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EDUCAÇÃO E TRABALHO
AULA 1

 
Prof. Rui Valese

CONVERSA INICIAL

Ao iniciarmos o estudo de determinada disciplina, é de fundamental


importância começarmos

por delimitar alguns conceitos sobre as quais esta está


organizada. Assim, iniciaremos nosso estudo

com base nos conceitos do que é


educação, trabalho, relações sociais, cultural, social, entre outros
que
consideramos fundamentais.

Porém, antes desses conceitos, precisamos fazer uma reflexão


ontofilosófica. A educação é um

ato especificamente humano, feito por e entre


humanos. Assim, primeiramente, precisamos deixar

explícita nossa compreensão de


ser humano. Da mesma forma, afirmamos que todo educador, antes

de iniciar seu
trabalho, precisa, necessariamente, também encontrar sua definição de ser
humano,

com base na qual organizará toda a sua atividade profissional e pedagógica.

Por fim, iniciaremos nossas reflexões sobre as relações entre trabalho


e educação nas
denominadas comunidades primitivas. Muito mais do que afirmações,
pretendemos trazer algumas

reflexões e provocações que levem a outras reflexões


sobre a importância do fazer pedagógico e seu

compromisso ético, político,


cultural e emancipatório.

TEMA 1 – ONTOLOGIA E EDUCAÇÃO

Segundo o filósofo alemão Immanuel Kant, se “O homem é a única criatura


que precisa ser

educada” (Kant, 2002), é porque, também pela educação, o ser


humano vai se humanizando. Desta

forma, precisamos pensar a educação para além


do processos ensino-aprendizagem. E, para tal,
precisamos partir de alguns
fundamentos sob os quais a educação será orientada. Assim,

começaremos tratando
da educação a partir de uma perspectiva ontológica.

Por ontologia entendemos, a partir de seu sentido etimológico – onto


(ente) + logia (logos) – a

Ciência do Ser, o estudo do Ser enquanto Ser. Por


Ser, aqui, estamos falando não do verbo, mas do
seu sentido substantivo. Assim,
o que caracteriza o Ser como Ser? Isto é, qual é a sua essência? O que

caracteriza a sua identidade? Qual a sua substância? Por substância não estamos
falando em sentido

material, mas, aquilo que é permanente no Ser, que não se


altera, mas, que o identifica. Da mesma

forma, o que faz com que os indivíduos


possam ser agrupados em determinada categoria de Ser. Por
exemplo: qual é a
substância que nos caracteriza como ser humano? O que está presente em todos

os
indivíduos, sem nenhuma distinção de cor, etnia, gênero, crença ou não crença
religiosa, condição

social etc., que os coloca na condição de seres humanos?

Ao longo da história do pensamento humano, é possível distinguir


diferentes compreensões de

ser humano, que implicam em diferentes consequências


para o trabalho e educação. Por termos uma

forte influência da cultura grego-judaica-latina


em nossa formação, partiremos das compreensões de

ser humano oriundas dessas


três bases. Porém, faz-se necessário observar que as preocupações com

a
compreensão e definição de Ser não são exclusividade grega, e eles também não foram
os

primeiros. Em A filosofia antes dos gregos, o professor português


catedrático da Universidade de

Lisboa, José Nunes Carreira, afirma que

O
pensamento egípcio lançou a base mais importante para a criação de uma
autêntica ontologia, a

saber, os meios linguísticos necessários à formulação de


noções filosóficas. Há na língua egípcia
dois verbos para “ser”, um dos quais
(wn/n/) com dois particípios, designando o “ente” e “o que

foi”, uma capacidade


que o latim não possui. E também na forma finita e fazem afirmações sobre a
existência dos seres. (1994, p. 55).

Da mesma forma, também na filosofia chinesa, em particular Confúcio, a


ideia de Ser já estava

presente. Por exemplo, quando ele afirma que, para


realizar nossa vida moral de forma plena, é

preciso “encontrar a pista central


(shung) do nosso ser moral e ser harmonioso (yung) com o

universo”, (Wing-tsit,
1978 – sem página indicada).

Porém, dado que a nossa maior influência, como já dissemos, é a cultura


judaico-grego-latina,

partiremos delas para refletir sobre concepções de ser


humano. Primeiramente, vejamos três

definições de Ser, das quais derivam


diferentes concepções.

