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LINGUÍSTICA II

PROFESSORA
Dra. Vera Lucia da Silva

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EXPEDIENTE

DIREÇÃO UNICESUMAR
Reitor Wilson de Matos Silva Vice-Reitor Wilson de Matos Silva Filho Pró-Reitor de Administração Wilson de
Matos Silva Filho Pró-Reitor Executivo de EAD William Victor Kendrick de Matos Silva Pró-Reitor de Ensino de
EAD Janes Fidélis Tomelin Presidente da Mantenedora Cláudio Ferdinandi

NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA


Diretoria Executiva Chrystiano Mincoff, James Prestes, Tiago Stachon Diretoria de Design Educacional
Débora Leite Diretoria de Graduação e Pós-graduação Kátia Coelho Diretoria de Permanência Leonardo
Spaine Head de Curadoria e Inovação Tania Cristiane Yoshie Fukushima Gerência de Processos Acadêmicos
Taessa Penha Shiraishi Vieira Gerência de Curadoria Carolina Abdalla Normann de Freitas Gerência de Contra-
tos e Operações Jislaine Cristina da Silva Gerência de Produção de Conteúdo Diogo Ribeiro Garcia Gerência de
Projetos Especiais Daniel Fuverki Hey Supervisora de Projetos Especiais Yasminn Talyta Tavares Zagonel

FICHA CATALOGRÁFICA
Coordenador(a) de Conteúdo
Fabiane Carniel
Projeto Gráfico e Capa
C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ.
Arthur Cantareli, Jhonny Coelho Núcleo de Educação a Distância. SILVA, Vera Lucia da.
e Thayla Guimarães
Linguística II.
Editoração Vera Lucia da Silva.
Flávia Thaís Pedroso
Design Educacional Maringá - PR.: UniCesumar, 2020.
Giovana Vieira Cardoso 200 p.
Revisão Textual “Graduação - EaD”.
Silvia Caroline Gonçalves 1. Linguística 2. Linguagem 3. Ensino. EaD. I. Título.
Ilustração
André Azevedo
Fotos
Shutterstock CDD - 22 ed. 412
CIP - NBR 12899 - AACR/2
Impresso por:
ISBN 978-65-5615-124-3

Bibliotecário: João Vivaldo de Souza CRB- 9-1679

NEAD - Núcleo de Educação a Distância


Av. Guedner, 1610, Bloco 4Jd. Aclimação - Cep 87050-900 | Maringá - Paraná
www.unicesumar.edu.br | 0800 600 6360
BOAS-VINDAS

Neste mundo globalizado e dinâmico, nós tra-


balhamos com princípios éticos e profissiona-
lismo, não somente para oferecer educação de Tudo isso para honrarmos a nossa mis-

qualidade, como, acima de tudo, gerar a con- são, que é promover a educação de qua-

versão integral das pessoas ao conhecimento. lidade nas diferentes áreas do conheci-

Baseamo-nos em 4 pilares: intelectual, profis- mento, formando profissionais cidadãos

sional, emocional e espiritual. que contribuam para o desenvolvimento


de uma sociedade justa e solidária.
Assim, iniciamos a Unicesumar em 1990, com
dois cursos de graduação e 180 alunos. Hoje,
temos mais de 100 mil estudantes espalhados
em todo o Brasil, nos quatro campi presenciais
(Maringá, Londrina, Curitiba e Ponta Grossa) e
em mais de 500 polos de educação a distância
espalhados por todos os estados do Brasil e,
também, no exterior, com dezenas de cursos
de graduação e pós-graduação. Por ano, pro-
duzimos e revisamos 500 livros e distribuímos
mais de 500 mil exemplares. Somos reconhe-
cidos pelo MEC como uma instituição de exce-
lência, com IGC 4 por sete anos consecutivos
e estamos entre os 10 maiores grupos educa-
cionais do Brasil.

A rapidez do mundo moderno exige dos edu-


cadores soluções inteligentes para as neces-
sidades de todos. Para continuar relevante, a
instituição de educação precisa ter, pelo menos,
três virtudes: inovação, coragem e compromis-
so com a qualidade. Por isso, desenvolvemos,
para os cursos de Engenharia, metodologias ati-
vas, as quais visam reunir o melhor do ensino
presencial e a distância.

Reitor
Wilson de Matos Silva
TRAJETÓRIA PROFISSIONAL

Dra. Vera Lucia da Silva


Professora Formadora responsável pelas disciplinas de Linguística I e II do Centro
Universitário Maringá (Unicesumar). Por meio da área de concentração em Estudos
Linguísticos e linha de pesquisa em Estudos do Texto e do Discurso, possui pós-dou-
torado pela Universidade Estadual de Maringá (UEM-PR/CAPES 5, 2016), doutorado
pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP-SP/CAPES 7, 2014), mestrado
pela Universidade Estadual de Maringá (UEM-PR/CAPES 5, 2006) e graduação em
Letras (Português/Francês) pela Universidade Estadual de Maringá (UEM-PR/CAPES
5, 2002). Especialista em Gestão Pública com ênfase em Direitos Humanos, pela
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG-PR, 2015), em Educação a Distância
e Tecnologias Educacionais, pelo Centro Universitário Maringá (Unicesumar, 2018)
e Docência no Ensino Superior: tecnologias educacionais e inovação (Unicesumar,
2019). Atualmente, os interesses de pesquisas estão pautados teoricamente na
Análise de Discurso de linha francesa, com dedicação às questões relacionadas ao
ensino e aprendizagem de língua materna na educação a distância.

http://lattes.cnpq.br/3139374696864904
A P R E S E N TA Ç Ã O DA DISCIPLINA

LINGUÍSTICA II

Prezado(a), estamos iniciando mais uma etapa do curso e, por meio dela, iremos mediar a disci-
plina de Linguística II, em que o foco é compartilhar conhecimentos sobre a nossa língua mater-
na, ou seja, a portuguesa brasileira, que começamos aprender ainda no ventre da nossa mãe.

Esperamos que você, enquanto sujeito ativo, desenvolva uma leitura mediada por críticas
e reflexões para que possamos colaborar, a partir de nossos pequenos gestos, para uma
transformação social capaz de retirar o nosso modelo educacional adequado para o século
XIX, transformando-o para atender às necessidades que a sociedade do século XXI está exi-
gindo de todas as pessoas, principalmente daquelas que estão propondo atuar no campo
profissional da docência, tendo a língua como sua ferramenta de trabalho.

Diante de uma pluralidade de saberes e da exigência de um profissional multifacetado, nossa


proposta aqui é apresentar a você algumas das diversas teorias linguísticas existentes e que
fazem parte do dia a dia dos cursos de Letras disponíveis no Brasil. Com o intuito de refletir
sobre a língua para além de um modelo tradicional que parecia ser único, nosso mergulho
teórico será encantador, pois teremos a oportunidade de ter acesso a outras reflexões sobre
a língua, para que você possa fazer suas escolhas tanto sobre como mediar um processo de
ensino e aprendizagem quanto para dar continuidade à sua formação, caso almeje mergulhar
no mundo da docência e da pesquisa.

Dentro de um arcabouço teórico amplo, tivemos que fazer escolhas teóricas que resultaram
nas cinco unidades que iremos apresentar. Cada uma contemplará uma teoria do campo da
linguística e o foco sempre será a língua que falamos e escrevemos.

Na primeira unidade, você terá acesso aos conceitos básicos da Teoria Linguística Gerativista
e o seu teórico principal, Noam Chomsky. O objetivo é lhe apresentar a língua, a partir de
conceitos que a refletem como algo de pertencimento exclusivo e inato de nós seres huma-
nos, para chegar a alguns aspectos teóricos e práticos de aquisição do Português do Brasil
pelas nossas crianças.
A P R E S E N TA Ç Ã O DA DISCIPLINA

Na segunda unidade, você irá conhecer outra teoria do campo da Linguística, denominada
Sociolinguística. Por meio dela, você descobrirá que a língua não é fixa, homogênea e enges-
sada, mas flexível, fluida e em constante movimento, ou seja, ela está sempre em processo
de variação e mudança. Por meio dessa teoria e seus autores, nosso olhar sobre a língua que
falamos e escrevemos hoje (a Portuguesa Brasileira) enxergará mais longe, para além dos
preconceitos linguísticos cultivados no solo fértil do senso comum.

A terceira unidade foi desenvolvida para que você conheça e pratique, nas suas ações linguís-
ticas cotidianas, a Teoria da Semântica. Este campo de saber nos subsidia a lidar com a língua
como um campo aberto que, pensada nos seus contextos específicos, uma única palavra
possibilita a produção de vários significados. Um campo de saber riquíssimo para pensarmos
na engrenagem da língua tanto no espaço social quanto no chão da escola.

A quarta unidade levará você a uma teoria linguística denominada Análise do Discurso (AD) e, por
ser considerada uma disciplina de entremeios, pois, além da linguística, o discurso é produzido
também pela história e pelos acontecimentos sociais justificados nas lutas de classes. Pela AD,
você irá descobrir que a língua é opaca e capaz de produzir efeitos de sentidos, conforme a
posição do sujeito que enuncia. Enfim, trata-se de mais uma teoria linguística que irá auxiliar a
estabelecer uma relação menos ingênua (sem tanta inocência) com os fatos cotidianos.

Na quinta unidade, elaboramos uma proposta sobre o ensino e a aprendizagem da nossa


língua materna (a Portuguesa Brasileira), a partir de um contraponto, simultaneamente, diver-
gente e convergente, entre a Gramática Normativa Tradicional e as sugestões apresentadas
por linguistas contemporâneos que pensam sobre a temática. Selecionamos os pronomes,
dentre um dos temas das dez classes gramaticais, para apresentar a forma como ele era (e
ainda é) pensado pelo modelo tradicional e também como deve (ao menos deveria) ser pen-
sado para uma realidade linguística brasileira, pautada no decorrer do século XXI.

Desejo-lhe uma ótima leitura e que os resultados abram espaços para o início de uma jorna-
da com resultados profícuos para desbravar uma área que ainda merece cuidado e carinho.
Mergulhe por inteiro!
ÍCONES
pensando juntos

Ao longo do livro, você será convidado(a) a refletir, questionar e


transformar. Aproveite este momento!

explorando ideias

Neste elemento, você fará uma pausa para conhecer um pouco


mais sobre o assunto em estudo e aprenderá novos conceitos.

quadro-resumo

No fim da unidade, o tema em estudo aparecerá de forma resumida


para ajudar você a fixar e a memorizar melhor os conceitos aprendidos.

conceituando

Sabe aquela palavra ou aquele termo que você não conhece? Este ele-
mento ajudará você a conceituá-la(o) melhor da maneira mais simples.

conecte-se

Enquanto estuda, você encontrará conteúdos relevantes


online e aprenderá de maneira interativa usando a tecno-
logia a seu favor.

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CONTEÚDO

PROGRAMÁTICO
UNIDADE 01
10 UNIDADE 02
52
LINGUÍSTICA GERATIVA: SOCIOLINGUÍSTICA:
CONCEITOS TEÓRICOS VARIAÇÃO E
E PRÁTICOS SOBRE MUDANÇAS
A AQUISIÇÃO DA LINGUÍSTICAS
LINGUAGEM DO PORTUGUÊS
BRASILEIRO

UNIDADE 03
90 UNIDADE 04
118
SEMÂNTICA: A TEORIA ANÁLISE DO
DO SIGNIFICADO DISCURSO:
FUNDAMENTOS
INTRODUTÓRIOS

UNIDADE 05
158 FECHAMENTO
193
ENSINO E CONCLUSÃO GERAL
APRENDIZAGEM DE
LÍNGUA MATERNA:
REFLEXÕES TEÓRICAS
E PRÁTICAS
1
LINGUÍSTICA GERATIVA:
CONCEITOS
TEÓRICOS
e práticos sobre a aquisição
da linguagem
PROFESSORA
Dra. Vera Lucia da Silva

PLANO DE ESTUDO
A seguir, apresentam-se as aulas que você estudará nesta unidade: • Retornar para avançar: Linguística
I • Gerativismo: que teoria linguística é essa e quem é seu principal autor? • Behaviorismo: estímulo,
resposta e reforço na aprendizagem da língua • Linguística gerativa: fases, aplicações e conceitos
principais • Aquisição de linguagem do português brasileiro: risos, tropeços, balbucios e meias falas.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Lembrar alguns aspectos teóricos da Linguística I e preparar o(a) estudante para conhecer e refletir
sobre a Linguística Gerativa • Apresentar a teoria e seu principal autor • Conhecer a fase behaviorista e
sua influência na fase gerativista • Compreender a teoria gerativista e suas fases de desenvolvimento •
Compreender a aplicação da teoria gerativa na aquisição do Português Brasileiro.
INTRODUÇÃO

Prezado(a) estudante, nesta unidade de abertura de Linguística II, iremos


iniciar uma reflexão sobre uma das diversas temáticas sobre a (e da) língua
que compõe o leque teórico da malha curricular dos Cursos de Letras em
todo o Brasil, a partir de um período considerado pós-saussuriano. Histo-
ricamente, retornaremos aos meados do século XX (1950) para lhe apre-
sentar o gerativismo, pautado na justificativa de se tratar de uma temática
linguística importante para pensarmos a língua, enquanto componente que
habita na mente do ser humano, este ser sociável que tem a língua como o
grande diferencial, em relação as outras espécies.
Há aspectos temporais e também teóricos que nos limitam em pro-
mover um debate interdisciplinar e transversal sobre a língua, dentro da
temática gerativista, que iremos apresentar a você. Diante disso, como mar-
co inaugural desta fase de estudos que estamos iniciando, apresentaremos
os componentes teóricos básicos sobre a teoria linguística gerativista e seu
autor principal, Noam Chomsky, bem como as pistas sobre os desdobra-
mentos atuais da teoria.
Diante do universo multifacetado de teorias linguísticas existentes hoje,
optar pela apresentação desta temática exigiu maturidade acadêmica para
desenvolver um direcionamento pautado em autores e teorias específicas,
concomitantemente ao fato de que, outros autores, não menos importan-
tes, não foram contemplados aqui, por questões simples como de espaço e
também para evitar a famosa “salada teórica”. No entanto, isso não impede
que os sedentos por conhecimento ampliem os conceitos tratados aqui e
que serão norteados, não por acaso, com os componentes teóricos da aqui-
sição de linguagem desenvolvidos a partir das inquietações do linguista e
ativista político Noam Chomsky, considerados a partir de três aspectos: a)
contexto histórico, definição e seu principal autor; b) conceitos básicos e
desdobramentos evolutivos da teoria e c) aspectos teóricos e práticos do
processo de aquisição da linguagem pela criança.
1
RETORNAR PARA
UNIDADE 1

AVANÇAR:
linguística I

Durante o percurso da disciplina de Linguística I, você teve acesso aos com-


ponentes teóricos do seu objeto científico, ou seja, a língua pensada em uma
perspectiva para além do senso comum e das reflexões pautadas somente pela
gramática tradicional. Situamos você no contexto desta disciplina e demos iní-
cio a um debate sobre a língua e as possibilidades teóricas para refletir sobre ela,
retomando campos básicos de saberes como a linguística histórica e a formação
da nossa Língua Portuguesa Brasileira.
Isso será feito pela abordagem da macrolinguística, ou seja, por meio de temá-
ticas que refletem a língua atrelada aos elementos sociais, culturais e históricos e
que se configuram por meio de temáticas como o Gerativismo, a Sociolinguística,
a Semântica, a Análise do Discurso que teremos a oportunidade de conhecer
durante o percurso de Linguística II. Muitas temáticas que compõem o campo
de saber da Linguística não serão mencionadas aqui, mas está inteiramente dis-
ponível a você, nas bibliotecas, repositórios, artigos científicos e livrarias virtuais.

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Como a língua somente será analisada de forma competente se o analista a

UNICESUMAR
considerar como algo que está sempre aberto e em constante movimento, é cabível,
neste momento, pensá-la por meio do falante e, claro, de forma interdependente
aos acontecimentos que compõem nossa vida enquanto seres sociáveis e afetado
pelos acontecimentos. Por isso, dedicaremos as páginas desta unidade para você
ter acesso aos aspectos básicos que compõem a teoria linguística gerativista.
Ferdinand de Saussure já foi apresentado a você como o responsável pela teoria
que revolucionou os estudos linguísticos, a partir do século XX, por meio do lan-
çamento da obra denominada Curso de Linguística Geral, o famoso CLG, lançado
em 1916, que trouxe em seu arcabouço a base teórica da língua, enquanto objeto
científico. O que importa para nós, neste momento, é que foi a apresentação da
sua teoria com todos consensos e dissensos ocorridos que, hoje, podemos pensar
sobre a (e na) língua por meios de diversas ramificações teóricas e a disciplina de
Linguística II nos dará a oportunidade de conhecer algumas delas. Nesta unidade,
apresentaremos a base teórica do gerativismo de Noam Chomsky e seus desdobra-
mentos, por ser considerada uma das primeiras teorias linguística, após Saussure.
É importante, nesse momento, afirmar que, para nós, dizer algo é tão natural
quanto o gesto de andar ou tão simples como é o ato de voar para o pássaro. Um
ato tão natural que não paramos para pensar na complexidade que há em uma
situação em que um falante pergunta as horas para o outro, seguida da resposta
que define o momento do dia em que estamos.
É sobre o modo como os humanos produzem e compreendem suas expres-
sões de fala que será tratado nesta unidade, por meio da apresentação de uma
ciência denominada Linguística Gerativa. Sua compreensão básica elege a mente
humana como componente inato de aquisição da linguagem e, nesse contexto
teórico, cabe ao linguista “[...] formular hipóteses sobre como deve ser o conhe-
cimento linguístico existente na mente das pessoas” (KENEDY, 2013a, p. 16).

13
2
GERATIVISMO:
UNIDADE 1

QUE TEORIA
LINGUÍSTICA
é essa e quem é o
autor principal?

Antes de responder à pergunta que


intitula esse item, você já pensou
sobre como uma criança, após pou-
co tempo em contato com falantes
(pais, avós, irmãos etc.), sem passar
por um treinamento intensivo ex-
plícito e mesmo com um sistema
neurológico ainda em formação, é
capaz de adquirir um conhecimento
linguístico rapidamente e de forma
Figura 1 - Noam Chomsky descomplicada?

Nossa produção sobre esta temática linguística se inicia por meio de uma con-
ceituação básica, mas capaz de responder à pergunta que intitula este item. Para
iniciar nossa reflexão, nos apropriamos de Guimarães (2014) para definirmos o
gerativismo como uma corrente teórica do campo da linguística que reflete sobre
o processo de aquisição da linguagem. Ele foi oficialmente criado nos Estados
Unidos pelo linguista e ativista político Avram Noam Chomsky (veja sua bio-
grafia no “Explorando Ideias”), por meio do lançamento da sua obra Syntactic
Structures (Estruturas Sintáticas), no ano de 1957.
14
■ Nesse período considerado como pós-saussuriano (o ano de 1957),

UNICESUMAR
Chomsky e seu estilo polêmico aparece com uma teoria em que o ponto
principal se pautava em um comportamento científico de resistência em
relação às propostas teóricas e práticas do behaviorismo (o próximo item
será dedicado a este tema). Para tanto, a proposta chomskyana se funda-
mentava teoricamente por meio do desenvolvimento de um projeto pe-
dagógico ministrado na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos.

Não podemos esquecer que estamos tratando de um campo teórico que tem
como foco pensar cientificamente sobre a língua e, especificamente no caso do
gerativismo que estamos tratando aqui, no modo pelo qual ocorre a aquisição
da linguagem em nós, seres humanos. Além disso, no dizer de Kenedy (2013a),
gerativismo vem do verbo gerar e, por meio dele, significa o desenvolvimento de
uma teoria linguística capaz de descrever os procedimentos mentais que geram
as estruturas da linguagem representadas por palavras e frases criadas na mente
das pessoas, por meio de regras inconscientes.
Ainda amparados no autor, salientamos que a descrição e explicação racional
do modo como se adquire e funciona a linguagem humana será discutida neste
espaço. Para isso, consideramos o aspecto cognitivo e suas reflexões sobre um
conjunto de inteligências humanas, ou seja, fenômenos mentais relacionados à
aquisição, armazenamento e ativação de elementos utilizados na aquisição da
linguagem (a língua materna que, no nosso caso, é a Portuguesa Brasileira).
Novamente estamos inseridos em uma importante teoria que tem como ob-
jetivo pensar sobre a língua, cabendo defini-la dentro desse campo teórico, pois,
como já sabemos que a língua se apresenta a partir de uma multiplicidade de
definições para a comunidade acadêmica que a tem como seu principal objeto
de estudo, conforme veremos neste material. Por isso, é importante defini-la aqui,
especificamente, dentro do campo teórico gerativista e segundo Kenedy (2013a)
como uma habilidade presente na mente humana, uma faculdade cognitiva que
habilita o ser humano a produzir e compreender enunciados na língua de seu
ambiente (a materna).
Nesse momento, vale a pena refletir sobre o gerativismo a partir de uma po-
sição prática, ou seja, apresentando alguns questionamentos tal como o de Luft
(1985), que apresenta questões desafiadoras sobre o modelo de ensino tradicional
(e também atual) da língua materna. Ele afirma que:

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Uma das principais causas de um ensino de língua materna mal
UNIDADE 1

orientado, na escola tradicional ingênua, é o pressuposto de que o


aluno NÃO sabe a língua. Isso leva a concentrar o esforço de “en-
sinar” coisas, sobretudo teoria gramatical. Tem-se a impressão de
que o professor de idioma nacional está ensinando português a
estrangeiros… com um método ineficiente [...] (LUFT, 1985, p. 72).

Se analisarmos os resultados vergonhosos do Brasil no Programa Internacional de


Avaliação de Estudantes (PISA/2016), por exemplo, facilmente iremos perceber
que sua posição, nas últimas colocações (63ª em Ciências, 59ª em Leitura, 66ª em
Matemática). Posições que refletem, entre tantas possibilidades, políticas públicas
ineficazes para o ensino de língua materna que, nesse pódio, se esconde atrás de
jargões que culpabilizam “o fracasso escolar dos alunos que não sabem ler, escre-
ver e interpretar sua própria língua”. Situação que retoma Luft (1985) ao abordar
a reação desmotivada dos estudantes, em relação às desamadas e detestadas aulas
de Português. Enquanto isso, fora da escola “a criança e o falante não escolarizados
sabem tudo de que precisam para falar em seu nível de comunicação. Apenas não
conhecem os termos técnicos, os nomes daquilo que sabem” (LUFT, 1985, p. 43).
A prova disso está no fato de que a criança, já nos seus primeiros anos de vida, con-
segue evoluir e estabelecer uma regularização da sua fala, de modo prático e coerente:

EU TRAZI E EU JÁ FAZI
MINHA BOLA PARA MINHA TAREFA, AGORA
JOGAR. PODEMOS BRINCAR!

Figura 2 - Simulação de diálogo entre crianças / Fonte: a autora.

16
Veja o que o autor apresenta como exemplos dessa fase:

UNICESUMAR
a) * fazi ou * trazi equiparando às regras gerais das formas regulares bati,
fugi, comi.
b) * abrido, * cobrido, * fazido, * escrevido se assemelhando aos modos re-
gulares dormido, comido, batido.

Os exemplos registrados com o sinal de asteriscos indicam que tais termos são
agramaticais, ou seja, estão em desacordo com as regras gramaticais ensinadas
nas escolas e, portanto, não são aceitáveis. No entanto, se fizermos uma reflexão
linguística destituídos das normas da gramática normativa tradicional, iremos
perceber que essa criança está construindo um arquivo linguístico em que ela se
acha exposta e cria suas hipóteses, marcando sua evolução linguística. Sobre tais
fatos, veja o que nos diz o autor:


Parece assombro que qualquer criança em condições físicas, men-
tais e sociais normais, seja capaz de elaborar assim a teoria ou a
gramática de sua língua. [...]. Trata-se de um saber imediato, sem
intermediação da razão, sem nomenclatura. Um saber sintético, não
analítico; implícito, não explícito. Enfim, um saber intuitivo, não
discursivo (LUFT, 1985, p. 42-43).

Esse processo intuitivo e inatista (escreveremos sobre isso logo mais) é inerente à
formação da criança que chega na escola dominando sua língua materna, apenas
pelo convívio social com seus pares (amiguinhos, pais, avós, irmãos etc.), ou seja,
ela não precisa passar por nenhum projeto pedagógico de alfabetização para iniciar
sua trajetória como falante e ser social que interage, principalmente e, inicialmente,
pela linguagem falada. Nesse caso, o gerativismo é um campo de conhecimento que
poderá ajudar a compreender o fenômeno da aquisição da linguagem.
Enquanto estudantes, é importante saber que as teorias científicas sempre
surgem a partir de reflexões de pensadores que ressignificam ou refutam teorias já
existentes, nos eventos acadêmicos. Tais celeumas também ocorreram em meados
do século XX, quando Noam Chomsky criticou a influência do behaviorismo,
enquanto linha de pensamento vigente e influenciadora no processo de ensino
e aprendizagem da aquisição da língua materna. Vamos conhecer os aspectos
básicos desta teoria e sua aplicabilidade no processo de ensino de língua, bem
como os motivos pelos quais Chomsky o criticou veementemente?
17
UNIDADE 1

explorando Ideias

O professor, ativista político e crítico radical contra a economia externa americana Avram
Noam Chomsky nasceu em 1928, na Filadélfia, em um dos estados americanos denomi-
nado Pensilvânia. Em 1955, tornou-se doutor na Universidade da Pensilvânia e, em 1957,
lança o resultado do seu trabalho na obra “estruturas sintáticas”. Em 1961, começou a
lecionar no Massachusetts Institute of Technology (MIT), mas o que o tornou conhecido e
famoso foi sua contribuição à linguística moderna, por meio da formulação teórica e o
desenvolvimento do conceito de gramática gerativa transformacional que, ao apresen-
tar um sistema de análise linguística lógica, desafiou a linguística tradicional, a partir da
consideração de que a única forma de entender o aprendizado de uma língua, por seus
falantes nativos, seria por meio da compreensão de estruturas gramaticais inatas (já nas-
cidas com o indivíduo) e, portanto, comum a toda a humanidade, ou seja, uma espécie
de gramática universal (GU) ou um dispositivo cerebral inato que nos permite aprender e
utilizar a língua de forma quase instintiva.
Fonte: adaptado de Pacievitch ([2020], on-line)1.

18
3
BEHAVIORISMO:

UNICESUMAR
ESTÍMULO, RESPOSTA
e reforço na aprendizagem
da língua

Para compreendermos a teoria lin-


guística gerativista, precisamos co-
nhecer o behaviorismo por se tratar
de uma teoria do âmbito comporta-
mentalista do início do século XX e
que se constituiu em um dos aspec-
tos de crítica, bem como de motiva-
ção da criação da teoria de Chomsky,
que ocorreu justamente por discor-
dar do método behaviorista, no que
concerne à aquisição da língua.
Segundo Guimarães (2014), a
chegada do gerativismo promoveu
uma revolução cognitiva, pois que-
brou a hegemonia behaviorista na
Figura 3 - Burrhus Frederic Skinner (1904 - 1990) /
psicologia, na filosofia e na linguística, Fonte: Wikipédia ([2020], on-line)2.
contribuindo para a compreensão do
funcionamento do cérebro humano. Foi neste cenário que Chomsky se destacou
não só pela defesa apaixonada de suas ideias, mas por considerar os estudos da lin-
guagem que, há séculos, são vistos como a grande prova da singularidade da mente
humana, pois é ela que nos torna diferentes das máquinas e de outros animais.
19
O behaviorismo sempre acompanha as reflexões propostas sobre o gerativis-
UNIDADE 1

mo como estratégia inicial das reflexões teóricas embrionárias e discordantes de


Chomsky a um modelo de pensamento vigente, naqueles meados do século XX, que
era praticado sob uma espécie de tríade denominada: estímulo, resposta, reforço.
Para conhecer o behaviorismo e seus principais autores, lançamos duas per-
guntas básicas que facilitarão o percurso inicial de quem está tendo o primeiro
contato com esta teoria:

a) O que é behaviorismo?

b) Como ele é aplicado em um


projeto de pedagógico de
ensino de língua?

Figura 4 - Perguntas básicas / Fonte: a autora.

Dentro do campo da ciência da linguagem, nosso interesse sobre o behavioris-


mo se centra, unicamente, no modo como os pensadores, adeptos desta teoria,
interpretavam a aquisição da linguagem em um processo de ensino e aprendi-
zagem. Antes, porém, cabe salientar de maneira simplificada que o behavioris-
mo se define, segundo Baum (2009) como uma ciência do campo da psicologia
comportamental, oficialmente fundada em 1913 pelo psicólogo estadunidense
John B. Watson (1879-1958), por meio de um artigo intitulado “Psychology as
the behaviorist views it” (a psicologia como o behaviorista a vê).

20
A essência dessa teoria preza pela omissão do estudo da consciência e da in-

UNICESUMAR
trospecção (emoção e sentimento) para basear-se somente em dados fisiológicos
observáveis e herdados da teoria do condicionamento do médico fisiologista
russo Ivan Pavlov (1849-1936). Este explicou o modo pelo qual os estímulos se
encadeiam com as reações para produzir o comportamento, chegando à con-
clusão de que todo comportamento humano poderia ser explicado por meio de
condicionamentos (FRAZÃO, [2020], on-line)3.
Resumindo: a essência do behaviorismo define que qualquer ser humano,
mesmo sendo considerado uma tábula rasa e de mente vazia, poderia ser en-
sinado a ter um comportamento determinado, mediante a construção de sua
personalidade e inteligência, ou seja, de acordo com a teoria de Watson, qualquer
criança poderia ser treinada e transformada em médico, artista, ladrão ou men-
digo (GUIMARÃES, 2014).
A autora salienta que Chomsky fora considerado “rebelde e inflexível” por
ter se negado a continuar com as propostas behavioristas, indo na contramão da
hipótese empirista, ou seja, a de que a linguagem é adquirida pelas experiências
vividas após o nascimento. Ao negar essa possibilidade, ele assume uma postura
acadêmica ousada e desenvolve um pensamento diferente do que já estava estabe-
lecido naquele tempo, por meio da sua dissertação de mestrado, na Universidade
da Pensilvânia, nos Estados Unidos.
Interessa saber que foi a partir desta teoria que surgiram novas interpretações
conhecida como neobehaviorismo ou behaviorismo radical e é nesse contexto
que lembramos o psicólogo norte-americano Burrhus Frederic Skinner (1904-
1990), discípulo de Watson que lançou sua teoria oficialmente, em 1957, por meio
da obra Comportamento Verbal. Ele considerou o comportamento verbal hu-
mano e a aprendizagem, por meio da dupla estímulo-resposta (S-R das palavras
inglesas stimuli e response) adquiridas de Watson, mas acrescentou um terceiro
elemento, o reforço positivo ou negativo.
Segundo a autora, os pressupostos de Skinner para a aquisição da linguagem
defendem que as crianças aprendem imitando os adultos e por meio do reforço
negativo (quando dizem algo "errado" e são corrigidas) e do reforço positivo
(quando dizem algo considerado "certo" e são elogiadas/motivadas).

21
Desse modo, sua base científica está amparada na relação entre a atividade
UNIDADE 1

do indivíduo (a resposta) e a atividade do ambiente (os estímulos) de forma


mecanicista, ou seja, pelo estabelecimento de uma analogia do comportamento
a uma máquina, fazendo-a funcionar. Os behavioristas radicais


[...] acreditavam que o comportamento humano era regido pela
tríade estímulo-resposta-reforço: a pessoa recebia algum estímu-
lo, externo ou interno, e então desenvolvia uma resposta; se fosse
reforçada positivamente, essa resposta viraria um comportamento
frequente; se reforçada negativamente, seria abandonada (GUIMA-
RÃES, 2014, p. 46).

Exemplificando a teoria behaviorista de Skinner, segundo Santos (2012): a criança


que está no berço e quer sair, ao ver a mãe (estímulo) começa a chorar (resposta).
Se a mãe for até o berço e retirá-la, ocorre um reforço positivo no comportamento
da criança, mas se ela não retirar e deixá-la chorando, ocorre um efeito inverso, ou
seja, um reforço negativo, pois aprenderá que não é chorando que sairá do berço
e ganhará o confortável colinho de mãe. Veja o exemplo no quadro:

REPETIÇÃO DO
COMPORTAMENTO

ABANDONO DO
COMPORTAMENTO

Quadro 1 - Esquema do estímulo-resposta-reforço proposto por Skinner / Fonte: Guimarães


(2014, p. 16).

22
Vamos para mais um exemplo: a criança, ao ver a mamadeira (estímulo), diz papá

UNICESUMAR
e, caso receba o alimento (reforço positivo), aprende que sempre que sentir fome
deverá dizer papá (resposta). De acordo com os adeptos do behaviorismo, esse
comportamento linguístico explica que a aquisição da linguagem ocorre por
meio de um processo automatizado, observacional, ou seja, sem a preocupação de
que há outros elementos estruturadores e organizacionais que atuam juntamente
durante o processo de aquisição.
Seguindo este raciocínio, a questão que se coloca nesse momento é que a apren-
dizagem (ou aquisição) de uma língua ocorre por meio de um fenômeno mecani-
cista de imitação, trazendo à tona vários questionamentos, entre os quais apresen-
tamos somente dois, por considerá-los primordiais no avanço da nossa reflexão:
a) Se a aquisição da linguagem ocorre por meio de imitação (estímulo, res-
posta e reforço), como explicar o fato de uma criança que, com apenas 4
anos de idade, já é competente em sua língua nativa, dominando a maior
parte de suas regras, ultrapassando o método imitativo?
b) Se a aquisição da linguagem ocorre por meio de imitação (estímulo, res-
posta e reforço), como uma criança enuncia palavras ou frases nunca
ouvidas dos interlocutores próximos (pais, avós, irmãos etc.)?

Tais reflexões são suficientes para adentrarmos em outro campo teórico que abor-
da a aquisição da linguagem por meio de um campo teórico que vai além da
base behaviorista, e que questionou esse modelo mecanicista de se adquirir uma
linguagem, partindo de questões observáveis e teorizando-as como algo inerente/
inato no ser humano. Tais questões continuarão sendo tratadas aqui, por meio do
avanço pela teoria gerativa de Noam Chomsky, situando seus pontos principais.

pensando juntos

Você já pensou sobre a capacidade que os humanos têm em adquirir e fazer uso de uma
língua de forma tão natural e rápida? Já refletiu também por que os outros animais não
conseguem falar, mesmo submetidos a treinamentos?
Fonte: adaptado de Kenedy (2013a) e Lima Junior (2013).

23
4
LINGUÍSTICA GERATIVA:
UNIDADE 1

FASES, APLICAÇÕES
e conceitos principais

A linguística gerativa já foi brevemente apresentada a você; agora precisamos


avançar para conhecer seus principais conceitos, a partir de um registro das fases
da teoria e a forma como a aquisição da linguagem é cientificamente praticada
em cada etapa do seu desenvolvimento. Já sabemos que Chomsky mergulhou
em reflexões profundas sobre o modus operandi da aquisição da linguagem por
discordar da influência teórica comportamentalista/behaviorista que acreditava
que a língua era adquirida por meio de um processo de repetição artificial e
induzida por um aspecto cultural e social, isto é, a língua não era pensada como
um produto natural e, portanto, inerente da mente humana.
Foi no final da década de 50, especificamente em 1957, como já sabemos, que
Chomsky apresentou sua teoria, a partir da discordância de que a língua não é
aprendida, mas adquirida. Nesse contexto, ele consegue promover uma revolu-
ção científica, registrando sua tese de que a aquisição da linguagem ocorre por
meio de uma concepção mentalista/inatista. E o que isso quer dizer? A resposta
é simples: a língua faz parte da natureza biológica do ser humano e é sobre essa
característica que iremos refletir agora.

24
Primeira fase: a teoria padrão e o inatismo

UNICESUMAR
Iniciamos este tema com duas reflexões, lançada por Kenedy (2013b):

A) OS ANIMAIS MESMOS PASSANDO POR TREINOS


EXAUSTIVOS, NÃO CONSEGUEM ALCANÇAR UMA
COMPETÊNCIA LINGUÍSTICA SEMELHANTE AOS
SERES HUMANOS;

B) AS CRIANÇAS ADQUIREM A LÍNGUA DE SEU


AMBIENTE DE UMA FORMA RÁPIDA, ESPONTÂNEA E
SEM ESFORÇO APARENTE.

Se as crianças saudáveis constroem seu conhecimento linguístico com um nú-


mero reduzido de informações, isso significa que tais fenômenos são explicados
pela hipótese do inatismo linguístico, ou seja, pela justificativa de que somos
pré-programados para adquirir e usar uma língua natural, ao menos.
Considerando a aquisição da linguagem, o inatismo se consolida, pela língua,
por considerar que os inúmeros detalhes do nosso conhecimento linguístico es-
tariam inscritos em nossos genes, justificando uma disposição biológica exclusiva
para adquirir e usar uma língua de maneira natural e rápida.
O ponto explicativo desse fenômeno se configura no fato de que a lingua-
gem humana está na mente das pessoas e a justificativa chomskyana para esse
aspecto se pauta na premissa de que todas as pessoas produzem frases que nunca
ouviram, confirmando a predisposição inata de uma criatividade linguística, nas
suas interações sociais. Em outras palavras, a regra que justifica essa capacidade
criativa se ampara na condição humana de produzir e compreender um conjunto
infinito de enunciados, possivelmente jamais produzido, a partir de um pequeno
conjunto limitado e finito de regras gramaticais.

25
Esse é o momento de apresentar o conceito denominado “faculdade da lin-
UNIDADE 1

guagem”. Dentro de um campo de saber em que se pensa sobre a aquisição da


linguagem, o que esse conceito significa? Dentro da concepção gerativista do
inatismo, podemos pensar que:


[...] chegamos a um dos princípios essenciais da teoria gerativa: todo
ser humano nasce com a faculdade da linguagem, um módulo men-
tal ou dotação biológica específica da espécie humana que o torna
apto a adquirir e utilizar pelo menos uma língua natural (GUIMA-
RÃES, 2014, p. 27).

Por isso, ao afirmar que a linguagem verbal é uma propriedade que nasce com
o ser humano, a teoria gerativa assume a postura de que estamos tratando de
algo que faz parte do seu código genético. Fato que justifica o termo “faculdade
da linguagem” como uma predisposição inata ou, no dizer de Kenedy (2013b,
p. 15), como uma “[...] disposição biológica que todos os indivíduos humanos
saudáveis possuem para adquirir uma língua e para produzir e compreender
palavras, frases e discursos”.
Segundo Chomsky (1971), essa concepção inatista nos leva a uma conclusão
de que a linguagem humana parece ser um fenômeno único e que se compõe de
uma sintaxe pelo fato de apresentar um resultado de organização interna, estru-
tura e coerência. O autor ainda ressalta que o inatismo nos capacita a falar muitas
coisas que não aprendemos, pois é a partir de tais capacidades inatas (institutos
naturais) que somos direcionados para a “[...] a natureza, a maneira e a extensão
do que se deve ouvir, esperar ou desejar [...]” (CHOMSKY, 1972, p. 77).
Essa engrenagem é explicada por um dispositivo mental que, na teoria
chomskyana, denominou como “dispositivo de aquisição da linguagem” (langua-
ge acquisition device - LAD). Kenedy (2013a) afirma que os neurônios criados
pelo LAD são especializados em retirar informações linguísticas do ambiente,
direcionando à seguinte reflexão: que informações linguísticas são essas? Ora,
são todos os enunciados construídos na língua da comunidade de falantes a que
pertencemos e que estamos expostos desde o primeiro dia de nossas vidas. Veja
o que nos diz a autora:

26

O gerativismo defende a interdependência entre inatismo e experiência.

UNICESUMAR
Todos nascemos com o LAD, que nos predispõe a aprender qualquer
língua natural – ou seja, ninguém nasce predisposto a aprender chi-
nês, italiano ou português; nascemos com predisposição para aprender
qualquer língua. Depois, à medida que crescemos e somos expostos
a uma língua específica, nossa faculdade da linguagem especializa-se
e atinge um estado de “maturidade”, que é o conhecimento profundo
e abstrato que temos dessa língua em particular, seja ela o chinês, o
italiano, o português ou qualquer outra (GUIMARÃES, 2014, p. 28).

Estamos agora diante de uma informação em que se faz necessário retomar dois
conceitos: língua-I e língua-E. Antes de tratar sobre, observe o quadro e veja como
funciona o processo de aquisição de linguagem na hipótese gerativista:

DISPOSITIVO DE AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM - LAD

Informações Conhecimento
linguísticas do de uma língua
ambiente particular

Quadro 2 - Dispositivo de aquisição da linguagem / Fonte: a autora.

Língua-I e Língua-E: conhecimento básico

Outra importante característica a ser destacada, dentro deste universo teórico do


gerativismo, está relacionada à questão da língua-I (interna) e língua-E (externa).
Para tratar dessa abordagem, vamos imaginar a seguinte situação, conforme as
reflexões sugeridas por Guimarães (2014): é óbvio que uma criança, em seus pri-
meiros anos de vida, localizada no território brasileiro, está exposta a informações
linguísticas do Português Brasileiro e, quando ela chegar em um determinado
período etário de sua vida, passará a ter um desenvolvimento profundo de uma
língua em particular que também é o Português Brasileiro.

27
A criança a qual estamos nos referindo está exposta a duas línguas portugue-
UNIDADE 1

sas: a que está dentro da sua cabeça enquanto falante e outra que se presentifica
no ambiente e, portanto, facilmente localizável nos dicionários. Um assunto que
estimulou Noam Chomsky a propor os termos língua-I e língua-E. A língua-I se
refere àquela que se considera como alocada “dentro da cabeça” do falante (aspec-
to cognitivo, individual, intensional com “s” para a caracterizar como individual
e interior), ou seja, trata-se


[...] daquele conhecimento inconsciente, subjetivo e abstrato que te-
mos de certa língua natural, ou melhor, de certa língua-E. A língua-I
corresponde, desse modo, ao estado de maturidade que a faculdade
da linguagem, em um indivíduo exposto a estímulos linguísticos
normais, atinge no início da puberdade (GUIMARÃES, 2014, p. 31).

