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Sem Nome

A luz da manhã bem cedo atravessava finas frestas da persiana semi-aberta e


brincava suave e agridoce sobre o rosto da carina, fazendo-a acordar. Uma daquelas
jovens manhãs ociosas em que não há gosto em acordar por inteiro e, por isso, ficamos
nos perdendo em pequenos cochilos, abrindo e fechando os olhos preguiçosamente para
voltar a dormir no mesmo instante, como se precisássemos descansar do repouso, até
finalmente despertarmos por completo depois de muito nos divertirmos no balançar
entre o sono e pedacinhos momentâneos de pequena consciência. O corpo miúdo dessa
menina que acabara de acordar estava docemente leve e deixava perceber, a quem
estivesse perto, que despertara molemente manhosa, contente; seus pequeninos olhos
escuros contemplavam seu quarto, como se pela primeira vez o visse; nunca refletira
sobre como, sempre e sem se dar conta, ao acordar, buscava perceber tudo ao seu redor,
analisando cada detalhe do ambiente como se quisesse reconhecer nele o lugar onde
realmente repousara na noite anterior, como se corresse o risco de acordar noutro lugar
que não fosse aquele onde fora dormir realmente.

Para seu alívio, o dia e o seu quarto pareceram acordar tão tranqüilos quanto ela
mesma. Apreciava quando todo o ambiente estava de acordo com seus sentimentos e
humor; e hoje, especialmente, o dia parecia satisfeito em refletir o mesmo ânimo que o
seu espírito: estavam ambos em paz e contentes. Passou algum tempo passeando os
olhos calmamente pelas partículas de poeira que dançavam nos finos feixes de luz que
atravessavam as pequenas frinchas da persiana bege; depois, olhou para o aquário em
cima da cômoda e os peixinhos espertos dentro dele, que pareciam querer fugir para
todos os lados; a mochila azul jogada aos pés do mancebo e os livros organizados na
estante; no corredor, ouviu o som da sua mãe arrumando algo que não precisava ser
arrumado. Por sentir crescer o seu contentamento em tudo isso, sorriu leve e
imperceptivelmente o seu sorriso escondido no canto esquerdo de sua pequena boca (o
curioso é que essa mesma pequena boca, apesar de sinceramente pequenina, chegava a
ser excitante quando vista de longe). Resumindo, acordara feliz porque tivera um bom
sonho!

Ajoelhou-se na cama, afastou com os seus dedinhos a persiana e, com as mãos


pequenas apoiadas na cabeceira da cama, inclinou-se na janela a fim de observar a
manhã lá fora. Havia uma grande árvore na frente da sua janela - e ela não lhe permitia
ver muita coisa; a árvore era tão alta que carina imaginou que talvez ela quisesse
abraçar o céu e jogá-lo na terra carinhosamente (talvez para nele fazer coceguinhas), e
havia ainda um pássaro alegre que se divertia nos galhos dessa grande árvore - e a
menina ficou a imaginar se esse pássaro tinha filhotes; viu abaixo o jardim
cuidadosamente organizado por sua mãe, com flores de diversos formatos e cores; mas
o que mais lhe fascinava era o céu de um azul estranho, meio violeta, com tons laranjas
no contorno das nuvens, que parecia envolver toda a paisagem observada por carina, até
mesmo o jardim sob ele... Nunca vira um céu tão incomum e belo, e esse céu a animou
ainda mais. Não entendia porque motivo um sonho tão estranho a deixara tão
bobamente feliz - até por que não se perguntava sobre isso.

Voltando-se lentamente para o quarto, abandonou a janela e sentou-se na cama,


novamente contemplando o ambiente interior; só agora percebia a irmã no computador
junto à porta: "Que vício! Talvez se a raquel deixasse por um instante esse computador,
eu pudesse lhe contar meu sonho. Adoraria compartilhá-lo com ela, assim ela perceberia
quanta coisa agradável esse dia amanheceu disposto a nos dar, e depois ainda
poderíamos estudar... ou melhor, sair para brincar". Enquanto refletia esses desejos, o
sonho voltava calma e docemente à sua mente. Havia sido tão real e ao mesmo tempo
mais suave do que o real pode ser, tão acalentador e reconfortante (embora ela só
percebesse esse conforto ao acordar, pois, enquanto sonhava, algumas perturbações que
tivera não poderiam lhe legar esse conforto)... Suspirou.

Lembrava-se da aula onde começou o seu sonho. Um senhor de rosto sereno


discursava de modo afetuoso sobre coisas desconhecidas para ela, enquanto ficava
sentada, quietinha, lá no fundo da sala, escutando a voz plácida daquele homem já bem
velho. Percebia-se que esse senhor já havia vivido bastante, mas, ao mesmo tempo, sob
um olhar mais cuidadoso, via-se muita juventude em seu rosto e gestos, uma juventude
serena e bela, uma luz clara e paciente envolvendo-lhe o rosto e as Palavras, Palavras
que saiam de sua boca como que afagando tudo ao redor, como se abraçasse todos que
as ouvissem e como se até pudesse tornar os objetos seus ouvintes; seu falar era
docemente lento e reflexivo, como se não somente desejasse ensinar o que explicava,
mas também ensinar em detalhes o que significava cada Palavra que lhe saia da boca, e
cada pausa que freqüentemente fazia era como se mostrasse que amava tanto as
Palavras que dizia, que elas não podiam ser ditas sem antes meditar bem acerca delas.
Toda essa serenidade e ligeiro calor jovial que emanava desse senhor de forma alguma
contrastavam com seu corpo cansado, mas carina sentiu grande paz e atração em tudo
que ele lhe disse.

- o homem é um ser em eterno fazer-se - O professor falava não apenas a carina, mas
para alguns outros poucos alunos que se encontravam naquela sala. No entanto, de certa
forma, era como se só a ela fossem dirigidas aquelas Palavras. - Mais do que um ser em
si somos constante poder ser, eterna transcendência. O homem é sempre e
essencialmente a possibilidade infinita de fazer-se, transformar-se. A Humanidade é
incrível e latente possibilidade. E isso é tão belo, não? Ainda não feito por inteiro,
embora já feito em grande parte, incompleto em todos os tempos da sua existência, mas
sempre busca de sua inalcançável totalidade, completude, talvez do seu individualismo
encontrado num Todo Absoluto inatingível.

Assim como não nos assustamos com as mudanças em nossos sonhos, ela não se
assustou ao constatar que já não estava na sala de aula com o seu professor e, sim,
agora, em um glamouroso café, sentados numa mesinha, frente a frente, tomando um
chá, que, pelo aroma sentido, podia muito bem ser de jasmim. Essas mudanças de
cenários são comuns nos sonhos e tenho certeza que você também não se assustaria.
Também não foi com susto algum, senão com ainda maior admiração, que ela percebeu
que a mudança de cenário não impediu em nada a continuação do discurso de seu
mestre onírico.

- E foi nesse incessante fazer-se que a Humanidade fez o mundo e deu sentido a todas as
coisas. E são pelos atributos humanos que qualificamos as coisas, que lhes garantimos
valor, razão, sentido, essência... Poderíamos até nos arriscar a dizer que todas as coisas
só são pelo homem Só há uma coisa que vença a morte... A genialidade; e isso, carina, é
uma verdade. Mas, se a todos é dada a mesma oportunidade de, vivendo, fazer-se... Por
que tão poucos parecem ter conseguido roçar essa Totalidade que almejamos,
vislumbrar essa inatingível elevação de consciência e alma? Por que tão poucos sábios e
santos podemos contar em nossa história? A resposta, menina, talvez seja que os seres
humanos podem ser facilmente coibidos e abatidos pela indiferença ou passividade,
sendo refreados pelo medo... Ou pela preguiça.

Eles agora andavam por um parque de árvores dançantes, aroma doce e folhas
outonais espalhadas e caindo pelo chão. A luz descia calma, como que intimidada pelas
árvores frondosas. Perdida em suas reflexões, carina não percebeu quando o velho
passou a não mais se encontrar ao seu lado e só veio a acordar dos pensamentos aos
quais fora levada pelas Palavras do professor quando uma garotinha linda, de mais ou
menos 4 anos, olhinhos arredondados, veio lhe puxar a ponta da saia.

A garotinha se aproximou e deu um beijo sobre o ventre da carina.

- Oi - nos sonhos nosso cérebro não se preocupa se as coisas não parecem fazer sentido,
e, talvez por isso, carina apenas sorriu para a garotinha que se aproximou, lhe sorriu,
beijou e abraçou; e lhe chamou de mãe. - Mãe, olha aquela folha que cai daquela árvore
alta... Aquela meio laranja, meio vermelha, viu?

- Sim, querida - carina era tão baixa que mesmo uma garotinha de quatro anos, também
baixa para sua idade, alcançava, se fosse necessário comparar as estaturas, o seu seio;
ou talvez tudo isso só fosse possível por estar acontecendo em um sonho.

- Caindo assim toda devagarzinho, suave, lentinha, parece tanto uma borboleta, né,
mãe? Não é curioso que algo morto, como essa folha seca, seja tão semelhante a algo
tão maravilhosamente vivo quanto uma borboleta colorida?

A observação da menina fez estremecer o seu corpo e, nesse mesmo instante,


rodeando as duas meninas, passou um garoto que andava de patins, vestindo uma
camisa escura com desenhos de estrelas e uma rosa que parecia saída de um quadro do
Kandinski, na camisa estava escrito uma frase doce, mas sem muito sentido: "estrelas
parecem mais lindas dentro da flor". Ele passou bem próximo a elas, e sussurrou no seu
ouvido da carina:

- De quem são seus sonhos?

Acordara novamente, percebia que não estava a recordar seu sonho, mas,
distraidamente, voltara a sonhá-lo - e com muito mais vivacidade, muito mais força do
que quando da primeira vez o sonhara. Assustou-se. Olhava ao redor com um olhar
atônito, sem conseguir reconhecer aquele lugar. Um quarto úmido e com sussurros
silenciosos, um quarto de hospital; uma janela ao lado da sua cama mostrava um muro
marrom, opressivo, bloqueando qualquer coisa que se espera ser vista do lado de fora de
uma janela. Havia uma cama, na verdade uma maca, ao lado da sua; e carina percebeu
que um rapaz dormia sobre ela, murmurando coisas incompreensíveis.

Carina ficou preocupada.

- Acordou? - carina conhecia aquela voz e a moça vestida de enfermeira que falava.
Lembrava-se que no sonho do qual acordara ela havia sido sua irmã. - Está se sentindo
bem? Você sabe que a situação de vocês é um pouco estranha...
- Não seria melhor acordá-lo? - carina estava preocupada com as sutis agitações do
garoto ao lado e todos os seus murmúrios incompreensíveis. Por que ela estava em um
hospital e por que o colocaram ao lado de um garoto com convulsões tão estranhas?

- Não. - a enfermeira respondeu, assustada. - Ele não pode acordar, carina. Já pensou no
que nos aconteceria se ele fosse acordado? Ele poderia fazer tudo evaporar
completamente.

Carina não percebeu muito bem o que a enfermeira queria dizer. Não
compreendia porque estava ali e o que era aquele lugar novo e inesperado. Sentiu que o
teto do quarto era baixo, muito baixo. Parecia-lhe que o corpo da sua irmã-enfermeira se
curvava não para ela, mas para evitar o suplício do teto. Além disso, a parede em frente
a janela era por demais opressiva. Por que colocar uma janela perto de um muro, e por
que colocar um muro perto de uma janela?

Ela estava confusa. Achou que por estar em um hospital, sobre uma maca, algo
nela deveria doer, mas não sentia absolutamente nada. A não ser essa sensação estranha
de se achar perdida e sufocada numa sala tão exígua.

- Calma, carina. Eu sei como você está se sentindo. Não é confortável duvidar se
estamos sonhando ou se estamos vivendo na realidade. Muito menos agradável é
desconfiar se os sonhos são nossos de verdade. Mas, se você se acalmar, perceberá que
não faz muita diferença. Eu sei o que eles fazem contigo. Agora tome suas pílulas.

- Eu não quero continuar aqui.

- Por que não? Aqui você está segura.

A enfermeira sorriu e saiu, deixando as pílulas coloridas nas mãos da carina.

De repente, o rosto do garoto se dirigiu a ela, mas ele continuava de olhos


fechados, como que dormindo. Seu rosto era cansado e azul, como de alguém que se
desgastou demais em algo muito cansativo, além de seus poderes. Carina finalmente
percebeu que à frente de sua maca havia uma porta estreita por onde passavam vultos
estranhos.

- Não é estranho?

Carina não respondeu nada. Sentia medo.

- Em breve eu irei acordar e você já não precisará se preocupar com nada, já não estará
aqui.

Carina não entendeu o que ele queria dizer com isso.

- Desculpe. - disse carina, desejando compreender algo daquela loucura.

- Nem sempre eu poderei controlar e te levar aos bons lugares agradáveis, e muitas e
muitas vezes já caímos aqui, mas você não se lembra de nada. No fim tudo pode voltar a
ser normal como realmente é: agradável e insosso, simples e indolor, colorido e
cinzento...

Houve um longo silêncio.

Que sensação estranha era essa que sentia? Parecia-lhe, repentinamente, que sua
mente não era sua, ou que não tinha sobre ela a vontade de direção que sempre pensou
ou desejou ter. Sua cabeça doía como se o teto estivesse a baixar. Mas ele continuava
imóvel onde sempre esteve, e ela sabia disso. Será que enlouquecera? Será que os
sonhos do qual acordara não passavam da loucura de uma mente insana? Ou seria o
contrário: esse era apenas um pesadelo incomum na tranqüilidade que sempre vivera...?

Estaria sonhando ou acordada?

- Você sabe me dizer onde estamos? - ela se arriscou a perguntar.

- Agora eu estou num hospital e você está comigo.

- E por que eu estou num hospital?

- Por que você está comigo.

O garoto ofegou breve mas fortemente. Carina se assustou. Não sabia qual a
doença daquele rapaz ou qual o estilo daquele hospital.

- Mas, se você quiser, acho que podemos sair daqui agora.

- Como?

Ele respirou breve e fortemente mais uma vez.

- De quem são seus sonhos, carina?

E abriu os olhos.

***

carina acordou sobre lençóis brancos e bem cheirosos. Abriu bem devagar os
seus olhos, com medo de onde deveria estar, com medo de reprisar as coisas com as
quais sonhara.

Passou as mãos sobre os olhos; espreguiçou-se... E ficou feliz quando viu ao seu
lado uma garotinha linda de uns 4 anos, pequenina, olhinhos arredondados, ainda
adormecida ao seu lado. Passou a mão sobre o rosto da filha e sorriu.

Sentiu um cheiro doce de chocolate quente vindo da caneca sobre o criado-


mudo. Viu que o outro lado da cama estava ainda amarrotado e um pouco quente. Seus
lábios pequeninos expressaram um dengoso riso. Os melancólicos vultos da fumaça que
saiam da xícara brincavam diante de seus olhos; e ela se sentiu em casa.
O Velho Pescador de Asas

Esse texto é a introdução de um livro que o escritor Paulo Camargo começou a


escrever pouco antes da sua morte. Além dessa introdução, foram encontrados também
dois capítulos do mesmo livro. Apesar disso, para o presente propósito, consideramos
esta toda a parte aproveitável do material.

