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UNIDADE IV– HISTÓRIA E TESTEMUNHO

O resumo refere-se à quarta unidade da disciplina cuja discussão enfocou-se na noção


de testemunho, procurando entender o que o conceito significa no âmbito do debate sobre
memória. Para tanto, além da exposição do tema em sala de aula, trabalhamos com o texto
Testemunho e a Política da Memória: O tempo depois das catástrofes (2005), de autoria do
historiador e crítico literário Márcio Selligmann-Silva e do texto História, Memória e
Testemunho, que compõe o livro Lembrar, Escrever, Esquecer (2006) da filósofa Jeanne Marie
Gagnebin. Complementarmente, fomos apresentados ao trabalho de análise de quadrinhos
sobre as ditaduras latino-americanas (Argentina, Brasil e Uruguai), designado como Quadros
da Barbárie, Quadros da Memória, do historiador Clóvis Gruner.
A ideia de testemunho ganha visibilidade e importância no decorrer do século XX,
estando estreitamente vinculado às catástrofes que este século viu ocorrer – a Primeira e a
Segunda Guerra Mundial, a Shoah, o Gulag, as ditaduras na América Latina, etc. Trata-se de
uma noção atrelada a eventos traumáticos, difíceis de pôr em termos, que orbita no campo-
limite da memória e do esquecimento (confrontando-se com este último). Constrói-se de modo
aproximado à ideia de trauma, tal como formulada por Freud, ou o que Benjamin postula como
choque (GAGNEBIN, 2006). Partindo desta prévia, procuramos explorar como cada um dos
autores deteve-se sobre a noção.
Selligmann-Silva (2005) procura discutir o conceito de testemunho de modo
abrangente, buscando o que nele está em jogo. Observa-o por diversos ângulos, aproximando a
temática ao seu campo de estudo, a saber o campo literário. Central em sua análise, a ideia de
testemunho como testis e como superstes, duas dimensões basilares que, como concebe, não
devem sublimar uma a outra – afinal, pondera essencial “ter claro que não existe a possibilidade
de se separar os dois sentidos de testemunho, assim como não se pode separar historiografia da
memória” (p.81). Testis atrela-se a dimensão visual do testemunho – testemunha aquele que viu
– que possui força de veracidade. Superstes, por sua vez, está vinculado àquele que sobrevive
a dado evento, ao que “subsiste a”; atrelando-se à audição e surge entremeada ao próprio ato de
narrar – testemunhar – o ocorrido. É um significado mais atual, que surge no bojo da vivência
de certos eventos (de quase-morte) e dos debates contemporâneos. Testis remonta à história,
enquanto superstes à experiência.
Ele começa seu texto ponderando sobre como o tema do testemunho tem sido alvo de
interesse de uma infinidade de campos de conhecimento. Passa então, a uma narrativa de como
o testemunho se faz presente nas tragédias da Grécia Clássica, trazendo o julgamento de Orestes
narrado na obra de Ésquilo. Trata-se aí de denotar sua relação com o contexto jurídico,
apontando para o que seria sua natureza masculina/falocêntrica. Com a tragédia de Ésquilo,
parece haver uma intenção de demarcar um princípio para ideia de testemunho. Nessa
perspectiva tradicional, a qual se vincula e se tece uma de suas dimensões – a de testis –, a ideia
estaria atrelada a convencimento, a existência de evidências que atestam uma verdade, ao
cenário do crime e do tribunal – tal como na tragédia supracitada. Para introduzi-la e explorá-
la, recorre à Benjamin, à Freud e ao anônimo autor de Ad Hereniun, reiterando a sua associação
com a masculinidade – uma masculinidade positivista e representacionista, “com uma
concepção instrumental da linguagem e que crê na possibilidade de se transitar entre o tempo
da cena histórica (ou “a cena do crime”) e o tempo em que se escreve a história (ou se desenrola
o tribunal)” (p.81). Os julgamentos jurídicos e a escrita da história estão vinculados
prioritariamente a esta dimensão.
Para fazer uma ponte, transitando entre essa tomada visual do testemunho para ao que
designa como sua perspectiva auricular, recorre ao linguista francês Benveniste. No âmbito da
superstes, ou seja, do sobrevivente, a experiência não é comensurável às palavras e o que ganha
