. Ary Quintella. São Paulo: Círculo do livro, [19..]. (pp. 95-150)
LAMBERT, José. Noticeset notes. In: HOFFMANN, E. T. A. Contes fantastiques I.
Trad. Loève-Veimars. Paris: Garnier-Flammarion, 1979. (pp. 301-314)
LUKÁCS, György. O romance histórico. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2011.
SCOTT, Walter. Sobre Hoffmann e as composições fantásticas. In: HOFFMANN, E. T.
A. O pequeno Zacarias. Trad. Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
(pp. XI-XXXI)
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa
Castello. 1ª reimp. da 3ª ed. de 2004. São Paulo: Perspectiva, 2007.
VOLOBUEF, Karin. Frestas e arestas: a prosa de ficção do Romantismo na
Alemanha e no Brasil. São Paulo: UNESP, 1999.
WALPOLE, Horace. O castelo de Otranto. Trad. Manuel João Gomes. Lisboa:
Editorial Estampa, 1978.

263
“Gênero pode ser aplicado a
qualquer tipo de artefato ou
qualquer tipo de declaração
que possa ser visto como
um enunciado significativo,
portanto, não está
imediatamente ligado
a um texto.”

— Charles Bazerman. Série Bate-Papo Acadêmico. v.1


Gêneros Textuais. Recife, 2011. Disponível para acesso
em: http://www.nigufpe.com.br/serie-academica/volumes

264
11
Sagas fantásticas e o
novo perfil de leitor
Fabiane Verardi Burl amaque (UPF)
Pedro Afonso Barth (UPF)

Sagas fantásticas na contemporaneidade

Nos últimos tempos, o uso da internet está transformando a


maneira com que os jovens se relacionam com a linguagem e com
suas leituras. Os leitores passaram a ser ativos navegantes de diver-
sas mídias e linguagens e, por isso, não se contentam em apenas ler
passivamente. Esse novo leitor precisa vivenciar suas leituras, escre-
ver sobre elas, discutir nas redes sociais, adentrar inteiramente nesse
universo. Tais mudanças fazem com que as sagas sejam, atualmente,
extremamente populares entre os jovens leitores. Harry Potter, Guer-
ra dos tronos (Crônicas de Gelo e Fogo), Jogos Vorazes, entre outros
exemplos possíveis, são obras que estão sendo consumidas fervoro-
samente, vendendo milhões de exemplares. Neste trabalho, temos
o objetivo de refletir sobre as razões do sucesso das sagas entre os
jovens leitores.
As sagas, como fenômeno literário, não são ainda suficiente-
mente estudadas pela academia. Tem-se a necessidade de se refletir
sobre as configurações de uma saga e a forma com que leitores e
espectadores – e o mercado capitalista de ficção – promovem e disse-
minam sua popularidade. Sagas são constituídas de uma interessan-

265
Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor

te hibridação – os mitos e oralidades da ancestralidade humana são


reconfigurados com os valores da modernidade, ao mesmo tempo
em que a mesma história é contada por diferentes sistemas interse-
mióticos. Refletir sobre esses elementos, elencá-los e analisá-los é
vital para a compreensão do fenômeno. Tal análise é imprescindível,
pois as sagas são consumidas por milhões de leitores, e torna-se mais
produtivo incorporar um olhar crítico sobre essas obras e refletir so-
bre seu potencial literário do que apenas etiquetar como literatura
de baixa qualidade e ignorar suas qualidades.
Os estudiosos espanhóis Eloy Martos Núñes e Alberto Martos
García (2013) acrescentam ao substantivo saga o adjetivo fantástica
para explicar o fenômeno. Assim, sagas fantásticas, segundo esses
autores, se converteram em um fenômeno que arrasta um público
muito heterogêneo e variado (não somente jovens) e cujo êxito trans-
bordou os conceitos de autor, gênero e livro, filme ou revista em qua-
drinhos, para situar-se em outras coordenadas mais amplas e, além
do literário, a multiplicação dessas ficções em formatos tão diferen-
tes como a revista em quadrinhos, a televisão, o cinema ou os jogos
de estratégia (MARTOS NÚÑEZ; MARTOS GARCÍA, 2013).
O termo saga é de origem norueguesa e seu significado está
atrelado ao verbo segja que significa “contar”. Originalmente, saga
identificava um gênero oral específico – composições épicas, asso-
ciadas às culturas nórdicas e germânicas, que narravam façanhas e
feitos memoráveis. Atualmente, saga teve o seu sentido ampliado e
passou a ser também referência a narrações seriais fantásticas com
conteúdos imaginários (GARCÍA, 2009). Apesar de manter um forte
vínculo com mitologias e histórias vindas da oralidade de diferentes
povos, as sagas atualmente são narrativas híbridas, contínuas. Gar-
cía (2009, p. 26), em sua obra Introducción al mundo de las sagas, as
caracteriza como sendo “um bom exemplo de narrativa pós-moder-

266
Fabiane Burlamaque (UPF) & Pedro Barth (UPF)

na, que não se limita ao esquema do relato de espada e bruxaria ou


do mito do herói, mas excede esses moldes e elabora utopias e disto-
pias, heróis e anti-heróis e, a nível de linguagem, analógico e digital”.
Sendo assim, uma saga não se resume a um livro ou, nem mesmo,
não se restringe a uma forma única de linguagem. A saga configura
um conjunto transficcional: uma história ou um universo coabitam
em diversos suportes e linguagens.
As sagas somente se configuram um fenômeno por cinco im-
portantes fatores: 1) por promoverem a construção de universo auto-
consciente; 2) por serem narrativas transmidiáticas; 3) por se alimen-
tarem da mescla dos mitos, do folclore, da oralidade com tendências
da fantasia moderna; 4) pelos incentivos e fomentos do capitalismo
de ficção; e 5) pela existência de um novo perfil de leitor – um leitor
ativo e multimedial.

Sagas fantásticas e a construção de um universo

A principal e essencial característica de uma saga é a criação de


uma nova realidade: um mundo completo e autoconsciente é forja-
do. García (2009) utiliza o conceito de paracosmos para explicar essa
criação de um universo alternativo que é dotado de regras próprias.
Segundo Glória García Rivera (2004), paracosmos é um conceito ori-
ginário da psicologia e faz referência a um tipo de fantasia infantil
que se caracteriza pela criação de um mundo paralelo pela criança,
um mundo próprio em que se pode brincar, jogar, desenhar, fabular,
um mundo paralelo a sua vida real. A autora salienta que a psicolo-
gia clássica ignorava e menosprezava a imaginação em detrimento da
valorização do mundo real. A teórica ainda destaca que tal panorama
foi transformado a partir dos estudos de Cohen e Mackeith (1993) –
estudiosos que documentaram narrações de crianças que criavam

267
Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor

em suas brincadeiras, países ou ilhas inventadas, amigos invisíveis


e aventuras de todo tipo. A principal preocupação do estudo era in-
vestigar como esses mitos pessoais influenciaram a vida da pessoa
depois de adulta. Muito antes desses estudos, Sigmund Freud (1908,
p. 135) já questionava se “acaso não poderíamos dizer que, ao brincar,
toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um
mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de
uma forma que lhe agrade?”.
Rivera (2004) aponta que as conclusões dos estudos de Cohen
e MacKeith (1993) provaram que as crianças habituadas a imaginar
desenvolvem melhores habilidades sociais e cognitivas, possuem
um maior poder de concentração e, inclusive, são menos agressivas
e mais diplomáticas. Essas fantasias infantis, saudáveis e necessá-
rias foram batizadas, então, como paracosmos. Esse termo foi in-
corporado por estudiosos como Garcia (2009) e Rivera (2013) para
explicar os mundos criados em sagas pelos autores de ficção fantás-
tica. Assim, para os estudos literários, paracosmos seria a criação
de um universo inventado, representado em formas icônicas e ver-
bais. Criar um paracosmos seria “colocar um mundo em pé” (RIVE-
RA, 2004, p. 65). O paracosmos é construído pelo e no imaginário
individual – do(s) autor(es) e dos leitores –, o imaginário literário e
o folclórico (RIVERA, 2013).
Sigmund Freud nunca falou em paracosmos. Mas em um dos
seus textos – Escritores Criativos e Devaneios – defende a tese de
que o “escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria
um mundo de fantasia que ele leva muito a sério” (FREUD, 1908,
p.135). Dessa maneira, podemos assinalar que realmente há uma
correlação entre os mundos criados por crianças e os criados por
adultos. O escritor criativo – autor original de uma saga fantástica,
sobretudo – cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério,

268
Fabiane Burlamaque (UPF) & Pedro Barth (UPF)

porém há uma relação implícita com o ato de brincar de ser Deus,


de criar uma realidade, um mundo possível.
Para fazer com que o leitor compreenda esse mundo inventado,
é preciso forjar meios de incorporação dos elementos do paracosmos.
Por isso, a grande maioria das sagas necessita de paratextos, como
mapas cartográficos, linha cronológica de acontecimentos, árvores
genealógicas, brasões e símbolos heráldicos. Essa característica é
denominada por Rivera (2013, p. 554) de “iconotextualidade”. Sagas
fantásticas frequentemente precisam utilizar a linguagem cartográ-
fica como apoio para estruturar as histórias. Assim, mapas costu-
mam servir de paratextos em livros que abordam paracosmos e eles
ocupam uma posição de destaque no inicio e/ou no fim dos livros.
Segundo Rivera (2004), os mapas têm a importante função de guiar
o leitor no mundo criado.
Como exemplo do uso de paratextos para a construção do uni-
verso de uma saga, trazemos o livro A Guerra dos Tronos, de George
R.R. Martin. A edição do livro traz recursos visuais e apêndices que
fazem com o leitor tenha uma maior apropriação da trama. No início
e no fim do livro, há mapas dos continentes em que a história é re-
tratada – Westeros e Essos – com a localização exata de cada um dos
sete reinos, além de um rico e ilustrado apêndice que é constituído
de uma listagem dos membros das sete grandes casas, famílias no-
bres de personagens que são fundamentais para a compreensão do
enredo, além dos brasões e lemas de cada família.

269
Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor

Figura 1. Mapa do Norte de Westeros

Fonte: MARTIN, 2011, p.2

O paracosmos de uma saga não se limita a um livro, mas se


estende para continuações e, mais, ultrapassa a linguagem escrita e
abarca diferentes linguagens como as dos filmes, dos seriados, dos
mapas, dos games, entre outras. Assim, um livro pode dar origem a
um universo que será expandido em outras plataformas e, muitas
vezes, por autores diferentes. Porém, toda saga terá o mesmo para-
cosmos, ou seja, um espaço comum – geografia, um tempo comum
– cronologia e/ou um repertório de personagens mais ou menos pré-
-desenhados. Um dado importante sobre a criação de um paracos-
mos é que, por mais elementos mágicos, míticos ou fantásticos que

270
Fabiane Burlamaque (UPF) & Pedro Barth (UPF)

possam constituí-lo, não se pode afirmar que tais mundos sejam


completamente diferentes da realidade do autor ou do leitor. Isso
porque, segundo Garcia (2009), não se pode fabular sem ter alguma
relação com a realidade comum.
Os leitores, quando se identificam com uma saga, têm a neces-
sidade de participar da construção do universo. Por isso, é comum
que sagas possibilitem a criação de fanfictions, que, segundo Vargas
(2005), é uma história escrita por um fã de uma obra, e envolve os
cenários, personagens e tramas previamente desenvolvidos no ori-
ginal. Nessas histórias, não existe nenhuma intenção de quebra de
direitos autorais ou a busca de lucro financeiro, pois os autores de
fanfictions dedicam tempo e energia para a escrita de histórias por
razões afetivas.

Exemplo de um site de Fanfics de GOT

Sagas fantásticas como narrativas


transmidiáticas

Martos Núñez e Martos García (2013) destacam que as sagas são


narrativas que tem um caráter transliteral, ou seja, não se resumem
a obras literárias, sendo também adaptadas para outras linguagens,

271
Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor

como cinema, televisão, quadrinhos. Ou seja, são narrativas trans-


midiáticas. E essa característica explica sua popularidade, pois o
leitor que acompanha uma série de televisão e descobre, posterior-
mente, que a série foi inspirada em uma série de livros, provavel-
mente se sentirá tentado a conhecer a obra literária. E o inverso
também é possível. Tal fenômeno foi observado recentemente com
a série Guerra dos tronos que aumentou exponencialmente a leitura
e a procura da obra literária que a originou, a série de livros As crô-
nicas de Gelo e Fogo.
Martos Núñez e Martos García (2013) assinalam, ainda, que no
inicio do século XX, com o desenvolvimento do cinema, livros passa-
ram a ser adaptados para as telas, como, por exemplo, obras clássicas
como Madame Bovary, de Gustave Flaubert, ou obras que passaram a
ser mais conhecidas depois de adaptadas no cinema como Drácula, de
Bram Stocker. Nas últimas décadas, com o advento das tecnologias,
observamos outras adaptações e translados: filmes viram videogames,
quadrinhos viram séries de televisão, séries de televisão transformam-
-se em livros. A esse fenômeno, os autores espanhóis denominam de
transmedialidade e definem que tal conceito “acarreta a pertença a
vários meios ou suportes, de modo que uma mesma história ou nar-
rativa seja contada através de diferentes plataformas comunicativas”.
(NÚÑES; MARTOS GARCÍA, 2013, p. 70). Os autores conceituam
transmidialidade a partir dos estudos de Henry Jenkins (2009) que
versam sobre narrativas transmidiáticas.
Para Jenkins (2009, p. 47), narrativa transmidiática é uma estética
recente que surgiu em resposta à convergência das mídias e seria “uma
estética que faz novas exigências aos consumidores e depende da par-
ticipação ativa de comunidades de conhecimento”. Assim, a narrativa
transmidiática exigiria dos seus consumidores o papel de caçadores e
coletores de narrativas, perseguindo pedaços da história pelos diferen-
tes canais, comparando e discutindo suas observações e apreensões

272
Fabiane Burlamaque (UPF) & Pedro Barth (UPF)

com as de outros fãs, em grupos de discussão online, e colaborando


para assegurar que todos os que investiram tempo e energia tenham
uma experiência de entretenimento mais rica. Na próxima seção, vol-
taremos a falar dessa postura ativa e caçadora que os leitores precisam
ter para dominar a leitura de narrativas transmidiáticas.
Por ora, cabe destacar que o formato de uma saga fantástica mui-
to se beneficia de tais características apontadas. Como já referido, as
sagas são relatos híbridos e fronteiriços, tanto na forma como no con-
teúdo. Martos Garcia (2009, p. 107) destaca que a saga moderna, além
de formar-se por meio da ficção especulativa e de atualizar arquétipos
épico-heroicos, pode ser transmitida em qualquer meio, qualquer lin-
guagem ou formato. Os leitores modernos se limitam cada vez menos
à leitura linear ou “isolada” de um texto, buscando associá-la com a de
outros textos de mídias diversas (musicais, cinematográficos, literá-
rios etc.). Isso quer dizer que as sagas são histórias que possuem uma
predisposição para serem jogadas, representadas, visualizadas, recon-
tadas, exploradas, dramatizadas, reproduzidas e até executadas. Por
exemplo, a série de livros As crônicas de Gelo e Fogo, além de inspirar
a criação da série de televisão, originou vários jogos de videogames
como o A Game of Thrones d20 e A song of Ice and Fire Roleplaying.