A primeira delas é a concepção essencialista. Segundo essa concepção,


cada Ente (como

também é chamado o Ser), tem uma essência que é fixa e


pré-determinada. E, por consequência,

cada indivíduo, dentre uma categoria de


Ente, tem uma essência que também é fixa e pré-
determinada. Por exemplo: todos
os indivíduos da espécie humana, apesar das diferenças que os

individualizam, têm
uma essência em comum, que é fixa e pré-determinada, que os coloca na mesma
categoria de Ser Humano. Essa essência é, também, nossa potência, como afirma
Aristóteles. Somos

constituídos da “substância” humanidade, que é a nossa


essência e que nos define, mas também

somos constituídos de atributos


acidentais, que não nos definem, mas nos individualizam: cor de

pele, sexo,
altura, cor dos olhos, cabelos etc.

Em oposição à concepção essencialista, temos a naturalista, que também


podemos chamar de
empirista. Essa concepção afirma que os Entes são de acordo
com as suas experiências. Isto é,

quando nascemos, por exemplo, nada está


pré-determinado, mas vamos nos constituindo com base

nas experiências que


vivemos. Fruto do pensamento de Descartes e Locke, a perspectiva naturalista

concebe
o ser humano pelo viés do dualismo psicofísico. Isto é, conforme o pensamento
de

Descartes, o ser humano é constituído de duas substâncias: res cogitans


(espírito) e res extensa

(matéria). A primeira, é parte pensante; a


segunda, não pensante. Ambas, porém, em seu entender

são imperfeitas, finitas e


dependentes.

Por fim, temos a concepção histórico-social, segundo a qual os Entes


são naturais, históricos e

sociais. Essa compreensão do ser humano surge com os


pensadores alemães do século XVIII e XIX,

entre eles Hegel, Marx e Engels, e se


dividem entre os idealistas (que seguem o pensamento
hegeliano) e os
materialistas (que seguem o pensamento marxiano). Ao longo do século XIX e XX,

outros pensadores também se opõem às perspectivas tradicionais e na direção do


pensamento

materialista, entre os quais podemos destacar Kierkegaard, Stirner,


Nietzsche, Max Scheler,

Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre, Simone de Beauvoir


etc. Apesar das muitas diferenças entre esses

pensadores, o que há de comum


entre eles é o fato de que consideram o ser humano como produtor

de sua própria
existência, e, para compreendê-lo, assim como para educá-lo, se faz necessário tomar

como base o modo como ele se organiza para produzir os bens, materiais e
imateriais, para produzir

e reproduzir a sua existência material e imaterial.

Retomando o que afirmamos com Kant anteriormente – de que o ser humano


é o único animal

que precisa ser educado – para realizarmos tal intento, se faz


necessário ter claro de qual concepção
de ser humano partirmos: essencialista,
naturalista ou histórico-social? Independentemente de qual

concepção partimos,
é ela que fundamenta a nossa prática pedagógica, sendo o ponto de partida, o

processo e o ponto de chegada. A educação é uma ação tipicamente humana. Feita


por e para seres

humanos. Da mesma forma, ao educarmos, buscamos alcançar


determinados objetivos que estão,

necessariamente, vinculados a determinados


fins. Por fim, aqui a entendemos não no sentido de
terminalidade, mas de
finalidade, isto é, de algo que se almeja alcançar por meio de determinada

ação
e após realizá-la.

Da mesma forma, cada uma dessas concepções tem suas respectivas


consequências e/ou

finalidades. Se tomamos a concepção essencialista como


fundamento, concebemos a nós e aos

nossos educandos com as respectivas


naturezas já dadas, definidas previamente. Quando partimos

da concepção
naturalista/empirista, nos concebemos e aos nossos educandos, inicialmente,
como

tábulas rasas, folhas de papel em branco sobre as quais vamos depositando,


por meio das

experiências, os conhecimentos. Por fim, se adotamos a perspectiva


histórica-social, nem somos

definidos previamente, nem a posteriori,


mas, no próprio existir, em como existimos, em como

produzimos e reproduzimos a
nossa existência material e imaterial. Seja em qual delas nos

fundamentamos, é
importante ter clareza e coerência com ela.

TEMA 2 – TRABALHO NAS RELAÇÕES SOCIAIS

Uma das palavras-chave dessa disciplina é trabalho. Porém, o que é


trabalho? Para

respondermos a essa questão, começaremos pelo seu significado


etimológico e histórico. Em

seguida, trataremos do tema pela perspectiva


materialista e histórico-social.

Etimologicamente, a palavra trabalho vem do latim tripalium, que


era um instrumento de tortura

utilizado durante o Império Romano. Inicialmente,


era a junção de três paus – daí o nome tripalium –

que os agricultores utilizavam


para bater o trigo, as espigas de milho e o linho. A partir do século VI

da
nossa era, passou a substituir a cruz nos suplícios aplicados a determinadas
pessoas que eram

julgadas e condenadas. Assim, ao invés de serem crucificadas,


os condenados eram amarrados em

um instrumento feito de um pau na vertical


sobre o qual colocavam dois outros em forma de “X” e,

cada um dos membros era


amarrado em uma das extremidades.