Nesse caso, a língua-I faz parte do sistema cognitivo humano (faculdade da lingua-
gem) que possibilita, desde o nascimento, a perceber e processar a língua-E do am-
biente em que está inserido e que o capacita a retirar as devidas informações para criar
a sua língua-I, ou seja, seu conhecimento linguístico. Assim, a língua-I “[...] é a forma
pela qual as informações contidas no código linguístico do ambiente (a língua-E) es-
tão representadas em nossa mente. É [...] a nossa versão interiorizada das informações
da língua-E, a nossa cópia particular dessa língua” (KENEDY, 2013a, p. 34).
A língua-E, como o próprio nome sugere, corresponde ao que se denomina
como língua (ou idioma: português, inglês, francês etc.) que se caracteriza como
fenômeno sociocultural (objetivo, extensional com “s” para a definir como co-
letiva e exterior), ou seja, é também uma língua usada pela população por um
interesse comunicativo que se compreende como um construto independente das
propriedades da mente/cérebro. Vamos explicar a ideia por meio de um quadro:

Língua-E Dotação Biológica Língua-l

ESTÍMULOS LINGUÍSTICOS FACULDADE DA LINGUAGEM CONHECIMENTO LINGUÍSTICO

Quadro 3 - A hipótese inatista sobre a faculdade da linguagem / Fonte: Kenedy (2013a, p. 74).

28
O quadro evidencia a interdependência dos elementos para conseguir o resul-

UNICESUMAR
tado, ou seja, os estímulos são condições necessárias para a aquisição do conhe-
cimento linguístico. No entanto, nada aconteceria (ou se acontecesse alguma
coisa, seria semelhante a um animal treinado) se o ser humano não fosse dotado
biologicamente para isso, ou seja, apesar da interdependência entre a língua-E
e a língua-I, a pessoa mesmo exposta a um ambiente linguístico considerado
ineficiente denominado como fenômeno de pobreza de estímulos, ela consegue
se desenvolver linguisticamente, graças ao aspecto modular da mente. Observe
como se configura a nossa mente:

EMOÇÕES

LINGUAGEM

RELAÇÕES
SOCIAIS

PROCESSADOR CENTRAL
VISÃO

RELAÇÃO
MATEMÁTICA
MEMÓRIA

RELAÇÃO
ESPACIAL

Quadro 4 - Representação da hipótese da modularidade da mente / Fonte: adaptado de


Kenedy (2013a, p. 38).

29
Embora esse modo de conceber o cérebro humano tenha múltiplas interpreta-
UNIDADE 1

ções, conforme a teoria em que se está filiado, é importante saber que, em relação
ao módulo da linguagem, podemos considerar os seguintes submódulos:
a) Fonológico: refere-se às estruturas sonoras da língua. Exemplo: o fone-
ma (ou som) /s/, representados pelas letras “s” (sapo), “ç” (açougue) e “ss”
(assado) (lembrando que fonema não se confunde com letra).
b) Morfológico: morfemas dotados de significação que permitem estruturar
e modificar os itens lexicais e reconhecer palavras novas. Ao verbo “estu-
dar” pode atribuir vários significados, por meio da adição ou subtração
de morfemas: estudarei (o morfema /re/ adiciona o significado de futuro
e o /i/ recai sobre a pessoa que fala, a primeira pessoa “eu”), estudava (o
morfema /va/ considera uma ação passada, pretérito imperfeito).
c) Lexical: dedica-se às palavras, sua pronúncia e significado e suas condi-
ções de uso e faz parte do nosso conhecimento linguístico, ou seja, nossa
língua-I (diferenciando do conjunto de palavras que estão registradas nos
dicionários e se refere à língua-E). Exemplo: por um lado, no dicionário
encontramos a palavra “amplexo” e sua definição, mas muitos de nós não
a conhecemos e, por outro, apesar de a palavra “tchan” ser consagrada no
Brasil há décadas, dificilmente a encontraremos registrada em dicionários.
d) Sintático: capacidade de produzir e compreender frases por meio de um
controle combinatório inconsciente. Nós, falantes e conhecedores das re-
gras da língua portuguesa brasileira, sabemos que a frase “a minha amiga é
bonita” é gramatical, enquanto “minha amiga a bonita é” é agramatical (*).
e) Semântico: identifica significados em expressões linguísticas como pala-
vras, sintagmas e frases. Diante de uma pergunta para apresentar o signifi-
cado oposto do sentimento de tristeza, certamente, você e sua competên-
cia semântica acerca da sua língua nativa, registraria felicidade ou alegria.

30
f) Pragmático: voltado para o contexto de uso prático da língua sem que os

UNICESUMAR
significados de tais usos estejam explicitados nas frases citadas, mas que
produzem seus efeitos. Vamos exemplificar: você está a quase 30 minutos
de explicação da teoria linguística gerativista aos seus alunos do segundo
ano de Letras e, nesse tempo, o aluno Marcos entra sem justificar em sua
aula. Você de forma um pouco ríspida faz a seguinte pergunta: “Marcos,
você sabe que horas são?”. Todos nós, com o conhecimento que temos da
nossa língua nativa e da situação descrita, sabemos que o(a) professor(a)
não quer saber a hora simplesmente, mas alertá-lo sobre seu descompro-
misso com a aula, por meio do atraso.

A língua-E também é explicada por tais submódulos. Veja:


a) Sociocultural: compartilhada por indivíduos que integram uma mesma
sociedade e compartilham uma mesma cultura;
b) Histórico: constitui e desenvolve ao longo do tempo. Exemplo: o portu-
guês que falamos hoje carrega uma herança do latim e de todas as demais
línguas que fizeram parte da história de formação do Português Brasileiro
– árabe, tupi, italiano, inglês etc.;
c) Político: a língua é considerada um dos instrumentos político de uma
nação, ou seja, assim como todo país tem uma bandeira, um hino e suas
instituições, também possui uma língua oficial.

As fases históricas do gerativismo

Para situar você, estudante, apresentamos, brevemente, as fases do gerativismo


e sua aplicabilidade, mediante exemplos extraídos de autores que se dedicam
ao estudo dessa concepção teórica da linguística. Segundo Kenedy (2013a), a
primeira fase dessa corrente linguística ocorreu entre os anos de 1960 e 1970 e
ficou conhecida como gramática transformacional e seu objetivo fora pautado
na descrição do modo como os constituintes das sentenças eram formados, bem
como transformados por meio da aplicação de regras. Vamos exemplificar com
a sentença “o aluno leu o livro”. Veja:

31

A sentença (S) “o aluno leu o livro” é formada pela relação estrutural
UNIDADE 1

entre o sintagma nominal (SN) “o aluno” e o sintagma verbal (SV) “leu


o livro”. O SN é formado pelo determinante (DET) “o” e pelo nome
(N) “aluno”, e o SV, por sua vez, é formado pelo verbo (V) “leu” e pelo
outro SN “o livro”, o qual se forma também por uma relação entre DET
e N, no caso “o” e “livro” respectivamente. (KENEDY, 2013a, p. 131).

Nesse período, tal sentença também poderia ser representada por um esquema
denominado diagrama arbóreo, a famosa árvore que os gerativistas fazem para re-
presentar as estruturas sintáticas de uma sentença, conforme demonstrado a seguir:

SN SV

DET N V SN

o estudante leu
DET N

o livro

Quadro 5 - Representação arbórea / Fonte: Kenedy (2013b, p. 131).

Os linguistas gerativistas dessa fase explicam a geração de uma estrutura simples,


na voz ativa, mas que para ser transformada em voz passiva, seria necessário a
formulação de algumas regras transformacionais. Por isso, a denominação de
gramática transformacional, pois, a partir de uma estrutura de base existente/
subjacente previamente, denominada estrutura profunda, é possível chegar a
uma estrutura superficial, na qual são aplicadas as regras transformacionais.
Veja o esquema:

32
S

UNICESUMAR
SN SV

DET N V SN

o estudante leu
DET N

o livro

ESTRUTURA PROFUNDA

REGRAS DE TRANSFORMAÇÃO
1. seleção do verbo “ser” + particípio; 2. movimento do objeto para a posição de sujeito;
3. manifestação do agente como Sintagma Preposicionado (SP).

SN SV

DET N V SP

o livro AUX PART


P SN

foi lido
por
(pelo)
DET N

o livro
Quadro 6 - Transformação de uma sentença ativa em passiva / Fonte: Kenedy (2013b, p. 132)

33
Avançando para a década de 80, do século passado, salientamos que as teorias vão
UNIDADE 1

sendo reformuladas tal como ocorre com a tecnologia, o estilo de vida, a moda, as
relações sociais etc., e foi nesse período que surgiu a Gramática Universal (GU).
Sobre essa fase, precisamos antes ter a noção de que existe no mundo, aproximada-
mente, 6.912 idiomas e é partir dessa informação que lançamos uma reflexão que,
talvez, ainda não foi pensada por você: será que existe alguma regularidade comum
entre tantas línguas naturais heterogêneas? Além disso, será que há diferenças pre-
visíveis entre elas? É justamente a busca por essas universalidades, previsibilidades
e ordem linguísticas que ocupam o tempo dos gerativistas dessa época.
Tais reflexões fornecem o suporte básico para entendermos o avanço da teo-
ria, para além do aspecto inato ou da faculdade da linguagem defendido na pri-
meira fase. De acordo com Kenedy (2013a), os gerativistas formularam a teoria da
GU, a partir de dois mecanismos teóricos denominados princípios universais e
parâmetros particulares, e que são desenvolvidos por meio da sintaxe, pois é por
meio dessa área que se percebem as semelhanças entre as línguas. Um exemplo
disso é que todas as línguas do mundo possuem funções sintáticas como sujeito,
predicado e complementos.
Dentro do contexto aqui estudado e do autor que nos respalda, de um modo
atualizado, entendemos os princípios como propriedades gramaticais válidas
para todas as línguas naturais, enquanto que os parâmetros são as possibilidades
limitadas de variação entres tais línguas. Vamos compreender o fenômeno na
prática, por meio da leitura de duas sentenças:
a) João disse que ele vai se casar. Nesse caso, o pronome “ele” pode se referir
tanto a João, quanto a outro homem qualquer citado anteriormente.
b) Ele disse que João vai se casar. Nesse caso, o pronome “ele” não pode se
referir a João, mas a outro homem.

Passemos à análise desenvolvida pelo autor:


Essa diferenciação entre a referencialidade do pronome “ele” nas duas
frases pode ser explicada da seguinte maneira: nesse contexto, o pro-
nome faz referência a algum elemento que precisa ter sido citado
anteriormente no texto – trata-se de um pronome anafórico. É um
Princípio da GU que uma anáfora necessariamente deve suceder o

34
seu referente, e nunca o contrário. É por isso que na frase (a) “ele” pode

UNICESUMAR
ser tanto “João” quanto outro homem citado numa frase anterior, já
que ambos os termos antecedem o pronome. Já no caso de (b) “João”
não pode ser o referente de “ele”, pois o pronome antecede o nome. Se
traduzíssemos (a) e (b) para qualquer língua do mundo, o resultado
seria sempre o mesmo: em (b) seria impossível ligar o pronome ao
nome citado, mas em (a) isso pode ocorrer (KENEDY, 2013b, p. 136).

Avancemos nesta compreensão, a partir da seguinte sentença:


a) João disse que ele vai se casar. (ele: sujeito preenchido).
b) João disse que Ø vai se casar. (Ø sujeito nulo).

Analisando as sentenças pela teoria da GU e dos princípios e parâmetros, afir-


mamos, respaldados no autor, que a língua portuguesa brasileira aceita frases com
sujeitos preenchido e nulo (Ø saí ontem, Ø fomos ao cinema, Ø vai se casar etc.).
Logo, trata-se de uma característica do Português Brasileiro e de outras línguas
como o espanhol e o italiano, mas inaceitável (considerada incorreta) no inglês,
por exemplo. Veja: a sentença “John said that he is going to get married” (João
disse que ele vai se casar) é considerada gramatical (correta), enquanto que “*
John said that Ø is going to get married” (João disse que vai se casar) é conside-
rada agramatical (incorreta).
Resumindo: “A existência de sujeito nas sentenças é um princípio da GU, mas
a possibilidade de deixá-los nulos nas frases é um parâmetro” (KENEDY, 2013b,
p. 137). Como você deve ter percebido, é por meio dos conceitos da GU que os
gerativistas conseguem sintetizar a heterogeneidade das línguas do mundo, bem
como detectar a homogeneidade entre elas.
Avançando por esse percurso cronológico da linguística gerativa, chegamos
na década de 90, do século passado, e nos deparamos com desdobramentos da
teoria que se denomina como programa minimalista (PM) apresentado à co-
munidade acadêmica, em 1995, por meio da obra The Minimalist Program, de
Noam Chomsky (O Programa Minimalista). Segundo Borges Neto (2011), não
se trata de uma nova teoria de cunho substitutivo do que já foi elaborado até esse
momento, mas como algo que movimenta a continuação das reflexões teóricas
do programa gerativista sobre a língua. Fato que justifica o posicionamento do
autor em considerar o PM como parte da teoria dos princípios e parâmetros.

35
Como o próprio nome sugere, esse momento da teoria que perdura até os dias
UNIDADE 1

atuais significa sua reconfiguração no sentido de eliminar aspectos considerados


desnecessários a partir desse momento que passa a ser considerado pelo autor
como de economia teórica. Para o autor,


[...] a questão fundamental do PM é o estabelecimento da “medida”
que permita a avaliação da “otimidade” das estruturas em satisfazer
as condições impostas pelos sistemas externos. Em outras palavras,
será considerada “boa”, “gramatical”, “aceitável”, a estrutura que sa-
tisfizer inteiramente as condições das interfaces (BORGES NETO,
2011, p. 123).

Entre final do século XX e início do século XXI, a teoria de Princípios e Parâ-


metros é utilizada para o estudo da sintaxe das línguas naturais. No Programa
Minimalista, no entanto, um movimento dessa fase vem se configurando com
as formas fonética e lógica. O fato de que a faculdade da linguagem coloca em
funcionamento outros sistemas da mente/cérebro em níveis de interface que
se relacionam ao som e ao sentido faz pensar em que medida tais sistemas têm
relação entre a linguagem (som) e o pensamento (sentido).
O projeto da linguística gerativa é observar e examinar as línguas humanas e
sua suntuosa complexidade, com o objetivo de descrever os Princípios e os Parâ-
metros da Gramática Universal que subjazem à competência linguística dos su-
jeitos falantes, dessa forma, podendo explicar como é a Faculdade da Linguagem.

36
5
AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM

UNICESUMAR
DO PORTUGUÊS
BRASILEIRO:
risos, tropeços, balbucios
e meias falas

A fala da criança e suas peripécias orais são objetos de investigação científica


para muitos pesquisadores que pensam sobre a aquisição da linguagem. Nesse
caso, estamos lidando com um assunto que se tornou um mote para a ciência
linguística e que, por conta disso, produz muitas reflexões sobre como a língua é
adquirida e praticada. É sobre tais questões que todo o empreendimento acadê-
mico de Noam Chomsky é dedicado para além de uma simples tarefa descritiva.
Como já sabemos que a linguagem faz parte de um processo interno da mente
humana (a língua - I), voltemos a uma reflexão simples, mas complexa: “por que
as crianças nos surpreendem tanto pelo fato de adquirirem suas línguas mater-
nas tão rápido e independente do ambiente ser favorável, ou não”? Avancemos
na compreensão da língua como uma capacidade natural da espécie humana,
ou seja, como algo lógico e dedutivo manifestado desde os primeiros balbucios.
Observe os exemplos retirados de Castro e Figueira (2006):

37
UNIDADE 1

a) “Eu não escondei”. c) “Eu escovi os


dentes”.

b) “Ela não sabe d) “Quanto tempo


dirijar”. eu não ouçava esta
música”.

A leitura das orações supracitadas, certamente, causaram estranhamento em você


que percebeu nos verbos “esconder, dirigir, escovar e ouvir” uma conjugação di-
ferente para o modo, aspecto, tempo e pessoa. Esse emaranhado que a criança
faz, ao falar, possui explicações que passam longe de um simples diagnóstico de
erro. Pelo diagnóstico das autoras, apresentamos mais um exemplo. Imagine a
situação ocorrida com uma criança de 4 anos:
a) Situação 1: a mãe fecha a caixa de brinquedos e a criança decepcionada
diz: “cê diabriu! (desabriu = fechou).
b) Situação 2: a criança, ao ver uma bexiga murcha, faz a seguinte pergunta:
“ela demurcha?” (desmurcha = enche).

Vamos para a análise das duas situações: a criança, ao invés de utilizar os verbos
“fechar” e “encher”, utilizou o “des” como um ato de desconstrução em relação
ao que estava feito, no caso “desabriu” e “desmurcha”. Embora para o adulto seja
considerado “erro”, considerando a fase dessa criança e sua relação única com a
língua, estabelecida por uma relação paradigmática (conforme já estudamos, as
dicotomias de Saussure em Linguística I) colocadas juntas a desligar, desabo-
toar, desamarrar, destampar, etc.

38
Sobre este aspecto, Castro e Figueira (2006) afirmam que há relações entre a fala

UNICESUMAR
da criança com a fala do adulto, de modo que a primeira (a criança) tende a incor-
porar, constantemente, argumentos que circulam na segunda (o adulto). Entretanto
observa-se também que na fala da criança há argumentos que não mostram a mes-
ma ligação com a fala do adulto, distanciando-se pelas contradições, deslocamentos
e, principalmente, a comprovação que a linguagem pode sofrer a força da ruptura,
da não coesão e do não-todo, sempre permeada pela imprevisibilidade.
Ainda amparada nas autoras, apresentamos mais um exemplo para que você
tenha noção do processo de aquisição da linguagem nas crianças: a mãe, para
convencer a criança a comer, argumenta que é preciso “comer para crescer”. Veja
como ocorreu uma situação, na hora do almoço, e que nos surpreende pela im-
previsibilidade da criança em associar o crescimento ao ato imediato de comer,
por meio da palavra “agora” no ato de crescer, simultaneamente, ao ato de comer:

Mãe: Vamos comer mais um pouquinho?


Criança: Agora não quero mais, manhê.
Mãe: Por que você não quer mais?
Criança: Porque agora eu não quesci, mãe. (= cresci)

Retomando à teoria gerativista já trabalhada, Santos (2012) afirma que pela pro-
posta teórica básica de Chomsky, toda criança saudável e inserida em um am-
biente social tem um dispositivo de aquisição da linguagem inato, que é ativado,
gerando a gramática da língua em que ela está exposta, ou seja, toda criança tem
uma Gramática Universal (GU) inata com a regra de todas as línguas e ela selecio-
na apenas as regras que estão ativas na língua que está adquirindo. Nesse caso, a


[...] a gramática universal é formada por princípios, ou seja, “leis”
invariantes, que se aplicam da mesma forma em todas as línguas, e
parâmetros,“leis” cujos valores variam entre as línguas e dão origem
tanto à diferença entre as línguas como à mudança numa mesma
língua. (SANTOS, 2012, p. 221).

39
Voltemos ao caso do uso do sujeito: se a criança for exposta à língua inglesa, vai
UNIDADE 1

compreender, durante o processo da aquisição da língua que o valor do parâmetro é


que o sujeito deve ser sempre preenchido (ex: it is raining). No entanto se ela estiver
exposta à língua portuguesa, saberá que o sujeito pode ser omitido (ex: está chovendo).
Chomsky (1972), ao tecer reflexões sobre a aquisição da linguagem, afirma
que, contrariando as teorias sobre o ensino da língua, não se pode ensinar uma
língua, mas apenas despertar no espírito, ou seja, uma espécie de entrega da ponta
da linha que vai se desenrolando por si mesma. Para a teoria da aquisição da
linguagem, o que isso significa? Veja o que nos diz o autor:


O aprendizado da linguagem pela criança não é uma doação de
palavras, um depósito na memória e a reprodução pelo balbucio
com os lábios, mas o crescimento da faculdade de falar devido à
idade e ao exercício (CHOMSKY, 1972, p. 80).

Perceba que o autor ultrapassa os pensamentos do seu tempo, aprimorando sua


reflexão:


O fato de que nas crianças não tem lugar um aprendizado mecânico
da linguagem, mas o desenvolvimento da capacidade linguística,
demonstra também que, assim como as principais forças humanas
têm um certo momento na vida indicado para o seu desenvolvi-
mento, todas as crianças, nas circunstâncias mais diversas, falam
e compreendem aproximadamente na mesma idade, só variando
dentro de um curto período (CHOMSKY, 1972, p. 80).

Resumindo, diz o autor que “[...] a aquisição da linguagem é uma questão de cres-
cimento e maturação de capacidades relativamente fixas, em condições externas
adequadas” (CHOMSKY, 1972, p. 80). No entanto a base forte desse processo é
determinada, em grande parte, por fatores internos e você que, nesse momento,
é um estudante da língua, percebeu que a temática é complexa e que este espaço
não é capaz de aprofundar e, muito menos, esgotar o assunto. Mas para começar,
você deve compreender que a criança consegue se desenvolver por diversos me-
canismos, principalmente por meio da linguagem que é adquirida na primeira
infância (até os 6 anos) e que, atrelada às suas experiências e descobertas, irão lhe
acompanhar por todo o percurso de suas vidas.
40
CONSIDERAÇÕES FINAIS

UNICESUMAR
Prezado(a) estudante, apresentamos algumas reflexões sobre a linguística gera-
tiva, como marco inicial das reflexões que serão abordadas, durante o percurso
de Linguística II. Apresentamos as fases da teoria, suas definições e elucubrações
representadas por autores que tomam como suporte teórico as ideias de Noam
Chomsky, por ser considerado o principal representante dessa teoria posta em
funcionamento nas produções científicas localizáveis física e virtualmente.
Retornamos ao século passado para compreendermos que sempre há críticas
em relação aos componentes teóricos que estão no centro das pesquisas e práticas
vigentes de um determinado período. Basta relembrarmos as críticas desenvol-
vidas por Chomsky em relação ao behaviorismo, especificamente, no processo
de como se instrumentaliza a aquisição da linguagem, enquanto componente
adquirido por um ser considerado como tabula rasa, mas que ao ser submetido
em treinamentos, passa a fazer uso dela nas interações sociais.
Chomsky se posicionou fortemente, perante a comunidade acadêmica de sua
época, para provocar celeumas, desestabilizar e iniciar um novo ciclo de estudos
sobre a linguagem, a partir de componentes teóricos que assegurava à linguagem,
um estatuto de pertencimento inato da mente humana e, portanto, pronta para
ser desenvolvida por qualquer criança que é inserida no meio social.
Salientamos que aqui foi registrada uma base teórica rudimentar de uma
teoria que ainda continua sendo explorada, repensada e reformulada. Por isso,
ela merece mais leitura, problematizações e reflexões que ultrapassem os limites
dessas páginas, com reflexões que vão além de modelos simplistas que pensam
o ato de falar como algo mecânico e o ser humano como um ser vazio. A lin-
guística gerativa se apresentou para nós para compreendermos que chegamos ao
mundo já programados (lembra do inatismo?) para estabelecer nossas relações,
por diversas modalidades, mas principalmente pela língua.

41
na prática

1. Ferdinand de Saussure é considerado o pai da linguística moderna, pois foi capaz


de revolucionar os estudos desenvolvidos sobre a língua, até aquele início do século
XX. A ousadia saussuriana foi capaz de despertar a ousadia de outros pensadores,
resultando na diversidade teórica disponível hoje e totalmente acessível àqueles que
querem compreender o fenômeno da língua para além do senso comum. Umas das
teorias linguísticas disponível é o _________________ que vem formulando um modelo
explicativo do modo como a linguagem funciona na mente humana, por meio dos
conceitos teóricos do linguista e ativista político ___________________. Ele apresentou
sua teoria por meio da obra ______________________, em _______, na Universidade da
_______________________, nos ___________________.

a) Gerativismo, Noam Chomsky, Estruturas Sintáticas, 1957, Pensilvânia, Estados


Unidos.
b) Gerativismo, Noam Chomsky, Estruturas Sintáticas, 1975, Pensilvânia, Reino Unido.
c) Gerativismo, Noam Chomsky, Estruturas Sintáticas, 1957, Chicago, Estados Unidos.
d) Gerativismo, Noam Chomsky, Estruturas morfológicas, 1597, Brasília, Brasil.
e) Gerativismo, Noam Chomsky, Estruturas Sintáticas, 1957, Boston, Estados Unidos.

2. Segundo Kenedy (2013b), Chomsky foi um crítico severo da psicologia behaviorista,


por discordar das concepções teóricas que defendiam o fato de que todo comporta-
mento humano ou animal são gerados externamente por de estímulos e respostas,
ou seja, por meio de uma associação criada pela repetição. Em relação à aquisição
da linguagem, os behavioristas também defendiam que ela ocorria por meio da
repetição, até adquirir um comportamento linguístico, que Chomsky condenou, ao
formular a teoria gerativista e a natureza abstrata e mental da linguagem humana.
Sobre a teoria behaviorista, leia as afirmativas:

I - O behaviorismo é uma teoria criada pelo psicólogo John B. Watson que defen-
dia o treinamento repetitivo como método para desenvolver comportamentos
determinados nas pessoas.
II - O behaviorismo foi oficialmente lançado, no ano de 1957, por meio do discípu-
lo de Watson, o psicólogo Skinner, através da obra Estruturas Sintáticas, e sua
tríade: estímulo, resposta e reforço.

42
na prática

III - Noam Chomsky é um linguista e ativista político americano que ao formular a


teoria gerativista, afirmou que a linguagem humana está na mente e, portanto,
é considerada como algo inato.
IV - Para a teoria gerativista a linguagem é algo que faz parte da condição humana
e, ao ser considerada inata e pertencente ao mecanismo mental, ela somente é
adquirida após treinos repetitivos e exaustivos de frases prontas.

Assinale a alternativa correta:

a) Apenas as assertivas I e II estão corretas.


b) Apenas as assertivas I e III estão corretas.
c) Apenas a assertiva I está correta.
d) Apenas as assertivas II, III e IV estão corretas.
e) Nenhuma das alternativas está correta.

3. “O gerativismo teve início nos anos de 1950 do século XX, quando Noam Chomsky,
norte-americano, professor do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts, EUA),
formulou suas primeiras ideias a respeito da natureza mental da linguagem huma-
na. [...]. Para ele, a teoria linguística deve descrever os procedimentos mentais que
‘geram’ as estruturas da linguagem, como as palavra, as frases e os discursos. [...] ele
mesmo levantou a hipótese (isto é, criou uma teoria segundo a qual as frases são
criadas na mente das pessoas por meio de aplicações de regras inconscientes, as
quais se aplicam sobre certas palavras de modo a ‘gerar’ as frases que pronunciamos
e compreendemos” (KENEDY, 2013b, p. 17). Sobre esta afirmação, leia as afirmativas
e considere se são verdadeiras (V) ou falsas (F).

( ) Chomsky ao afirmar sobre a natureza mental da linguagem humana, rompeu


com a concepção teórica behaviorista e suas ideias de que ela é adquirida por
meio da repetição, passando a considerar como uma condição humana inata,
ou seja, que já nasce com o indivíduo.
( ) Chomsky ao afirmar que as frases são criadas na mente das pessoas significa que
a criança, independente da condição social, econômica e cultural do seu meio,
é capaz de gerar/criar frases nunca pronunciadas pelos seus pais, irmão e avós.

43
na prática

( ) Chomsky ao afirmar que as frases são criadas na mente das pessoas significa
que a criança, por meio da sua capacidade inconsciente, é capaz de gerar frases
de acordo com as regras da sua língua materna, mesmo sem nunca ter ouvido
de seus pais.
( ) Chomsky ao afirmar sobre a natureza mental da linguagem humana, fortaleceu
a concepção teórica behaviorista, pois sua teoria gerativista, que defende o
inatismo, confirmou que a aquisição da língua ocorre por meio de treinamentos
repetitivos, até a criança decorar a frase.

Assinale a alternativa correta:

a) V, V, F, F.
b) F, F, V, V.
c) V, V, V, F.
d) F, F, F, V.
e) V, V, V, V.

4. “O fato de que nas crianças não tem lugar um aprendizado mecânico da linguagem
mas o desenvolvimento da capacidade linguística, demonstra também que, assim
como as principais forças humanas têm um certo momento na vida indicado para
o seu desenvolvimento, todas as crianças, nas circunstâncias mais diversas, falam
e compreendem aproximadamente na mesma idade, só variando dentro de um
curto período” (CHOMSKY, 1972, p. 80). Essa afirmação de Chomsky demonstra que
a criança precisa estar inserida socialmente, mas não precisa de métodos que
a façam repetir frases prontas para incorporar aprender sua língua materna. Tais
fatos significam que:

a) A criança já nasce sabendo e falando sua língua materna.


b) A criança não nasce sabendo, mas aprende pelo método behaviorista.
c) A criança tem capacidade inata, mas somente começa falar aos 8 anos.
d) A criança tem capacidade inata e começa a falar nos primeiros anos de vida.
e) A criança que diz “fazi (fiz) e tassevelo (travesseiro)” precisa de tratamento.

44
na prática

5. É comum as pessoas pensarem que o conhecimento gramatical se aprende pela


repetição e que falamos porque, antes, ouvimos. No entanto, as crianças, geralmen-
te, dizem coisas que nunca ouviram, comprovando sua relação inata e ativa com a
língua. Em relação à aquisição de linguagem é comum ouvir de crianças em processo
de aquisição de linguagem, as seguintes palavras:

I - “Eu cabo”, “eu fazi”, “ele iu”.


II - Está “chovendinho”.
III - Eu “ouvo” música.
IV - Hoje eu não “escovi” os dentes.

Assinale a alternativa correta:

a) As afirmativas I, II e III estão corretas e a IV está errada.


b) As afirmativas I, II e III estão erradas e a IV está correta.
c) As afirmativas I e II estão corretas e as afirmativas III e IV estão erradas.
d) As afirmativas I e IV estão corretas e as afirmativas II e III estão erradas.
e) As afirmativas I, II, III e IV estão corretas.

45
aprimore-se

GERATIVISMO E O FENÔMENO INATO DA LÍNGUA: DENTRO DA CABEÇA


DE NOAM CHOMSKY

Noam Chomsky é o linguista americano pós-saussuriano de destaque que lançou,


em 1957, a teoria linguística gerativista, por meio da obra Estruturas Sintáticas. A
ideia elementar do gerativismo fora romper com o adestramento behaviorista do
psicólogo americano Skinner método mecânico de aprendizagem em que a língua é
considerada algo externo ao indivíduo). A essência teórica chomskyana é de que o
ser humano possui uma capacidade inata e criativa de linguagem, pois crianças de 5
ou 6 anos já falam com desembaraço, assim como falantes humildes e analfabetos
também dominam sua língua materna, apesar dos poucos anos de acesso aos bens
educacionais mediados pelas instituições de ensino. Essa ideia justifica a facilidade
das crianças saudáveis, desenvolverem sua competência linguística já nos primeiros
anos de vida, desde que tenha convívio social com outras pessoas. Fato que confir-
ma a tese de Descartes (1595-1650): se uma criança for criada entre lobos, ela não e
desenvolverá a linguagem, mas, se voltar ao convívio humano, ela pode aprender a
falar. Já um macaco, mesmo que seja criado apenas entre humanos, jamais desen-
volverá a linguagem.
Apesar da capacidade inata, a criança precisa estar inteirada socialmente para
desenvolver plenamente a aquisição da sua língua materna; é uma informação mui-
to cara para nós, linguistas, refletirmos sobre a importância do convívio social no de-
senvolvimento de nossas habilidades. Para contextualizar você sobre esta questão,
apresentamos 3 casos conhecidos e que nortearão a reflexão, já posta, sobre o fato
de que a aquisição da língua é algo inato, mas há uma dependência de outros fato-
res que, ao serem agregados, otimiza o que já faz parte da nossa condição humana.
Vamos vivenciar os fatos?

46
aprimore-se

1. Genie: a menina prisioneira

Ela nasceu em 1957 (veja: mesmo ano em que Chomsky lançou sua obra Estrutura
Sintáticas), mas foi encontrada somente no início da década de 70, com quase 14
anos de idade. Desde 1,6 anos de idade, Genie não teve nenhum acesso à língua,
pois foi trancada no sótão da casa e, lá ficou isolada, sem rádio, televisão e sem
contato com outras pessoas. Somente seu pai ia até ela, em silêncio, para lhe ali-
mentá-la. A menina não tinha nenhum tipo de exposição à língua e à comunicação,
ou seja, o estímulo auditivo e verbal era nulo e, além disso, não havia brinquedos ou
objetos para brincar.
Após o resgate, Genie foi exposta ao convívio social e estudada por oito anos. Sua
compreensão linguística progrediu, mas permaneceu muito aquém da de um indi-
víduo de sua idade que teve vida social equilibrada. Seu vocabulário cresceu consi-
deravelmente, assim como sua habilidade comunicativa. Sua entonação se manteve
estranha e sua sintaxe não se desenvolveu muito. Ela nunca conseguiu produzir uma
pergunta indireta e sua ordenação de palavras se assemelhava à de uma criança de
dois anos de idade. Sua fala permaneceu agramatical apesar de ter recebido intensa
atenção, carinho, tratamento, instrução e exposição ao inglês, sua língua materna.

2. Victor: o menino selvagem

Em janeiro de 1800, caçadores capturaram um menino selvagem na vila de Saint-Ser-


nin, no distrito de Aveyron, na França. A idade do menino nunca pôde ser confirma-
da, mas ele aparentava ter ente 11 e 12 anos e não produzia nenhum som a não ser
alguns sons guturais que imitavam animais. Após o resgate, a educação de Victor foi
atribuída a Jean-Marc-Gaspard Itard, que desenvolveu um plano de estudos envol-
vendo treinamentos linguísticos e de inserção interativas e sociais.
O treinamento linguístico se mostrou muito frustrante para Itard, pois Victor
precisou aprender de onde os sons da fala são originados, para então poder pro-
duzi-los e reconhecê-los. Com o treinamento, Victor aprendeu a diferenciar sons da
fala dos outros sons, ao seu redor e, posteriormente, aprendeu a repetir a frase “oh

47
aprimore-se

Dieu” (ó Deus), muito utilizada por Madame Guérin, uma assistente do instituto no
qual Victor estava, e a palavra “lait” (leite), mas ele utilizava a palavra, várias vezes,
quando recebia leite, mas sem o sentido comunicativo de estar pedindo leite.
O menino ainda aprendeu a reconhecer comandos orais para tarefas rotineiras
de casa e Itard tentou expandir sua capacidade linguística por meio de cartões colo-
ridos com as letras do alfabeto. Victor “aprendeu” algumas palavras e utilizava seus
cartões para pedir as coisas, nas algumas visitas que fazia com Itard, mas o pes-
quisador nunca soube se eram realmente pedidos ou se estava apenas mostrando
seu “novo brinquedo”. Com o tempo, o menino aprendeu a reconhecer a escrita e
a produzir com seus cartões nomes de objetos, alguns adjetivos, como quente, frio,
grande, pequeno) e alguns verbos (comer, beber, tocar, jogar).
Após cinco anos trabalhando com Victor, Itard tentou novamente ensinar-lhe a
falar, mostrando-lhe os movimentos dos órgãos articuladores de maneira exagerada,
mas também não funcionou. Frustrado, Itard finalizou, então, seu trabalho com Victor
e conseguiu ajuda financeira do governo para que ele morasse com Madame Guérin
até que morresse, ainda mudo, no ano de 1828, por volta dos 38 anos de idade.

3. Pedro e João: os meninos do curral

O caso desses dois irmãos ocorreu no Brasil e foram descobertos em 1994, após uma
denúncia. Eles viviam como animais em um curral de porcos, no sertão pernambu-
cano e, no momento do resgate, as crianças estavam nuas, desnutridas e famintas,
não andavam como bípedes e não falavam. Não falavam nenhuma palavra, apenas
emitiam grunhidos. Após sete anos em cativeiro, com total privação de interação e
linguagem, Pedro e João foram colocados sob os cuidados de tutores que cuidaram
do processo de socialização. Hoje o caçula, João, é mais comunicativo e ativo do que
Pedro, que ainda apresenta mutismo e sérios problemas de interação social. Vale sa-
lientar que, quando os meninos foram abandonados no curral, Pedro já tinha entre
seis e sete anos de idade e, possivelmente, já teria adquirido alguma linguagem.

Fonte: adaptado de Lima Júnior (2013).

48
eu recomendo!

livro

Curso básico de linguística gerativa


Autor: Eduardo Kenedy
Editora: Contexto
Sinopse: o autor é pesquisador da teoria linguística gerativista
e oferece aos universitários brasileiros um material introdutório
com capacidade didática para a compreensão básica da teoria já
no primeiro contato. Apesar da complexidade do tema, a comu-
nidade acadêmica brasileira foi agraciada com esta obra, que se apresenta com
uma linguagem simples e objetiva.
Comentário: a indicação foi escolhida pelo fato de o material apresentar exercí-
cios com respostas que auxiliam na fixação do conteúdo, bem como a compreen-
der a aquisição da linguagem enquanto fenômeno inato.

filme

O enigma de Kaspar Hauser


Ano: 1974
Sinopse: o filme, dirigido pelo cineasta alemão Werner Herzog,
acontece em Nuremberg, Alemanha, no século XIX. Refere-se à fi-
gura enigmática de uma criança (Kaspar Hauser) que foi entregue
a uma família, aos 6 meses de vida, por sua mãe viúva. A partir
dos 4 anos, ela foi acorrentada em um porão, sem nenhum con-
tato com outras pessoas. Em 1828, aos dezesseis anos, foi deixa-
do em uma praça, com uma carta explicando sua história.
Comentário: vale a pena assistir ao filme porque ele destaca questões sobre a
aquisição da linguagem e ressalta a importância da convivência social.

49
eu recomendo!

conecte-se

O artigo apresenta uma reflexão sobre o ensino de língua portuguesa brasileira


mediado pela teoria linguística gerativista e, ao final, você encontra uma bibliogra-
fia importante de teóricos brasileiros para complementar seus estudos.
http://www.periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/prolingua/article/view/27892/14999

Você quer ver e ouvir Noam Chomsky? Então, assista à entrevista “Noam Chomsky:
o conceito de linguagem” e tenha acesso a questões teóricas e práticas importan-
tes sobre a aquisição da linguagem.
https://www.youtube.com/watch?v=W53UvJoLAwI

50
anotações



































2
SOCIOLINGUÍSTICA:
VARIAÇÃO
e mudanças linguísticas do
português brasileiro

PROFESSORA
Dra. Vera Lucia da Silva

PLANO DE ESTUDO
A seguir, apresentam-se as aulas que você estudará nesta unidade: • A sociolinguística e a língua: de-
finições introdutórias • Preconceito linguístico? Isso existe? • Variação e mudança linguística: conceitos
elementares • Norma padrão, culta e curta: onde está a regra? • Variações linguísticas do Português
Brasileiro: tipologias.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Apresentar a teoria, o conceito de língua e os principais autores brasileiros • Refletir sobre o preconceito
linguístico a partir de questões linguísticas cotidianas • Definir e exemplificar os conceitos de variação
e mudança linguística • Apresentar e exemplificar reflexões sobre regra, norma padrão e norma culta
da língua • Apresentar e exemplificar os principais tipos de variações linguísticas.
INTRODUÇÃO

Prezado(a) estudante, nesta unidade, iremos apresentar um assunto que


compõe uma das temáticas da linguística e, obviamente, a língua é o objeto
eleito para ser refletido. Agora, vamos pensar a língua como algo aberto,
multifacetado e a partir da condição de seres humanos que, naturalmente,
internalizamos uma língua específica (no nosso caso, o português bra-
sileiro), nos primeiros anos de nossas vidas, sem deixar de considerar o
ambiente social em que nascemos e vivemos.
A Sociolinguística considera um conjunto de saberes sobre a língua
e seus falantes inseridos, socialmente, nas suas respectivas comunidades
de fala. Nessa perspectiva, precisamos ressignificar a forma como a con-
cebemos, transpondo-a do lugar que a define como engessada, imutável e
homogênea para o de mutável, heterogêneo e multifacetado.
Para compreendermos tais fenômenos, faremos um percurso que se
inicia na apresentação da Sociolinguística e sua definição de língua para
esta temática linguística. Em seguida, trataremos de um assunto polêmico,
pois apesar dos inúmeros preconceitos que permeiam as nossas relações
sociais, precisamos refletir também sobre o preconceito linguístico e a di-
cotomia do “certo” atribuído aos falantes de prestígio econômico, social e
cultural e aqueles que falam “errado”, para caracterizar a imensa maioria
que compõe a classe que pouco (ou quase nada) consegue ter acesso aos
bens culturais.
Avançaremos, mediante o acesso a termos usuais da temática abordada
aqui, como variação e mudança linguísticas. Componentes essenciais para
desenvolver nossa maturidade intelectual e acadêmica ao ser relacionada
com a distinção entre regra, norma padrão, culta e curta, que também serão
tratadas neste espaço.
E, com o intuito de didatizar e proporcionar uma possibilidade de aná-
lise a você, caso se interesse em se dedicar a esse campo de saber, faremos
um rol de classificação dos tipos mais usuais de variações linguísticas, pois
precisamos compreender que nada na língua é por acaso. Vamos à leitura?
1
A SOCIOLINGUÍSTICA
UNIDADE 2

E A LÍNGUA:
definições introdutórias

Iniciaremos o desenvolvimento da temática com um relato ocorrido no Face-


book: uma pessoa utilizou um grupo da rede social denominado “dicas da nossa
língua portuguesa”, sugerindo que publicassem exemplos de “erros de português”.
Os internautas utilizaram o espaço e disponibilizaram os “erros” diários que ou-
viam/liam de vizinhos, amigos, colegas de trabalho etc. Seguido de risos, conde-
nações, emojis, emotions de espanto, horror e indignação, registraram os famosos
“pobremas”, “ispricá” “pracas”, “nóis” “jente”, “voceis” etc.
Uma lista enorme de “palavras erradas” enunciadas por gente que fala e es-
creve “errado”. Reflexões como: “quem é essa gente? A que classe pertencem? Têm
acesso aos bens materiais e culturais oferecidos? Qual é o seu nível de escolari-
dade?” não foram despertadas por nenhum participante.
O que notamos nos internautas e defensores da língua portuguesa pura, ho-
mogênea e “certa” é que eles não perceberam, ainda, e por isso não registraram
fenômenos explicitados na gramática normativa tradicional, e que deixaram de
ser usados por falantes, mesmo pertencendo a uma classe social letrada e, por-
tanto, acessível aos bens culturais e materiais disponibilizados.
Veja alguns exemplos:

54
UNICESUMAR
a) Conjugação verbal: a segunda pessoa do plural (vós) está praticamen-
te extinta do nosso vocabulário.
b) Pronome demonstrativo “esse” para quem fala e “este” a quem
fala: está ocorrendo a anulação dessa diferença, independentemente
da classe social e intelectual do falante.
c) Verbo “assistir”: pela gramática normativa tradicional o verbo assis-
tir, no sentido de ver, deve vir antecedido da preposição “a” (assisti ao
filme). No entanto, o que se observa é que quase todos os falantes da
nossa língua materna dizem: “assisti o filme ontem e gostei muito”, sem
a preposição “a”.