A Game of Thrones d20

273
Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor

Sagas fantásticas e a hibridação de mitos


e elementos maravilhosos

Uma das razões que atrai leitores para as sagas é o fato de que,
de alguma maneira, as sagas reelaboram estruturas míticas e ele-
mentos fantásticos. Ou seja, as narrativas de uma saga utilizam es-
truturas míticas reconhecíveis pelo leitor e as apresentam de uma
maneira inovadora. Ao mesmo tempo em que as sagas reproduzem
as questões contemporâneas, elas incorporam elementos do folclore
e da oralidade. Assim, Harry Potter utiliza todo o imaginário oci-
dental sobre magia e bruxaria, Crônicas de Gelo e Fogo mobilizam
dragões, magia, mortos-vivos. Os elementos mágicos e fantásticos
provocam fascínio nos jovens leitores e, dessa maneira, o mito é um
referente contínuo das sagas, que são construídas tendo como refe-
rências fontes míticas prévias que funcionam como um palimpsesto.
Sagas fantásticas, dessa maneira, reciclam e combinam muitos ma-
teriais, desmantelando códigos e valores obsoletos e atribuindo valor
a outros. Por exemplo, a presença da mulher como uma heroína ativa
(MARTOS GARCIA, 2009).
A gênese dos mundos criados em uma saga é um signo, sem dú-
vida, da pós-modernidade, com sua tendência à reciclagem e à hibri-
dação de fontes. Um exemplo é a trajetória da personagem Daenerys
Targaryen, no livro Guerra dos Tronos, que, apesar de reproduzir em
partes a jornada do herói de Joseph Campbell (2007), é uma mulher,
marginalizada em uma sociedade patriarcal, que precisa vencer os
desafios impostos ao seu gênero. Ou seja, há uma estrutura mítica
reconhecível – a jornada do herói – hibridizada com um novo ele-
mento – a discussão sobre o papel da mulher na sociedade. Segun-
do Martos Núñez e Martos García (2013, p. 91), “a pós-modernidade
supõe hibridação, reciclagem, e isso supõe, também, reescrever os
contos clássicos, os mitos, os super-heróis e seus mundos”.

274
Fabiane Burlamaque (UPF) & Pedro Barth (UPF)

Sagas fantásticas: o leitor ativo e multimidial e


o capitalismo de ficção

Dois fatores que são determinantes para a consolidação das sa-


gas fantásticas são a existência de uma indústria de ficção fantás-
tica muito fortalecida e um mercado consumidor ávido – mercado
constituído por leitores vorazes. Elencamos os dois fatores na mesma
seção, pois ambos estão relacionados: o capitalismo de ficção apenas
vende sagas fantásticas porque existe um leitor ativo que as conso-
me; porém, o leitor apenas consome sagas, pois o mercado as oferece.
Primeiramente, é preciso destacar que o leitor de uma saga pos-
sui uma postura ativa frente ao que lê. Ou seja, vive e incorpora em
sua vida os elementos do paracosmos com que se identifica. Não ape-
nas lê os livros e assiste a filmes ou séries, como produz, escreve e
discute sobre o universo do qual é fã. Participa, por exemplo, de redes
sociais de leitores, como o Skoob, e de canais de vídeos sobre resenhas
e comentários de livros, conhecidos como booktubers, ou até mesmo
cria pequenos trailers sobre enredos de obras, os Booktrailers. Sendo
assim, é natural que um leitor dos livros de um paracosmos sinta-se
tentado a acompanhar séries televisivas, a produzir fanfictions ou o
contrário: é possível que um telespectador se sinta na obrigação de
ler os livros, de consumir os quadrinhos. É o capitalismo de ficção,
segundo Martos García (2011, p. 17), o grande fomentador e responsá-
vel pelo amplo oferecimento de sagas e obras seriadas no mercado. O
mercado editorial descobriu e apostou no poder do entretenimento
“não somente como anestesiante, mas também como autêntica má-
quina de produzir identidades e de criar vínculos entre a ideologia
dominante e os setores mais desfavorecidos”.
No intuito de compreender a popularidade das sagas, é preciso
levar em conta a existência de leitores massificados, ou seja, leitores

275
Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor

que seguem a popularidade de bestsellers, de livros mais vendidos e


não os leem de forma crítica. Entretanto, Martos García (2011) alerta
que é preciso perceber o surgimento de um leitor mais ativo, muito
mais diversificado em seus gostos e que, além disso, não tem uma
visão compartimentada das artes. O leitor pós-moderno se situa um
pouco na biblioteca de Babel de Borges: em um mundo fragmentado
deve recompor-se e constituir-se. Diferente do leitor tradicional, que
se centrava num autor e numa obra e realizava uma leitura intensiva,
o leitor pós-moderno segue consumindo livros e filmes concretos,
mas tem necessidade de se aprofundar e, por isso, a necessidade de
ligar-se a uma série, a um ciclo ou a uma coleção mais ampla e, as-
sim, realizar uma leitura extensiva e multimidial. Dessa maneira,
esse novo leitor, chamado por Lúcia Santaella de “leitor imersivo”,
transita com muita facilidade por diferentes linguagens e sistemas
intersemióticos e, assim, pode transitar da leitura de um livro à lei-
tura de um filme ou, então, pode jogar no videogame algum jogo es-
tratégico e, em todos eles, de alguma forma, pode haver mostras de
sua saga preferida. (NÚÑEZ, 2007).
Por essa razão, não podemos levianamente afirmar que é so-
mente o mercado que torna as sagas fantásticas populares, pois se
não houvesse um leitor que acolhesse tal gênero, não haveria a ênfase
mercadológica. Entretanto, cabe destacar que “esse auge da fantasia
encobre um comportamento mitômano próprio dos jovens, [...] teve
muito mais a ver com o desenvolvimento do cinema e da televisão,
os autênticos impulsores das modas juvenis audiovisuais” (MARTOS
GARCIA, 2011, p. 15). Os jovens parecem ter a necessidade de serem
fãs, e a ficção de fantasia permite um engajamento. Nesse sentido,
Martos García (2011, p. 25) acrescenta ainda que

escolher uma saga não é somente um ato mercantil, como


queria o mercado; é também uma adesão e, quiçá, uma rup-

276
Fabiane Burlamaque (UPF) & Pedro Barth (UPF)

tura, pois o fã, o blogueiro, o jogador de RPG, sempre aspi-


ram a personalizar e completar esse mundo de ficção com
outros novos elementos. O que é importante é que através
das sagas o jovem apreende, de forma explícita ou implícita,
universos alternativos.

A escolha de uma saga nunca é aleatória; o leitor apenas torna-se


fã do ciclo que lhe possibilita uma projeção. O leitor de uma saga
é um verdadeiro consumidor. Muitas vezes, alguns leitores sentem
a necessidade de completar o universo da saga. Por isso, a necessi-
dade de escrever, jogar, vivenciar a saga e, assim, criam fanfictions,
participam de fóruns, de grupos de discussão. Às vezes, o leitor/
consumidor cria produtos inspirados na obra/mundo que admira e,
assim, as fronteiras entre a produção e o consumo ficam embaralha-
das. Porém, não podemos afirmar que esse comportamento é novo,
pelo contrário; observa-se a existência de leitores/fãs desde o surgi-
mento de fanzines, distribuídos nos corredores de escolas e univer-
sidades. A diferença é que vivemos um momento em que a internet
possibilita que mais pessoas tenham acesso ao papel de produtor,
seja ficcionalizando, criando enredos baseados em seus personagens
favoritos (fanfictions), seja colaborando com enciclopédias virtuais
sobre o universo que admira (Wikipedia). Esse fenômeno é definido
por Jenkins (2009 p. 8) como Cultura de Convergência – “onde as
velhas e as novas mídias colidem, onde mídia corporativa e mídia
alternativa se cruzam, onde o poder do produtor de mídia e o poder
do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis”.
A convergência para Jenkins (2009) não é apenas midiática, mas
também cultural. Os indivíduos estão mudando comportamentos e
posturas frente aos produtos que consomem. Os limites que sepa-
ravam o produtor do consumidor (assim como o autor do leitor) são
tênues e imprecisos. Jenkins (2009, p. 28) chega a afirmar que “ao

277
Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor

invés de falar de produtores e consumidores midiáticos em papéis


separados, agora podemos vê-los como participantes que interagem
uns com os outros de acordo com novas regras, que nenhum de nós
entende por completo”. Os consumidores manipulam e usam as tec-
nologias disponíveis para a interação com outros consumidores e,
assim, há um fluxo livre de ideias, discussões e conteúdos.
Em relação a sagas fantásticas e a sua recepção, podemos res-
saltar que a cultura de convergência possibilitou a criação de espa-
ços virtuais de discussão sobre os mundos criados adorados por fãs,
leitores e telespectadores. Tais espaços são formados por indivídu-
os que discutem, dialogam e agem de maneira cooperativa e, dessa
forma, são capazes de entender o paracosmos de uma saga de uma
maneira que não fariam de forma individual. Jenkins (2009) aponta
que a experiência de compartilhar e comparar informações, opiniões
e recursos sobre uma narrativa midiática pode garantir uma maior
profundidade de envolvimento dos espectadores/leitores já que a
convergência dos meios de comunicação impacta o modo como es-
ses meios são consumidos. Jenkins (2009) aponta que a convergência
permite que adolescentes façam múltiplas tarefas como, ao mesmo
tempo, fazer a lição de casa, ouvir músicas, fazer downloads, respon-
der a e-mails e utilizar redes sociais e aplicativos de celular – tudo de
forma concomitante. Da mesma forma, fãs “de um popular seriado
de televisão podem capturar amostras de diálogos no vídeo, resumir
episódios, discutir sobre roteiros, criar fanfiction, gravar suas pró-
prias trilhas sonoras, fazer seus próprios filmes – e distribuir tudo
isso ao mundo inteiro pela internet”. (JENKINS, 2009, p. 37). A con-
vergência envolve uma transformação tanto na forma de produzir
quanto na forma de consumir os meios de comunicação.
Entretanto, não podemos ser ingênuos ao ponto de ignorar que
o fenômeno das sagas possui relações com o fomento do que Vicente

278
Fabiane Burlamaque (UPF) & Pedro Barth (UPF)

Verdú (2003) denomina como capitalismo de ficção. O professor es-


panhol destaca que observamos nas últimas décadas uma evolução
do capitalismo: primeiro o capitalismo atingia apenas a produção e
consumo, e agora o capitalismo abarca a ficção. O capitalismo de fic-
ção “descobriu o poder do entretenimento não somente como anes-
tesiante, mas também como autêntica máquina de produzir identi-
dades e de criar vínculos entre a ideologia dominante e os setores
mais desfavorecidos”. (MARTOS GARCÍA, 2011, p.17). Em busca de
lucro desenfreado, criou-se um mercado de ficção, que alimenta e
precisa de fãs, que irão consumir tudo o que se produz sobre um
universo. O delicado neste panorama, segundo Martos García (2011,
p.17), é quando essa indústria tende a “chegar a construir mundos al-
ternativos, nada críticos com a realidade que impera, ou seja, quando
a imaginação e a fantasia não ‘revertem’ sobre a realidade próxima,
mas se distanciam dela e se convertem numa indústria de evasão
que adormece, dá benefícios e não incomoda ninguém”. Da mesma
maneira que existem sagas fantásticas de qualidade, que dialogam
com a realidade dos seus leitores, existem obras com méritos estéti-
cos menos evidentes e que podem, inclusive, conduzir a uma leitura
preguiçosa e superficial.
Podemos relacionar, de certa maneira, essas reflexões sobre o
capitalismo de ficção e o consumismo desenfreado e sem criticidade
com o pensamento de Zygmunt Bauman, um dos mais reconheci-
dos estudiosos da pós-modernidade. Bauman (2001) aponta que as
pessoas atualmente são acometidas por uma espécie de agonia da
insegurança, ou seja, possuem uma extrema preocupação em buscar
a perfeição, a competência e, assim, têm medo de errar. Para lidar
com essas questões, acabam buscando uma segurança em objetos
materiais e assim há uma ânsia consumista generalizada em nos-
sa sociedade. “É a busca incessante de deter ou tornar mais lento o

279
Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor

fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme.” (BAUMAN,


2001, p. 97). Assim, vivemos em um mundo em que o consumo exis-
te para o prazer imediato, não há o hábito de adiar o prazer. Assim,
observamos uma incompletude de experiências que levam a um en-
curtamento do prazer. Parece que sempre há uma nova necessida-
de, sempre é necessário adquirir algo novo para a satisfação pessoal
(BAUMAN, 2001). Tal tendência ao consumo desenfreado, de certa
maneira, nos ajuda a entender as razões da atual ascensão de pro-
dutos literários que possibilitem mais de uma forma de consumo:
através da leitura de uma saga, é possível comprar a séries de livros,
obras que descrevem o paracosmos, quadrinhos, revistas com fotos
de atores vestidos dos personagens, entre outros.

Sagas fantásticas, os jovens leitores e a escola

Nas seções anteriores, elencamos os fatores que tornam as sagas


fantásticas atraentes e irresistíveis para jovens leitores. Porém, acredi-
tamos que não basta entender o porquê dessas narrativas serem atra-
tivas e, sim, utilizá-las como meio para dialogar com os jovens leitores.
Temos uma posição convergente com o que diz Núñez (2007, p. 62),
segundo o qual “sem a capacidade crítica e de análise, sem o olhar
criador e a consideração de que o que conta também é transmissão
da experiência (Benjamin), as sagas seguirão aparecendo como uma
mercadoria banal”. É necessário retirar essa qualificação de banalida-
de das sagas em geral, pois elas são lidas e reverenciadas por muitos
leitores, pois possuem qualidades que merecem ser reconhecidas. É
simplista demais condenar o mercado, que é acusado de causar dano
à geração de leitores. É necessário que a sociedade em seu conjunto
ajude a “formar cidadãos (alunos, leitores…), livres-pensadores e, in-
clusive, nesse caso, dissidentes, que cavem e “fucem” além da casca de

280
Fabiane Burlamaque (UPF) & Pedro Barth (UPF)

tanta artimanha (midiática) incorporada”. (NÚÑEZ, 2007, p.63).


