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Cultura e comunistas no Brasil

Marcelo Ridenti I

D lizado na
esdobramento de um colóquio rea- cruzavam os dois objetos, geralmente
USP em 2011, a coletânea inspirados em autores pioneiros como
Comunistas brasileiros – cultura política Roberto Schwarz e Carlos Nelson Cou-
e produção cultural analisa a cultura po- tinho. Obras de Celso Frederico, Dê-
lítica e a produção cultural dos comu- nis de Moraes, Antonio Albino Canelas
nistas brasileiros. Baseia-se em pesquisas Rubim e outros deram continuidade ao
recentes que buscam compreender suas estudo do tema. Na coletânea, surgem
contribuições e heranças, em conexão dois integrantes dessa geração: Arnal-
com o contexto histórico, indicando que do Contier escreve sobre a trajetória do
a importância cultural dos comunistas músico Sérgio Ricardo, enquanto Mar-
ultrapassou os círculos e espaços restri- tin Cezar Feijó analisa a peça de Vianni-
tos dos meios organizados de esquerda. nha Rasga coração, que dá margem para
Até alguns anos atrás, o tema dos contrapor a tradição cultural pecebista
comunistas em geral ficava a cargo de com a contracultura emergente a partir
memórias, ou então de obras de militan- do final dos anos 1960.
tes que se tornaram acadêmicos. Agora a Cinco representantes de uma geração
profissionalização universitária se estabe- quinze ou vinte anos mais jovem tam-
leceu nitidamente. Todos os onze autores bém integram o livro. Seguidor da tradi-
e seis autoras integram a academia, treze ção analítica de Roberto Schwarz, Fran-
deles como docentes. Seis são originários cisco Alambert faz uma análise crítica
da USP; a UFMG, a Unicamp e a UFF es- do tropicalismo, cuja ideologia cultural
tão representadas com três formados em teria se tornado hegemônica no Brasil de
cada uma, além de dois na UFRJ. hoje, com seu “niilismo bem posto” na
A grande maioria é de jovens douto- indústria cultural, adaptado ao “mundo
res em História ou Comunicação, cujos ‘pós-moderno’, neoliberal, antirrevolu-
textos apresentam diversidade de influ- cionário, multicultural etc.”. Já Paulo
ências teóricas e metodológicas. Poucos Cunha aproxima-se da abordagem que
evidenciam a existência de laços sólidos João Quartim de Moraes e outros fazem
com a tradição teórica ou política mar- da esquerda militar, ao analisar a militân-
xista, mesmo considerando sua multipli- cia de Nelson Werneck Sodré no Clube
cidade. Mas quase não há preocupações Militar. Por sua vez, Denise Rollemberg,
antimarxistas ou anticomunistas. Por Marcos Napolitano e Rodrigo Patto Sá
outro lado, a influência de Pierre Bour- Motta, da mesma geração de Alambert e
dieu é praticamente nula, em contraste Cunha, estão mais afinados com o con-
com a produção atual sobre cultura na junto, como era de esperar, afinal os dois
sociologia e outras disciplinas. últimos estão entre os três organizadores
Já se fizeram vários estudos sobre os do livro.
comunistas e as esquerdas, e muitos mais Denise Rollemberg analisa o trata-
acerca da cultura brasileira. Mas até re- mento da censura à telenovela O bem-
centemente eram raros os trabalhos que -amado, do comunista Dias Gomes. A