Deus, como era lindo o bêbado que conheci naquela praça e como era triste e
confusa a vida que Você lhe deu. Eu estava sentado num banco na orla, ouvindo o
barulho do mar e observando as pessoas ao meu redor. Foi quando tive de repente a
idéia de que, comparadas a mim, todas as pessoas ali eram lindas, que a beleza andava
por todos os cantos como uma prostituta exibida, pobre e periférica, a quem ninguém dá
atenção. Pareceram-me belos os garotos que dançavam uma música estranha saída do
fundo de algum carro barulhento perto deles e bebiam alguma mistura alcoólica em
sujos copos descartáveis, percebi como eram lindas as garotas feias que enfeitavam
deselegantemente sua fealdade e sorriam displicentemente para os garotos da música, e
as garotas bonitas que se arrumavam com extravagância, estragando a simplicidade do
que tinham de belo, as crianças que brincavam de bola, corriam e andavam de bicicleta,
uma mãe que ensinava a andar de bicicleta a sua filhinha com síndrome de down, de
aproximadamente três anos, os prováveis 10% da sua vida, nova e ignorante demais
para se preocupar com porcentagens. Por ser vazio, animo-me e sofro apenas com a vida
alheia. E aquelas me comoviam, faziam-me achar adorável cada singular detalhe das
nossas vidas humanas: sorrindo uns risos bobos por motivos tontos, suportando a
pateticidade de tristezas e contentamentos, duvidando e acreditando das coisas mais
bestas que pouco importam ao nosso dia-a-dia, buscando o amor das nossas vidas – ou
uma distração para a falta deste...

E foi no momento em que estive a me supor fascinado pelas belezas simples e


vulgares dos que entretinham suas vidas por ali que o meu bêbado entrou no cenário ao
qual pertencia desde sempre, aquela praia melancólica e solitária, que se via suja e
repleta durante algumas semanas do veraneio. A presença que ele arrastava era
incômoda e repulsiva, expulsando todas as pessoas que eu admirava com sua canção e
cheiro desconcertantes. Todos se retiravam dele para um lugar sóbrio, tranqüilo e de
incômodos previstos, onde seu estilo não perturbasse. Pareceu-me que cediam o palco
lúgubre e tosco ao único com o qual combinava a partir de agora. As mães saiam
arrastando seus filhos, mesmo a mãezinha da garotinha down. “Marginais repelindo
marginais”, pensei com meus preconceitos.

Ele avançava em minha direção, olhava sem norte para todos os pontos, girava
como um disco tonto de vinil, até que parou bem na minha frente, com o olhar mais
abestalhado e terno que eu jamais encontrara no rosto de alguém. Mirava uma mãe que
puxava sua filha para casa e para longe daquele pecado.

“Sabrina! Juliana! Ela tá sempre levando minhas filhas de mim... A casa delas é
aqui, porque eu amo minhas filhas... Amo... E ela levou as duas pra São Paulo. Ah,
Sabrina!... Mas você”, e ele apontou para mim, “você é meu amigo! Meu amigo!”
Entreguei-me ao meu novo amigo. Chamava-me a atenção; e era tão fácil
adivinhar sua vida simples que eu já conhecia toda a sua existência após algumas
perguntas respondidas com divagações desconexas. Já estava em seu íntimo, e, então,
tive a idéia de escrever sobre sua vida. Enquanto pensava nesse novo livro, imaginava
minha ex-mulher olhando para uma linda garotinha de cabelos negros que sorria para
ela dentro de algum ônibus paulistano, e ela nunca ia descobrir como nossa vida e nosso
mundo é tão infinitamente pequeno e que agora eu conversava com o pai daquela
garotinha que um dia lhe sorrira numa cidade imensa onde passava as férias. Tínhamos
acabado de nos separar.

“Deus, como estou confuso... Sei que não consigo me explicar e você não
entende nada, nada, nada... Mas eu já tirei dez em português com o professor Ubirajara,
sabia? Você conheceu o professor Ubirajara? Gente boa... Você não me entende, porque
eu sou burro e não sei falar...”

“Eu entendo”, disse.

Ele, naquele estado, não poderia perceber, mas eu o compreendia. Sim,


compreendia toda a tristeza da sua vida, todas as paixões e perdas que tivera,
compreendia tudo, tudo, tudo da sua vida. E compreenderia ainda que não me dissesse
nada. Mas ele continuava dizendo. Dizendo coisas sem ligações - onde eu adivinhava ou
inventava sentido. Suas lamúrias pareciam-se com as Palavras ditas pelo meu avô na
última vez em que jantamos juntos: “todas as vidas são infelizes, meu filho, apenas
algumas têm distrações suficientes para não perceber isso”.

E enquanto ele me contava suas lamentações e desgraças com sua cativante


graciosidade de bêbado, eu me apaixonava por ele e por cada Palavra que me dizia.
Parecia-me tão lindo que já esquecera mesmo da pretensa beleza daquelas pessoas que
poucos minutos atrás me cativavam. Eu estava apaixonado e um sorriso bobo me
iluminava a cara. Encontrei finalmente o que buscava. Sorria para ele e perguntava-lhe
tudo sobre tudo que me dizia. Era pescador.

“Um dia eu fui mordido por um peixe. Essa carne da minha perna tiraram da
minha bunda”.

Eu estava apaixonado e comovido, e as pessoas apaixonadas estão sempre se


propondo às coisas mais imbecis e impossíveis, e foi então que fiz a promessa mais
tonta e insensata do mundo: prometi que não queria e jamais faria parte dos males e
sofrimentos que os homens se dão, que nunca ia fazer ninguém sofrer por minha culpa.
Era uma promessa estúpida, que ninguém pode cumprir.

Ele não percebia, porque estava sempre a olhar para o céu ou para o chão, mas
eu olhava para ele. E observava cada sutil detalhe daquele pescador cativante, angelical,
seráfico e sofrido, com seu sorriso cheio de gengiva e carente de dentes e sua cabeça
infeliz e conflituosa, cheia de dúvidas, súplicas, necessidades e demônios. E foi então
que tive a visão: vi que das costas desse homem saiam asas enormes, de um branco
meio borrado de cinza, marrom e amarelo, como que sujas de café. E as asas eram tão
grandes que pareciam ser duas vezes maior que o homem, e ficavam paradas imóveis à
minha frente, ameaçadoramente. Ele se encaminhava para o mar e eu tive medo. Tive
medo de perdê-lo.
“Quando eu estou no mar... É só no mar que eu não tô confuso... Que eu não fico
assim. Lá eu esqueço de tudo. Ah, se o mar me aceitasse sempre, se eu pudesse entrar lá
e nunca mais sair. Aí que eu ia ser feliz e ia descansar.”

Tinha agora dois homens à minha frente: o pescador alado dirigia-se ao mar,
abraçando o próprio corpo com suas asas enormes, enquanto o bêbado esfarrapado
continuava ali, parado, levantando os braços para o ar e lamentando com seus cuspes
tudo que lhe doía. Excetuando a diferença das asas, eram o mesmo homem, e eu ouvia o
homem comum enquanto seguia meu anjo onírico com meus olhos sedentos de delírio e
curiosidade. Atirou-se ao mar e começou a agitar-se lá dentro, como que nadando, mas
dava para notar que ele na verdade brigava com o mar, apenas parecia que nadava.
Tentava mergulhar e afundar seu corpo, mas as asas imensas e pesadas sempre o
impediam de conseguir seu propósito, e estavam sempre flutuando, deixando sua cabeça
sobre a água. E enquanto lutava com as ondas fortes do mar frio da noite, e tentava
afundar seu corpo todo na água, ia cada vez mais para o fundo, e cada vez mais fundo,
até sumir da minha visão.

Quando voltei a mim, o homem de verdade, sem asas, já estava longe,


caminhando para um bar perto da estrada, o único aberto àquela hora. Vim para casa. As
crianças e a babá já dormem, e eu abro uma garrafa de vinho para começar a escrever.
Decidi escrever sobre a vida desse homem que acabo de conhecer e, provavelmente,
jamais verei novamente. Não sei se digo uma grande besteira, mas acredito que sua vida
não seja muito diversa da minha - como não deve ser também da de ninguém nesse
mundo, uma vez que somos todos iguais -, com a pequena diferença de que meus
alcoóis são bem mais caros que o dele.
UTERFALIM

“porque agora vemos por espelho em enigma,

mas então veremos face a face;

agora conheço em parte, mas então conhecerei

como também sou conhecido.”

Apóstolo Paulo, epístola aos coríntios

Toda a população considera este o único shopping relativamente decente na


cidade. Na verdade, o prédio é um imenso U térreo, espaçoso e de abóbada elevada.
Uma dessas construções modernas alicerçadas tão somente no pragmatismo. As pessoas
que costumam vir aqui não necessariamente estão interessadas em algum prazer
comercial – ou este, na maioria dos casos, se restringe apenas à visualização do produto
-, e, sim, numa relação muito mais de confraternização. Como não há outro ambiente
tão bom e adequado na cidade, o shopping acabou sendo um local de passeios e
encontros. Funciona, portanto, mais como expositor de pessoas do que de objetos.

Era época de compras e eu tive que vir com a minha namorada comprar algumas
roupas que ela julgava precisar. Não é o meu programa favorito, mas fui mesmo assim.
Deixei-a numa loja de roupas femininas e disse-lhe que iria andar um pouco por aí. Nos
encontraríamos novamente ali em 30 minutos.

Andei um pouco pelo pátio maior, alongado, que se curvava nas duas
extremidades, e fiquei a observar as lojas, as vitrines... Como estava um pouco cansado,
decidi me sentar numa das mesas da praça de alimentação, esperando o tempo passar, e
comecei a observar o ambiente. Havia acabado de sair de um estado de profundo mal-
estar, doente por razões que muito me afetaram e debilitaram – tanto o meu corpo
quanto a minha mente -, e, agora, estava numa fase de vívida e esperta convalescença. O
Reverendo ia sempre me visitar e aquilo me incomodava, mas todos ficaram felizes com
minha reabilitação. A saída da doença me deixara, de certa forma, mais atento. Aquilo
em que me fixava tomava meu cérebro por horas. No mais, sempre achei que o
shopping tem o mesmo zumbido estranho de quando estamos deitados em nossa cama,
com febre, e as coisas começam a girar.

Fiquei ouvindo imprecisamente uma conversa de algumas pessoas naquela idade


indefinível em que achamos estranho considerá-las crianças e liberal demais chamá-las
de adolescentes.

- Jura que pegou?


- Sim, ele me disse.

- Ela é uma mentirosa.

- Ah, tá.

Aquela conversa, de qualquer forma, não me distraia; continuava ávido e


inquieto. Ia, ainda, seguindo com os olhos a pequena multidão que por ali caminhava.
Todos os meus sentidos ansiavam por algo que os tomassem por completo. Pedi, numa
das lanchonetes, batatas fritas, sanduíche e refrigerante. Uma garota com quem namorei
na época do colégio passou por mim. Bem, havíamos estado bem próximos, se vocês
me entendem, uma certa vez, numa pequena festa da escola. E, agora, ela sequer me
notara. Havia um homem ao seu lado, provavelmente esposo ou namorado, que
carregava as coisinhas de um bebê que ela segurava no colo. Estava gorda e de alguma
maneira disforme para a sua pouca idade. Por um momento, passeei perdido por
divagações em minha cabeça. Pensei no Tempo e na Morte com respeito, temor e muita
raiva.

Para esquecer estes pensamentos, fixei-me em especial nos que adentravam por
uma das portas. Entravam senhoras, homens gordos, homens comuns, mulheres bonitas
e feias, meninas, garotos e carrinhos de bebês. Observava em especial as roupas e as
formas de cada um, pois não tinha coragem de levantar meus olhos para fitar-lhes os
rostos. Não queria de forma alguma voltar às reflexões anteriores. Prendia-me em cada
detalhe, mas meus sentidos permaneciam sedentos. Não conseguiam captar toda minha
atenção as mulheres bem feitas nem os homens bonitos que entravam, nem os
funcionários estafados, nem as crianças serelepes, nem os casais próximos, e já estava
começando a enfastiar-me daquilo tudo quando meus olhos se prenderam na estranha
calça marrom de um homem. Segui o bater daquelas pernas até vê-las sentadas em uma
das mesas da praça. Senti, por algum impulso estranho e inconcebível, que aquele rosto
eu poderia ver, e tive coragem de levantar meus olhos até a face do seu dono (o senhor
decrépito de uns cinqüenta anos). Possuía um rosto de angústia que, eu tinha certeza,
qualquer artista consideraria apropriado para a concepção de um demônio. Tinha a
compleição repleta, paradoxal e singularíssima que me atordoava: inteligência, cautela,
culpa, astúcia, orgulho, medo, malícia, sorriso constante... Possuía um olhar
concentrado imenso nos olhos vermelhos; suas roupas eram soltas e desleixadas, porém
bem postas (em alguns pontos estavam mesmo sujas, e talvez tenha sido isso que
prendeu minha visão); uma expressão vidrada e demoníaca de algo que não saberia
nomear por causa da multiplicidade de eventos que podiam ocorrer em seu rosto.
Sorrisos bobos e febris convivendo com lábios cerrados de ira, mãos meticulosas e
convulsas, olhos lacrimejantes ou secos, rubor ou altivez, em alterações quase
instantâneas, se encerravam naquela face como se, de alguma maneira, se equivalessem.

Ele parecia apressado e em fuga. Seus olhos vibravam como se temessem os


próprios cílios.

O Homem Que Entrou Pela Porta começou, então, a mexer nuns sachês que
alguns garotos haviam deixado por ali havia poucos minutos. O modo meio bizarro e
trêmulo com que fazia as coisas acabou fazendo espirrar um pouco de mostarda em seus
dedos. Limpou a sujeira em sua calça, mas, mesmo depois de limpa a mão, continuava a
esfregá-la freneticamente em sua roupa, não sei se, dessa vez, para limpar a roupa ou
purificar sua mão. Por causa disso, surgiu em sua calça algo como uma mancha
amarelada de sangue velho.

Levantou-se e parecia exausto; lançou um olhar de rancor e desculpas para a


camisa e a calça, e acho que também para os sapatos. Andou alguns passos, passando
por minha mesa. Parou e, mordendo os lábios, começou a fazer certos gestos estranhos,
olhando para mim: levantou os braços bifurcando-os acima do corpo; depois, abaixando
os braços, abraçou-se fortemente, como um H; levantou novamente os braços, só que
dessa vez curvando-os, agarrando os ombros e dando grande destaque a cabeça, aos
olhos vermelhos e aos lábios crivados por seus dentes; então, abraçou novamente o
corpo e saiu.

Dobrou a esquina à minha frente e tive que me levantar para continuar a vê-lo.
Da forma veloz que saíra, tive medo de perdê-lo do meu alcance. Por um instante, fiquei
a procurá-lo entre as diversas cabeças que passavam. Logo vi sua roupa e seus cabelos
desarrumados destacando-se de tudo ao redor. Estava na ponta de uma exposição de
quadros, no pátio principal, o mais comprido, olhando para o chão com a cautela de
quem se depara com algo sagrado.