A incorporação da tecnologia e de textos que não são tidos como
canônicos na escola ainda é assunto que causa polêmica. Talvez, a
maior insegurança tanto de pais quanto de educadores seja a possível
substituição ou o abandono da prática leitora de livros considerados
clássicos e sacralizados em detrimento de obras consideradas bestsel-
lers, ou de qualidade estética duvidosa. As sagas fantásticas, por seu
caráter inovador e transficcional, também são vítimas dessa visão.
O que precisamos levar em conta no momento de refletir sobre
a relação de sagas e os leitores jovens é que, atualmente, são várias as
mídias de massa que desempenham o papel de mediadores, colocan-
do-se entre o grande público e a criação artística, levando a obra àque-
les que se encontram dispostos a recebê-la. Isso ocorre, por exemplo,
quando um texto literário é adaptado para o cinema, para a televisão,
para o teatro ou mesmo para o rádio, ficando, assim, ao alcance de
todos. É através dos veículos de comunicação, também, que o leitor
toma conhecimento do que lhe é disponibilizado pela indústria cultu-
ral. Acionando um sistema que envolve imprensa especializada – que
inclui, obviamente, a crítica – e ações de marketing estrategicamente
planejadas, o segmento editorial faz uso de todo o arsenal de recursos
a seu dispor para promover a divulgação de seus produtos.
Ronald Barker e Robert Escarpit (1975) salientam a relevância dos
meios de comunicação nesse contexto, alertando para a necessidade
de uma “harmonização geral” de modo que esses veículos atuem, efe-
tivamente, como aliados da leitura. Os autores afirmam, assim, que,
mesmo na esfera do editor, o livro precisa ser pensado e concebido em
função das chamadas utilizações marginais: repercussões na impren-
sa e no rádio, adaptações para o cinema e para a televisão. Ele preci-
sa agora ser encarado não como acontecimento puramente literário,
mas em um contexto geral. Isso não quer dizer que qualquer livro se

281
Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor

destina a criar um impacto, mas é lícito esperar de qualquer livro que


ele se insira em um plano de conjunto e que, no nível da distribuição,
não trave uma batalha solitária para capturar um público que tem mil
solicitações desviando-o da leitura (BARKER; ESCARPIT, 1975, p. 147).
Esse leitor, hoje invariavelmente bem-informado e ciente de sua
importância no cenário atual, interage, discute e reivindica, ratifican-
do sua condição de consumidor perante a indústria. Com frequência,
o leitor detentor do conhecimento, que pode ser considerado, até cer-
to ponto, um especialista – ou “culto”, como sugerem Barker e Escar-
pit, pelo acesso privilegiado à informação –, acaba posicionando-se, a
exemplo do crítico literário, como mediador entre o que a indústria
cultural disponibiliza para consumo e o leitor-consumidor prospecti-
vo. Da mesma forma, integrantes do círculo social desse leitor, a quem
a informação ainda não foi disponibilizada – família, amigos, colegas
de escola ou profissão, entre outros –, desempenham o mesmo papel,
muitas vezes influenciando diretamente suas opções de leitura e/ou
compra. Sob a perspectiva das editoras, contudo, o maior desafio re-
side em levar um fato individual à vida coletiva. Em meio a esse pro-
cesso, o editor também atua como mediador, conciliando interesses
do autor e do leitor. Caso o projeto seja bem-sucedido, o editor pode
solicitar ao escritor que continue a produzir conforme os parâmetros
da fórmula testada e aprovada pelo leitor. No caso de uma saga, os
editores podem incentivar a produção de obras que possam expandir
o paracosmos do autor. Assim, nesse momento, o editor passa a atu-
ar sobre o leitor, procurando formar hábitos de leitura e de consumo
para, em condições tidas como ideais para a indústria dentro de um
contexto de mercado, fidelizá-lo.
O estudo das sagas no âmbito escolar pode contribuir para que
a leitura de tais obras tenha sentido como atividade social e trazer
melhores estratégias para fazer leitores, escritores ou expectadores

282
Fabiane Burlamaque (UPF) & Pedro Barth (UPF)

mais críticos e competentes. Rivera (2013, p. 556) pontua que os para-


cosmos promovem letramentos1, pois se apoiam em visualizações, em
imagens, que são mais do que uma rota para leitores, são cartografias
cosmológicas que marcam as paisagens da história. Dessa maneira,
um paracosmos possibilita um aproveitamento didático, pois permite
à gênese de uma topografia imaginária, a construção de uma nova
geografia, favorecem a invenção de novos códigos, usos e costumes,
criação de bestiários, entre outras. Para a autora, a escola deveria com-
preender que “a leitura diversificada e imaginativa de um paracosmos
é a antessala da leitura estética, até o ponto em que ajudar o aluno a
construir mundos imaginários e completos e revesti-los de caracterís-
ticas literárias é um bom exercício de criação de modelos narrativos”
(RIVERA2, 2013, p. 556).
É pela escola que a educação literária e seus diferentes suportes
devem começar. Em tão importante instância mediadora, tais ma-
nifestações tanto literárias quanto aquelas que envolvem diferentes
sistemas intersemióticos devem ser utilizadas como recursos para fo-
mentar a diversidade, a imaginação e a inclusão, uma vez que as sagas
e seus desdobramentos abordam, frequentemente, cenários multicul-
turais e possibilitam a expressão de todo tipo de pessoas e grupos.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1975.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007.

1. No texto original, Glória García Rivera (2013, p.556) utiliza o termo “nuevos alfabetismos” que
entendemos como sendo novos letramentos.
2. TRADUÇÃO NOSSA. “La lectura diversiva y de imaginación de um paracosmosesla antessala de
lalectura estática, hasta elpunto de que ayudarelalumno a construir mundos imaginarios completos y
revestirlos de características literariases um buenejercicio de creación de modelos narrativos”. (RIVERA,
2013, p. 556).

283
Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor

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VERDÚ, Vicente. El estilo del mundo: La vida en el capitalismo de ficción.
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284
12
Poesia, oralidade e ensino
Hélder Pinheiro (UFCG)

Ninguém sonharia em negar a importância do papel que


desempenharam na história da humanidade as tradições
orais. As civilizações arcaicas e muitas culturas das mar-
gens ainda hoje se mantêm, graças a elas. E ainda é mais
difícil pensá-las em termos não-históricos, e especialmente
nos convencer de que nossa própria cultura delas se im-
pregna, não podendo subsistir sem elas.

(Paul Zumthor. Introdução à poesia oral, p. 10)

Introdução

Os três substantivos que compõem o título da discussão que


propomos aqui, por si só, pediriam uma longa reflexão. Embora não
seja possível aprofundá-los em espaço limitado, o que demandaria
muitas leituras, é possível, ao menos, acenar para o sentido que atri-
buímos a cada um deles e, a seguir, tentar uma aproximação. O pon-
to de chegada é, portanto, a busca de uma metodologia para o ensino
de literatura – mais particularmente para o gênero lírico – que seja
capaz de contribuir para a formação de leitores.
Neste sentido é que vamos encaminhar nossa reflexão, tentan-
do responder à seguinte questão: a realização oral do poema pode se
constituir num instrumento pedagógico eficiente para formar leitores
de poesia? Por realização oral, entendemos a leitura em voz alta re-

285
Poesia, Oralidade e Ensino

petidas vezes, buscando as várias possibilidades de entonação, di-


ferentes tons, ritmo e andamento de cada verso e do poema como
um todo. Trata-se de um trabalho de experimentação com a voz que
pode seguir ou não as convenções do verso tradicional e, na lírica
moderna, sobretudo a que cultivou e cultiva o verso livre, de uma
busca necessária para se chegar a possíveis sentidos. Por outro lado,
não é necessário abandonar a pontuação que o poema traz na sua
constituição antes de potenciá-la através dos vários recursos que a
voz apresenta. Percorramos alguns dos sentidos que cada palavra
pode suscitar, sobretudo a poesia, sempre um enigma para os leito-
res e teóricos de qualquer época.

Da poesia

Quando nos aproximamos dos inúmeros tratados sobre a poe-


sia – de Aristóteles aos tempos atuais –, destaca-se a dificuldade de
defini-la de modo que se contorne toda sua complexidade. A poesia
quase sempre se esquiva a uma concepção fechada, que a reduza a um
quadro de normas e convenções. Por melhor que se possa defini-la,
sempre será a vivência da leitura – oral ou silenciosa – o que vai possi-
bilitar, ao certo, ter dela uma concepção mais precisa, mas aquém de
sua complexidade. Talvez fosse melhor dizer: a partir da experiência
de leitura é que é possível ter uma percepção mais completa ou tota-
lizadora desse gênero literário. Apresentaremos algumas concepções
de poesia, de modo resumido, que se coadunem com o objetivo apre-
sentado para este artigo.
Refletindo sobre a “Natureza da lírica”, José Guilherme Merquior
(1977, p. 17) lembra que “a lírica era, a princípio, apenas um gênero da
poesia: porém, com o declínio do grande poema narrativo e do verso
dramático, lírica e poesia terminaram por se confundir”. O ensaísta

286
Hélder Pinheiro (UFCG)

destaca que para outros, sobretudo modernamente, “poesia é o tipo de


mensagem linguística em que o significante é tão visível quanto o sig-
nificado, isto é, em que a carne das palavras é tão importante quanto
o seu conteúdo” (p. 17). Esta concepção retoma toda a contribuição do
pensamento formalista sobre a poesia lírica – sem dúvida a vertente
que foi mais longe na tentativa de se acercar da natureza linguística
deste gênero. Busquemos em Jakobson – num texto que antecede a
formulação da conhecida teoria das “funções da linguagem” – uma
definição que põe em destaque o efeito que a lírica pode causar no lei-
tor. Para o teórico russo: “É a poesia que nos protege contra a automa-
tização, contra a ferrugem que ameaça a nossa fórmula do amor e do
ódio, da revolta e da reconciliação, da fé e da negação” (JAKOBSON,
1978, p. 177). No mesmo ensaio, o teórico russo afirma que a “poetici-
dade é, em geral, apenas um componente de uma estrutura complexa,
mas um componente que transforma os outros elementos e com eles
determina o comportamento do conjunto” (p. 176).
Já para o poeta e pensador francês Paul Valéry (1991), “Poesia é
uma arte de linguagem; certas combinações de palavras podem pro-
duzir uma emoção que outras não produzem, e que denominamos
poética” (p. 205). No decorrer do ensaio, denominado “Poesia e pensa-
mento abstrato”, ele analisa várias questões decorrentes desta defini-
ção. A certa altura, lembra Valéry que “Prosa e poesia servem-se das
mesmas palavras, da mesma sintaxe, das mesmas formas e dos mes-
mos sons ou timbres, mas diferentemente coordenados e excitados”
(p. 212). A seguir, ele afirma que o poema “não morre por ter vivido: ele
é feito expressamente para renascer de suas cinzas e vir a ser infinita-
mente o que acabou de ser” (p. 213). No mesmo sentido, o poeta afirma
que “um poema é uma máquina de produzir o estado poético através
das palavras. O efeito dessa máquina é incerto pois nada é garantido
em matéria de ação sobre nossos espíritos” (p. 217).

287
Poesia, Oralidade e Ensino

Refletir sobre estas peculiaridades da lírica parece-nos indis-


pensável ao profissional de ensino que deseje trabalhar com o po-
ema no espaço escolar. Tomar consciência das peculiaridades desta
linguagem, sobretudo no que se refere ao modo como, no poema,
as palavras são mobilizadas. Se o professor ainda não experimentou
este “estado poético” a que se refere o crítico ou, se já experimentou,
mas não se deu conta desta experiência, seria interessante buscar
uma vivência com a leitura do poema de modo mais cuidadoso. Por
outro lado, não confundir sua necessidade de aprofundamento teóri-
co com a do leitor em formação. O jovem leitor não precisa, necessa-
riamente, de um aporte teórico para apreciar a poesia. Ele necessita
da contribuição de um mediador que possa ajudá-lo na aproximação
da linguagem poética.
Para não ficarmos numa certa abstração reflexiva, visitemos,
juntos, um poema. Em situação de ensino, teríamos de atentar para
os possíveis estados poéticos que ele nos incitaria. Pensamos num
poema de Lenilde Freitas (2001, p.35) que, já no título, parece trazer
um pouco do que os teóricos apontaram:

Alimento

As margaridas
estão em toda parte.
Quarenta vezes por segundo
bateram as asas do beija-flor.

A tarde, ao meu dispor,


urde as sombra no telhado.

Desatento um homem passa


e nada vê.

288
Hélder Pinheiro (UFCG)

Todas as portas gemerão


se, desse sustento,
meu coração for despojado.

Fiquemos basicamente com o título do poema, uma vez que,


no contexto solitário da escrita, não é possível partilharmos os dife-
rentes estados de poesia que ele poderá nos proporcionar. A palavra
alimento remete-nos às necessidades cotidianas de nosso corpo. Um
título deste num artigo de jornal cria nos leitores a expectativa de
que se vai tratar de várias questões relativas à alimentação. No en-
tanto, ao lermos o poema, percebemos que a palavra remete a outra
dimensão, a outros sentidos. Poderíamos falar de um outro tipo de
alimento de que o ser humano necessita, que não tem propriamente
um custo, que está ligado a outra dimensão – espiritual? Interior? –
cuja denominação varia entre visões de mundo e de teoria. No poe-
ma, as margaridas se constituem, para o eu lírico, o “sustento”, sem
o qual o “coração” fica “despojado”. O alimento, o que sustenta, é um
objeto simples, que está “em toda parte”, um certo momento do dia
– que pode passar desapercebido a muitos. É, portanto, uma espécie
de contemplação da natureza que nasce do sustento deste sujeito lí-
rico. Há, aqui, uma educação da sensibilidade do leitor para partilhar
o estado poético ofertado no poema.
Para fecharmos estas indicações, voltemo-nos para as reflexões
de Octavio Paz (1982, p.227) sobre a poesia. Para o poeta mexicano,

Ao contrário do que ocorre com os axiomas dos matemáti-


cos, as verdades dos físicos ou as ideias dos filósofos, o po-
ema não abstrai a experiência: esse tempo está vivo, é um
instante pleno de toda a sua particularidade irredutível, e é
perpetuamente suscetível de se repetir em outro instante, de
se reengendrar e iluminar com sua luz novos instantes, novas
experiências.

289
Poesia, Oralidade e Ensino

A capacidade de se “reengendrar” e de iluminar “novas experi-


ências” é que potencializa o poema a ser revivido pelos leitores em
contextos e épocas as mais diversas. E esta, podemos dizer, mági-
ca do poema se deve ao trabalho dispensado à linguagem. Os estu-
dos sobre esta questão muitas vezes afastam os leitores, dada à sua
complexidade, sobretudo quando lança-se mão de categorias muito
herméticas que mais aprisionam o poema do que o revelam. Mas a
experiência leitora, sobretudo no contexto da sala de aula, deveria
sempre, a nosso ver, partir dos poemas, jamais de categorias teó-
ricas, inclusive as esboçadas aqui. É hora de nos aproximarmos do
segundo substantivo que escolhemos para nossa discussão.

Oralidade

Não vamos entrar na longa e significativa discussão sobre os


usos da “leitura oral” versus “leitura em voz alta” na escola trazida
por Bajard (1994) a partir de Chartier e Hebrard (1989). Nosso inte-
resse volta-se especificamente para a leitura oral do poema no con-
texto escolar – e, por que não, na prática individual de leitura. Neste
sentido, as reflexões de Zumthor (1997) é que darão respaldo à nossa
discussão. Por outro lado, Bajard (1994) nos dá algumas pistas da
maior importância sobre a “voz alta”. Recolhemos algumas reflexões
que podem contribuir para nosso propósito com a leitura do poema.
O autor destaca que

A voz que diz o texto certamente leva em conta a função lin-


guística, mas também uma outra, musical. A voz do contador
é quente ou dura, apta a se dobrar à diversidade dos perso-
nagens e emoções. O valor expressivo da matéria sonora, sua
musicalidade, podem assim estar desarticulados de seu valor
linguístico. Uma mesma palavra, um único pronome podem
transmitir múltiplas mensagens. (BAJARD, 1994, p. 97)

290
Hélder Pinheiro (UFCG)

Esta função musical não é explorada apenas pelo contador de


história ou pelo recitador ou ator em geral. Em nosso cotidiano, nas
conversas, lançamos mão dos vários recursos expressivos que a lín-
gua – através de sua prosódia – nos oferece. Nosso ódio, nosso medo,
nossa admiração, nossa paixão, nosso respeito são carreados por um
modo de dizer do qual nem sempre nos apercebemos. Para o profis-
sional de ensino, tomar consciência desses usos seria um passo im-
portante e evitaria dizer que não se sabe ler, que não se sabe conferir
expressividade a determinadas palavras, determinados versos, estro-
fes ou passagens de narrativas. Bastaria, para tomar consciência de
que todos nós lançamos mão dos recursos expressivos da voz, gravar
e observar uma conversa em que narramos um acontecimento, ex-
pressamos nosso desacordo com uma pessoa ou situação, nossa raiva
de alguém etc.
Bajard (1994, p. 96) destaca a diversidade de linguagem que re-
cortam o dizer: dimensão acústica, o olhar, o gesto, o figurino, o ce-
nário. Estes elementos se unem no gesto de dizer qualquer palavra. E
quando se trata da palavra poética estas várias dimensões podem ser
usadas para descoberta de sentidos, para aproximar o leitor do po-
ema. Mesmo que, na leitura de um poema, alguns destes elementos
não se façam presentes de modo determinante, muitas vezes ima-
ginamos situações que nos ajudam – mesmo inconscientemente – a
pronunciar de modo mais expressivo determinadas palavras. O con-
tador ou o recitador profissional busca a adequação entre o gesto e
o olhar ou entre o tom de voz e o movimento. Sem necessariamente
precisar ir tão longe, o professor poderá conferir a cada palavra a
expressão adequada. Isto pressupõe refletir sobre cada uma delas,
experimentá-las, dizê-las de modos diversos para encontrar uma
adequação minimamente aproximada.