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primeira em cores, exibida em 1973 pela que desprezaria a escolha individual. Ele
rede Globo, sofreu cortes da censura, se preocupa em abrir um diálogo com
inicialmente pontuais, aumentando no as correntes hoje dominantes na ciência
terço final da obra, após um “parecer- política, fundadas na escolha racional,
-balanço” elaborado por um censor que mas não com a vasta e diversificada tra-
mais tarde viria a ser presidente da Or- dição marxista nos estudos da cultura.
dem dos Advogados do Brasil (OAB), de Ao assumir a “abordagem culturalis-
1998 a 2001. O episódio serve para a au- ta”, Motta ressalta que ela “não implica
tora demonstrar uma tese que vem de- o abandono de outras perspectivas de
fendendo em suas publicações, seguindo análise, como a história política clássica,
pistas abertas por Daniel Aarão Reis: as a ciência política ou a sociologia polí-
relações intrincadas entre colaboração e tica”, mas busca lançar novas perspec-
resistência da sociedade civil diante da tivas para compreender o comunismo,
ditadura, em contraste com a memória combinadas às tradicionais. Resta saber
construída posteriormente, centrada na se não haveria alternativas para compre-
resistência diante do golpe e do regime ender os fenômenos culturais como in-
que se seguiu. dissociavelmente ligados aos políticos,
Cultura política comunista econômicos e ideológicos, sem abraçar
Um aspecto que aproxima o capítu- visões parcelares ditas culturalistas, eco-
lo de Rollemberg ao de outros na co- nomicistas ou politicistas. Seja como for,
letânea é o uso do conceito de cultura conforme atestam o capítulo e o conjun-
política, originalmente formulado por to da coletânea, é um ganho pensar as
historiadores como Serge Bernstein e questões políticas por um prisma cultu-
Jean-François Sirinelli. Não é à toa que ral, como o historiador faz também em
o livro se abre com um texto de Ro- seu recente livro A Universidade e o regi-
drigo Motta justamente sobre “a cul- me militar – cultura política brasileira e
tura política comunista”, isto é, aquela modernização autoritária (Zahar, 2014).
inspirada na revolução bolchevique de Trata-se de pesquisa extensa e aprofun-
1917 e seus desdobramentos, marcada dada, com base em muitas entrevistas e
por traços como a crença na razão, na documentos inéditos, que aponta as am-
ciência e no progresso; os ideais inter- biguidades do regime e de seus oposito-
nacionalistas indissociáveis da “devoção res na universidade, onde a repressão foi
soviética”; o anti-imperialismo em geral temperada com negociação e tentativas
manifestado como antiamericanismo (o de acomodação, envolvendo concessões
que paradoxalmente geraria um aspecto mútuas, o que seria típico da cultura po-
nacionalista na “pregação comunista”); lítica conciliadora prevalecente no Bra-
e a aposta num “novo homem”, com sil.
uma nova moralidade. O autor aponta Assim como Rodrigo Motta, atual
para as “ricas perspectivas abertas pelo presidente da Anpuh, Marcos Napoli-
prisma da cultura política”, entendendo tano vem se destacando como historia-
que a cultura (sentimentos, identidades, dor influente. Seu capítulo “A ‘estranha
valores, tradições) influencia fortemente derrota’: os comunistas e a resistência
as decisões e ações políticas, mas evitan- cultural ao regime militar” condensa ar-
do cair num determinismo culturalista gumentos de uma pesquisa mais extensa

