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Revista Vissungos PDF
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CANTOS AFRO-DESCENDENTES
BELO HORIZONTE, OUTUBRO DE 2008. EDIÇÃO ESPECIAL. SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA DE MINAS GERAIS.
SÔNIA QUEIROZ
Contudo, a pesquisa pioneira de Aires, ao dar forma escrita a sessenta e cinco vissungos, salvou do completo esquecimento parte
fundamental da história cultural brasileira, pois, como ele próprio já observava, “muito mais do que o produto de três raças tristes,
nossa música é o resultado da influência negra”, e um pouco do alcance dessa influência pode ser vislumbrado por meio da leitura
dos artigos deste Suplemento Especial, com curadoria da Profa. Sônia Queiroz, que homenageia os vissungos e o pesquisador Aires
Os vissungos, “cantigas em língua africana ouvidas outrora nos ser-
da Mata Machado Filho.
viços de mineração”, foram identificados pelo pesquisador Aires da
Alguns desses cantos, que se dirigiam à lua, ao trabalho, às coisas simples do dia-a-dia, com “evidente teor religioso”, ganham
aqui traduções, transcriações, transculturações, em prosa ou em verso, a fim de partilharmos todos do movimento iniciado e inci-
Mata Machado Filho em 1928 nos povoados de São João da Chapada
tado por Aires. Ele dizia: “Nos vissungos, os compositores de peças eruditas encontrarão o mais cristalino manancial. Villa-Lobos,
Mignone e seus seguidores terão a escolher farta messe de temas autênticos. Pensávamos neles, enquanto nos esforçávamos para
e Quartel do Indaiá, no município de Diamantina, em Minas Gerais.
grafar tais melodias, de rara e esquiva cadência”.
Entre 1939 e 1940, Aires publicou em capítulos, na acompanhamento nenhum, e o dobrado, que é a resposta
Assim, respondendo a essa convocação, numa espécie de desafio, “com a boca colada à terra” de um passado distante, de uma importante Revista do Arquivo Municipal, de São Paulo, dos outros em coro, às vezes com acompanhamento de
língua entre íntima e inaudita, buscou-se aqui a criação e a reflexão que conjugam, num mesmo gesto, a preservação dos traços da o resultado de sua pesquisa sobre esses cantos de tradição ruídos feitos com os próprios instrumentos usados na
memória e a sua mágica e sempre futura reinvenção. banto: 65 cantigas, com “letra, música e tradução, ou tarefa”. No capítulo 9, os vissungos foram agrupados
antes ‘fundamento’”, além de dois glossários da “língua em: padre-nossos, cantos da manhã (ou: ao nascer do
Camila Diniz banguela” – um deles extraído dos cantos e o outro, dia), canto do meio-dia, cantigas de multa, cantigas de
Editora do linguajar local; e ainda 8 capítulos de estudo sobre caminho, cantigas de rede e de caminho, pedindo licença
Paulo de Andrade a cultura afro-brasileira no contexto do trabalho da para cantar, gabando qualidades (talvez equivalente
Assessor Editorial mineração de diamantes. A primeira edição em livro saiu banto do oriki da tradição iorubá), cantos de negro
em 1943 pela José Olympio, na coleção Documentos enfeitiçado, cantiga de ninar, canto do companheiro
Brasileiros, ao lado de títulos da maior relevância, como manhoso e, ainda, um grupo de cantigas diversas.
Capa: Performance de JORGE DOS ANJOS fotografada por LUIZ HENRIQUE VIEIRA.
os clássicos Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de
JORGE DOS ANJOS é artista plástico, nascido em Ouro Preto, MG, que em grande parte de seu trabalho de desenho, pintura e escultura tem buscado inspiração
nos traços da cultura afro-brasileira. Em constante pesquisa de técnicas e formas, aqui o artista, a convite do Festival de Inverno da UFMG, buscou o lastro Holanda, e Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre. Alguns vissungos “parecem cantos religiosos adapatados
do fogo para desenhar os cantos dos negros de Quartel do Indaiá.