Começou a andar, metodicamente, como se calculasse os passos. Caminhou


sobre uma linha reta imaginária e parou. Desenhou uma diagonal à direita, voltou à
primeira linha, e desenhou outra diagonal à esquerda. Parou.

Fez uma longa pausa. Então, Da ponta de um quadro a outro, traçou uma linha
reta, depois, voltando ao meio da mesma linha, cruzou os cavaletes. Do outro lado,
traçou outra reta paralela à primeira. Parou. Desenhou umas ondas estranhas com os
pés, caminhando: umas ondas pontiagudas, do formato de um M.

Encerrou com o mesmo ritual das linhas unidas entre os cavaletes.

Terminada aquela cerimônia perplexa e estranha, percebi que ninguém além de


mim notava aquela cena esdrúxula e especial. Ao contrário dos outros, estávamos, eu e
o Homem, sugados em nosso próprio eixo, mas era como se nos desentendêssemos.
Éramos únicos e sozinhos.

O Homem Que Entrou Pela Porta pareceu-me muito mais perdido ao concluir
aquele caminho labiríntico que inventara ou descobrira para si. Passou a girar atordoado
e a esfregar freneticamente a mão sobre a roupa, sobre a mancha, sobre o rosto,
arranhando os olhos como se quisesse arrancá-los; olhava para o chão - como se este
pudesse castigá-lo e surrá-lo -, apavorado com o seu ato.

Súbito, uma mão se pôs em meus olhos e tudo escureceu para mim. Sentia
náuseas e extrema curiosidade. Assustado, saltei para longe destas mãos que me
agarravam. Voltei-me. Era a minha namorada. Por sobre o ombro, vi que o Homem Que
Entrou Pela Porta havia desaparecido da minha visão.

Compreendi a representação daquele homem, mas sei que há algo em seus sinais
que me escapou. Sei que algo ali poderia salvar-me dessa terrível doença.
Ao ver-me lívido, ela perguntou se eu me encontrava bem. Respondi-lhe que sim
e dei-lhe o braço. Mas logo me arrependi, pois, no fundo, sempre a considerei um tanto
desprezível. Torpe, tola, enfadonha! Em breve, irei matá-la; e o presságio do meu futuro
se fará real, perambulando por todos os cantos sujos.
A Cabeça

Como sempre fazíamos, saímos da pizzaria e fomos andando para casa.


Cantávamos, gritávamos e sorríamos, distraídos e contentes. No canteiro central da
avenida Getúlio Vargas, encontramos no chão uma cabeça. Bárbara foi a primeira a
percebê-la e, como se sentia com vergonha de parecer tola comunicando uma notícia tão
inusitada quanto perceptível, disse baixinho uma frase tímida disfarçada em resmungo:

- Aquilo ali não é uma cabeça?!

- Parece – alguém no grupo respondeu.

Aproximamo-nos - meio curiosos, meio apreensivos - da cabeça descoberta entre


duas pequenas moitas. Apenas uma cabeça, simples e comum.

Era uma cabeça de mulher, sem maquiagem e sem brincos, discreta e


despretensiosa, e essa ausência de vaidade nos chamava ainda mais a atenção. Éramos 7
pessoas e cada olhar mostrava o desejo de tocar a cabeça, e a falta de coragem de fazê-
lo.

- Vambora daqui. – alguém cortou o silêncio.

- E deixar a cabeça aí?

- E o quê que a gente faz?

- Brinca de vôlei – ironizou Cyro, tentando cortar o gelo, sem muita eficiência.

Nós e a cabeça continuávamos ali.

- Vamos avisar a polícia. Tem um posto policial logo ali, ó.

Realmente havia um posto policial a apenas 15 passos da cabeça, o que dava a


ela um ar incrivelmente irresponsável e inconveniente por se mostrar assim, inerte,
diante de autoridades.

- E quem vai levar a cabeça?

- Melhor deixar ela aí.

-Mas... E se alguém roubá-la enquanto a gente vai lá? E se um cachorro vem e morde
ela? E se ela sai daí? Melhor ficar alguém aqui olhando.

Trocamos grandes olhares, esperando de alguém uma resolução. Ninguém queria ficar
ali com a cabeça que parecia também nos olhar, e aguardar da gente uma resposta.

- Dá pra ir todo mundo e ficar olhando praqui de lá. O posto é pertinho.


Fomos aos policiais.

- Licença. Boa noite!

- Boa noite! Quê que vocês querem?

Havia dois policiais dentro do módulo. O grande e sério foi o que primeiro se
dirigiu a nós. Em pé, brincava com um cinzeiro sobre a mesa, e uma fivela brilhante de
policial militar despontava do seu cinto. O outro era ainda moço e nos lançava um
sorriso jovial.

- Licença, moço – Marcelo dirigiu-se ao mais jovem – é que a gente encontrou


uma cabeça ali...

- É... A gente encontrou uma cabeça ali, perto daquele banco.

- Uma cabeça? Sei... E o que vocês querem que a gente faça? – perguntou o mais
velho.

- Sei lá – alguém respondeu.

- A gente não sabia o que fazer e achou melhor avisar.

Não sabíamos mesmo o que fazer nem como nos comportar. Não sabíamos nada
e só agora percebíamos que em hora nenhuma nos perguntamos como aquela cabeça
fora parar ali. Talvez houvesse ali um corpo escondido, enterrado sob ela; talvez nem
fosse uma cabeça de verdade, ou fosse, mas não quisesse ser incomodada.

- Eu tenho um plano quanto a essa cabeça de vocês. Querem ouvir? – perguntou


o policial mais novo, com seu sorriso jovial resplandecendo.

Finalmente alguém faria alguma coisa...

- Queremos – respondemos todos.

- Cada um que cuide da sua própria vida.


Pais e Filhos

O pior instante do dia é acordar e sentir os pensamentos ainda confusos girando em


torno de sua cabeça. Iã acordou com a sensação quase completa de que este seria um dia
terrível, mas ainda tinha esperanças de que não fosse.

A mãe, lá embaixo, preparava o café e virava as panquecas quando o telefone tocou.


Ela girou o acendedor do fogão e o desligou. Limpou as mãos com o pano de prato, abriu a
geladeira, encheu um copo de suco de laranja e tomou lentamente um gole.

O telefone tocou pela terceira vez.

Ela caminhou até a mesinha onde repousava o aparelho, deixou ali o copo de suco,
mas nem chegou a considerar que o telefone ao lado de sua mão ainda tocava. Era como se
aquele trinado fosse um tema musical de sua vida e estivesse tocando desde que era uma
criança e o seu som não fizesse diferença algum. Inclinou-se sobre o sofá e na outra mesa atrás
pegou o cinzeiro, o cigarro e o isqueiro.

Acendeu o cigarro, olhou delicadamente para ele entre os seus dedos e puxou sua
fumaça.

O telefone tocou uma sexta vez. Parecia que nada ouvia ou que não se importava se os
seus ouvidos de fato não funcionassem. Sentou-se no sofá com um ar petulante de tédio e
alívio, e então, só então, mirando os torvelinhos brancos que saíam de sua boca, puxou o
telefone.

- Oi, mamãe!

- Nossa! Quanta demora, minha filha! Por que você demorou? Aconteceu alguma coisa? Ainda
estava dormindo uma hora dessas?

- Nada, mamãe, estava apenas fazendo o café – a ponta do cigarro se avermelhou por um
instante entre os dedos da mãe.

- O Iã já acordou? Como ele está?

- Melhor do que eu, mamãe – disse, entediada. – Ele ainda tá dormindo.

- Sabe, o seu pai e eu...

Quando ela ouviu essas Palavras, deixou a mãe falando sozinha por um instante. Pôs o
telefone na mesinha de forma delicada, mas não tão delicada que não desse para perceber um
baque leve e surdo. Recostou a cabeça no sofá e começou a fumar com intensidade. Soltava
bolas de fumaça e as partia com o dedo de esmalte vermelho descascado.

- Querida, você está aí?

- Claro, mamãe.
- Você não está fumando de novo, está? Você sabe que...

- Não, mamãe. Não estou – esticou o telefone em sua frente e soprou um longo jato de fumaça
no bocal.

- Você já viu que na caixa desse troço diz que isso tem mais de 4 mil substâncias tóxicas? Isso é
um veneno, minha filha.

- Você sabe que eu aprendi a ler quando a senhora ainda não era tão velha, mamãe. Cadê o
papai?

- O Iã ainda anda passando as tardes com aquele sujeito? Eu já disse que...

- Cadê o papai? – repetiu com tédio, buscando falar de banalidades.

- Não tente mudar de assunto, garota. Você sabe o que aquele sujeitinho aí de cima fez com
aqueles garotos e com ele mesmo. Grande patife! Eu não quero o Iã andando de visitinhas ao
quarto dele. Sabe Deus do que aquele homem é capaz!

- O que ele vai poder fazer, mamãe? Enforcar o Iã?

- Ele pode não ser capaz de fazer muita coisa, mas ainda é capaz de falar. Só Deus sabe as
maluquices que ele pode fazer o Iã pensar. Ele só tem 12 anos, minha filha.

- Cadê o papai? – repetiu, dessa vez num tom enérgico.

- Saiu para caminhar. Ah, ele tem caminhado agora todos os dias. É tão bom saber que vou
ficar sozinha nessas horas de manhã. Ah, que alívio! E você deveria imitá-lo, faz bem para a
saúde, minha filha.

- A senhora também deveria imitá-lo. Ele fala tão pouco, mamãe.

“A senhora deveria imitar e fazer qualquer coisa que não faça bem a saúde. Deveria
imitar os suicidas”, pensou.

Dessa vez o sol incidiu com violência sobre o rosto do Iã. Ele precisava levantar,
mesmo sendo sábado e não tendo dormido direito. Olhou pela janela as casas marrons e
sóbrias que ficavam em frente ao prédio. Tudo lhe pareceu bagunçado e sério. Algumas
crianças, sem aula, já brincavam. Olhou para elas com uma nota de desdém, condescendência
e superioridade. Sentia-se maior desde a noite de ontem – ou talvez até antes. Viu-se a si
mesmo acordar como alguém mais velho. Mais velho e convicto... E estupendo! Calçou as
sandálias e desceu a escada.

Parou em um dos degraus quando viu a mãe ao telefone, mas continuou descendo
quando ela o olhou. Sabia com quem a mãe falava. - velha tola, nariz de bruxa! Por que se
mete em minha vida? Mexeriqueira!

Engoliu algumas torradas e tomou suco.


Precisava sair logo. Precisava ver com seus próprios olhos o que fizera de si na noite
anterior. Estava tudo acabado! Estava mesmo? Pensou no rosto de Acaz e sentiu medo. Mas
algo lhe dizia que ele era forte, que deixara enfim de ser um garoto.

- Mãe, vou sair.

Nem chamou o elevador. Subiu direto as escadas. Precisava enxergar pelo menos a
porta do apartamento de cima. Notou que havia algum movimento leve lá dentro. Encostou a
cabeça na porta e imaginou ouvir choro. Sim, era choro. Um choro fino e pesado. Iã sentiu uma
força estranha sobre as costas e correu para a rua.

“Então, ele está morto”, pensou, andando cegamente pelas ruas cinzas do inverno.
Lembrou-se do sonho que impedira seu sono. Sim, dessa vez não havia saída: ele estava
morto. Sonhou que o amigo segurava numa mão um punhal e na outra o crucifixo de sua avó,
sobre uma luz turva e amarelada. Essa luz sombria iluminava uns olhos grandes e maníacos no
rosto de Acaz, como ele jamais vira. E seu rosto e seus olhos amarelados tinham um riso
estranho - um riso fanático. Parecia que seu rosto flutuava longe de seu corpo sobre aquela
luz, e não parava de rir. Ria como um louco.

Lembrou-se das tardes que passou no quarto de Acaz. Quando ele lia O Diálogo dos
Mortos, de Lucianus, e desatava a rir descontroladamente. Ria sem parar e Iã, para não
parecer que não entendia nada daquilo, esboçava um sorriso inquieto no canto da boca. Leia
de novo, pedia, e então o Iã lia. E o pescoço do Acaz se contorcia como uma serpente presa ao
solo, e sua boca se abria, e ele não parava de rir. Ria sempre.

Talvez ele não esteja ainda morto. Talvez eu só tenha imaginado o choro de sua mãe.
Lembrou-se de quando ele lhe ensinou sobre Lévinas.

- Você entendeu o que Lévinas diz sobre o rosto? – perguntava Acaz com gravidade –
Entendeu, Iã?

- Eu acho que sim.

- Sim... Se você entendeu mesmo, encoste aqui em minha cama. Quero que veja o meu rosto
de perto. Bem de perto – e Acaz indicou com os olhos um lugar para que Iã se sentasse
próximo a ele.

Iã olhou assustado; tentou conter o susto dentro dos olhos com rapidez, mas o outro
já o havia percebido. Lembrava-se do que dizia a avó e muitos outros sobre o Acaz e o que
havia acontecido com os outros garotos.

- Por que tem medo, menino? Que mal eu posso te fazer? Haha – e ria e ria sem parar, com os
olhos vítreos e abertos. Sempre prontos a ver ironia em tudo.

Iã se sentou na cama.

- Se você compreendeu ou ainda não compreendeu tudo o que te falei essa tarde sobre o
rosto, olhe bem para o meu, Iã. Sente-se aí e olhe. Venha, menino, encoste aqui.
De alguma maneira, o rosto inerte de Acaz atraia-o; mesmo que ali só se movessem os
olhos e a boca. Os olhos da criança estavam fixos nas pupilas abertas do amigo. Quando caiu
em si, sentiu a respiração pesada de Acaz em seu rosto e fugiu. Mas na noite anterior aquela,
Iã voltou e não se demorou quase nada. Acaz estava semimudo e, quando saiu, ele lhe dissera:

- Tem um frasquinho com um remédio branco dentro do armário, que um amigo me trouxe.
Põe neste copo com água aqui ao lado, perto de mim, de modo que eu possa alcançá-lo, e saia.
Amanhã nos veremos.

Iã fez o que lhe fora pedido sabendo o que estava fazendo, mas era como se não fosse
possível fazer outra coisa.

Sua mãe lhe vestiu com a melhor roupa quando lhe disse que precisavam ir a casa de
cima; seus olhos estavam melancólicos mas sóbrios. Sua voz sussurrou “eu sinto muito, meu
filho. Seu amigo morreu”, e parecia leve e pesada ao mesmo tempo. Seria a primeira vez que
veria um morto. Agora ele estava morto. Queria ter dúvidas de que fosse verdade, mas sabia
que sim.

A mãe de Acaz abriu a porta. Um cheiro acre e monótono impregnava a casa, como em
todos os dias anteriores. Só que dessa vez parecia incomum. Parecia incomum ou indiscreto
que tudo continuasse como sempre estivera. Queria que algo estivesse diferente ou que o dia
fosse triste, mas de repente lhe veio à mente que quando saiu a rua muitas pessoas riam. Para
Iã, só faria sentido se tudo estivesse irremediavelmente triste. Mas nem ele conseguia se sentir
triste o suficiente, e sabia disso.