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que resultou em sua tese de livre-docên- tas, jornalistas e outros ainda nos anos
cia em História, defendida na USP no 1960 e 1970, no calor dos acontecimen-
final de 2011. Apresenta uma tipologia tos. Então, a obra de vários colaborado-
para compreender os aspectos variados res da coletânea não deixa de expressar
dessa resistência, envolvendo quatro a apropriação relativamente tardia dos
grupos de atores político-culturais: 1 os historiadores em relação ao tema, ainda
liberais; 2 os comunistas; 3 os grupos que não haja aversão a aproximar-se de
contraculturais; 4 a nova esquerda sur- outras disciplinas, tanto que colegas de
gida nos anos 1970. Tais grupos, longe áreas afins participam do livro, sendo so-
de representar uma unidade na opo- ciólogo um dos organizadores, Rodrigo
sição ao regime, mantinham entre eles Czajka.
alianças tensas, precárias e fluidas. Certa Evoé, jovens à vista
concepção de “resistência democrática”, Com base em documentos inéditos
consolidada em meados dos anos 1970 a do “IPM do PCB”, isto é, o processo
partir da ofensiva de artistas comunistas de 157 volumes movido pelos militares
no front cultural, teria ficado estabele- contra o partido após o golpe de 1964,
cida como a memória social predomi- Czajka analisa a militância dos intelec-
nante, gerando a “estranha derrota” dos tuais comunistas e outros acusados de se-
militares no plano da memória, apesar rem “adeptos auxiliares”. Mostra como
de terem sido vitoriosos na política e no os intelectuais comunistas estabeleceram
governo. uma rede relativamente autônoma antes
Napolitano tem buscado ajudar a de 1964, sem uma centralização institu-
construir uma nova abordagem histo- cional. Czajka integra o polo mais jovem
riográfica sobre o tempo da ditadura, em que se concentra a maioria dos auto-
propondo-se a superar o embate entre res da coletânea, na faixa dos trinta anos.
as partes envolvidas na luta da época, Em “Quem é Zé Brasil?”, Paula Soares
que teriam dado o tom para apropria- trata das representações dos camponeses
ções distorcidas da história e da memó- na obra de Candido Portinari, particu-
ria. Ele procura fazer uma abordagem larmente suas ilustrações para o livro
menos envolvida do que as “referências de Monteiro Lobato, criador do per-
clássicas” sobre a resistência cultural, de sonagem. A obra do pintor estaria afi-
autores como Roberto Schwarz, Celso nada com as ideias comunistas sobre os
Favaretto, Heloisa Buarque de Hollanda camponeses. Esses teriam força e gran-
e Edelcio Mostaço. Propõe polemica- deza, mas dependeriam das diretrizes
mente que – a despeito de seus reconhe- que recebessem do partido do proleta-
cidos méritos – elas deveriam ser tratadas riado para sua emancipação. Boa parte
mais como fonte e objeto de estudo do das belas imagens que abrem o livro são
que inspiração teórica ou historiográfica reproduções de obras de Portinari. Mui-
para analisar o período. Detalhe: raras tas delas datam dos anos 1930, quando
dessas referências foram produzidas por ele ainda não era do partido e tinha liga-
historiadores em sentido estrito. Não ções com o Estado Novo, aspecto não
só no aspecto cultural, os pioneiros na comentado no texto.
análise do tempo da ditadura foram so- Miliandre Garcia, autora de uma tese
ciólogos, cientistas políticos, economis- com muitos dados inéditos sobre a cen-