Desta forma, uma primeira representação de trabalho que temos é a de


sofrimento, castigo,

punição. Antes, porém, desse sentido etimológico, herdamos


dos gregos a distinção entre trabalho

manual e trabalho intelectual. O trabalho


intelectual estava destinado às pessoas que tinham tempo

livre, que tinham


direito ao ócio. Com esse tempo livre, podiam se dedicar a atividades políticas,

intelectuais, físicas, artísticas e educativas. Essas atividades, na Grécia


Antiga, estavam restritas apenas

a uma parcela pequena da sociedade: os que


eram considerados cidadãos – homens adultos livres e

descendentes dos primeiros


habitantes da Grécia Antiga.
Já as atividades manuais, tais como a agricultura e pecuária, os
serviços domésticos, enfim, todos

os trabalhos manuais eram destinados aos não cidadãos:


as mulheres, livres ou não, os escravos, os

ex-escravos e os estrangeiros.
Nessa mesma sociedade, o trabalho valorizado era o intelectual, já o

trabalho
manual, ainda que essencial, era desvalorizado. O trabalho intelectual somente
era possível

de ser ocupado por quem não precisava trabalhar manualmente para


garantir sua subsistência, na

medida em que tinha quem o fizesse.

Essa divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, na sociedade


ocidental, persiste até os

dias atuais, sendo que o segundo é mais valorizado,


financeira e socialmente, do que o primeiro.

Herdeira do dualismo platônico da


divisão entre corpo e alma: sendo o corpo e o que está

relacionado a ele
considerado inferior, corruptível; e, por outro lado, tudo que está relacionado
à

alma, superior, perfeito e incorruptível. Como forma de superarmos essa falsa


oposição – trabalho
manual X trabalho intelectual – passaremos, agora, a pensar
o trabalho e sua relação com a educação

considerando seu sentido dignificante,


sem esquecermos, é claro, das condições degradantes de
trabalho que tivemos ao
longo da história humana.

Primeiramente, por que consideramos a oposição trabalho manual X


trabalho intelectual como
falsa? Porque toda ação humana implica em esforço
físico e intelectual. Não existe ação que seja

exclusivamente física ou
intelectual. O que chamamos de atividade intelectual, em realidade, é onde
predomina o esforço mental, mas, que demanda, também, algum esforço físico.
Entre os trabalhos
que classificamos como intelectual, está a educação, como
também o trabalho do médico, do

engenheiro, do advogado, do administrador, do


escritor, entre tantos outros.

Da mesma forma, chamamos trabalho manual aquele para o qual o esforço


físico é maior; no

entanto, demanda, necessariamente, algum esforço


intelectual. O pedreiro, o motorista, o agricultor,
o trabalhador doméstico, o
gari, o cozinheiro, entre outros profissionais são, da mesma forma,

imprescindíveis à produção e reprodução da existência humana.

Ainda sobre a natureza do trabalho e da educação, podemos estabelecer


duas outras distinções:
assíncrono e síncrono. Por assíncrono, entendemos a
interação que não acontece em tempo real, isto

é, há uma distância temporal


entre a sua realização/produção e sua apropriação. Por exemplo: entre
a escrita
de um livro e o seu consumo, há uma distância temporal. Da mesma forma, a obra
escrita

pode ser consumida mais de uma vez pela mesma pessoa e também por
várias pessoas, uma vez que
são publicados vários exemplares. O trabalho de
escrita, produção, apropriação e consumo de um
livro consideramos um processo assíncrono.

No entanto, determinados produtos/serviços somente podem ser consumidos


no exato
momento de sua produção. A esses processos chamamos síncronos,
ainda que possam se realizar de
maneira assíncrona também. Porém, nesse caso,
há a necessidade de estes serem gravados/filmados,

disponibilizados por alguma


forma midiática e tornado acessível a quem queira consumir/apropriar
de maneira
assíncrona. Por processos síncronos chamamos aqueles que são
consumidos/apropriados

no exato momento de sua produção (presencial ou remoto).


Por exemplo: aulas ao vivo (remotas ou
não), as mais diferentes modalidades de shows
ao vivo (remotos ou não), entre outras atividades. As

aulas nas modalidades


presenciais são sempre síncronas, isto é, são produzidas e consumidas
simultaneamente.
Se essa aula não foi gravada para ser, posteriormente, disponibilizada para
outras

pessoas, não pode mais ser consumida. Mas, diante dos avanços
tecnológicos alcançados nos dias
atuais, uma aula presencial pode ser
gravada/filmada e disponibilizada em plataformas digitais de

compartilhamento
de conteúdo.