Outra marca do prestígio dessa edição: conforme nota no à ocasião”, talvez pelo esquecimento de seu significado
LUIZ HENRIQUE VIEIRA é formado em Artes Visuais com especialização em Desenho (Escuela Leonardo da Vinci, Barcelona, Espanha). Participou de 29 Salões
de arte nacionais e internacionais, tendo sido premiado em 11 deles – Prêmio Pirelli de Pintura, São Paulo, 1983; Premi Internacional de Dibuix Joan Miró, verso da folha de rosto, “foram tirados, fora do comércio, original, observa o pesquisador. Mas outros conservam
Barcelona, Espanha, 1985; entre outros. vinte exemplares em papel Vergé, numerados e assinados seu sentido místico-religioso: “Há cantigas especiais para
pelo autor”. A segunda edição foi publicada pela também conduzir defuntos a cemitérios distantes” (das quais ele
GOVERNADOR DO ESTADO DE MINAS GERAIS AÉCIO NEVES DA CUNHA SECRETÁRIO DE Suplemento Literário de Minas Gerais prestigiosa Civilização Brasileira, em 1964. Em 1985, a recolheu três exemplos) e há cantigas, como os padre-
ESTADO DE CULTURA PAULO BRANT SEcRETÁRIA ADJUNTA SYLVANA PESSOA Av. João Pinheiro, 342 - Anexo
Superintendente do SLMG CAMILA DINIZ FERREIRA Assessor editorial E 30130-180 Belo Horizonte MG Itatiaia, a mais antiga editora mineira, publicou com a nossos, usadas na mineração e também nas cerimônias
REVISOR PAULO DE ANDRADE + PROJETO GRÁFICO e direção de arte MÁRCIa LARICA
+ CONSELHO EDITORIAL ÂNGELA LAGO + CARLOS BRANDÃO + EDUARDO DE JESUS
Tel/fax: (31) 3213 1072 edusp, na coleção Reconquista do Brasil, uma edição que de levantamento do mastro, nas festas religiosas.
suplemento@cultura.mg.gov.br
+ MELÂNIA SILVA DE AGUIAR + RONALD POLITO + EQUIPE DE APOIO ANA LÚCIA (agora sem a parceria da edusp) ainda se encontra no
GAMA + Elizabeth Neves + APARECIDA BARBOSA + Weslley Rodrigues +
ESTAGIÁRIos BRUNA MARTA + GABRIEL ANGELIS + MARIA FERNANDINA + ACESSE O SUPLEMENTO ONLINE: mercado. No capítulo 8, dedicado ao estudo das cantigas, Aires
JORNALISTA RESPONSÁVEL Antônia Cristina de Filippo {REG. PROF. MTB 3590/mg} www.cultura.mg.gov.br
TEXTOS ASSINADOS SÃO DE RESPONSABILIDADE DOS AUTORES. AGRADECIMENTOS: ressalta “a necessidade universal de trabalhar cantando”.
Imprensa oficial/francisco pedalino Diretor geral, j. Persichini cunha
Diretor de tecnologia gráfica + Usina das letras/Palácio das Artes +
Segundo Aires da Mata Machado Filho, “dividem-se os E associa à prática dos negros de São João da Chapada
Cine Usina Unibanco + Livraria e Café Quixote + Francisco Magalhães. Impresso nas oficinas da Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais. vissungos em boiado, que é o solo, tirado pelo mestre sem e Quartel do Indaiá os cantos das colheitas de uvas
Outubro 2008 .1
Capa da primeira edição pela José Olympio, 1943. Acervo de Escritores Mineiros, UFMG. Capa da segunda edição pela Editora Civilização Brasileira, 1964. Capa da terceira edição pela Editora Itatiaia, 1985.
em Portugal, das fiandeiras, dos capinadores de roça e ritmo que deságua no carnavalesco de Maracangalha, patrimônio lingüístico e cultural. Em outras palavras: Belo Horizonte, no Centro Cultural Tambolelê e na
dos mutirões. “Muito interessante era a multa. Quando canção que se segue ao vissungo, em pot-pourri, na desaparecido o ritual dos funerais feitos a pé e o sala Humberto Mauro, no Palácio das Artes, e no
alguma pessoa chegava à lavra, era logo multada pelos mesma faixa do CD. trabalho coletivo, as festas religiosas de cronograma largo da igreja do Rosário, no encerramento do 4º
mineradores, com uma cantiga apropriada”: pediam fixo (especialmente a festa de N. S. do Rosário) passam Encontro Cultural de Milho Verde, distrito do Serro;
alguma coisa ao recém-chegado. “Uma vez satisfeito o Ao final da década de 90, a Associação Cultural a desempenhar um papel essencial na preservação dos em 2004, foi realizada uma oficina de transcriação de
pedido, seguia-se à multa o agradecimento com danças, Cachuera! gravou, na voz de Ivo Silvério da Rocha, cantos de tradição africana em Minas. vissungos, articulada a outra, de Etnomusicologia, com