Não por acaso, os internautas não conseguiram, ainda, perceber tais fenômenos
que estão ocorrendo no cotidiano dos falantes e, consequentemente, não julga-
ram e não registraram na enorme lista de erros. Pergunto a você, estudante, que
tem a língua como ferramenta de reflexão e, possivelmente, como instrumento
de exercício profissional:

a) Dizer “praca”, em vez de “placa” é um erro horroroso e o falante deve


ser condenado?
b) O falante que diz ou escreve “assisti o filme ontem” em vez de “assisti
ao filme ontem”, deve ser mencionado e exposto como analfabeto e
destituído de inteligência?
c) O falante que diz ou escreve “me sinto feliz por estar aqui” em vez de
“sinto-me feliz por estar aqui” também deve ser exposto como um ig-
norante intelectual, que sequer saber falar sua própria língua?

Tais reflexões foram registradas para iniciarmos a apresentação de mais um dis-


ciplina do campo da linguística, que você irá conhecer nesta unidade de estudos
e que tem como objetivo central tratar questões relacionadas à variação linguís-
tica, bem como a forma com ela pensa a língua, mediante seus pensadores (os
linguistas). Vamos lá?

55
Estamos lidando com mais uma temática que apresenta suas vertentes teó-
UNIDADE 2

ricas e diversidade de pensamentos, por meio de pensadores que seguem linhas


de pesquisa específicas. Para não provocar um emaranhado de teorias, nesse mo-
mento inicial, pautamo-nos em autores específicos e de relevância para os estudos
acadêmicos/científicos e que contribuirão na sua migração do senso comum, no
que se refere a essa temática, para o senso crítico, reflexivo e, sobretudo, científico.
Afinal, o que é sociolinguística? Sua experiência já é capaz de desmontar,
interpretativamente, esse nome: socio vem de sociedade e linguística refere-se a
um campo de saber que tem a língua como seu objeto essencial de reflexão. Logo:
socio + linguística = sociolinguística. Então: trata-se de uma ciência específica
para estudar a língua em uso, ou seja, falada pelos falantes que vivem em socie-
dade. Vamos aprimorar essa definição, através deste espaço e alguns teóricos para
responder à referida pergunta.
No Dicionário de Termos Linguísticos ([2020], on-line)4, a sociolinguística
se define como um “ramo da linguística que estuda todos os aspectos da relação
entre língua e sociedade como, por exemplo, a identidade linguística de grupos
sociais, atitudes sociais em relação à língua, o uso das línguas e as variedades
sociais e regionais das línguas”. Continuando, a sociolinguística significa


[...] o estudo da língua falada, observada, descrita e analisada em
seu contexto social, isto é, em situações reais de uso. Seu ponto de
partida é comunidade linguística, um conjunto de pessoas que in-
teragem verbalmente e que compartilham um conjunto de normas
com respeito aos usos linguísticos (ALKMIM, 2012, p. 33).

Estamos lidando com um ramo da linguística que, segundo Bagno (2007), surgiu
nos Estados Unidos em meados da década de 60. Momento que muitos cientistas da
linguagem perceberam que já não era mais possível estudar a língua sem levar em
conta também a sociedade, nessa língua falada. Dentro do campo da sociolinguística
variacionista, o autor destaca Willian Labov como o nome mais conhecido da área.
Segundo Alkimim (2012), tanto o termo “sociolinguística”, quanto o nome
de Labov, surgiram em um evento científico (os congressos que conhecemos
hoje), na Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA), em 1964. Foi neste
acontecimento científico que participaram vários estudiosos que, posteriormente,
constituíram-se em referências clássicas para os estudos que refletem a relação
entre língua e sociedade.
56
Reforçando a definição, sabemos que a sociolinguística é uma ramificação

UNICESUMAR
científica (subgrupo) pertencente à família da linguística, que analisa a língua em
uso por seus falantes inseridos na sociedade, ou seja, nas diversas relações coti-
dianas que faz dela o objeto de excelência, o “carro-chefe” de tais relações. Diante
da escassez de tempo e para que você tire o máximo de proveito desse momento
do curso, é necessário compreendermos, agora, que a língua é pensada pelos
linguistas a partir de seus projetos de pesquisa e que, portanto, apresenta-se para
a comunidade acadêmica com definições e aplicações multifacetadas, conforme
a filiação teórica de cada pesquisador.
Nesse caso, lançamos mais um questionamento para você: como a sociolin-
guística define a língua?
Para o estruturalismo saussuriano, a língua é um sistema regido por ela mes-
ma. Para o gerativismo chomskyano, a língua está dentro da cabeça do falante,
enquanto um componente inato e, para a sociolinguística, nos apropriamos de
Bagno (2007) para tentar desmistificar a ilusão da língua homogênea e de que
ela já está pronta e acabada. Segundo o autor, para as instituições (inclusive a
educacional) “[...] só merece o nome de língua um conjunto muito particular
de pronúncias, de palavras e de regras gramaticais que foram cuidadosamente
selecionadas [...] de norma-padrão, isto é, o modelo de língua ‘certa’, de ‘bem falar’
[...]” (BAGNO, 2007, p. 35).
A crítica do autor provoca um retorno histórico à cultura grega do século III
a.C., especificamente sobre a gramática normativa/tradicional, pois


Como a língua grega tinha se tornado o idioma internacional dentro
do grande império formado pelas conquistas de Alexandre, surgiu a
necessidade de normatizar essa língua, ou seja, de criar um padrão
uniforme e homogêneo que se erguesse acima das diferenças regio-
nais e sociais para se transformar num instrumento de unificação
política e cultural (BAGNO, 2007, p. 63).

O autor defende que a gramática tradicional merece ser estudada e, portanto, deve
continuar sendo refletida na escola, enquanto patrimônio cultural do ocidente e
sem a visão cega e única de que ela é a única teoria linguística válida. Fato que nos
faz retomar Orlandi (2009) e o seu ponto de vista de que há outras maneiras de
compreender a língua, para além de uma condição imaginária imposta que a ca-
racteriza como a língua que os analistas fixam em fórmulas, objeto-ficção, normas e
57
coerções. A crítica da autora a esse modelo de língua fixa e engessada é interpretada
UNIDADE 2

como ideal, lógica, universal, estável, regrada e sob o controle de especialistas.


A pesquisadora afirma que não temos controle sobre a língua que falamos e
ela não tem a unidade que imaginamos, ou seja, ela “[...] não é clara e distinta, não
tem os limites nos quais nos asseguramos, [...] ela é profundidade e movimento
contínuo” (ORLANDI, 2009, p. 18). Mediante essa posição crítica, a autora não
trabalha com a língua gramatical, mas com a língua em funcionamento, ou seja,
tal como ela se constitui na sociedade brasileira. Nesse sentido, desconsidera a
língua imaginária e considera a língua fluida, definindo-a como “[...] a língua
movimento, mudança contínua, a que não poder ser contida em arcabouços e
fórmulas, não se deixa imobilizar, a que vai além das normas. [...] a que não tem
limites” (ORLANDI, 2009, p. 18).
As reflexões supracitadas nos fornecem pistas para retomar a Bagno (2009)
para afirmar que toda língua varia e muda com o tempo. Caso contrário, esta-
ríamos falando e escrevendo como Pedro Álvares Cabral e sua tripulação, que
fizeram parte do projeto colonizador, no século XVI. É nesse aspecto que consi-
dera a língua como em processo de mutação contínua, que os sociolinguistas se
concentram e nos fazem compreender que, para a sociolinguística, a língua vai
além da norma-padrão que, tradicionalmente, a concebe como produto homo-
gêneo e “[...] um jogo de armar em que todas as peças se encaixam perfeitamente
umas nas outras, sem faltar nenhuma” (BAGNO, 2007, p. 36).
Enfim, após estas reflexões, podemos definir que a língua para a sociolinguística é


[...] intrinsecamente heterogênea, múltipla, variável, instável e está
sempre em desconstrução e em reconstrução. Ao contrário de um
produto pronto e acabado, de um monumento histórico e feito de
pedra e cimento, a língua é um processo, um fazer-se permanente e
nunca concluído (BAGNO, 2007, p. 36).

Seguindo as reflexões do autor, podemos afirmar que a língua, nesse campo de


saber linguístico, é instável e mutante e, como um rio, nunca para de correr e agi-
tar, ou seja, ela extravasa/transborda as gramáticas e os dicionários e se assemelha
a nós seres tão humanos “[...] heterogêneos, diversificados, instáveis, sujeitos a
conflitos e a transformações [...]” (BAGNO, 2007, p. 37).

58
A partir dessas informações, vale a pena esquecer o mito da língua única, pois

UNICESUMAR
fica impensável refletir sobre ela como algo estável e homogêneo. Essa caracterís-
tica nos direciona para a tentativa de uma luta permanente sobre a implantação
de uma reflexão também permanente sobre o preconceito linguístico e suas con-
sequências sociais. Vamos pensar um pouco sobre essa questão?

2
PRECONCEITO
LINGUÍSTICO?
isso existe?

A leitura realizada no item anterior permitiu a abertura de uma reflexão sobre


uma concepção de língua que ultrapassa o mito da homogeneidade e a ficção de
um modelo padrão único, falado por todas as pessoas, independentemente, da
região onde mora, sua faixa etária, profissão, gênero, nível cultural, intelectual e
socioeconômico. Em relação a tantos conceitos previamente concebidos de forma
apressada e generalizada sobre algumas temáticas, às vezes nos tornamos intole-
rantes, sem um mínimo de reflexão crítica, sobre temas relacionados à sexuali-
dade, diversidade étnica, classe econômica, nacionalidade, nível de escolaridade,
torcedores de um time de futebol específico, profissionais de determinadas áreas,
moradores de algumas regiões brasileiras ou de um bairro da nossa cidade etc.
59
Diante de tantas opiniões e sentimentos hostis, ou seja, diante de tanto pre-
UNIDADE 2

conceitos, você já parou para pensar sobre o tema “preconceito linguístico”? Se


não pensou ainda, talvez seja porque não havia encontrado um espaço fértil para
apresentar esta temática e o curso de Letras, por meio de sua malha curricular e
seu corpo docente, tem o dever de promover uma discussão com estudantes que
se propuseram a fazer da língua sua possível ferramenta de trabalho.
Algumas reflexões para você, enquanto professor(a):
a) Que língua(s) vou “ensinar”?
b) Quem são meus alunos/falantes e a que comunidade linguística pertencem?
c) Vou atuar onde: escola pública, privada, do centro, da periferia?
d) Na minha escola somente será considerado como “estudante perfeito”
quem falar e escrever de acordo com o modelo idealizado, “certo” e pres-
crito pela gramática normativa tradicional?
e) Você e mais uma elite intelectual, econômica e cultural falam/escrevem
em conformidade aos preceitos desta gramática?
f) Que lugar ocupam, em nossa sociedade, os outros falantes e as outras gramáticas?

Não por acaso, tais reflexões encontram resistência para serem debatidas, pois
antes de iniciar, já são rejeitadas como tema motivador da continuação dos caos
linguístico, jogo do vale tudo e incentivo ao “erro”, sob autorização dos marginais
da língua (os subversivos linguistas). A partir de tais questionamentos, temos sub-
sídios para responder à pergunta “o que é preconceito linguístico?” por meio da
definição registrada em um dicionário da língua portuguesa. Segundo o registro
do Dicionário Houaiss, preconceito linguístico é:


Qualquer crença sem fundamento científico acerca das línguas e
de seus usuários, como, p. ex., a crença de que existem línguas de-
senvolvidas e línguas primitivas, ou de que só a língua das classes
cultas possui gramática, ou de que os povos indígenas da África e
da América não possuem línguas, apenas dialetos. (HOUAISS apud
BAGNO, 2009, p. 16).

60
Tais crenças sem fundamentos científicos não devem, segundo Bagno (2009), ser

UNICESUMAR
direcionadas à sociolinguística e aos seus pesquisadores como defensores dos
seguintes argumentos:
a) A língua pode ser falada e escrita de qualquer jeito, como se fosse uma
arena de vale-tudo.
b) Interpretação da tradição normativa como se fosse algo inútil e sem fun-
damento histórico e social.
c) O uso de uma linguagem popular deve ser utilizado em todas as instâncias
de interação social falada ou escrita.
d) Que as classes desfavorecidas não precisam ter acesso à variedade culta e
de prestígio do português brasileiro contemporâneo.

Além de tais afirmações, Bagno (2013a) recomenda também a se desfazer dos


seguintes mitos concebidos por crenças do senso comum:

A) O PORTUGUÊS DO D) FALANTE SEM


BRASIL É UMA LÍNGUA INSTRUÇÃO FALA
HOMOGÊNEA; TUDO “ERRADO”;

B) BRASILEIRO NÃO E) SOMENTE EXISTE


SABE FALAR E ESCREVER SENSO COMUM UM JEITO “CERTO”
SUA LÍNGUA; DE FALAR;

C) PORTUGUÊS É F) É PRECISO SABER GRAMÁTICA


PARA FALAR E ESCREVER BEM E
UMA LÍNGUA MUITO
DOMINAR A NORMA-PADRÃO
DIFÍCIL; PARA ASCENDER SOCIALMENTE.

Figura 1 - Senso comum / Fonte: adaptada de Bagno (2013a).

Apropriamos de Bortoni-Ricardo (2005) para questionar sobre o papel da escola


diante de tantos dilemas em uma nação de valor cultural (e linguístico) oriundos
de uma herança colonial consolidada há mais de cinco séculos e que reforça o
nosso papel, enquanto mediadores do conhecimento da língua, em questionar,
desmistificar, relativizar os efeitos em usar a língua para manter a desigualdade
social. Muitas coisas são possíveis de serem feitas, menos negar que os grupos
sociais também são estratificados pelo uso que fazem da sua língua materna.

61
Uma questão importante: a escola é (e deve ser) norteada para ensinar a lín-
UNIDADE 2

gua dominante e, segundo Bortoni-Ricardo (2005), se a padronização da língua


é impositiva (nas entrevistas de emprego, nos trabalhos acadêmicos, nas partici-
pações em eventos sociais, nos vestibulares e concursos públicos), não deixa de
ser também necessária, pois ela (a língua)


[...] está na base de todo estado moderno, independentemente de re-
gime político, na formação do seu aparato institucional burocrático,
bem como no desenvolvimento do acervo tecnológico e científico.
Pesquisas na área de planejamento linguístico mostram que existe
uma correlação positiva entre o grau de padronização linguística
de um país e seu estágio de modernização. O problema não parece
estar, pois na existência de um código padrão, mas no acesso restrito
que grandes segmentos da população têm a ele. (BORTONI-RI-
CARDO, 2005, p. 14-15).

A autora reforça suas reflexões, abordando a situação brasileira como um país em


que o projeto político pedagógico do ensino da língua culta, destinada a grande
parcela da população — que tem como língua materna as variedades populares
adquiridas pela convivência no lar, na vizinhança e na própria arena escolar —,
apresenta-se sob os preceitos de, ao menos, duas consequências desastrosas: “[...]
não respeita os antecedentes culturais e linguísticos do educando, o que contribui
para desenvolver nele um sentimento de insegurança, nem lhe é ensinada de
forma eficiente a língua padrão” (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 15).
Você deve estar se perguntando: “Então, como fica a escola, representada por seu
time de docentes da Língua Portuguesa Brasileira? Que conhecimento linguístico
– que língua(s) – deve ser apresentado aos alunos que chegam à escola falando (e
muito bem) sua língua materna (considerando alunos do Ensino Fundamental I, II
e o Ensino Médio)? A autora salienta que a escola não pode ignorar as diferenças so-
ciolinguísticas: tanto o corpo docente quanto os alunos devem estar conscientiza-
dos sobre duas (ou mais ) maneiras de dizer a mesma coisa e as formas alternativas
utilizadas na interação dos falantes possuem propósitos comunicativos distintos.
Se você for trilhar o caminho da docência, é necessário que se conscientize (e,
sobretudo, tenha formação teórica para aplicar) a temática da variação linguística,
consciente de que há variações que conferem prestígio ao falante, aumentando

62
sua credibilidade e seu poder, mas há, também, as variações que contribuem para

UNICESUMAR
a propagação da imagem negativa do falante, diminuindo, consideravelmente,
suas oportunidades. Desse modo, cabe ao que está na condição de mediador do
conhecimento (o/a professor/a) respeitar (e por que não valorizar?) suas pecu-
liaridades linguísticas e culturais e aproveitar essa grande oportunidade, fazendo
cumprir (pela metodologia pedagógica) o direito inalienável que esse/a aluno/a
tem em aprender as variações consideradas cultas e de prestígio, logo, capazes de
auxiliar na abertura estreita da porta de acesso a uma possível ascensão social.
Para finalizar esta temática, lançamos mais um questionamento: na condição
de professor(a), como você irá mediar o acesso à variação culta, sem ignorar o
conhecimento linguístico e cultural que o aluno traz, quando chega à escola?
Como vai promover o acesso desse aluno à língua culta de prestígio, sem o ranço
do preconceito linguístico?
Vamos responder com uma situação prática, a partir dos pronomes pessoais.
Um tema que faz parte de uma das dez classes gramaticais apresentadas nas
gramáticas brasileiras:

PESSOAS DO DISCURSO PRONOMES RETOS: FUNÇÃO SUBJETIVA

1ª pessoa do singular eu

2ª pessoa do singular tu

3ª pessoa do singular ele

1ª pessoa do plural nós

2ª pessoa do plural vós

3ª pessoa do plural eles

Quadro 1 - Pronomes Pessoais / Fonte: adaptado de Cegalla (2008).

Os pronomes pessoais dispostos foram registrados conforme as normativas da


língua portuguesa defendida pela gramática tradicional. Vamos observar a te-
mática (pronomes pessoais) a partir do posicionamento da Língua Portuguesa
Brasileira em duas instância: a forma e a informal.

63
PORTUGUÊS BRASILEIRO FORMAL PORTUGUÊS BRASILEIRO INFORMAL
UNIDADE 2

1ª pessoa singular: eu eu, a gente

2ª pessoa singular: tu, você, o senhor, a


você, ocê, cê tu
senhora.

3ª pessoa singular: ele, ela ele, ela

1ª pessoa plural: nós a gente

2ª pessoa do plural: vós (uso restrito), os


vocês, ocês, cês,
senhores, as senhoras, vocês.

3ª pessoa plural: eles, elas eles, elas

Quadro 2 - Pronomes pessoais em uso no Português Brasileiro / Fonte: adaptado de Castilho


e Elias (2015).

Você observou que há variações em relação aos pronomes pessoais e percebeu


que elas estão sendo, regularmente, usadas pelos falantes. Agora veja: a mesma
temática apresentada por outro autor, que elabora uma diferenciação entre a
norma padrão e a culta.

NORMA PADRÃO NORMA CULTA

Eu falo Eu falo

Tu falas Tu falas/ tu fala/ você fala

Ele fala Ele fala

Nós falamos Nós falamos/ a gente fala

Vós falais Vocês falam

Eles falam Eles falam

Quadro 3 - Pronomes pessoais entre a conjugação verbal proposta pela norma-padrão e a


que vigora nas variedades urbanas de prestígio / Fonte: adaptado Bagno (2013b).

Analisando a temática dos pronomes pessoais a partir de três obras, é possível


perceber três diferentes abordagens pautadas no posicionamento científico de
cada teórico, ou seja, no Quadro 1, o autor apresenta o tema considerando a
sua linha de pesquisa tradicional, sem relatar as variações e as mudanças que
ocorreram ao longo dos anos. O objetivo aqui não é tecer julgamentos a partir

64
da dicotomia do “certo” e do “errado”, mas apresentar outras vertentes que consi-

UNICESUMAR
deram a língua a partir de um olhar científico heterogêneo.
No segundo quadro, os autores consideram os falantes do português brasilei-
ro formal e informal, ou seja, apresentam possibilidades contemporâneas e suas
variações e mudanças que vêm ocorrendo ao longo do tempo e que está sendo
usada pelos falantes.
No terceiro quadro, o autor, para abordar o tema, apresenta a norma tradi-
cional padrão (como no primeiro quadro) e as variações e mudanças que estão
ocorrendo e já são consideradas como norma culta, pelo fato de serem usadas
por um grupo determinado de falantes pertencentes ao espaço urbano, e a uma
classe intelectual, cultural e social específica.
Além do que registramos, em relação aos pronomes pessoais, é muito comum
ouvirmos a variação “nós/nóis, eles/elas fala” por determinados falantes que per-
tencem a comunidades pertencentes a classes econômicas, cultural e intelectual
consideradas mais baixas e, por isso, o preconceito em relação a essas pessoas
atinge também o campo linguístico. Por isso, precisamos atuar, no sentido de con-
tribuir para a erradicação desse preconceito; afinal, o que é considerado “errado e
feio” hoje poderá ser “certo e bonito” amanhã. Não podemos perder de vista que
a língua jamais poderá ser considerada como algo pronto e acabado.
Tais questões ampliam a nossa capacidade de ir além do que está posto e
cristalizado, mas, para isso, precisamos ter acesso a outras temáticas do campo da
sociolinguística variacionista, como saber a definição que diferencia os conceitos
de variação e mudança linguísticas, bem como sua aplicabilidade prática.

explorando Ideias

No final de 2018, o servidor de serviços gerais, Lindomar Lourenço, da Prefeitura de Jaciara


(MT), fez uso de sua profissão para registrar seu desejo aos munícipes, ao aparar a grama
de um canteiro da cidade, desenhando, com a própria máquina, a frase “felis natal”. A inten-
ção ficou em segundo plano, diante do compartilhamento da sua escrita, nas redes sociais
seguidas de frases de zombaria, pois os risos irrefletidos ocorreram porque na vertente
tradicional e culta contemporânea, se escreve com “z” (feliz). Mas se fizermos uma análise
linguística, perceberemos que Lindomar transmitiu o que está “na boca do povo” e registrou
a palavra de acordo com o som oralizado de “s”, conforme se escreve “mês”, “lápis”. As mar-
cas de oralidade na escrita significa que a língua falada não é ilógica e, antes de considerar
“erro”, é preciso pensar sobre a condição social de Lindomar. Ele teve oportunidade de
acesso aos bens culturais e intelectuais oferecidos pelas instituições de ensino?
Fonte: adaptado de Corrêa (2018, on-line)5.
65
3
VARIAÇÃO
UNIDADE 2

E MUDANÇA
LINGUÍSTICA:
conceitos elementares

Até o momento, tecemos algumas reflexões sobre a concepção de língua e precon-


ceito linguístico e, agora, precisamos avançar pela teoria, para compreendermos o
fenômeno da língua falada por pessoas que vivem em sociedade e, portanto, suas
relações são sempre marcadas por situações diversificadas, instáveis e conflituosas.
Nessa conjuntura, a língua se faz presente e, como diz Bagno (2007), é impensável
concebê-la como algo permanente, estável e homogênea. Como diz o autor


Justamente pelo caráter heterogêneo, instável e mutante das línguas
humanas, a grande maioria das pessoas acha muito mais confortável e
tranquilizador pensar na língua como algo que já terminou de se cons-
truir, como uma ponte firme e sólida, por onde a gente pode caminhar
sem medo de cair e de se afogar na correnteza vertiginosa que corre lá
embaixo. Mas essa ponte não é feita de concreto, é feita de abstrato…
O real estado da língua é o das águas de um rio, que nunca param de
correr e de se agitar, que sobem e descem conforme o regime das chuvas,
sujeitas a se precipitar por cachoeiras, a se estreitar entre as montanhas
e a se alargar pelas planícies... (BAGNO, 2007, p. 36).

66
Ressignificamos o conceito de língua e já sabemos que pouco adianta tentar re-

UNICESUMAR
freá-la artificialmente como uma barragem de uma represa e, no dizer do autor,
como se os falantes não fossem pessoas com diferentes faixas etárias, múltiplas
origens étnicas e classes sociais, graus de escolaridade, religiões, profissões, opi-
niões políticas, roupas de cores e modelos diferentes. Seria possível toda essa
gente falar a sua língua materna sempre do mesmo modo? Sua experiência de
falante sabe que não e nos autoriza a refletir sobre a defesa irrefletida da norma-
-padrão que precisa ser levada em conta, enquanto modelo criado (veremos um
pouco mais sobre a questão da norma, em um item específico).
Para compreendermos o fenômeno da língua em seu estado permanente de
fluidez e instabilidade, apresentaremos alguns conceitos básicos, como variação,
variante e mudança linguísticas. Vamos lá?
A variação linguística, como já sabemos, considera a língua como algo hetero-
gêneo, que está à disposição do falante e que, inspirado em Bagno (2007), ocorre
em todos os níveis da língua, tais como:

a) Nível de variação fonético-fonológico: o famoso “R” retroflexo, por-


que se pronúncia com a língua voltada para trás (o mesmo R “caipira”
considerado “feio” e do inglês, considera do elegante). Como exemplo
desse nível, pense sobre as várias pronúncias do referido “R” na palavra
“porta”, em português brasileiro (a porta do carioca, do paranaense, do
mineiro, enfim…).
b) Nível de variação morfológica: ocorre nas formações das palavras,
por exemplo: na redução do morfema derivacional “inho” para “in”
(“menininho” para “meninin”; “beijinho” para “bejin”).
c) Nível de variação sintática: ao estudar a disposição das palavras e a
sua função nas frases, encontramos maneiras diferentes de uso, mas
com o mesmo sentido. Veja o seguinte exemplo: Essa estória é para
eu/mim contar).
d) Nível de variação semântica: essa ciência linguística estuda os signifi-
cados das palavras. Exemplo: manga (fruta) e manga (parte de vestuá-
rio); pé (parte do corpo) e pé (parte que serve para sustentar um móvel).

67
UNIDADE 2

e) Nível de variação lexical: são variações no campo das palavras que se


referem sempre à mesma coisa: Exemplo: mijo, xixi, urina.
f) Nível de variação estilístico-pragmática: são variações utilizadas
pelos falantes em diferentes situações de interação social, conforme
o grau de formalidade e intimidade entre os interlocutores. Exemplo:
“sentem-se”; “por favor”; e “vamo sentano aí, galera”.

Diante da apresentação dos referidos níveis, é importante alertar que as variações,


apesar da sua heterogeneidade, são ordenadas, ou seja, são estruturadas e organi-
zadas (não ocorrem por acaso). Vamos exemplificar e explicar o fenômeno, por
meio de um caso de variação de concordância nominal:
a) Aquelas casinhas amarelinhas.
b) Aquelas casinha amarelinha.
c) Aquela casinhas amarelinha (*).
d) Aquela casinha amarelinhas (*).

A frase “a” é usada em situações de escrita por pessoas que tiveram acesso a uma
formação escolar, projeto pedagógico e professores competentes no processo de
alfabetização e letramento, mas, segundo Bagno (2007), geralmente, a frase “b” é a
mais usual pelos falantes do português brasileiro, inclusive os mais escolarizados,
em situações de fala espontânea e que obedecem à regularidade de que somente
o primeiro elemento vai para o plural (o pronome aquelas), pois somente essa
regularidade é capaz de fazer o ouvinte entender que se trata de mais de uma
casinha. Estamos diante de um fenômeno de economia linguística, heterogenei-
dade ordenada e de coerência funcional que proporcionam a interação social e
cultural entre os falantes e vai além da dicotomia simplificada do “certo” e “errado”.
Continuando a análise, as frases “c” e “d” não ocorrem (quase impossível ocor-
rer e, por isso, são marcadas por um asterisco, para identificar uma construção
improvável ou impossível). Tal fenômeno, segundo Possenti (2011), significa que
há outras maneiras de dizer a mesma coisa, mas que tais maneiras seguem uma
regularidade constante, amparada em uma uniformidade que rege a construção
de tais estruturas.

68
Além dos aspectos que já citamos para explicar o fenômeno da variação lin-

UNICESUMAR
guística, é importante registrar que, para se fazer um trabalho científico compe-
tente sobre esta temática, é preciso considerar fatores extralinguísticos elencado
por Bagno (2007) e com algumas adaptações desenvolvidas por nós, como:
a) Origem geográfica: a língua varia em diferentes regiões/estados de um
mesmo país. Exemplo: mandioca no Paraná, aipim no Nordeste.
b) Status socioeconômico, cultural e escolar: pessoas com condição fi-
nanceira maior, nível escolar mais alto e de acesso facilitado aos bens cul-
turais tendem a falar de modo diferente aos que possuem renda financeira
menor, nível escolar mais baixo e de pouco (ou nenhum) acesso aos bens
culturais. É comum ouvir de falantes de determinados segmentos sociais
a palavra “probrema, praca etc.”, por exemplo.
c) Idade e sexo: geralmente, adolescentes não falam de modo igual aos seus
pais, e, entre homens e mulheres, há usos diferenciados de recursos lin-
guísticos.
d) Mercado de trabalho: em situações laborais, as profissões determinam
usos linguísticos. Ex: advogado: “o réu deve permanecer em privação de
liberdade”. O policial: “o bandido vai ficar na cadeia”.
e) Redes sociais: o comportamento linguístico dos internautas no Facebook,
Whatsapp, Instagram, Twitter, e-mail, e muitos outros recursos disponí-
veis na rede, também são determinados pelo grau de formalidade, grupo
a que pertence etc. Vamos exemplificar com o pronome de tratamento
“você” que, conforme a situação, será registrado como “você” para situa-
ções formais, “vc”, “c”, “cê” em situações de intimidade ou informalidade.

Com as discussões elencadas até aqui, você percebeu que não existe falante de es-
tilo único e que apresentamos comportamentos linguísticos, conforme as exigên-
cias comunicativas de cada momento. Retomamos Bagno (2007) para confirmar
que a noção de heterogeneidade da língua como máxima da sociolinguística e
como elemento direcionador para compreender que a variação ocorre de diferen-
tes maneiras. Vamos compreender na prática? Tomamos como exemplo a variável
[r] do português brasileiro em final de sílaba de palavras como cantar, amor, fazer.
Esse [r] pode ser: a) vibrante simples; b) retroflexo (r “caipira”); c) vazio (cantá,
amô, fazê, etc.). Dentro do campo de variação linguística, as diferentes maneiras
de uma palavra variar podem ser caracterizadas como variantes, tal como ocorreu
com a consoante “r”.
69
Dentro dessas concepções, há ainda a questão da mudança linguística que
UNIDADE 2

Bagno (2007) explica, mediante a sugestão de uma comparação de textos escritos


no português da época do “descobrimento” do Brasil, conforme a descrição da
fauna e da flora brasileira, elaborada por volta de 1572, pelo português Pero de
Magalhães Gândavo, registrada abaixo:

Huma fruita se dá nesta terra do Brasil muito sabrosa, e mais prezada de


quantas ha. Cria-se numa planta humilde junto do chão, a qual tem humas
pencas como cardo, a fruita della nasce como alcachofras e parecem natu-
ralmente pinhas, e são do mesmo tamanho, chamão-lhes Ananazes, e depois
de maduros tém hum cheiro muito excellente, colhem-nos como são de vez,
e com huma faca tirão-lhes aquella casca grossa e fazem-nos em talhadas e
desta maneira se comem, excedem no gosto a quantas fruitas ha neste Reino,
e fazem todos tanto por esta fruita, que mandão plantar roças della, como
de cardaes: a este nosso Reino trazem muitos destes ananazes em conserva.

Certamente, você conseguiu ler, mas percebeu que muitas palavras mudaram
o seu registro gráfico. Vamos nos apropriar da palavra “fruita” (hoje fruta) para
compreender o fenômeno da mudança linguística. No século XVI, era “fruita” a
palavra de prestígio pronunciada e escrita por pessoas letradas e, em um deter-
minado momento, a variante “fruta” passou a concorrer com “fruita”, invertendo
a posição, ou seja, hoje, embora ainda há falantes que dizem “fruita”, o modo de
prestígio considerado pela norma culta é “fruta”. Aqui ocorreu um fenômeno de
mudança linguística.

70
Vamos para mais um exemplo: veja como ocorre a variação do verbo sentir, em

UNICESUMAR
1ª pessoa do singular, do presente do indicativo, chegando até a mudança linguística:

SENÇO SENÇO SINTO SINTO


X X
sinto senço

1 2 3 4

Quadro 4 - Variação do verbo sentir / Fonte: Bagno (2007, p. 170).

Agora veja a explicação do fenômeno:


No primeiro momento, a forma SENÇO era a única que existia na
língua. No segundo momento, aparece a forma SINTO, provavel-
mente usada por grupos restritos da população, e que começa a
concorrer como SENÇO. No terceiro momento, o uso cada vez mais
amplo da forma nova SINTO transformou SENÇO em forma pou-
co prestigiada e de uso cada vez mais reduzido. Por fim, no último
momento, a forma SINTO aparece como única possibilidade de
expressar a 1ª pessoa do singular do presente do indicativo do verbo
SENTIR. A forma SINTO está imperando há muitos séculos, mas
ela também pode vir a ser desbancada, no futuro, por alguma nova
concorrente… (BAGNO, 2007, p. 170).

Para encerrar este item, registramos que, apesar da obviedade e da resistência em


concordar, é preciso aceitar que toda língua muda com o tempo.

71
4
NORMA PADRÃO,
UNIDADE 2

CULTA E CURTA:
onde está a regra?

Nosso percurso até aqui possibilitou a abertura de um leque fechado em algumas


conceituações cristalizadas sobre uma língua que se concebe por meio de uma via
de mão única, ou seja, a partir de um olhar amparado por uma única gramática que a
defendia sob o prisma da dicotomia do “certo” e do “errado”. Avançamos, pois descobri-
mos a heterogeneidade da língua como algo dela mesma e dos seus falantes inseridos
em uma sociedade que movimenta o tempo todo. Tais fatos justificam a necessidade
de um avanço sobre termos bastantes usuais e poucos refletidos, como a questão da
regra da língua e suas políticas normativas. Vamos conhecer esses conceitos?
É comum tratarmos tais termos como se fossem únicos e, certamente, tudo vai
depender da posição teórica de cada autor. Para nós, que estamos ainda tateando
a teoria, é importante pensar em tais temas separados (mas não estanques), para
melhor compreensão e aplicação.
Em relação à norma refletida fora do campo etimológico de concepção de
normal e normalidade, mas pela via da linguística, apropriamo-nos de Faraco
(2008) para afirmar que, em uma comunidade linguística, há várias normas ca-
racterizadas pela própria heterogeneidade estabelecida nas relações sociais por
meio de experiências coletivas (trabalho, sindicato, escola, lazer, igreja etc.). Aqui,
podemos considerar norma como variação e, consequentemente, pela certeza de
que não há norma pura e muito menos estática. Vamos compreender os aspectos
norma padrão, culta e curta.
72
A norma padrão, segundo Faraco (2008), é um conceito que surgiu na Eu-

UNICESUMAR
ropa, no final do século XV, mediante a necessidade de se criar uma política de
unidade linguística centralizada nos novos Estados que surgiam, diante daquele
contexto de expansão urbana, práticas mercantis e circulação de pessoas. Uma
conjuntura que exigia um


[...] padrão de língua para os Estados Centrais e modernos, de
modo a terem eles um instrumento de política linguística capaz de
contribuir para atenuar a diversidade linguística regional e social
herdada da experiência feudal. A esse instrumento damos hoje o
nome de norma-padrão (FARACO, 2008, p. 73).

Por meio das palavras do autor, retomamos aquele contexto histórico para com-
preender que a norma padrão se aproxima da norma culta, ou seja, uma variedade
que era praticada pela aristocracia da época (os barões doutos) transcrita em
gramáticas e dicionários considerados como instrumento regulador de fixação
de um padrão regulador (normatizador) do comportamento dos falantes para
alcançar uma língua de Estado.
A norma culta se define como uma variedade (lembre-se: a língua é sempre
heterogênea e se constitui por um conjunto de variedades) que


[...] designa o conjunto de fenômenos linguísticos que ocorrem
habitualmente no uso dos falantes letrados em situações mais mo-
nitoradas de fala e escrita. Esse vínculo com os usos monitorados e
com as práticas da cultura escrita leva os falantes a lhe atribuir um
valor social positivo, a recobri-la com uma capa de prestígio social
(FARACO, 2008, p. 71).

Em relação a esta norma, é preciso salientar que ela é apenas um desse conjunto
de variedades que possui funções sociais e culturais específicas, pois o seu pres-
tígio não decorre das propriedades gramaticais e muito menos de propriedades
intrínsecas da língua propriamente dita, mas se efetiva dentro de um campo ava-
liativo considerado positivo, pelo fato de pertencer aos grupos de prestígio social.

73
Norma curta é discutida por Faraco (2008) a partir da falta de competência
UNIDADE 2

em consultar os bons instrumentos linguísticos (gramáticas e dicionários) pela


própria escola, consultórios gramaticais da mídia, revisores de editoras, manuais de
redação do grandes jornais, cursinhos pré-vestibulares, elaboradores de questões
para concursos públicos etc. A busca pelo cumprimento da norma de uma forma
estreita é definida pelo autor como norma curta considerada como [...] conjunto
de preceitos dogmáticos que não encontram respaldo nem nos fatos, nem nos bons
instrumentos normativos, mas que sustentam uma nociva cultura do erro e têm
impedido um estudo adequado da nossa norma culta [...] (FARACO, 2008, p. 92).
Como nos diz o autor, tais preceitos dogmáticos já não encontram respaldo
nos comentários dos bons gramáticos brasileiros que, por conta disso, são jul-
gados como defensores do anarquismo linguístico, do jogo do vale-tudo e con-
trários ao ensino da língua. No entanto, bons dicionaristas e ótimos gramáticos
atuais têm assumido posturas, relativamente flexíveis e equilibradas, pois, pelo
fato de serem estudiosos sistemáticos da língua, sabem (e muito bem!) que ela
é mutante e heterogênea. Nesse caso, eles não reduzem a língua a tais dogmas,
recomendando tendências de usos já consolidadas por grupos de falantes deter-
minados, além de conscientizar que o projeto padronizador linguístico do século
XIX é arcaico e, portanto, curto e longe (muito longe) da nossa norma culta real.
Qualificar os usos modernos como “erro” é ignorar a inovação do uso da língua
entre falantes letrados.
Como exemplo de norma curta seria ignorar, ou considerar um “erro” que o
verbo assistir seja somente transitivo indireto. Veja uma análise de norma curta:


[...] no sentido de estar presente, presenciar, este verbo é original-
mente transitivo indireto: assistir a um jogo, a um filme, a um
ensaio. [...]. No entanto, [...] — por pressão semântica de seus si-
nônimos ver, presenciar, observar — se tornou transitivo direto no
Brasil. Primeiro na linguagem coloquial e, desde meados do século
passado, já corrente na escrita literária. Por isso, [...] não faz sentido
condenar essa inovação (FARACO, 2008, p. 99).

74
O autor nos convida a assumir posturas mais abertas e fundamentadas, diante

UNICESUMAR
dos fatos da língua, sem apego ao purismo artificial exacerbado e materializado
em porta-vozes da norma curta, pois em matéria de língua, não existe autoridade
suprema e “assistir o filme” já é uma realidade linguística entre os falantes cultos.
A norma é algo que oscila e, apesar da defesa de uma norma padrão, ela
acompanha a evolução história e social, a regra da língua é outro componente
importante que precisa ser discutido. Para Bagno (2007) nos apresenta a regra de
uma forma diferente daquela que aparece nas gramáticas normativas tradicionais
que a concebe como uma espécie de lei que dita e impõe o que é “certo” e condena
o que é “errado”. Dentro da concepção da científica da linguística


[...] regra é tudo aquilo que revela uma regularidade [...]. Quando
conseguimos detectar e descrever alguma coisa que acontece na
língua com regularidade, com previsibilidade, segundo uma lógica
linguística coerente, fazemos essa descrição na forma de uma regra
[...] (BAGNO, 2007, p. 42)

Voltemos ao exemplo “aquelas casinha amarelinha”. A regra explicativa se justifica


no fato de que, praticamente, todos os brasileiros se utilizam desse fenômeno
linguístico típico do Português do Brasil, ou seja, somente o primeiro elemento
do sintagma é marcado pelo plural e todos os falantes e ouvintes sabem que se
trata de mais de uma casinha.
O autor ainda salienta que, no discurso do senso comum, é regular ouvir
que determinado uso é contra as regras ou desobedece às regras do português,
ou seja, o que está ocorrendo é um ato de desobediência a regras exclusivas e
excludentes que foram padronizadas e artificialmente consideradas “corretas”
pela tradição normativa.
O que apresentamos nesta aula evidencia que é impossível desrespeitar as
regras da língua, pois é simplesmente impossível falar sem obedecer às regras
da língua. Afinal, você leitor, falaria “amarelinhas casinhas aquelas” ou “casinhas
aquelas amarelinhas”?