Porém, independentemente da modalidade de trabalho – se síncrono ou


assíncrono;
majoritariamente intelectual ou manual – o fato é que o trabalho
educacional, mesmo passando por

um processo profundo e necessário de


transformações, não pode perder de vista aquilo que está
previsto para o Ensino
Superior – ensino, pesquisa e extensão (e que poderia ser ampliado para a

Educação Básica, respeitadas as suas especificidades) – do mesmo modo que, para


que aconteça,
precisa, necessariamente, de um objeto a ser aprendido/ensinado,
e de dois sujeitos que interajam

nesse processo de ensino/aprendizagem: de um lado


o docente, e, de outro, o discente. E, para que
esse processo se efetive,
comungamos com a afirmação de Freire:

É que
não existe ensinar sem aprender e com isto eu quero dizer mais do que diria se
dissesse que

o ato de ensinar exige a existência de quem ensina e de quem


aprende. Quero dizer que ensinar e
aprender se vão dando de tal maneira que
quem ensina aprende, de um lado, porque reconhece

um conhecimento antes
aprendido e, de outro, porque, observado a maneira como a curiosidade
do aluno
aprendiz trabalha para apreender o ensinando-se, sem o que não o aprende, o
ensinante

se ajuda a descobrir incertezas, acertos, equívocos. (2005, p. 19).

A relação entre
ensinar e aprender não é simplesmente de causa e efeito, mas, dialética,

dialógica. Assim como também deve ser a relação entre docente e discente.
TEMA 3 – TRABALHO E EDUCAÇÃO

Apesar de, ao longo da história humana, sempre ter havido uma relação
estreita entre educação
e trabalho, essa relação poucas vezes foi pensada de
forma a romper com uma perspectiva
superficial, ingênua e, até certo ponto,
preconceituosa em relação tanto à educação quanto ao

trabalho. Por muito tempo,


a educação foi vista como “missão”, “sacerdócio” ou “extensão das
atividades
domésticas”. Esses equívocos ainda permeiam o imaginário de muitos governantes

brasileiros quando estes pensam a educação. Da mesma forma o trabalho que, por
sua divisão
histórica em trabalho manual e trabalho intelectual, acabou por estabelecer,
ao longo da história,

principalmente nas sociedades influenciadas pela cultural


hebreia-greco-latina, uma supervalorização
do intelectual em detrimento do
manual. Desta forma e, ao mesmo tempo, predominou a visão de

trabalho como
tortura, sofrimento, punição, castigo etc.

Neste tema, abordaremos a relação educação e trabalho na perspectiva de


ambas. São ações

exclusivamente humanas e, portanto, conscientes e intencionais.


Na mesma medida em que são
ações por meio das quais agimos sobre e no mundo,
também sofremos as consequências destas em
nós. Igualmente, o trabalho tem uma
dimensão educativa, assim como a educação é uma forma de

trabalho. Comecemos
por explorar um pouco o conceito de educação.

A palavra “educação” deriva do latim educare, educere – ex


(de dentro de, para fora) + ducere

(tirar, levar). Nesse sentido, educar


significa, numa tradução literal, levar alguma coisa de dentro para
fora,
provocar um processo de mudança, de movimentação. Ao pensarmos a educação considerando

sua raiz etimológica, percebemos que ela tem, pelo menos, dois sentidos: tirar
algo de dentro da
pessoa e levar a pessoa de um estado a outro. Assim, quando
pensamos em educação, para além do

processo ensino-aprendizagem, a entendemos


como algo que acontece dentro do indivíduo que
aprende, como uma tomada de
consciência das coisas que aprende. Ao mesmo tempo, essa tomada
de consciência
o tira de determinada condição. A título de ilustração, pensemos sobre o
processo de

alfabetização e letramento de uma pessoa. Ao aprender a ler e a


escrever, uma pessoa qualquer
passa a olhar todas as coisas e seres que via
antes, sabendo, além do nome que cada uma dessas

coisas tem, representar de


forma escrita o nome delas. Da mesma forma, não precisa mais da
presença ou da
representação imagética dessas mesmas coisas, mas pode percebê-las ao ler a

palavra que a representa em determinado texto. Antes da alfabetização e do


letramento, havia a
necessidade da presença física de determinado ser ou de sua
representação imagética. Agora, é

capaz de compreendê-la por meio da palavra


que a representa.
Por conseguinte, a mudança não ocorre somente internamente, mas, a tira
da condição de
estabelecer apenas uma relação empírica com estes ao transitar
por entre as coisas e seres. Agora, a

relação pode ser, num estágio mais


avançado, em nível abstrato, percebendo, ao mesmo tempo, que
as letras e
sílabas que compõem o nome das coisas e seres podem ser reagrupadas em novos
pares e

formar novas palavras, que nominam outras coisas e seres que tenham ou
não relação com os
anteriores. Trata-se do estágio em que o sujeito toma
consciência de sua presença no mundo, mas,
de uma forma distinta que os demais
seres vivos e/ou coisas inanimadas.

