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Fundação Getúlio Vargas

Centro de Pesquisa e Documentação – CPDOC

Análise do filme “Bicho de Sete Cabeças” sob a ótica foucaultiana

Paula Caetano

Rio de Janeiro
Novembro/2014
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Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as


fábricas, escolas, quartéis, hospitais [com os manicômios], e
todos se pareçam com as prisões? (FOUCAULT, 1999, p. 187).

O filme Bicho de Sete Cabeças é baseado em fatos reais e retrata a história de


Neto, um adolescente de classe média baixa que ainda está formando sua personalidade
e que, por pertencer a uma família desestruturada, não consegue se encontrar nesse
processo de formação. O jeito de se vestir desleixado, o cabelo longo e algumas ações
de Neto (como, por exemplo, pichar muros) revelam um comportamento rebelde,
normal nessa época de construção psicológica e social. Porém, a falta de comunicação
com seus pais dificulta ainda mais a compreensão familiar. Por isso, o pai, Sr. Wilson,
ao achar um cigarro de maconha no casaco do filho, presume que Neto é um viciado e
resolve interná-lo em uma clinica de reabilitação/manicômio, sem o consentimento do
filho.

É possível perceber no filme o funcionamento de uma máquina social,


representada pela tradicional família patriarcal e que desempenha o papel de “tecnologia
específica do poder”. Esse poder exerce influência diretamente nos corpos dos membros
da família e é responsável por modelar comportamentos e manipular interesses e
ações. Em Bicho de Sete Cabeças, o pai pode ser considerado como o poder central no
núcleo familiar e Neto é diretamente afetado por esse controle. Ao descobri que seu
filho fuma maconha, Sr. Wilson descobre uma realidade reveladora responsável por
mostrar que seu poder não está controlando e moldando Neto. Como continuar
exercendo o poder de pai diante dessa situação? Diante da incapacidade do pai e dos
outros membros da família em lidar com a situação, coloca-se em prática um sistema de
exclusão. A ideia de internar Neto cria no pai o sentimento de situação controlada, desse
modo, a solução encontrada causa conforto já que, ao internar Neto num manicômio, o
poder é transferido à outra instituição.

A partir desse momento, pode-se traçar um paralelo do filme com três temas
amplamente abordados pelo filósofo Michel Foucault: loucura, vigilância e punição.

O que fez com que o Sr. Wilson considerasse seu filho como um louco viciado?
Segundo Foucault em seu livro História da Loucura, a noção de loucura é construída a
partir de valores implementados através de relações de poder, que contam com uma
série de variáveis como ideologia, política, religião, etc. Por isso, esse conceito muda
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com o passar do tempo e de uma sociedade para outra. Logo, no século XXI, o usuário
de maconha é considerado como louco porque é um viciado. O pai de Neto, ao longo do
filme, tem como verdade que maconha vicia devido ao que leu em jornais. Nesse
aspecto, a verdade, segundo Foucault, é relativa. As verdades são geradas pelos grupos
mais poderosos da sociedade e, por isso, são legitimadas socialmente. Nesse sentido,
verdades científicas não são verdadeiras em si e por si até que sejam legitimadas pelos
detentores do poder.

Desde o século XV, a internação psiquiátrica, o isolamento e a punição


representaram um instrumento de poder institucional. A loucura passa a ser tratada
como doença, mesmo os médicos não sabendo muito bem como delimitar loucura da
racionalidade. E como doença, ela deveria ter uma cura.

Ora, aquilo que estava logo de início implicado nestas relações de


poder, era o direito absoluto da não−loucura sobre a loucura. Direito
transcrito em termos de competência exercendo−se sobre uma
ignorância, de bom senso no acesso à realidade corrigindo erros
(ilusões, alucinações, fantasmas), de normalidade se impondo à
desordem e ao desvio. E este triplo poder que constituía a loucura
como objeto de conhecimento possível para uma ciência médica, que
a constituía como doença, no exato momento em que o "sujeito" que
dela sofre encontrava−se desqualificado como louco, ou seja,
despojado de todo poder e todo saber quanto à sua doença. "Sabemos
sobre a sua doença e sua singularidade coisas suficientes, das quais
você nem sequer desconfia, para reconhecer que se trata de uma
doença; mas desta doença conhecemos o bastante para saber que você
não pode exercer sobre ela e em relação a ela nenhum direito. Sua
loucura, nossa ciência permite que a chamemos doença e daí em
diante, nós médicos estamos qualificados para intervir e diagnosticar
uma loucura que lhe impede de ser um doente como os outros: você
será então um doente mental". (FOUCAULT, 1999, p.127)

Essa linha de pensamento é retratada no filme quando os pais de Neto, sem


dialogar com o filho, resolvem interná-lo, como se a isolação do mundo social fosse sua
cura. A partir daí, ele se torna vítima do uso desses instrumentos em um hospício, que
além de supostos fins terapêuticos, tem finalidade penitenciária.