75
5
VARIAÇÃO LINGUÍSTICA
UNIDADE 2

DO PORTUGUÊS
BRASILEIRO:
tipologias

Dada a amplitude da temática e a sua necessidade de inserção no projeto peda-


gógico de ensino de língua das escolas, os teóricos, com o intuito de didatizar a
temática, classificam as variações para facilitar a mediação do processo de ensino
e aprendizagem. Vamos conhecer os mais recorrentes e alertamos que tais classifi-
cações (tipologias) não são estanques e isoladas, ou seja, elas se inter-relacionam.
Veja as principais classificações da variação linguística apresentadas por Bag-
no (2007) e Guimarães (2012) e reflita sobre elas, a partir de situações vivenciadas
no seu cotidiano de falante.

a) Variação diatópica (geográfica ou regional): do grego topos (lugar),


essa variação refere-se aos diferentes modos de nomeação dos mes-
mos objetos (alimentos, móveis, animais etc.) das diferentes regiões do
Brasil, onde o falante nasceu ou reside. Ela ocorre no nível lexical (ex:
abóbora no Paraná, jerimum/macaxeira no nordeste); nível sintático
(ex: para mim fazer, ao invés de para eu fazer); nível fonológico (ex:
eliminação da semivogal “i” e “u” nos ditongos “ai”, “ei” e “ou”, especial-
mente, quando seguidos por “j”, “x” e “r”: bêjo, quêxo, manêro).

76
UNICESUMAR
b) Variação diastrática (social): do latim stratum (camada, estrato) essa
variação refere-se aos diferentes modos de falar das classes ou grupos
sociais, a partir de nível escolar, idade, gênero, profissão, poder aquisi-
tivo etc. (ex: voltemos às palavras “praca” e “probrema”, já citadas acima.
Aqui podemos considerar um fenômeno denominado rotacismo que
significa a troca da consoante “l” pelo “r” e que, geralmente, ocorre entre
falantes com pouca escolarização).
c) Variação diafásica (estilística, registro, formal ou informal): do
grego phásis (modo de falar) essa variação refere-se ao uso diferenciado
que cada falante faz da língua, conforme a situação de comunicação
que ele está inserido (ex: Fábio em situação formal/monitorada: “Quero
parabenizar todos vocês pelo esforço corporativo e o trabalho em con-
junto”. Fábio no happy hour, após mais um dia de trabalho: “Galera, va-
leu. Parabéns pra todo mundo, pela garra de cada um. Eita time bom!).
d) Variação diacrônica (histórica ou arcaica): do grego khrónos (tem-
po), essa variação registra as etapas da história de uma língua e suas
respectivas mudanças que acarretam no desuso de uma palavra por
diversos motivos. (ex: a palavra “fazenda”, hoje, significa grande pro-
priedade rural e, em Ministério da “Fazenda”, significa responsabili-
dade pela parte financeira do País). No entanto, a palavra, na época
da Revolução Industrial (séculos XVIII e XIX), significava “pano ou
tecido”, por ser a mercadoria produzida em larga escala. É uma palavra
contemporânea muita usada, mas como sinônimo de tecido é arcaica.

Reforçando que tais tipologias não são estanques e podem ser analisadas isolada-
mente ou em conjunto; o importante é que você consiga refletir sobre este tema,
considerando as questões sociais (e extremamente desiguais) da nossa sociedade
e saiba lidar nas suas relações interpessoais.

pensando juntos

O português brasileiro falado de um estado é mais bonito (chique) do que o de outros


estados? Enquanto linguistas, será que podemos considerar a variedade de uma região
mais recomendável, do que a de outras regiões?
77
CONSIDERAÇÕES FINAIS
UNIDADE 2

Prezados(as) discentes, chegamos ao final de mais uma unidade de estudo, que


nos inseriu em uma capacitação reflexiva para compreendermos o fenômeno
da língua pelo viés teórico da variação linguística. Agora, sabemos que o trato
científico da língua é um enfrentamento complexo, principalmente quando é
necessário debater sobre variedades como norma-padrão e culta em espaço com-
posto por linguistas, gramáticos, jornalistas, escritores, autoridades públicas e,
principalmente, gente como nós (eu e você), que estamos buscando compreender
a nossa ferramenta principal de formação e de trabalho.
Para fecharmos essa temática com sabedoria, precisamos, ao menos, de uma
porção mínima de conscientização sobre a forma como a nossa língua portuguesa
brasileira está sendo discutida, cientificamente, no espaço acadêmico. Apesar das
teorias linguísticas e sua obrigatoriedade, dentro da malha curricular dos Cursos
de Letras, nós que estamos no manejo diário da língua de um modo não mais
considerado como do senso comum, ainda não conseguimos atenuar questões
postas desde o século XIX e que ainda se sobrepõem no século XXI.
A imposição de alguns conceitos da norma-padrão tradicional já desconsi-
derados pelas gramáticas e dicionários de autores renomados que lutam diaria-
mente contra a maré da discriminação e da exclusão sociocultural e linguística
continua marcando presença na mídia, nas redes sociais e, principalmente, no lu-
gar que ela jamais deveria entrar, ou seja, na escola. Por isso, precisamos, enquanto
gente que pensa na (e sobre a) língua, romper o velho preconceito linguístico
que se renova a cada dia, através do respeito às variedades de cada falante e sua
comunidade de pertencimento. Eis o seu papel, enquanto possibilidade de uma
futura (ou já) atuação de professor mediador da sua língua materna.

78
na prática

1. Leia o excerto da poesia de Drummond, observe as palavras sublinhadas.

Antigamente, os pirralhos dobravam a língua diante dos pais, e se um se esquecia


de arear os dentes antes de cair nos braços de Morfeu, era capaz de entrar no cou-
ro. Não devia também se esquecer de lavar os pés sem tugir nem mugir. Nada de
bater na corcunda do padrinho, nem de debicar os mais velhos, pis levava tunda.
Ainda cedinho, aguava as plantas, ia ao corte e logo voltava aos penates. Não ficava
mangando na rua nem escapulia do mestre, mesmo que não entendesse patavina
da instrução moral e cívica. O verdadeiro smart calçava botina de botões para com-
parecer todo liró ao copo d’água, se bem que no convescote apenas lambiscasse,
para evitar flatos. Os bilontras é que eram um precipício, jogando com pau de dois
bicos, pelo que carecia muita cautela e caldo de galinha. O melhor era pôr as bar-
bas de molho diante de um treteiro de topete; depois de fintar e de engambelar
os coiós, e antes que se pusesse tudo em pratos limpos, ele abria o arco. O diacho
eram os filhos da Candinha: que somava a candongas acabava na rua da amargura,
lá encontrando, encafifada, muita gente na embira, que não tinha nem para matar
o bicho; por exemplo, o mão-de-defunto.

Disponível em: http://intervox.nce.ufrj.br/~jobis/carlos.htm. Acesso em: 28 maio 2020.

Significado das palavras sublinhadas


1) Arear os dentes = escovar os dentes
2) Mangando = zombando
3) Escapulia = fugia
4) Patavina = nada
5) Pôr as barbas de molho = ficar alerta

As referidas palavras por não fazerem parte do uso linguístico das comunidades
atuais de fala (exceto raras exceções) são consideradas como:

a) Variação diacrônica.
b) Variação diastrática.
c) Variação diafásica.
d) Variação diatópica.
e) Variação diamésica.

79
na prática

2. “Se a Sociolinguística tem um papel a desempenhar na educação linguística dos


cidadãos brasileiros, esse papel é de reconhecimento da heterogeneidade intrínseca
da sociedade brasileira e, portanto, da inescapável heterogeneidade da nossa rea-
lidade linguística. Um reconhecimento que não pode ficar na simples constatação,
mas que tem de incorporar também uma instância crítica e questionamento das
crenças linguísticas estabelecidas e, sobretudo, de militância na reivindicação do
direito que tem toda e qualquer pessoa com cidadania brasileira de falar e escrever
a(s) sua(s) língua(s) materna(s), do jeito que ela(s) existem hoje, no século XXI, e não
como quer uma ideologia linguística autoritária e excludente, imposta séculos atrás
por um potência colonial escravagista …” (BAGNO, 2007, p. 22). A partir desta citação,
leia e interprete as afirmações a seguir:

I - Para a sociolinguística, a língua é considerada homogênea, imutável e fixa, pois


ela não muda e se mantém igual à variação linguística do século XVI.
II - Para a sociolinguística, as comunidades linguísticas usam a língua e vão incor-
porando variações, de acordo com o momento histórico, ou seja, não falamos
mais do mesmo modo que os falantes do século XIX.
III - Para a sociolinguística, a língua é heterogênea e deixa-se fluir como as águas
de um rio que segue seu fluxo e não se deixa estancar como uma represa e vai,
por meio de seus falantes, desobedecendo às normas consideradas “corretas”,
registradas em séculos passados.
IV - Para a sociolinguística, a língua não é homogênea e, quando o autor aborda
o direito que os falantes possuem em falar e escrever suas línguas maternas,
significa que as comunidades de fala usufruem da capacidade variacional da
língua, durante suas relações interpessoais

Assinale a alternativa correta:

a) As afirmativas I e II estão corretas.


b) As afirmativas II, III e IV estão corretas.
c) Apenas I está correta.
d) As afirmativas III e IV estão corretas.
e) As afirmativas I, II, III e IV estão corretas.

80
na prática

3. Todo o percurso desta unidade desenvolveu reflexões acerca da sociolinguística e


sua especificidade sobre o fenômeno da variação linguística em diversas circunstân-
cias teóricas e científicas, que nos possibilitam a sair do senso comum e da predomi-
nância do pensamento do “erro”. Em relação às temáticas discutidas nesta unidade,
leia as afirmativas, considere se elas são verdadeiras (V) ou falsas (F):

( ) Falantes que usam palavras em desacordo com a norma-padrão como “pobre-


ma”, “praca”, “caxa” e “meninin” não são analisados pelos sociolinguistas, pois já
são excluídos pelo fato de falarem “errado”.
( ) A sociolinguística é uma ciência do campo de saber da linguística e sua principal
atribuição é refletir sobre a língua, considerada homogênea e fixa, falada por fa-
lantes pertencentes a uma classe economicamente e culturalmente privilegiada.
( ) Dentre as várias temáticas abordadas pela sociolinguística, o preconceito lin-
guístico é tema de excelência nos debates promovidos pelos intelectuais filiados
a esse campo de saber, pois, segundo eles, trata-se de uma crença sem funda-
mento e precisa ser, urgentemente, combatido.
( ) Dentre os vários níveis de variação linguística, podemos considerar os de nível
lexical, que se define com as palavras diferentes para designar o mesmo objeto (ex:
urina, xixi, mijo) e a variação semântica, que pensa o significado das palavras iguais
em contextos diferentes (ex: porca do parafuso e porca espécie de mamíferos).

Assinale a alternativa correta:

a) F, F, F, F.
b) V, V, V, V.
c) F, F, V, V.
d) V,V, F, F.
e) F, V, F, V.

81
na prática

4. As tipologias variacionais do Português Brasileiro é um recurso didático utilizado


para didatizar e simplificar o fenômeno da variação linguística que se apresenta para
educadores e educandos se conscientizarem da máxima da língua, enquanto algo
que é “[...] intrinsecamente heterogênea, múltipla, variável, instável e está sempre
em desconstrução e em reconstrução” (BAGNO, 2007, p. 36). Considerando a hete-
rogeneidade da língua, analise as situações:

I - No Paraná: mandioca, abóbora. No Nordeste: aipim e macaxeira.


II - Na festa: “galeraaaaaa, vamu festá a noite intera”. Na reunião: “boa noite a todos
os funcionários, hoje não vamos festar, mas tratar do projeto por inteiro”.
III - O neto para a avó: “vozinha vou dar um rolé na balada e volto somente amanhã”.
A avó para o neto: “cuidado com suas saídas. Essas festas são perigosas”.
IV - Relíquia: “vende-se um videocassete, marca JVC, inteligentt, marca modelo - VCR
plus HR-J726M”, por apenas R$ 55,00.

Assinale a alternativa correta:

a) I: diacrônica, II: diafásica, III: diastrática e IV: diatópica.


b) I: diatópica, II: diastrática, III: diafásica e IV: diacrônica.
c) I: diatópica, II: diafásica, III: diastrática e IV: diastrática.
d) I: diatópica, II: diafásica, III: diastrática e IV: diacrônica.
e) I: diafásica, II: diatópica, III: diastrática e IV: diacrônica.

82
na prática

5. De Vossa Mercê a cê. O fenômeno da variação e da mudança linguística são com-


ponentes importantes para se pensar as transformações ocorridas com a língua,
ao longo do tempo Por se tratar de dois aspectos que caminham juntos, analise o
processo de variação e mudança que ocorreu e continua ocorrendo com o referido
pronome de tratamento:

I - Vossa Mercê passou pelas seguintes variações: vosmecê, vancê até mudar para
você. Agora o você está passando pelas seguintes variações: ucê, cê.
II - A palavra fruta, na época do Brasil colonial era denominada “fruita”, mas acabou
passando por um processo de variação denominando-a de fruta que, ao longo
do tempo, mudou para “fruita”.
III - O verbo “sentir”, inicialmente era “senço”, que passou por um processo de va-
riação, resultando em sentir, mas permanecenndo o “senço” como a variação
de prestígio e o “sentir” como a variação marginalizada, até ocorrer o processo
definitivo de mudança, resultando o “sentir” como norma-culta.

Assinale a alternativa correta:

a) As afirmativas I e II estão corretas.


b) Apenas a afirmativa I está correta.
c) As afirmativas II e III estão corretas.
d) Apenas a afirmativa III está correta.
e) Apenas a afirmativa II está incorreta.

83
aprimore-se

O CASO DA COLOCAÇÃO PRONOMINAL

A Sociolinguística reflete sobre a língua, através do seu uso nas relações sociais de
seus falantes, os quais fazem do uso das variações linguísticas que vão permeando
tais relações. A colocação pronominal (ou ordem dos clíticos) é um tema bastante
relevante, dentro do campo teórico da sociolinguística, por se tratar de um processo
de variação que vem ocorrendo, em relação aos usos de próclise (antes do verbo),
mesóclise (no meio do verbo) e ênclise (no final do verbo).
Segundo Cegalla (2008) e sua perspectiva tradicional normativa, os pronomes
oblíquos átonos são: me, te, se, lhe, lhes, o, a, os, as, nos, vos. Segundo essa ver-
tente, eles devem seguir uma ordem determinada na sua colocação, conforme a
explicação dada nos exemplos.

PRÓCLISE

A próclise é usada antes do verbo em várias situações, entre as quais selecionamos as


seguintes:
a. Palavras de sentido negativo ( ex: Isso não se faz)
b. Pronomes relativos (ex: conheces o homem por quem te apaixonaste?)
c. Conjunções subordinativas (ex: se me ensinares o caminho, chegarei lá).
d. Certos advérbios. (ex: sempre me lembro dele).
e. Pronomes indefinidos: tudo, nada, pouco (ex: tudo se acaba).
f. Palavra só, no sentido de apenas, somente. (ex: só me ofereceram um copo
d’água).

Obs: ao final, o autor afirma que na pronúncia do Brasil, as formas pronominais


oblíquas não são completamente átonas; são, antes, semitônicas, justificando a causa
porque, entre nós, há uma tendência para a próclise (ex: me empreste o livro).

84
aprimore-se

MESÓCLISE

Cegalla (2008) define a referida colocação pronominal como a intercalação das varia-
ções pronominais átonas que ocorre somente no futuro do presente e no futuro do
pretérito, desde que antes do verbo não haja nenhuma situação que exige próclise.
Seguem alguns exemplos registrados pelo autor.
a. Realizar-se-á, em maio, uma reunião de prefeitos.
b. Falar-lhe-ei a teu respeito, na primeira oportunidade.
c. Por este processo, ter-se-iam obtido melhores resultados.

O autor registra a seguinte observação:


A mesóclise é colocação exclusiva da língua culta e da modalidade literária. Na fala corrente,
emprega-se a próclise. (ex: eu lhe direi a verdade; ela o chamaria de louco).

ÊNCLISE

O autor afirma que os pronomes átonos estarão em ênclise, nas seguintes situações:
a. Períodos iniciados pelo verbo (que não seja futuro), pois na língua culta, não se
abre frase com pronome oblíquo (ex: “Diga-me isto só, murmurou ele” - Machado
de Assis).

Após a apresentação do exemplo, o autor registra que iniciar uma frase com pronome
átono somente é considerado lícito na conversação familiar, despreocupada, ou na
língua escrita, quando se deseja reproduzir a fala dos personagens (ex: me ponho a
correr na praia).
b. Nas orações imperativas afirmativas. (ex: procure suas colegas e convide-as).
c. Junto ao infinitivo não flexionado, precedido de preposição a, em se tratando dos
pronomes o, a, os, as (ex: todos corriam a ouvi-lo). O autor salienta que junto a um
infinitivo flexionado, regido de preposição, é de rigor próclise (ex: repreendi-os por
se queixarem sem razão).
d. Diante de infinitivo impessoal regido da preposição para, quase sempre é indiferente
a colocação do pronome oblíquo antes ou depois do verbo, mesmo com a presença
do advérbio não. (ex: corri para defendê-lo, corri para o defender, calei-me para não
contrariá-lo ou calei-me para não o contrariar).

85
aprimore-se

Passemos agora a uma análise sobre a colocação pronominal pela visão teórica de
autores filiados à sociolinguística e a outros campos de saberes.
Orlandi (2009) diz que, para além da formulação de normas insustentáveis, há
entre o português de Portugal e do Brasil algumas diferenças, entre as quais a mais
citada é o uso dos pronomes átonos proclítico aqui no solo brasileiro e enclítico em
lá nas terras portuguesas.
Orlandi (2009) afirma que ao se tratar de uma língua de colonização, o modelo
da metrópole tende a permanecer. No entanto, a diferença fonética em relação ao
português de Portugal e do Brasil marca a impossibilidade de uma identidade na co-
locação de tais pronomes, pois as pronúncias são diferentes: em Portugal o “e” final
é tão abafado que mal se ouve e no Brasil dizemos “mi,ti,si”. No Brasil se fala mais
pausadamente do que em Portugal que pronuncia de um modo mais apressado e
justifica que a maneira como colocamos os pronomes não é errôneo, pois a língua
altera com a mudança do meio.
Resumindo: o critério é o uso geral e o costume, ou seja, o correto no Brasil é a
liberdade de colocação pronominal no seu brotar espontâneo, pois aqui o ritmo, as
vogais e a melodia são diferentes.
Sobre essa temática, Bagno (2013) afirma que o velho e infrutífero debate sobre
a colocação pronominal deve ser abandonado em favor de uma postura mais rea-
lista da gramática do português brasileiro contemporâneo. A regra atual da sintaxe
dos clíticos (ou pronomes pessoais átonos) vem sempre anteposto ao verbo princi-
pal e a educação linguística deve reconhecer essa intuição gramatical dos falantes.
Vamos conhecer essa regra na prática?

REGRA ÚNICA AMBIENTE SINTÁTICO EXEMPLO

No português brasileiro,
os clíticos se posicionam Me incomoda muito o
Início de frase
sempre antes do verbo comportamento de Ana.
principal (próclise)

86
aprimore-se

REGRA ÚNICA AMBIENTE SINTÁTICO EXEMPLO

Ana disse que pode te


Aux. + infinitivo
ajudar.

No português brasileiro, Ana tem nos ajudado


os clíticos se posicionam Aux. + particípio passado
muito.
sempre antes do verbo
principal (próclise) Aux. + gerúndio Ana estava te procurando.

Se vire para eu ver como


Imperativo
ficou a saia!

Possenti (2009) também faz críticas e afirma que a mesóclise está “mortinha da sil-
va” e não há mais razão para investir no seu aprendizado e muito menos no seu
ensino e, como ela não faz mais parte, é melhor anunciar o seu enterro e assumir
que o português do Brasil é proclítico. Afinal, você leitor diz: “dê-me um livro” ou “me
dá um livro”?
Uma problemática que já deveria estar resolvida, conforme nos avisou o poeta
modernista Oswald de Andrade em “Pronominais”:

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.

87
eu recomendo!

livro

Gramática de bolso do português brasileiro


Autor: Marcos Bagno
Editora: Parábola
Sinopse: em uma versão sintética, o autor oferece informação
imediata para professores e alunos preocupados com uma edu-
cação linguística. A obra se concentra sobre o que se deve (ou
não) ensinar nas aulas de português, neste século XXI.

filme

Língua - Vidas em Português


Ano: 2003
Sinopse: documentário filmado em seis países: Portugal, Moçam-
bique, Índia, Brasil, França e Japão. É um mergulho nas muitas
histórias da Língua Portuguesa e na sua permanência entre cul-
turas variadas do planeta. A lusofonia é sobretudo falada, sur-
preendida no cotidiano de personagens ilustres e anônimos dos
quatro continentes. Em cada um deles, o português amalgamou
deuses, melodias, climas, ritmos. Misturou-se aos alimentos e às paisagens. Foi
reinventado centenas de vezes e alimentado por levas sucessivas de colonizado-
res, imigrantes e descendentes. Em Portugal e Moçambique, no Brasil e em Goa,
percebe-se a herança portuguesa, sempre surpreendente e permanentemente
renovada. Acompanhando as trajetórias de seus personagens e ouvindo suas ex-
periências e sensações, suas memórias e esperanças diante do futuro, o docu-
mentário reproduz o movimento de uma língua que ganhou o mundo e refaz seus
caminhos na expectativa de se reencontrar.

conecte-se

Trata-se de uma entrevista que apresenta o tema “Preconceito Linguístico” em li-


vros didáticos, a partir da perspectiva teórica e analítica do linguista Marcos Bagno.
https://www.youtube.com/watch?v=lslg9ep9U6I

88
anotações



































3
SEMÂNTICA:
A TEORIA
do significado

PROFESSORA
Dra. Vera Lucia da Silva

PLANO DE ESTUDO
A seguir, apresentam-se as aulas que você estudará nesta unidade: • Semântica? Vamos compreender
e definir a teoria? • A Semântica hoje: considerações gerais • Fenômenos semânticos: desvendando os
segredos da língua • Os significados implícitos: teorias e práticas.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Apresentar a teoria da semântica • Elencar a semântica em um contexto atualizado • Definir e exempli-
ficar os fenômenos semânticos • Compreender os significados implícitos no funcionamento da língua.
INTRODUÇÃO

Olá, prezada(o) estudante. Chegamos em mais uma unidade de estudos e,


por meio dela, apresentaremos a você a Teoria Linguística da Semântica,
que se define como uma ciência da linguagem humana preocupada, cien-
tificamente, com os significados das palavras. Chegou o momento de saber
que as palavras extrapolam os significados registrados nos dicionários e
nas gramáticas e nos surpreendem com as suas várias possibilidades de se
estabelecerem, nos diferentes contextos comunicacionais de cada falante,
nas suas diversas situações de interação social.
O objetivo aqui é proporcionar a você o acesso a mais um campo de sa-
ber da linguística, a partir de reflexões elementares justificáveis no objetivo
de promover a inserção teórica e prática desta temática escolhida (não por
acaso, entre tantas disponíveis) e, sobretudo, tendo o cuidado de provocá-lo
(motivá-lo) a ir além do que será posto nos limites dessas páginas, a partir
dos resíduos (e também incertezas e inquietações) que vão sendo deixados
ao longo das páginas.
Por isso, nosso percurso apresentará a definição da teoria, autor e obra
responsáveis pela sua inserção ao mundo acadêmico e situaremos como
a teoria funciona hoje. Posteriormente, serão registrados alguns conceitos
básicos como sinonímia/paráfrase, antonímia, hiperonímia/hiponímia, os
quais, provavelmente, você já conhece, mas não deixaremos de exemplificar
e elencar outras reflexões fora do senso comum e nível escolar mediano.
Avançando pelas páginas, você terá acesso a um pouco das teorias do
campo da semântica que trata dos significados implícitos, ou seja, aqueles
que estão contidos, subentendidos e pouco (ou nada declarado). O im-
portante é que, ao final desta unidade, você perceba que a língua percorre
caminhos, juntamente com o falante, e que ela depende dele e do contexto
em que será colocada em funcionamento.
Enfim, há muito o que refletir. Vamos iniciar a leitura?
1
SEMÂNTICA?
UNIDADE 3

VAMOS
COMPREENDER
e definir a teoria?

Para iniciarmos as reflexões propostas, é


preciso ter acesso a algumas informações
básicas para situar/contextualizar você nes-
ta teoria, partindo da sua definição e tam-
bém da base analítica desenvolvida pela lín-
gua que sempre é o objeto (a ferramenta)
das nossas práticas.
Retomamos Magalhães (2011) para res-
ponder à pergunta inicial com a seguinte
resposta: a palavra semântica, etimologica-
mente, veio do grego semantiké e significa
a arte do significado. Segundo Marques
(2003), dentro desse campo de saber da lin-
guística, a palavra “semântica” foi utilizada
pela primeira vez, em 1883, pelo linguista
Michel Bréal (1832 - 1915) em um artigo pu-
Figura 1 - Michel Bréal (1832 - 1915) /
Fonte: German Road Races ([2020], blicado em revista de estudo clássico. Veja
on-line)6.
como ele anunciou a nova teoria:

92

O estudo que propomos ao leitor é de natureza tão nova que nem

UNICESUMAR
chegou ainda a receber um nome. A preocupação da maioria dos lin-
guistas tem-se voltado sobretudo para a análise do corpo e da forma
das palavras: as leis que presidem à alteração de sentidos, à escolha
de novas expressões, ao nascimento e à morte das locuções foram
deixadas à margem ou apenas acidentalmente assinaladas. Como este
estudo, do mesmo modo que a fonética e a morfologia, merece ter seu
nome, nós o chamaremos de semântica (do verbo semaínein), isto é,
a ciência das significações. (MARQUES, 2003, p. 33).

Portanto, estamos diante da ciência das significações e que se apresenta como marco
de divulgação científica de maior destaque, diante da comunidade acadêmica, atra-
vés da obra de Bréal, denominada Essai de Sémantique: science des significations
(Ensaios de semântica: ciência das significações), editado na França, em 1897.
Para Marques (2003), naquele contexto inicial, esta ciência se pautava ainda
por um viés historicista e limitado ao significado das palavras (semântica lexical),
mas abriu caminho para superar princípios rígidos e mecanicistas da teoria, per-
mitindo, já nas primeiras décadas do século XX, extrapolar os fenômenos físicos e
chegar aos aspectos psicológicos, históricos e socioculturais de tais significações.
Diante da definição apresentada, lançaremos um desafio, a partir da palavra
pé. Você sabe o significado dessa palavra? Claro que sim. Pela anatomia humana e
de um modo bem simples, ela significa uma parte do nosso corpo que fica abaixo
das pernas e que tem a função tanto de nos manter firmes, em posição vertical,
quanto para nos auxiliar na locomoção (andar). Existem outros significados para
essa palavra? Amparada em Marques (2003), veja suas múltiplas significações :

d) Profundidade
da água, em
b) Parte oposta relação à altura de f ) Pé de galinha:
à cabeceira da uma pessoa: rugas nos cantos
cama: pé da cama; cobre o pé. dos olhos;

a) Base inferior
de determinados
objetos: pé da mesa, c) Planta individual: e) Pessoa muito g) Pé de valsa:
da montanha; pé de café, manga, trabalhadora: dançarino.
abacate; pé de boi;

Figura 2 - Múltiplas significações da palavra pé / Fonte: a autora. 93


Ainda há muitos significados para a palavra “pé”, mas paramos por aqui, pois
UNIDADE 3

acreditamos que você já conseguiu captar a essência da semântica, bem como


a riqueza da língua e a justificativa de, enquanto estudantes do curso de Letras
e, portanto, questionadores da língua, pensar nela, a partir de um campo aberto
(heterogêneo) e isso significa que, com o passar do tempo, a teoria passou por
ressignificações, ou seja, estamos diante de uma temática multifacetada que pre-
cisa ser abordada aqui. Vamos avançar um pouco mais?

2
A SEMÂNTICA
HOJE:
considerações gerais

Conforme estudamos em Linguística I, Ferdinand de Saussure foi (e é) o estudioso


de excelência da linguística moderna e, portanto, considerado o pai desta teoria da
língua, apresentada à comunidade acadêmica, no início do século XX, precisamen-
te, em 1916, por meio do lançamento da obra Curso de Linguística Geral (CLG).
Em relação à teoria da semântica, é necessário elaborar uma contextualização
a partir desse momento, pois foram as ideias de Saussure que revolucionaram e
mudaram o rumo da história dos estudos sobre (e da) língua. Naquele tempo, a
semântica não era ainda reconhecida como uma ciência importante para se re-
94
fletir a língua e, por isso, o seu merecido destaque era apagado por outras teorias,

UNICESUMAR
mas hoje ela faz parte permanente nos cursos de Letras do Brasil.
Por isso, iniciaremos nossa reflexão fazendo um sobrevoo a partir do estrutura-
lismo saussuriano, pois foi a partir dele que a semântica (e as demais teorias linguís-
ticas que foram surgindo) tomou outros rumos teóricos, suplantando sua concepção
originária, enquanto incorporava os avanços dos estudos linguísticos do século XX.
Marques (2003) retoma os conceitos de Saussure e que já foram estudados
por você, relembrando a língua, dentro da dicotomia língua e fala, como um
produto social e sua natureza arbitrária/linear/convencional oriunda da teoria
do signo linguístico que se manifesta (se concretiza) na fala individual e momen-
tânea dos falantes. Essa ideia retoma algo importante:


[...] os signos existem em decorrência de hábitos sociais objetivos
e são convencionais, não-motivados, quanto ao significado das se-
quências fônicas significantes, que não apresentam qualquer víncu-
lo natural com os elementos da realidade que evocam. (MARQUES,
2003, p. 44).

Ao relembrar suas teorizações apresentadas em Linguística I e elencar que os


elementos dos signos linguísticos (significado, significante, arbitrariedade, li-
nearidade etc.) não apresentam qualquer vínculo natural com a sua realidade,
abre um caminho para pensarmos sobre o significado das palavras produzidas
em suas contextualizações, ou seja, bem longe de suas definições registradas em
dicionários.
Vamos exemplificar essa ideia com a palavra “manga” e o seu significado em
duas situações:
a) Adoro suco de manga.
b) A manga da camisa rasgou.

Você percebeu pela sua experiência linguística de falante nativo da nossa língua
materna (a portuguesa brasileira) que a palavra “manga” apresenta um signifi-
cante (imagem acústica) e dois significados (conceitos) totalmente distintos em
a e b e que podem ser explorados pela teoria da semântica.
Salientamos que, a partir do século XX, notadamente após a apresentação das
teorias saussurianas à comunidade acadêmica, a semântica deixou de ser relega-
da a um segundo plano e, hoje, pode ser utilizada nas propostas curriculares de
95
ensino tanto de língua portuguesa brasileira e suas análises quanto em outras
UNIDADE 3

temáticas . Por se tratar de uma ciência que analisa o significado, devemos regis-
trar que para ele acontecer, durante um processo de análise linguística, devemos
considerar três aspectos, conforme relata Magalhães (2011):
a) A língua não pode ser ignorada como algo multifacetado.
b) O indivíduo veicula suas intenções comunicacionais, na construção das
suas mensagens (piadas, charges, propagandas, textos científicos etc.) e na
tentativa de produzir uma interpretação competente no seu destinatário.
c) Os aspectos social, histórico e cultural são determinantes para que a lín-
gua produza o significado planejado pelo falante, ocorra a interação ver-
bal e o cumprimento do propósito.

Para facilitar nossa compreensão a respeito da semântica, precisamos adentrar


aos fenômenos que ocorrem na língua e, concomitantemente, como afirmou
Raul Seixas na sua bela canção “metamorfose ambulante”, afastar-se daquela ve-
lha opinião formada sobre tudo, inclusive sobre a certeza do significado único,
literal (dicionarizado) das palavras, para pensar sobre elas, a partir de uma língua
incontrolável, cheia de tramas e malícias capazes de fazer o falante, enquanto co-
nhecedor exímio da sua língua nativa/mãe, criar, recriar e descriar os significados
cristalizados, a partir da sua experiência de mundo e seu conhecimento prévio.
Avancemos, para tentar destrinchar essas ideias?

explorando Ideias

Você já havia parado para pensar na palavra “significado”? Para a semântica, a palavra
“significado” define esta ciência linguística que se apresenta com um leque de possibili-
dades, justificando sua versão plural como as semânticas e que se subdivide em: formal,
lexical, argumentativa, cognitiva, representacional, etc. O importante é você saber que é
preciso estar sempre contextualizado para compreender que rede pode significar: rede
de deitar, rede elétrica, rede de computadores, rede de contatos, rede armadilha, rede de
janela, rede de televisão, etc.
Fonte: a autora.

96
3
FENÔMENOS SEMÂNTICOS:

UNICESUMAR
DESVENDANDO
os segredos da língua

Nomeamos como fenômenos semânticos a diversidade da significação das pala-


vras e suas atribuições dentro de uma composição textual e, por isso, é importan-
te apresentar suas nomenclaturas, seguidas de exemplificações para auxiliar na
compreensão do seu funcionamento, dentro do arcabouço teórico da linguística.
Para este momento e pautadas em Tamba (2006), Ilari e Geraldi (2006), sele-
cionamos alguns componentes usuais e, portanto, estudados nas aulas de língua
portuguesa brasileira, como: sinonímia/paráfrase, antonímia, hiperonímia/hipo-
nímia para pensar a semântica de uma forma mais estrita.
Como nos diz Magalhães (2011) a palavra sinonímia (sin = união; onoma =
nome) se define pela possibilidade de vários nomes se referirem a um mesmo
significado, ou seja, são equivalentes e capazes de serem substituídos em um
mesmo contexto (ex: sinal/farol, calçada/passeio; conferir/checar). Nessa pers-
pectiva, há um direcionamento para o significado dentro do campo lexical (das
palavras), assegurando sua importância para desenvolver reflexões no campo dos
conhecimentos linguísticos.
A sinonímia, como a própria denominação sugere, pode ser comumente defi-
nida como palavras diferentes, pertencentes à mesma categoria gramatical e, por-
tanto, de significados quase equivalentes, que, ao serem substituídas, não produz
alteração de significados e continua repousando no campo do estável, idêntico,

97
perfeito e lógico. Veja um exemplo, com a palavra primeiro (estou grávida do
UNIDADE 3

primeiro filho) e primogênito (estou grávida de um primogênito).


No entanto, seguindo as reflexões de Tamba (2006) e por estarmos em um
curso superior, é necessário ampliar nossas reflexões sobre o assunto, pois so-
mente podemos considerar a integralidade da sinonímia, se os significados forem
intercambiáveis, sem alterações de significados e em todos os contextos de uso.
Há situações, porém, em que ela se apresenta dentro de um nível relativo e, nesse
caso, as palavras “senhora” e “mamãe” podem se referir à mesma pessoa, portanto
são sinônimas, mas também podem se referir a pessoas distintas e, nesse caso, não
são sinônimas. Vamos reforçar essa ideia, com os seguintes exemplos retirados
de Ilari e Geraldi (2006):

a) Pegue o pano e b) Pegue o pano e


seque a louça. enxugue a louça.

Figura 3 - Exemplo de sinonímia / Fonte: a autora.

Intuitivamente, nós falantes, sabemos que “secar” e “enxugar” são sinônimas, pois
traduzem a mesma intenção do locutor e busca o mesmo resultado que é “secar/
enxugar a louça”, estabelecendo uma relação entre elas. Mas voltemos às palavras
analisadas, nas seguintes situações:

a) Marçal, faça um b) Marçal, faça


texto enxuto. um texto seco.

Figura 4 - Exemplo em que não há sinonímia / Fonte: a autora.

98
Cara(o) estudante, como um bom e competente falante de sua língua materna,

UNICESUMAR
você percebeu que a palavra “enxuto” em “a” não se configura como sinonímia de
“seco” em “b”. Este fato reforça a ideia de que, para qualquer análise linguística,
faz-se necessário estar inseridos em seu contexto de produção.
Nessa concepção de palavras sinônimas, há também as paráfrases, as quais,
segundo Ferrarezi (2008), na prática textual, as palavras podem ser substituídas
por outras e, embora comprometa um pouco o sentido geral do texto, não altera
a coisa representada (o referente), ampliando de forma privilegiada a produção
de textos orais e escritos sem as cansativas repetições. Veja o que nos diz o autor
sobre a paráfrase:


Embora, quando usamos paráfrases, se mantenha o mesmo referen-
te representado, uma das peculiaridades desse tipo de substituição
é a de que novos aspectos desse referente passam a ser enfocados e
isso pode alterar bastante o sentido geral do texto. Algumas vezes,
pode se usar desse expediente, de propósito, para ressaltar carac-
terísticas positivas ou negativas de algo ou alguém que está sendo
representado (FERRAREZI, 2008, p. 160).

Utilizando ainda do conhecimento do autor, vamos compreender seu pensamen-


to com um exemplo em que o referente é o Deputado Tico Leitão. Veja como a
paráfrase funciona:

a) O homem que c) O articulador e) O homem


mandava matar do esquema de mais poderoso
empregados em propinas da da máfia dos
sua fazenda. Câmara Federal. jogos ilegais.

b) O chefe da d) O esposo da
quadrilha de anões dona Tica Porca e
do orçamento pai do Tiquinho
federal. Bacuri.

Figura 5 - Exemplo de paráfrase / Fonte: a autora.


99
Você percebeu que todas as sentenças produzidas se referem à mesma pessoa (o
UNIDADE 3

deputado Tico Leitão), mas que, apesar de manter o mesmo referente, em cada
nova sentença são produzidas novas informações e, consequentemente, novos/
outros significados que mudam nossa forma de ver o referente (o deputado).
Passamos, agora, a refletir sobre a antonímia que se define como um quadro de
relações de significados incompatíveis/contrários entre si, em uma situação contextual
idêntica.Vamos utilizar os exemplos de Ilari e Geraldi (2006) para que você compreenda
como funciona o antônimo na nossa língua materna (a Portuguesa Brasileira).

a) O Sr. seu pai está bom?

b) O Sr. seu pai está mal?

c) Gostaria de saber a que


distância fica a base aérea.

d) Gostaria de saber a que


proximidade fica a base aérea.

Figura 6 - Exemplo de antonímia / Fonte: a autora.

Pelos exemplos citados, podemos deduzir que pares como chegar/partir (ex: o
menino chegou / o menino partiu), nascer/morrer (ex: Paulo nasceu saudável /
Paulo morreu tão cedo), abrir/fechar, dar/receber etc., são consideradas palavras
antônimas. Certo? Pode até ser certo, mas preferimos provocar um pouco mais e
ampliar a nossa reflexão para além de um conhecimento mediano de definições fixa
como “bonito” e “feio”. Precisamos aprofundar este tema, para sair do nível médio e
nos capacitar para mediar o conhecimento para este nível, na condição de docente.

100
Vamos avançar a partir de duas condições naturalmente humanas, ou seja,

UNICESUMAR
o ato de nascer e de morrer, que deixa de ser considerados antônimos, pois “[...]
representam antes os dois momentos extremos do processo de viver: quem nasce,
‘começa a viver’ e quem morre, ‘termina de viver’.” (ILARI; GERALDI, 2006, p. 54)
e são refletidas como a captura de momentos diferentes das fases da vida.
O mesmo pode ocorrer com os verbos “partir”, como aquele que começa a
viajar, e “chegar”, como quem termina de viajar; seguindo nossa reflexão crítica,
observe os verbos “abrir” e “fechar”. Sua relação é de antonímia, pois implicam
em direções e resultados diferentes, assim como “dar” e “receber”, pois, além da
oposição explícita, o papel do sujeito gramatical se opõe em um sujeito fonte
(aquele que pratica o ato de dar) e o sujeito destinatário (aquele que recebe), ou
seja, estamos diante de situações incompatíveis nessa cena.
A hiperonímia e hiponímia também são tratáveis pela semântica e a pensa-
mos alinhadas com Magalhães (2011) que define a hiperonímia como a ideia do
todo, do qual advêm as partes, ou seja, a hiponímia. Vamos exemplificar:

Exemplo 01 Exemplo 02

Construção Verdura
(hiperonímia) (hiperonímia)

Casa, apartamento,
Couve, alface, espinafre,
hospital, cabana, igreja,
agrião etc.
escola, mansão etc.
(hiponímia)
(hiponímia)

Se hiperonímia é o todo, então, “construção” e “verdura” fazem parte desse con-


junto, enquanto que “casa”, “apartamento”, “hospital”, “cabana”, “igreja”, “escola”,
“mansão” são as partes desse todo (a hiponímia). O mesmo ocorre com “verdura”
(hiperonímia) e “couve”, “alface”, “espinafre”, “agrião” (hiponímia).

101
Saindo do estabilizado, veja que no enunciado “eu comprei tulipas” (hipo-
UNIDADE 3

nímia) significa que “eu comprei flores” (hiperonímia), mas nem sempre quem
“compra flores”“compra tulipas”. Segundo a autora, estamos diante do hiperônimo
“flores” e do hipônimo “tulipas” e ambos “[...] funcionam como denominações
distintas, aplicáveis aos mesmos objetos de referência, que elas permitem identi-
ficar em um nível categorial [...] (TAMBA, 2006, p. 108). Jamais se pode esquecer
que é o contexto que vai exigir se estamos tratando de uma flor ou de que tipo de
flor, pois os elementos são cambiáveis diante de um comprador que, ao comprar
uma flor, pode levar para casa (ou para a sua amada), uma “rosa”, “margarida”,
“adália” ou “azaleia”.
O que precisamos compreender com essas poucas reflexões que estamos de-
senvolvendo a respeito da semântica é que precisamos estar sempre conectados
com o nosso contexto de produção textual e oral, bem como sintonizados com
os nossos interlocutores, e que não é sempre que encontramos os significados das
palavras que enunciamos nos dicionários.
Vamos avançar um pouco mais? Afinal, a semântica é um labirinto e o estu-
dante de Letras precisa ousar adentrar nos seus percursos intrincados.