De repente, percebeu o caixão no centro da sala. Pensou que se se aproximasse dele,


os olhos do morto ainda estariam abertos e rindo. Sentia um calafrio tenebroso. Talvez quando
eu me aproximar do caixão o Acaz me olhe e ria de mim como numa brincadeira de mau gosto.

Sentaram-se ele e a mãe no sofá, em frente aos pais do morto.

- Era um menino tão bom nesses últimos tempos – choramingou o pai.

- Oh, Deus... – a mãe tentava, mas não conseguia dizer nada. Lançava a Iã um olhar de mistério
e remorso. Iã se sentiu desconfortável e fitava os pés. Colocou as mãos sobre as coxas e ficou
balançando os pés a esperar. Tudo que queria era ver o morto e saber se seus olhos estavam
abertos. Já admitia que estava morto, mas era preciso ver os olhos.

- Pegue biscoitos e chá para eles, querida – disse o senhor, com os olhos vermelhos, afagando-
lhe as costas – ai, acho que era a vontade dele, depois de tudo, mas é tão difícil... – sussurou o
velho.

A velha se levantou. A mãe de Iã aproveitou para dirigir-se ao caixão e essa foi a deixa.
Iã saltou do sofá e foi até o caixão, com passos lentos e firmes. Precisava ver aqueles olhos.

Teve de erguer-se na ponta dos pés para olhar lá dentro.

Para seu alívio, os olhos estavam fechados. Ouviu o tilintar dos pires na bandeja sobre
as mãos trêmulas da velha mãe de Acaz. Porém, não deixou de olhar para o rosto pálido e
quieto no caixão e percebeu que de fato agora se tornara mais velho (mas não era como em
seus sonhos iniciais); viu que ser adulto era pesado e intranqüilo como sentir culpa! De
repente, diante das pálpebras fechadas, ficou muito irritado consigo mesmo. Sua mente
injuriou o mundo e todos os sonhos e todas as quimeras que o envolveram; sentiu a sombra
turva de tolices cegando seus olhos e o peso de crescer contra a sua vontade. E finalmente viu
que tudo isto era desconfortante... e irreversível.
Terraço e Janela

A idéia viera após muito refletir; não de maneira impensada e impulsiva como -
ele assim imaginava - essas decisões devem ser geralmente tomadas. Pensara em
todas as coisas que haviam acontecido nos últimos dias durante toda a noite - uma
daquelas noites meio cinzas; melancólicas, porém doces, em que tomamos decisões
que mudariam nossas vidas para sempre se não as esquecêssemos na manhã
seguinte -, e racionalmente decidira: "se nada de novo, realmente interessante,
acontecer em trinta dias, irei me matar". Talvez porque não dormiu, o pensamento
tornou-se objetivo e foi aprimorado naquela e nas noites seguintes.

Trinta dias haviam se passado e agora ele estava ali, andando na beirada do
terraço, às vezes olhando para baixo e observando o fluxo interminável de pessoas
sob suas pernas, pensando em sua mãe e no pai, na Lúcia, e em si mesmo refletindo
sobre seu suicídio. "Quando você começa a pensar sobre seu pensamento é porque já
desistiu”, pensou, “Essas coisas têm de ser feitas sem muita reflexão". E continuava
ali, analisando as alternativas, com medo de parecer covarde para si mesmo. Sentia
um gozo agridoce vindo da tranqüilidade que lhe traria se precipitar, livrar-se daquele
tédio, da chatice, dos acontecimentos absurdos, misturada à depressão da dúvida e
ao prazer de imaginar todas as preocupações que teriam de ter com seu corpo. Queria
provocá-los. "Pessoas velhas parecem não pensar. Chega uma idade em que os
pensamentos da nova geração não conseguem penetrar na rigidez dos pensamentos
antigos.” Ele agora estava sentado, com os pés para fora do prédio, balançando-os no
ar. "E de todos esses velhos imbecis, os que menos vêem graça em pensar são
sempre os nossos pais".

Lembrava-se da noite em que brigara com o pai.

Chegara a casa tarde, como sempre. Assim que abrira a porta irrompeu em
Palavras fortes sobre ele o seu pai. O Pai febril, com o rosto vermelho, agitava já o
cinto nas mãos.

- Por onde tu andavas? Pensas que não sei por onde andas todas as noites,
infeliz? Pensas que não sei que já não vais para a faculdade e prefere ficar por aí com
estes teus amigos de trejeitos estranhos e aquela mulher? E tudo isso com o dinheiro
de quem, traste imprestável? Com meu dinheiro, meu suado dinheiro que você nunca
soube valorizar. Inútil! Imprestável!

E o pai agitava-se convulsamente a cada frase; e se lançava contra ele, com a


fúria alargando seus olhos, mas, sempre, como se alguma força estranha o impedisse
de avançar e atacar completamente. O cinto bramia, mas não cumpria seu propósito.

Sentou-se numa cadeira: ouvia todo aquele discurso sem exprimir comentários,
sem reagir aos insultos do pai para evitar uma confusão maior, evitando motivos para
que ele se exaltasse ainda mais. Lembrava da última visita que fizera a Lucia; de
como ela estava deprimente, de como ele sentiu pena dela e de como sentiu uma
certeza estranha de que ela não duraria muito tempo daquele jeito.
De repente, ao ver com que calma ele simplesmente se sentava à sua frente, o
pai agigantou-se diante dele. Elevou-se e parecia tocar o teto. O filho ergueu-se
rápido e recuou.

-É por tua causa, infeliz. Por tua causa e do teu desleixo que tua mãe agora está
morta.

-Ora, você sabe que, se fossemos nos imputar a culpa pela morte da mamãe, sobre
quem cairia a maior parte. Sabe que não tenho tanta culpa pela morte dela. – o filho
finalmente respondia.

-Sobre ti, e apenas sobre ti, cairia a culpa, infeliz. Sempre a nos encher com
preocupações sem se preocupar com a nossa fragilidade; sempre egoísta. Sempre a
trazer desgraças para nosso teto.

O filho, que desde que o pai se erguera de tal forma fantástica, não cessou de
fitar, triste, o cinzeiro sobre a mesa, perdeu a visão e correu assustado para o quarto.
Trancou-se. O pai encostou-se à porta. Um suspiro se fez ouvir e um peso novo pairou
sobre a casa.

-Filho, sabe que eu só quero o teu bem e que preciso de você agora que envelheço.
Eu preciso que compreenda. Escuta-me: quem me sustentaria se você fosse embora?
Quem me cobrirá se você não seguir ao meu lado, filho? Tente me entender: me
obedecer só te levará ao que é bom. Filho, se eu precisasse - suas palavras pareciam
murchas e perfurantes - você me salvaria?

-Não sei, pai. Nem o senhor sabe.

Deitara-se na cama e enfiara os fones de ouvido... Esforçou-se em concentrar


em si mesmo e dali não sair. Já começava a acontecer em sua mente, com ímpeto, a
idéia que o sustentaria durante todo o mês.

Descia lentamente as escadas. Saíra do terraço com uma expressão cansada,


mas aliviado. Chegara a um dos andares onde havia uma enorme janela no fim do
corredor, a luz convidativa do sol que se punha bem em sua frente brilhava por todo o
ambiente. Dirigiu-se a janela - ainda é suficientemente alta -, e voltou a pensar,
riscando com uma pedrinha a lateral da janela.
RESSURREIÇÃO
A Daniel “Funga” Fadigas.

“No princípio criou Deus os céus e a terra.”

(Gênesis 1:1)

“... é um espelho que se leva pelo caminho.”

(Stendhal)

Concluímos a lapidação para a qual fomos propostos desde o nascer:


estávamos mortos e não sabíamos o que éramos, ou se ainda éramos. Tentávamos
observar ao nosso redor, quem sabe os passantes ou os presentes semiconstantes,
quem sabe o vácuo; mas tudo o que podíamos notar é que já não tínhamos visão,
consciência, abstração, ou seja, que já não podíamos perceber nada.
O cemitério, onde é suposto estarem os mortos, é um lugar respeitoso,
austero, humano, incômodo, sedutor e inapropriado. Inspira mais devoção e
reverência do que as igrejas, por uma questão de temores a tais ou quais deuses:
Deus, ele mesmo, e a morte. Aqui e ali ocorrem – contudo, como mortos novos, não
podíamos conceber ou absorver tais eventos, ou sequer ter consciência de se tínhamos
essas capacidades – conversas relevantes.

Esqueçamos os consolos e consternações e elogios, pois não há nada mais


tedioso que a vulgaridade. O que importa, em nosso espaço – ou nesse espaço vosso
que pensais compartilhar conosco, ao menos por ora, para efeitos práticos – é a
inocência da metafísica.

Os garotos que se beliscam sem as devidas noções artísticas da ocasião; a


tristeza dos que verdadeiramente enviúvam (o que vez por outra acontece entre
alguns que perdem seu cônjuge); os comentários de homens cínicos como executivos
sérios e a melancolia dos observadores introspectivos. Ah, os que contemplam são a
melhor espécie desse cenário. Desanuviemo-nos de tudo isso para nos concentrarmos
nas idéias.

Não ouvimos nem imaginamos, mas há, obviamente, os que discutem


fervorosamente, e em voz baixa, sobre a nossa condição.

Como aquelas senhoras que ali nos entregam a Deus, embora, como vocês
podem ver, ninguém ainda nos veio buscar. Mas sempre fica ainda (para elas; não
sabemos, por enquanto, se para nós) a sensação de que Pandora também nos fez sua
caixa do lado de cá do desconhecido. Senhoras, se percebermos, em nós, um corpo ou
espectro, iremos compô-lo com elegância, esperando Deus a qualquer momento – ou
algum seu emissário.

Ninguém, em nenhum grupo, anuncia uma possível ida ao inferno, uma vez que
somos todos, a partir de agora, pessoas verbalmente bastante benquistas.

Um poeta triste e ingênuo, recolhido num canto, sonha para nós um réquiem.
Um moço ao seu lado, inventivo, arquiteta um abismo infinito onde um despencar
interminável nos coloca às voltas com nossas próprias cabeças e sombras de sombras
se esparramando ao nosso lado no que não é parede, mas também imensidão infinita.
E seguimos caindo, pela eternidade.

Há ainda aqueles três, sob os pinheiros (observe por si mesmo os pinheiros –


crie-os se necessário -, mas não espere por nós que não temos mais a habilidade de ter
certeza). São os que falam mais baixo e por mais tempo permanecem mudos. Incertos,
às vezes nos remetem a transformações. Pegam nosso nariz e transformam para si em
oxigênio, nosso abdômen vira adubo e nossos olhos podem vir a ser um dia, na mais
inusitada das idéias, nadadeiras de ornitorrinco. Discorrem sobre tudo que possamos
vir a ser ou fomos, sem dar descanso às nossas moléculas. Mas, assustam-se!, nem
tudo é sólido nessa imagem e sobre algumas matérias eles não podem idealizar.

Às vezes, esses mesmos três que impacientam subatomicamente nosso corpo,


diz-nos apenas como nada e, no entanto, isto não conseguem visualizar. Têm uma
percepção e conceito para tudo, exceto para isto, o que agora para eles somos: nada
num não-espaço.

Um nada que conta uma história?! A Literatura foi nossa última graça, a única
capaz de transcender... A Palavra, nossa única salvaguarda.
Memórias Póstumas de Cristabella
Hoje, eu morri. Talvez tenha sido ontem. Não sei. Desculpe se começo dessa
maneira abrupta as narrações da minha morte. Não sei ao certo como devo dizer tudo
que me aconteceu e também não tenho nenhuma pretensão literária. Talvez isso seja
apenas uma fantasia dos meus próprios pesadelos e eu ainda esteja viva, o que acho
pouco provável, mas, de todo modo, tudo que me aconteceu é fantástico demais para
não ser contado.

Fiquei internada por três meses numa clínica de repouso depois que os meus
pais morreram e, quando saí, fui morar na casa do Sr. Escher. Quando tinha oito anos,
ele fez um quadro meu; um em que eu estava nua, deitada no sofá e meus cabelos iam
descendo quase até o chão; um quadro meio cinza e branco. Um dos poucos quadros
dele que eu vi. Tinha um ar bem angelical e todos o achavam lindo! O Sr. Escher era
muito amigo dos meus pais e, por isso, sempre que pedia para que eu fosse sua
modelo, eles não faziam nenhuma objeção. Estava cansada de ficar sozinha naquela
clínica e, no mesmo dia em que saí, fui direto para a sua casa. Ele já havia me dito, no
mesmo dia do velório dos meus pais, que me ajudaria em tudo que eu precisasse.

Conversávamos pouco, mas quando ele falava era sempre jovial e irônico. Não
me tratava como empregada nem como musa nem como filha adotiva. Como ele às
vezes falava, éramos amigos ingleses: formais durante o trabalho - o Sr. Escher me
olhando com olhos contentes e atentos, como um menino - e moderadamente íntimos
no restante do dia. Íntimos não é bem a palavra certa. Embora geralmente quieto, eu
gostava muito dele e sempre me senti confortável e acolhida em sua casa.

À tarde, passávamos praticamente o tempo todo no atelier. Uma grande sala


com alguns cavaletes e materiais de pintura. Contracenava com pouquíssimas coisas
na hora de posar e ele me dizia que “não é bom encher de coisas vivas o que se quer
pintar pela imaginação”. Não gostava que eu me movesse enquanto pintava. Me
colocava em uma posição e assim eu tinha de ficar. Se me movesse, seus olhos azuis e
profundos ralhavam comigo sem que precisasse abrir a boca. No fundo da sala havia
uma porta por onde se entrava na sala que o Sr. Escher usava para guardar os quadros
já pintados. Ele deixava cada quadro em seu cavalete e cobria com um lençol branco.
Este era o único lugar da casa onde eu não podia entrar. O problema é que ele jamais
me deixava ver os quadros que fazia de mim e aquilo me incomodava; deixava-me
impaciente e curiosa. Todavia, aceitava a decisão de meu benfeitor e o considerava um
grande artista pelos poucos quadros dele que vi. Dizia que eu veria todos na sua
próxima vernissage, mas há muito tempo ele não fazia exposição alguma e nem havia
previsão para uma.

Certa vez, comentávamos sobre a corda que foi encontrada presa ao lustre no
apartamento de cima, com o pescoço de uma senhora amarrado à ponta. Ficamos
discutindo enquanto ele pintava, como raramente fazíamos, sobre suicídio. Meio
pálido, pela primeira vez ele foi expressivo ao me contar algo de sua vida.

