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Antes de tudo, há que se notar um obstáculo que não podemos desviar tendo
em conta a intenção deste trabalho. Na tradução brasileira1 de Sein und Zeit,
encontramos o termo alemão Zeug traduzido por “instrumento” e o termo alemão
Werkzeug s endo traduzido por “utensílio”, o que, de certo modo, pode causar um
inconveniente tendo em vista que na tradução de Conceitos Fundamentais da
Metafísica: Mundo, Finitude e Solidão2 o termo Zeug é
traduzido por “utensílio” e o
termo Werkzeug t raduzido por “instrumento”3. No entanto, veremos no decorrer do
trabalho que, malgrado Zeug e Werkzeug, em Sein und Zeit, possam ser
considerados sinônimos, pois a distinção de nomes não é respaldada por uma
distinção conceitual explícita, no seminário supracitado, Heidegger opera uma
distinção e vamos ver que Zeug (utensílio) é um termo mais amplo que Werkzeug
(instrumento). Essa delimitação não só terminológica que Heidegger tenta fazer é
nítida nesse seguinte trecho: “Aber nicht jedes Zeug ist ein Werkzeug in dem
engeren und eigentlichen Sinne.”4 que casa nova traduz assim “No entanto, nem
todo utensílio (Zeug) é um instrumento (Werkzeug) no sentido mais estrito e próprio”
5
. Ou seja, nem todo instrumento é um utensílio em sentido próprio então, há aí uma
certa distinção. No entanto, este tópico tem a tarefa de iniciar a caracterização dos
entes intramundanos e manteremos a terminologia de Ser e Tempo enquanto ainda
1
Ser e Tempo / Martin Heidegger ; tradução revisada e apresentação de Marcia Sá Cavalcante ;
posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. 10. ed. - Petropolis, RJ : Vozes ; Bragança Paulista, SP:
Editora Universitária São Franciso, 2015.
2
Creio que a única tradução dessa obra disponível aqui no Brasil é a de Casanova. cf. HEIDEGGER,
Martin. Conceitos fundamentais da metafísica: mundo-finitude-solidão. Trad. Marco Antônio
Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
3
Isso pode ser verificado no próprio glossário da edição brasileira já citada, ou mesmo no texto. Por
exemplo quando Heidegger diz em Sein und Zeit “E in Zeug »ist« strenggenommen nie”, a tradutora
coloca “Rigorosamente, um instrumento nunca é” cf. p 116 da tradução brasileira. Já na tradução do
Casanova não precisamos cotejar com o original, posto que já está em parênteses o que está a cada
vez sendo designado. Há um trecho que mostra isso de maneira clara “No entanto, nem todo
utensílio (Zeug) é um instrumento (Werkzeug) no sentido mais estrito e próprio.”.
4
GA 29/30 p.314
5
HEIDEGGER, Martin. Conceitos fundamentais da metafísica: mundo-finitude-solidão. Trad. Marco
Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. p. 275.
não temos uma distinção conceitual que possa respaldar uma distinção
terminológica.
Passemos à caracterização do ser dos entes que nos vem ao encontro que,
como vimos, tem como objetivo uma caracterização do fenômeno do mundo.
Antes disso, vale lembrar, que a análise heideggeriana procura demonstrar
como o ser-aí de início e na maioria das vezes se mostra no seu modo de lidar no
mundo e com o ente intramundano, a demonstração fenomenológica dos entes
intramundanos irá, portanto, também seguir esse caminho. No entanto, Heidegger
destaca alguns preconceitos que devem ser afastados.
Heidegger ciente de que toda tematização do ser é acompanhado pelo ente,
acha necessário delimitar o ponto de partida de abordagem desse ente. No entanto,
é necessário assegurar o ponto de partida que nos proporcione um acesso a
estrutura ontológica do ente, isto é, um ponto de partida que não contenha uma
caracterização ontológica prévia. Com isso, de saída rejeitará o ponto de partida
que enxerga os entes com que lidamos no mundo como coisas, pois aí já está um
primado do modo de ser do conhecimento no relacionamento com os entes
intramundanos. Heidegger seguirá muito mais a pista deixada pelos gregos que já
interpretavam as coisas como pragmata, coisas de uso, sem, no entanto, esclarecer
ontologicamente o que isso significa. E é justamente aí que Heidegger quer centrar
sua análise. Aquilo com que se lida na ocupação é o instrumento - “Designamos o
ente que vem ao encontro na ocupação com o termo instrumento”6 - e cabe assim,
expor o modo de ser do instrumento.
Para Heidegger, o ser instrumento nunca pode ser determinado
isoladamente, pois tem sempre já seu ser determinado por um nexo referencial.