ritmo de carumbés e enxadas”. contramestre do Catopê de Milho Verde (distrito do a participação dos dois cantadores de Milho Verde e de
Serro), três “cantos para carregar defuntos em redes”, O interesse na preservação desse patrimônio histórico estudantes angolanos falantes de quimbundo e umbundo
Com o desenvolvimento das tecnologias de gravação que constituem a primeira faixa do CD Congado Mineiro, e cultural brasileiro e o reconhecimento do papel – línguas banto faladas em Angola que estão na base
sonora na segunda metade do século XX, catorze dos 65 lançado pela Itaú Cultural, na série Documentos Sonoros relevante da Arte nesse processo têm levado alguns desses cantos afro-brasileiros; em 2008, nos 40 anos do
vissungos escritos pelo Prof. Aires foram gravados, em Brasileiros. Juntamente com as gravações que constituem artistas e pesquisadores a desenvolver estratégias Festival de Inverno da UFMG, os vissungos foram tema
1982, nas vozes de Clementina de Jesus, Doca e Geraldo as faixas 12 a 17 do CD Festa do Rosário – Serro, de valorização e revitalização das línguas e culturas da instalação montada pelo Núcleo Avançado de Criação
Filme, no LP O canto dos escravos, da Eldorado. Nessa lançado por Caxi Rajão em 2002, esses são os únicos africanas que foram vivas em Minas no período da Intermidiático, que reuniu profissionais das cinco artes
gravação, hoje disponível em CD, percebe-se uma leitura registros sonoros dos Catopês de Milho Verde, grupo mineração, reduzindo-se a vestígios esparsos a partir envolvidas.
nagô-iorubá dos cantos de tradição banto. Segundo o que mantém vivos ainda hoje, em seu repertório ritual, sobretudo do século XX. O Festival de Inverno da
musicólogo José Jorge de Carvalho, em Um panorama alguns desses cantos da tradição banto. UFMG tem se constituído num espaço de experiências Os ensaios e poemas que publicamos aqui, neste número
da música afro-brasileira, “a base rítmica escolhida poéticas transculturais que contemplam a cultura especial do Suplemento Literário, procuram dar aos
não repetiu o padrão rítmico original, mas usou um Dentre os membros do catopê de Milho Verde, a afro-brasileira: em 2002, reuniram-se em Diamantina leitores uma idéia da riqueza que até hoje podemos
tipo de ritmos binários generalizados de umbanda, tais pesquisadora Lúcia Valéria Nascimento, que investigou os dois cantadores de vissungos do Serro e o grupo extrair da pesquisa sobre os cantos de tradição banto
como o barravento, que ouvimos em casas de umbanda, a sobrevivência dos vissungos na região de Diamantina Tambolelê, de Belo Horizonte – constituído por músicos iniciada há oitenta anos pelo mineiro Aires da Mata
macumba e jurema por todo o país”. Cerca de quinze e Serrro no início do século XXI, identificou, além negros que trabalham com a poética afro-brasileira Machado Filho, em férias por sua terra natal, o distrito de
anos depois, em Minas Gerais, o músico Gil Amâncio e do contramestre, outro cantador proficiente: Antônio – numa proposta de criação coletiva integrando São João da Chapada, no município de Diamantina.
o poeta e músico Ricardo Aleixo incluíram um desses Crispim Verísssimo, que demonstrava ainda algum tradição e experimentação, que resultou no espetáculo
catorze vissungos no espetáculo e CD Quilombos urbanos: conhecimento ativo da “língua banguela” ou “língua Macuco Canengue, apresentado no adro da igreja do
SÔNIA QUEIROZ é poeta (Prêmio Cidade de Belo Horizonte 1980 com o livro O sacro ofício)
Muriquinho piquinino, o canto 62 do livro de Aires. d’Angola”, como a designavam os falantes à época dos Rosário, em Diamantina; e no documentário de mesmo e pesquisadora. Vem se dedicando ao estudo dos remanescentes lingüísticos e da literatu-
Também na releitura dos Quilombos urbanos, os tambores registros feitos por Aires da Mata Machado Filho. É título, produzido pelo antropólogo e videomaker ra oral de tradição banto em Minas Gerais, tendo publicado pela Editora UFMG o livro Pé
preto no barro branco: a língua dos negros da Tabatinga.