291
Poesia, Oralidade e Ensino

Zumthor pesquisou por longos anos a poesia oral e mostrou o


valor que a voz assume na constituição das comunidades e dos sujei-
tos. Para ele, a voz “informa sobre a pessoa, por meio do corpo que a
produziu: mais do que por seu olhar, pela expressão de seu rosto, uma
pessoa é ‘traída por sua voz’. Melhor do que o olhar, a face, a voz se
sexualiza, constitui (mais do que transmite) uma mensagem erótica”
(1997, p. 15). Pensar a leitura oral do poema no espaço escolar pressu-
põe a consciência de que “a voz humana constitui em toda cultura um
fenômeno central” (ZUMTHOR, 2014, p. 14).
De que modo encontrar esse valor da voz na experiência de lei-
tura de poesia? Como lançar mão de procedimentos que contribuam
para que o poema seja vocalizado de modo a provocar no leitor e
no ouvinte um efeito peculiar? A experiência cotidiana de leitura
de poesia comprova que o ritmo, o valor expressivo de determina-
das palavras, a altura, a entonação são decisivos. Se por acaso não
vivenciamos em nossa comunidade a leitura ou a recitação de po-
emas, o contar expressivo de contos, causos, anedotas e, portanto,
estivermos desabituados de ouvir, a escola poderia ser esse espaço de
educação da audição – e dos sentidos em geral – através da leitura de
poemas. Nossa sensibilidade pelo auditivo é marcante, sobretudo na
infância. Aprendemos parlendas motivados por apelos sonoros que
ecoam em nossos ouvidos, e nos habituamos pelo resto da vida; re-
petimos frases sonoras, muitas vezes sem sentido, decoramos versos
cheios de musicalidade – tudo quase sempre desprovido de sentidos.
Porque não dar continuidade na escola a esta sensibilidade auditiva,
sobretudo para favorecer a aproximação do poema? Mesmo sem ser
um especialista na interpretação oral de textos, o professor pode de-
senvolver uma competência mínima na leitura oral de poemas – e de
textos narrativos também – para utilizá-lo como instrumento deto-
nador do interesse inicial pela poesia.

292
Hélder Pinheiro (UFCG)

Pensemos esta questão a partir da leitura de um poema, para ser-


mos mais concretos. Imaginemos a leitura, numa turma de final do
ensino fundamental ou de qualquer série do ensino médio, do poema
“Consolo na praia”, de Carlos Drummond de Andrade, a seguir:

Vamos, não chores.


A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.


O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.


Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,


em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.


À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias


precipitar-te – de vez – nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.

293
Poesia, Oralidade e Ensino

Um procedimento que ajuda a realização oral é a discussão, já de


entrada, do título do poema – antes mesmo da leitura integral do po-
ema. O que é um “consolo”? Em que situações precisamos de consolo?
Apenas as crianças necessitam de consolo? O que se pode imaginar
com esse título – que situações poderiam ser projetadas? Alguma vez,
em nossas vidas, admitimos a necessidade de um consolo?
Após esse diálogo, que pode ser enriquecido com outras ques-
tões, iniciar a leitura do poema. E realizá-lo várias vezes, com dife-
rentes participantes, por exemplo. Como vocalizar esse “Vamos, não
chores...”? Treinar várias possibilidades – pedir que repitam diversas
vezes, atentando para o que vem depois – o conjunto de perdas enu-
meradas. A repetição de certas palavras pode oferecer dificuldade ao
leitor pouco treinado na realização oral do poema. Tende-se quase
sempre ao mesmo tom, sem se buscar uma particularidade para cada
uma delas. Por exemplo, como repetir três vezes o verbo “passou”?
Pode-se subir ou descer a altura da voz no final da enunciação, de
modo a pronunciá-lo mais gravemente, ou ainda permanecer numa
mesma altura, atentando para o sentido particular de cada palavra,
como se enfatizássemos a sua dureza. Por exemplo, no verso “Algu-
mas palavras duras”, esta última palavra pode ser dita com uma for-
ça maior na sílaba inicial, numa espécie de reforço da própria acen-
tuação natural. Na mesma estrofe, o “nunca”, repetido duas vezes,
convida também a uma realização de modo mais intenso.
Caso os leitores tenham dificuldade de conferir expressividade
às palavras, sugerir, por exemplo, que lembrem ou imaginem situa-
ções em que ouviram palavras duras ou em que tiveram que dizer
um “nunca” com toda convicção. Rememorando ou imaginando, po-
deremos encontrar a expressividade das palavras.
Observar que, nalguns momentos, o poema afirma e atenua, o
que pede também uma expressividade no plano oral. Por exemplo,

294
Hélder Pinheiro (UFCG)

todos os versos iniciados pela adversativa “mas”. Talvez seja no de-


talhe que a realização oral se constitua de modo significativo. E ter
sempre o cuidado para não cair no exagero, no caricatural – a não ser
quando o poema o exige –, fugindo do tom e da perspectiva inscritos
no poema.1
Ajuda a encontrar o tom do poema procurar dizê-lo num regis-
tro totalmente diverso do que sua semântica interna aponta. No po-
ema em destaque, vocalizar de um modo oposto ao que se imagina e
espera de um “consolo”. O procedimento suscitará discussões, novas
realizações, o que torna rica a experiência de leitura e deixa claro
que o texto está aberto a várias realizações, mas que há elementos
propriamente textuais e contextuais que direcionam para o que é
mais ou menos adequado.
No âmbito da realização oral, aprende-se muito ouvindo. No
caso específico do poema “Consolo na praia”, há uma interpretação
realizada pelo ator Paulo Autran que poderá ajudar o professor a des-
cobrir a riqueza do poema e a encontrar seu próprio modo de dizê-lo.
Não achamos adequado iniciar a experiência de leitura já com a re-
alização de um ator ou professor. É importante que o aluno aprenda
a ir descobrindo a riqueza sonoro/interpretativa do poema. Desta
forma, ele vai construindo um modo particular de leitura que poderá
acompanhá-lo pela vida afora, afinal, nem sempre terá um professor
para orientá-lo. E, se nosso objetivo último é a formação de leitores,
aliar esforço de descoberta e conhecimento de leituras expressivas
já realizadas poderá oferecer um bom caminho de formação. Ou-
tros poemas em que a dimensão oral se destaca e que podem ser
exercitados no contexto escolar poderiam ser: “Evocação do Recife” e
“Última canção do beco”, de Manuel Bandeira; “Caso do vestido”, de

1. Tomamos os dois conceitos do importante ensaio de Alfredo Bosi (2003), “A interpretação da obra
literária”.

295
Poesia, Oralidade e Ensino

Carlos Drummond de Andrade, dentre tantos outros. Aqui também


o professor deve partir de sua experiência de leitura, dos poemas que
são parte de sua vivência.
Passemos ao próximo ponto que, de certo modo, já apareceu nos
dois primeiros. Mas agora vamos explicitá-lo mais claramente.

Ensino

Pensar o ensino de literatura e, mais especificamente, da poesia,


como vínhamos realizando há algumas décadas, pressupõe situar o
binômio ensino/aprendizagem. Embora tenhamos nos guiado, ao
longo dos anos, muito mais pela intuição do que por uma perspec-
tiva pedagógica inscrita conscientemente em teorias, nos últimos
anos viemos nos aproximando da perspectiva socioconstrutivista e
observando que muitos dos aspectos de nossa prática se aproximam
desta abordagem epistemológica do ensino.
Sempre nos guiou a ideia de que o fato de estarmos trabalhando
com uma arte – no caso, a que tem a palavra como seu fundamento –
deveria ser decisivo para centrar o ensino na aproximação mesma
dos textos – poemas, contos, crônicas, romances, folhetos de cordel,
letras de canções etc. – e não meramente numa classificação históri-
ca ou numa categorização dos gêneros literários. Toda exploração da
dimensão expressiva dos textos, ao modo como explicitamos acima,
nasceu desta busca de aproximação, de vivência com o texto literá-
rio, de exploração dos sentidos. Buscamos sempre um ensino que
tivesse como resultado uma aprendizagem, não de conceitos a priori,
mas, diríamos, de uma vivência, da internalização de uma experiên-
cia. Noutras palavras, uma aprendizagem que nascia do projetar-se
na linguagem e na experiência social que o texto favorecia. Neste
sentido é que fomos constatando – a partir de alguns comentários de

296
Hélder Pinheiro (UFCG)

leitores e pessoas que assistiam a algumas de nossas falas – que nos-


sa prática parecia ancorar-se numa perspectiva socioconstrutivista.
Por certo, desde os anos oitenta do século passado, tínhamos como
pano de fundo de nossa prática muitas das ideias do pedagogo bra-
sileiro Paulo Freire. Sua Pedagogia da autonomia, que resume muitas
de suas contribuições para pensar o ensino/aprendizagem, sempre
esteve em nosso horizonte, bem como outras de suas obras.
Os poemas trazem um saber sobre o mundo, mas um saber per-
meado pela vivência, pela percepção sensorial do referido mundo.
Não necessariamente um saber racional, ou, menos ainda, uma es-
pécie de didática, de lição, embora muitas vezes a escola se aproprie
do texto literário apenas pensando em lições e informações que os
textos possam trazer. O que me ensina, portanto, um poema? Ou
ainda: como o poema me ensina alguma coisa? Enfrentar essas ques-
tões, sem cair no didatismo, me parece essencial para pensar o lugar
da literatura na escola e na vida.
Embora um poema que retome, por exemplo, a experiência de
sofrimento de seres humanos num período de guerra, ou a vivencia-
da seca e a fome, ou as perdas amorosas possa me ensinar – indire-
tamente – algo sobre a história, a geografia e os sentimentos huma-
nos, não há nas obras literárias (se não se transformariam em meras
cartilhas) um saber sistemático a ser ensinado. Cada leitor é que vai
experimentar o poema a partir de seu horizonte de expectativa, que
envolve suas experiências humanas e estéticas. E esta particularida-
de é por demais significativa, dentre outras coisas, por ser bastante
pessoal. Cada leitor, neste sentido, poderá recolher do texto literário
aspectos às vezes impensáveis para outros leitores. E poderá recu-
sar – consciente ou não – algo que parece, aos ditos leitores madu-
ros, essencial, indispensável. No ambiente escolar, o confronto e a
partilha de diferentes pontos de vista diante do texto são da maior

297
Poesia, Oralidade e Ensino

importância para que se possa construir uma experiência sobre a


obra lida. Ou seja, aprende-se não necessariamente um saber, mas
um modo de ver e sentir o mundo que, na lírica, comparece sempre a
partir de um viés mais pessoal. Diria, ainda, aprende-se, a partir de
uma percepção sensível, intuitiva, desde que nos deixemos conduzir
pelo modo como o eu lírico expressou seus sentimentos e percep-
ções. Trata-se, portanto, de um ensino/aprendizagem bastante com-
plexo, que não cabe taxativamente num modelo, numa concepção
pedagógica fechada.
Numa aula com poemas de Adélia Prado, no primeiro semes-
tre de Letras, tivemos uma experiência que, dentre tantas outras,
revela, parcialmente, como se dá esse processo de ensino e aprendi-
zagem com/do texto literário. Numa antologia com vários poemas
da poetisa mineira, constava um, denominado “Casamento”. Lidos
os poemas, solicitamos que os leitores expressassem suas intuições,
percepções e crítica sobre os poucos poemas. Um grupo de alunas
centrou-se num comentário crítico sobre o poema “Casamento”, des-
tacando a condição de oprimida da mulher ao ter que levantar-se a
qualquer hora da noite para cuidar de peixes com o marido. Esta pri-
meira observação nos pareceu inadequada com relação à experiência
que o poema apresentava, mas não nos contrapusemos às leitoras.
Solicitamos a releitura do poema e que outros leitores se pronuncias-
sem. Passemos aqui à leitura para que fique mais claro o caminho
percorrido:

Casamento

Há mulheres que dizem:


Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,

298
Hélder Pinheiro (UFCG)

ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.


É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Após a terceira leitura, uma aluna levantou a questão: a mulher


levanta-se para escamar os peixes não por imposição, mas porque
se sentia bem realizando aquele trabalho com o marido. E citou um
verso que comprovava sua percepção: “É tão bom, só a gente sozi-
nhos na cozinha”, bem como defendeu que aquela mulher mostra-se
diferenciada de outras quando diz “eu não”. O debate tomou toda a
aula e o grupo que externou seu ponto de vista inicial sobre o po-
ema foi percebendo – não tão facilmente – que uma coisa são “mi-
nhas concepções” sobre determinados temas, outra é o que os poe-
mas dizem. Pode haver ou não concordâncias, aproximações, mas
também distanciamentos. No caso observado, o fato de as leitoras
terem uma visão crítica sobre o modelo de casamento da sociedade
atual, sobretudo o que perdura para as mulheres, não significa que
não haja experiências diferenciadas, vivências outras e bastante sig-
nificativas. Aprende-se numa aula como esta várias coisas: primeiro,
que o mediador não deve se opor imediatamente ao pensamento do
leitor, mesmo que perceba que a interpretação realizada apresente
desvios claros do texto em discussão; segundo, que a “leitura com-
partilhada” (COLOMER, 2007) entre os leitores pode contribuir para

299
Poesia, Oralidade e Ensino

percepções mais agudas do texto literário, para descobertas às quais,


como leitores solitários, poderíamos não ter chegado ou mesmo para
favorecer a mudança de perspectivas, como consequência do debate;
e, terceiro, se o mediador favorecer a descoberta de determinadas
peculiaridades da linguagem literária – imagens inusitadas, ritmos,
musicalidade etc. –, que é importante postar-se diante do poema
com mais atenção, tentando apreender sua construção e que é desta
construção que emergem os sentidos.
O percurso metodológico seguido dialoga com a concepção
construtivista que defende que “é preciso realizar atividades que pro-
movam o debate sobre suas opiniões [dos alunos], que permitam for-
mular questões e atualizar o conhecimento prévio, necessário para
relacionar conteúdos com outros” (ZABALA, 2010, p. 95). Os leitores
tendem, num modelo de aula que privilegie o debate, a se sentirem
mais valorizados, ou mesmos desafiados, a expor suas percepções,
uma vez que sabem que não serão considerados, a priori, certos ou
errados. O amadurecimento da leitura vai se dando paulatinamente,
o que favorece a elaboração de conhecimentos – sobre a poesia, sobre
o poeta ou poetisa estudado, sobre o tema debatido. Lembra ainda
Zabala (2010, p.97) que

a elaboração do conhecimento exige o envolvimento pessoal,


o tempo e o esforço dos alunos, assim como a ajuda espe-
cializada, estímulos e afeto por parte dos professores e dos
demais colegas. Ajuda pedagógica ao processo de crescimen-
to e construção do aluno para incentivar os progressos que
experimenta e superar os obstáculos que encontra.

Neste sentido, cada experiência com o mesmo poema poderá


gerar novas aprendizagens, completamente inusitadas, uma vez que
vai depender dessa interação texto-leitor e da opção metodológica

300
Hélder Pinheiro (UFCG)

escolhida pelo mediador o surgimento de situações pedagógicas res-


ponsáveis pelos ensino e aprendizagem. Diferentemente de se levar
um texto teórico, por exemplo, sobre modelos de casamento tradi-
cional na sociedade contemporânea. Se eu levar um texto assim para
diferentes turmas, serão as informações, os conceitos que serão apre-
endidos de modo quase igual – embora o professor possa ser o mais
criativo possível no plano metodológico.