102
4
OS SIGNIFICADOS

UNICESUMAR
IMPLÍCITOS:
teorias e práticas

Em uma situação de conversação ou mesmo de escrita de âmbito formal ou in-


formal, sabemos que as línguas naturais em funcionamento sempre produzem
significados que vão além do que está sendo dito ou escrito. Há diversas formas
de produzir significados implícitos e esta temática também é abordada pela teoria
da semântica e será apresentada neste material, por meio dos seguintes temas:
pressuposição, ambiguidade e polissemia.
Você, enquanto leitor crítico, já percebeu, nas suas leituras, que os sentidos lite-
rais podem produzir interpretações que vão além do que está explícito abertamente
nos registro dos signos. Essa forma de dizer sem dizer são os sentidos implícitos que
“[...] uma sentença veicula, sem que o falante se comprometa explicitamente com
sua verdade. Essas informações precisam então ser ‘inferidas’ a partir da sentença
por meio de algum raciocínio que parte da própria sentença” (ILARI, 2009, p. 85).
Os implícitos irrompem o sentido literal das palavras, tal como se observa
por meio da pressuposição e sua definição de que se trata de fenômenos que, no
processo de funcionamento da língua, significa que a informação já está previa-
mente suposta e é mantida, independentemente, se for (ou não) negada. Vamos
exemplificar, mediante as palavras do autor:

103

Se alguém nos disser que o carro parou de trepidar depois que foi ao
UNIDADE 3

mecânico, concluímos que o carro morria antes de ir ao mecânico;


se esse mesmo alguém nos disser que o carro não parou de trepidar
apesar de ter ido ao mecânico, também concluiremos que o carro
trepidava antes. (ILARI, 2009, p. 85).

Vejamos mais um exemplo, retirado de Ilari e Geraldi (2006): a empregada só


lavou a louça. Ao enunciar essa oração para alguém, fica pressuposto que, de
fato, a empregada somente lavou a louça e que, portanto, ela não fez os outros
serviços como enxugar a louça, varrer a cozinha etc. Aqui, podemos perceber
que a pressuposição se configura a partir de informações dadas, uma espécie de
verdade que não se contesta.
Outro tema bastante abordado dentro da teoria da semântica é a ambigui-
dade, pois faz parte das relações contextuais e comunicacionais entre as pessoas.
Definida por Ilari e Geraldi (2006) como palavras ou expressões que podem pro-
duzir mais de uma interpretação ou dois significados independentes, ela justifica
e fortalece a necessidade do acesso ao contexto para que haja uma comunicação
eficiente entre os envolvidos em uma situação oralizada ou em textos escritos.
Vamos compreender esse fenômeno da língua, através do seguinte exemplo:
a criança foi encontrada perto do banco. Se o leitor não estiver contextualizado, a
palavra “banco” é ambígua, pois admite ao menos duas interpretações alternativas:
a) banco da praça, assento de jardim ou b) instituição financeira? Veja que é pre-
ciso estar inserido/contextualizado a esse acontecimento para saber diferenciar
se se trata de uma espécie de “[...] assento para mais de uma pessoa, com ou sem
encosto, sem braços, típico dos jardins” (ILARI; GERALDI, 2006, p. 57) ou como
menciona os autores, um estabelecimento bancário.
Estamos diante de duas palavras homógrafas que se apresentam com a mesma
grafia e o mesmo som (banco do jardim ou instituição financeira) e, portanto, é
fonte de uma ambiguidade no campo lexical por possibilitar mais de um signifi-
cado. Ainda dentro desta temática, ocorre também a ambiguidade com palavras
homófonas, ou seja, há um significado diferente para palavras com o mesmo som,
mas grafia diferente. Vamos utilizar o exemplo de Ilari e Geraldi (2006) para você
compreender a ocorrência desse fenômeno por meio das palavras sexta e cesta:

104
UNICESUMAR
a) Margarida trouxe b) Margarida trouxe
os ovos na sexta. os ovos na cesta.

Figura 7 - Exemplo de palavras homófonas / Fonte: a autora.

Você já se deu conta de que, diante da teimosia da língua, pouco adianta ficar
preso aos padrões fixos que se pregam por aí, pois enquanto bons falantes da
nossa língua portuguesa brasileira, sabemos que é sempre preciso estar contex-
tualizados para identificar (e isso nós sabemos fazer e muito bem!) os significados
das palavras. Um resumo para você:

Palavras homógrafas homófonas: grafia (escrita) igual, fonética (som) igual e signifi-
cado diferente.
Ex:
■ A manga da minha camisa preferida rasgou (parte da roupa).
■ Adoro suco de manga gelado (fruto da mangueira).

Palavras homógrafas heterofônicas: grafia (escrita) igual, fonética (som) diferente,


significado diferente.
Ex:
■ Eu sempre almoço (ó, ɔ) ao meio dia (1ª pessoa do singular).
■ Ai que fome! Ainda bem que o almoço (ô, o) chegou (substantivo).

Palavras heterográficas homófonas: grafia (escrita) diferente, fonética (som) igual,


significado diferente.
Ex:
■ Palavra proparoxítona sempre recebe acento (sinal gráfico na vogal da sílaba tônica,
como em ângulo, música, matemática etc.).
■ A falta de consciência obriga as empresas de transporte coletivo a reservar assento
para idosos, gestantes, obesos e deficientes (superfície ou coisa sobre o qual se
senta).

Quadro 1 - Resumo dos significados implícitos / Fonte: adaptado de Mesquita e Martos (2005).

105
Temos aqui um desafio, ou seja, não é possível fugir da polissemia, apesar de ser
UNIDADE 3

considerada como uma homonímia, mais especificamente, como palavras homó-


grafas homófonas, por alguns autores. Leia o texto abaixo, observe a linguagem
não verbal e atente-se para a palavra “galo”:

Figura 8 - O pato / Fonte: Ciça (2006, p.12).

Vamos nos apropriar de Cançado (2005) para tecer algumas reflexões sobre esta
temática. Segundo a autora, a diferença está no fato de que, na homonímia, não
há relação de significado entre as palavras relacionadas (ex: banco para sentar e
banco para transação financeira), enquanto que, para a polissemia, tais signifi-
cados possuem alguma relação entre si. A linha é tênue e perigosa, mas vamos
arriscar, utilizando os exemplos dados pela autora:
■ Exemplo 1 - pé: pé de cadeira, pé de mesa, pé de fruta, pé de página etc.
■ Exemplo 2 - rede: rede de deitar, rede elétrica, rede de computadores etc.

No Exemplo 1, a autora salienta que o significado de “pé” significa “base, sus-


tentação” para algo, enquanto que, no Exemplo 2, a palavra “rede” recupera o
significado de “entrelaçamento”. Agora veja o que nos diz a autora, pelas suas
próprias palavras:


Para estabelecer essa relação entre as palavras polissêmicas, usamos
nossa intuição de falante e, às vezes, os nossos conhecimentos his-
tóricos a respeito dos itens lexicais. Entretanto, você perceberá que

106
estabelecer se itens são ou não relacionados não é tão trivial [...]. Nem

UNICESUMAR
sempre há uma concordância entre os falantes se há a relação entre
os itens em questão, ou mesmo a recuperação histórica desses itens
pode ser tão antiga que, na atualidade, mesmo se houvesse uma rela-
ção anterior, seriam palavras sem relação (CANÇADO, 2005, p. 65).

A autora segue sua reflexão, colocando-nos em uma “saia justa” (percebeu que
saia justa aqui não significa roupa apertada, mas situação embaraçosa/compli-
cada?), pois afirma que, em muitos casos, a mesma palavra pode ser homonímia,
em relação a um determinado sentido e polissêmica em relação a outro. Como
exemplo, ela cita a palavra “pasta”, pois entre “pasta de dente e pasta de comer”
como significado de massa e “pasta de plástico e pasta ministerial” com signifi-
cado de lugar específico, tanto pode ocorrer a polissemia, pois há significados
associados em cada ocorrência, mas pode ser homonímia, pois os significados
parecem ser muito distintos. A questão não se esgota e, portanto, vamos fechar
provisoriamente com os seguintes exemplos, dados por Cançado (2005):
1. Aquele canto era o preferido pela Iolanda.
2. O Henrique cortou a folha.

Para encerrar essa temática complexa, utilizamos a própria autora:


[...] a palavra canto que teria como significado geral tanto a palavra
música como a palavra lugar. Parece-me que temos aí uma homoní-
mia, pois são sentidos não relacionados. [...] a palavra folha pode ser
folha de caderno ou folha de árvore. Em que esses sentidos podem
estar relacionados? Podemos associar papel à árvore? Qual é a sua
intuição? [...]. (CANÇADO, 2005, p. 66).

Ampliando um pouco mais sobre essa temática da semântica, retomamos a au-


tora para tratar a questão por meio das preposições, lembrando que preposição,
segundo Infante (1995, p. 318) se define como “[...] palavra invariável que atua
como conectivo entre as palavras ou orações, estabelecendo uma relação de su-
bordinação”. A polissemia também pode ser refletida por meio de preposições
e para exemplificar, a autora apresenta vários exemplos, entre os quais iremos
apresentar alguns, seguidos de seu significado semântico:

107
UNIDADE 3

a) Água no vaso.

b) O rachado no vaso.

c) O pássaro na árvore.

d) O pássaro no campo.

Figura 9 - Polissemia por meio de preposições / Fonte: a autora.

Estamos diante de quatro exemplos que fazem uso da mesma preposição (em +
o + a = no/na). No exemplo “a”, a preposição “no” apresenta um significado, indi-
cando que a água está contida (dentro) no vaso e, no exemplo “b”, que o rachado
está no próprio vaso. O falante está tão habituado com sua língua materna e seus
significados contextualizados que não dá uma pausa para refletir sobre os efeitos
dos seus significados, pelo fato de não precisar de tais reflexões para sua vivência
comunicativa cotidiana.
No exemplo “c”, a preposição “na” apresenta uma hipótese significativa de que
o pássaro está em cima de um galho de árvores, enquanto que no exemplo “d”,
entende-se que o pássaro, provavelmente, esteja voando acima do campo.
Bem, já temos aqui o suficiente para você perceber que estabelecer uma di-
ferença entre homonímia e polissemia não é uma tarefa banal e é preciso com-
preender tais fenômenos constitutivos da linguagem humana para apresentar já
nos primeiros anos da vida dos nossos alunos, pois apesar da facilidade que todo
falante vai adquirindo, em relação a sua língua materna, apresentar tais perspicá-
cias linguísticas, logo cedo, o prepara para a vida profissional e para as diversas
situações cotidianas comunicacionais, facilitando suas relações interpessoais.

108
UNICESUMAR
pensando juntos

João caminhava tranquilamente quando viu uma cobra pronta para dar o “bote”. Assusta-
do, correu para A margem do rio, pegou o “bote” e fugiu. A palavra “bote” possui o mesmo
significado?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estudantes, chegamos ao final de mais uma unidade de estudos, em que foi possí-
vel apresentar uma das áreas de estudos do campo da linguística. A língua sempre
é o foco das nossas reflexões e, pelos conceitos teóricos da semântica, ela é refleti-
da por meio dos significados das palavras e expressões que os falantes produzem
nas suas interações cotidianas. Você percebeu que a semântica é um campo de
saber linguístico abrangente e muito importante para as nossas práticas sociais
formais e informais, independentemente da área em que atuamos.
Por isso, diante da abrangência e complexidade da teoria, apresentamos a você
sem a intenção de colocá-los em uma posição de conceitos únicos, fixos e sem
possibilidade de trilhar por outros caminhos teóricos e sob o olhar crítico de outros
teóricos. Tentamos apresentar a essência da teoria, a partir de conceitos e exemplos
praticados no nosso cotidiano para que perceba o quanto a língua extrapola concei-
tos prontos, acabados, fixos e de significado único. A língua extrapola, desobedece e
desafia quem tenta enclausurá-la, naquelas teorias que a definem como algo fixo e
engessado. Nossas vivências possibilitam um domínio pleno, competente e criativo
em relação à língua materna (a nossa Língua Portuguesa Brasileira) e nos autoriza
a estabelecer diversas relações sociais. No entanto, como profissionais que já atuam
na docência, ou que poderão atuar, logo após a conclusão do curso, é necessário ter
acesso aos componentes teóricos da semântica.
Foi com essa pretensão que fizemos um recorte definindo e contextualizando
a teoria para, posteriormente, adentrar nos fenômenos semânticos e, principal-
mente, nos significados que ocorrem no campo dos implícitos que nos preparam,
enquanto estudantes da língua, a perceber os detalhes que ela produz nas nossas
vivências sociais.

109
na prática

1. A Semântica é uma disciplina do ramo da Linguística que, especificamente, reflete so-


bre o(s) significado(s) da língua nos contextos específicos produzidos pelos falantes,
nas suas relações sociais. Pensando no significado das palavras, leia o texto abaixo
e assinale a alternativa que produz o significado correto para a palavra “pedaço”.

As festas juninas do nordeste brasileiro é a maior geradora de turismo e negó-


cios, principalmente para as cidades de Campina Grande (PB) e Caruaru (PE), que
disputam o título de “maior São João do mundo”. Em Caruaru ocorre o Festival de
Comidas Gigantes, que tem como destaque o maior pé de moleque do mundo. O
doce é preparado por Dona Maria do Bolo, parceira de longa data, há mais de duas
décadas, por reunir moradores e visitantes para compartilhar o bolo mais esperado
do ano. Dona Maria do Bolo é a dona do pedaço.

Fonte: adaptado de Pereira (2019).

a) No texto, “pedaço” significa que Dona Maria do Bolo é a profissional tradicional


e competente para fazer o bolo da festa junina de Caruaru - PE.
b) No texto, “pedaço” significa que Dona Maria do Bolo faz a receita, mas não dis-
ponibiliza para os participantes da festa, justificando como “a dona de todos os
pedaços do bolo”.
c) Em outro contexto, o enunciado “dona do pedaço” pode significar que a pessoa
não é portadora de influências e muito menos tem a capacidade de influenciar
nas decisões.
d) No texto, “pedaço” significa que Dona Maria do Bolo é a confeiteira que fica
aguardando uma oportunidade para fazer a receita, caso outras pessoas não
possam atender ao evento.
e) Ser o(a) “dono(a) do pedaço” em um anúncio de terrenos em um condomínio
fechado e significa que o proprietário decide sobre a venda do seu terreno e dos
demais proprietários.

2. A semântica, enquanto ciência que estuda o significado das palavras, é uma impor-
tante disciplina para compreendermos a língua como um instrumento heterogêneo
e exclusivo da espécie humana e que, portanto, está sempre aberta a uma infinidade
de significados a serem produzidos e adequados ao contexto de cada situação de
fala ou escrita. Leia os textos abaixo, observe a interpretação dos significados atri-
buídos às palavras “coração”, “ouro”, “direito” e “banco”:

110
na prática

I - Em “Shopping Avenida Center: 30 anos no coração de Maringá”, a palavra “co-


ração” significa a parte do corpo humano.
II - Em “Maurício tem um coração de ouro”, a palavra “ouro” significa que ele é uma
pessoa cheia de bondade.
III - Em “Faça Direito no Unicesumar”, a palavra “Direito” significa um curso de graduação.
IV - Em “Meire foi ao banco, depositar um dinheiro”, a palavra “banco” significa um
objeto que serve para sentar/descansar.

Assinale a alternativa correta:

a) Apenas I e II estão corretas.


b) Apenas II e III estão corretas.
c) Apenas I está correta.
d) Apenas II, III e IV estão corretas.
e) Nenhuma das alternativas está correta.

3. A polissemia é um tema importante, estudado dentro do campo teórico da Semân-


tica, que se define como a apresentação de vários significados atribuídos a uma
mesma palavra ou expressão, além do seu significado original. Amparado nessa
conceituação, analise a palavra “coração” nos exemplos apresentados, verifique se
o seu significado é verdadeiro (V) ou falso (F):

( ) Maria é uma pessoa de “coração” duro, pois não ajudou o morador de rua.
Coração significa pessoa ruim.
( ) Quando vi a cobra vindo em minha direção, fiquei com o “coração” na mão.
Coração significa medo.
( ) Minha tia tem um “coração” mole, chorou só porque disse que amava. Coração
significa pessoa que se emociona facilmente.
( ) As pessoas dizem que sou extrovertida e vivo abrindo o “coração”. Coração
significa pessoas que não fazem confidências.
( ) Ver aquela criança no semáforo pedindo esmola foi de cortar o “coração”. Co-
ração significa que pessoa ficou feliz.

111
na prática

Assinale a alternativa correta:

a) V, V, F, F, F.
b) F, F, F, V, V.
c) V, V, V, F, F.
d) V, V, V, V, V.
e) F, F, F, F, F.

4. Dentro do campo teórico da Semântica, estudamos dois fenômenos: a sinonímia, de-


finida a partir de palavras que possuem equivalência de significados, e a polissemia,
definida como palavras que possuem vários significados. A partir dessa informação,
qual das alternativas abaixo possui palavras sinônimas e polissêmicas?

I - Casa/lar/residência.
II - Cabo de vassoura/cabo do exército.
III - Carro/automóvel.
IV - Porca animal/porca do parafuso.

Assinale a alternativa correta:

a) As questões I, II, III e IV são sinonímias.


b) As questões I, II, III e IV são polissêmicas.
c) As questões I e II são sinonímias.
d) As questões I e III são sinonímias e as II e IV são polissêmicas.
e) As questões III e IV são polissêmicas.

5. A semântica fornece elementos teóricos para compreender que uma palavra, mesmo
com a mesma grafia (homógrafas) e o mesmo som (homófonas) podem apresentar
vários significados, de acordo com o seu contexto de produção. Diante dessa afirmativa,
leia as duas sentenças retiradas de uma propaganda de calçados e de bebida energética:

a) Calçados Mazú: “leve uma vida leve”.


b) Beba Redforça: “para passar em tudo, sem deixar de passar nada” (em uma
cantina de uma universidade).

Elabore um texto e explique o significado das palavras “leve” e “leve” na propaganda


A e “passar” e “passar”, na propaganda B.

112
aprimore-se

SIGNIFICADO DE UMA CIDADE: RIO DE JANEIRO

O professor de linguística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universida-


de Estadual de Campinas (UNICAMP) publicou um artigo denominado “Produzindo
o sentido de um nome de cidade”, na edição especial da Revista Rua, em 2014, na
qual elabora uma análise semântica do nome da cidade denominada Rio de Janeiro.
Ele analisa o aposto “cidade maravilhosa” atribuída a esta capital, mas antes vamos
entender o que é aposto, para depois registrar a análise.
Segundo Infante (1995), aposto faz parte da sintaxe e é considerado um termo
acessório e sua função é ampliar, resumir, explicar o conteúdo de outro termo (o
referente). Essa consideração, de um modo geral, é feita pelos estudiosos da gra-
mática normativa tradicional, mas nosso objetivo aqui é apresentar uma análise,
amparada na teoria da semântica.
Vamos entender a partir do objeto de análise:

Rio de Janeiro: cidade maravilhosa

Neste caso, “cidade maravilhosa” é o aposto de “Rio de Janeiro” e, segundo Guima-


rães (2014), funciona atribuindo um significado à cidade, ou seja, como aquilo mes-
mo que esta cidade significa em:
a) O Rio de Janeiro é uma cidade maravilhosa para significar a beleza da cidade.
b) O Rio de Janeiro é a cidade maravilhosa para significar a igualdade entre
aquilo que se diz para “Rio de Janeiro” e para “cidade maravilhosa”.

Lembrando um pouquinho da história dessa cidade, o autor nos relata que, primei-
ramente, a costa brasileira onde hoje está localizada parte da cidade foi denomina-
da Rio de Janeiro, em 1502, e significa uma nomeação que descreve a natureza (hoje
é a Baía da Guanabara). A cidade que foi fundada neste local fora nomeada “São
Sebastião” para lembrar o Rei de Portugal Dom Sebastião.
Pela análise desenvolvida pela metonímia (uso de um nome no lugar de outro,
emprego da parte pelo todo, o efeito pela causa, o autor pela obra), o nome “Rio de

113
aprimore-se

Janeiro”, dado ao lugar como um todo, se sobrepõe a “São Sebastião” (o vilarejo do


lugar), renomeando a cidade o que resultou no mesmo nome tanto para a cidade
quanto para o Estado, onde ela está localizada. Aqui ocorreu um fenômeno semân-
tico denominado homônimo e, apesar da semelhança nominal, os significados são
diferentes, pois não são correlatos. Analise:
a) Rio de Janeiro: cidade maravilhosa.
b) Rio de Janeiro: Estado maravilhoso (?).

O adjetivo “maravilhosa” para designar, enaltecer a cidade é algo que faz parte da
vida histórica da cidade e é conhecida, mundialmente, por esse aspecto. Afinal,
quem nunca ouviu falar da “cidade maravilhosa”?
Segundo Guimarães (2014), o epíteto cidade maravilhosa (palavra ou nome utili-
zado para qualificar um nome) aparece pela primeira vez em 1908, por Coelho Neto,
mas sem comprovação. Foi em 1928 que este autor lançou um livro de crônicas com
esse título para justificar e tentar descrever a beleza do lugar que, posteriormente,
teve seu significado divulgado na marchinha de carnaval, de André Filho, em 1934,
apresentando o significado da cidade carioca, em que faz uma conexão, por meio da
metáfora (consiste em estabelecer uma analogia de significados entre duas palavras
ou expressões, empregando uma pela outra) “coração” do corpo humano, com um
significado de que se trata de um lugar (centro) importante no território brasileiro:
Cidade maravilhosa, cheia de encantos mil.
Cidade maravilhosa, coração do meu Brasil.

Percorrendo pela história e nos desdobramentos atuais do significado de “cidade


maravilhosa”, chegamos a esta análise:
Rio de Janeiro (lugar oficial): cidade maravilhosa (para o turista).
Veja que o nome dado a um lugar lindo, ou seja, uma Baía, onde a natureza se
expõe, não é para ser aproveitado por todos, mas para alguns. De São Sebastião
para Rio de Janeiro, a Cidade Maravilhosa de Coelho Neto, até a marchinha de André
Filho, embora se apresente com significados aparentemente fixos, há um conjunto
de fatos históricos particulares que vai se modificando.

114
aprimore-se

Sem deixar de resgatar o memorável religioso, São Sebastião, o primeiro nome


da cidade continua como o padroeiro, marcando presença por meio da polissemia
(multiplicidade de significados de uma mesma palavra), tanto reportando o signi-
ficado de beleza, mas também de religiosidade (São Sebastião do Rio de Janeiro
continua linda).
O adjetivo “maravilhosa” se mantém fixado, mas seus significados vão acompa-
nhando os acontecimentos e a vida social, política e cultural dos seus falantes, fican-
do aberto para outros tantos significados, como: “o Rio de Janeiro anda muito vio-
lento”. Aqui, cabe bem o antônimo de “maravilhosa”: o Rio de Janeiro é uma cidade
horrorosa, hoje conhecida pelas suas histórias alegres e tristes.

Fonte: adaptado de Guimarães (2014).

115
eu recomendo!

livro

Manual de semântica: noções básicas e conceitos


Autor: Márcia Cançado
Editora: Contexto
Sinopse: a obra foi elaborada a partir das suas experiências di-
dáticas, vividas pela autora em sala de aula (graduação e pós-
-graduação), na Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais. Ela apresenta os principais conceitos teóricos da
Semântica (um ramo da Linguística voltado para a investigação do significado das
palavras ou sentenças), voltados, especificamente, para leitores iniciantes, sem
se esquecer de praticar tais conceitos com exemplos do Português Brasileiro e,
portanto, acessíveis aos falantes da língua nativa. Além disso, a obra vem rechea-
da com vários exercícios e gabarito de respostas, para auxiliar os(as) estudantes
interessados em se aprofundarem nessa ciência da linguagem.
Comentário: este livro se encontra na Biblioteca Virtual Pearson que você tem
acesso através de seu AVA.

conecte-se

Em uma videoaula, o professor Fábio Alves responde à pergunta “o que é semân-


tica” de uma forma simples e objetiva, a partir de exemplos práticos e cotidianos,
que ajudam a compreender essa importante teoria do significado das palavras.
https://www.youtube.com/watch?v=foZDexCKk3M

Veja como uma linha de cosméticos utilizou a semântica na sua propaganda. Ob-
serve o significado palavra “Vitamina C” e a estratégia de marketing utilizada para
convencer o cliente a adquirir o produto.
https://vimeo.com/292380780

116
eu recomendo!

filme

O auto da compadecida
Ano: 2000
Sinopse: no vilarejo de Taperoá, sertão da Paraíba, João Grilo
(Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello), dois nordestinos
sem eira nem beira, andam pelas ruas anunciando A Paixão de
Cristo, “o filme mais arretado do mundo”. A sessão é um sucesso,
eles conseguem alguns trocados, mas a luta pela sobrevivência
continua. João Grilo e Chicó preparam inúmeros planos para con-
seguir um pouco de dinheiro. Novos desafios vão surgindo, provocando mais con-
fusões armadas pela esperteza de João Grilo, sempre em parceria com Chicó, mas
a chegada da bela Rosinha (Virgínia Cavendish), filha de Antônio Moraes (Paulo
Goulart), desperta a paixão de Chicó e ciúmes do cabo Setenta (Aramis Trindade).
Os planos da dupla, que envolvem o casamento entre Chicó e Rosinha e a posse
de uma porca de barro recheada de dinheiro, são interrompidos pela chegada
do cangaceiro Severino (Marco Nanini) e a morte de João Grilo. Todos os mortos
reencontram-se no Juízo Final, onde serão julgados no Tribunal das Almas por um
Jesus negro (Maurício Gonçalves) e pelo diabo (Luís Melo). O destino de cada um
deles será decidido pela aparição de Nossa Senhora, a Compadecida (Fernanda
Montenegro), e traz um final surpreendente, principalmente para João Grilo.
Comentário: O “auto da compadecida” pode ser analisado em diversas disciplinas
da Linguística como, por exemplo, na Semântica em que os conceitos de antôni-
mos, sinônimos, ambiguidade, hiponímia, hiperonímia etc. podem ser detectados
no desenvolvimento do enredo em que a cultura religiosa nordestina, recheada de
transgressões, é percebida, a partir do conhecimento da teoria, na produção de
uma linguagem simples e bem articulada, nas falas humoradas dos personagens.

117
4
ANÁLISE DO DISCURSO:
FUNDAMENTOS
introdutórios

PROFESSORA
Dra. Vera Lucia da Silva

PLANO DE ESTUDO
A seguir, apresentam-se as aulas que você estudará nesta unidade: • Análise do Discurso: definindo a
teoria e o conceito de língua • A gênese da disciplina: um campo de saber interdisciplinar • A Análise
do Discurso no Brasil: uma teoria em movimento • Os principais conceitos da Análise do Discurso •
Dispositivos de análise, procedimentos e escrita analítica.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Definir a teoria e o conceito de língua • Apresentar o contexto histórico e social em que originou a dis-
ciplina • Contextualizar a teoria no espaço brasileiro • Apresentar e exemplificar os principais conceitos
da teoria • Conhecer o método de análise e praticar a escrita analítica
INTRODUÇÃO

Prezada(o) discente, você já percebeu que a Linguística é um campo amplo


de conhecimento sobre a língua, que sempre é o mote das reflexões. Além
disso, já percebeu também que a forma como a língua é pensada pelos teó-
ricos filiados a estas teorias é diferente uma da outra. Chegou o momento
de conhecer mais uma teoria linguística, denominada Análise do Discur-
so (doravante AD), um campo teórico que carece de uma leitura atenta,
seguida de reflexões sutis, olhar atento e mente aberta para uma junção
de outras teorias que vai além da linguística e que, certamente, provocará
uma transformação no jeito acadêmico de refletir os fatos sociais, a partir
da língua (do discurso).
Você terá acesso aos aspectos fundadores que apresentam o contexto
social que marcou o lançamento oficial da teoria na França, bem como o
teórico Michel Pêcheux para fundamentar a apresentação da teoria para a
comunidade acadêmica daquele ano de 1969. Você saberá também que a
teoria da AD foi pulverizada para outros pontos geográficos, entre os quais
o Brasil se destaca. Tal relevância se dá por meio das publicações teóricas
e analíticas da linguista Eni Orlandi e de um exército de professores que
foram orientados por ela em pesquisas de doutorado e que, hoje, estão nas
universidades trabalhando a língua e analisando os acontecimentos sociais,
políticos, ambientais, de gênero etc. pela via teórica da AD.
Os conceitos fundamentais da teoria, seguidos de alguns gestos práticos
de análise, serão apresentados para que você tenha acesso tanto aos com-
ponentes teóricos que asseguram as análises de corpus escolhidos (piadas,
notícias, frases etc.) quanto perceberá, nas análises que serão desenvolvidas,
que há outros dizeres (outros sentidos) borbulhando na impressão apa-
rente e literal da língua, que está sempre em movimento e fazendo emer-
gir sua opacidade, exterioridade e incompletude. Na certeza de que vai se
surpreender (e se apaixonar pela AD), desejamos a você um ótimo estudo
e muitas reflexões produtivas.
1
ANÁLISE DO DISCURSO:
UNIDADE 4

DEFININDO
A TEORIA
e o conceito de língua

Chegamos em um novo momento do nosso material de estudos e, agora, apresen-


taremos a você mais uma teoria desse conjunto de saberes, vislumbrando ampliar
nossa capacidade reflexiva sobre a língua, enquanto instrumento de excelência
para o estabelecimento das nossas relações. Para iniciar o nosso percurso, é ne-
cessário elaborar uma definição básica dessa teoria e, para isso, lançamos duas
perguntas elementares:

Como se define a
O que é AD?
língua para AD?

Figura 1 - Introdução à Análise do Discurso / Fonte: a autora.

120
A AD é uma teoria do campo da Linguística, que foi oficialmente fundada no

UNICESUMAR
final da década de 60, especificamente, em 1969, na França, pelo filósofo Michel
Pêcheux, por meio do lançamento de sua tese de doutorado intitulada Analyse
Automatique du Discours (Análise Automática do Discurso - AAD).
Segundo Orlandi (2001a), a AD, como o próprio nome indica, elegeu o dis-
curso como o seu objeto de estudos e este, etimologicamente, significa curso,
percurso, correr, movimento. Nesse caso, estamos tratando do discurso, da pala-
vra em movimento por meio dos seres humanos falando e escrevendo. Então, a
AD trata da língua e da gramática? Não. Essa teoria não trata especificamente da
língua e da gramática, mas elas lhe interessam.
Avançando na nossa reflexão, retomamos Fernandes (2005) e sua afirmação
de que, pela via do senso comum, sempre que pensamos na palavra “discurso”,
usualmente, pensamos que ela está se referindo a pronunciamentos políticos ou
gerais, repletos de frases primorosas, marcadas de eloquência e retórica ou de
textos de escrita complexa e rebuscada. No entanto, precisamos compreender,
nessa fase inicial, que não estamos lidando com essas questões, mas do discurso
enquanto “[...] objeto do qual se ocupa uma disciplina específica, objeto de inves-
tigação científica [...]” (FERNANDES, 2005, p. 20). Complementando a definição,
o autor afirma que o


[...] discurso, tomado como objeto da Análise do Discurso, não é
a língua, nem texto, nem a fala, mas que necessita de elementos
linguísticos para ter uma existência material. Com isso, dizemos
que o discurso implica uma exterioridade à língua, encontra-se no
social e envolve questões de natureza não estritamente linguística.
Referimo-nos a aspectos sociais e ideológicos impregnados nas pa-
lavras quando elas são pronunciadas. (FERNANDES, 2005, p. 20).

Vamos exemplificar como o discurso se efetiva por meio de duas palavras que
circulam em nosso cotidiano, através da mídia tradicional (rádio, televisão, jor-
nais e revistas) e também das redes sociais contemporâneas: ocupação e invasão.
Veja o que nos diz o autor:


Tais substantivos são constantemente encontrados em reportagens e/ou
entrevistas que versam sobre os movimentos dos trabalhadores rurais
Sem-Terra e revelam diferentes discursos que se opõem e se contestam.
121
Em torno do Sem-Terra, ocupação é empregado pelos próprios e por
UNIDADE 4

aqueles que os apoiam e os defendem, para designar a utilização de algo


obsoleto, até então não utilizado, no caso, a terra. Invasão, referindo-se
à mesma ação, é empregado por aqueles que se opõem aos Sem-Terra,
contestam-nos, e designa um ato ilegal, considera os sujeitos em questão
como criminosos, invasores. (FERNANDES, 2005, p. 21).

O que precisamos apreender, nesse momento, é que diante de um mesmo tema


(sem-terra), sempre há presença de diferentes discursos que expressam a posição
contrária e/ou favorável dos grupos que se manifestam acerca do assunto. Por
meio da língua, ultrapassam o seu significado registrado nos dicionários e pro-
duzem efeitos de sentidos, conforme a posição social e discursiva que os falantes
ocupam (para a AD tais falantes são considerados sujeitos) ao emitirem suas
“opiniões” (seus discursos) sobre a temática. Nesta perspectiva teórica,


[...] as escolhas lexicais e seu uso revelam a presença de ideologias
que se opõem, revelando igualmente a presença de diferentes dis-
cursos, que, por sua vez, expressam a posição de grupos de sujeitos
acerca de um mesmo tema. (FERNANDES, 2005, p. 21).

Agora que já descobrimos o que é AD e que seu objeto de estudo é o discurso,


precisamos refletir sobre a língua, partindo de uma conceituação sobre ela, pois
é nela que o discurso se manifesta. Essa teoria, como já foi dito, não trabalha,
especificamente, com a língua, enquanto sistema abstrato, mas “[...] com a língua
no mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a pro-
dução de sentidos enquanto parte de suas vidas, [...] enquanto membros de uma
determinada forma de sociedade” (ORLANDI, 2001a, p. 16). Segundo a autora,
a AD busca compreender a língua fazendo sentido, enquanto parte constitutiva
das pessoas e da sua história. Sendo assim, essa teoria


[...] concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem
e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna
possível tanto a permanência e a continuidade quanto o desloca-
mento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive.
(ORLANDI, 2001a, p. 15).

122
As concepções da autora reforça a importância social da teoria da AD, para se

UNICESUMAR
compreender como os discursos são produzidos na sociedade em que estamos
inseridos e, principalmente, para promover um deslocamento do nosso posi-
cionamento em relação às temáticas que nos afetam, como política, economia,
meio ambiente, habitação, saúde, segurança pública, educação etc. Tais questões
(discursos) são produzidas por meio da língua que, nesse contexto teórico espe-
cífico é refletida da seguinte maneira:


[...] o sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e
para o idealista, para o revolucionário e para o reacionário, para
aquele que dispõe de um conhecimento dado e para o que não dis-
põe desse conhecimento. Entretanto, não se pode concluir, a partir
disso, que esses diversos personagens tenha o mesmo discurso [...].
(PÊCHEUX, 2009, p. 81).

A afirmação do filósofo Pêcheux pode ser compreendida pelas palavras “ocupa-


ção” e “invasão”, diante da situação política e agrária do nosso País. Para você:

O MST invade
terras?

O MST ocupa
terras?

Figura 2 - Análise dos verbos “invadir” e “ocupar” / Fonte: a autora.

Esta concepção de língua fundamenta, segundo Brandão (2004), sua condição de


autonomia relativa (contrapondo à tese saussuriana de que a língua é autônoma,
sistêmica etc.), pois ela constitui a possibilidade do discurso, diante das condições
123
produção possíveis em cada momento histórico e, além disso, a língua é o lugar
UNIDADE 4

material onde se realizam os efeitos de sentidos, ou seja, “[...] sujeitos se manifes-


tando por meio do uso da linguagem” (FERNANDES, 2005, p. 21).
Você já percebeu que a língua, para a AD, vai além do seu conceito saussuriano
de sistema/estrutura, pois, nessa concepção teórica, a língua é prática social, ou seja,
ela “[...] está encharcada de história, de valores, de conceitos, de imagens” (SOUZA,
2014, p. 6). Este autor salienta ainda que nada na língua é aleatório e o uso de pala-
vras e frases específicas e em condições específicas não é resultado da liberdade do
falante. Reflexão que aprofunda a questão sobre a língua, enquanto objeto


[...] determinado pelas possibilidades de dizer, que, por sua vez, são
determinadas pelas condições sócio-históricas de produção. Em-
bora, o sujeito possa dizer tudo na língua - enquanto falante do
idioma -, ele não pode dizer tudo na língua - enquanto sujeito do
discurso. Não é tudo que é permitido dizer a qualquer momento e
para qualquer pessoa. Há limites jurídicos, éticos, morais, políticos,
econômicos, afetivos etc. que constrangem o sujeito na sua liberdade
de enunciar. Portanto, o dizer é contingenciado (SOUZA, 2014, p. 6).

Desse modo, apresentamos algumas definições de língua, elaborada por pesqui-


sadores da AD:
a) A língua é passível de jogo e, para ocorrer sentido, ela se inscreve na his-
tória e dá lugar à interpretação (ORLANDI, 2001b).
b) A língua é heterogênea e considera a exterioridade (ORLANDI, 2002).
c) A língua se define pelas seguintes características: o deslize, a falha, a am-
biguidade e não transparência (opacidade) (ORLANDI, 2007).
d) A língua é o lugar material onde se realiza os efeitos de sentidos (OR-
LANDI, 2007).
e) A língua é sujeita a falhas e é afetada pela incompletude (ORLANDI, 2009).
f) A língua é fluida: está em constante movimento, não está contida, não se
deixa imobilizar, não tem limites (ORLANDI, 2009).

124
Tais definições de língua nos remetem à compreensão de que, para a AD, a lín-

UNICESUMAR
gua não se define enquanto um sistema, no qual tudo se mantém de maneira
organizada. Segundo Orlandi (2009) e a concepção teórica da AD, a língua não
se concebe por meio de conceitos normatizados, lógicos, estáveis, coercitivos, de
esquemas rígidos e lógicos, universalizados, gramaticalizados e colonizados. A
autora compara a língua “como um imenso rio, [...], que os olhos não abrangem,
não seguram, não limitam. Fluida”. (ORLANDI, 2009, p. 18).
Para facilitar a compreensão desses adjetivos atribuídos à língua, vamos apli-
cá-los, através do seguinte enunciado, retirado de Souza (2014): “Precisamos de
mais terra”. Segundo o autor, o referido enunciado, se analisado pela teoria da
AD, foge do óbvio e produz diferentes efeitos de sentidos, se for dito por um
latifundiário, um sem-terra, um índio, um garimpeiro ou um defensor do meio
ambiente etc. Tais efeitos podem significar dinheiro (latifundiário), posição po-
lítica (sem-terra), moradia (índio), lugar de exploração (garimpeiro), preserva-
ção (ambientalista). Veja que o sentido não está na palavra, mas é produzido
conforme as diferentes posições discursivas ocupadas por estes sujeitos. Então:
retomamos a tese pecheutiana, para afirmar que “[...] as palavras, expressões,
proposições etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles
que as empregam [...]” (PÊCHEUX, 2009, p. 146).
No dizer de Orlandi (2006), esse aspecto desloca a AD do terreno da lin-
guagem, enquanto instrumento de comunicação que ocorre por meio de uma
espécie de estímulo e resposta, ou seja, como uma relação linear entre enunciador
e destinatário. Por essa via, a língua é apenas um código em que faz a mensagem
ser transmitida ao outro e que a AD desconsidera totalmente.
Você já está inserido na teoria. Já sabe como ela se define e como a língua é
pensada e aplicada, mas precisamos avançar, pois há outros campos de saberes
essenciais que compõem a AD para que possa ser compreendida.
Vamos avançar mais?

125
2
A GÊNESE DA DISCIPLINA
UNIDADE 4

UM CAMPO
DE SABER
interdisciplinar

Voltamos no tempo, especificamente, no final da década de 60, considerado como


o período em que


Michel Pêcheux [...] dá início à Análise do Discurso na França,
como seu principal articulador, em fins da década de 60, época que
coincide com o auge do estruturalismo, como paradigma de forma-
tação do mundo, das ideias e das coisas para toda uma geração da
intelectualidade francesa (FERREIRA, 2003, p. 1).

126 Figura 3 - Michel Pêcheux (1938 – 1983) / Fonte: Labeurb ([2020], on-line)¹.
Retomando, a AD é uma disciplina que surgiu no final da década de 60, em um

UNICESUMAR
contexto francês em que a inquietude intelectual era a marca de vários pensadores
importantes, entre eles, destacamos aqui o filósofo Michel Pêcheux. Este pensador,
em 1969, apresentou-se oficialmente para o público francês, por meio de suas re-
flexões sobre a língua, tanto entre o grupo de intelectuais a que pertencia quanto
pelas publicações que ocorriam no meio acadêmico. Descobrimos onde a AD
surgiu e assumimos um posicionamento teórico que, não sem riscos, apresenta
Michel Pêcheux como o “fundador” dessa teoria.
Um período de efervescência social e da fundação da AD, enquanto disciplina
de entremeios. Entremeios? O que isso significa?
Antes de explanar esse conceito e qual é a sua aplicação no campo da AD,
não podemos deixar de tecer algumas reflexões sobre a dicotomia língua e fala
de Saussure e o contexto estruturalista (estudamos as dicotomias saussurianas
em Linguística I, você se lembra?). Saussure estabeleceu alguns conceitos para a
língua (homogênea, essencial, social, coletiva e pertencente a uma comunidade
linguística etc.) e, apesar de desconsiderar a fala (e foi criticado por isso) para
desenvolver sua teoria, ele a definiu como heterogênea, acessória, particular, in-
dividual e instrumento de uso dessa comunidade de falantes etc.
Segundo Orlandi (2006), a divisão dicotômica entre a língua e a fala ocorrida
pelo mestre genebrino foi deslocada de forma não dicotomizada para língua e
discurso, sendo possível desenvolver uma análise do seu funcionamento a par-
tir da relação da língua com a exterioridade que o determina, pois, no discurso,
questões relacionadas ao social e ao histórico são imbricadas, e isso, conforme
salienta Brandão (2004), afasta aquela concepção de língua como um conjunto de
signos neutros (e inocentes), que serve apenas para a comunicação e um suporte
de transmissão do pensamento.
Seguindo a revisão, afirmamos ainda que língua ganhou o status de objeto
de estudos da Linguística, naquele início de século XX (1916, data em que foi
lançada a obra Curso de Linguística Geral – CLG). Conforme salienta Souza
(2006), é impossível pensar no referencial teórico da AD sem passar pelas ideias
de Saussure, sendo que a dicotomia língua e fala é o que nos interessa, enquanto
analistas do discurso, pois foi a partir dela que teóricos como Mikhail Bakhtin,
Émile Benveniste, Zellig Harris, Roman Jakobson e Michael Halliday elaboraram
sua teorias linguísticas. Nesse momento, nosso foco será somente sobre Harris,
Jakobson e Halliday.