Essa totalidade referencial é fundada na compreensão de ser que o ser-aí tem de si
mesmo e do mundo, pois na medida em que mundo faz parte de seu ser, o ser-aí já
tem, embora de modo não temático, uma compreensão mediana do mundo. Desse
modo, sendo o ser-aí um ente que não tem seu ser definido, mas é marcado pela 1.
minheidade, isto é, sempre ter que assumir seu próprio ser como seu e 2. por ter o
6
Ser e Tempo / Martin Heidegger ; tradução revisada e apresentação de Marcia Sá Cavalcante ;
posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. 10. ed. - Petropolis, RJ : Vozes ; Bragança Paulista, SP:
Editora Universitária São Franciso, 2015. p.116
modo de ser do ente existente, ou seja, ser de tal modo que seu próprio ser não lhe
é indiferente, ter sempre o ser em jogo; o ser-aí interpretará os entes que lhe vem
ao encontro segundo seus(os do ser-aí) projetos de ser, dado que o ser do ser-aí
não é um ente simplesmente dado.
Com base nisso, temos como resultado que o ser dos entes intramundanos
não é, numa primeira aproximação, ao modo de uma coisa simplesmente dada.
Pelo contrário, eles são compreendidos segundo suas possibilidades de emprego,
algo a ser produzido, como no caso do instrumento(“É a obra que sustenta a
totalidade das referências na qual o instrumento vem ao encontro”7). Aí se
apresenta o caráter referencial de todo instrumento. A estrutura ontológica do
instrumento é determinada pelo ser para… que é condição ontológica de
possibilidade para concreção ôntica, o para quê de sua possibilidade ontológica
(“Como constituição do instrumento, a serventia (referência) também não é o ser
apropriado de um ente, mas a condição ontológica da possibilidade para que possa
ser determinado por apropriações)8.
7
Ibid. p.118
8
Ibid. p.134
9
Para entender o sentido que está sendo usado aqui com “pergunta metafísica” e a rica análise da
disposição fundamental do tédio que a precede recomendo a leitura da obra em questão, cf
HEIDEGGER, Martin. Conceitos fundamentais da metafísica: mundo-finitude-solidão. Trad. Marco
Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
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Também não vamos entrar na questão do que se está querendo dizer com o mundo por achar que
foge ao objetivo e as limitações deste trabalho.
modos de ser com o mundo, ei-las: 1. A pedra é sem mundo, 2. O animal é pobre de
mundo e 3. O homem é formador de mundo. No entanto, e isso para Heidegger é
claro de maneira a determinar o desenvolvimento da questão, não estamos em
condições de dizer: 1. O que é mundo (pois esse é o objetivo), 2. Não dispomos de
uma noção segura do que consiste a animalidade do animal e muito menos sua
relação com algo como mundo e menos ainda, 3. em que consiste a pobreza de
mundo do animal de maneira a determinar sua essência.
Para começar a desenvolver essa imbricada questão, Heidegger escolhe a
tese do meio: o animal é pobre de mundo; daí temos: a ausência de um lado, e, do
outro, o caráter formador de mundo. No entanto, antes de entrar no
desenvolvimento da tese ele faz algumas considerações metodológicas e revela as
aporias em que caem várias interpretações que, visando a esclarecer, mais
encobrem a dificuldade de se apreender a essência da animalidade. Assim,
Heidegger estabelece o seguinte caminho para desdobrar sua tese: “Procuraremos
nos aproximar da essência da pobreza de mundo a partir da elucidação da
animalidade mesma”11. Prosseguindo nesse caminho, Heidegger vê-se logo em
dificuldade, pois ao enunciar a tese que irá guiar a caracterização da “totalidade
essencial” do ser vivente, a saber, a tese de que “todo vivente é um organismo”12,
ele encontra os próprios termos nos quais quer se exprimir perpassado por
interpretações que encobrem a irredutibilidade do modo de ser em questão. Esses
encobrimentos encontram a sua razão de ser na interpretação do ser vivente a partir
de categorias próprias a outro modo de ser, o modo de ser do utensílio em geral.
Nas palavras de Heidegger: “É assim que um dos biólogos mais eminentes dos
últimos tempos, Wilhelm Roux, define o organismo, como um complexo de
ssim, para distinguir as estruturas próprias a cada modo de ser,
instrumentos”13. A
Heidegger vê-se obrigado a explorar com mais detalhes que em Ser e Tempo a
instrumentalidade para mostrar as “diferenças essenciais” entre o modo de ser
animal e o modo de ser instrumental14.
11
Ibid. p. 272
12
Ibid. p. 272
13
Ibid. p. 273
14
“Nós temos ainda menos o direito de nos eximir da tarefa de discutir estas conexões, uma vez que
os esclarecimentos da vida facilmente recorrem justamente a tais representações e conceitos como
instrumento, máquina etc. Além disso, esses esclarecimentos tendem com isso a apagar as
Diferença entre Utensílio e Máquina e Instrumento
diferenças entre esses tipos de ente, não deixando que essas diferenças se tornem vigentes” Ibid. p.