Para que a educação aconteça, nessa perspectiva, precisa orientar-se


pela maiêutica socrática,
adotando o viés dialógico, apontado por Paulo Freire
como um dos pilares do processo de ensino-

aprendizagem. Isto é, a ideia de que


a educação é um processo de transmissão de conhecimento de
alguém que sabe para
alguém que não sabe, não faz sentido quando retomamos seu sentido

etimológico.
O pensador grego Sócrates não fazia pregações e/ou discursos em praça pública,
mas
inquiria as pessoas sobre suas supostas verdades. E o fazia por meio de
perguntas que,

necessariamente, levavam seus interlocutores a, primeiramente,


refletirem sobre aquilo que
afirmavam, para, somente depois, responderem aos
questionamentos socráticos. Da mesma forma, o

patrono da educação brasileira,


Paulo Freire, entendia a educação como uma ação dialética e
dialógica.

Para tratarmos do outro polo desse tópico – trabalho – faremos uso de


uma narrativa mítica

grega: o mito de Prometeu. Existe várias versões para a


história sobre a qual nos basearemos. A que
utilizaremos é a mais comumente
utilizada. Conta-se que Zeus encarregou os titãs Prometeu e

Epimeteu de criarem
todas as criaturas e dotarem-nas das respectivas qualidades. No entanto, por
sua natureza precipitada, Epimeteu foi distribuindo as mais diferentes qualidades
aos seres vivos, sem

atentar se a distribuição estava sendo equilibrada, para


que todos os seres fossem contemplados
com alguma qualidade. Ao chegar, porém,
a vez de criar os seres humanos, Epimeteu percebeu que

os deixara desprovidos
de qualquer qualidade que os colocasse em condições de sobreviver ante às
adversidades da vida. Ao perceber tal situação, recorre a seu irmão Prometeu.
Este, para corrigir o
erro, rouba o fogo dos deuses e o dá aos seres humanos.
Desta forma, os seres humanos podem se

proteger dos animais ferozes, como


também cozer seus alimentos, aquecer-se nos momentos de frio
e transformar os
objetos, seja pela queima, derretimento ou aquecimento.

Ao perceberem que os seres humanos tinham o fogo – que era privilégio


dos deuses – e
descobrirem que fora Prometeu quem o entregara, após roubá-lo do
Monte Olimpo, os deuses
castigam o titã com a sentença de ficar amarrado a uma
rocha e ter seu fígado comido durante um

dia inteiro por uma águia. À noite o


fígado se regenerava e, no dia seguinte, o fato e repetia. Se, por
meio do
fogo, como uma tecnologia, o ser humano se liberta da natureza, podendo transformá-la

isto é, trabalhar (lado dignificante do trabalho) – também por meio do fogo,
ao desafiarmos os

deuses aceitando o presente de Prometeu, herdamos o lado


indignificante do trabalho: ao longo do
dia somos explorados em nossa energia
física e intelectual (o nosso fígado) que, entre uma jornada e

outra, precisa
se regenerar (momento do descanso) para, no dia seguinte, recomeçar todo o
processo
novamente. Se Prometeu foi libertado por Hércules de sua punição,
talvez a educação seja a nossa

heroína que poderá nos libertar desse suplício.

Afinal de contas, por meio da educação tomamos consciência de nós


mesmos como sujeitos e

do mundo, podendo, dessa forma, nos mover em direção à


nossa emancipação. Assim, tanto o
trabalho quanto a educação têm uma dimensão
ontológica e política: por meio do trabalho e da
educação tomamos consciência
de nós e do mundo, e nos construímos. Ao nos construirmos,

somente o podemos
fazer de forma coletiva, pois, como nos definiu Aristóteles: somos zoo
politikon,
isto é, somos um animal político. Viver na polis, isto é,
em sociedade, é da nossa natureza.

TEMA 4 – CONCEPÇÕES DE TRABALHO E A CULTURA SOCIAL

Comecemos esse tópico relembrando de uma cena clássica do cinema. O


filme é 2001: Uma

Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick: um


primata/hominídeo, após descobrir que um osso
(ao que parece, uma tíbia)
poderia ser utilizado como ferramenta para intervir no mundo,

transformando-o,
protagoniza um salto cronológico espetacular ao lançar esse mesmo osso no
espaço, que se metamorfoseia em nave espacial, refletindo, em poucos segundos,
a evolução

humana de uma condição de completa dependência da natureza, para um


ser que busca a conquista
do Universo.