Considerações finais

O ensino da poesia, portanto, para se tornar eficaz na formação


de leitores, precisará abrir-se a novos procedimentos metodológicos
que, na minha experiência, nasceram da natureza mesma da poesia.
Do prazer de ouvir o poema em voz alta, da alegria da descoberta de
modos diversos de dizer o poema, do confronto de percepções sobre
o mesmo texto – que nos leva a reforçar ou abandonar um ponto de
vista – é que foi surgindo nossa opção metodológica que sempre pri-
vilegiou o encontro do leitor com o poema. A partir desse encontro,
dependendo do nível do leitor com que se trabalha, muitos saberes
podem ser acionados: sobre a percepção de problemas sociais, so-
bre as alegrias dos encontros afetivos, sobre a dor de certos desen-
contros, sobre ações desumanas que perduraram em determinados
momentos históricos, sobre o medo (do futuro, da morte, da solidão
e tantas coisas mais), sobre a beleza dos corpos humanos, também
sobre a degradação do corpo e a perplexidade que isto pode gerar,
sobre as dificuldades das escolhas e tantas experiências humanas
que nos rodeiam e ainda nos aguardam. Tudo isso dito nos poemas
de um certo modo, num certo andamento, com um ritmo peculiar,
lançando mão de imagens ora inusitadas ora tão simples que nos
assustam, ou explorando o próprio caráter material das palavras –

301
Poesia, Oralidade e Ensino

sonoridades e visualidade. É como se a poesia, por exigir tanto de


nossos sentidos, fosse um grande instrumento de educação de nossa
sensibilidade. Educação que não começa nem termina na escola e
que poderá nos acompanhar pelo resto da vida. Nos versos da poeti-
sa paraibana Lenilde Freitas, somos colocados diante desta questão:

Momento
A poesia se aproxima
marca sua presença

ou esteve sempre aqui


como sinal de nascença?

REFERÊNCIAS

BAJAR, Elie. Ler e dizer: compreensão e comunicação do texto escrito. São Paulo:
Cortez, 1994.
BOSI, Alfredo. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. 2. ed. São
Paulo: Editora 34; Duas Cidades, 2003. (Col. Espírito Crítico)
COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. Trad. Laura
Sandroni. São Paulo: Global, 2007.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREITAS, Lenilde. Grãos na eira. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
JAKOBSON, Roman. O que é poesia. In: TOLEDO, Dionísio (org). Círculo linguístico
de Praga: estruturalismo e semiótica. Trad. Zênia de K., R. Toledo e Dionísio Toledo.
Porto Alegre: Ed. Globo, 1978.
MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da Mimese: ensaios sobre Lírica. 2ª. Ed Rio
de Janeiro: Topbooks, 1997.
PAZ, Octavio. O Arco e a lira. 2.ed. Trad. de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1982.
VALÉRY, Paul. Variedades. Trad. de Maiza M. de Siqueiro. São Paulo: Iluminuras,
1991.
ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Trad. Ernani F. da F. Rosa.
Porto Alegre: Artmed, 2010.
ZUHTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa P. Ferreira. São Paulo:
Editora Hucitec, 1997.

302
13
Literatura dos Anos Iniciais
ao Ensino Superior: contribuições
do gênero entrevista à pesquisa
e à formação docente1
Maria Amélia Dalvi 2 (Ufes)

Introdução: apresentação da pesquisa

A pesquisa que dá origem a esse trabalho teve como título “Ensi-


no de literatura e leitura literária na escola e na universidade: cultu-
ra, história e memória no Espírito Santo (1985-2010)”3 (DALVI, 2013),
e foi desenvolvida ao longo de um ano, entre os meses de agosto de
2013 a julho de 2014, no contexto do Programa Institucional de Ini-
ciação Científica da Universidade Federal do Espírito Santo; os re-

1. Este trabalho sintetiza resultados de uma pesquisa desenvolvida na Universidade Federal do Espírito
Santo, no contexto da formação de estudantes de graduação em Letras e Pedagogia no programa
institucional de Iniciação Científica. Desse modo, embora o texto aqui apresentado seja de minha
autoria e responsabilidade, é necessário destacar a participação direta, no delineamento da pesquisa, na
produção de dados e nas discussões, dos estudantes Ana Cíntia Alves Machado, Ana Cristina Alvarenga,
Daiani Francis Fernandes Ferreira e Josineia Sousa da Silva. Destaco, ainda, a contribuição do técnico de
audiovisual Guilherme dos Santos Neves Neto e de sua equipe, que foram fundamentais à produção dos
vídeos de subsidiaram nosso trabalho de pesquisa. O apoio institucional consistiu, além do fornecimento
de infraestrutura básica (salas, materiais de consumo, câmeras e gravadores), na cessão de carga horária
semanal para a supervisora do projeto e na concessão de bolsas para os estudantes envolvidos.
2. E-mail: mariaameliadalvi@gmail.com ou maria.dalvi@ufes.br.
3. A pesquisa foi registrada oficialmente, junto à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da
Universidade Federal do Espírito Santo, sob o número 4391/2013.

303
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior

sultados obtidos por cada subprojeto estudantil foram apresentados


na forma de relatórios ou de trabalhos de conclusão de curso (AL-
VARENGA, 2014; FERREIRA, 2014; MACHADO, 2014; SILVA, 2014)
e o conjunto dos dados e análises foi apresentado na forma de um
relatório unificado4 (DALVI et al., 2014). A pesquisa se deu no seio do
Grupo Interinstitucional de Pesquisa “Literatura e Educação”5, que
tem se dedicado, desde sua criação em 2011, a estudos e pesquisas
das relações entre livros, leitura, leitores e literatura, quer sejam ou
não atravessadas pelas práticas de educação formal.
O objetivo geral da pesquisa era compreender como se deu o ensi-
no de literatura e leitura literária na escola básica e na universidade no
Espírito Santo, mais particularmente na cidade de Vitória, no período
de 1985-2010, de modo a colaborar para o engendramento de uma his-
tória da educação leitora e literária local, em correlação com a história
da educação leitora e literária no Brasil, no mesmo período (conside-
rando-se, para tal, os resultados de pesquisas que se debruçaram sobre
documentos oficiais, relatos de experiência, pesquisas participantes e/
ou pesquisas de campo). Configurou-se como qualitativa (BOGDAN;
BIKLEN, 1994), e se utilizou da análise de conteúdo e da análise de
imagens em movimento (BAUER; GASKELL, 2013).
Como fonte, tomaram-se simultaneamente objetos culturais es-
critos (documentos oficiais, impressos pedagógicos, materiais didáti-
cos de aula e cadernos escolares) e entrevistas semiestruturadas reali-
zadas pelo grupo de pesquisa e gravadas em vídeo com professores em
atividade docente no período estudado; os dados foram organizados
a partir de quadros, tabelas e textos sincréticos (com recurso às lin-

4. O relatório em questão foi apreciado e aprovado pela comissão de pesquisa do Departamento de


Linguagens, Cultura e Educação, que concedeu carga horária semanal docente para seu desenvolvimento,
no entanto se encontra inédito e em circulação restrita, até o momento.
5. A página do grupo, com informações mais detalhadas sobre os objetivos, projetos, integrantes e
publicações, pode ser acessada em http://www.literaturaeeducacao.ufes.br/.

304
Maria Amélia Dalvi (UFES)

guagens verbal e visual). A orientação teórica buscou fazer convergir


perspectivas: a) enunciativo-discursivas (com base no pensamento
de Mikhail Bakhtin, no que diz respeito às concepções de linguagem
e sujeito); e b) histórico-culturais (com base no trabalho de autores
como Michel de Certeau, Peter Burke e Roger Chartier, no que diz
respeito às possibilidades de uma história não hegemônica, que não
se paute privilegiadamente pelas questões econômicas e que pense a
cultura historicamente em contextos sociais micrológicos ou comuni-
tários). Especialmente, privilegiaram-se as noções teóricas de práticas,
representações e apropriações; mais lateralmente, as de protocolos de
leitura, de objeto cultural e de comunidades de interpretação.
No processo, o objetivo geral parece ter sido cumprido. Este arti-
go apresenta, pois, uma síntese dos resultados desse trabalho; na im-
possibilidade de apresentar todos os dados e todas as considerações
formuladas, incidirá, prioritariamente, sobre a análise das entrevistas
e depoimentos registrados em vídeo, cujo conteúdo foi transcrito, ana-
lisado e discutido pelo grupo, em face dos resultados das pesquisas
anteriormente desenvolvidas, a serem mencionadas adiante.
Como resultado incidental – ou seja, não inicialmente previsto –,
observamos que, no processo de conceder entrevistas ou depoimen-
tos ao grupo de pesquisa, os professores relatavam que rememorar
e narrar a terceiros suas experiências docentes os ajudava a reorga-
nizar o vivido e a rever e reavaliar o processo de trabalho docente,
revendo posturas, métodos e a própria relação com a atuação pro-
fissional ao longo dos anos. Um ou outro dos sujeitos da pesquisa,
inclusive, chegou a verbalizar um efeito “terapêutico” ou um efeito
formativo – ambos pela via da reflexão – no processo da concessão
da entrevista ou do depoimento. Essa dimensão foi também consi-
derada para a produção do relatório unificado (DALVI et al., 2014) e
será pontuada nas considerações finais deste texto.

305
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior

O contexto de interlocução institucional na


realização da pesquisa

O trabalho de pesquisa em foco, neste texto, deu seguimento a


outros realizados anteriormente: “As disciplinas voltadas à formação
do professor de Língua Portuguesa no Espírito Santo: abordagens
de leitura, da literatura e dos materiais didáticos nas licenciaturas
em Letras e Pedagogia”, no período 2011-2012, e “Leitura, literatura e
materiais didáticos no Espírito Santo: uma história a partir de múl-
tiplos objetos culturais escritos”, no período 2012-2013. É importante
retomá-las porque elas atravessam este trabalho.
A pesquisa desenvolvida entre 2011 e 2012 versou sobre as dis-
ciplinas (ementas, programas e planos de curso) existentes nos cur-
sos de formação inicial de licenciados em Letras e em Pedagogia na
Universidade Federal do Espírito Santo. Foi realizado um exaustivo
levantamento dos documentos citados (ementas, programas e pla-
nos de curso), procedimento seguido de digitalização, organização,
sistematização e análise de todo o material levantado. Desse modo,
foram identificadas nos cursos de licenciatura em Letras e Pedagogia
as disciplinas que abordavam ou não conhecimentos relacionados
à leitura, à literatura e aos materiais escritos utilizados nos proces-
sos de formação de mediadores da leitura escolar e, em particular,
de mediadores de leitura de literatura, no contexto escolar. Foram
pontuados também os autores mais frequentemente referenciados
nesses documentos, visando a compreender as perspectivas teóricas
apontadas institucionalmente como norteadoras da formação inicial
intentada para os licenciandos em Letras e Pedagogia. Os resultados
foram cotejados com pesquisas semelhantes desenvolvidas em ou-
tros espaços institucionais análogos.

306
Maria Amélia Dalvi (UFES)

Já a pesquisa desenvolvida entre 2012 e 2013, visando a compre-


ender mais amplamente os resultados já obtidos na pesquisa ante-
rior, versou sobre documentos que circula(ra)m nas licenciaturas em
Letras e Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo, con-
cernentes à formação docente inicial no âmbito da leitura e, particu-
larmente, da leitura literária. Os documentos tomados como corpus
foram de diferentes naturezas, tais como projetos político-pedagógi-
cos de curso, matrizes curriculares, cadernos de planejamento, ma-
teriais didáticos utilizados nas práticas de ensino na universidade
(slides, apostilas, resumos etc.), cadernos de alunos, relatórios de es-
tágio supervisionado e demais instrumentos de avaliação (provas,
trabalhos, roteiros de apresentação de seminários etc.). Também foi
realizado, como no ano anterior de pesquisa, um exaustivo levanta-
mento dos documentos citados, procedimento seguido de digitaliza-
ção, organização, sistematização e análise do material. Desse modo,
pudemos aprofundar nossa compreensão sobre o desenvolvimento
das disciplinas concernentes à leitura, à literatura e aos materiais di-
dáticos no seio dos cursos de licenciatura em Letras e Pedagogia em
nossa instituição-sede, tendo por esteio “rastros” ou “indícios” his-
tóricos deixados por sujeitos em objetos culturais escritos concate-
nados a processos formativos e práticas pedagógicas no contexto do
ensino superior. Em paralelo, Evaristo, S. (2014) pesquisou documen-
tos oficiais que embasam as práticas dos professores entrevistados
(citados por eles, no processo de entrevista), com o intuito de com-
preender os pontos-chave desses documentos no tocante à leitura,
e em particular à leitura literária; no processo, deteve-se, especial-
mente, nos Parâmetros Curriculares Nacionais, no Currículo Básico
da Escola Estadual do Espírito Santo e nos Documentos Curriculares
Municipais de redes em que os professores entrevistados na pesquisa
geral já atuaram ou atuavam no momento da entrevista.

307
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior

Como produções concernentes a esses dois projetos, podem-se


citar Dalvi et al. (2014, 2011), Dalvi (2014, 2012, 2011a, 2011b), Finardi e
Dalvi (2012), Lemos (2012), Mariano (2012) e Novais (2013, 2012).
Por sua vez, a pesquisa desenvolvida entre 2013 e 2014, cujos re-
sultados aqui noticiamos, devotou-se a conhecer os discursos de pro-
fessores que atuaram nos cursos de Letras e Pedagogia da Universi-
dade Federal do Espírito, entre 1985-2010, e de professores formados
por esses cursos que atuaram em instituições públicas de educação
básica no estado do Espírito Santo, no mesmo período, em corre-
lação com documentos que apresentavam, concernentes a essa sua
atuação. Os discursos foram registrados por meio de vídeos, a partir
de entrevistas semiestruturadas realizadas pela equipe de pesquisa,
com foco no trabalho pedagógico com as questões do livro, da leitura
e da literatura.
Houve, em seguida ao registro videográfico, a edição e a trans-
crição do material, seguida de análise de conteúdo. Esse trabalho
permitiu correlacionar os documentos analisados nos momentos
anteriores aos discursos de sujeitos-agentes dos processos em foco.
Paralelamente, no âmbito do grupo de pesquisa e dos seminários
de trabalhos de conclusão de curso, realizam-se estudos de campo
(especialmente na educação infantil e nos anos iniciais do ensino
fundamental), que contribuíram para aprofundar e complexificar os
dados obtidos pela análise dos documentos escritos e das entrevistas
e depoimentos registrados em vídeo. Podemos mencionar, especial-
mente, as pesquisas de Libardi (2014), Machado e Lellis (2014), Eva-
risto, F. (2014), Adão et al. (2013) e Leão e De Prá (2013).
Essas pesquisas de campo mostraram, a partir da observação de
práticas docentes, que as concepções e as práticas atinentes ao tra-
balho pedagógico com a leitura e a literatura, bem como os usos dos
materiais didáticos mencionados pelos professores entrevistados no

308
Maria Amélia Dalvi (UFES)

contexto da pesquisa geral se repetiam, com relativa frequência, nos


diferentes campos investigados. Isso foi importante para possibilitar
ao grupo responsável pela pesquisa geral certa segurança com rela-
ção ao encaminhamento das análises das entrevistas.
Na tentativa de engendrar uma história da educação leitora e
literária local em correlação com a história da educação leitora e li-
teratura brasileira, o trabalho correlaciona-se aos esforços coletivos
da linha de pesquisa “Educação e Linguagens”, do Programa de Pós-
-Graduação em Educação e da linha de pesquisa “Literatura e Ex-
pressões da Alteridade”, da Pós-Graduação em Letras, ambas da Uni-
versidade Federal do Espírito Santo6. Essas linhas de pesquisa têm,
sistematicamente, dado a público estudos sobre a história da educa-
ção leitora e literária no Espírito Santo, considerando as singularida-
des desse estado na correlação com os demais estados da federação.
Podemos citar, a esse respeito, por exemplo, nos últimos cinco anos,
os trabalhos de:

a) Souza (2015) – que focalizou apropriações do livro didático


de língua portuguesa e literatura, distribuído pelo Programa
Nacional do Livro Didático, no contexto de uma escola públi-
ca de ensino médio do município de Cariacica (ES), nos anos
de 2013-2014;

b) Tragino (2015) – que focalizou a literatura produzida e pu-


blicada no Espírito Santo nos exames vestibulares da Univer-
sidade Federal do Espírito Santo, no período de 2005-2014;

6. Em paralelo, é importante frisar o apoio do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito


Santo, quanto à disponibilização de espaço físico e equipamentos, bem como quanto aos acesso e
guarda da documentação e bibliografia atinente à pesquisa, bem como a participação dos servidores
técnicos do Laboratório de Audiovisual à realização da tarefa.