127
Para Souza (2006), nos anos 50 do século XX, Harris possibilitou uma abertura
UNIDADE 4

reflexiva para, posteriormente, Michel Pêcheux elaborar sua teoria sobre a AD. Ela
ocorreu nos Estados Unidos por meio de uma metodologia denominada “método
distribucional” e que foi divulgado na França, por meio da publicação de um artigo
intitulado Discourse analysis, revista francesa Langages 13, de março de 1969.
Para nós, o que interessa dessa informação é que Harris passa a considerar
a análise do texto para além da frase, ou seja, para além do seu limite, pois para
ele, pesquisa linguística se limitava aos elementos de uma frase, enquanto que o
discurso seria uma sequência de frases. Apesar das limitações (pensou no texto
como uma sequência de frases ou uma frase longa), a importância de Harris
para a AD é que ele conseguiu se livrar das amarras de uma análise linguística
conteudista, ou seja, ele migrou da pergunta “o que esse texto significa” para “como
esse texto significa”.
Continuemos com Souza (2006) para registrar o ponto teórico importante
de Jakobson, para a AD. Este linguista elaborou um esquema comunicacional
considerando a situação ou a realidade de comunicação em que ela se realiza:
o lugar, a época, a cultura das pessoas que comunicam, escolaridade, faixa etá-
ria etc. Neste esquema, os participantes são denominados como emissor (o que
transmite a mensagem), o receptor (que recebe a mensagem) e, além disso, há
outros elementos a serem considerados e que estão resumidos na figura abaixo:

MENSAGEM / CONTEXTO

REMETENTE DESTINATÁRIO

CÓDIGO

Figura 4 - Esquema de comunicação verbal / Fonte: adaptada de Jakobson (2000).

Para Orlandi (2001a), a AD vai além desse modelo estático de transmissão de


mensagem, pois ultrapassa esse jeito mecanizado, no qual um fala, por meio de
um código, e o outro recebe a mensagem, decodificando-a. A autora afirma que,
na concepção discursiva, a língua não é considerada como um código e muito
menos há separação entre emissor e receptor. É nesse ponto que ocorre a proposta
128
de discurso, pois o processo ultrapassa a mera e simplória transmissão de infor-

UNICESUMAR
mação (mensagem), pelo funcionamento da língua que estabelece uma relação
entre sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história.
Em relação ao linguista inglês Halliday, é importante registrar que ele ultra-
passou o limite da frase, passando a considerar o texto como “[...] unidade semân-
tica de qualquer tamanho que forma um todo unificado, pensando a linguagem
em uso fundamental de análise [...]” (SOUZA, 2006, p. 42). Resumindo:


Os trabalhos de Jakobson, Harris e Halliday são pontos de vista teó-
ricos que redirecionam a análise linguística, impulsionando-a para
além da imanência proposta pelo quadro epistemológico do Estru-
turalismo. Esses trabalhos de certa forma e de forma diferenciadas
permitiram a alforria dos estudos textuais em relação ao enclausu-
ramento das análises que se mantinham presas às orientações filoló-
gicas e estruturalistas, que não transcendiam os limites das frases. É
justamente nesse espaço que surgem as primeiras inquietações com
questões transfrásticas que seriam o embrião de uma nova perspec-
tiva de análise textual e, mais tarde, da AD (SOUZA, 2006, p. 42).

As informações apresentadas até aqui são consideradas como componentes bá-


sicos para entendermos os fatos reflexivos que antecederam à concretização da
teoria. Voltemos à definição de que a AD é uma disciplina de entremeios e, agora,
iremos responder à pergunta elaborada acima que, na conjuntura francesa e es-
truturalista da década de 60, foi concebida por meio de um campo interdiscipli-
nar, ou seja, ela é uma disciplina que não se formou de modo solitário (sozinha
em algum laboratório de pesquisa), mas a partir das reflexões de três campos de
saberes: a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise.
Em relação à Linguística, já apresentamos os apontamentos essenciais so-
bre a forma em que a teoria passou a conceber a língua, ou seja, a AD, segundo
Brandão (2004), estabeleceu uma articulação entre o linguístico e o social. Isso
significa que a teoria discursiva apoia-se em conceitos e métodos da Linguística,
mas não desconsidera outras temáticas, para não correr o risco de continuar de-
senvolvendo análises pela via da linguística imanente (a língua por ela mesma e
sem a influência de elementos externos como: cultura, política, história etc.). Essa
concepção foi elaborada por Michel Pêcheux, a partir da releitura de Saussure.

129
Outra temática considerada pelos teóricos da AD é o Marxismo (de Karl
UNIDADE 4

Marx ou materialismo histórico) que atua na formação da teoria considerando


que o ser humano faz história, mas ela também não é transparente, tal como su-
gere os relatos históricos com impressão de verdade única e absoluta. Segundo
Orlandi (2001a), houve uma conjugação da língua, considerada como forma
material (e não abstrata) com a história (em sua não transparência) na produ-
ção de efeitos de sentidos. Aqui é preciso abordar sobre a ideologia interpretada
por Louis Althusser, a partir da releitura de Karl Marx (faremos isso logo mais.
Continue sua leitura).
Em relação à Psicanálise, enquanto teoria que tem o inconsciente como seu ob-
jeto de estudos, o que importa para nós analistas do discurso é a questão do sujeito
discursivo e, nesse momento, você estudante, precisa apreender alguns conceitos
essenciais, concebidos pelo inconsciente freudiano e captados pela teoria da AD, a
partir da releitura que Jacques Lacan fez de Freud. Para a AD, o indivíduo não é o
dono do seu dizer e nem o senhor de sua morada, configurando-se sua condição de
sujeito. Voltaremos a isso na parte que trata dos conceitos da AD e, para despertar
uma reflexão, veja os que autores dizem sobre o sujeito discursivo:

O sujeito é descentrado
(ORLANDI, 2001a).

O sujeito é dividido, clivado,


cindido (Brandão, 2004).

O sujeito não é o dono do seu


dizer (FERNANDES, 2005).

O indivíduo é interpelado em
sujeito pela ideologia
(PÊCHEUX, 2009).

Figura 5 - Sujeito discursivo para a AD / Fonte: a autora.

130
Agora que você já sabe o motivo pelo qual a AD é considerada uma disciplina de

UNICESUMAR
entremeios, é preciso acrescentar algumas informações, para continuarmos nosso
percurso. Dentro dessa vertente, apropriamos de Orlandi (2001a) para salientar
que a AD é, de fato, herdeira dessas três áreas de conhecimento (a Linguística, o
Marxismo e a Psicanálise), mas não de modo servil, pois ela os interroga


[...] trabalhando na confluência desses campos de conhecimento,
irrompe em suas fronteiras e produz um novo recorte de disciplinas,
constituindo um novo objeto que vai afetar essa forma de conheci-
mento em seu conjunto: este novo objeto é o discurso. (ORLANDI
2001a, p. 20).

E este novo objeto teórico que está filiado a um campo de saber da Linguística é
tão importante para se refletir criticamente sobre os acontecimentos sociais que
ultrapassou as fronteiras geográficas da França. Foi por meio de pesquisadores
que foram para as universidades francesas desenvolverem pesquisas em nível de
mestrado e doutorado que a teoria da AD foi pulverizada para diversos lugares,
entre os quais o Brasil. Vamos conhecer a AD brasileira?

131
3
A ANÁLISE DO DISCURSO
UNIDADE 4

NO BRASIL:
uma teoria em movimento

Sabemos o que é AD e agora iremos apresentar a teoria dentro da realidade acadê-


mica brasileira e seu desenvolvimento, ao longo dos anos. A AD brasileira tem seu
marco inicial no contexto dos anos 70, cujo cenário principal é a ditadura militar.
Segundo Orlandi (2012), foi em um contexto político de repressão que a
professora da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora Eni Orlandi, no
ano de 1968, parte para a França. Foi na livraria Maspero, localizada na Rue St
Séverin que ela viu a obra Análise Automática do Discurso, produzida por Pê-
cheux. Foi nesse momento, especificamente, no ano de 1969, que a pesquisadora
encontrou o que tanto queria na academia: “[...] o político, a ideologia, os sentidos,
os sujeitos se reuniam à língua e podiam fazer parte do dia a dia da reflexão sobre
a linguagem” (ORLANDI, 2012, p. 17).
Eni Orlandi retornou ao Brasil em 1970, em um momento de extrema censura e
repressão, com a institucionalização do Ato Institucional número 5 (AI-5) assinado
pelo Presidente Costa e Silva. Como professora da USP e com o livro de Pêcheux
na mala, ela descobriu que “[...] para se falar uma coisa, pode-se falar outra. [...].
Era preciso acenar que o sentido podia/pode ser outro” (ORLANDI, 2012, p. 17).

132
A pesquisadora abre um campo de estudos para pensar o discurso na aca-

UNICESUMAR
demia brasileira, a partir de aulas e publicações nas quais apresenta noções e
conceitos dessa disciplina. Segundo a autora, naquele período os linguistas bra-
sileiros receberam a teoria com ares de desconfiança, ou seja, a entrada da AD
francesa de Michel Pêcheux, naquele contexto brasileiro dos anos 70, não ocorreu
sem resistências.
Foi neste cenário e com uma ditadura que não dava trégua que a pesquisadora
e professora Eni insiste e resiste focada no objetivo de que era preciso ensinar
AD para desvirar os discursos dominantes e mostrar que havia outros sentidos.
Em suma: “[...] era preciso aprender a ler outras palavras naquelas palavras” (OR-
LANDI, 2012, p. 19).
Ao longo dos anos, essa teoria se disseminou, produziu e sofreu deslocamen-
tos no Brasil, a partir de outros autores não menos importantes como: Michel
Foucault, Patrick Charaudeau, Dominique Maingueneau e outros que se alinham
a uma perspectiva de discurso mais próxima do pensador Mikhail Bakhtin.
Hoje, podemos afirmar que a AD no Brasil considera a Linguística nas suas
análises, mas também a História, a Filosofia, a Sociologia e a Psicanálise e dife-
rentes arquivos de análises que perpassam do verbal ao não verbal, do discurso
político ao dos sem-terra, grevistas, religiosos, jurídicos, científicos e cotidianos.
A AD brasileira se desdobrou, deslocou e ressignificou, consolidando-se no
diversos cursos de Letras ministrados em todo o Brasil (inclusive no nosso, aqui
do Unicesumar) e amadureceu de um modo capaz de assegurar seu lugar dentro
dos estudos científicos da língua realizado pelas ciências humanas.
No entanto, apesar de todas as ressignificações que a teoria vem passando,
não podemos esquecer que estamos atuando por meio de um legado deixado
por Pêcheux e, portanto, é necessário conhecer os principais conceitos da teoria,
bem como saber como aplicá-lo em uma possível análise discursiva. Vamos lá?

133
4
OS PRINCIPAIS
UNIDADE 4

CONCEITOS
da análise do discurso

Chegamos a um momento específico da nossa leitura sobre a AD, pois para se de-
senvolver uma análise discursiva de um arquivo (corpus: temas como machismo,
aborto, racismo, política etc.) escolhido por você, é necessário usar uma linguagem
também específica e amparada nos conceitos que direcionam e desenvolvem tal
análise. Por isso, como é preciso ter acesso aos principais conceitos dessa teoria e é o
que faremos agora, através da apresentação, definição e exemplificação dos seguin-
tes conceitos: língua, discurso, sujeito, condições de produção, ideologia, formação
ideológica, formação discursiva, interdiscurso, intradiscurso e memória discursiva.
Em relação à língua e ao discurso, já apresentamos as considerações essen-
ciais para compreendê-los, dentro da temática discutida aqui. Somente para re-
memorar a língua, para a AD, define-se pela sua opacidade, heterogeneidade/
exterioridade, o lugar onde a história se inscreve, algo que desliza em uma fluidez
capaz de proporcionar, pela sua materialidade, a realização de efeitos de sentidos.
O discurso também já foi apresentado, mas reforçamos que ele é o objeto de
estudos da AD, ou seja, não é a língua que foi eleita o objeto, mas o discurso aqui
apresentado como a produção de efeitos de sentidos entre locutores que ocupam
posições específicas (a posição-sujeito) na produção desses discursos.

134
Diante de tais definições, a língua não tem limites e muito menos se apresenta

UNICESUMAR
como um sistema perfeito e unidade fechada nela mesma e, por conta disso, ela está
sempre sujeita a falhas e sempre afetada pela incompletude e pela exterioridade.
Para a AD, a língua é opaca e, portanto, a condição de possibilidade do discurso.
Vamos exemplificar o conceito de língua com uma análise simples de uma piada.

A tia pergunta para a


sobrinha:
- Quando você crescer e
for bem grande igual a
titia o que você vai fazer?
- Regime.

Figura 6 - Análise discursiva de uma piada. / Fonte: adaptada de Piadas... ([2020], on-line)2.

O riso é provocado pela capacidade de uma língua ser colocada em funcionamen-


to, justamente pela sua opacidade, heterogeneidade e ser suscetível à inscrição da
história, da cultura e dos costumes sociais. Há uma imposição estética atual que
se impõe sobre as pessoas (principalmente para as mulheres) que são coagidas
a ter um padrão de beleza ideal (limite de peso, cor de cabelo e de olhos, altura
definida etc.). Ser grande, em vez de adulta, produz o efeito de sentido de estar
acima do peso (ser gorda, obesa) o que, em vez de apresentar uma profissão, por
exemplo, faz a sobrinha dizer que irá fazer regime para não ser igual à tia (fora
do padrão estético exigido).

135
Em relação ao sujeito discursivo, também já elencamos as informações bá-
UNIDADE 4

sicas, mas podemos repetir a tese base de Pêcheux (2009) de que o indivíduo é
interpelado em sujeito. O que acrescentamos aqui é que essa interpelação ocorre
pela ideologia (veremos esse conceito, logo mais). O sujeito do discurso não sig-
nifica o indivíduo de carne e osso, dono do seu dizer; é nesta relação entre sujeito
e ideologia que os sentidos vão sendo produzidos como um aceite involuntário
de um recrutamento obrigatório.
Vamos pensar sobre esse sujeito, a partir da análise de uma propaganda polí-
tica (promessa de campanha de candidatos a prefeito de uma cidade denominada
Progresso), em tempos de eleições:
a) Candidato à reeleição (situação): no meu segundo mandato, a cidade de
Progresso ficará ainda mais apropriada para cuidar de você, pois ampliare-
mos as vagas de empregos, vamos construir mais 10 escolas e reformar, além
das 20 que já reformamos, mais 15, e continuaremos com os projetos de
saúde, habitação, segurança, esporte e lazer. Continue confiando em mim.
b) Candidato à eleição (oposição): preciso do seu voto para que a cidade de
Progresso volte a crescer e atender às suas necessidades básicas, como
emprego, educação, saúde, habitação, segurança e mobilidade urbana. Nos
últimos 4 anos, 8 empresas migraram para outras cidades, por falta de
incentivo fiscal e de infraestrutura, não houve investimentos em educação,
basta ver a precariedade das nossas escolas, da falta de medicamentos nos
postos de saúde e do caos do nosso trânsito. Vejam as estatísticas: somente
neste ano, 35 pessoas morreram atropeladas.

Nessas duas propagandas que nós criamos, há duas posições marcadas, por um
sujeito que já é o prefeito em exercício, mas que quer continuar na prefeitura
por mais um mandato, colocando-se como candidato à reeleição. Nesse caso,
cabe a ele produzir um discurso positivo da sua atuação no poder executivo,
apresentando a concretização dos seus projetos, independentemente se foram
(ou não) realizados.
Por sua vez, o candidato da oposição assume uma posição que denigre o
mandato do seu oponente, apresentando os problemas atuais da cidade e, con-
comitantemente, enaltece o “futuro” mandato, dentro de uma perspectiva de já-
-eleito pelo povo, apresentando uma proposta de que a cidade irá crescer, pois fica
subentendido que não haverá desemprego (as empresas ficarão e virão outras),

136
haverá construção e reforma de escolas e investimento em mobilidade urbana e,

UNICESUMAR
consequentemente, redução das mortes no trânsito.
Veja que há uma única situação – eleição para prefeito de uma cidade –, mas os
candidatos assumem duas posições discursivas: situação e oposição. Precisamos,
no entanto, compreender tais posições a partir de suas condições de produção.

pensando juntos

Você não é o dono do seu dizer. Concorda que seu dizer é determinado, inconscientemen-
te, pela posição discursiva que ocupa? Será que a interpelação é sempre passiva? Ou, em
algum momento, o sujeito resiste?

Sobre as condições de produção do discurso, elencamos Orlandi (2001a, 2006)


e a sua explicação de que este conceito inclui o sujeito e a situação. Esta pode ser
pensada sob duas perspectivas: a do sentido estrito e a do sentido amplo. A pri-
meira (sentido estrito) significa as circunstâncias (o contexto) imediatas do dizer
(o aqui e o agora em que o discurso foi produzido) e a segunda (sentido amplo)
significa algo que vai para além do aqui e agora, pois compreende o contexto
sócio-histórico e ideológico do dizer.
Lembrando que as duas perspectivas não são consideradas de forma separa-
das e isoladas, vamos exemplificá-la com mais uma análise, inspirada em Orlandi
(2001a). Leia e reflita sobre o enunciado:

Figura 7 - Faixa instalada em um campus universitário / Fonte: Orlandi (2001a).

137
Contextualizando: em tempos de eleição para a reitoria de uma universidade,
UNIDADE 4

há uma faixa de tecido preto, encorajando, com letras brancas, os estudantes e


servidores a votarem sem medo, pois os votos não serão identificados (os alunos
e servidores poderão votar no candidato, conscientemente, no candidato que eles
acharem que fará uma administração eficiente e democrática). O sentido estrito
(ou contexto imediato) é o campus onde a faixa está instalada, os sujeitos que a
assinam (sindicato dos servidores, grêmio estudantil etc.), o momento de eleição
e de campanha eleitoral etc.
O sentido lato (ou contexto amplo) faz emergir a forma como ocorrem as
eleições para reitores, vereadores, prefeitos, deputados, presidentes em nosso país,
a forma como funciona as instituições e, entre elas, a universidade, a forma como
o poder dominante e o dominado se organizam, a cor da faixa e outras tantas
características que podem ser apreendidas. Pelas condições de produção do modo
como a campanha está ocorrendo, ela produz um efeito de sentido de que há uma
possibilidade de coação e ameaça, no processo eleitoral. Um efeito de sentido de
um possível “voto de cabresto”.
Para compreendermos o processo analítico da AD, precisamos ainda de outros
conceitos como a ideologia/formação ideológica (FI) e formação discursiva (FD).
Dentro de uma concepção marxista, o conceito de ideologia fora definido como “[...]
um conjunto de ideias que a classe dominante utilizava para dominar a classe do-
minada, mascarando e distorcendo a realidade dessa classe” (SOUZA, 2006, p. 49).
Para este autor, a ideologia marxista se define (e reduz) como uma espécie de
mascaramento da realidade social, promovida pela classe dominante (burguesa)
que aliena e mantém a classe dominada (classe proletária trabalhadora) sobre
uma ilusão redutora de pensar como a classe dominante, mesmo sem fazer parte
desse pequeno grupo. A AD ressignifica a temática da ideologia, a partir da relei-
tura que o filósofo Louis Althusser faz de Marx, pois ele, por meio da obra Sobre
a reprodução, afirma que a classe dominante, para manter-se nessa posição, uti-
liza o próprio Estado e seus aparatos repressivos e ideológicos, forçando a classe
dominada a aceitar a condição de continuar sendo dominada.
Segundo Althusser (2008), o Estado auxilia a classe dominante a continuar
nessa posição por meio de Aparelhos Repressores de Estado (AREs) e Aparelhos
Ideológicos de Estado (AIEs) (veja quais são esses Aparelhos na seção “Explorando
Ideias”). Essa teorização foi apresentada porque é essencial na concepção teórica da
AD, que considera o indivíduo como interpelado em sujeito pela ideologia (não há
sujeito sem ideologia) para que o dizer seja produzido. A ideologia é definida por
138
esse autor não mais como algo idealizado, mas a partir de uma existência material

UNICESUMAR
e que produz evidências naturalizadas (“a sociedade funciona assim e não há como
mudar”), ou seja, o dizer (a língua) é transparente e de sentido único.

explorando Ideias

Para ocupar lugares determinados inconscientemente, o indivíduo precisa ser, constante-


mente, e naturalmente, interpelado em sujeito. Isso ocorre por meio da reprodução natu-
ralizada e assegurada pelas instituições públicas, privadas e filantrópicas. Tais instituições
são subdivididas em Aparelhos Repressores do Estado (AREs) e Aparelhos Ideológicos do
Estado (AIEs).
• AIEs: escola, igreja, associação de bairro, partido político, sindicatos, disseminadores
de informações (mídias tradicionais: emissora de televisão, jornais, revistas e atuais:
blogs, sites, instagram, facebook, whatsapp etc).
• AREs: forças armadas (marinha, exército, aeronáutica), polícias (federal, estadual,
municipal), prisões etc.
A junção dos AIEs e dos AREs garante a reprodução das relações de produção, respec-
tivamente, pela ideologia e pela repressão (não são estanques. Há ideologia nos AREs e
repressão sutil nos AIEs).
Fonte: adaptado de Althusser (2008).

Tais questões (evidências) constituem os sujeitos em posições determinadas e,


portanto, produzindo sentidos também determinados. Pêcheux nos diz que a
ideologia “[...] ‘recruta’ sujeitos entre os indivíduos [...] e que ela os recruta a todos”
(PÊCHEUX, 2009, p. 144), como se fossem voluntários forçados, ou seja, como
indivíduos que “[...] recebem como evidente o sentido do que ouvem e dizem,
leem ou escrevem [...]” (PÊCHEUX, 2009, p. 144). A tese do autor se resume no
fato de que é nesse jogo discursivo que a ideologia atua e


[...] fornece as evidências pelas quais “todo mundo sabe” o que é
um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve etc.,
evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado “quei-
ram dizer o que realmente dizem” e que mascaram, assim, sob a
“transparência da linguagem” [...] (PÊCHEUX, 2009 p. 146).

139
Transparência criticada pela AD, que concebe uma ideia de que o sentido sempre pode
UNIDADE 4

ser outro e aqui ressaltamos mais dois conceitos: a FI e a FD.A primeira é definida como
um “[...] um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem ‘indi-
viduais’ nem ‘universais’ mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de
classes em conflito uma com as outras” (PÊCHEUX; FUCHS, 1997, p. 166).
Entra em jogo nessa questão, uma (ou mais) FD que


[...] numa formação ideológica dada – posição dada – numa con-
juntura dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura
dada, determinada pelo estado de luta classes, determina o que pode
e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, sermão, pan-
fleto, exposição, programa etc.) (PÊCHEUX, 2009, p. 147).

Para fechar esses conceitos, afirmamos, amparados nesse autor, que os indivíduos
são interpelados em sujeitos pela(s) FD(s) que representam, na linguagem, a(s)
FI(s). Vamos aplicar o conceito de FD, na seguinte análise:
3. Sem-terras invadem fazenda Santa Rosa na região noroeste do Paraná.
(uma notícia divulgada por um jornal de grande circulação).
4. Sem-terras ocupam fazenda Santa Rosa na região noroeste do Paraná.
(notícia publicada no site do MST).

Os dois enunciados tratam de um único acontecimento: invasão/ocupação da Fa-


zenda Santa Rosa pelo Movimento Sem-Terra (MST). Os efeitos de sentidos pro-
duzidos, porém, são diferentes em “invadir” e “ocupar”. Nas condições de produção
do enunciado “invadem”, o sujeito, inconscientemente, é interpelado a ocupar uma
posição que não se identifica com a FD (o que pode e deve ser dito) sobre o MST
e produz um efeito que negativiza o movimento como invasores que atacam a
propriedade privada. No segundo enunciado, o sujeito, por estar afetado pela FD
do MST, pois escreve para o site e, portanto, pode e deve apoiá-lo, justificando o
enunciado “ocupar”, produzindo um efeito de aceitação e defesa da ação do movi-
mento, diante de áreas improdutivas, justificando a ação de ocupar (e não invadir).
O interdiscurso é outro conceito que faz parte da teoria da AD e é aplicado nas
análises, juntamente com os demais conceitos já abordados. Ele determina a FD que se
apresenta a partir de diferentes discursos, ou seja, o interdiscurso aqui definido por Pê-
cheux (2009) como algo que fala sempre antes e em outro lugar, independentemente.

140
Retomamos Orlandi (2001a) para afirmar uma espécie de já-dito que dispo-

UNICESUMAR
nibiliza dizeres, afetando o modo com o sujeito significa. Vamos voltar à faixa com
o enunciado “vote sem medo”, instalada em um campus de uma universidade,
durante um período de eleições para reitor. Veja o que nos diz a autora:


Todos esses sentidos já ditos por alguém, em algum lugar, em ou-
tros momentos, mesmo muito distantes, têm um efeito sobre o que
aquela faixa diz. São sentidos convocados pela formulação: vote sem
medo! Que pressupõe, entre outras coisas, na experiência política
que temos, que as pessoas têm medo de votar, não votam livremente
etc. (ORLANDI, 2001a, p. 31).

Experiências passadas de sistemas políticos autoritários se presentificam no


enunciado “vote sem medo!”, por meio de uma posição (sindicato dos servido-
res), retoma dizeres já ditos sobre eleições no Brasil. Aqui é necessário retomar o
conceito de intradiscurso, que significa a formulação atualizada desses dizeres já
ditos, sobre processo eleitoral, ou seja, “[...] aquilo que estamos dizendo naquele
momento dado, em condições dadas” (ORLANDI, 2001a, p. 33).
Voltemos à autora, para resumir esses dois conceitos: o interdiscurso ocorre
no eixo da constituição, onde todos os dizeres já ditos e esquecidos, em um con-
junto de enunciados, representam o dizível. Já o intradiscurso ocorre no eixo da
formulação, ou seja, a partir da relação estabelecida com o interdiscurso (a cons-
tituição do dizer), o que é possível o sujeito dizer, na posição de representante dos
servidores e alunos, em um momento de eleições em uma condição de possível
coação ou voto forçado, em um candidato específico.
Avancemos um pouco mais, retomando Orlandi (2001b), e afirmamos que o
interdiscurso está dentro do plano de constituição dos sentidos e se caracteriza
como irrepresentável, mas capaz de calçar o que pode e deve ser dito (FD) por
um sujeito determinado pelo social e pela história, pois é no interdiscurso que
o sujeito é afetado pelo mundo e seus discursos, por meio de um plano de for-
mulação dos sentidos, ou seja, pelo fio de um discurso interior apresentado pelo
sujeito que, nesse caso, denomina-se intradiscurso
O sujeito, dentro dos limites da FD que o domina, o que equivale a dizer
que há sentidos que jamais poderão ser produzidos, utiliza-se de uma rede de
discursos disponíveis (interdiscurso) sobre um determinado tema e o atualiza
(intradiscurso) na sua formulação. Momento de abordar outro conceito: o da me-
141
mória discursiva, pois nesse jogo de repetibilidade e por meio de Pêcheux (1999),
UNIDADE 4

salientamos que não estamos tratando de uma memória individual e psicologista


(lembrar ou recordar de alguém, por exemplo), mas de uma memória discursiva
que faz circular formulações alhures.
Dessa forma, a memória discursiva, diante de um acontecimento novo, se confi-
gura “[...] sob o ‘mesmo’ da materialidade da palavra abre-se então o jogo da metáfo-
ra, como outra possibilidade de articulação discursiva… Uma espécie de repetição
vertical, em que própria memória esburaca-se, perfura-se [...]” (PÊCHEUX, 1999, p.
53). O autor apresenta a memória discursiva a partir da concepção de que ela não
é plena e muito menos homogênea, como um espaço que se desdobra e se desloca,
ou seja, não há memória sem exterior. Veja um questionamento prático sobre o
interdiscurso e a memória discursiva, adaptado de Indursky (2011):

Embora pareçam sinônimos, o interdiscurso e a memória discursiva são


conceitos que se diferenciam. O interdiscurso significa tudo o que já foi
dito sobre um determinado assunto, comportando todos os sentidos reu-
nidos (por exemplo, tudo o que já foi dito sobre o tema “tortura”, durante
o regime político militar brasileiro). A memória discursiva é a existência
histórica de enunciados inscritos no interior de uma FD que produzem
somente os sentidos autorizados ou esquecidos pela posição ocupada pelo
sujeito (por exemplo, quem vai discursivizar sobre a “tortura” é um general
que fez parte do exército, durante o regime político ditatorial brasileiro
(1964–1985) ou um cidadão que se opôs e resistiu ao regime e, por isso, foi
preso e torturado). O que eles estão autorizados a dizer e a não dizer sobre
a ditadura militar no Brasil?

Apresentamos a você os principais conceitos teóricos da AD e salientamos que


eles fazem parte das produções analíticas de linguistas filiados à teoria e que estão
presentes nas instituições de ensino de todo o Brasil. Para que você tenha uma
vivência prática sobre como tais análises são desenvolvidas, o próximo item será
produzido com exemplos práticos de análises discursivas. Vamos lá?

142
5
DISPOSITIVOS DE ANÁLISE,

UNICESUMAR
PROCEDIMENTOS
e escrita analítica

Iniciamos nossa reflexão com a apresentação de duas músicas:

Música: Ai que saudades da Amélia


Música: Desconstruindo Amélia
Composição: Ataulfo Alves e Mário
Composição: Pitty (gravada em 2009)
Lago (gravada em 1941)

Nunca vi fazer tanta exigência Já é tarde, tudo está certo


Nem fazer o que você me faz Cada coisa posta em seu lugar
Você não sabe o que é consciência Filho dorme, ela arruma o uniforme
Não vê que eu sou um pobre rapaz Tudo pronto pra quando despertar

Você só pensa em luxo e riqueza [...]


Tudo o que você vê, você quer Ela foi educada pra cuidar e servir
Ai meu Deus que saudade da Amélia De costume, esquecia-se dela
Aquilo sim que era mulher Sempre a última a sair

Às vezes passava fome ao meu lado [...]


E achava bonito não ter o que comer E eis que de repente ela resolve então
E quando me via contrariado dizia mudar
Meu filho o que se há de fazer Vira a mesa, assume o jogo
Faz questão de se cuidar (Uhu!)
Amélia não tinha a menor vaidade Nem serva, nem objeto
Amélia que era a mulher de verdade Já não quer ser o outro

143
Música: Ai que saudades da Amélia
UNIDADE 4

Música: Desconstruindo Amélia


Composição: Ataulfo Alves e Mário
Composição: Pitty (gravada em 2009)
Lago (gravada em 1941)

Hoje ela é um também


A despeito de tanto mestrado
Ganha menos que o namorado
E não entende o porquê

[...]
Hoje aos 30 é melhor que aos 18
Nem Balzac poderia prever
Depois do lar, do trabalho e dos filhos
Ainda vai pra night ferver
Todo dia até cansar (Uhu!)

Quadro 1: Relação entre as duas músicas / Fonte: Ai que saudades...([2020], on-line)3; Des-
construindo... ([2020], on-line)4.

Na letra de Ataulfo e Mário, Amélia é considerada uma mulher de verdade, por


não fazer exigências, não ter vaidade e até passar fome ao lado do seu amado. A
música — que aqui se configura como um discurso — produz efeitos de sentidos
de um período histórico e social (década de 40) de uma mulher que se significa
pela FD machista, como aquela que deve ser submissa, dependente emocional-
mente e financeiramente do homem. Pela posição social que ocupa naquela socie-
dade, ela não tem voz e autonomia para reivindicar direitos e mudar sua condição
de vida, pois está interpelada por uma posição-sujeito, marcada por uma FI que
produz uma evidência de sentido de que é este o lugar que deve ocupar, dentro
do conceito de família tradicional que se compõe por uma relação conjugal entre
um homem e uma mulher.
A composição de Pitty é produzida em outro momento histórico e social,
já marcado pelas conquistas de direitos, resultante das lutas pela igualdade de
gênero, organizadas pelas mulheres, em décadas passadas e que continuam na
atualidade. Aqui, o sujeito se posiciona (é interpelado) por uma FD feminista e
ressignifica a posição da mulher que resiste e luta (vira a mesa, assume o jogo),
mas ainda marcada por desigualdade de gênero (ganha menos que o namorado,
apesar do título de mestrado). Uma mulher moderna e que se cuida (mais bonita

144
aos 30 anos do que aos 18 anos), mas que sobrecarregada pelas atribuições que

UNICESUMAR
assumiu (cuida do lar e dos filhos, estuda e trabalha fora) e ainda arruma tempo
para o lazer (vai para a night ferver).
Apresentamos um modelo básico de um direcionamento analítico, mas fecha-
remos o item com uma análise desenvolvida por Souza (2014). Em um primeiro
momento, apresentaremos o material de análise:

Figura 2 - Cartoon Ebola / Fonte: Souza (2014, p. 37).

Estamos diante do objeto de análise e agora é preciso mobilizar os conceitos da


AD, para averiguar os efeitos de sentidos produzidos por esse cartoon sobre a
doença Ebola, que surgiu em 1976, na República do Congo, mas que houve re-
corrência em 2014 em outros países, como os Estados Unidos. Diante do corpus,
inicia o movimento de análise, por meio de um processo denominado pelo autor
como leitura flutuante, no qual o leitor (o analista do discurso) vai tateando,
explorando, descrevendo, interpretando até o sentido ser estabelecido.
Em um segundo momento, o analista passa a desenvolver uma leitura analí-
tica, amparado em três perguntas básicas: a) qual é o conceito-análise presente no
texto?; b) como o texto constrói o conceito-análise?; e c) a que discurso pertence
o conceito-análise construído da forma que o texto constrói?

145
Estamos diante de um objeto de análise que se configura como um texto não
UNIDADE 4

verbal (para a AD, cor, desenho, som, picho e grafite no muro, tatuagem no corpo
é texto e, portanto, objeto de análise). O conceito-análise é a cobertura da mídia
no caso Ebola. Veja que há apenas uma pessoa doente com a pele branca e, por-
tanto, o único alvo de atenção pela imprensa (há dois repórteres, entrevistando e
fotografando a pessoa), os demais são pessoas negras. A segunda pergunta “como
o texto constrói o conceito-análise?”. Veja o que nos diz o autor:


A pergunta [...] nos leva a um sentido de cobertura desbalanceado
em função de interesses. Dentre os vários doentes, somente o pa-
ciente de pele branca, metaforizando os países de primeiro mundo,
é foco de atenção da mídia. A cobertura da imprensa, criticada e
evidenciada no desenho, apresenta um discurso centrado no Oci-
dente (SOUZA, 2014, p. 37).

Segundo o autor, essa mobilização ocorreu porque houve a sensação de que a


doença estava chegando nos Estados Unidos e na Europa e despertaram a atenção
tanto da mídia quanto dos segmentos da saúde. Diante desse acontecimento, a
imprensa passou a divulgar a doença com mais frequência, pois dois missionários
americanos se infectarem e, imediatamente, criaram uma droga experimental e
iniciaram o processo de cura. Antes desse acontecimento, parece que a doença
era apagada (inexistente).
O não verbal mobiliza sentidos e faz funcionar os conceitos de língua, forma-
ções ideológica e discursiva, interdiscurso e memória discursiva, e cabe a você
mobilizar esses conceitos (ou um deles) em uma escrita analítica. Esta é realizada
de um modo pessoal, mas sem esquecer da descrição, interpretação do corpus e
a aplicação dos conceitos. Sobre este aspecto, o autor afirma que


[...] a escrita da análise pode ser melhor organizada em formato
linear. Por conta da tradição de organização da textualização aca-
dêmica, um texto sequencial, bem definido em suas partes, é mais
bem acolhido dentro do gênero acadêmico (SOUZA, 2014, p. 40).

146
Para desenvolver essa escrita, o autor sugere alguns passos para a estruturação

UNICESUMAR
do texto:
a) Caracterização da análise: contextualizar o cenário em que a análise irá
ocorrer: apresentar e descrever o corpus, os conceitos que irão ser mobi-
lizados. Enfim, o leitor precisa estar informado sobre os procedimentos
do analista.
b) Explicitação do dispositivo teórico e do dispositivo analítico: aqui o ana-
lista vai informar em qual pressuposto teórico ele vai desenvolver sua
análise (a AD), sem deixar como ela compreende a língua, o sujeito, a
ideologia etc. Em seguida, ele vai descrever o dispositivo analítico, por
meio da individualização da teoria (a análise pessoal do corpus), ou seja,
um trabalho específico, singular, diante do mesmo dispositivo teórico.
c) Relato da análise: descrição e interpretação. Após esse processo de des-
crição e interpretação, o analista organiza (arruma) suas hipóteses, para
fornecê-la de forma arrumada para o leitor, apresentando o resultado (o
discurso) produzido na sua análise, pela materialidade do texto analisado
(marcas, exemplos, palavras retiradas do objeto de análise).
d) O retorno da análise: o analista registra suas conclusões e outras questões
que podem surgir, durante o processo de análise, para serem refletidas em
outro momento (outro texto, por exemplo).
e) Referência, anexo e apêndices: todo trabalho acadêmico deve apresentar
as referências utilizadas, e é isso que o analista irá fazer, ou seja, registrar as
obras e seus autores utilizados, no processo de análise, o corpus analisado,
os links de vídeos etc.

Apresentamos um exemplo de análise; vale lembrar que, quanto mais análise


você desenvolve (seja para você compreender os acontecimentos sociais) ou para
divulgar (em projetos de iniciação científica, pós-graduação etc.), ela vai sendo
facilitada. Mãos na massa discursiva, pessoal!

147
CONSIDERAÇÕES FINAIS
UNIDADE 4

Prezada(o) estudante, chegamos ao final desta unidade de estudo, que apresentou


uma proposta de discussão sobre mais uma teoria do campo da linguística. Você
teve acesso às informações epistemológicas da AD no contexto francês do final
da década de 60 e conheceu Michel Pêcheux, um filósofo inquieto sobre a forma
como a língua era pensada, em um período marcado pelo auge do estruturalismo
e que concebia a língua como autônoma e fechada em uma ordem sistemática e
nela mesma, ou seja, sem ser afetada por aspectos exteriores, como a cultura, a
história etc. (lembra que em Linguística I, estudamos sobre esse momento histó-
rico, por meio de Saussure?).
Os desdobramentos da teoria culminaram na sua migração para além das
instituições de ensino francesas, pois borbulhava, inquietantemente, na mente de
pesquisadores (como Eni Orlandi), que foram para lá desenvolver seus projetos
de mestrado e doutorado e retornaram, posteriormente, com suas malas repletas
de livros sobre uma teoria que refletia os acontecimentos sociais, por meio de
uma língua pensada como opaca, heterogênea e enunciada por sujeitos afetados
pela história e pela vida. Foi desse modo, que a AD chegou ao Brasil, e estamos
sendo agraciados pela oportunidade de conhecê-la, reconhecidamente, de uma
forma superficial, introdutória e (por que não assumir?) simples.
No entanto, na tentativa de superar as dificuldades de apresentar uma teoria
complexa em poucas páginas e para “iniciantes”, mas com vivência linguística, a
maioria dos conceitos básicos foram apresentados com a preocupação de regis-
trar sua aplicação, por meio de ensaios analíticos. Nesse momento, o importante
é que você não se esqueça de olhar os acontecimentos sociais com desconfiança
e colocando em xeque as evidências dos sentidos postos e cristalizados, ou seja,
não se esqueça de que há outras possibilidades interpretativas, pois o dizer sempre
pode ser outro. Avante!

148
na prática

1. Leia e interprete o texto I, aplique sua interpretação no texto II e assinale a alter-


nativa correta.

Texto I

Para a AD, a língua não é fechada em si mesmo e é a condição da possibilidade de um


discurso, definindo-se como um objeto heterogêneo e não transparente (opaco). Ela
não funciona fechada sobre si mesma, pois de um lado funciona a estrutura, a regra
e a estabilização e, do outro, o movimento e os sentidos que vão sendo produzidos
nos gestos interpretativos do analista.

Texto II

Tema: reforma da previdência.


a) Ministro da Economia, aliado do Governo: a Reforma vai reduzir as desigual-
dades sociais e eliminar os privilégios de alguns.
b) Presidente do Sindicato dos Servidores Públicos: a nova previdência dificulta
o acesso à aposentadoria integral e vai aumentar, ainda mais, a pobreza do
trabalhador.

Assinale a alternativa com a interpretação correta:

a) Para a AD, a língua é lugar de interpretações, justificando a interpretação da re-


forma da previdência como algo que vai beneficiar os mais pobres e promover
a igualdade social.
b) Independentemente da posição do sujeito (se faz, ou não, parte da base go-
vernista), a língua não possibilita opiniões contrárias e divergentes sobre um
determinado tema como a Reforma da Previdência.
c) Para a AD, a língua é heterogênea, inscreve-se na história e possibilita interpre-
tações, conforme a posição discursiva do sujeito que enuncia, justificando as
opiniões divergentes sobre a Reforma.
d) A língua, pela sua transparência e impossibilidade de produzir várias interpre-
tações, sempre possibilita uma única via interpretativa, independentemente da
posição do sujeito que enuncia.
e) Pela heterogeneidade da língua e a marca dos acontecimentos históricos e so-
ciais que refletem nela, conclui-se que a Reforma, certamente, vai beneficiar os
mais pobres.