centralidade é o ato de dizê-las. A linguagem e a criação ganham aqui destaque. Trata-se de
pensar o evento – vivido – como algo que escapa, que não encontra meios de ser dito tal e qual.
Ao postular sobre esta perspectiva que ganha corpo e relevância na atualidade, Selligman-Silva
apresenta sua posição: evita contrapô-las, defendendo o entendimento do testemunho em sua
complexidade que agencia, de modo complementar e também conflitivo, visão, oralidade
narrativa e capacidade de julgar. Para ele, o testemunho encontra-se no vértice entre a história
e a memória; entre fatos e narrativas. E, desde esse lugar, pensa-o como uma potência no campo
da literatura – cuja relação com o “real”, que o testemunho traz consigo, passa a ser revisitada.
O autor tece considerações sobre o século XX – “era das catástrofes”, “era dos
testemunhos” – cujo os acontecimentos, e a necessidade de lidar com eles, traz uma nova tônica
ao trabalho do historiador, trazendo à memória ao centro e, na esteira desta, o testemunho. O
que nos interessa do que postula é a observância de como estes debates (as reflexões feitas
acerca disso) surgem entremeados a eventos como as grandes guerras, a Shoah, entre outros.
Selligmann-Silva passa à reflexão sobre a relação testemunho e literatura, ponderando sobre as
questões que o debate sobre o primeiro trazem a essa última – como, por exemplo, por “em
questão fronteiras entre o literário, fictício e o descritivo” (p.85). Sem adentrar amplamente a
discussão, interessa-nos sua demarcação entre o que seria dois campos de discurso ligados ao
testemunho: a noção em sua acepção vinculada à cena europeia e norte-americana, em que a
experiência da Shoah é central, e em que a psicanalise e teoria e história da memória são áreas
importantes; e a noção vinculada à experiência histórica e literária latino-americana, em que o
conceito de testimonio encontra-se no centro da abordagem e as experiências pautadas são a
vivência das ditaduras, o colonialismo, a exploração e opressão de minorias. Segundo ele, o
testemunho latino-americano tem sido responsável por introduzir temáticas ao debate mais
geral sobre testemunho e memória.
O autor explora de que maneira o debate sobre testemunho se dá em cada uma dessas
perspectivas, apresentando características que ele assume em cada uma delas, diferenciando-
as. A perspectiva europeia/norte americana, de influência culturalista, vê o testemunho como
uma maneira de reunir fragmentos de um passado (que não passa), dando-os nexo (p.87); há
uma dimensão de elaboração do passado traumático (no sentido proposto por Ricoeur, segundo
o texto de Gagnebin – O que significa elaborar o passado? – lido na primeira unidade). O
testemunho opera como um aglutinador identitário, reunindo sob sua órbita aqueles que
compartilham a memória da experiência traumática – na contramão da identidade nacional, ou
dos grandes feitos e grandes homens, uma identidade vinculada às derrotas e opressões. A
identidade dos vencidos é que está em voga. O testemunho, neste contexto, atrela-se à dinâmica
da memória.
O testimonio latino-americano imprime uma tônica política mais notável. Há uma
convergência ampla entre literatura e política, e a ênfase revolucionária se faz presente.
Segundo Selligmann-Silva, a perspectiva de testis do testemunho é que ganha ênfase, havendo
uma forte tendência ao documentarismo. Há um caráter fortemente coletivo e de denúncia,
menos focado na perspectiva da experiência individual indizível (p.89). O formato latino-
americano de testemunho atrela-se tanto à política da memória como da história (ambos como
formas válidas de lidar com o passado), e isso assinala sua singularidade perante ao modelo
europeu/norte-americano. Do ponto de vista identitário, aglutina minorias sob uma mesma
luta/conflito. Para concluir, vale considerar que a questão do testemunho, ao pôr em relação o
evento e o narrar o evento, põe em voga uma série de questões que perpassam dimensões éticas,
políticas e estéticas.

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