309
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior

c) Dias (2013) – que focalizou políticas públicas de alfabetiza-


ção no município de Serra (ES), nos anos de 1995-2003, com
especial atenção à implantação do Bloco Único;

d) Nadai (2013) – que focalizou práticas de leitura em tur-


mas de 4ª série/5º ano no município de Serra (ES), em duas
escolas com Índices de Desenvolvimento da Educação Bási-
ca muito diferentes entre si;

e) Antunes (2011) – que focalizou práticas de leitura em tur-


mas de anos iniciais do ensino fundamental no contexto do
município de Vitória (ES); e

f) Oliveira (2010) – que focalizou práticas de leitura literária


em turmas de educação infantil, no contexto do município
de Vila Velha (ES).

Esse conjunto de trabalhos, pois, com todo o esforço já empre-


endido no sentido de compreender a educação leitora e literária no
estado do Espírito Santo, é parte inarredável das reflexões trazidas à
baila neste texto.

O trabalho de pesquisa: organização de


atividades e procedimentos pactuados

Como mencionado, o objetivo maior que tínhamos em vista era


conhecer práticas e representações do trabalho pedagógico de docen-
tes que atuaram e atuam dos anos iniciais do ensino fundamental ao
ensino superior no que se refere à educação leitora e literária (focando,
especialmente, a questão da leitura literária), a partir de múltiplos ob-

310
Maria Amélia Dalvi (UFES)

jetos culturais escritos que circula(ra)m na escola e na universidade,


bem como a partir dos discursos memorialísticos, organizados a par-
tir de entrevistas e depoimentos, de professores registradas em víde-
os. Supúnhamos que esses sujeitos e suas representações e práticas
engendra(ra)m uma história da educação literária no Espírito Santo,
em correlação com a história educacional brasileira.
É importante destacar que, inicialmente, projetávamos lidar
apenas com entrevistas, razão pela qual, inclusive, nos utilizamos de
questões previamente estruturadas. Contudo, em algumas das en-
trevistas, as respostas às questões eram tão longas que preferimos
reconhecê-las, no tocante ao gênero, como verdadeiros depoimentos
insertados no gênero entrevista – e deixamos que o convidado falas-
se sem obrigá-lo a ater-se ao ponto focalizado pela questão previa-
mente elaborada.
O trabalho, visando a uma certa organização de rotinas e proce-
dimentos, foi dividido entre a equipe. Ficaram diretamente responsá-
veis pelos anos iniciais do ensino fundamental as pesquisadoras Ana
Cíntia Machado Alves e Josineia Sousa da Silva; pelos anos finais do
ensino fundamental a pesquisadora Ana Cristina Alvarenga; pelo en-
sino médio, as pesquisadoras Ana Cristina Alvarenga e Maria Amélia
Dalvi; e pelo ensino superior (com foco em Língua Estrangeira ou adi-
cional), a pesquisadora Daiane Francis Fernandes Ferreira.
No entanto, a despeito da distribuição da responsabilidade entre
os membros, a equipe elaborou o roteiro de entrevista conjuntamente
e realizou, sempre que possível, as entrevistas em parceria; de igual
modo, a discussão dos resultados foi feita em equipe. O trabalho indi-
vidual de cada pesquisador disse respeito à seleção de entrevistados,
ao contato com cada um deles, à transcrição das entrevistas e à produ-
ção de quadros, tabelas e textos de síntese sobre os aspectos mais des-
tacados em cada entrevista, a serem explorados em face dos objetivos
de pesquisa.

311
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior

No que tange às opções teóricas e metodológicas, o grupo se or-


ganizou para realizar uma autoformação prévia à etapa de seleção de
entrevistados/depoentes e de registros videográficos. Esse momento,
particularmente, foi subdividido em três momentos, com duração
aproximada de um mês e meio ou dois meses cada:

a) No primeiro momento, houve o estudo e a discussão de


subsídios teórico-metodológicos da História Cultural, da
perspectiva enunciativo-discursiva (com especial atenção às
noções de linguagem, enunciado concreto e gênero discur-
sivo, a partir de BAKHTIN, 2006, 2003, 1993)e da história
cultural, da história da educação e da história das disciplinas
escolares(a partir de BURKE, 1992, 2008; CHARTIER, 1988,
2001, 2003; CHERVEL, 1990; CERTEAU et al., 2008, CERTE-
AU, 2011; NUNES, CARVALHO, 1993);

b) No segundo momento, houve o estudo e a discussão de


subsídios teórico-metodológicos sobre pesquisa qualitativa,
pesquisa bibliográfico-documental, pesquisa histórica e de
subsídios teórico-metodológicos para a realização de entre-
vista semiestruturada, seu registro videográfico e seu uso na
pesquisa interpretativa (BOGDAN, BIKLEN, 1994; CUNHA,
MIGNOT, 2003; MOREIRA, CALEFFE, 2006; ROSA, AR-
NOLDI, 2006; GATTI, 2007; NÓVOA, 2007; PINSKY, LUCA,
2009; ALBERTI, 2010; NAPOLITANO, 2010); por fim,
c) No terceiro momento, houve o estudo e a discussão coleti-
va da bibliografia principal da pesquisa (ROUXEL, 1996; LE-
AHY-DIOS, 2000; MORTATTI, 2000; CEREJA, 2005; DALVI,
REZENDE, JOVER-FALEIROS, 2013).

312
Maria Amélia Dalvi (UFES)

Em geral, um dos pesquisadores era designado para conduzir as


discussões com o grupo da obra selecionada, semanalmente, para de-
bate. Nos debates, tanto focávamos o texto em si mesmo quanto tam-
bém sua aplicabilidade no contexto de nossa pesquisa – o que, por ve-
zes, nos fez redirecionar os procedimentos previstos no projeto inicial.
É importante salientar que, com a preparação prévia por meio
dessas discussões bibliográficas não tivemos em foco dicotomizar te-
oria e prática – pois, claro, entendemos que o processo de pesquisa
se faz no próprio pesquisar: bem como as decisões sobre a pesquisa
são tomadas no correr do trabalho. No entanto, essa formação básica
prévia antes do trabalho das entrevistas fazia parte do propósito da
Iniciação Científica na instituição, em que estudantes de graduação
estão tendo contato com seu primeiro projeto de pesquisa no contexto
da universidade.

a) Paralelamente à discussão mais técnica, no âmbito da me-


todologia da pesquisa e da apropriação dos aportes teóricos
de interlocução, pactuamos estabelecer como nortes de nos-
so trabalho de entrevistadores os seguintes pilares éticos:
tornar a entrevista um momento real e concreto do ponto de
vista enunciativo – ou seja, considerar os sujeitos que falam
não apenas como “informantes” cujo discurso poderíamos
conduzir, mas ouvi-los, real e sensivelmente interessados
pelo que tinham a dizer, sobre sua história docente;

b) Respeitar os turnos de fala de cada um dos sujeitos, sem,


contudo, tornar a situação artificial ou artificiosa, mesmo
que para isso tivéssemos que mudar no processo o roteiro
inicial de entrevistas;

313
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior

c) Não constranger ou coagir os entrevistados a responderem


ou relatarem tópicos sobre os quais percebêssemos o desejo
de silenciamento, pondo o respeito pelos sujeitos acima dos
propósitos da pesquisa;

d) Na transcrição7 das entrevistas, buscar ser fiel ao regis-


trado em vídeo, mas não tomar o texto verbal como absolu-
to em relação ao todo do documento;

e) Nas análises, não fragmentar, distorcer ou falsear as falas


dos sujeitos a partir de análises isoladas ou pontuais em face
de trechos, frases ou palavras; procurar sempre considerar
cada enunciado no contexto em que se insere – mesmo que
não se desse a ver no vídeo, que era o documento-base de
análise (por exemplo, recuperando documentos ou conver-
sas prévias à gravação da entrevista);

f) Considerar que, ao trabalhar com aqueles sujeitos de


pesquisa, estabelecemos uma relação humana sensível e
interessada – desse modo, atentar para o fato (por exem-
plo, simpatias, identificações, antipatias, rejeições etc.) no
momento das análises, mas sem reduzir os sujeitos a meros
informantes e sem pressupor a possibilidade de distancia-
mento ou isenção na análise.

7. No procedimento de transcrição, adotamos convenções bem simples, haja vista que seria a primeira
experiência do tipo (realizar transcrição de material) dos pesquisadores em Iniciação Científica. Portanto,
para hesitações, utilizamos reticências; para trechos incompreensíveis, utilizamos, entre colchetes,
a expressão “trecho incompreensível”; e identificamos cada falante pelo primeiro nome, conforme
autorizado pelo termo de consentimento livre e esclarecido, assinado por cada sujeito, aprovado no
contexto institucional das orientações então vigentes para protocolos éticos de pesquisa com seres
humanos.

314
Maria Amélia Dalvi (UFES)

No que diz respeito especificamente às entrevistas, o grupo pon-


derou que, conjuntamente com os sujeitos da pesquisa, contribuímos
com a produção e o estudo de textos memorialísticos (no caso, a partir
de entrevistas), que é um gênero radicalmente colaborativo.
A grande questão passou a ser: quais as dificuldades, especifici-
dades e cuidados éticos ao se trabalhar com esse tipo de fonte? Por
exemplo: quando um professor, em sua entrevista ou depoimento, re-
lata algo que fere a ética docente, como proceder para resguardá-lo
e, ao mesmo tempo, não falsear a pesquisa? Iríamos ou não informar
previamente os entrevistados sobre o teor das questões e como isso
alteraria ou não nosso trabalho? Toda essa discussão esteve, o tempo
todo, norteando nossa pesquisa. Como já ponderado, leitura e discus-
são semanal atenta de diversos textos e obras sobre história oral, uso
de fontes orais, registros videográficos etc. Além disso, buscamos em
livros didáticos e obras na área de linguística estudos sobre os gêne-
ros em questão e suas nuances. Assistimos, via Youtube, diversas gra-
vações de entrevistas, com distintas finalidades (perceber situações
com as quais poderíamos topar; prever problemas e aprender como
contorná-los a partir das práticas de entrevistadores experientes etc.).
Na sequência, elaboramos: a) um quadro sistematizador das es-
pecificidades da entrevista com fins de pesquisa histórica; b) critérios
para a seleção de entrevistados (formados e atuantes há pelo menos 10
anos, efetivamente licenciados em Letras ou Pedagogia, com vínculo
na educação pública, que atuassem na Grande Vitória); c) um roteiro
de entrevista (devidamente adaptado a cada entrevista); d) um termo
de consentimento livre e esclarecido a ser lido e assinado pelos su-
jeitos entrevistados; e) um documento orientador para o técnico em
audiovisual que realizaria as filmagens e edições dos vídeos; f) uma
carta-convite padrão para os professores e para as instituições a que
estão vinculados, para liberação; e g) um quadro de procedimentos
para a transcrição das entrevistas.

315
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior

As entrevistas foram realizadas pelo grupo, no Laboratório de


Audiovisual da Ufes, com o mesmo equipamento. As mesmas ques-
tões de base foram apresentadas a todos os professores. Tiveram di-
ferentes durações, sendo a menor com 38 minutos e a maior com 3
horas e 22 minutos. Exceto uma, todas aconteceram em terças-feiras
à tarde. Todas as entrevistas foram assistidas pelo grupo em formato
digital e transcritas por um dos participantes do grupo de pesquisa.
Os textos transcritos foram lidos e comentados pelos membros do
grupo. Todas receberam tratamento técnico com inserção de crédi-
tos e emendas de trechos nos quais havia interrupção, em seguida
foram salvas em arquivo digital (no computador do grupo de pesqui-
sa) e em DVD.

Ponderações teórico-metodológicas
que nortearam o trabalho

No contexto da pesquisa, escolhemos seis fragmentos textuais,


que denominamos “citações-chave” para todas as reflexões. Esforça-
mo-nos para que essas citações-chave preservassem certa integri-
dade, em face dos textos de que foram retiradas; no entanto, temos
clareza de que retirá-las de seu contexto de origem e transladá-las a
outros textos e contextos as transforma.
A primeira delas, dizia respeito à operação de produção de
memórias e de escrita da história, e foi colhida ao pensamento de
Peter Burke:

Tanto a história quanto a memória passaram a revelar-se cada


vez mais problemáticas. Lembrar o passado e escrever sobre
ele não mais parecem as atividades inocentes que outrora jul-
gavam que fossem. Nem as memórias nem as histórias pare-
cem ser mais objetivas. Nos dois casos, os historiadores apren-

316
Maria Amélia Dalvi (UFES)

dem a levar em conta a seleção consciente ou inconsciente,


a interpretação e a distorção. Nos dois casos, passam a ver o
processo de seleção, interpretação e distorção como condicio-
nado, ou pelo menos influenciado, por grupos sociais. Não é
obra de indivíduos isolados. (BURKE, 2000, p. 70)

Sua contribuição decisiva concerniu à problematização da cons-


trução da história e da memória. Longe de uma perspectiva que cria
na transparência dos documentos ou fontes, essa perspectiva de tra-
balho entende que lembrar o passado e produzir discursos sobre ele
(no caso dos entrevistados) ou produzir discursos sobre o que se lem-
bra dele (no caso dos pesquisadores) não são operações neutras ou
transparentes. Desse modo, mais do que as informações pontuais re-
gistradas discursivamente pelos entrevistados, interessa notar o que
eles escolheram falar e o que escolheram silenciar e procurar entender
as razões dessas escolhas, correlacionando-as à situação social e co-
munitária dos sujeitos, em face das instâncias de poder e legitimação.
Quanto à segunda citação-chave, dizia respeito à noção de his-
tória e às concepções de sujeitos com que preferimos trabalhar:

O objetivo fundamental de uma história que se propõe reco-


nhecer a maneira como os atores sociais dão sentido a suas
práticas e a seus enunciados se situa, portanto, na tensão en-
tre, por um lado, as capacidades inventivas dos indivíduos ou
das comunidades e, por outro, as restrições e as convenções
que limitam – de maneira mais ou menos clara conforme a
posição que ocupam nas relações de dominação – o que lhes
é possível pensar, dizer e fazer. Essa observação é válida tam-
bém para as obras letradas e as criações estéticas, sempre
inscritas nas heranças e nas referências que as fazem conce-
bíveis, comunicáveis e compreensíveis. É válida, desse modo,
para as práticas ordinárias, disseminadas e silenciosas, que
inventam o cotidiano. (CHARTIER, 2010, p. 49).