273-274
15
É importante esclarecer que as diferenças aqui são ditas essenciais p elo próprio Heidegger. Ou
seja, o que está em questão não são diferenças meramente terminológicas ou ônticas, mas fundadas
na verdade próprio ente em questão. Não por acaso que a subclassificação do parágrafo 51 recebe o
nome de “... Clarificação rudimentar da diferença essencial entre utensílio, instrumento e máquina”
Ibid. p. 272
16
Ibid. p. 275
17
Ibid. p. 276
18
Ibid. p. 275
19
Interessante que Heidegger, embora aluda a uma especificidade própria do aparelho e da
ferramenta, se abstenha de uma caracterização. O que é esperado, pois a caracterização em
questão só é suscitada pela tentativa de realçar as diferenças entre dois modos de ser: vivente e os
entes que têm seu ser baseado numa utilidade.
20
“Portanto, o olho é um utensílio, um utensílio de visão, mesmo sem ser talvez um instrumento, uma
vez que nada é produzido com a sua ajuda?” Ibid. p 279-280
determinada pela estrutura do “útil para” e a concreção dessa estrutura num
possível para quê, isto é, da referência a outro ente que ele enquanto utensílio é
junto. Daí temos que o ser do utensílio encontra sustentação no seu possível para
quê. Isso se dá de forma ainda mais clara na fabricação do utensílio, pois a
fabricação opera segundo um plano e este, por sua vez, é determinado pela
serventia do utensílio.
Malgrado utensílio e máquina sejam determinados pela estrutura do ser útil
para…, e, lembrando, toda máquina é um utensílio, mas nem todo utensílio é uma
máquina, encontra-se uma diferença no modo de produção de ambos. Heidegger
diz, quando se refere a produção de uma máquina “Na maioria das vezes, nós
precisamos de um ‘plano’ no sentido do projeto de uma c onexão intricada”21. N
este
a máquina em
trecho vemos uma alusão à diferença no aspecto construtivo d
relação ao utensílio. Em seguida, Heidegger acentua e afirma essa diferença dando
a entender que o plano de construção da máquina não é tão simples quanto de um
utensílio, no qual o plano recebe sua determinação somente da conexão entre a
referência a uma possível utilidade e sua utilidade. Ele diz que no plano da máquina
existe uma certa “ordenação prévia da estrutura, na qual as partes singulares da
máquina em movimento se deslocam umas em relação às outras de um lado para o
outro”22
Afinal, chegamos no momento que é preciso dizer o que é a máquina para
Heidegger. Encontramos uma primeira definição sua quando, em questionamento
crítico com o biólogo Roux, indaga se seria o organismo um instrumento
complicado, parecendo dizer que a máquina, segundo uma definição que não é a
dele (de Heidegger) , seria algo em que “diversas partes estão entrelaçadas umas
nas outras, de modo que produzem um rendimento conjunto uno”23. Aí vemos dois
aspectos 1. um caráter complexo do ser maquinal e 2. um rendimento uno resultado
de uma complexidade. O que define uma máquina enquanto máquina seria qual dos
dois aspectos, ou seriam os dois formando uma unidade? Heidegger responde “Mas
não é a complicação da estrutura que é decisiva para o caráter maquinal de um
21
Ibid. p. 276
22
Ibid. p. 276
23
Ibid. p. 273
utensílio. Ao contrário, o decisivo é muito mais o transcurso autônomo da estrutura
orientada para movimentos determinados”24. Aqui, vemos Heidegger dizer que “não
é a complicação da estrutura que é decisiva para o caráter maquinal de um
utensílio”, de fato, a complicação de uma máquina é subordinada ao “transcurso
autônomo” que iria determinar o ser maquinal. No entanto, por ainda ser um
utensílio em certo aspecto, a máquina ainda possui seu transcurso autônomo
“orientado para movimentos determinados”, isto é, a um possível ser útil para. Aí
temos que ao ser maquinal é acrescentado 1. uma complicação, mas não
determinante do ser maquinal enquanto tal, subordinada a 2. um transcurso
autônomo, coisa que constitui a especificidade essencial da máquina ante o
utensílio e 3. o caráter de ser “útil para” que mesmo máquina constitui seu ser,
preservando certa dimensão do utensílio25.
Conclusão
24
Ibid. p. 276-277
25
Um aspecto da análise desse trecho da obra poderia deixar a desejar pela ausência do
desenvolvimento da análise do utensílio e seu caráter de possibilidade. No entanto, visto que o
caráter de possibilidade do utensílio, a aptidão, não desempenha um papel relevante na diferença
essencial e ntre instrumento, máquina e utensílio, prescindimos dessa análise.
Bibiliografia
HEIDEGGER, Martin. Conceitos fundamentais da metafísica: mundo-finitude-solidão. Trad. Marco
Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.