não choram como pede o coro, mas se aceleram num notável a força do canto e da dança na preservação do Pedro Guimarães, e mostrado ao grande público em
2. Outubro 2008 VOZES DA ÁFRICA EM TERRAS DIAMANTINAS Sônia Queiroz VOZES DA ÁFRICA EM TERRAS DIAMANTINAS Sônia Queiroz Outubro 2008 .3
Ao final do século XIX, o médico-professor ram as pesquisas na cidade de Salvador, Universidade Nacional do Zaire em 1976 e
A PROPÓSITO DO
Na década de 30, a publicação de sua obra Nos anos 70, porém, inicia-se uma nova Zumbi, Dandara, sua toponímia, Dembo,
póstuma Os africanos no Brasil despertou o fase nos estudos afro-brasileiros com a Macaco, Osengo, Cafuxi, e o vocabulário
QUE DIZEM
interesse maior pelos estudos afro-brasileiros redescoberta da importância do mundo associado à escravidão, tais como: quilom-
no campo da religião, atraindo para a Bahia banto e de suas recriações no Brasil, en- bo, senzala, mocambo, libambo, bangüê,
pesquisadores de renome internacional, en- tão revelados através da descentralização mucama. Ao final desse mesmo século é
OS VISSUNGOS
tre os quais Roger Bastide e Pierre Verger. da pesquisa da cidade de Salvador que, publicada, em Lisboa, A arte da língua de
na África, foi estendida da região iorubá- Angola, uma gramática do quimbundo es-
No entanto, apesar de estudos cientifica- nagô do Golfo do Benin ao Congo e An- crita na Bahia pelo missionário Pedro Dias
mente mais bem orientados, todos segui- gola. Seus resultados foram analisados na com a finalidade de fornecer subsídios para
YEDA PESSOA DE CASTRO ram os passos de Rodrigues. Concentra- tese de doutoramento que defendemos na a catequese do grande contingente negro-
4. Outubro 2008 A PROPÓSITO DO QUE DIZEM OS VISSUNGOS Yeda Pessoa de Castro Outubro 2008 .5
na composição demográfica do Brasil co- brincadeira infantil brasileira dos escravos Uma correta interpretação das cultu-
6. Outubro 2008 A PROPÓSITO DO QUE DIZEM OS VISSUNGOS Yeda Pessoa de Castro A PROPÓSITO DO QUE DIZEM OS VISSUNGOS Yeda Pessoa de Castro Outubro 2008 .7
1 turira auê, mapiá Muriquinho piquinino
PEDRA DO
no, agora esperto, entendeu o aviso: guarda Ele agora não chorava e se sentiu homem nos olhos, o frio na barriga, a noite em volta
segredo. E guardou a pedra no cascalho areia (menino-homem), como seus pais e avós ha- ia sendo afastada pelo sol do dia novo. Novo
fininha. O rio escutou tudo e fez chuuuum e viam sido no país África. O mesmo caminho dia. Dia em Dumbá.
fez sssss. Fez silêncio. havia se transformado em expectativa, espe-
MURIQUINHO
rança, fôlego novo. O menino caminhava.
2
Jambá cacumbi queremá, 4 CRISTINA BORGES é escritora, atriz (Indez, Prometeu Liberto)
e contadora de histórias. Mestre em Literatura Brasileira
turira auê, Cantador pela UFMG, desenvolveu pesquisa sobre Um homem da
Muriquinho piquinino, palavra: um estudo da poesia oral de Abel Tareco. As trans-
jambá cacumbi queremá, criações de vissungos aqui publicadas foram realizadas em
CRISTINA BORGES mapiá turi, Ô parente oficina do Festival de Inverno da UFMG, em Diamantina.
A FORCA DA
mundos natural e sobrenatural. partitura e, no final, um glossário contendo ciência e a responsabilidade da preservação
as palavras africanas mantidas nos cantos. do pouco que ainda lembram da língua e da
Nas culturas orais, a palavra é o elemento A segunda grande pesquisa foi realizada em cultura aprendida com seus antepassados,
PALAVRA NOS
essencial, a força capaz de gerar o feitiço ou 2001-2002, no Mestrado em Estudos Lingüís- como pode ser percebido na fala de Crispim,
de conectar os mundos dos ancestrais e seus ticos da UFMG, por Lúcia Nascimento, que em entrevista a mim concedida em 2005:
descendentes. Não se trata da palavra banal, retornou aos dois povoados diamantinenses Mais acontece que tem essa língua.
VISSUNGOS
mas sim de uma palavra-força, como obser- estudados por Machado Filho e expandiu a Esta tradição existe. E é na língua, tá
va Paul Zumthor, no livro A letra e a voz: “a pesquisa para outros povoados próximos, no dialeto. Essas coisa que eu tô falano.
palavra proferida pela Voz cria o que ela diz. Ausente, Baú e Milho Verde, no município de Nada que eu tô pra falá num tá no dia-
No entanto, toda palavra não é só palavra. Serro. Evidentemente, há muitas diferenças leto. Não, a gente num pode inventá...