317
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior

A partir dessa citação, focalizamos nosso interesse em pensar


a noção de história que abraçaríamos. Conforme nossas discussões,
essa história não se interessa pelos (grandes) fatos ou episódios –
até porque duvida de uma história linear, positivista, centrada em
acontecimentos cuja verdade os documentos provam; ela se interes-
sa, principalmente, pelos sujeitos sociais, suas práticas e suas falas.
Essa opção por tal concepção de história implica em: a) não ne-
gar a existência de um poder que perpassa todas as relações, bem
como a existência de relações de dominação no mundo social (com
base em questões econômicas, políticas e culturais); no entanto, b)
reconhecer as possibilidades de escolhas dos sujeitos e instituições,
a despeito das restrições e convenções pelas quais são atravessados.
Em paralelo, pensar os sujeitos da história desse modo exige uma
lida diferente com as fontes de pesquisa, reconhecendo-os como do-
cumentos produzidos no contexto de relações humanas mediadas pela
cultura e que constituem e indiciam modos de ser e estar no mundo.
A terceira citação escolhida dizia respeito às possibilidades da
história oral (já que lidávamos com entrevistas orais):

A história oral é uma metodologia de pesquisa e de constitui-


ção de fontes para o estudo da história contemporânea sur-
gida em meados do século XX, após a invenção do gravador
a fita. Ela consiste na realização de entrevistas gravadas com
indivíduos que participaram de, ou testemunharam, aconte-
cimentos e conjunturas do passado e do presente. (...) A his-
tória oral é hoje um caminho interessante para se conhecer
e registrar múltiplas possibilidades que se manifestam e dão
sentido a formas de vida e escolhas de diferentes grupos so-
ciais, em todas as camadas da sociedade. Nesse sentido, ela
está afinada com as novas tendências de pesquisa nas ciências
humanas, que reconhecem as múltiplas influências a que es-
tão submetidos os diferentes grupos (...) Ao mesmo tempo, o

318
Maria Amélia Dalvi (UFES)

trabalho com a História oral pode mostrar como a constitui-


ção da memória é objeto de contínua negociação. A memória
é essencial a um grupo porque está atrelada à construção de
sua identidade. Ela [a memória] é resultado de um trabalho
de organização e de seleção do que é importante para o sen-
timento de unidade, de continuidade e de coerência – isto é,
de identidade. (ALBERTI, 2010, p. 155, 164, 167).

Desse trecho, o que ficou mais patente para os pesquisadores foi


que a história oral: a) valoriza os sujeitos e seus discursos diretos, em
detrimento de fontes oficiais impessoais ou “impessoalizadas”, das
quais se busca remover as marcas subjetivas ou individuais – des-
se modo, a pessoalidade dos registros não é um problema, mas um
dado constitutivo da história que se visa a compreender; b) nasce e se
sustenta em um contexto de reconhecimento dos diferentes grupos
e camadas sociais, em rasura à história valorização de sujeitos e ins-
tituições tradicionalmente prestigiados; e c) negocia com os próprios
sujeitos suas memórias (participando do seu processo de reelabora-
ção) e, portanto, negocia seus processos identitários, contribuindo
com a produção, guarda e estudo de registros, exigindo, portanto,
um redobrado cuidado ético por parte dos pesquisadores – desse
modo, nem a memória nem a identidade são entendidos como fixos,
imutáveis ou dotados de uma essência que lhes confira unidade.
A quarta citação-chave foi concernente às articulações e ten-
sões entre concepções particulares e concepções sociais:

As representações do mundo social assim construídas, em-


bora aspirem à universalidade, de um diagnóstico fundado
na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo
que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relaciona-
mento dos discursos proferidos com a posição de quem os
utiliza. As percepções do social não são de forma alguma
discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais,

319
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior

escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à


custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um pro-
jecto reformador ou justificar, para os próprios indivíduos,
suas escolhas e condutas. (CHARTIER, 1988, p. 17).

Especificamente em relação a essa citação, destacamos, nas dis-


cussões, que as representações dos sujeitos dadas a ver por meio de
discursos e práticas não podem ser tomadas como universais e nem
mesmo como representativas de toda uma categoria ou comunidade
cultural. Isso porque os diferentes sujeitos ocupam e exercem espa-
ços de poder diferentes nos diferentes contextos de que participam.
As percepções do social são interessadas, o que se relaciona com a
concepção de linguagem enunciativo-discursiva discutida a partir
de Bakhtin.
Como a quinta citação-chave, que tinha em vista a pesquisa
qualitativa (com seus objetivos e com suas limitações), escolhemos
a seguinte:

O objectivo dos investigadores qualitativos é o de melhor


compreender o comportamento e experiências humanos.
Tentam compreender o processo mediante o qual as pes-
soas constroem significados e descrever em que consistem
estes mesmos significados. Recorrem à observação empírica
por considerarem que é em função de instâncias concretas
do comportamento humano que se pode reflectir com maior
clareza e profundidade sobre a condição humana. (BOGDAN,
BIKLEN, 1994, p. 70)

Desse trecho, nos interessou, particularmente, ressaltar que


nosso interesse maior não seriam, tanto, em si, os resultados da pes-
quisa, mas o processo, a travessia, ou, noutras palavras, a compreen-
são dos sujeitos que participaram conosco do trabalho e dos modos
como constroem sentidos para si e suas práticas. Desse modo, mais

320
Maria Amélia Dalvi (UFES)

do que mapear ou inventariar concepções oficiais, conteúdos, meto-


dologias pedagógicas ou recursos didáticos, nosso foco estaria nos
sujeitos participantes da pesquisa e nos modos como pensam e se
relacionam com essas demais instâncias (concepções oficiais, conte-
údos, metodologias pedagógicas, recursos didáticos).
Por fim, ao pensar sobre a educação literária, consideramos
trabalhar com a seguinte citação-chave:

(...) partindo do pressuposto de que um dos principais papéis


da educação literária como disciplina de estudos é a repre-
sentação cultural de sociedades, é preciso observar que ela se
submete a imposições verticais, tais como programas e requi-
sitos de avaliação. (LEAHY-DIOS, 2000, p. 43).

Dela, especificamente, retiramos a ideia de que é possível pensar


a educação literária como uma disciplina relativamente autônoma
dentro do currículo escolar – embora não goze desse prestígio, no
contexto histórico investigado – e que se relaciona aos modos como
uma cultura e, portanto, uma sociedade, se pensa e representa. Isso
sem deixar de considerar que o processo educacional (e o literário,
como parte desse processo) está constrangido por instâncias de po-
der institucionais (escola e universidade, por exemplo) e suprains-
titucionais (políticas educacionais, redes e processos editoriais, re-
lações entre intelectuais e mercado, concepções de texto, sujeito e
linguagem que circulam em dado momento histórico etc.).

Os sujeitos da pesquisa

Os sujeitos da pesquisa são apresentados, a seguir, conforme sua


situação (formação e vinculação) no momento de encerramento da
pesquisa e produção inicial do relatório.

321
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior

Os pesquisadores

a) Ana Cíntia Machado Alves: recém-licenciada em Pedago-


gia, participou por 3 semestres do grupo de pesquisa, primei-
ramente, como bolsista Ufes de ações afirmativas e, depois,
como bolsista Capes; atualmente, é professora substituta em
uma escola privada de ensino fundamental, enquanto aguar-
da sua nomeação como professora efetiva da rede municipal
da Serra;

b) Ana Cristina Alvarenga: estudante do 7º semestre da li-


cenciatura em Letras-Português, atualmente está no 3º se-
mestre de participação oficial no grupo de pesquisa, sendo
dois como voluntária e um como bolsista CNPq;

c) Daiane Francis Fernandes Ferreira: estudante do 8º semes-


tre da licenciatura em Letras Português-Francês, atualmente
no 5º semestre de participação oficial no grupo de pesquisa,
sendo um como voluntária, dois como bolsista Ufes de ações
afirmativas e dois como bolsista CNPq; além de finalizar seu
TCC;

d) Josineia Silva de Sousa: recém-licenciada em Pedagogia,


participou por quatro semestres do grupo de pesquisa, sendo
dois como bolsista Fapes e dois como voluntária; atualmente,
é estudante do 1º semestre de licenciatura em Letras-Portu-
guês e se prepara para o processo seletivo do mestrado em
Letras, tendo sido aprovada na 1ª etapa (Inglês);

322
Maria Amélia Dalvi (UFES)

e) Guilherme dos Santos Neves Neto: técnico em audiovisual


do Laboratório de Apoio à Graduação do Centro de Educação
da Ufes, responsável pela gravação e edição do material;

f) Maria Amélia Dalvi: licenciada e mestra em Letras e dou-


tora em Educação; professora dos cursos de Letras e Pedago-
gia da Ufes; coordenadora do projeto;

Os entrevistados

Conforme o protocolo ético assinado, os pesquisadores concor-


daram em ser identificados pelo primeiro nome:

a) Cláudia – licenciada em Pedagogia, atuante nos anos ini-


ciais há mais de 21 anos, trabalha como pedagoga em um
turno e como docente em outro;

b) Lenita – licenciada em Geografia e Pedagogia, com curso


de especialização, atuante na educação infantil e anos ini-
ciais há mais de 25 anos, efetiva da rede municipal de Vitória;

c) Arlene – licenciada em Letras há 10 anos, com um curso de


especialização, mestre em Linguística há cinco anos, atuante
como técnica de secretaria de educação da rede municipal
de Vila Velha, e atuante no ensino médio como professora
efetiva da rede estadual;

d) Héber – licenciado em Letras há mais de 15 anos, com dois


cursos de especialização, mestrando em Letras, atuante no
ensino fundamental como professor efetivo da rede munici-

323
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior

pal de Vila Velha há oito anos e no ensino médio como efeti-


vo da rede estadual há 15 anos;

e) Ester – licenciada em Letras Neolatinas há mais de 50 anos,


tem especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado
em Língua e Literatura de Língua Espanhola, foi professora
da educação básica durante 20 anos, foi professora universi-
tária federal durante 40 anos e é professora colaboradora de
Programa de Pós-Graduação, além de escritora e tradutora;

f) Mirtis – licenciada em Letras Português-Espanhol há


mais de 35 anos, tem especialização, mestrado, doutorado e
atualmente realiza o pós-doutorado em Língua e Literatura
de Língua Espanhola; foi professora da educação básica du-
rante 10 anos atuando nas redes pública e privada e é pro-
fessora universitária federal há mais de 30 anos, atuando na
graduação e na pós-graduação em Letras.

Considerações sintéticas a partir do trabalho


de pesquisa

Em face das considerações teóricas e metodológicas apresenta-


das, não foi o propósito do grupo de pesquisa expor os resultados
individuais das análises das entrevistas, mas pontuar o que elas ace-
nam de comum, no que diz respeito ao ensino de literatura e leitura
literária na escola e na universidade, no contexto do Espírito Santo,
no período entre 1985 e 2010.
Não nos preocupamos em ponderar, por segmento, as práticas
e representações mais comuns, mas optamos por enxergar que os

324
Maria Amélia Dalvi (UFES)

professores da educação básica e do ensino superior participam de


comunidades culturais híbridas, que intercambiam entre si. De igual
modo, não trabalhamos com apropriações de documentos oficiais
por segmento educacional, mas escolhemos tratar os professores de
literatura como uma categoria (ou comunidade cultural). Optamos,
também, por não apresentar nossos “resultados” como fatos ou cer-
tezas, mas como sínteses de prospecções que realizamos sobre de-
terminados espaços-tempos históricos, a partir das representações e
práticas de sujeitos sociais que participam de culturas particulares.

Considerações gerais

Na correlação entre as pesquisas prévias levadas a turno pelo


grupo de pesquisa, as pesquisas desenvolvidas no contexto das li-
nhas de pesquisa em “Educação e linguagens” e “Literatura e expres-
sões da alteridade” e a análise das fontes documentais escritas da
pesquisa em tela, podemos pontuar algumas considerações às quais
o grupo chegou e que emergem como resultado de nosso trabalho.
A primeira delas é que há muitas oscilações na nomenclatura
especializada – o que não é um “problema”, mas um dado para o qual
os pesquisadores têm que estar atentos e sensíveis. Por exemplo, na
análise das pesquisas com as quais dialogamos, dos documentos e
dos próprios vídeos, nos deparamos com algumas hesitações: a) “lei-
tura [para esse sujeito, essa pesquisa etc.] se refere apenas à leitura de
textos verbais escritos ou também a outras práticas?”; ou: b) “ensino
de literatura e educação literária se referem aos mesmos processos
ou não?”; ou: c) “avaliação aqui é só avaliação somativa/cumulativa/
pontual ou também se refere à avaliação diagnóstica e processual?”;
ou: d) “quando o professor diz que trabalhou com a obra do autor X,
ele está se referindo ao texto – supostamente desentranhado da ma-

325
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior

terialidade que lhe dá forma – ou ao livro – como objeto cultural?”.


Talvez esses cuidados possam parecer “preciosistas”, mas não são,
porque têm efeitos diversos na escuta e na análise das entrevistas.
Essa proliferação de sentidos possíveis não é indesejável, mas aponta
para a espessura da linguagem e das práticas discursivas, espessura à
qual o pesquisador deve estar atento, especialmente se trabalhando
com uma perspectiva enunciativo-discursiva.
A segunda das considerações é que, consoante ao já apontado
por Cereja (2005), há ausência de clareza quanto ao objeto literário
e a existência ou não de uma especificidade linguística e discursiva
em relação ao texto reconhecido socialmente como literário. Quando
questionados, os professores em geral defendem haver um “algo” que
diferencie o texto literário dos demais (e defendem a importância da
lida com o texto literário justamente para a incorporação/apropria-
ção dessa outra dimensão da linguagem, além das práticas cotidia-
nas ou ordinárias ou pragmáticas), mas não reconhecem esse “algo”
como fruto de uma convenção social, atinente a dada comunidade
cultural – e, portanto, como transitivo e histórico.
Uma terceira consideração é que há poucos estudos de relatos
e memórias de professores e mesmo de relatos e memórias de leito-
res em processo de escolarização, seja no contexto brasileiro, seja no
cenário internacional. Isso evidencia, ainda mais fortemente, a im-
portância da opção pelas entrevistas orais, pois os documentos vide-
ográficos produzidos cooperam no sentido de disponibilizar aos pes-
quisadores documentos que podem ser tomados como fontes futuras.
Uma quarta consideração, sintetizada a partir dos documentos
e confirmada pelas falas dos professores – quando se ressentem da
ausência de articulação entre universidade e escola –, é que parece
haver ausência de articulação entre Teoria da Literatura, currículos
de formação de professores e metodologias implementadas em salas

326
Maria Amélia Dalvi (UFES)

de aula (de EF, EM e ES) (como já pontuavam Chiappini, 1988 e Gin-


zburg, 2012), além de um aparente desinteresse pela constituição de
uma reflexão teórica sistemática sobre a didática da literatura. Isso
tem como consequência, aparentemente, que os grandes impactos
teóricos são raramente (e quase sempre tardiamente) incorporados
às práticas de planejamento, produção de material pedagógico e ava-
liação, o que gera certa “esquizofrenia” também nas pesquisas da
área. De igual modo, políticas públicas de avaliação em larga escala
(ex. Enem, Enade etc.) não favorecem a efetiva leitura literária de
textos e obras integrais e não exploram os aspectos estéticos dos tex-
tos, frequentemente reduzindo-os a exemplário de usos da língua
(ver Zilberman, 2013), o que induz certo tratamento metodológico
nas escolas e nos cursos de formação de professores.
Uma quinta consideração, sintetizada a partir de dados obtidos
por meio da análise de documentos oficiais, é a baixa presença de es-
pecialistas em Didática da Literatura ou Educação Literária nos pro-
gramas e projetos oficiais, quando se compara à Didática da Língua
Portuguesa e à Educação Linguística. Isso indicia a fragilidade da
área de estudo e pesquisa – e pôde ser verificado, também, por meio
de consulta por palavras-chave ou área à Plataforma Lattes, que re-
gistra o currículo de pesquisadores atuantes no Brasil. Essa mesma
ausência é sentida pelos professores nas esferas locais, na proposição
de documentos curriculares em âmbito municipal ou estadual, com
base nas entrevistas.
Uma sexta consideração concerne à dificuldade de acessar e reu-
nir resultados produzidos por um corpo de pesquisas dispersas (pla-
taformas isoladas, banco de teses e dissertações da Capes, pesquisa
Lattes por assunto, portal Domínio Público, portal de periódicos da
Capes, Scielo, Diretório de Grupos de Pesquisa no CNPq etc.). Con-
forme Dalvi e Rezende (2011, p.37),

327
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior

há um impulso para a mudança do ensino, com base em teo-


rias voltadas para a recepção; persistem limitações na busca
pela internet, pela aparente lentidão das instituições na in-
serção dos dados; o modo como os pesquisadores identificam
suas pesquisas não leva em conta o suporte digital; por fim,
os resumos não são suficientemente precisos quanto aos con-
teúdos dos textos.