Quando nos deparamos com essa cena, podemos compreender a extensão da


dimensão do

trabalho na constituição da existência humana. Quando afirmamos que


o ser humano se constitui por
meio do trabalho, e que, por meio do trabalho nos
libertamos da condição de completa dependência

da natureza, se analisarmos
apenas do ponto de vista teórico, a compreensão parece prejudicada.
Porém,
quando a fazemos a partir dessa cena, nossa compreensão se amplia.
Os primeiros ancestrais dos seres humanos atuais, segundo as pesquisas
arqueológicas e

paleontológicas mais recentes, surgiram por volta de 3 a 4


milhões de anos atrás, pertencentes ao
gênero Australopithecus. Por
possuírem uma postura ereta, já andavam somente sobre duas pernas e

tinham uma
arcada dentária próxima da nossa. Nesse processo de evolução, Homo habilis
(2,4
milhões de anos) e Homo erectus (1,8 milhões de anos) tinham uma
caixa craniana maior, maxilares

com dentes mais largos e habitaram diversas


regiões da África e da Ásia. Já a espécie que mais se
aproxima de nós foi a Homo
sapiens, que surgiu há cerca de 200 mil anos e apresentava habilidades

físicas, uma linguagem complexa, a capacidade de criar ferramentas e, por


conseguinte, havia
conseguido iniciar esse processo de libertar-se da natureza.
Esse é um período da história da

evolução humana que ainda permanece bastante


obscuro e que vem passando por redefinições por
parte dos pesquisadores. Foi há
cerca de 150 mil anos que o Homo sapiens, dominando o fogo,

começou a construir
as ferramentas que foram aos poucos, libertando-o da natureza e, por
conseguinte, possibilitando o desenvolvimento de uma linguagem mais complexa.

Nesse processo de evolução, o outro grande momento é o do Período


Paleolítico, que se iniciou

há cerca de 2,5 milhões de anos e terminou em 8000


a.C., seguido do Período Neolítico (8000 a.C. –
5000 a.C.). No Paleolítico, o
ser humano ainda era completamente dependente da natureza, vivendo

basicamente
da caça e da pesca e morando em cavernas, apesar de já dominar o fogo. Porém, é
no
Neolítico que se dão as grandes transformações: a criação da agricultura e
da pecuária possibilitaram

aos seres humanos deixarem a vida nômade e,


construindo os primeiros vilarejos e cidades,

tornarem-se sedentários. Ao mesmo


tempo que as relações de poder se tornaram mais complexas, a
escrita apareceu,
e, por vários séculos, este será um instrumento de poder e controle nas
sociedades.

Em algumas culturas, inclusive, a escrita é tomada como de caráter


divino e, por isso mesmo, restrita

apenas aos sacerdotes e escribas.

Sobre o aparecimento da escrita, novas descobertas têm colocado em


xeque as explicações

tradicionais. Costumou-se convencionar que o aparecimento


da escrita havia se dado por volta do
ano 3 mil a.C. Porém, descobertas
recentes na China têm considerado que a escrita pode ter sido

inventada cerca
de 8.600 anos atrás.

Todo esse processo é de fundamental importância para compreendermos o


que nos diferencia

dos demais seres vivos. Enquanto os demais seres são


completamente dependentes da natureza, ao

longo do nosso processo evolutivo,


fomos nos libertando dela num primeiro momento, para, na
sequência, buscarmos a
sua compreensão (passagem de uma consciência mítica para uma
consciência
racional) e, posteriormente, identificarmos e elaborarmos leis que explicam o
seu

funcionamento (surgimento da mentalidade racional-científica – século XVII


até os dias atuais).

Não somos os únicos seres que transformam a natureza e constroem certa


autonomia em

relação a ela. Existem várias espécies que também conseguem


interagir com a natureza com certa

autonomia em relação a ela. No continente


africano, gorilas e chimpanzés fazem uso de galhos e
pedras para resolverem
problemas diários na procura por alimentos. Nas Américas, o macaco-prego

utiliza-se de pedras para quebrar alimentos. As abelhas, por exemplo, têm todo
um sistema

complexo para a construção da colmeia e a coleta da matéria-prima


para a fabricação do mel. Basta

nós analisarmos um único item para termos uma


dimensão de toda a engenharia utilizada por elas:
existe uma única entrada para
a colmeia, e esta é recoberta com própolis, um agente que impede a

entrada e o
desenvolvimento de qualquer agente infeccioso que possa contaminar o interior
da

colmeia, afetando os favos, os ovos e o próprio mel. Aliás, a palavra


própolis significa “defesa da

pólis”. A construção de teias pelas aranhas,


assim como de ninhos por determinadas espécies
também demonstram essa
engenhosidade. Da mesma forma que determinadas aves, como os

corvos, fazem uso


de pequenos galhos para alcançar insetos nos troncos de árvores. Porém, o que

diferencia as ações desses seres vivos das ações humanas? Ou seja, por que chamamos
nossas ações

de trabalho, e a dos demais seres vivos, não?