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dos partidos comunistas brasileiro e chi-
leno nos anos 1930 e 1940. Mostra que,
apesar de ambos serem inspirados no so-
cialismo soviético durante o período sta-
linista, isso não gerou “a univocidade e
homogeneidade de suas proposições po-
líticas e culturais”, que dependeram da
construção histórica específica em cada
caso.
Como representante da área de lite-
ratura na coletânea, influenciado por crí-
ticos como Terry Eagleton e Raymond
Williams, Eduardo Tolledal analisa O ca-
minho de Trombas, de José Godoy Gar-
cia, escrito nos anos 1960. O romance
Motta, R. P. S.; Napolitano, M.;
Czajka, R. (Org.) Comunistas brasileiros –
trata das lutas dos posseiros pela terra
cultura política e produção cultural. em Trombas, com participação de mili-
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. tantes comunistas. Embora marcada em
parte pelas normas estreitas do realismo
socialista, a obra também teria aspectos
de um realismo maravilhoso que faria
sura ao teatro, escreve acerca das polí- uma aproximação criativa entre arte e
ticas culturais na ditadura entre 1974 e política.
1979, durante a gestão de Orlando Mi- Um conjunto de jovens da área de
randa no Serviço Nacional de Teatro. comunicação também contribui para a
Ele contou com o apoio de vários artis- obra: Igor Sacramento, Marco Roxo,
tas de esquerda, devido ao fomento às Mônica Mourão e Reinaldo Cardenuto.
atividades dramatúrgicas. A historiadora Os dois primeiros organizaram uma co-
mostra a ambiguidade da ditadura no letânea recentemente, intitulada Intelec-
trato das questões culturais, envolvendo tuais partidos: os comunistas e a mídia
ao mesmo tempo repressão e incenti- no Brasil (E-papers, 2012), e outra ainda
vo, o que gerava respostas diversas nos mais ambiciosa, História da televisão no
meios artísticos. Brasil (Contexto, 2010).
O grupo Casa Grande, congregando Marco Roxo e Mônica Mourão es-
dezenas de artistas e intelectuais que or- crevem sobre “o pacto entre comunistas
bitavam em torno do círculo comunista e imprensa conservadora no Brasil”. Sua
nos anos 1970, foi analisado por Miriam hipótese é que os atributos da cultura
Hermeto, que o interpreta como uma partidária, como a disciplina, o compor-
frente político-cultural de resistência, tamento exemplar, a lealdade e a obedi-
cujo florescimento se esvaiu após o fim ência à hierarquia, além da clandestini-
do AI-5 e a anistia de 1979. dade, geraram nos jornalistas comunistas
No único capítulo que abre diálogo um senso de profissionalismo que foi útil
com experiências no exterior, Carine para a imprensa que se modernizava na
Dalmás compara as concepções culturais década de 1970. Sem contar que os co-

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Foto Arquivo / Agência France Press
Luís Carlos Prestes
(1898-1990).

munistas haviam estabelecido desde ao de que seria possível atuar com um sen-
menos os anos 1940 uma extensa rede tido crítico nas fissuras da indústria do
de publicações que faziam do partido entretenimento. Assumidas posições te-
uma escola de jornalismo para seus qua- óricas como as de Adorno, é certo que
dros. se tratava de ilusão. Algo que talvez seja
Reinaldo Cardenuto analisa a drama- questionável, se consideradas as posições
turgia comunista na televisão na década de outros autores inspirados na tradição
de 1970, mostrando como o realismo marxista para pensar a cultura de mas-
crítico foi absorvido e reformulado es- sas, como Fredric Jameson e Raymond
pecialmente em telenovelas e séries da Williams.
rede Globo. Enfoca sobretudo a trajetó- O mesmo tema é tratado por Igor
ria de Vianninha e o que chama de “ilu- Sacramento no capítulo “Por uma tele-
são pecebista da brecha”, isto é, a aposta dramaturgia engajada”, privilegiando a

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contribuição de Dias Gomes. Para além
da contraposição entre o que chama de
teses da cooptação dos dramaturgos co-
munistas pela indústria cultural e teses
que os próprios comunistas propunham
de infiltração nas brechas do sistema,
Sacramento considera que se tratava
de mediadores culturais entre o campo
político e o da mídia, negociando sua
participação no sistema de comunica-
ção, onde “se encontravam a situação e
a oposição”.
Em suma, a coletânea atesta que a
história da cultura brasileira não pode
ser compreendida sem a participação de-
cisiva de intelectuais e artistas comunis-
tas e de outras forças de esquerda, pelo
menos entre as décadas de 1930 e de
1980. Eles atuaram significativamente
nas ciências, artes e meios de comuni-
cação, em experiências que estão sendo
cada vez mais estudadas.

Marcelo Ridenti é professor titular de


Sociologia, IFCH/Unicamp. Autor de
vários livros, como Brasilidade revolu-
cionária (Unesp, 2010), e Em busca do
povo brasileiro – artistas da revolução
(Unesp, 2014).
@ – marceloridenti@gmail.com

I
Instituto de Filosofia e Ciências Huma-
nas, Universidade Estadual de Campi-
nas, Campinas/SP, Brasil.

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