Correlacionado a isso, é possível pontuar a aparente “inflação”


de publicações e a falta de efetivo e amplo diálogo, apropriação, cir-
culação do conhecimento produzido (MACHADO, 2011); parece que
as bibliografias prévias são pouco exploradas; as críticas são indire-
tas e abertas; há uma dificuldade de delineamento epistemológico; e
as revisões bibliográficas são parciais ou lacunares.
Ainda atinente a esse tópico, é necessário destacar, no corpo de
trabalhos, a influência das Pedagogias do “aprender a aprender” pa-
recem reforçar uma suposta “deslegitimidade” do ensinar (no caso
específico, do ensinar literatura) e, portanto, do papel do professor
e dos próprios conteúdos a serem apreendidos. Outro ponto é uma
possível insipiência da área, manifesta por meio de: predomínio esma-
gador de dissertações (e não teses); poucos trabalhos orientados pelos
mesmos orientadores; poucos orientadores tiveram como percurso as
inter-relações entre Literatura e Educação; poucos membros da banca
com pesquisa consistente e atual nas inter-relações entre Literatura e
Educação; raras instituições com mais de um trabalho (linhas e gru-
pos de pesquisa aparentemente ainda inconsistentes); conclusões fre-
quentemente genéricas ou previsíveis, indicando fragilmente o avanço
do conhecimento em relação ao anteriormente produzido.
Uma sétima consideração diz respeito ao fato de as pesquisas e o
discurso dos professores apontarem, unissonamente, para um traba-
lho – no contexto do ensino médio e do ensino superior, sobretudo –

328
Maria Amélia Dalvi (UFES)

centrado na cronologia histórica, na contextualização distanciada do


texto, na apresentação de autores e obras e nas características “mais
relevantes” de cada “período” e autor; ou, ainda, para um trabalho que
toma o texto literário “apenas” como pretexto ou ponto de partida
para o ensino de língua (ROCCO, 1981; MALARD, 1985; MELLO, 1998;
CEREJA, 2005; DALVI, 2011).
No entanto, muitas dessas conclusões não decorrem de pes-
quisas de campo, concentrando-se em análises documentais. Nes-
se contexto em que relativamente poucos trabalhos que partem da
sala de aula efetivamente (muita especulação sobre o que acontece-
ria em sala de aula e poucos dados “concretos”), os novos influxos
teórico-metodológicos têm subsidiado a valorização das práticas e
do cotidiano escolar e, assim, têm viabilizado trabalhos como os de
Santos (2012), Jordão (2011), Oliveira (2010) e outros. De igual modo,
as preferências de leitura e as práticas e representações de leitura das
crianças, dos adolescentes e dos jovens são frequentemente ignora-
das (PINHEIRO, 2006; OLIVEIRA, 2013).

Considerações a partir das entrevistas

No que diz respeito à análise empreendida do processo de pro-


dução e registro das entrevistas, podemos pontuar, no geral, o se-
guinte:

a) As respostas tendem a não linearidade e apresentam


muitos silêncios e truncamentos;

b) Houve muita hesitação e dúvida dos entrevistados e de-


poentes sobre a validade, legitimidade ou importância de
seus pontos de vista e da narração de suas práticas; em vá-

329
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior

rios momentos, os entrevistadores eram instados a atuar


colaborativamente na produção do registro – o que se coa-
duna à concepção de linguagem adotada e à compreensão
da entrevista como um enunciado concreto que participa
de uma situação real de ação social;

c) Em muitos momentos, aparecem emoções fortes e é ne-


cessário respeitar o entrevistado acima do possível interes-
se de pesquisa (inclusive quanto pede para suspender a gra-
vação porque começa a chorar etc.);

d) A presença do equipamento de filmagens parece ter ini-


bido algumas falas ou direcionado outras (“Daqui a alguns
anos vão assistir isso a achar um absurdo que a gente fizes-
se isso na escola, que dissesse essas coisas para vocês, mas
as pessoas vão ter que lembrar das condições em que nós
trabalhávamos”) – o que indicia também: as especificidades
da pesquisa qualitativa (que lida com sujeitos e não com
dados ou fatos, prioritariamente) e a consciência da histo-
ricidade das práticas e a “negociação de memórias”, que já
pontuamos anteriormente;

e) Inicialmente, iríamos trabalhar com entrevistas, mas, al-


gumas vezes, a partir de certos questionamentos, pela ex-
tensão das respostas, as falas convertiam-se em legítimos
depoimentos, o que mostra a natureza cambiante ou híbri-
da desses gêneros no contexto da pesquisa histórica – e o
coloca como um gênero secundário, na acepção bakhtinia-
na do termo;

330
Maria Amélia Dalvi (UFES)

f) Por se tratar de professores, houve na maioria dos entre-


vistados um cuidado com a forma linguística; alguns que-
riam se certificar se iríamos transcrever suas falas e como
faríamos. (Por exemplo: “Vocês vão colocar entre parênte-
ses assim, ó, risadas”) – o que desmistifica a rígida sepa-
ração entre as atividades de pesquisador e pesquisado; e,
também, demonstra que os professores têm consciência de
si mesmos como sujeitos de uma comunidade de interpre-
tação (na qual se espera o partilhamento de certos saberes)
e do vídeo em produção como um legítimo objeto de cultu-
ra, a ser valorado conforme regimes sociais de legitimação
ou não;

g) Alguns professores, esclarecidos de antemão sobre a na-


tureza histórica da pesquisa, buscaram levar materiais que
comprovassem o que relatavam oralmente; e

h) É digno de nota, ainda, o empoderamento de alguns su-


jeitos da pesquisa ao serem convidados para a realização
das entrevistas e ao ouvirem – depois de questionarem se
seriam mesmo os sujeitos “ideais” para a atividade – que
sim, que suas práticas têm importância para a compreensão
histórica do trabalho pedagógico com a leitura e a literatura
no espaço-tempo estudado.

Seguindo a análise de conteúdo empreendida a partir das falas


docentes transcritas a partir das entrevistas, as principais considera-
ções a serem apresentadas (embora não presentes em todas as falas)
seriam:

331
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior

a) O desafio maior para o trabalho está relacionado à falta


de interesse dos alunos e, por isso, a avaliação quantitativa
é utilizada como estratégia de “mobilização” para as leitu-
ras – o que releva que há um partilhamento entre os profis-
sionais sobre o centro social de poder, no contexto educa-
cional;

b) O segundo maior desafio é conseguir tempo escolar para


a realização de leituras literárias, porque a massa de conte-
údos e atividades previstos pela estrutura escolar impedem
que se realizem em salas leituras longas ou debates alenta-
dos sobre os conteúdos dos textos literários – o que indicia,
por parte das políticas públicas e do cotidiano escolar, uma
visão auratizada e, ao mesmo tempo, elitizada da literatura:
como um “luxo”, um “a mais”, um algo para quando “sobrar
tempo”;

c) As maiores conquistas, por outro lado, são quando esses


alunos desinteressados chegam ao final do ano ou semestre
com um crescimento educacional substancial – o que indi-
cia uma consciência sobre o papel que se espera do docente,
na atualidade: como alguém que participa da vida do aluno
(pro)positivamente, visando a seu crescimento ou à apro-
priação dos conhecimentos legitimados pelas comunidades
escolarizadas;

d) Os professores desconhecem as práticas de leituras lite-


rárias dos alunos fora do contexto escolar ou têm apenas
especulações sobre que (não) práticas seriam essas – o que
mostra que o interesse pelas práticas singulares de sujei-

332
Maria Amélia Dalvi (UFES)

tos ainda não é uma perspectiva amplamente difundida no


contexto da formação docente inicial e continuada daque-
les sujeitos entrevistados;

e) Um dos desafios no início da carreira foi como começar


a ensinar aos alunos (“falta de preparação didática e meto-
dológica no curso inicial”) – o que reafirma uma separação
entre teoria e prática ou indicia uma concepção técnica do
trabalho pedagógico com a leitura e a literatura;

f) Os professores veem melhoria no trabalho, porque antes


não havia tempo para o planejamento escolar e agora há
(1/3 da carga horária, no caso dos profissionais da educação
básica); porque houve melhorias na infraestrutura física das
escolas e da universidade com o passar dos anos e o maior
acesso aos materiais pedagógicos e principalmente aos ma-
teriais de leitura; porque a internet e os recursos eletrôni-
cos transformaram as práticas pedagógicas e disponibiliza-
ram uma variedade de materiais de pesquisa nunca antes
imaginada – o que revela uma consciência aguda sobre a
precariedade das condições de trabalho e os resultados das
lutas docentes, para garantir o mínimo, que é tempo para
estudar e preparar as aulas e condições materiais dignas
para o exercício da função-fim da instituição escolar;

g) A julgar pelas falas e relatos docentes, o segmento de


ensino em que o livro didático parece mais importante é o
ensino médio – o que mostra a importância de pesquisas
sobre os usos dos objetos culturais atinentes às práticas de
leitura e, particularmente, de leitura literária;

333
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior

h) Os professores da educação básica enfatizam que um


dos grandes desafios que a educação enfrenta atualmente
seria a ausência da família na vida escolar dos alunos e de
valorização das práticas de leitura e acesso a atividades do
universo letrado; e apenas um dos professores pensa que a
ausência de formação prévia e de condições de vida favo-
ráveis isentaria os pais de responsabilidade com relação à
vida escolar – o que, no geral, permite deduzir que a maio-
ria responsabiliza os pais (independentemente de condição
social, econômica e cultural) no tocante ao desempenho
escolar dos estudantes no que tange à leitura e à literatura;

i) Os professores enfatizam que as práticas vão-se transfor-


mando em função da formação continuada – o que indicia a
importância dos estudos e pesquisas e a consciência da não
essencialidade do trabalho pedagógico;

j) Todos os professores se reconhecem como oriundos das


camadas populares ou médias e destacam o papel decisivo
da leitura e, particularmente, da leitura literária em suas
vidas – o que permite uma prospecção futura em relação
não apenas à categoria profissional, mas também à condi-
ção social para se pensar o partilhamento de imaginários
ou perspectivas em relação ao trabalho pedagógico com a
leitura e a literatura; e

k) Todos os professores relativizam a importância ou alcan-


ce dos documentos oficiais, com relação à transformação
das práticas – há indício de separação entre as ideias de
“discurso” e de “prática”, como se as representações sociais

334
Maria Amélia Dalvi (UFES)

nascidas ou forjadas nos centros de poder e decisão sobre


a vida escolar (ministério e secretarias de educação) não
fossem decisivas para a consignação de opções pedagógi-
cas, reforçando a criticidade e a criatividade dos sujeitos no
tocante às operações táticas cotidianas.

Considerações finais

Inicialmente, o gênero entrevista constituía-se “apenas” como


instrumento de produção de dados para a pesquisa. No entanto,
trouxe contribuições adicionais, que talvez se tenham tornado tão
ou mais relevantes que os dados produzidos/obtidos.
Podemos citar, por exemplo:

a) A desmistificação, na prática, da objetividade científica e


desenvolvimento da capacidade de escuta atenta e do senso
oportunidade/plasticidade do pesquisador

b) A reflexão sobre o gênero entrevista, em relação aos su-


jeitos, situação social, temas e estilos etc.;

c) O interesse das licenciandas, no contexto da formação


inicial como pesquisadoras, pelas experiências dos profes-
sores (com dificuldade, inclusive, de produzir distancia-
mento analítico) e a aproximação maior com o contexto
micrológico da escola;

d) A possibilidade de desmistificação em relação à neces-


sidade e à viabilidade de práticas complexas, inovadoras:
ideias simples podem ter ótimos resultados, ideias comple-

335
Literatura dos anos iniciais ao ensino superior

xas, sofisticadas, inovadoras às vezes não vão adiante pelas


razões mais simples;

e) A aproximação dos profissionais em atuação na escola há


muitos anos da equipe da Universidade, com sentimento de
pertença, cooperação e solidariedade;

f) A oportunidade inaudita ou inédita de reflexão para os


entrevistados/depoentes (“Nossa, eu nunca tinha parado
para pensar nisso”, “Puxa, agora você me pegou, eu não te-
nho resposta para por que a gente faz isso na escola” etc.),
tendo implicações para a revisitação do vivido, organização
da experiência, reflexão sobre o presente e o passado; e

g) Uma articulação visível e tangível entre os pressupostos


teórico-metodológicos e o exercício de produção, seleção,
organização e análise de dados.

Haja vista a consonância – no geral – entre os depoimentos, a


advertência de Peter Burke (2000) quanto ao fato de o processo de
seleção, interpretação e distorção ser condicionado, ou pelo menos
influenciado, por grupos sociais pareceu bastante pertinente. De
igual modo, pareceu confirmar-se a observação de Chartier (2010,
1988), quanto a haver, imbricadas, as capacidades inventivas dos su-
jeitos e comunidades e as restrições e convenções que limitam essas
ações (o que é possível pensar, dizer e fazer em dado contexto), de
acordo com a posição que os sujeitos ocupam nas relações.
Reiteramos, ainda, a partir de Leahy (2000), que é possível pen-
sar a educação literária como uma disciplina relativamente autônoma
(como área apendicial de “Língua Portuguesa”) dentro do currículo
escolar – embora não goze desse prestígio, no contexto histórico in-

336
Maria Amélia Dalvi (UFES)

vestigado – e que se relaciona aos modos como uma cultura e, portan-


to, uma sociedade, se pensa e representa: ou seja, o artístico (e mais
particularmente o literário), entendidos como um luxo, um “a mais”,
um privilégio – têm que estar constrangidos por uma dimensão prag-
mática: ensinar alguma coisa, atender a alguma finalidade concreta
da vida. Isso sem deixar de considerar que o processo educacional (e
o literário, como parte desse processo) está constrangido por instân-
cias de poder institucionais (escola e universidade, por exemplo) e su-
prainstitucionais (políticas educacionais, redes e processos editoriais,
relações entre intelectuais e mercado, concepções de texto, sujeito e
linguagem que circulam em dado momento histórico etc.).
Face ao exposto, o gênero entrevista, como componente intrín-
seco ao trabalho com a história oral (ALBERTI, 2010) parece ter con-
tribuído, fortemente, tanto para o desenvolvimento da pesquisa em
si (produção de dados), quanto para a formação inicial dos pesquisa-
dores em Iniciação Científica e continuada dos entrevistados.

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Gêneros
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