- Como bem disse Camus – falou o Sr. Escher – “todos os homens saudáveis já
pensaram em suicídio”. Quando eu era adolescente e tudo parecia desesperador,
suicida e solitário, e até mesmo a pintura – na época eu fazia alguns desenhos para um
quadrinho underground mensal – parecia o sorriso feio da nossa síndica, pensava no
suicídio como a mais satisfatória das hipóteses. Deve ter sido a escola. Não via sentido
algum na vida e me sentia covarde e abatido demais para inventar-lhe um. Todas as
minhas decisões pareciam cruéis a alguém e tudo era extremamente tedioso. A idéia
de encerrar tudo e mergulhar nos vórtices do nada abismal que eu esperava encontrar
era uma das poucas coisas que me acalentava, e consumia todo o meu cérebro quando
deitava. Ainda assim, claro, mesmo absorvido pela idéia do suicídio, continuava
sonhando planos para a continuidade de minha vida. Não era tão corajoso para me
matar. O único obstáculo que me impedia - ou que inventava -, além de certo medo
óbvio, era uma pena e um remorso antecipado que sentia por meus pais, que me
encontrariam morto numa cena trágica. Tinha que ser algo limpo e acidental. Então, eu
me virava contra o travesseiro, afundando o meu rosto nele. Dessa forma, se
conseguisse, achava que meus pais jamais desconfiariam. Passei a fazer isso todas as
noites. Imaginava-me deveras corajoso a cada tentativa... No início, erguia o meu rosto
depois de apenas alguns segundos. Com o tempo, aquilo foi durando cada vez mais.
Começava respirando fraca e lentamente, com o rosto apertado ao pano do
travesseiro ou da cama, até que o ar ia diminuindo e toda respiração desaparecia. É
como um mergulho. Minhas mãos iam começando a se apertar, meus dedos se
contorciam como os de um louco, minhas pernas se debatiam e minha barriga tremia,
todo o meu corpo se convulsionava e eu fazia o possível para manter minha cabeça
presa e sufocada, mas ela sempre escapava no último instante, quase instintivamente.
Com vultos passando à minha frente, ficava vendo as novas cores que meu rosto havia
adquirido no espelho do quarto mal iluminado.

Um sorriso melancólico passou de leve ao lembrar a brincadeira de menino.


Seus olhos se perderam um instante, mas depois voltaram a ser quentes e
concentrados, como antes.

- E então? – perguntei.

- o fato de eu ter mais de treze anos não responde o suficiente? Essas coisas
acabam no mesmo ano das aulas chatas do colegial.

Sorrindo, voltou a pintar e não dissemos mais nada.

À noite, depois de redigir as cartas que o Sr. Escher, sob pseudônimo, enviava
aos alunos por correspondência, ainda me dava algumas aulas de pintura e História da
Arte. Assim, praticamente todo o seu dia era dedicado a mim e à pintura. Embaraçava-
me um pouco todo o zelo e carinho que tinha por mim. Apenas por distração ou tédio,
como ele nada exigia de mim além de posar, fazia pequenas tarefas domésticas que
muito me ajudavam a passar o tempo.

Depois das aulas, ele se trancava na biblioteca ou levava alguns livros para o
seu quarto. Eu passava a noite vagando pela casa, sem sono. Mais de uma vez me
peguei dormindo em lugares inesperados. Quando isso acontecia, ia então para o meu
quarto. Invariavelmente, demorava a dormir. Havia uns vinte quadros ao redor da
minha cama que sugavam minha atenção: quadros de mulheres bonitas, figuras
estranhas e belas que eu jamais havia imaginado; seres engraçados e emaranhados
que me lembravam as imagens de Hyeronimus Bosch. Além disso, parecia haver algo
no mundo dos sonhos que me amedrontava. No intervalo em que deitava na cama e
ficava olhando os quadros até dormir imaginava coisas que esperavam para me
assustar quando dormisse, e eu, do lado de cá, relutava em vê-los.

Olhando para o teto, que não sugava meus olhos como as paredes cheias de
cores, logo vinham em minha cabeça os pesadelos que sem dúvida teria. Se olhasse
para os quadros, ficaria tão absorvida que não conseguiria sequer cochilar. Aqueles
eram desenhos encantadores. Havia dias em que só conseguia dormir com o Sr. Escher
já a andar pela casa, bem cedinho, pouco antes de o sol bater em minha janela. Por me
encontrar dormindo em lugares que não são feitos para dormir ou por me encontrar
na cama ainda acordada, ele às vezes me chamava de A Sonâmbula Insone. É um nome
besta, eu sei, dizia.

Quando finalmente dormia, devaneios e sonhos ridículos e perplexos tomavam


minha mente em sensações febris e violentas, o que me fazia pensar no sono como
algo aterrador. Não raro, acordava com o rosto do pintor sobre o meu, na sala, em
frente à TV, ou na cozinha, ou na varanda cheia de jarros de flores com suas três
paredes multicoloridas, perguntando-me se estava bem.

Num dia em que acordei sem quase ter dormido, perguntei ao pintor por que
não me deixava ver as telas que fazia de mim. Pediu-me desculpas e disse para
compreender as bobagens e superstições de um homem velho. Mas o Sr. Escher era
cínico demais para ser supersticioso.

Certa tarde, após concluir um quadro que exigiu de nós dois quase um mês de
trabalho, tentei me esquivar para ver o que havia sido produzido. Contudo o Sr. Escher
olhou recriminando-me, cobriu o quadro e o arrastou até a outra sala, dispensando
minha ajuda. Quando abriu a porta, vi as paredes azuis e os cavaletes cobertos por
panos. Tudo bem limpo e organizado. Ao contrário do que supunha, ele devia passar
muito tempo ali também. Agoniava-me todas as suposições que tinha de fazer sobre
algo que eu tinha ajudado a criar.
De noite, esperei pacientemente na biblioteca. Fiquei passeando os olhos pelos
objetos e o grande relógio cujo pêndulo balançava despreocupado. Havia uma coleção
de punhais e armas que o Sr. Escher colecionava dentro de um armário com porta de
vidro, além das três estantes altas cobertas de livros dos mais variados. Passeei ao
redor do cômodo, passando os dedos pelas prateleiras. Vi clássicos da Literatura,
quadrinhos, livros modernos de História, Artes, livros sobre hipnose e influência
psicológica das cores, alguns volumes grossos especializados em tintas, tons, técnicas
de pintura...

- Boa noite. Vou dormir.

Tomei um susto quando vi meu protetor dentro da biblioteca. Não havia ouvido
a porta se abrir. Carregou alguns livros e saiu. Continuei a esperar. O pêndulo do
relógio alto e esguio me irritava; um alerta para cada segundo é algo que
enlouqueceria qualquer ser humano. Devo ter passado mais de três horas lá dentro.
Depois, saí para verificar se o Sr. Escher já dormia. Difícil saber. A luz estava apagada, e
não pude perceber nenhum sinal ou ruído dentro do quarto que indicasse que já
estava mesmo desacordado.

Decidi me arriscar mesmo assim. O Sr. Escher sempre foi bom comigo e cuidava
de mim como ninguém jamais faria. Não exigia nada de mim. Se me encontrasse
dentro da sala dos quadros seria constrangedor. Não tenho dúvida de que ficaria
muito desapontado comigo. Quando cheguei ao estúdio me senti meio mal pelo que
estava fazendo, mas não conseguia interromper minha curiosidade e dominar as
diversas interrogações que há muito me incomodavam sobre os segredos do Sr.
Escher.

Por sorte, a porta não estava trancada. Preferia que estivesse. Devia ter mais de
dez quadros naquela sala e eu não tinha dúvida de que era a modelo da maior parte
deles. Olhei para fora para ver se não havia ninguém me observando. Liguei a luz e tirei
o pano do primeiro cavalete à minha frente.

A cena que vi tinha tons vívidos e assustadores. Embaixo da tela, li em letras


precisas o título “O Seol de Cristabella”. No canto inferior esquerdo, a assinatura:
Escher D´us. O cenário era escuro com seus tons marrons, com uma luz que se
aproximava do fundo iluminando toda a frente do quadro, devorando sombras que
persistiam ao redor da figura que era eu. Eis o quadro: eu estava em pé e calma, mas
os meus joelhos se dobravam de maneira esquisita e incompleta, os meus olhos
tinham um ar de resignação e martírio, mas pareciam fugidios e ansiosos. Havia
crianças e porcos sob mim, muitos deles, e pareciam querer subir sobre meus pés e
entrar em meu corpo. Algumas crianças tocavam meus pés e me puxavam e os porcos
as acompanhavam; o meu rosto parecia querer virar-se para não vê-los, contudo ainda
os fitavam.
Tirei o pano da segunda tela. Eu estava de costas, sentada em posição fetal, e
outra de mim, em pé, tocava minhas costas. Havia dois homenzinhos ao lado da
Cristabella sentada, que de tão pequenos pareciam serem feitos tão somente dos pés
que carregavam seus corpos rechonchudos, os quais, na verdade, eram apenas suas
cabeças - de tamanho normal, porém enormes para suas estaturas. A garota sentada,
embora sendo eu, parecia-se também com a mulher que se suicidara alguns dias antes.

Aquilo bastava. Não queria ver os outros quadros. Chorei e senti medo. O
primeiro quadro fez-me sentir tonta e nauseada quando passei por ele novamente.
Toda hora olhava para os meus pés como se aquelas crianças e porcos fossem se
consolidar e entrar em mim verdadeiramente. Corri para o quarto, mas tive que voltar
para trancar a porta que esquecera aberta. Não queria que o Sr. Escher soubesse que
estive lá. No dia seguinte, sob algum pretexto, sairia dali. Precisava, antes, dormir um
pouco. Talvez ao acordar minhas idéias se acalmassem. Talvez fosse tudo alucinação
da falta de sono e os quadros não fossem tão terríveis assim. Ademais, eram apenas
quadros e um artista tem direito de criar o que quiser, e eles geralmente fazem coisas
bem estranhas.

No quarto, deitei-me cansada mas consegui parar de chorar. Não ia conseguir


dormir. Com as figuras das duas obras fixas em minha mente; fiquei a olhar os quadros
das minhas paredes. As telas se sobrepunham diante dos meus olhos pesados. Estava
exausta demais, mas temia dormir e me encontrar com os pesadelos de todas as
noites multiplicados pelas novidades desta. Ia percebendo coisas novas nos quadros
que via noite após noite, desde que fora morar ali. Os contornos de uns e daqueles da
sala no final do estúdio se assomavam, e se reorganizavam e compunham figuras de
monstros cheios de braços carregando morangos e corujas, como aqueles criados por
Bosch. Percebi no olhar das mulheres daqueles quadros o mesmo visto nos meus.

Por fim, não sei se sonhando ou acordada, lembrei-me que o segundo quadro
da sala dos quadros se assemelhava e muito a um dos meus sonhos recorrentes: eu
estava dormindo e me levantava; caminhava pela casa como se flutuasse, como um
espectro, passava por diversos cômodos e me via repetindo diversas ações que havia
feito no dia. Até que me achava deitada de bruços no sofá, como se estivesse posando
para um artista invisível, e, então, tocava o ombro do meu corpo deitado. Quando via
o meu corpo se virando para mim, percebia-lhe mordiscando um dos seus pulsos e o
perfurando. Acordava ofegante e preocupada.

Era isso. Sr. Escher maldito! Os quadros, os livros de hipnose na biblioteca, o


sigilo. Estava sendo hipnotizada por todos esses três meses. O Sr. Escher incrementava
meus sonhos com sua criatividade macabra e eu os dava de presente para sua
inspiração. Por isso, sempre fui a melhor modelo!
Precisava me levantar para fugir, escapar daquele pintor; contudo, já estava
dormindo. Relembrava o sonho, sonhando-o novamente. E, dormindo, senti a
presença do pintor no quarto. Tentei acordar, mas não consegui. Tentei fugir do
sonho, mas caí num negrume horrível sem nenhuma imagem. Um sonho vazio.

Claramente, depois de alguns segundos, vi o senhor na cama ao meu lado.

- Não deveria ter visto aqueles quadros. Você... É minha obra-prima.

Meu corpo se virava com calma e se comprimia contra o travesseiro, com


cautelosa lentidão. Meu corpo repousou calmo por um longo tempo e o relógio da
biblioteca passou voando com asinhas sobre mim. Depois, começou a se debater
furiosamente, os punhos se cerravam como se quisessem quebrar as mãos. Os dedos
se torciam. Não me vi se aquietando novamente. Já estava morta. No final,
lentamente, todas as cores e imagens do meu sonho se apagaram.

O Sr. Escher concluiu sua obra, e eu não sei até que ponto fui cúmplice do meu
próprio assassinato.
ADEUS, SOFIA

Sei que todos da minha família me consideram desde sempre como o mais inteligente
desta geração, e, ao mesmo tempo, talvez por este mesmo motivo, também pensam em mim
como o mais idiota de toda a história do nosso sangue. E é isso que expressamente vejo nos
olhares repreensivos e invejosos dos meus tios e primos quando vêm censurar-me – com
aqueles grandes olhos avarentos e vermelhos – por haver já abandonado todos os três cursos
universitários que cursei e por pensar em abandonar ainda esse outro; e, com seus gestos
zombeteiros e acusadores, me alertam sobre a tolice de não haver ambicionado ainda nada de
substancial para minha existência, e não ter, com isso, adentrado no mundo onde todos
gostariam que eu estivesse.

Mas são os olhos miúdos e penetrantes de minha mãe que me enternecem e me


entristecem todas as noites em que, por algum motivo, sou obrigado a chegar a nossa casa
num horário inapropriado e, sutilmente, deslizo pelo piso e escada em direção ao meu quarto,
receoso de acordá-la ou cruzar com ela em algum ponto, pois sei que invariavelmente não
dorme até que eu chegue, embora eu saiba que, sempre, com seus olhos inquisidores e hábeis
em me fazer sentir culpa por alguma falta que possivelmente cometi, encontrarei com ela,
provavelmente no limiar do primeiro ou do último degrau, e, com os olhos baixos e acossados,
por vezes com um mirrado e esquisito buquê desculposo em minhas mãos, terei de enfrentar
minha culpabilidade e fraqueza diante de responsabilidades perenes e agudas que tenho
dentro desta morada... Apesar de todas as astúcias sutis que utilize para adentrar esta casa e
alcançar com tranqüilidade o meu quarto, há sempre um ponto aleatório onde a presença já
pressentida e temida do seu olhar me atinge em realidade, com seus tons acusatórios acerca
de minha despreocupação e desleixo, sondando-me sobre os lugares que percorri e me
acusando quieta e serenamente de haver estado próximo à porta do gabinete do meu pai.

E então você quer me fazer crer, a despeito de tudo isso, de jamais haver estado na
câmara do meu pai e jamais haver fitado com firmeza e sem embaraço o rosto de minha mãe,
deseja então que eu desperte em significativas manhãs e, virando-me para o lado na cama,
com um sorriso oportuno e contente, despreocupadamente diga “bom dia, Sofia!”. Como se
fosse possível renunciar e não levar para esta cama, precisamente para esta cama imaginária
nossa, querida, todas as coisas únicas que eu reconheço como vida, com todos os seus
detalhes pequenos que persistiriam em me acompanhar e me constranger e embaraçar dia
após dia. Acha mesmo possível abandonar todos esses pequenos eventos que são os únicos
que eu consigo recordar como meus, embora um deles eu sequer tenha presenciado? Acha
mesmo coerente ter fé numa outra existência para mim, sabendo agora de tudo que me
cerca? E não é por você ser filha de goyim que não há possibilidade de participar desta
meshuggeneh particular, pois há muito tempo minha família, ou ao menos eu e minha mãe, já
não nos imiscuímos nesses pensamentos e sequer nos lembramos de nossa ascendência para
além do meu pai no passado; mas, sim, porque tudo isso gira em torno de um eixo do qual
você não faz parte e não há como te encaixar.
Estas são as acusações e os empecilhos de minha vida, mesmo que tudo que eu saiba
sobre o meu pai seja através dos sussurros perpetrados cautelosamente quando há mais
alguém pela casa além de mim e de minha mãe, com seu temor de que eu possa entrar
naquela sala onde ele estava no dia preciso em que nos abandonou. Burburinhos que só são
executados quando se pensa que eu não estou por perto; o que nunca me impediu de ouvi-los
desde pequenino. E mesmo estes murmúrios têm sido silenciados com o passar do tempo por
se acreditar já fria e quase amenizada a causa de seu abandono, engenhosamente emudecida
por algum disfarce de silêncio e resignação fingido por minha mãe diante dos outros. Apenas
diante dos outros.