Já na clínica psiquiátrica, Neto encontra-se passível de vigilância e disciplina. A


primeira, nesse contexto, é simbolizada pelos enfermeiros e pelo médico, responsáveis
pelo controle disciplinar dos pacientes. Segundo Foucault (1999, p.118) “esses métodos
permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição
constante de suas forças e lhe impõem uma relação docilidade-utilidade, são o que
podemos chamar de “disciplinas””.
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Um conceito chave para entender essa dinâmica entre vigilância, punição e


disciplina é o de Homem-Máquina, que é “ao mesmo tempo uma redução materialista
da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de
“docilidade” que une corpo analisável ao corpo manipulável” (FOUCAULT, 1999,
p.118). Nesse sentido, Neto representa o Homem-Máquina, inicialmente não demonstra
nenhum sinal de loucura, mantendo suas características. Mas com o uso constante de
remédios e do eletrochoque vai, se transformando em um animal dócil, apresentando
mudanças em seu comportamento. Antes Neto circulava ativamente pelos corredores,
esboçando reações a fatores externos. Depois de “disciplinado” passa a andar pela
clínica de reabilitação como se estivesse anestesiado, sem demonstrar reação a
estímulos, nem sentimentos. Neto, cada vez mais, perde sua personalidade e é
reconstruído nos moldes das instituições psiquiátricas. Dessa forma, é possível concluir
que o louco, através da punição, é fabricado de acordo com o que o sistema deseja.

O aspecto penitenciário da clínica psiquiátrica demonstra-se, mais uma vez, em


um diálogo entre um personagem que se autonomeia “jornalista” e Neto. Na conversa, o
paciente afirma que “É preciso fingir [ser louco]. Quem não finge neste mundo? (...) a
gente precisa fingir que é louco, sendo louco”. E a seguir manda o garoto ler na parede
um poema que revela esse caráter punitivo do local e em que muito se assemelha ao
cotidiano de uma prisão:

“O buraco do espelho está fechado


agora eu tenho que ficar aqui
com um olho aberto, outro acordado
no lado de lá onde eu caí

pro lado de cá não tem acesso


mesmo que me chamem pelo nome
mesmo que admitam meu regresso
toda vez que eu vou a porta some”

Fazendo-se uma analogia entre o manicômio e a prisão, uma passagem do livro


Vigiar e Punir de Foucault esclarece bem o que essa instituição representa:

A prisão detinha o poder simbólico de representar o processo de


normalização social. Isto é, para transformar a conduta dos indivíduos,
as instituições eram organizadas de modo a intervir sobre o corpo
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humano, treiná-lo, torná-lo obediente, submisso, dócil, útil. Existia um


esquadinhamento do corpo, cada pessoa ocupava um determinado
lugar, devendo ficar naquele espaço e não no outro. O tempo era
regulado e distribuído, em certos horários e não outros. As atitudes
eram observadas minuciosamente, vigiadas, registradas. A disciplina
encontrava-se presente nos mínimos detalhes da organização da vida
carcerária. O poder de dominação não era empregado somente para
reprimir, mas também para produção e reprodução de novos
comportamentos sociais através de esquemas de vigilância, punições e
recompensas. (FOUCAULT, 1999).

Depois de sair da prisão, Neto não volta a ser quem era antes. Agora apresenta,
ao mesmo tempo, um comportamento apático e explosivo que faz com que ele volte
para o hospício. Lá, tem-se a impressão de que Neto está feliz por estar novamente em
uma clínica psiquiatra. Seu comportamento da segunda vez no manicômio é diferente
do comportamento da primeira internação. Neto torna-se sociável com os outros
pacientes e ainda mais rebelde com os enfermeiros. A cada rebeldia, ele é aprisionado
em um quarto escuro e pequeno, até que ao cumprir uma dessas punições, ele incendeia
o lugar em que está.

A pergunta final que se deve fazer é: ao que se deve a mudança de


comportamento de Neto? Será que sua permanência no manicômio fez com ele virasse
louco e por isso está agindo como tal? Ou seria apenas fingimento, como aconselhou
seu companheiro de hospício, o “jornalista”?

(...) mas interna-se num mundo onde o que está em jogo é o mal e a
punição, a libertinagem e a imoralidade, a penitência e a correção.
Todo um mundo onde, sob essas sombras, ronda a liberdade. (...) É
preciso que seja bem esse o paradoxo dessa liberdade constitutiva:
aquilo pelo que o louco torna-se louco, isto é, também aquilo pelo
que, a loucura não sendo ainda dada, ele pode se comunicar com a
não-loucura. Desde o começo, ele escapa a simesmo e à sua verdade
de louco, reunindo-se numa região que não é nem verdade nem
inocência, com o risco da falta, do crime ou da comédia.
(FOUCAULT, 2000, p.557).
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BIBIOGRAFIA

BODANZKY, Laís. Bicho de sete cabeças. São Paulo, SP, 2000. Buriti Filmes;
Gullane Filmes; Dezenove Som e Imagem e Fabrica Cinema – Itália.

FOUCAULT, Michel. A casa dos loucos. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder.


Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999. p. 113-128.

______. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2000.

______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1999.

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