Eis as principais características das nossas ações que nos levam a


nominar nossa intervenção
sobre a natureza como trabalho: intencionalidade, sociabilidade,
historicidade, relação histórico-

cultural com o meio e, por fim, as ferramentas


que fabricamos manifestam o que somos – as nossas

relações econômicas,
políticas e simbólicas. Quando agimos sobre a natureza, o fazemos com

intencionalidade. Essa intencionalidade se traduz no fato de que, antes de


executarmos a nossa ação,
nós a projetamos mentalmente e, somente depois, a
executamos. Ao mesmo tempo, ainda que

algumas das nossas ações possam ser


feitas individualmente, elas tanto são feitas social e

coletivamente quanto
cumprem o papel de reforçar os laços de sociabilidade.

Porém, essas ações não as fazemos sempre do mesmo jeito, muito menos da
mesma forma que

a fizemos desde a primeira vez. Isto é, nossas ações são


históricas. Por exemplo: se o topo das
árvores ou as cavernas foram as nossas
primeiras moradas, hoje em dia, construímos casas que

podem ser de madeira,


pedra, alvenaria, papelão, zinco ou o que estiver ao alcance das nossas

condições materiais.
Por fim, para realizarmos todas essas ações, estabelecemos relações que
são econômicas,
políticas e simbólicas. Se, num primeiro momento, os seres
humanos trabalhavam de maneira mais

colaborativa, promovendo uma divisão de


tarefas com base no sexo, com a criação da agropecuária e

dos primeiros
vilarejos, houve um excedente de produção e, consequentemente, alguns braços
foram

liberados do trabalho produtivo e direcionados ou para a proteção do


grupo, ou para a sua
administração. Ao longo da história, diversas formam as
relações de trabalho estabelecidas: coletiva,

escravagista, servil, assalariada


etc. E, dessa forma, surgiram as primeiras estruturas de poder que,

para
poderem se manter, precisaram explicar, justificar e legitimar a si mesmas.
Isso significou o

aparecimento da política e das representações simbólicas que


caracterizam a cultura.

TEMA 5 – TRABALHO E EDUCAÇÃO NAS COMUNIDADES


PRIMITIVAS

Iniciamos, a partir de agora, uma retrospectiva histórica das relações


entre educação e trabalho

nas mais diferentes sociedades e tempos históricos.


Porém, antes de continuarmos, se faz necessário

observar que não temos a


pretensão de abarcar todo o período histórico da humanidade, muito
menos de todas
as sociedades. Partiremos dos períodos e das sociedades mais clássicas. Nosso

objetivo é discutir as relações que se estabeleceram entre educação e trabalho.

Uma segunda observação diz respeito ao uso do termo “sociedade


primitiva”. O termo

“primitivo” quase sempre vem carregado de sentido


pejorativo e ideológico; além de ambiguidades.

Os primeiros escritos sobre


sociedades primitivas foram produzidos por juristas e tinham como
preocupações
centrais os problemas relacionados à propriedade dos bens e das relações

matrimoniais entre os indivíduos dessas sociedades.

No século XIX, numa interpretação enviesada e equivocada do darwinismo,


o conceito de

primitivo foi oposto ao de civilização, sendo esse segundo


apresentado como superior àquele. Ao

mesmo tempo, os povos europeus foram


classificados como civilizados, enquanto os povos dos

demais continentes foram


categorizados como primitivos. Desta forma, era legítima a dominação do
branco
europeu sobre o negro africano, os povos originários das Américas e também
sobre os

asiáticos. Nos primeiros anos dos estudos antropológicos, essa


qualificação serviu para justificar e

legitimar o eurocentrismo que vinha sendo


praticado desde que fora iniciado o expansionismo

marítimo ibérico dos séculos


XV e XVI.
No entanto, esse não é o sentido que trataremos aqui e, por isso mesmo,
optaremos pela

expressão sociedades primevas. Ainda que nos dicionários


também verificamos o termo “primitivo”
como sinônimo de primevo, o sentido que
entendemos é como primeiro, primário; sem que, com

isso, estejamos emitindo


e/ou reforçando qualquer juízo de valor.

No entendimento do senso comum, e mesmo do preconceituoso, as


sociedades primevas são

vistas como aquelas que não têm Estado, não têm classes,
não têm escrita, não têm comércio, não

têm história, não têm escola, não têm


educação, não têm cultura, não são civilizadas etc. Porém, essa
é uma visão
equivocada, pois os parâmetros utilizados para julgamento são os etnocêntricos.