O que sei sobre meu pai e sua câmara, afinal? O que me ensinaram as conversas à
meia-voz que ouvia atrás de cada parede e porta que andava? O que me recordo são as
Palavras da minha avó, sentenciando como uma tolice o ato de seu filho, e as conversas
balbuciadas de meus tios sobre os pertences daquele aposento: um incontável número de
livros de diversos tipos, ordenadamente organizados em estantes que cobriam todas as
paredes; uma cadeira de espaldar elevado e uma mesa onde repousavam frascos, uma
lâmpada (de leitura), cinzeiro, papéis, os comprimidos e um aquário. E, desde criança eu me
pergunto, afinal, tenho de me perguntar, pois meu pai decidiu abandonar a mim e a esta
mulher que talvez amasse, quando eu ainda nem era nascido e às vezes quero acreditar que
ele nem mesmo sabia da minha existência, ou, do contrário, talvez (oh, meu Deus!), talvez
tudo isto pudesse ser de algum modo diferente, contudo, como dizia, me pergunto o que foi
feito dos livros e principalmente dos peixinhos no aquário, uma vez que desde aquele dia,
como faz questão de alertar minha mãe, o gabinete do meu pai nunca mais foi aberto.

E você pode ver agora, Sofia, que desde antes do meu nascimento minha mente já é
bombardeada de indagações, que me pus a fazer perguntas antes mesmo que soubesse o
modo falá-las. E que, no instante em que me deito e principio a tentar dormir, vejo-me
questionando se estariam vivos aqueles peixes ou se foram aniquilados por alguma bactéria,
pela fome, pela solidão, pela falta de água, que talvez já tenha secado, ou pela imundície que
se apoderou dos espaços inertes de todo o quarto, pois eu não me arrisco a ser exato em
nenhum palpite sobre aquele lugar; no mesmo instante, pergunto-me se, graças a algum
estranho acaso, não estariam ainda nadando nas águas, sossegados, indiferentes a todos os
anos de insensibilidade que lhes foram dedicados. Ou talvez o limo tenha se formado no
aquário e escalado as paredes de vidro para se instalar em outras partes do cômodo; por todo
o cômodo, quem sabe.

Por tudo isso que te escrevo, acredito, todas as ocasiões nas quais me vejo insurgir
contra os temores de minha mãe, incitados por estas dúvidas que desde criança me
atormentam, e elaboro durante dias, meses e anos, múltiplos planos para adentrar a
inatingível sala do meu pai, logo ao subir as escadas e ver de longe a porta que me encara
ameaçadoramente imperturbável e imóvel, eu sinto medo que de dentro seja sugado por
alguma mão impaciente e infamiliar, por algum mostro de musgo de mãos frias e pegajosas
agarrando-me a pele, invocando-me ao quarto que, de uma forma ou de outra, meu pai me
legou como herança. Ele e o que ali houver. É imaginável ainda que eu consiga penetrar sem
problemas na câmara, atravesse sua porta e percorra suas dimensões piso a piso até o seu
centro, mas, ao sentar-me na cadeira, limpando com o dedo a poeira sobre um livro, sinta-me
hipnotizado e absorvido por este livro, provavelmente o último que meu pai também teve
diante de seus olhos. E então dali eu parta para longe, como fez o meu pai, e como é
provavelmente inescapável que aconteça comigo. Pois minha mente tem sempre que girar em
torno de todas as impenetráveis probabilidades possíveis.

Ainda que você diga com toda fantasia acreditar no nosso destino, como você mesma
gosta de usar a Palavra, ainda que você tenha algum orgulho nisto que considera como uma
grande habilidade, esta minha capacidade inútil de copiar qualquer escritor, célebres, clássicos
ou desconhecidos, de poder reproduzir no mesmo estilo e linguagem uma nova estória que
possamos inventar por nossas próprias mentes. Acreditando mesmo haver nestes pastiches
descarados de minha falta de criatividade algum louvor e glória. Isto que gosta de chamar de
habilidade, ó, Sofi, não passa de minha incompetência para criar o que quer que seja novo.
Tudo que eu posso fazer é repetir aquilo que me foi legado. E se pensa que traz algum êxito ao
espírito de nós dois... A mim não traz, Sofia.

Portanto, nós dois sabemos que não há como insistir para criar alguma alteração tênue
ou brusca em todo esse jogo particular e incomunicável, pois apenas eu sei que, ao nos
postarmos, eu e a minha mãe, num mesmo aposento da casa, seja na cozinha pela manhã ou
numa das salas à tarde, eu choro silenciosamente relembrando coisas que jamais vivenciei
durante toda a minha vida, choro com náusea e melancolia constantes. E sei que ela também
chora, embora seus olhos se tornem esquivos e baixos nestas circunstâncias, sei que a minha
mãe chora com bastante tristeza.
O Vendedor do Mar

Pelo tempo de meu nascimento, havia na província um velho homem que,


perambulando de aldeia em aldeia, anunciava a todos os ares ser ele o vendedor do mar.
Talvez por jamais haver encontrado ninguém digno ou rico o suficiente para pagar pelo
excelente produto, habituei-me desde pequeno a vê-lo passar de tempos em tempos,
carregando sempre o mesmo discurso, trazendo sempre, da boca aos ventos, a maravilha
da sua oferta.

Precisamente no dia do meu aniversário de dez anos, enquanto brincávamos eu e


meus amigos nas colinas altas, eis que o ouço dizer pela primeira vez o valor que
desejava obter pelo mar. Era uma soma vultosa! Considerando, todavia, a extensão do
objeto, impossível haver preço mais exatamente justo.

Embora não houvesse ali ninguém além de nós, crianças incompletas, vendo o
velho homem bradar acerca do mar àqueles que desejassem alcançá-lo, por incalculável
quantia e extrema honradez, pareceu-me que aquilo fora dito tão somente a mim – e
talvez fosse eu, dentre todos os presentes, seu único ouvinte. Sabia que, no final, sem
falta, se eu o merecesse, tomaria das mãos do homem o mar, que mo daria de bom
grado, pelo preço justo. Sentia como se suas Palavras fossem dirigidas exclusivamente a
mim, trazidas pela mesma brisa que agitava as ondas.

Assim, a partir daí, sempre que avistava o mar do topo das colinas altas, sempre
que nele me banhava ou sobre ele navegava nos pequenos barcos pesqueiros, quando
avistava as ondas assombrosas e altivas rebentarem-se na areia diante dos meus pés, ou
quando degustava um saboroso peixe ou fruto do mar – que rapidamente se tornaram
meus alimentos favoritos -, invadia-me a ânsia pelo dia em que tudo aquilo poderia ser
chamado claramente de meu; agitava-se em mim a firmeza da necessidade de diversas
obrigações que deveria me impor se quisesse receber, das mãos do vendedor do mar, a
posse daquela existência. Cresci então fascinado por aquela oferta; ansioso para tomar
sobre mim os encargos dessa fantástica conquista.

Não tive filhos; jamais me casei; não permiti que um instante sequer me
desviasse do meu projeto, ou melhor, para ser mais correto e sincero, fui aprendendo a
permitir cada vez menos que eventos e distrações me desviassem deste caminho que
reina sobre mim, desconhecido por todos.

Tornei-me rico e bondoso. Sei que todos me considerariam um louco se


soubessem da intenção final de cada ação de toda a minha vida e que vêem em minha
prosperidade o fim mesmo de meus desejos e atos. Tenho também consciência de que,
caso soubessem de minhas inclinações mais íntimas sem que duvidassem da
estabilidade de minha sanidade, considerariam uma loucura, isto sim, as freqüentes
esmolas que distribuo caridosamente entre os pobres de nossa aldeia. A loucura fez de
mim um homem bom; e isto, a eles, seria incompreensível: uma vez que aquilo que
desejo é tão grande e de tão caro valor, não seriam um desperdício estes gestos
filantrópicos? Contudo, estou convicto de que, para adquirir o meu sonho, terei de
apresentar uma vida digna e sensata ao vendedor do mar, pois apenas uma alma nobre
pode possuir algo tão imenso.
Com o tempo, tornei-me também reflexivo. Aprendi a admirar o mar, os
homens, a criação e a terra, mas sobretudo o mar. Ouvi silenciosamente o homem do
mar todas as vezes que por aqui passou, sem jamais lhe dirigir Palavra alguma. Acredito
seriamente que, por não haver ninguém corajoso ou abençoado o suficiente para assumir
as responsabilidades de seu pedido, eu sempre fui o único a escutá-lo.

Agora, avançado em idade e já no fim dos meus dias, como não tive filhos, não
tenho dúvidas de que terei de inspirar em alguém o desejo pelo mar antes de minha
morte, quer eu consiga ou não obtê-lo, pois, apesar de rico e bondoso, não sei se os sou
o bastante aos olhos do vendedor do mar.

Quando tudo estiver então completado, quando tiver por fim em minhas mãos
todo o necessário para apresentar-me a ele como um grande e sublime homem, sei que
ele virá até mim, me dará o mar e tomará tudo o que tenho, legando-me o peso do que
foi sua posse. Sei que ele não pode cessar sua busca. Entretanto, temo que, antes da
chegada desse instante, eu já não me conte entre os vivos.
Tetralogia do Assassinato: O Duplo.

___Todos seguiam normas bem sólidas em todos os quartos da pensão de três andares
da Rua Santa Cecília, nº 12. Mas eram ainda mais consistentes as normas que regiam as
vidas de cada um dos moradores dos dois únicos quartos do primeiro andar. Moravam
ali há muito tempo o Sr. Esaú e o Sr. Jacob. Embora vizinhos, toda ligação que
possuíam era composta pelos jogos de cartas nas quintas à noite, algumas Palavras sem
substância balbuciadas quando se encontravam na porta ou na escada, e uma habitual
troca de alimentos quando necessário. Mesmo nas noites de jogo, sempre preferiam se
trancar num concentrado laconismo. Falavam pouco mas jogavam muito bem: e assim
uma noite na semana desaparecia rápido e fazia um pouco de sentido.

A amizade corria tranquilamente, pois era sustentada em tais obrigações sólidas, mas
completamente leves, como arrumar bem as cartas e a mesa depois de cada partida. E a
mais necessária era que não se perguntasse nunca como o Sr. Jacob conseguira a
contundente e hedionda cicatriz que lhe enfeitava o rosto. Isto, com o tempo e a
freqüência da visão daquele rosto talhado da bochecha ao alto do olho direito, foi
ganhando cada vez menos importância. Certamente, no princípio Esaú se sentira curioso
em saber como o amigo adquirira aquela marca, mas ainda não se sentia suficientemente
íntimo para perguntar. Quando já se acreditava assim, simplesmente não se interessava
mais por isso. Agora não se lembrava mesmo de jamais haver tido qualquer interesse
pela cicatriz, como também não se lembrava sempre do aluguel e de outras coisas. E
nada disso realmente importava para ele, desde que se jogasse cada partida com
sagacidade e vigilância.

Diz-se por aí que, certa vez, quando ainda era novato na pensão, a senhoria insinuou
perguntar ao Sr. Jacob sobre a cicatriz... E ele se tornou tão horrivelmente irritado nesta
ocasião que substituiu seu habitual mutismo por um jogo de Palavras sussurradas, mas
perfeitamente audíveis, cheias de imprecações contra todos os que passavam por perto;
um jogo de murmúrios que durou todo o dia. Nunca mais se pensou em perguntar nada
daquilo; e o Sr. Esaú fora avisado sobre isso logo nas primeiras semanas em que se
alojou na casa.

A senhoria, uma mulher robusta e esperta, morava em todo o último andar com seus
quatro filhos (que pareciam incontáveis quando começavam a correr pelo prédio). No
andar térreo, ao lado do portão da escada, possuía um bar que administrava detrás do
balcão em praticamente todas as horas do dia, deixando as crianças livres em suas
brincadeiras. O Sr. Esaú as tolerava e Jacob simplesmente se esquivava delas.

Certo dia, porém, ainda em suas primeiras horas, aconteceu que a chuva correu por toda
a cidade, e não permitiu, com suas ruas alagadas e problemas estruturais, que nenhum
dos dois alcançasse seu trabalho. O Sr. Jacob ligou do telefone do bar para a marcenaria
onde trabalhava, e pode perceber pela voz do patrão que ele calculava pela última vez
quanto perderia num dia em que todos faltaram por causa da maldita chuva. O Sr. Esaú
ligou para a loja de tapetes, onde sabia que era mantido apenas por piedade, mas
ninguém atendeu. Estavam os dois a poucos anos da mirrada aposentadoria.

Naquele dia, decidiram ficar estendidos na mesa do bar e beber um pouco. Pediram
cerveja e dois copos. Apesar da bebida, suas línguas não se tornavam mais soltas. Sob o
toldo da frente e o teto um bom número de pessoas tentava se proteger do ameaçador e
inconveniente temporal. O bar nunca esteve tão cheio! Um grupo de estudantes entrou e
atraiu a atenção dos dois; olhando para elas, os velhos murchos e invejosos aparentaram
cobiça pelos anos longínquos da juventude. Mas, ao voltarem o olhar para seus copos,
enrubesceram, e se tornaram ainda mais silenciosos e melancólicos.

Duas das crianças da senhoria brincavam entre os encharcados visitantes inesperados.


Pela primeira vez o bar fervilhava. A senhoria passou um pano vermelho e velho sobre a
mesa onde eles estavam, colocou os copos e disse:

- Será uma pena quando tiver que colocar toda essa gente para fora. Mas vai ter que ser
assim ou daqui a pouco a água inunda toda a casa e vamos ter que nadar até nossos
quartos.

Ela se achou engraçada, mas os homens ouviram quietos.

O Sr. Jacob saiu dizendo que em breve voltaria para uma partida. Passadas as primeiras
horas da manhã, em que os mais medrosos e os mais afoitos se arriscavam a sair de
casa, Esaú via as ruas desertas onde parecia correr um rio sobre o asfalto e pensou então
que aquelas construções à frente voltariam a um estado anterior, quando não existiam e
tudo era verdadeiramente deserto. Pensou que a água e o vento arrastariam telhados
naquela noite, arrastariam muros e sufocariam casas com terras que desabam; os navios
vacilariam no mar, e, no campo, árvores seriam lançadas ao chão e raios matariam
alguém.

Perdido nesses devaneios, como o outro não retornava e para se desvencilhar do


marasmo satisfatório e entristecedor em que se lançava, decidiu ele mesmo subir as
escadas e ir começar o jogo. No espaço sob os degraus, ao qual chavamam com cortesia
de armário, encontrou cabisbaixo o garoto mais velho, que era geralmente o mentor das
brincadeiras dos irmãos, mas, segundo refletiu, não devia estar gostando daquele dia de
chuva barrenta e incômoda.