149
na prática

2. Segundo Orlandi (2001), a análise do discurso (AD) surgiu no contexto social e his-
tórico da década de 60, do século passado. Entre as atribuições, ela pode ser defi-
nida como uma das disciplinas do campo teórico da Linguística, que colaborou na
promoção de uma ruptura com as teorias do século XIX. Ao ser considerada como
uma disciplina de entremeios, pelo fato de se constituir a partir de três campos de
saberes, leia as afirmativas a seguir:

I - A AD é considerada uma disciplina de entremeios porque sua formação básica é


constituída por três campos de saberes: a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise.
II - Um dos três campos de saberes que compõem a base da AD é Linguística, que
reflete a língua como algo opaco e heterogêneo, ou seja, algo que vai além da
sua transparência literal.
III - Apesar de a AD fazer parte do conjunto de disciplinas do campo da Linguística,
ela se compõe de campos de saberes, como o Marxismo e a Psicanálise, por
meio da apropriação, sem modificação dos seus conceitos elementares.
IV - A AD é considerada uma disciplina de entremeios, pois se apropriou dos con-
ceitos elementares da Linguística para compreender a língua, do Marxismo para
compreender o homem e a história e da Psicanálise para entender o fenômeno
do sujeito como aquele que não é dono do seu dizer.

Assinale a alternativa correta:

a) Apenas I e II estão corretas.


b) Apenas II e III estão corretas.
c) Apenas I está correta.
d) Apenas I, II e IV estão corretas.
e) Nenhuma das alternativas está correta.

3. Analise a seguinte situação (condições de produção): em tempos de eleições para


a reitoria da Universidade Federal Machado de Assis, o Sindicato dos Servidores
Públicos, juntamente com o Diretório Central dos Estudantes, produziram uma faixa
com o seguinte discurso: “vote sem medo: o voto é secreto e não será identificado”.
Considerando a teoria das condições de produção do discurso e seus contextos
imediato e amplo, leia as afirmativas, verifique se é verdadeira (V) ou falsa (F):

150
na prática

( ) A compra do tecido, a confecção da faixa, a instalação no pátio da Universidade


e, principalmente a escrita do texto (discurso) são considerados como circuns-
tâncias imediatas, ou seja, o momento atual em que o discurso foi produzido.
( ) A escrita do texto “vote sem medo: o voto é secreto e não será identificado” se
configura como uma circunstância imediata, pois trata-se de um recado para
lembrar os servidores e os estudantes sobre o evento eleitoral que ocorrerá
no dia seguinte.
( ) A produção da faixa com a informação “vote sem medo: o voto é secreto e não
será identificado”, considerada em um sentido amplo, produz um efeito de sen-
tido de que, historicamente, os processos eleitorais são sempre realizados de
forma democrática e sem ameaças.
( ) A produção da faixa com a informação “vote sem medo: o voto é secreto e não
será identificado”, considerada em um sentido amplo, produz um efeito de sen-
tido de que, historicamente, os processos eleitorais ocorreram (e ainda podem
ocorrer) sob o modo “voto de cabresto”.

Assinale a alternativa correta:

a) V, F, V, F.
b) V, V, F, F.
c) F, V, F, V.
d) F, F, F, V.
e) V, F, F, V.

4. Leia o texto, complete as lacunas e assinale a alternativa correta:

A Análise do Discurso é uma teoria pertencente ao campo de saber da Linguística


que apresenta o ____________ como seu objeto de estudo. Nessa teoria, a língua não
é considerada como algo _____________, mas ___________ e ______________. Para se fazer
uma análise discursiva de um corpus, é necessário considerar os conceitos básicos,
entre os quais citamos alguns: condições de produção, formação ideológica e discur-
siva, interdiscurso e memória discursiva. O conceito ________________ significa dizeres
(discursos) ditos anteriormente e em outras situações (condições de produção).

151
na prática

a) Discurso, transparente, opaca e incompleta, interdiscurso.


b) Discurso, transparente, opaca e completa, formação discursiva.
c) Discurso, opaca, transparente e homogênea, interdiscurso.
d) Discurso, incompleta, transparente e completa, memória discursiva.
e) Discurso, heterogêneo, homogênea e completa, interdiscurso.

5. A língua, para a Análise do Discurso (AD), é definida como um objeto heterogêneo,


opaco e, portanto, afetada pelos acontecimentos sociais, político, econômicos e cul-
turais de diferentes momentos históricos. A língua e os demais conceitos básicos da
teoria (condições de produção, formação ideológica, discursiva, sujeito, interdiscurso,
intradiscurso e memória discursiva) oferecem as possibilidades para se desenvolver
uma análise, ou seja, os efeitos de sentidos que produzem em cada materialidade
(em cada corpus selecionado para ser analisado).

Material de análise
Tema: saúde pública brasileira.

Fonte: EOS (2017, on-line)5.

Considerando as informações teóricas e o material de análise, elabore uma síntese


analítica do material, elencando qual é o efeito de sentido produzido no discurso
enunciado pelo médico, ao enunciar que o problema é “de gestão”. Para isso, consi-
dere a saúde pública no Brasil como condições de produção do discurso produzido
pelo sujeito em posição de médico de um hospital público.

152
aprimore-se

CIDADE DOS SENTIDOS

A obra da linguista Eni Orlandi, denominada Cidade dos Sentidos, apresenta uma
análise discursiva sobre a cidade, enquanto uma realidade que se impõe com toda a
sua força, pensada dentro da lógica capitalista. Nela, os indivíduos, na sua diferen-
ça, relacionam-se concentrados no mesmo espaço, e o objetivo da autora é não cair
nas facilidades do discurso homogeneizante da violência, pois quando se fala em
cidade, fala-se em violência que gera um efeito de sentido, pelo discurso produzido,
de que ela é provocada somente pela classe pobre (e não a rica). Ela exemplifica: o
bloqueio de uma rua pela classe média para as festinhas de seus filhos é ecologis-
mo, mas se o mesmo ato ocorrer em um bairro de classe pobre, produz um efeito
de vandalismo, desordem e impedimento da mobilidade urbana.
Por isso, é preciso considerar o espaço urbano como heterogêneo e ir além da
voz do consenso, aquela das autoridades que, geralmente, defendem o controle da
violência pela privatização do espaço público, potencializando, ainda mais, a violên-
cia. A autora apresenta como alternativa o cuidado social e coletivo, mas isso fica
fora, com cada um investindo em solução individual, direcionada para a redução da
capacidade do relacionamento social.
E assim, o espaço urbano se configura em condomínios, enquanto resultado de
proteção da violência. Não é se fechando nos espaços de convivência mínima (e
intolerância máxima) que se promove a sociabilidade, mas abrindo-se para o social,
com os bolsões da violência expostos ao bem público: escola, lazer, cultura, trans-
porte, esgoto, asfalto etc.
Para a autora, as pessoas, com medo, isolam-se e fazem muros, num processo
ambíguo de exibição que ostenta um poder econômico que só aumenta a hostilida-
de. Essa divisão física não é suficiente, pois os fechamentos de espaços diminuem a
capacidade de convivência, diminuem os roubos em residências, mas aumentam os
assaltos e assassinatos na rua. A questão é social e a solução também e, nesse caso,
a responsabilidade da violência se concretiza na falta de investimento no social.

153
aprimore-se

Enquanto as pessoas se isolam, o crime organizado aumenta; enquanto mantém o


assistencialismo (má consciência social) às populações carentes e incentiva a militari-
zação da população, a segurança pública fica cada vez mais longe da nossa realidade
e das nossas cidades, com seus bairros ricos e seus equipamentos públicos de qua-
lidade, e os bairros pobres, sem condições e com esgoto correndo a céu aberto etc.
As pessoas apoiam a repressão para resolver questões que surgem por causa da
supressão do social, sendo que o que deveria ser feito era justamente o contrário.
Na lógica da repressão, não há espaço público social, há repressão em cidades que
constroem muros que intensificam a hostilidade social, pois de um lado (dentro do
muro), estão os corretos, os legítimos, os que têm direitos e bens, educação etc., do
outro (fora do muro), o que agride.
Em nome da segurança, separa um número de casas do resto da cidade que sim-
boliza uma separação do lado “amigo”, capaz de convívio, e todo o resto é suspeito.
Fechar-se em condomínios – gesto não social de segurança – acrescenta outros in-
convenientes: a incapacidade de conviver com a cidade como tal e produz em seus
habitantes uma sensação enganosa de segurança, pois nenhum muro é indevassável
e as pessoas não prescindem da vida social, pois não se pode deixar o social “lá fora”.
A autora não nega que a violência é um problema e que o medo é justificável.
Mas a maneira como tentamos solucionar isso vai determinar nosso futuro, com
uma sociedade formada por relações de forças e seus cidadãos fechados. Armados.
E se não somos assaltados em casa, somos na rua, diminuem os roubos e aumen-
tam os sequestros, os assassinatos etc.
Orlandi (2004) pensa sobre a violência urbana a partir de três momentos: a)
constituição; b) manutenção; e c) desencadeamento. No nível da constituição, as
causas da violência são oriundas da má gestão das relações sociais e econômicas e
que resultam na impossibilidade de a população ter acesso aos bens sociais neces-
sários, econômicos, culturais e também aos bens simbólicos como os do saber, da
moral, da ética que subjazem às práticas sociais. Esses bens têm estado ausentes
das práticas de administração pública, o que autoriza ainda mais seu desrespeito à
população (principalmente os pobres).

154
aprimore-se

Sobre a manutenção da violência, a autora começa mencionando nossa con-


cepção de polícia calcada em repressão. Ela não serve apenas para reprimir, mas
para assegurar direitos para qualquer cidadão e que seria a base para desenvolver
políticas públicas não só repressivas e de reforço da exclusão, da discriminação,
da segregação, mas também da formação, da garantia de direitos e na prática de
deveres. A ausência de direitos expulsa a noção de deveres. É cada um por si e o
Estado contra todos.
Diz a autora que, na prática de fazerem-se muros e guaritas, há uma exibição
mal disfarçada de poder econômico e social e sugere: em vez de propor bolsões de
segurança, tentar inferir nos bolsões da violência por meio de equipamentos públi-
cos, transporte frequente, iluminação, escola, projetos culturais e de lazer. Ela nos
faz uma pergunta: que cidade nós estamos construindo? E é aí que devemos investir
com nossas reflexões e propostas, pois os gestos que foram feitos no passado leva-
ram-nos aos problemas que enfrentamos hoje.
É preciso cuidar da cidade como um todo e iludem-se os que pensam que podem
se separar do social, atrás dos muros. O social não acaba aí. Talvez um investimento
sério em educação poderia ajudar (e muito), pois não há urbanidade moderna sem
escrita e fazer a escola ir para a rua significa fazer o sujeito experimentar os sentidos
da cidade e desfazer as fronteiras produzidas pela verticalização que, ao metaforizar
a quantidade, mantém uma distinção: onde há pouco fica pouco (os ricos) onde há
muito fica muito (os pobres).

Fonte: adaptado de Orlandi (2004).

155
eu recomendo!

livro

Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio


Autor: Michel Pêcheux
Editora: Unicamp
Sinopse: a obra foi lançada em 1975, por Michel Pêcheux, e apre-
senta um estágio aprofundado da teoria sobre a AD, ligando os
fios básicos sobre as condições em que ocorrem o processo dis-
cursivo, dentro do contexto da linguística, da história, da psica-
nálise e da teoria ideológica sobre a luta de classes. A leitura exige dedicação do
leitor, pois Pêcheux apresenta os conceitos básicos da teoria de uma forma que
exige um deslocamento do leitor para uma concepção de língua que funciona por
aspectos que passam longe das regras da gramática tradicional e de um empiris-
mo simplório.
Comentário: Recomenda-se que leiam as outras obras do autor.

filme

Nós que aqui estamos por vós esperamos


Ano: 1988
Sinopse: o documentário brasileiro é um longa-metragem diri-
gido por Marcelo Masagão, que retrata fatos e personagens do
século XX, por meio de imagens de arquivo que retomam os
acontecimentos históricos, políticos, sociais e científicos mais re-
levantes. Entre Saussure, Freud, duas grandes guerras mundiais
e exploração da classe trabalhadora, a posição social da mulher e
o cotidiano dos garimpos, a vida e a morte fazem parte de um conceito vago, que
ainda busca compreensão nessa sociedade marcada por tantos acontecimentos.
Comentário: uma alternativa de estudo interessante para pensar nos aconteci-
mentos ocorridos, durante o breve século XX e para fazer uma análise discursiva
dos conceitos da AD.

conecte-se

Quer saber um pouco mais sobre a teoria linguística da Análise do Discurso (AD)?
Assista à entrevista da Professora Dra. Eni Orlandi:
https://www.youtube.com/watch?v=3U4WoY6CWvQr
156
anotações



































5
ENSINO E APRENDIZAGEM
DE LÍNGUA
MATERNA:
reflexões teóricas e práticas

PROFESSORA
Dra. Vera Lucia da Silva

PLANO DE ESTUDO
A seguir, apresentam-se as aulas que você estudará nesta unidade: • Gramática Normativa Tradicional
e Língua Portuguesa Brasileira: questões sobre ensino e aprendizagem • Ensino contextualizado da
Língua Portuguesa Brasileira: desapego ao passado colonial • As classes gramaticais: uma questão
pronominal • Língua, ensino e aprendizagem: des(re)fazendo a receita.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Apresentar uma reflexão sobre a concepção de língua no contexto linguístico brasileiro atual e na
gramática normativa tradicional • Refletir sobre o ensino da Língua Portuguesa Brasileira no contex-
to educacional atual • Apresentar uma das classes gramaticais e refletir sobre elas, a partir de uma
conjuntura linguística contemporânea • Pensar sobre outras possibilidades de um ensino efetivo e
contextualizado da língua.
INTRODUÇÃO

Estudantes, chegamos à última unidade desse material de estudos e você,


enquanto falante competente da sua língua materna, percebeu que a língua
pode e deve ser pensada por meio de teorias filiadas a vários campos de
saberes linguísticos, mas com especificidades metalinguísticas e reflexões
analíticas próprias de cada teoria e seus autores específicos, conforme as
teorias linguísticas apresentadas nas unidades anteriores. A diversidade da
língua é algo presentificado nas inúmeras situações que a afasta da condição
de homogênea e fixada no tempo e no espaço; seu ensino e aprendizagem
devem considerar tais características e também as reflexões apresentadas
pela gramática normativa tradicional.
A unidade será desenvolvida por meio da apresentação de conceitos e
exemplos contemporâneos contextualizados, ou seja, afastado dos aspectos
que concebe a língua apenas pela realidade colonialista dos séculos pas-
sados. É por meio de indagações sobre a nossa língua falada e escrita hoje
e que iremos chegar aos aspectos gramaticais defendidos pela gramática
normativa tradicional e que, não por acaso, são estudadas até hoje. Nossa
proposta aqui é se apropriar de um tema (escolhemos os pronomes pes-
soais oblíquos) e elaborar outras alternativas de ensino e aprendizagem,
sem desconsiderar a base tradicionalista, mas também considerando a
realidade linguística atual dos falantes.
Por isso, consciente dos riscos teóricos, fecharemos a unidade tecendo
algumas questões sobre ensino e aprendizagem de língua, sem o intuito
de elaborar uma receita pronta, mas apresentar argumentos favoráveis e
contrários que poderão auxiliar a des(re)fazer uma nova receita para atuar
no chão da escola e/ou na vida em sociedade. Vamos iniciar a leitura?
1
GRAMÁTICA NORMATIVA
UNIDADE 5

TRADICIONAL
E LÍNGUA PORTU
GUESA BRASILEIRA:
questões sobre ensino e
aprendizagem

Nas diversas graduações em Letras, ministradas no Brasil, a linguística, e as de-


mais temáticas apresentadas durante o curso, oferece formação básica para atuar
na sala de aula, como mediador(a) da língua. Em relação ao ensino e à apren-
dizagem de língua, retomamos Faraco (2008) para registrar as dúvidas sobre o
que é certo ou errado dizer ou escrever, independentemente se a posição que
ocupamos é de professor ou aluno.
Diante de um dilema que permeia as discussões sobre quais medidas peda-
gógicas aplicar na mediação do ensino e aprendizagem da nossa própria língua
(aquela que começamos adquirir ao nascer), registramos aqui uma questão polê-
mica: o processo de ensino e aprendizagem da língua deve ser somente mediado
pela gramática normativa tradicional?
É preciso ir além e questionar algumas ideias homogeneizantes e buscar outros
subsídios indicados por documentos oficiais, como os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs) e a Base Curricular Nacional Comum (BNCC). O primeiro do-
cumento indica um ensino de língua amparado em gêneros textuais que circulam
socialmente. Contrário a métodos de ensino que mutilam as culturas e menos-
prezam as variedades dialetais dos alunos, este documento vislumbra respeitar as
diferenças e se livrar do mito de que “[...] existe uma única forma ‘certa’ de falar e
[...] sendo assim [...] seria preciso ‘consertar’ a fala do aluno” (BRASIL, 1997, p. 26).

160
Em um contexto atualizado, a BNCC sugere que a Língua Portuguesa seja

UNICESUMAR
mediada no Ensino Fundamental, por meio da


[...] centralidade do texto como unidade de trabalho e as perspecti-
vas enunciativo-discursivas na abordagem, de forma a sempre rela-
cionar os textos a seus contextos de produção e o desenvolvimento
de habilidades ao uso significativo da linguagem em atividades de
leitura, escuta e produção de textos em várias mídias e semioses.
(BRASIL, 2017, p. 67).

O documento sugere práticas de linguagens como fotos, vídeos, livros impressos


digitais, podcasts, infográficos, memes, músicas etc., tanto para o Ensino Fun-
damental quanto para o Ensino Médio, mas em um grau de investigação mais
complexo, pois “cabe ao Ensino Médio aprofundar a análise sobre as linguagens e
seus funcionamentos, intensificando a perspectiva analítica e crítica da leitura, es-
cuta e produção de textos verbais e multissemióticos [...]”. (BRASIL, 2017, p. 498).
Diante de propostas inovadoras que podem e devem ser utilizadas, as diversas
gramáticas disponíveis, como a estruturalista, gerativa, descritiva, pedagógica,
do português falado, funcionalista etc., devem fazer parte desse processo. No
entanto, como nosso foco aqui é apresentar algumas reflexões sobre a gramática
normativa tradicional por estar sempre presente no banco dos réus, tanto para
ser defendida, protegida e inocentada quanto para ser criticada, rechaçada e con-
denada como incapaz de mediar o ensino e aprendizagem de língua.
Apesar das críticas, ela (a gramática normativa tradicional) continua resistin-
do, fazendo parte do processo de ensino e aprendizagem da língua, que, segundo
Antunes (2007), apresenta-se como um conjunto único de forma corretas de
informações para serem utilizadas no uso escrito e falado da língua. É nessa
conjuntura que a gramática se apresenta como uma espécie de bicho papão, na
nossa vida escolar, pois


Desde os primeiros anos de escola, somos aterrorizados por uma
lista de termos e conceitos que mal compreendemos e por um
conjunto de regras de correção que nos são apresentadas como
intocáveis fenômenos de língua, os quais, pelo seu anacronismo e
artificialismo, não fazem muito sentido para a maioria dos falantes
contemporâneos do português no Brasil (FARACO, 2008, p. 129).

161
Situação que provoca uma sensação de frustração nos professores compro-
UNIDADE 5

metidos, pois, mesmo diante de diversas tentativas pedagógicas, parece que tudo
o que se faz na sala de aula (e fora dela: bom lembrar que professores trabalham
muito, na preparação das aulas) não produzem os resultados esperados. Em rela-
ção à gramática normativa tradicional, por uma via histórica, o autor nos informa
que ela foi criada no contexto greco-romano para preparar os cidadãos para
sustentar argumentos capazes de vencer as disputas políticas, no espaço público.
Aspectos históricos justificáveis, pois a classe social dominante daquela época
precisava de uma língua que, para ser culta, deveria ser amparada em aspectos
como “[...] ortografia e pronúncia; a distribuição das palavras por classes (nomes,
adjetivos, pronomes, verbos [...].); a estrutura sintática da oração simples [...] e dos
períodos (coordenação e subordinação); [...]”. (FARACO, 2008, p. 133).
Tais temáticas, posteriormente, passaram a se constituir como um ramo de
conhecimento denominado como gramática, ou seja, um manual em que estava
registrado a língua literária que, segundo o autor, deveria ser seguida por todos
os que escreviam (um tempo em que a maioria das pessoas eram analfabetas).
Para este autor, foi por essa via que se constituiu a tradição normativa ocidental
de estudos da língua, como alternativa de solução intelectual para impedir a dis-
seminação da diversidade linguística (aquela que não fazia parte do vocabulário
da classe elitizada e que detinha o poder político e econômico) e, consequente-
mente, seus conflitos.
Saindo da antiguidade grega, vamos agora pensar sobre a diversidade lin-
guística no contexto atual do século XXI, ou seja, um mundo globalizado com
predomínio econômico regido pelo sistema capitalista neoliberalista e sobre a
influência direta de uma revolução tecnológica. Contexto que ainda predomina
o valor histórico e cultural da gramática normativa tradicional, com sua definição
de que se trata de um compêndio em que está registrado um conjunto de regras
prescritas que definem e normatizam a forma escrita e falada considerada correta,
segundo uma língua homogênea padronizada.
Este modelo de língua é refutado pelos linguistas, pois consideram a língua
como algo heterogêneo e atrelada à diversidade dos falantes, em seus diferentes
aspectos: classe social, nível escolar, ocupação e renda, idade, etnia, gênero etc.
Citamos Orlandi (2009) para registrar o conceito de língua heterogênea, con-
siderando-a em dois aspectos: o imaginário e o fluido. Veja o quadro a seguir:

162
LÍNGUA IMAGINÁRIA LÍNGUA FLUIDA

UNICESUMAR
Sistema que os analistas fixam em Em constante movimento, de mudança
regras, fórmulas e sistematizações. contínua.

Condição estável pela perda da fluidez, Que não pode ser contida em
nas suas normas fixas. arcabouços e fórmulas.

Ideal, lógica, universal, abstrata, Não se deixa imobilizar, não tem limites e
normatizada. vai além das normas.

A língua da gramática. A língua que se pratica.

Quadro 1- Língua imaginária e Língua fluida / Fonte: adaptado de Orlandi (2009).

Diante das informações sobre duas línguas (uma imaginária e outra fluida), que
se definem em um campo multifacetado e também das condições sociais, cultu-
rais, políticas e econômicas do nosso Brasil e que, consequentemente, atingem
o projeto educacional, surge um questionamento inevitável: o que e como fazer,
enquanto profissional da educação, mesmo em situações adversas, para possibi-
litar um conhecimento linguístico eficiente para alunos pertencentes à sociedade
contemporânea permeada por conflitos étnicos, de gêneros, de classes sociais etc.?
Antunes (2007) nos recomenda a urgência em explorar a gramática sem equí-
vocos, mesmo diante de um instrumento de controle criado, sob a justificativa de
um contexto político, econômico e social greco-latino que tinha como objetivo
disciplinar a língua, bem como conduzir o comportamento verbal dos usuários,
pela imposição de modelos padronizados.
Na condição de profissionais da língua, precisamos vencer alguns conceitos do
conhecimento cotidiano (aquele do senso comum) e, novamente, nos apropriamos
de Antunes (2007), por meio de argumentos que desconstroem algumas crenças:

Não basta saber Explorar nomenclaturas e


gramática para falar, ler classificações não é
e escrever com sucesso; estudar gramática;

Não são todas as atuações


A norma prestigiada não
verbais que devem ser
é a única linguísticamente
pautadas pela norma
válida;
prestigiada.

Figura 1 - Desconstrução de algumas crenças / Fonte: adaptada de Antunes (2003).

163
Tais afirmações nos levam a pensar que a gramática normativa tradicional tem
UNIDADE 5

uma função regularizadora, mas, também, tem limites, ou seja, ela sozinha não
é suficiente, pois a língua, segundo a autora, constitui-se por um conjunto de
componentes, a saber:

LÉXICO: CONJUNTO DE GRAMÁTICA: REGRAS PARA


PALAVRAS (O VOCABULÁRIO CONSTRUIR PALAVRAS E
DA LÍNGUA); SENTENÇAS;

TEXTO: OS RECURSOS DE
TEXTUALIZAÇÃO (COESÃO, INTERAÇÃO: NORMAS
COERÊNCIA, INTENCIONALIDADE, SOCIAIS DE ATUAÇÃO.
INTERTEXTUALIDADE, ETC);

Figura 2 - Conjunto de componentes da língua / Fonte: adaptado de Antunes (2003).

As sugestões apresentadas, dentre as que ficaram para outras oportunidades,


explicitam que tanto a gramática que estamos tratando aqui como as demais
que estão à disposição dos leitores assíduos por conhecimento, nos materiais
disponíveis nas bibliotecas virtuais, podem ser utilizadas, mas dentro de aspec-
tos pedagógicos mais amplos. A autora apresenta algumas sugestões para serem
trabalhadas em sala de aula:
a) Todo falante precisa saber utilizar os vocabulários adequados para cada
situação (formal, informal, técnico, especializado etc.).
b) Todo falante precisa saber que tipo de gênero textual adotar, bem como os
recursos lexicais e gramaticais adequados: descrição, carta, aviso, e-mail,
relatório, declaração etc.
c) Todo falante precisa saber quem são seus interlocutores, ou seja, é preciso
saber para quem fala ou escreve e quais são os objetivos comunicativos.

Há muito que se debater, mas encerramos o item registrando as reflexões da autora,


quando ela afirma que o ensino de língua materna não deve ensinar apenas nomen-
claturas e classificações, mas ir além com explicitações das normas textuais e sociais de
uso da língua. É preciso que professores e alunos compreendam que a língua vai além
de tais normatizações e que ela “[...] sozinha, é incapaz de preencher as necessidades
interacionais de quem fala, escuta, lê ou escreve textos” (ANTUNES, 2007, p. 52).
Por isso, precisamos avançar em tais reflexões para, ao menos, encontrar uma
possibilidade pedagógica para tais dilemas que envolvem o nosso sistema de
164 ensino e aprendizagem de língua. Vamos continuar nossa leitura.
2
ENSINO CONTEXTUALIZADO

UNICESUMAR
DA LÍNGUA
PORTUGUESA
BRASILEIRA:
desapego ao
passado colonial

A discussão sobre como promover uma mediação eficiente, em relação ao en-


sino e a aprendizagem da nossa língua materna, faz parte da pauta dos debates
promovidos pelas instituições de ensino, durante os eventos acadêmicos. Acon-
tecimentos nos quais alunos e professores da graduação e pós-graduação em
Letras/Linguística passam horas concentrados em temas que têm como objetivo
encontrar uma solução para amenizar a dificuldade dos alunos em “aprender” sua
língua mãe (o aluno precisa aprender sua língua materna?).
Retomamos Luft (1985) para contrariar a ideia de que é preciso ir para a esco-
la para aprender a língua materna, pois a criança chega nessa instituição oficial de
ensino sabendo tudo o que precisa para falar em seu nível de comunicação. Nesse
caso, o que lhe falta são os termos técnicos do que já sabem sobre sua língua já
interiorizada que ela começa a dominar já nos seus primeiros anos de vida, pela
convivência com seus pais, avós, irmãos etc. Estudamos esse assunto na Unidade
1, quando apresentamos a Teoria Linguística Gerativista (que tal retornar e fazer
uma releitura?).
O autor considera a criança como um adulto linguístico pelo fato de dominar,
salvo algumas exceções, o sistema fonológico da sua língua, conhecer e dominar
o vocabulário básico, conseguir descrever sua rotina (por exemplo: o que fez na
parte da manhã na escola ou em casa). Nascemos programados para falar e basta

165
alguns estímulos para a criança começar a desenvolver essa habilidade, usando
UNIDADE 5

sua língua materna viva, natural, heterogênea e flexível.


Uma das diversas dificuldades que se tenta descobrir nas discussões é que “a
criança vai à escola para aprender, e aprender, entre tantas coisas, a língua que fala
desde os dois, três anos” (LUFT, 1985, p. 47). E ele continua afirmando que para as
autoridades e o sistema, o melhor é manter a ingenuidade tradicional e continuar
considerando o aluno como um estrangeiro que não sabe sua língua materna e,
por isso, deve aprendê-la e o professor deve ensiná-la. Por meio dessa vertente, o
autor critica o pensamento tradicional que “[...] só aceita a variante culta, formal,
a linguagem policiada, cerimoniosa, considerando todo o resto ‘errado’. Por esse
conceito (preconceito), a própria fala cotidiana das pessoas cultas está inçada de
erros: ‘Todo munda fala errado’” (LUFT, 1985, p. 45).
No entanto, pouco adianta permanecemos nessa briga acadêmica de linguis-
tas considerando os tradicionalistas como profissionais que lidam com múmias,
pois a língua que querem ensinar é morta, inflexível, fechada em normas que já
não são usadas pelos falantes. Por outra via, tradicionalistas atacam linguistas
como seres subversivos, que fazem das aulas de língua uma arena de vale tudo.
Na tentativa de escapar dos velhos e atualizados jargões de que o nosso por-
tuguês é uma língua difícil e as aulas são uma chateação, precisamos ser sujeitos
ativos, enquanto profissional que tem a língua como ferramenta de atuação, para
promover aulas de português brasileiro, por meio de “[...] leitura, comentário,
análise e interpretação de bons textos, e tentativa constante de produzir pessoal-
mente textos bons” (LUFT, 1985, p. 21).
Por isso, faremos uma apresentação analítica sobre o funcionamento do por-
tuguês brasileiro contemporâneo, a partir de alguns exemplos. Nesse contexto,
nos apropriamos de Perini (2014) para reforçar que a gramática merece seu lugar
no currículo como disciplina científica, mas é preciso compreender sua especi-
ficidade histórica, pois


Ao estudarmos gramática, somos convidados a aprender, e muitas
vezes decorar, resultados: não se cogita do método que levou à ob-
tenção desses resultados. A aula de gramática típica não compor-
ta perguntas embaraçosas, referentes a comos e porquês que não
constam do livro adotado. O professor nunca precisa justificar a
análise que ensina, tem apenas que reproduzi-la como a encontrou
na bibliografia (PERINI, 2014, p. 55).

166
Por isso, embasamo-nos em autores que pensam na (e sobre) a língua por meio de

UNICESUMAR
uma gramática que descreve seu funcionamento tanto na fala espontânea do povo
brasileiro quanto na imprensa atual e em outras circunstâncias de uso falado e escrito.
Na Unidade 2 deste material de estudos, apresentamos a teoria da sociolin-
guística para você e, pautadas em teóricos, afirmamos que, além das variações
cotidianas, a língua muda com o tempo. Sobre este aspecto teórico, Bagno (2009)
afirma que a língua nunca está pronta e acabada, ou seja, suas regras não estão
fixadas para sempre, pois enquanto estiver gente falando, ela estará sempre em
processo de variação e mudança.
Concordamos com o autor (há algumas ressalvas) e nos apropriamos dele
para apresentar algumas ocorrências de uso da língua que estão sendo praticadas
pelos falantes atuais em diversas situações linguísticas. O tema é abrangente e,
por meio de uma inspiração pautada no autor, fizemos um recorte de algumas
descrições atuais do vernáculo brasileiro contemporâneo já incorporado na lín-
gua dos brasileiros, apesar de a gramática normativa tradicional considerar tais
fenômenos linguísticos como “errado”.

Professora Maria: a que horas o Pedro chega a Salvador?


Aluno Antônio: ele chega em Salvador às dez da noite.

Explicação: de acordo com Bagno (2009), no português brasileiro atual a prepo-


sição “a” é pouquíssima usada por ser átona e de sonoridade fraca. Por isso, ela
vem cedendo lugar para a preposição “em” nas situações com o verbo ir. Em ex-
pressões com noções de movimento ou direção, a preposição “a” está em processo
de substituição pelas preposições “para” e “em”, justificando o motivo pelo qual
lemos e ouvimos cotidianamente, expressões como: “cheguei em Brasília ontem”.
A preposição “em” também está ocorrendo em outras construções que, anti-
gamente, aparecia a preposição “a”. Veja os exemplos: dizemos “falar no telefone”,
“escrever no computador”, “bater na porta”, “descansar na sombra” (em vez de
“falar ao telefone”,“escrever ao computador”,“bater à porta”,“descansar à sombra”).
Sugestão para a sala de aula: Bagno (2009) sugere que se mostre aos estudantes
que a preposição “a”, apesar de pouco usada na língua falada e escrita espontânea,
ainda tem seu lugar em textos falado e escrito mais monitorados como, por exem-
plo, “referir-se a”, “contrário a”, “aplicar algo a”. Vamos para mais uma situação:
167
UNIDADE 5

Aluno Marcos: me dá uma dó danada ver o João tão triste!


Professor Lucas: pois eu não tenho dó nenhum... Ele fez por merecer!

Explicação: nossa língua atribui gêneros às palavras. Lembrando que tais classifi-
cações em masculino ou feminino é totalmente arbitrária (lembra que estudamos
sobre a arbitrariedade do signo em Linguística 1?), pois não há justificativa natu-
ral e concreta para que as palavras (os signos) “garfo” e “faca” sejam nomeadas pelo
gênero masculino e feminino (o garfo, a faca). Nesse caso, depende da tradição de
uso e das convenções estabelecidas socialmente entre os falantes da língua (po-
deria ser “a garfo” e “o faca”, se fosse convencionado pela comunidade de falantes).
Por isso, o sentimento de pesar e compaixão designado como “um/o dó” de
acordo com a norma tradicional está passando por uma alteração (mudança) de
gênero gramatical, por meio de milhões de brasileiros que estão falando, escre-
vendo, cantando “uma/a dó”.
Apesar de a maioria dos dicionários ainda não contemplarem a palavra “dó”
no feminino, na tentativa de manter a tradição é por meio desse gênero que ela
está sendo usada pelos falantes brasileiros, nas suas diversas relações sociais. En-
quanto esse registro não acontece, vamos ler (e, se possível, ouvir), a música “de
mais ninguém”, de Marisa Monte?

Se ela me deixou,
a dor é minha só, não é de mais ninguém;
aos outros eu devolvo a dó.
eu tenho a minha dor.
[...]

Quadro 2 - Trecho da música “de mais ninguém” / Fonte: Bagno (2009, p. 147).

Vamos nos apropriar de outros autores, como Possenti (2009), para não cairmos
em suposições de que o que estamos tratando aqui é coisa de um único linguista.
O autor apresenta a seguinte situação de dúvida, de uma professora de língua
alemã, em relação à gramática portuguesa:

168

Professora Irene: “Quando eu converso com uma pessoa e quero

UNICESUMAR
dizer que a conheço, qual é a forma correta: ‘Eu lhe conheço” ou
‘Eu a conheço’? Existe uma variação do pronome em relação ao
tratamento formal?” (POSSENTI, 2009, p. 141).

Agora veja a explicação da dúvida da Professora Irene, por meio da reflexão do


Professor Moreno:


[...] o verbo conhecer é um transitivo direto, e, portanto recebe o
pronome oblíquo “O”: “Eu O conheço” [...], “Eu A conheço”. É claro
que estamos falando do registro culto, onde “O” representa [...] ob-
jetos diretos, enquanto “LHE” [...] objetos indiretos. No registro po-
pular, no entanto, onde não existe essa consciência da sintaxe (quem
sabe o que é objeto direto ou indireto?), é natural que o uso desses
pronomes tenha sofrido uma enorme alteração. Em primeiro lugar,
o Português falado no Brasil simplesmente eliminou o pronome “O”,
passando-se a usar “ELE” como complemento de verbos transitivos
diretos: “Eu vi ele”, “Encontrei ele” etc., prática ainda inaceitável na
linguagem culta. Em segundo lugar, o “LHE” desvinculou-se total-
mente de sua função sintática original e passou a ser empregado
apenas como forma respeitosa de tratamento. Enquanto se usa “eu
TE conheço” [...] para uma pessoa íntima, prefere-se “eu LHE conhe-
ço” [...] para uma pessoa de maior hierarquia ou cerimônia — outra
prática ainda considerada inaceitável no registro culto, que aqui
exigiria “eu O conheço” [...] (POSSENTI, 2009, p. 141).

O autor continua registrando a explicação do Professor Moreno, que a finaliza


por meio de duas estratégias de ensinos: a escrita e a oral. Veja o que ele nos diz:


Se eu estivesse ensinando um estrangeiro a escrever Português, eu
insistiria na distinção sintática entre “O” e “LHE”, no entanto, se eu o
estivesse ensinando a falar, com certeza eu o acostumaria a alternar
entre o “TE” (para os mais próximos) e o “LHE” (para os de maior
cerimônia), de acordo com a menor ou maior formalidade da si-
tuação, porque assim ele estaria perfeitamente integrado com a fala
do brasileiro. (POSSENTI, 2009, p. 142).

169
Prezada(o) estudante, você percebeu que estamos tratando de fatos linguísticos
UNIDADE 5

usuais em nossa sociedade contemporânea e demonstramos que eles não devem


ser considerados como coisa de gente ignorante. Portanto, continuemos nossa
leitura, pois ainda há muito o que se refletir sobre a temática que estamos desen-
volvendo. Antes de passarmos para o próximo item, leia a reflexão a seguir e não
se esqueça de compartilhar suas ideias com a gente.

pensando juntos

Você, diante da arquitetura desfavorável da educação brasileira, acha que é possível mi-
nistrar aula de língua capaz de atender às demandas mercadológicas, sociais, tecnológi-
cas e interpessoais contemporâneas?

170
3
AS CLASSES GRAMATICAIS

UNICESUMAR
TRADICIONAIS:
uma questão pronominal

Continuando a reflexão sobre o ensino e a aprendizagem da nossa língua ma-


terna, utilizamos autores que têm como mote de pesquisa refletir sobre esta te-
mática, de um modo sistemático e fundamentado em bases teóricas sustentadas
cientificamente. Faraco (2008) se dedica à elaboração crítica da gramática nor-
mativa tradicional, enquanto guia que indica o que é certo e o que é errado dizer
e escrever e, mesmo quando nos tornamos professores, essa dicotomia continua
atravessando nosso percurso profissional.
Apesar dos debates que criticam, condenam e/ou enaltecem a referida gra-
mática, ela vem resistindo ao tempo, por meio da sua permanência (não sem
crítica) nos currículos escolares, materiais didáticos, metodologias pedagógicas
etc. Historicamente, estamos tratando de um material criado no contexto cultural
greco-romano e seu momento mais importante ocorreu com a criação de uma
biblioteca fundada na cidade de Alexandria, em 323 a.C., por Alexandre Magno,
na foz do rio Nilo.
Segundo Faraco (2008), foi nessa biblioteca que estudaram a produção li-
terária de autores consagrados de tempos já passados, resultando em um ramo
específico de conhecimento sobre a língua, denominado Gramática. O registro
da primeira gramática é atribuído ao alexandrino Dionísio Trácio, no século II
a.C., período em que foram consolidadas as descrições da língua grega, com o
objetivo de solucionar os conflitos gerados diante de uma diversidade linguística,
171
ou seja, a gramática foi criada para tentar homogeneizar a língua (você já sabe que
UNIDADE 5

não existe língua homogênea, pois ela retrata a vida das comunidades de falantes:
classe social, idade, etnia, gênero etc.).
Com o objetivo de registrar a língua literária da cultura helenística, o obje-
tivo de Dionísio fora também o de estabelecer um modelo a ser seguido pelos
falantes, por meio de


[...] aspectos de métrica, ortografia e pronúncia; a distribuição das
palavras por classes (nomes, adjetivos, pronomes, verbos, advérbios,
conjunções etc.); a estrutura sintática da oração simples (sujeito, predi-
cado, complementos, adjuntos) e dos períodos (coordenação e subor-
dinação); o uso das figuras de linguagem [...]. (FARACO, 2008, p. 133).

O autor salienta que as influências desse momento intelectual repercutiram nos


estudos gramaticais posteriores de Roma; ao dominar a Grécia, no século II a.C., a
elite romana passou a valorizar a cultura grega, absorvendo os estudos normativos
gramaticais, desenvolvido em Alexandria. Foi dessa forma que os romanos adota-
ram, como referência, a linguagem dos poetas consagrados da sociedade grega, por
meio da criação da primeira gramática latina (romana), por Varrão, o qual seguiu
seu mestre alexandrino Crates de Malos, definindo seu trabalho como “‘a arte de
escrever e falar corretamente; e de compreender os poetas’”. (FARACO, 2008, p. 137).
Dentro dessa retrospectiva histórica, cabe ainda o registro de que foi a gramá-
tica produzida por Prisciano, que viveu e trabalhou em Constantinopla (capital
do Império Romano do Oriente), o modelo que inspirou a gramática escolar que
continua sendo usada até os dias atuais. Apesar da importância histórica dessa
gramática, “[...] o modelo [...] a que hoje damos o nome de gramática tradicional
— está congelado, na prática, desde Prisciano, tendo se esgotado como instrumen-
to de geração de novos conhecimentos sobre a língua.” (FARACO, 2008, p. 139).
A formação do Brasil é fruto de um processo colonizador violento, realizado
pela potência marítima e mercantil portuguesa do século XVI que impôs a lín-
gua portuguesa do dominador/colonizador (fruto dos barões doutos de tradição
greco-romana) ao território brasileiro, que começava a se formar. Diante dessa
contextualização, cabe a nós, estudantes e pensadores da nossa língua materna,
o seguinte questionamento: o que e como mediar um processo de ensino-apren-
dizagem de língua materna, em pleno século XXI?