Entretanto, ao analisarmos essas mesmas sociedades com base em estudos


antropológicos

científicos e sérios, observamos uma série de características


que as tornam particulares. Nessas

sociedades há o predomínio de uma


consciência mítica, e nisso não há nenhum desmerecimento.

São constituídas por agrupamento


de famílias, caracterizadas por relações patriarcais ou matriarcais
de poder. A
oralidade é importantíssima na transmissão dos saberes e histórias dos
antepassados,

bem como a organização de determinados momentos e rituais em que


essas memórias são

transmitidas aos integrantes do grupo.

Nas sociedades primevas, também, a organização do trabalho é bastante


característica,

predominando, quase sempre, o trabalho coletivo, com a divisão


sexual deste. Por serem sociedades
em que a subsistência era uma característica
muito forte, atividades como caça, pesca, coleta de

frutos e raízes e até mesmo


as primeiras atividades de agricultura e pecuária não passavam pela

posse
privada da terra e/ou dos recursos. Curiosamente, isso acabava por se traduzir
até mesmo nas

próprias línguas faladas, pois, em boa parte delas, o pronome


possessivo é inexistente.

Mas, e a educação? O que sabemos sobre os processos educacionais nessas


sociedades?

Não existia um momento formal e institucionalizado de


ensino-aprendizagem. Ela acontecia, ao

que parece, ao longo do dia e da vida, a


partir de situações corriqueiras, como nos afazeres de
preparar as refeições,
confeccionar instrumentos de caça e pesca, bem como de defesa e utensílios

domésticos. Desta forma, o aprendizado se dava por imitação e em situações reais.


Da mesma forma,

não havia alguém especificamente encarregado para essa tarefa.


A criança poderia aprender com

qualquer adulto que estivesse por perto. Ou


seja, todos os adultos são responsáveis pela educação
das crianças. Igualmente,
há atenção e paciência com o ritmo de desenvolvimento e aprendizagem

das
crianças, sendo descartados os castigos físicos e as repreensões.
Apenas as tarefas vinculadas ao sagrado e à cura medicinal por meio de
plantas e rituais eram

aprendidas por meio de um processo de formação, que


começava com a identificação de vocação

e/ou chamado para exercer tal tarefa;


que também poderia ser por hereditariedade. Porém, mesmo
nessa hipótese, há uma
longa preparação que passa pelo conhecimento profundo das plantas

medicinais,
bem como de um conhecimento integral de toda a natureza.

NA PRÁTICA

Quando os portugueses e espanhóis chegaram em solo ameríndio, trouxeram


também religiosos

jesuítas, franciscanos e dominicanos. Esses religiosos


realizaram duas tarefas diretamente: atuaram na
educação e na conversão dos
povos originários ao catolicismo. As consequências desse processo nós

as
conhecemos pelos estudos de história, sendo a principal delas a desaculturação.
Nos dias atuais,

algumas denominações religiosas ainda insistem nessas mesmas


práticas. Faça uma pesquisa

científica sobre os impactos que essas “missões”


têm sobre a vida e a organização dessas
comunidades. Procure sites
especializados e artigos publicados em revistas de antropologia e

sociologia
para fundamentar suas pesquisas.

FINALIZANDO

Nesta aula, exploramos alguns conteúdos que são fundamentais e


fundantes de uma disciplina

relacionada à educação e, em particular, educação e


trabalho. Começamos por refletir sobre os
aspectos relacionados à ontologia e
educação. Quando falamos de educação, precisamos partir de

uma concepção de ser


humano. O trabalho educacional fundamenta-se numa ontologia. Assim,

quando
atuamos como educadores, qual a concepção de ser humano que fundamenta a nossa

prática, e, que tipo de ser humano queremos formar?

Vimos também que a educação faz parte das nossas relações sociais e, ao
longo da história

humana, trabalho e educação sempre estiveram vinculados. Por


isso, foi de fundamental importância
refletirmos sobre as diferentes concepções
de trabalho e suas relações com a cultura social de

determinada sociedade. Por


fim, refletimos sobre as relações entre trabalho e educação nas

comunidades
primitivas.
REFERÊNCIAS

CARREIRA, J. N. Filosofia antes dos gregos.


Mem Martins: Publicações Europa-América, 1994.

FREIRE. P. Professora sim, tia não.


Cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Editora Olho d´Água,

1997.

KANT, I. Sobre a pedagogia. Trad.:


Francisco CockFontanella. Editora Unmep, 2002.

Wing-Tsit, C. A história da filosofia chinesa. Disponível em: <https://voluntas.tripod.com/Hp/

fchinesa.htm>.
Acesso em: 30 out. 2021.

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