Quando bateu à porta, ouviu com surpresa a voz bêbada do outro lado.

- Entre.

Jacob estava visível e transtornadamente embriagado. Contudo, seus gestos ainda eram
calmos e conscientes. Indicou uma das cadeiras para que Esaú se sentasse.

- O que você quer eu sei. Eu sei o que você veio descobrir aqui em cima. Estão todos
me devorando constantemente para que conte a história da minha cicatriz. Todos me
olham sedentos para sugar minha vida. Basta pedir que eu te conto, ora. A você eu
conto, pois é quase tão miserável quanto eu.

Sinceramente, Esaú estava contente em ver Jacob daquele jeito. Teria enfim o que lhe
entreter naquele dia vazio. Sim, a chuva caia sobre toda a cidade, sem que nenhum
jornal a houvesse anunciado previamente. Disse que sim, que sempre quis ouvir a
história da marca, embora isso nem lhe passasse pela cabeça no momento. Gostaria era
de saber como o amigo se embebedara daquela forma. Disse isto para poder se distrair:
sim, quero ouvir a história sobre a cicatriz. Ficou contente pela situação do outro e pela
distração inesperada. Sorriu.
Sentado sobre a cama com os olhos enormes, Jacob parecia mais sóbrio. Suspirou e
começou sua história com voz firme.

“Eu ainda era muito pequeno quando os dois garotos de minha rua sumiram
repentinamente. Não podíamos nos afastar para muito longe de nossas casas e devíamos
sempre andar em grupo na volta da escola. Vivíamos sem poder correr dos olhares
atentos de nossas mães.

“Ninguém sabia ainda o que tinha acontecido: nossas mães diziam coisas terríveis para
nos assustar e nos manter na linha e davam consolos animadores e prósperos umas para
as outras, principalmente para as mães dos garotos desaparecidos.

“Mas éramos crianças e não tínhamos os mínimos interesses nessas cautelas. Às vezes
tínhamos mesmo invejas dessas crianças perdidas que podiam estar se divertindo bem
mais do que a gente, num lugar sem preocupação e vigilância.

“Sei que desconfiavam de um homem que morava no fim de nossa rua, embora fosse
muito pequeno naquele tempo. Entendia isso das frases baixas e entrecortadas que elas
me deixavam ouvir. Só não sabia bem do que desconfiavam. Trabalhava em uma
fábrica de alumínio e as mulheres suspeitavam dele porque era sério e não costumava
conversar com os vizinhos, ao contrário de seus maridos e amantes beberrões cheios de
piadas e gracejos imbecis o tempo todo.”

A voz de Jacob alteava-se e Esaú pedia que falasse mais baixo, não para acalmá-lo, mas
para que pudesse saborear melhor a história. Se ele narrasse mais lentamente, podia
perceber melhor em seu rosto o transtorno e as rugas que a história trazia à tona.

“Um dia, consegui escapar com um amigo das atenções de minha mãe e fomos brincar
num riacho ao lado da minha rua. Sabia que ali não seria pego e que, caso acontecesse
algo, eu poderia correr e, subindo por um caminho que julgava desconhecido por todos,
rapidamente voltar para minha rua em menos de um minuto.

“Crianças nunca imaginam que seus caminhos secretos são, na verdade, caminhos que
todos sabem onde estão e como chegar neles.

“Qual não foi minha surpresa quando vi atrás de nós um homem de expressão contumaz
e sorriso atraente. Ele perguntou se nossas mães sabiam que estávamos ali e, claro, nós
mentimos. ‘Sim, senhor. Elas sabem’. Sentou-se ao nosso lado e disse que podíamos
continuar brincando, que não queria nos atrapalhar em nada. Apenas ficar nos
observando brincar, era tudo o que queria. Eu devia ter menos de 8 anos naquela época,
entende, Esaú? Bem menos de 8 anos.

“Tirou um pião do bolso e disse que poderia nos ensinar a melhor maneira e mais
divertida de rodar o pião e empinar pipas. Ensinou-nos também a fazer brincadeiras com
nossas sombras em posições engraçadas, enquanto contava histórias hilárias que nos
faziam rir. Ele conhecia todas as histórias e imitava mil vozes. Ao terminar toda aquela
encenação juvenil, que muito nos agradou, despediu-se e caminhou até o alto do
barranco que levava a nossa rua. Ainda ríamos, eu e meu amiguinho, quando demos
tchau. Estávamos felizes por conhecer um adulto realmente divertido.
“Já no alto, ele virou a cabeça para nós e sorriu. Voltou. Disse que conhecia um lugar
onde nossas sombras formariam figuras tão legais que poderíamos pegar nelas como
balões.

“O curioso é que até hoje não sei o que foi feito do outro garoto. Acho que correu
sorrateiramente de volta quando cruzávamos, apressados, as árvores que fechavam o
caminho. Quando me dei conta, estávamos eu e o desconhecido numa casa abandonada
cheia de garrafas quebradas, sacos plásticos, seringas, papelões e outros lixos.

“Eu disse a ele que naquele lugar fechado não ia haver sombra nenhuma e ele era um
mentiroso. Ele sorriu para mim e, inclinando meu corpo para o chão, disse que eu veria
muitas sombras, sombras que jamais havia visto. Deitou-me com um golpe e colocou
aquele corpo grande contra mim. Senti-o sujo.

“eu me debatia e pedia que parasse, que saísse de cima de mim, por favor. Como
resposta, pôs uma mão em minha boca e guiou a outra até minha bermuda. Tudo isso
fazia com um sorriso, um riso contente, dizendo que tudo ia ficar bem. Seu corpo
pesava cada vez mais sobre mim. Eu odiava muito aquele homem e sentia muito, muito
medo. Senti que lágrimas começavam a tornar estrelada minha visão. Por fora de seu
gigantesco corpo, consegui pegar uma garrafa em minhas mãos pequenas. Ouvi o
estalido do vidro quebrando e acho que ele também ouviu. Mas, rapidamente, antes que
qualquer um de nós percebesse, fiz o sangue jorrar em seu rosto. Da meia-lua vermelha
que abri em sua face gotas rubras caiam em meu rosto e na sua camisa.”

No chão, Esaú quedou-se assustado e boquiaberto. Comprimiu a cabeça contra as mãos,


mas os seus lábios se esforçavam em traí-lo. Havia um tremor comprimido em todos os
seus gestos. Sentia sua cabeça perdida diante das Palavras que já não discernia:
“batida”, “chão”, “sangue”, “fuga”. Ouvia o som da chuva.

Sim, a chuva de todos os tempos e todos os medos caia no emaranhado das últimas
frases do Sr. Jacob. A chuva real escorria pelas janelas, destelharia casas e lavava todas
as ruas. Limpava enfim a poeira acumulada por inúmeros dias nas bordas do vidro das
janelas. Lavava as paredes e as telhas. O Sr. Jacob levantou uma última vez os olhos
baixos, marejados e vermelhos, e disse:

- Pronto... Todos podem me odiar agora.


O Muro

“ela é bonita, não usa carmim”


Saint-Beuve

A garota do muro costumava passar boa parte da sua tarde sobre ele. Voltava da
escola, almoçava, passava um tempo em casa arrumando o quarto ou mexendo em
discos velhos da mãe e, depois, assim pela tardinha, lá ia ela para o seu muro. Adorava
apreciar o sol desaparecendo em sua frente, sabendo que atrás as nuvens se arroxeavam
até as primeiras estrelas começarem a aparecer. Devia ter uns 10 anos e, naquele ano, o
hino da futilidade era alguma música da Britney Spears, mas ela gostava mesmo era da
Madonna e da Cindy Lauper.
Naquela tarde, distraída por um disco do Cranberries, demorou um pouco mais
para sair de casa. Chegando ao muro, o sol já coloria de tons laranjas vivos a parte
bonita do céu no poente e um garotinho fazia xixi num cantinho da sua parede solitária,
aquele próximo à árvore. Vendo-a, o garoto deu uma olhadela rápida - cínico! -,
escondeu-se e fugiu. Quem ele pensa que é pra fazer xixi no meu muro? Como esse
menino se atreve a molhar meu muro com seu pintinho? Ah, espera esse moleque passar
por aqui de novo...
Os dias iam passando e o garoto sempre passava no finalzinho da tarde, ao voltar
da escola, e ia olhando, cabisbaixo, a garota do outro lado da rua. Ela, sem se mover no
seu muro, mirava sempre para frente.
Aconteceu que, uma certa tarde, o garoto parou na calçada em frente. Demorou
um pouco, olhou os dois lados vazios, atravessou a rua, parou em frente a ela, de cabeça
baixa. Ela abaixou a cabeça para o olhar, levantando-a logo em seguida. Ele olhava ora
para os pés, ora para o alto, mexendo nas alças da mochila.
Baixou a cabeça, empinou a barriga para frente, segurando a mochila, e disse:
- Como é o seu nome?
- O quê?
- Qual seu nome?
- Isabela Carina.
- Hihi...
- Que foi?
- Nada... é que seu nome é estranho!
- Não é minha culpa, não fui eu que escolhi. E o seu? – ela abaixou a cabeça, fitando-o.
- Carlos Ludovico Neto. Gosto não: era o nome do meu avô.
Ela riu. E quando ria segurava bem firme a borda da parede e inclinava o corpo
para trás. O menino continuou mexendo nas alças e brincando com os pés em pequenas
voltinhas.
- Haha... Prefiro o meu, né?
Silêncio. Os olhos dos dois em coisas distantes.
- Você já beijou? – perguntou o menino.
- Por que você quer saber?
- Como foi?
- Um menino na escola. De brincadeira. Você é muito curioso.
- Eu também já. Hoje a professora foi se despedir de mim, e me deu um beijo bem aqui
– e ele apontou um cantinho da bochecha bem próximo à boca.
Silêncio.
A menininha virou o rosto para trás, por um minuto pareceu que ela se esquecia
dele ali. Depois, voltou-se e abaixou a cabeça para ele. Bailarinava os pés no ar; sorriu,
brincando com o vestido rodado.
- Minha mãe sempre diz pra eu pensar numa cachoeira.
- A minha também diz isso.
Novo silêncio.
- Você tem irmão? – perguntou, inclinando a cabeça perto do ombro.
- Tenho. Um.
- Minha mãe disse que eu vou ganhar um irmãozinho.
- Meu irmão é muito chato e burro. Passa o dia todo escrevendo e-mails para a
namorada cheios de exclamações triplas.
Ele não entendeu muito bem aquela informação e inclinou um pouco mais a
cabeça.
- Você sabe brincar de morango invertido? – perguntou a menina.
- Não. Como é isso?
- Eu te ensino. Quer brincar? A gente pode ir no parquinho – e ela saltou do muro, e
ajeitou o vestido. Vamos.
Foram andando, cada um em um canto da mesma calçada, distantes, às vezes
lançando-se sorrisos tímidos de novos amigos.
Desafio

"A terra marrom molhada e as marcas das patinhas de pardais lamurientos recém-
marcadas no chão. Nada como comer uma amora que acaba de cair da árvore e molhar
os pés num arroio, massageados pelos seixos." Recitava, ao acordar, o velho para as
capivaras das Gerais. O dia era claro e agridoce, cansado e eterno, como tudo no
mundo, apesar dos nossos olhos efêmeros. "Quero fazer uma poesia: A amora sangra na
boca e o umbigo onde deve estar, as folhas brincam de borboletas e o resto que vá se
danar..." Continuava, descendo. E a velhinha sorria, "a terra é tão nova, então por que se
preocupar?". Aí,
Cidade

Dois homens conversam em um bar na praça da matriz. Demófilo, um viajante de


passagem pela cidade, jovial e contente. Filócrito, um morador da cidade, contente e
cínico.

Demófilo: O que mais gosto nessa cidade é sua natureza explícita. Gosto como tudo
aqui é escancarado e óbvio. O som é alto; as prostitutas bem expostas em momentos
exatos do dia e da noite; a moral, o imoral e o amoral têm a mesma notoriedade, sem
nenhum confronto típico de elementos subjetivos; os pedintes bem postos em cada
esquina; o capital nítido e gritante correndo a toda pela cidade inteira. Nada aqui é
tímido!

Filócrito: Não entendo o que você diz. Realmente pensa assim? Eu, particularmente,
discordo. Essa é a cidade mais omissa, acanhada, distraída e cheia de vergonha que já
pude conhecer. Sinceramente não entendo do que fala... Essa cerveja se expressa melhor
que você.

Filócrito sorriu.

Demófilo: Claro que é como eu disse. Só estou aqui há três dias e só precisei de um
curto passeio no primeiro para perceber a cidade por completo. Escancarada como uma
puta sem calcinha e carente e suplicante na praça principal.

Filócrito: Talvez por isso que ela seja tão entediada. Em um dia já se vê e explora todas
as suas possibilidades, não deixando nada além do enfado. Mas, não, não, veja bem,
essa visão que teve é meramente superficial. Discordo de você. Encoste na mulher sem
calcinha na praça pública e ela vai te responder com uma bofetada por ter confundido
uma mulher de respeito com uma puta. Esta cidade pode até ser uma puta, mas aos
olhos de todos - dela mesma - é uma mocinha acanhada tentando vencer em um mundo
patriarcalista. Nunca vi lugar mais omisso e cheio de constrangimento do que este. Aqui
nada é explícito. A cidade se deixa constantemente imperceptível e, não raro, se mente,
maquiada.

Demófilo: Mas claro que não. Isto que diz é impossível. Este é um lugar comercial: e
para vender é preciso chamar atenção. É só olhar esta praça para perceber tudo: o
bulício das evidências não se esconde nem se camufla, explode. E tudo se mistura,
bolando no mesmo quadro - gritante aos olhos - todos os elementos. Já que é para
demonstrar que tudo aqui é proeminente, vamos olhar logo os menos visíveis. Preste
atenção em todos os marginais por aqui: mendigos, beberrões, prostitutas e
semiprostitutas, pessoas feias...

As garrafas de cerveja vão simpaticamente se multiplicando. A fala de um vira


intervalo para o gole do outro...

Filócrito: Muito bem... Vamos olhar esta praça. Veja aqueles pedintes perto da igreja.
Todos que passam por eles sequer os notam. Eles estão ali, algumas pessoas podem até
atingi-los com seus olhos, mas isso não quer dizer que os vejam. Às vezes puxam a
barra da calça ou da saia de alguém e tudo que recebem como resposta a uma
impertinência dessas são passos que prosseguem como se nada houvesse acontecido.
Veja as prostitutas que começam a sair dos hoteizinhos daqui. Ainda é cedo: cinco da
tarde. E, mesmo assim, nem as passantes mais puritanas percebem que elas já estão na
rua, que já querem alguém que possa lhes pagar a vida ou ao menos a noite. E preste
bem atenção que um dos pedintes é aleijado: um pobre mutilado sem uma das pernas.
Ou seja, até o grotesco se tornou superficial para nós desta cidade. Tudo é banal,
ninguém liga.

Demófilo: Ora, Filócrito, o fato de que todos os passantes não observem ao seu
derredor não significa que as coisas não estejam explícitas.