172
Iremos apresentar uma proposta, selecionando uma das dez classes grama-

UNICESUMAR
ticais que conhecemos, por meio das diversas gramáticas tradicionais e moder-
nas que estão disponibilizadas a todos nós. Relembrando, na ordem alfabética,
tais classes se definem como: advérbio, adjetivo, artigo, conjunção, interjeição,
numeral, preposição, pronome, substantivo e verbo. Nosso foco de análise, para
esse momento, será dedicado aos pronomes, especificamente, algumas aborda-
gens mais usuais, como a atual situação dos pronomes demonstrativo esse/a(s)
e este/a(s) e a colocação pronominal na situação atual da nossa língua materna
(o Português do Brasil).
Em relação aos pronomes demonstrativos, o gramático Ulisses Infante faz a
seguinte apresentação:

Primeira pessoa este, estes, esta, estas

Segunda pessoa esse, esses, essa, essas

Quadro 3 - Pronomes demonstrativos / Fonte: adaptado de Infante (1995, p. 294).

O autor afirma que os pronomes da primeira pessoa indicam proximidade de


quem fala e escreve e apresenta os seguintes exemplos:
a) Esta camisa que estou usando é nova.

Em relação aos demonstrativos da segunda pessoa, o autor afirma que eles indicam
proximidade da pessoa a quem se fala ou escreve, apresentando o seguinte exemplo:
b) Receba meus cumprimentos por mais um ano que esse velho corpo con-
segue atravessar incólume.

Ao consultar linguistas gramáticos contemporâneos, como Castilho e Elias


(2015), encontramos uma análise adaptada ao uso de tais pronomes, pelos falan-
tes atuais. Os autores afirmam que o esquema, tal qual apresentamos no Quadro
3, não corresponde ao uso contemporâneo do português brasileiro, pois os pro-
nomes este/esse indicam pessoas ou objetos próximos tanto da primeira pessoa
quanto da segunda, apresentando o seguinte exemplo:
c) De quem é este/esse livro aqui?

173
Bagno (2009) apresenta uma análise que afirma uma indiferenciação entre “este”
UNIDADE 5

e “esse”. No entanto, há uma preferência para o uso falado e escrito do “esse”, en-
quanto o “este” está se transformando em um fóssil linguístico, ou seja, em um
“[...] elemento gramatical que vai ficando restrito a poucas modalidades de uso da
língua, como os textos escritos mais monitorados” (BAGNO, 2009, p. 170). Obser-
ve o seguinte exemplo publicado em um dos componentes midiáticos brasileiro
e apresentado pelo autor: “Basta ter um mínimo de recursos que a produção vai
despontar. E tem outra coisa, esse país não é um país qualquer. Esse país é o Brasil,
que tem tanta diversidade cultural” (BAGNO, 2009, p. 172).
Em Bagno (2012), também há uma explicação, justificando que o fim da dua-
lidade entre este/esse está se fundindo no Português do Brasil de forma a somente
saber da sua existência por meio do letramento escolar. Nesse caso,


É perda de tempo tentar inculcar nos aprendizes uma diferença
entre esse e este que não existe mais na língua e que não é rigoro-
samente seguida nem sequer pelos que produzem gêneros escritos
mais monitorados. [...] se a função da escola é ensinar o que a pessoa
não sabe, cabe, sim, apresentar os demonstrativos [...] explicando
que, muito tempo atrás na língua, eles só eram aplicados aos objetos
próximos da pessoa que fala e [...] outra para o que está distante. [...].
Uma boa sugestão é coletar textos escritos [...] em jornais e revistas e
ver como se dá ali o uso dos demonstrativos (BAGNO, 2012, p. 795).

Outro tema bastante discutido entre os linguistas é sobre a colocação pronomi-


nal indicadas pelas gramáticas normativas tradicionais, mediante uma listagem
que apresenta o modo como os pronomes devem ser usados na fala e na escrita
e como tais colocações estão sendo usadas no cotidiano dos falantes brasileiros,
nas situações monitoradas de fala (entrevista, por exemplo) e nos textos midiá-
ticos e acadêmicos.
Antes de entrarmos na análise do assunto, vamos dar uma pausa para ler o
poema “pronominais”, de Oswald de Andrade. Leia e reflita:

174
Dê-me um cigarro

UNICESUMAR
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

Quadro 4 – Pronominais / Fonte: Escritas ([2020], on-line)12.

Os pronomes são definidos como “[...] a palavra que substitui ou determina o


nome” (FARACO; MOURA, 1987, p. 196) e são classificados em seis tipos: pes-
soais, possessivos, demonstrativos, relativos, indefinidos e interrogativos. Diante
da necessidade de se fazer um recorte sobre um tema tão amplo, nossa escolha
analítica será direcionada à colocação dos pronomes pessoais oblíquos átonos,
explicada pelos autores da seguinte maneira:

PRONOMES PESSOAIS

PESSOAS RETOS OBLÍQUOS ÁTONOS

1ª eu me
Singular 2ª tu te
3ª ele, ela se, lhe, o, a

1ª nós nos
Plural 2ª vós vos
3ª eles, elas se, lhes, os, as

Quadro 5 - Pronomes pessoais oblíquos átonos / Fonte: adaptado de Faraco e Moura (1987, p. 199).

Os autores dedicam uma parte do seu trabalho para explicar que as formas como
ocorrem a colocação dos pronomes pessoais oblíquos átonos devem obedecer a
três posições em relação aos verbos. Vamos apresentar alguns exemplos e suge-
rimos a você que amplie seu conhecimento, por meio das gramáticas disponíveis
nas bibliotecas virtuais.

175
Próclise: antes do verbo
UNIDADE 5

Aplicação:
Em orações com palavras negativa
• Nunca mais a vi.
Em gerúndio precedido de preposição em:
• Em se tratando de finanças, dirija-se ao tesoureiro.

Mesóclise: no meio do verbo


Aplicação:
Empregada no futuro do presente e do pretérito, desde que não haja palavra que
exija próclise:
• Dir-se-ia que os amigos tinham prazer em lhe abrir a bolsa.

Ênclise: após o verbo


Aplicação:
Quando a oração inicia com verbo:
• Aconteceu-me uma coisa realmente extraordinária.

Quadro 6 - Colocação dos pronomes oblíquos átonos / Fonte: adaptado de Faraco e Moura (1987).

Embora os autores estejam pautados no Português de Portugal, pois este é o pro-


pósito do trabalho que desenvolveram, admitem mudanças em relação ao Por-
tuguês do Brasil. Vejam as duas observações que eles fazem, em relação à ênclise:


Segundo a gramática que herdamos de Portugal, a colocação normal
do pronome é a ênclise. No entanto, no português escrito e falado
no Brasil hoje, nota-se uma preferência marcante pela próclise, fato
já constatado por Oswald de Andrade [...]. (FARACO; MOURA,
1987, p. 422).

Em outro momento, admitem a mudança, mesmo considerando como uma “infra-


ção”, apesar do uso por grandes nomes da nossa literatura brasileira. Vejam: “no por-
tuguês do Brasil, são comuns as infrações a essa regra” (FARACO; MOURA, 1987, p.
423). E registra o uso por meio de Érico Veríssimo e Jorge Amado, respectivamente:
a) Me puxou para um lado e contou que cancelou a viagem.
b) Se levantou de um pulo.

176
Faremos um deslocamento teórico e apresentaremos a você as reflexões que os

UNICESUMAR
linguistas contemporâneos, como Bagno (2009, 2012) e Orlandi (2009) estão de-
senvolvendo sobre a temática da colocação pronominal. Bagno (2009) afirma que,
intuitivamente, todo falante brasileiro contemporâneo sabe que a regra para a colo-
cação pronominal na nossa língua é a próclise antes do verbo principal (exemplos:
“eu te amo”, “você pode me emprestar uma caneta?”). Salienta o autor que essa
é a regra natural e não adianta tentar sufocar, pois quando se trata de pronomes
oblíquos, a ordem passa a ser sujeito-objeto-verbo (SOV), justificado nos diversos
exemplos retirados de textos divulgados nas mídias oficiais e textos acadêmicos.
Orlandi (2009) elabora uma reflexão sobre o caso da colocação pronominal,
a partir da predominância proclítica no Brasil. Ela afirma que a nossa língua é
resultado de uma imposição colonizadora e, portanto, a tendência é seguir o mo-
delo imposto pelo colonizador. No entanto, apesar das resistências em aceitar (ou
ao menos refletir sobre tais questões), a autora confessa ser impossível utilizar a
colocação pronominal portuguesa. A autora se utiliza das ideias do filólogo Said
Ali, para afirmar que a regularidade lusitana é correta, mas a liberdade brasileira
também é, e não adianta um povo querer imitar outro povo, por conta de um
poder cultural e uma atmosfera artificial.
Há uma distinção entre o falante português e o brasileiro, pois estamos em
outro espaço e em outro tempo. O ritmo é outro e a vida também é outra, ou seja, a
língua é outra e nada escapa à mudança, apesar desse imaginário colonizador que
nos atravessa em todos os aspectos, principalmente quando o assunto é sobre a
língua que falamos e escrevemos. Neste momento, podemos afirmar que é preciso
reconhecer que há uma unidade linguística brasileira, com formação a partir de
outras línguas, entre as quais citamos, a portuguesa, as indígenas, as africanas e
outras tantas vindas para cá, pelos milhares de imigrantes que povoaram (e po-
voam) essa terra. Fato que justifica a necessidade de se reconhecer as mudanças
ocorridas entre o português de Portugal e o português do Brasil.

177
Para finalizar esse item, deixamos registrado o seguinte conselho: “Melhor
UNIDADE 5

seria assumir de vez que o português do Brasil é proclítico (‘Me dá um cigarro…’).


[...] porque a construção ‘menos culta’ é simplesmente o novo padrão” (POSSEN-
TI, 2009, p. 29). Como diz Bagno (2012), a função da educação linguística na
escola é apresentar também as outras possibilidades de colocação pronominal (a
mesóclise e a ênclise), mas não é possível impedir que as pessoas usem sua língua
tal como ela é, ou seja, sem as prescrições artificiais e ajustáveis à língua de outro
povo: aqueles do outro lado do Atlântico (os portugueses lá de Portugal).
Portanto, registramos aqui uma dica: deixe fluir sua gramática intuitiva e,
por mero recurso estilístico, você tem todo o direito de optar por uma colocação
anteposta ao verbo (próclise) ou posposta ao verbo (ênclise). Não se esqueça que
a língua que praticamos é fluida.

explorando Ideias

Diante do perceptível aquecimento global, secas intermitentes e crise hídrica no mundo,


é comum a circulação de campanhas pela preservação do meio ambiente e economia
de água. Em Morro de São Paulo (Bahia), a empresa de água e saneamento (Embasa)
instalou várias faixas para conscientizar os turistas a economizarem água, com a seguinte
informação: “me economize”. Pela explicação tradicionalista (FARACO; MOURA, 1987), há
a ocorrência de um “erro”, pois a norma diz que uma oração não deve ser iniciada pro-
nome. Nesse caso, o “correto” é o uso da ênclise: “economize-me”. A faixa, entretanto, foi
produzida de acordo com as normas próprias do português de Brasil e tem por finalidade
atingir e persuadir o maior números de pessoas. Por meio de Antunes (2003), registramos
que ficaria “sem graça” se o texto da faixa obedecesse à imposição tradicionalista e cau-
saria distanciamento das pessoas pelo efeito persuasivo enfraquecido. Precisamos de um
ensino e aprendizagem de língua contextualizados.
Fonte: a autora.

178
4
LÍNGUA, ENSINO

UNICESUMAR
E APRENDIZAGEM:
des(re)fazendo a receita

Vamos repetir o questionamento que já foi elaborado: como mediar o processo de


ensino-aprendizagem de língua materna, em pleno século XXI? E mais: inspiradas
em uma notícia que circulou no site do G1, como ser professor(a) eficiente de língua
materna em um país em que, além de ser um dos que menos valoriza o(a) docente
com salários vergonhosamente baixos, também se apresenta, dentro de um rol de
35 países, com um sistema educacional considerado um dos piores do mundo?
Como nosso foco aqui é desenvolver algumas reflexões sobre o ensino e
aprendizagem da língua materna, os questionamentos sobre a condição emo-
cional e financeira desses profissionais ficarão para outra oportunidade. Para
isso, apresentamos o seguinte questionamento sobre a crise do ensino de língua:


[...] o normativismo e a gramatiquice não são apenas concepções e
atitudes ligadas à língua e seu ensino. Pelo seu caráter conservador,
impositivo e excludente, o normativismo e a gramatiquice são par-
te intrínseca de todo um conjunto de conceitos, atitudes e valores
fundamentalmente autoritários, muito adequados ao funcionamen-
to de uma sociedade profundamente marcada pela divisão social
(FARACO, 2008, p. 155).

179
O autor sugere à imprensa ressignificar seu conceito e imagem de língua, pelo
UNIDADE 5

rompimento ao dogmatismo e obscurantismo e a abertura de espaço para outras


vozes. Além disso, ele convida o Brasil a promover um encontro com ele mesmo
e reconstruir seu imaginário de língua, superando o modelo linguístico do século
XIX, por meio da reescritura das nossas gramáticas e dicionários que contemple
os inúmeros fenômenos da norma culta brasileira real, ou seja, a norma culta sem
gramatiquice e sem normativismo anacrônico.
O autor afirma que, além de ampliar o domínio da fala e da escrita, é preciso
também promover uma ação sobre a própria língua, ou seja, sobre seu funciona-
mento interno, sistematizado e estrutural (aqui lembramos da teoria de Saussure).
Além disso, não há como deixar de lado, nas aulas de língua materna, a predispo-
sição inata que temos para a fala (lembra da teoria do gerativismo?), bem como
a imensa variedade de formas expressivas alternativas que estão à disposição dos
falantes (que tal reler sobre sociolinguística, na Unidade 2?).
Faraco (2008) continua defendendo que é preciso romper com um ensino
medievalesco e desprovido de qualquer articulação funcional (aqui podemos re-
lembrar a teoria da semântica, em que os significados das palavras são produzidos
conforme o contexto de produção). O autor sugere um estudo de concordância
verbal a partir da norma culta, mas que não desconsidere a língua falada, espon-
tânea e menos monitorada em relação à língua escrita/monitorada. Isso significa
que é preciso ir além de um estudo de língua pautado em uma lista de regras,
seguidos de exercícios descontextualizados.
Nessa perspectiva, o que nos é sugerido é que os conteúdos gramaticais po-
dem e devem ser estudados na escola, desde que de forma contextual e funcional,
isto é, subordinado às práticas de fala e escrita e suas diversidade variacionais.
O autor nos diz que é indispensável conhecer a língua como algo vivo e isso é
possível pelos textos em sua diversidade de gêneros multidimensionais: literários,
produzidos em jornais, revistas, redes sociais etc.
Continuamos nossa reflexão por meio de Antunes (2007), especificamente,
quando a linguista atribui à nomenclatura gramatical a função de um saber me-
talinguístico, que é importante, mas deve ser extrapolada para não cair nas arma-
dilhas de um sistema que, sub-repticiamente, pode ter pretensões sutis de impedir
que os alunos (principalmente, aqueles pertencentes à classe trabalhadora pobre)
tenham a oportunidade de refletir sobre os efeitos de sentidos produzidos pela
língua na nossa sociedade (esse aspecto pode ser estudado pela teoria linguística
da Análise do Discurso).
180
A autora, com seu posicionamento crítico acerca do ensino de língua mater-

UNICESUMAR
na, afirma que não há língua sem gramática e jamais deve ser retirada da sala de
aula, pois ela está na língua e faz parte dela. A gramática deve fazer parte de todo
o percurso dos alunos e nos aponta um caminho possível:


O diálogo, a conversa, a escuta de historinhas, os relatos, as justifica-
tivas é que devem preencher as situações orientadas para o desen-
volvimento específico da linguagem. Além disso, a leitura de bons
textos, cheios de interesse, de graça ou de poesia e de encantamento
é o melhor caminho para levar a criança a descobrir um sentido
para a linguagem, para a escrita e os meios em que ela circula (li-
vros, jornais, revistas, faixas, cartazes, placas, meios eletrônicos etc.).
(ANTUNES, 2007, p. 80).

A autora nos avisa que não é proibido ensinar gramática, pois a questão não é ensinar
ou não ensinar gramática — a questão é utilizar os mais variados gêneros de textos
orais, escritos e imagéticos para apresentar o modo como se faz uma resenha, um
resumo, uma notícia, um aviso, um requerimento etc. Já percebemos que a gramá-
tica sozinha não é suficiente para o falante ampliar e aperfeiçoar seu desempenho
comunicativo, mas precisamos dela para atuar no ensino e aprendizagem de língua.
Sobre esta questão, retomamos Vieira (2018) e sua proposta para uma abor-
dagem mais produtiva da gramática em sala de aula, pois na concepção da autora
e de uma forma um pouco diferente de outros linguistas, é preciso também agre-
gar o conhecimento pela tradição gramatical e linguística, mas sem deixar de se
atentar para as variações da língua. A autora propõe um ensino de gramática, pela
escola, capaz de considerar o funcionamento de recursos linguísticos nos níveis
fonético-fonológico, morfológico, sintático, semântico-discursivo. Um ensino
que permita o acesso às práticas de leitura e produção de textos orais e escritos,
permitindo o acesso às variedades de prestígio social, mas sem desmerecer as
variedades apresentadas pelos alunos. A proposta da autora se desenrola a partir
de três eixos de aplicação: 1) ensino de gramática e atividade reflexiva; 2) ensino
de gramática e produção de sentidos 3) ensino de gramática, variação e normas.
Vamos apresentar cada um.
Sobre o primeiro eixo (ensino de gramática e atividade reflexiva), a autora nos
orienta a trabalhar com componentes gramaticais que consideram a língua pela
sua natureza linguística, epilinguística e metalinguística. A primeira natureza (a
181
linguística) é apresentada por meio de atividades que se apropria do saber linguís-
UNIDADE 5

tico interiorizado pelos alunos, ou seja, aquele adquirido no intercâmbio verbal


com os adultos e colegas e que desenvolverá a sintaxe já adquirida fora da escola.
A autora explica a natureza epilinguística por meio de Franchi (2006) e fomos
a ele para defini-la como uma prática intensiva que


[...] opera sobre a própria linguagem, compara as expressões, trans-
forma-as, experimenta novos modos de construção canônicos ou
não, brinca com linguagem, investe as formas linguísticas de novas
gerações (FRANCHI, 2006, p. 97).

A autora afirma que é por meio da natureza epilinguística que se leva o aluno a di-
versificar os recursos expressivos com que fala, escreve e aprende a operar sua lín-
gua materna, praticando a diversidade dos fatos gramaticais, de forma aprimorada/
sistematizada e consciente. A partir desse momento, podemos considerar a terceira
natureza (a metalinguística), ou seja, usar a língua para falar dela mesma, uma espé-
cie de autorretrato, descrição capaz de observar suas construções sistemáticas. Esse
momento oportuniza o aluno a operar e explicitar o conhecimento que tem da sua
língua, bem como conscientizá-lo de que, apesar do número infinito de possibilidades
de sentenças na língua, há um número reduzido de estruturas linguísticas.
Em relação ao eixo 2 (ensino de gramática e produção de sentidos), Vieira
(2018) retoma as ideias das linguistas Maria Helena de Moura Neves e Maria
Aparecida Lino Pauliukonis, para elaborar questões que articulam o ensino de
gramática imbricado com atividades de leitura e produção de textos. Estas, ao
serem consideradas como unidades de uso que compõem tanto a estrutura da
língua quanto a interpretação de componentes dos de níveis fonológico, morfo-
lógico, sintático, semântico etc., vão atuando na tessitura do texto, estabelecendo
a conexão e a produção de sentidos, por meio de uma série de operações.
Tais operações podem, resumidamente, ser descritas como: os substantivos
que identificam, nomeiam e classificam os seres, os adjetivos que caracterizam
os seres, os verbos que identifica o modo temporal em que ocorrem as relações
entre os seres, o posicionamento diante do que é dito/escrito (certezas, dúvidas,
interrogações, imposições, ponto de vista etc.), os elementos coesivos, os modos
de construção (narração, descrição, dissertação, carta, texto opinativo etc.).

182
Em relação ao terceiro e último eixo (ensino de gramática, variação e nor-

UNICESUMAR
mas), Vieira (2018) nos orienta que as aulas de língua materna sejam capazes
de oportunizar reflexões sobre as estruturas que não são do conhecimento dos
alunos, pelo fato de, salvo exceções, não pertencerem à variedade que ele domina,
ou seja, a popular (no sentido de pertencer a comunidades menos escolarizadas)
e a falada (normalmente praticada por gêneros textuais espontâneos). Ela está
se referindo aqui às estruturas morfossintáticas típicas de situação de alta mo-
nitoração estilística, comumente presentes em textos escritos, como os clíticos
pronominais (lhe/s, o/s, a/s, nos) etc.
Ademais, a autora salienta que, para promover uma prática pedagógica efi-
caz, é preciso compreender alguns pressupostos teóricos da sociolinguística e se
conscientizar que, no plano do uso, há variedades cultas e populares que, muitas
vezes, se fundem. Há, no entanto, aquelas variedades estigmatizadas socialmente,
marcando ausência de escolaridade e há as eleitas como prestigiosas e “corretas” e
que, portanto, pode ser retomada como a tradicional norma-padrão. O que importa
para nós, nesse momento do curso, pode ser apresentado pelas palavras da autora:


Numa perspectiva didático-pedagógica, devem-se conhecer as es-
truturas que pertencem às normas/variedades efetivamente pratica-
das por indivíduos escolarizados, chamadas aqui cultas, na fala e na
escrita brasileiras, de modo a permitir que se avalie a proximidade
ou a distância dessas normas em relação: (i) a outras normas já
dominadas pelos estudantes quando chegam à escola; (ii) a outras
normas que se apresentam nos diversos gêneros textuais trabalha-
dos nas aulas de Português, que lidam com materiais brasileiros [...];
e (iii) a normas tão idealizadas que acabam por registrar formas
arcaizantes e até extintas da fala e da escrita contemporâneas, resul-
tando em certo purismo linguístico (VIEIRA, 2018, p. 58).

Com a abordagem apresentada, é aconselhável que os profissionais da educação


ultrapassem os modelos propostos pelos compêndios tradicionais e apresentem
a norma-culta escrita e falada efetivamente praticada no Brasil. Por isso, a for-
mação continuada é necessária (apesar da realidade educacional brasileira), para
compreender os processos variacionais e de mudanças linguísticas constantes,
tanto nos meios monitorados quanto nas modalidades faladas e escritas e, pos-
sivelmente, concretizável com a operacionalização dos três eixos aqui abordados
e que podem resultar no sucesso do empreendimento do ensino e aprendizagem
da nossa língua portuguesa brasileira. 183
CONSIDERAÇÕES FINAIS
UNIDADE 5

Prezada(o) graduanda(o), sabemos que o pensamento produzido pelo senso co-


mum tende a entender negativamente acerca das vertentes teóricas que pensam
na e sobre a língua que não comunga com os preceitos normativos da gramática
tradicional. Estamos considerando que não é o nosso caso, pois você – indepen-
dentemente de concordar ou discordar das reflexões que foram elaboradas aqui
– pode apresentar argumentos amparados cientificamente nos autores apresen-
tados aqui e nos demais que estão à sua disposição.
Apropriamo-nos de Faraco (2008) para abolir a velhas opiniões que conside-
ram a língua como um monumento puro que deve ser congelado e preservado.
As reflexões disponibilizadas neste espaço foram para elaborar questões sobre
o processo de ensino e aprendizagem da língua, considerando alguns aspectos
defendidos por gramáticos em contraste com outros posicionamentos teóricos e
práticos desenvolvidos por linguistas que trazem abordagens diferentes.
Nosso propósito foi abordar questões sobre o ensino e aprendizagem da nossa
língua materna, considerando a proposta tradicional, mas também as pesquisas
atuais, pautadas nas comunidades de falantes atuais e nos textos contemporâneos
que circulam nos meios midiáticos e acadêmicos. Há uma infinidade de questões
e citamos algumas poucas situações tanto por falta de espaço como por falta de
conhecimento e tempo para se debruçar sobre elas.
Estamos fechando esse ciclo, entretanto, com a sensação de “recado dado”,
diante de uma sociedade que defende a inovação, mas não admite que se mexa
em algumas estruturas, entre as quais, a língua ocupa lugar de excelência. Con-
tinuaremos insistindo, pautados em Faraco (2008) que a gramática normativa
tradicional é importante, mas não podemos deixar de considerar que a nossa
língua ultrapassa a gramática-lista, cheia de classificações que se inicia na fonética,
atravessa a morfologia e finda seu percurso na sintaxe. Há muito mais no nosso
português brasileiro.

184
na prática

1. “[...] a língua imaginária é a língua sistema, a que os analistas fixam em suas regras e
fórmulas, em suas sistematizações [...]. [...] A língua fluida, [...] é a língua movimento,
mudança contínua, a que não pode ser contida em arcabouços e fórmulas, não se
deixa imobilizar, a que vai além das normas [...]” (ORLANDI, 2009, p. 18).

Considerando as possibilidades de definir e praticar a língua como imaginária ou


fluida, assinale a alternativa que melhor se adapta ao conceito de língua portuguesa
brasileira fluida e atualizada ao contexto do século XXI.

a) A língua flui como um rio: apesar de um modelo de língua padrão sugerido pela
gramática normativa tradicional, os falantes usam a língua adequando-a ao con-
texto linguístico atual. Ex: hoje, a maioria dos falantes dizem “assisti o filme”, em
vez de “assisti ao filme”.
b) A língua é estável e controlada: a gramática normativa tradicional determina
que o verbo deve sempre concordar com o sujeito. Ex: “os rios precisam ser
preservados”. Essa é a forma obedecida por todos os falantes e ninguém diz “os
rio precisa ser preservado”.
c) A língua é homogênea e fixa: a língua não sofre influência da revolução tecno-
lógica, apesar de muitas palavras somente terem sido criadas por causa dessas
inovações. Ex: “arquivar nas nuvens” significa esconder objetos em massas de ar
que podem virar chuva.
d) A língua é imaginária: há um modelo de língua que, por ser considerado padrão,
é imposto a todos os falantes a dizer da mesma maneira. Ex: nenhum falante de
língua materna desobedece às normas da concordância verbal, ou seja, ninguém
diz “os menino saiu para comprar lanche”.
e) A língua é lógica: os falantes são obedientes e, até hoje, seguem todos os modelos
pré-estabelecidos pela gramática greco-romana. Ex: os falantes dizem “minha
mãe trouxe um filme para eu assistir”. Ninguém diz: “minha mãe trouxe um filme
para mim assistir”. Afinal, mim não faz nada.

185
na prática

2. Para os linguistas contemporâneos, a língua nunca está pronta e acabada, ou seja,


ela está em constante processo de variação e de mudança linguísticas. Os gramáti-
cos conservadores refletem sobre a língua a partir de normas fixas e homogêneas
faladas e escritas pela elite erudita da antiguidade greco-romana, Diante das ideias
apresentadas, considere as afirmativas:

I - Em relação ao sentimento “dó”, o dicionário o considera como um substantivo


masculino, portanto pela via tradicional e também pela boca do povo, a palavra
somente aceita o artigo masculino “o” (o dó).
II - A língua está em constante processo de variação e de mudança e é comum ouvir/
ler palavras tradicionalmente designadas como femininas variar para masculinas,
por exemplo: “a cal’ também varia para “o cal”.
III - Linguistas refutam definições da língua como homogênea e fixa, pois, segundo
eles, a língua é como um rio que flui e não se estagna no tempo e no espaço,
justificando a mudança de “falar ao telefone” por “falar no telefone”.
IV - Há inúmeras normas tradicionais que ainda fazem parte do uso falado e escrito
culto e, por isso, devem ser apresentadas ao alunado de forma contextualizada
ao conhecimento prévio dos estudantes.

Assinale a alternativa correta:

a) As afirmativas I, II e IV estão corretas.


b) As afirmativas II, III e IV estão corretas.
c) As afirmativas I, III e IV estão corretas.
d) As afirmativas II e IV estão corretas.
e) As afirmativas III e IV estão corretas.

186
na prática

3. Aprendemos que a gramática normativa tradicional é resultado de um projeto da


era grega e latina, criado para atender às demandas sociais, políticas, econômicas
e culturais de um período anterior à Era Cristã, mas que ainda se faz presente nas
nossas aulas de Língua Portuguesa (brasileira) do século XXI. Considerando os pro-
nomes demonstrativos esse/a(s), este/a(s) a partir da norma tradicional e do seu uso
atual analisado pelos linguistas contemporâneos, leia as afirmativas, considere-as
como verdadeiras (v) ou falsas (f):

( ) Em “esta moça ao meu lado é uma velha amiga”, o pronome demonstrativo “esta”
é usado em conformidade ao uso atual do português brasileiro contemporâneo,
pois pela gramática tradicional o correto é usar “esse” para indicar o objeto ou
seres que estão próximos de quem fala ou escreve.
( ) Em “esta calça que estou usando é nova”, o pronome demonstrativo “esta” é
usado conforme a norma tradicional, mas no português brasileiro atual, é co-
mum e já aceitável o pronome “essa” comprovando que, hoje, está ocorrendo
uma indiferenciação entre “este” e “esse” no uso falado e escrito.
( ) A aluna Joyce durante a apresentação do seminário do seu grupo: “esse livro
conta a história da língua materna atual”. Durante o debate, o professor explicou
que a versão tradicional exige “este” para indicar proximidade de quem fala, mas,
atualmente, o falante brasileiro tem preferido usar o “esse”.
( ) Marcos e sua esposa planejando a viagem, que irá ocorrer no próximo ano:
“vamos por esse caminho. O outro tem três pedágios”. Pela norma tradicional
Marcos cometeu um erro, pois o pronome “esse” somente deve ser usado para
indicar o ser ou o objeto que está próximo ao falante e ao ouvinte.

Assinale a alternativa correta:

a) V, V, F, F.
b) F, F, V, V.
c) F, V, V, F.
d) F, V, F, V.
e) V, F, V, F.

187
na prática

4. Leia o poema “Pronominais” de Oswald de Andrade.

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro

Em relação à colocação pronominal dos pronomes oblíquos átonos da primeira pes-


soa do singular “me” utilizada de duas maneiras no poema de Oswald de Andrade,
analise as afirmativas:

I - Em “Dê-me um cigarro”, o autor do poema apresentou a colocação pronominal


enclítica (ênclise), de acordo com a norma tradicional e sua determinação de
que jamais se deve iniciar uma oração com um pronome.
II - Em “Me dá um cigarro”, o autor do poema apresentou a colocação pronominal
proclítica, em desacordo com a norma tradicional e sua determinação de que
jamais se deve iniciar uma oração com um verbo.
III - Em “Me dá um cigarro”, apesar de estar em desacordo com a norma tradicional,
o autor do poema registrou outras formas de uso da língua pelo falante brasileiro
que evidencia a tendência proclítica do português do Brasil.
IV - O professor de língua materna atual, ao mediar o ensino e a aprendizagem dos
pronomes, deve apresentar as normas clássicas tradicionais e também utilizar
o conhecimento prévio dos alunos e suas tendências proclíticas.

Assinale a alternativa correta:

a) Apenas as afirmativas I, II e III estão corretas.


b) Apenas as afirmativas I, II e IV estão corretas.
c) Apenas as afirmativas I, III e IV estão corretas.
d) As afirmativas I, II, III e IV estão corretas.
e) Apenas as afirmativas I e IV estão corretas.

188
na prática

5. A professora Margarida iniciou a aula de Língua Portuguesa Brasileira daquela segun-


da-feira, continuando com o tema dos pronomes, especificamente, com a colocação
pronominal. Amparada nas normas da gramática tradicional, propositadamente,
explicou o assunto, a partir das permissões e proibições registradas pelas seguintes
posições: próclise, mesóclise e ênclise. Como atividade, pediu para os alunos locali-
zarem os referidos pronomes em situação proclítica (próclise) em textos produzidos
em sites oficiais da internet e justificar sua referida posição na oração.

Bianca resolveu fazer logo sua tarefa: assim que chegou em casa, viu que seu pai
estava em um site de finanças denominado “me poupe” e sua mãe assistia a um
documentário sobre a crise hídrica no mundo. Percebeu que um grupo de alunos
fazia uma passeata com faixas, contendo a seguinte informação: “Água é vida. Me
economize”. Com dúvidas, Bianca não conseguiu realizar a atividade e, no outro dia,
questionou a professora sobre o fato de ter aprendido na gramática algo que ela
não conseguiu visualizar no uso dos falantes. Margarida ficou feliz pela perspicácia
da aluna e agora poderia dar continuidade à aula de colocação pronominal, partindo
da sua vivência.

Comando da questão: você, na posição da professora Margarida, como explicaria o


fenômeno linguístico ocorrido entre a teoria apresentada pela gramática normativa
tradicional e o que Bianca descobriu na prática linguística da comunidade brasileira
de falantes?

189
aprimore-se

O GIGOLÔ DAS PALAVRAS

Quatro ou cinco grupos diferentes de alunos do Farroupilha estiveram em minha


casa numa mesma missão designada por seu professor de Português: saber se eu
considerava o estudo da Gramática indispensável para aprender e usar a nossa ou
qualquer outra língua. Cada grupo portava seu gravador cassete, certamente o ins-
trumento vital da pedagogia moderna, e andava arrecadando opiniões. Suspeitei
de saída que o tal professor lia esta coluna, se descabelava diariamente com suas
afrontas às leis da língua, e aproveitava aquela oportunidade para me desmascarar.
Já estava até preparando, às pressas, minha defesa (“Culpa da revisão!”). Mas os alu-
nos desfizeram o equívoco antes que ele se criasse. Eles mesmos tinham escolhido
os nomes a serem entrevistados. Vocês têm certeza de que não pegaram o Veríssi-
mo errado? Não. Então vamos em frente.
Respondi que a linguagem, qualquer linguagem, é um meio de comunicação
e deve ser julgada exclusivamente como tal. Respeitadas algumas regras básicas
da Gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras são dispensáveis.
A sintaxe é uma questão de uso de princípios. Escrever bem é escrever claro, não
necessariamente certo. Por exemplo: dizer “escrever claro” não é certo, mas é claro,
certo? O importante é comunicar. (E quando possível surpreender, iluminar, diver-
tir, comover… Mas aí entramos na área do talento, que também não tem nada a ver
com a Gramática). A Gramática é o esqueleto da língua. Só predomina nas línguas
mortas, e aí de interesse restrito a necrólogos e professores de Latim, gente em ge-
ral pouco comunicativa. Aquela sombria gravidade que a gente nota nas fotografias
em grupo dos membros da Academia Brasileira de Letras é de reprovação pelo Por-
tuguês ainda estar vivo. Eles só estão esperando, fardados, que o Português morra
para poderem carregar o caixão e escrever sua autópsia definitiva. É o esqueleto
que nos traz de pé, certo, mas ele não informa nada, como a Gramática é a estrutura
da língua, mas sozinha não diz nada, não tem futuro. As múmias conversam entre
si em Gramática pura.
Claro que eu não disse tudo isso para meus entrevistadores. E adverti que minha
implicância com a gramática na certa se devia à minha pouca intimidade com ela.

190
aprimore-se

Sempre fui péssimo em Português. Mas – isto eu disse – vejam vocês, a intimidade
com a Gramática é tão dispensável que eu ganho a vida escrevendo, apesar da mi-
nha total inocência na matéria. Sou um gigolô das palavras. Vivo às suas custas. E
tenho com elas a exemplar conduta de um cáften profissional. Abuso delas. Só uso
as que eu conheço, as desconhecidas são perigosas e potencialmente traiçoeiras.
Exijo submissão. Não raro, peço delas reflexões inomináveis para satisfazer um ges-
to passageiro. Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo dominar por elas. Não me
meto na sua vida particular. Não me interessa seu passado, suas origens, sua família
nem o que outros já fizeram com elas. Se bem que não tenha também o mínimo
escrúpulo em roubá-las de outro, quando acho que vou ganhar com isto. Algumas
são de baixíssimo calão. Não merecem o mínimo respeito.
Um escritor que passasse a respeitar a intimidade gramatical das suas palavras
seria tão ineficiente quanto um gigolô que se apaixonasse pelo seu plantel. Acaba-
ria tratando-as com a deferência de um namorado ou com a tediosa formalidade
de um marido. A palavra seria sua patroa! Com que cuidados, com que temores e
obséquios ele consentiria em sair com elas em público, alvo da impiedosa atenção
de lexicógrafos, etimologistas e colegas. Acabaria impotente, incapaz de uma con-
junção. A Gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda.

Luís Fernando Veríssimo

Fonte: iBahia (2014, on-line)13.

191
eu recomendo!

livro

Norma culta brasileira: desatando alguns nós


Autor: Carlos Alberto Faraco
Editora: Parábola
Sinopse: o livro apresenta um texto coerente sobre as principais
questões em relação a uma língua considerada pelo viés tradi-
cional em um aspecto contrastivo dos múltiplos aportes teóricos
atuais. O autor apresenta considerações esclarecedoras, não só
da norma culta brasileira, mas também de suas relações com os múltiplos sen-
tidos de gramática e do modo como as línguas funcionam, se constituem e nos
instituem cultural e socialmente.

filme

Narradores de Javé
Ano: 2004
Sinopse: conta a história de uma localidade chamada Javé. Tudo
está prestes a ser totalmente destruído por conta de uma autori-
zação para a construção de uma usina hidrelétrica. Os habitantes
procuram uma solução para o problema e decidem se unir para
escrever a história do vilarejo, já que não havia nenhum regis-
tro que comprovasse a existência daquele lugar. Acontece que
os habitantes são analfabetos, exceto Antônio Biá (José Dumont), que recebe a
missão de colocar o plano em prática. Ele bate na porta de cada morador para
coletar as informações necessárias. Durante as entrevistas, é possível perceber as
características daquela comunidade, cultura, costumes e a identidade marcante
de um grupo social. Uma boa dica para quem deseja se aprofundar na construção
da língua.

conecte-se

A autora apresenta algumas reflexões sobre o ensino descontextualizado da gra-


mática na escola e sugere outras atitudes por parte da instituição de ensino e sua
equipe pedagógica.
https://www.youtube.com/watch?v=eT71CiFFWBY&t=203s

192
conclusão geral

Prezada(o) estudante, chegamos ao final do nosso percurso e foi por meio desse
material que você conheceu o gerativismo e sua essência teórica pautada em um
modelo que considera a linguagem humana pelo aspecto inato e biológico. Se a
aquisição de uma língua, no entanto, é algo que pertence ao ser humano, as trans-
formações que vão ocorrendo na conjuntura social também afetam a nossa língua
que, por meio das comunidades de falantes, estão em um constante processo de
variação e mudança. Você teve a oportunidade de conhecer tais fenômenos, na Uni-
dade 2, por meio da sociolinguística, seus autores específicos e algumas exemplifi-
cações que utilizamos para materializar a teoria.

Diante de uma língua que pode ser analisada como algo inato e que, por ser viva, não
fica estagnada no tempo e no espaço (não estamos refletindo sobre uma língua morta),
ela acompanha a evolução social e, sem nenhum pudor, é capaz de produzir uma infini-
dade de significados. Isso foi apresentado a você, na terceira unidade, em que tratamos
da semântica, enquanto ciência linguística que estuda os significados das palavras.

A língua, ao ser pensada em sua dinamicidade, ou seja, como um rio que flui cons-
tantemente, não fica limitada a um pensamento fechado. Por isso, ela se apresenta
com a possibilidade de ser um instrumento de produção discursiva, nas diversas
estruturas sociais (mídia, religião, política, educação etc.), sempre por meio de um
sujeito que, a partir de uma posição dada, produz efeitos de sentidos. Você desco-
briu tais conceitos na Unidade 4, por meio da teoria linguística da AD.

E finalizamos nossa empreitada com algumas elucubrações sobre o ensino e a apren-


dizagem da língua materna, especificamente, pelos pronomes que foram apresenta-
dos pela gramática normativa tradicional e outras metodologias inovadoras. O ob-
jetivo aqui foi lançar ideias para que você estabeleça uma relação com a sua língua
materna, a partir dos componentes teóricos que apresentamos. Grande abraço.

193
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198
gabarito

UNIDADE 1 estudando (fazer o que gosta, curtir, os


amigos, participar das festas etc.).
1. A.

2. B. UNIDADE 4
3. C.
1. C.
4. D.
2. D.
5. E.
3. E.

4. A.
UNIDADE 2
5. Considerando a heterogeneidade da
1. A. língua e sua opacidade, o discurso pro-
duzido pelo sujeito médico, em um
2. B.
hospital público, durante o atendimen-
3. C. to de um paciente, produz um efeito de
4. D. sentido de que o problema da saúde
pública não é a falta de dinheiro, mas a
5. E. falta de uma gestão eficiente na admi-
nistração da arrecadação dos impostos
e do seu direcionamento para setores
UNIDADE 3
essenciais, como a saúde pública.

1. A.

2. B. UNIDADE 5

3. C.
1. A.
4. D.
2. B.
5. Na propaganda a, o significado do pri-
3. C.
meiro “leve” é um verbo que significa
conduzir, administrar, levar a vida de 4. D.
uma forma tranquila, sem estresse, 5. Na posição da professora Margarida,
sem pressa etc. (significado do segun- usaria a dúvida da aluna para retomar
do “leve”). Na propaganda b, “passar” é as normas da gramática tradicional,
um verbo que significa, neste contex- por meio de uma contextualização
to, ser aprovado (na prova, no concur- histórica desse compêndio e, por meio
so etc.), mesmo sem deixar “passar” de uma explicação que justifica a situa-
nada, ou seja, sem deixar de aproveitar ção da língua sempre em processo de
a vida, ficando somente na biblioteca variação e mudança. Além disso, por

199
gabarito

estarmos em um espaço e um tempo


brasileiro (e não português), o falante
do Brasil tende a usar a forma proclí-
tica. Este fenômeno já é regularmen-
te observável em textos que circulam
na mídia, abrindo a possibilidade para
considerá-lo como um aspecto na nor-
ma culta do português brasileiro.

200

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