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Comer e Beber Juntos A Comensalidade
Comer e Beber Juntos A Comensalidade
O Ser Humano não é somente um ser de natureza regido unicamente pelo instinto:
tendo fome, lança-se sobre uma porção de comida. Ele é, principalmente, um ser de cultura,
que o leva a moderar o instinto e a ritualizar o ato de comer, geralmente à mesa, junto com
outras pessoas. A passagem do animal ao humano se deu exatamente quando nossos
antepassados antropoides começaram a comer juntos com o seu grupo de convivência. Daí
nasceu a comensalidade. Ela significa comer e beber juntos, expressão singular de nossa
verdadeira humanidade.
Devido à alteração da vida moderna e à fragmentação de nosso tempo, nem sempre as
famílias têm a oportunidade de comerem juntas. Mas recordamos sempre com saudades os
momentos em que, nas festas familiares do Natal, de um aniversário ou de outra data
importante, nos reuníamos todos ao redor da mesma mesa familiar.
É um dos sonhos mais antigos da humanidade imaginar que todas as pessoas,
habitantes da Casa Comum, a Terra, possam um dia sentar-se juntas à mesma mesa como uma
grande família e celebrar a alegria de comerem e beberem juntas dos bons frutos da Terra e
do seu trabalho.
Grande parte da humanidade está faminta ou subnutrida. Tal fato constitui escândalo
e sinal de extrema inumanidade, porque dispomos de todos os meios técnicos e políticos que
nos permitem oferecer pelo menos três refeições diárias a todos os habitantes da Terra. Não o
fazemos porque perdemos a sensibilidade para com nossos semelhantes.
Comer e beber juntos à mesma mesa – comensalidade – significa resgatar a nossa
humanidade mínima, pois foi o ato comunitário de comer e de beber juntos que nos constitui
outrora e nos constitui ainda hoje como espécie humana. Não haverá paz no mundo enquanto
houver estômagos vazios, falta de solidariedade e de compaixão para com os mais
necessitados.
Comer e beber juntos – a comensalidade – são atividades primordiais da humanidade.
Não só nutrimos nossos corpos como alimentamos nosso espírito. Comer e beber são ritos
carregados de significações. É pelos ritos que revelamos nossa humanidade e o grau de
civilização que conseguimos alcançar.
Hoje mais da metade da humanidade não tem acesso ao comer e ao beber humanos.
Tal escândalo constitui um problema ético e político dos mais graves. Acusa de insensibilidade,
impiedade e barbárie a humanidade bem-nutrida. Que estratégias seguir para colocar todos à
mesa como humanidade?
A mesa, antes que um móvel, remete a uma experiência existencial e a um rito. Ela
representa lugar privilegiado da família, da irmandade. Partilha-se o alimento e junto com ele
comunica-se a alegria de encontrar-se , o bem estar sem disfarces, o estar-junto que se traduz
pela não-cerimônia dos comentários dos fatos cotidianos, das opiniões sem censura sobre os
acontecimentos da história local, nacional e internacional. À mesa, além dos familiares, podem
estar os amigos e os hóspedes. É à mesa que todos nos sentimos, de certa forma, membros da
família humana.
Os alimentos são mais do que coisas materiais. São símbolos do encontro. O alimento
é apreciado e feito objeto de comentários. A maior alegria da mãe ou da cozinheira é perceber
a alegria dos comensais. Gesto importante na mesa é servir ou passar a comida ao outro. O
comportamento civilizado faz com que todos se sirvam, zelando para que a comida chegue
suficientemente a todos.
Sem excessivo romantismo devemos reconhecer que a mesa é também lugar de
tensões e de conflitos familiares, onde as coisas são discutidas abertamente, diferenças são
explicitadas e acertos podem ser estabelecidos. Onde há também silêncio perturbadores que
revelam todo um mal estar coletivo. A mesa é mesa humana, com todas as contradições que a
humanidade comporta.
A cultura contemporânea modificou de tal forma a lógica do tempo cotidiano em
função do trabalho e da produtividade que enfraqueceu a referência simbólica da mesa. Ela
foi reservada para os domingos ou para os momentos especiais, de festa ou de aniversário,
quando os familiares se encontram. Mas, via de regra, deixou de ser o ponto de convergência
permanente da família.
A mesa familiar foi substituída por outras mesas, absolutamente dessacralizadas: mesa
de negociação, mesa de jogos, mesa de discussão e de debate, mesa de câmbio e mesa de
concertação de interesses, entre outras. Mesmo dessacralizadas, estas várias mesas guardam
uma referência inapagável: são lugar de encontro entre as pessoas, pouco importa os
interesses que as levam a se sentarem à mesa. Estar a mesa para a troca, negociação,
concertação e definição de soluções que agradem as partes envolvidas. Ou também
abandonar a mesa pode significar o fracasso da negociação e do reconhecimento do conflito
de interesses. A mesa encarna todas essas contradições.
Não obstante esta difícil dialética, precisamos resgatar o sentido humano da mesa
como familiaridade e convivialidade. Importa reservar espaços de tempo para a mesa em seu
sentido pleno da comensalidade e da conversação livre e desinteressada. Ela é uma das fontes
permanentes de refazimento da humanidade em seu senti mais pleno.