Filócrito: como uma coisa pode ser explícita, se invisível a todos os olhos?

Demófilo: A visibilidade das coisas está nelas, não no observador. Ah, Filócrito, você é
muito cabeça dura. Veja só, está claro, nós que paramos só um minuto para discutir o
assunto já conseguimos perceber tudo. As coisas estão aí, às claras; se não vêem é
porque não querem. Você falou em mutilados. Outro dia, aqui, eu estava indo pegar um
ônibus e tinha essa garota de cadeira de rodas sendo erguida pra entrar no ônibus. E eu a
achei linda, cara. Muito linda e desejável, e eu sabia que aqui eu podia sentir qualquer
coisa por ela, que eu podia achá-la bela e fascinante apesar de tudo, porque essa cidade
simplesmente não esconde nada, o que te permite sentir tudo.

Filócrito: Porra, isso é conversa para se puxar numa tarde de bebidas num lugar feio
como esse?! Cala a boca, veja as besteiras que já está dizendo. Como, numa cidade
retardatária, provinciana e desgostosamente prepotente uma coisa como essa seria
permitido? Você está doido, amigo.

Demófilo: Ah, tudo bem. Vamos mudar de assunto. Não dá pra discutir isso com você.
Você é muito cabeça dura e perdeu a idéia das gratificações de morar numa cidade
promissora como esta. Virou um desiludido.

A conversa se excitava, mas também já estava chateando. Dava para ver em ambos que
queriam acabar logo com ela.

Filócrito: Quer saber de uma coisa, Demófilo! Você está doido porque está apaixonado
por essa cidadezinha de nada. Sabe quando a gente transa com qualquer pessoa e fica
aquele gosto estranho de terra na boca?... É a mesma coisa essa cidade; ela pode até te
dar um ou dois orgasmos na vida, mas vai ficar é sempre esse gosto de terra e merda em
sua boca. Fique por aqui algum tempo, e você vai ver.
Tetralogia do Assassinato: O Interruptor

Há uma coisa que acho bem bacana. Sofisticado. Interruptores. Um simples toque para
tornar a escuridão em uma luz majestosa ou aconchegante.
Considere um homem que esteve por muito tempo preso no escuro. Ele tateia as
paredes. Encontra um interruptor e... Voilá. Fica cego por um instante com a nova
claridade. E, acesa por outra pessoa, isto pode muito bem ser feito de sacanagem. O
homem que esperava o trovão ou esfregava pauzinhos para conseguir um pouco de
fogo, luz, olhando as estrelas já sonhava com interruptores. Tiffi. Basta um clique.
Dá muito mais trabalho quando você decide se envolver assim com a outra pessoa. A
conheci num bar perto do cinema. Basta um olhar de Jhonny Deep e uns dez minutos de
Fred Astaire. Ela é bem bonita. Jogada assim na cama. Mas mora sozinha, nesse
apartamento. Me disse que seu James Bond favorito era o Roger Moore. Disse que o
meu também. Menti.
- Cena de beijo?
- A Um Passo da Eternidade. E você?
- Um Corpo que Cai, do Hitchcock.
Estou sentado ao lado do interruptor que abaixo delicadamente, brincando. Um botão
bem leve e pequenino pode ser levantado e abaixado com sutileza e o corpo lindo e
lívido na cama é visto afundando na penumbra, sumindo na escuridão para, depois,
ressurgir na claridade.
Quando diminuo a luz a última parte que vejo evanescer são seus pés. Pequenos e
brancos. Dá muito mais trabalho. Arrancar as unhas, limpar cada coisa que tocou,
procurar fios de cabelo. Excluir toda intimidade que tivemos.
Um dedo aciona um botão para cima ou para baixo e o que antes era invisível,
inexistente. Agora pode ser visto. Começa a ser. É isso que faço agora. Não
necessariamente pela brincadeira. É muito mais pela espera. Titubeio entre ficar aqui e
deixar que me descubram ou descer as escadas e ganhar a rua. A primeira opção é algo
que jamais experimentei. Já conheci todas as diversas formas de matar: pessoas
conhecidas, desconhecidas (como esta), devagar, rápido, com e sem contato.
Eu tenho uma teoria: a vida é uma dádiva única e cada evento que ela puder nos dar
deve ser experimentado. E é isso que busco. A experiência da morte, tida uma vez
apenas, não pode ser relembrada, revisitada, não sabemos nem se poderemos apreciá-la
plenamente quando se apresentar a nós. Não deveríamos passar. pela vida com tanta
displicência. Inevitavelmente, não teremos outra. Decidi saboreá-la com todos os
detalhes que ela me dá, no máximo de possibilidades que ela permite. E a morte de
outro, o assassinato, é uma delas. Responder aos instintos e aos desejos, como crianças.
Com egoísmo e inteligência.
Vi a garota sozinha no bar, conversamos sobre filmes e ela ria com tanta facilidade.
Curvava a cabeça e ficava fazendo bolinhas no dedo com a borda do vestido. Não devia
ter tomado tantos martinis. Gosto de senti com precisão o que faço, cada prazer e toque
que recebo, sem a interferência de nenhuma estupefaciente. Quando saímos, me ofereci
para ir com ela até seu apartamento. Sorriu, assentindo.
Me convidou para subir e continuamos conversando. Falávamos essencialmente sobre
cinema.
Sabe aqueles filmes em que um cara vai casar em uma semana e uma garota está noiva
de algum outro cara, mas eles se gostam apesar do compromisso com outras pessoas?
No final, eles ficam juntos. Ninguém lembra dos abandonados. Porque somos egoístas,
perversos, como crianças. Naturalmente, nossa própria vida é nossa óbvia prioridade. E
por isso que não há maldade no que faço. Encerrar uma existência é. para mim. provar
mais um pedaço de viver. Queria poder não deixar escapar nada. E sentir tudo de bom
que ela tenha para mim.
Ela trouxe um cobertor delicioso para o sofá e pôs Jules e Jim para assistirmos. Nos
acariciávamos. deixando o filme como um elemento superficial sem muito interesse. Foi
maravilhoso. Todas as sensações que tive. Seus sorrisos. Começamos a transar e eu
apertei seu pescoço com suavidade. Sem sair dela, levei seu corpo pequeno até a cama.
Passava a mão no meu rosto com tanta beleza. Sufoquei-a com força e ela ainda sorria.
Depois, seu rosto preso num espasmo de medo e prazer. O prazer imenso que ninguém
deve deixar de experimentar.
Apago a luz novamente e hesito em frente dela.
Coisa incrível os interruptores.
Trilogia dos Tempos Históricos: O Despertar de Letícia ou Dos Perigos
de Acordar Com a Língua no Teto

Certa noite, ao acordar de sonhos comuns, Letícia percebeu sua língua, por um
prego velho, presa ao teto – e talvez doesse um pouco. Tinha metade dos pés apoiada
num banco frouxo de madeira. Mais do que dor, sentia um certo constrangimento por
aquela situação.

Não conheci os fatos (claro que não falava, pensava, pois falar não parecia adequado
naquele momento). Fui posterior aos eventos e ainda assim os comentava, zombava
deles, tecia opiniões. Achava-me entendida no que não vivenciei. Podia, então, puxar a
língua para sair desse embaraço, mas isto poderia causar algum transtorno, como
manchas difíceis no seu vestido (se bem que, de imediato, isso não conseguia alcançar:
caso conseguisse puxá-la, a língua presa ao teto teria tanta utilidade quanto solta pelo
espaço).

Só pude ouvir um lado, uma versão dos episódios. Inspirada por eles, por estes
comentários espalhafatosos, subvertidos, hiperbólicos, fúteis e ardilosos, estas falas
pernósticas e parciais, cheios de rancor e melancolia, achei-me conhecedora de toda
psicologia e toda História.

E foi assim, presa ao teto, que Letícia compreendeu a multiplicidade do mundo. Não dá
para atingir o que, sem mim, já se passou, e não posso me achar sábia pelo que apenas
ouvi (Ela se sentia muito inteligente pela descoberta; contudo, continuava com sua
língua apreendida ao telhado).

E não caia sangue em parte alguma...

E foi pela manhã que acordou enfim em sua cama, e, embora para infelicidade de
alguns, com a língua guardada dentro de sua própria boca.
A existência dos vivos enquanto mortos.

Por que motivo sombrio e sórdido teremos de permanecer nessa vida? Aliás, será que
podemos chamar de vida esse definhamento? Meus únicos passatempos são ver novos
tipos como eu ressurgindo a todo instante, tão freqüentemente quanto nascem os
humanos, e cogitar que inspiração divina ou casual nos pôs nessa situação decrépita,
nesse jogo incessante de absurdo mal gosto.

Permita-me explicar, mas sou dos que não estão vivos: zumbis, mortos-vivos,
demônios, anomalias... Como queiram. Tenho certeza de que já ouviu falar de nós.
Estivemos – posso usar o plural, mesmo que nessa época eu ainda não fosse um de nós
– bem, estivemos nos jornais, falaram diariamente de nós e depois nos esqueceram,
como pratos que perdem o sabor ou roupas que perdem o brio. Não peguei o momento
de fama, a época do frisson; azar! Que me importa agora?! Agora é só o tédio, como em
todas as existências.

Contento-me, nestes momentos de ócio, ou seja, quase o tempo todo, em escrever,


catalogar e divagar. Coisas que fazia com freqüência antes de me enjaularem nessa
decrepitude ambulante.

Há, entre nós, vários tipos:

1) Os arruaceiros: são, em geral, os que mais chamam atenção. Alguns já tem o


cérebro tão avariado que nem sabem o que estão fazendo. Mas a maioria sabe muito
bem o que busca. Eles se aproveitam, digamos, de sua situação invulgar e apavorante
para assustar, assaltar, praticar estupros e outras violências, como crianças sem critérios.
Agem como vermes asquerosos, amorais. Entretanto, são eles nossa referência, nosso
cartão de visita. A maioria dos vivos não pensam em nós senão nestes termos.

2) Em segundo lugar existem os normais. Embora estigmatizados pelo exibicionismo


dos arruaceiros, estes são a maior parte de nós: pacatos, tristes, entediados, exasperados
pela incessante surpresa da nova situação... Jamais conseguem sair deste torpor,
coitados. O momento de êxtase e o choque da descoberta causam-nos uma paralisia
agitada, convulsa, delirante... Não conseguimos reconhecer quem somos e porque
estamos dessa forma... Vivos, embora mortos. É a mais aterradora das experiências!
Ninguém que já tenha passado por isso sabe explicar a sensação. Os normais jamais
conseguem superar esse estado de paralisia; sobrevivem numa inércia cerebralmente
agitada e incrédula até o fim. Parece-me que suas novas existências não passam apenas
de um prolongamento de suas existências anteriores como humanos: melancólicos e
apáticos.

3) Por fim, em minha lista, temos os inconformados iludidos... Ah, quão irônicos eles
são! Querem acreditar que ainda têm vida; lutam para prosseguir nessa existência sem
sentido, para amenizar e retardar essa decadência. Alguns são ilustres; Tiveram
anteriormente uma vida de intelectuais, tal qual eu. Aparecem hoje na TV bradando
sobre “nossa causa”. Pedem respeito, tolerância. Para quê?

Claro que essas categorias são apenas uma catalogação sistemática e ideal da minha
mente. Em realidade, um arruaceiro sempre pode substituir um dia de bagunça por um
pouco de reflexão e um intelectual pode chegar a um ponto de loucura tal que o leve a
agir como um delinqüente.

Sim, pois definhamos. Nossa nova ¨vida” é quase que praticamente apenas isso.
Precisamos do nosso cérebro para raciocinar, mas nosso coração não bate; gostamos de
nossas bocas para engolir coisas, mas não muitos de nós nem língua possuem mais; não
sentimos sabor algum, porém gostamos de fazer tudo que nos traga a recordação dos
sabores perdidos. Essa é a constatação mais certa acerca de nós.

Permitam-me explicar melhor. Nossos corpos de defuntos continuam em seu processo


de putrefação, contudo, de uma forma muito mais lenta. Essa decomposição demora em
média de 5 a 7 meses e conseguimos utilizar nossos corpos até certo ponto. Os que
conseguem atingir a velhice e a maturidade do post-mortem estão tão decompostos,
toscos e suas carnes tão dilaceradas que já não conseguem fazer nada, nem mesmo
morrer, desfazer-se, matar-se(alguns pela segunda vez), sonho de muitos. E o pior: seus
cérebros já foram reduzidos pelos vermes a um estado de completa inutilidade.
Sobrevivem, débeis. Nessa fase, busca-se a morte avidamente – os desolados mais
jovens na nova existência, por sorte e também coragem, ainda conseguem desfazer-se.

Depois de alguns meses, simplesmente se apodrece e não se serve mais para nada, como
tudo que existe. Somos imortais? O que sei é que somos finitos, e inúteis nessa finitude.

Morremos primeiramente como humanos. A maior parte de nós, antes da ressurreição,


chega a ser enterrada, lacrada em nossas caixas sempiternas. È certo que temos rareado,
pois o Estado agora quer criar uma lei que obriga todas as famílias a cremarem seus
mortos, e muitos, por temor, já seguem essa idéia. Todavia, uma hora, ao meio dia ou à
noite, nos damos conta de que ainda estamos vivos e tentamos andar, sair. Debatemo-
nos, arranhamo-nos, por algum milagre, escavamos a terra em direção à luz. Eu já vivi
essa experiência. Levantei o meu rosto da terra e vi as inúmeras lápides ao meu redor.
Os mármores e seus epitáfios se tornaram mordazes diante dos meus olhos que, com
esforço, retornavam a ver. Eu sabia o que estava acontecendo. Senti uma fúria e um
desconforto imenso por aquela injustiça. Olhei ao redor. Outros olhares aterrados, sujos
de terra e lama, eram lançados aos céus, ao chão. Via-se a loucura nos olhos dos novos
vivos. O sentimento de desterro invertido, o desespero causado pela reconciliação não
almejada. Naquela noite, vi a raiva, a ira, a dor, a confusão e a insanidade. Era um lugar
infeliz aquele, como infelizes eram aquelas ressurreições.

Por vezes e vezes voltei ao cemitério para ver os novos ressurretos. São sempre os
mesmos olhares, fazendo-me recordar da noite do meu próprio retorno. Por vezes, vejo
saindo de sua catacumba alguém que, como humano, fora mutilado. É preciso ter força
e vontade para sair de sob o solo. Seres sem pernas que se rastejam, sem olhos, alguns
amputados em uma orelha, algumas mãos com um ou dois dedos ausentes emergem de
sob o solo ao solo, ao sol... Nunca vi nenhum sem braço conseguir emergir, e já imagino
por quê.

Um prazer indescritível percorre o meu corpo nessas ocasiões. Sou um homem quase
feliz diante desse divertimento. Sinto espasmos de riso e torno-me quase humano em
meu prazer e sadismo.

Mas agora eu preciso ir. Abandonarei esses papéis. Meu amigos chegam e nós
precisamos espalhar um pouco de terror entre os vivos odiosos; saquear e ferir. Teremos
uma noite de formidável violência. Afinal, pouco tempo me resta ainda e é preciso
viver. É preciso viver a todo custo, ó, meus irmãos.

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