NEIDE FREITAS SAMPAIO Há a palavra ordinária, banal, superficial- nos resultados das duas pesquisas: a mais As palavra que a gente falá, cê tem que
10. Outubro 2008 A FORÇA DA PALAVRA NOS VISSUNGOS NEIDE FREITAS SAMPAIO Outubro 2008 .11
cla lingüística com predominância do por- Ô pu cumbaro num tem tempo Pru quilombo do Dumbá:
12. Outubro 2008 A FORÇA DA PALAVRA NOS VISSUNGOS NEIDE FREITAS SAMPAIO A FORÇA DA PALAVRA NOS VISSUNGOS NEIDE FREITAS SAMPAIO Outubro 2008 .13
Performance de Jorge dos Anjos, 2008. Foto: Luiz Henrique Vieira.
14. Outubro 2008 A FORÇA DA PALAVRA NOS VISSUNGOS NEIDE FREITAS SAMPAIO Outubro 2008 .15
TRADUÇÕES TRANSCRIAÇÕES TRANSCULTURAÇÕES ADRIANA MELO
ai ô, Tinguê
Tinguê canhama,
ô Tinguê canhama, auê em dor e canto
só Tinguê! ai Tinguê!
CANTO DA TARDE
leiloado príncipe devera cai a tarde, auê
da Real Extração prisioneiro a luz vai apagando
precipício cai a tarde, auê
o sol se esconde no mar.
ai ô, Tinguê
Tinguê canhama, coro
ô Tinguê canhama, auê em dor e canto apaga o sol
só Tinguê! ai Tinguê! vamos pra cafua, onjó.
apaga o sol
de primeiro, príncipe, prisioneiro vamos pra cafua, onjó.
diamante extraído, desterrado
só. coro
ADRIANA MELO é poeta, contista e ensaísta. Graduada e
pós-graduada na UFMG (Letras, Turismo e Geografia),
eu vou é pro lume da mina, auê.
desenvolve estudo sobre o sertão na literatura e na Geogra- eu vou é pro lume da mina, auê.
fia, como duas escritas da paisagem, dos lugares. Aqui,
aventurou-se nos cantos diamantinos, buscando escrever a
paisagem sonora dos vissungos.
coro
quebranto só, ê, o ouro do mar
quebranto só, ê, o ouro do mar
CANJERÊ MALUNGO
sol me vou boiado
feira afora, ê pé na tábua ô crioulo
mulher ah, cadê simbora pra
o trabalho do amor longe ô crioulo
sol me vou feira afora, ê
mulher ah, cadê dobrado
o trabalho do amor na beira!
quenquém na carreira
na beira!
na beira!
quenquém na carreira
na beira!
O TOQUE DOS
destes suportarem o pesado fardo que lhes riais de cada grupo.
As festas ou tinham um caráter profano, impunham; ou também uma resistência às
como por exemplo, o batuque, ou estavam desumanas formas de opressão e exploração. No batuque, o dançarino do centro dava uma
TAMBORES
Com os jarretes vergados, punhos fechados, o antebraço em ligadas ao calendário das festas religiosas. Alguns viajantes perceberam que o consenti- umbigada no outro que se exibia e trocava
posição vertical, avançavam um após o outro remexendo os Dentre as várias formas de diversão citadas, mento do senhor, quando isto ocorria, funda- com o seguinte, repetindo a mesma seqüência.
pés e dando a todos os membros uma espécie de agitação
E OS RITMOS DA
há uma acentuada valorização da dança e da mentava-se no fato de que a dança e a mú- Spix & Martius viram um casal de bailarinos
convulsiva que devia ser extremamente fatigante para homens
que tinham trabalhado durante o dia todo. Um tal estado vio- música, que apareciam em todas as suas fes- sica eram considerados um fator estimulante, que realizavam “rotações e contorções artifi-
lento, porém, contribuía para esse esquecimento de si mesmo, tas, sendo partes de uma mesma atividade, revitalizador, e não que esgotaria suas forças ciais da bacia”; em Rugendas os “figurantes”
LIBERDADE
que faz toda a felicidade da raça africana, e foi com grande quase sempre como elementos que, através produtivas. Freireyss testemunhou um grupo trocam de lugar na roda. São variações muito
pesar que viram chegar o instante marcado para seu repasso. do ritmo, fundiam-se num único espetáculo. de negros recém-chegados, dançando à moda sutis, mas que revelam as várias diferenças
Saint-Hilaire, 1810-1822. de seu país, e explicou: “o traficante lhes per- existentes: tanto no que se refere à origem
Apesar de nem sempre percebidos pelos via- mite, porque sabe que a falta de movimento e africana, quanto às influências regionais, ve-
ILKA BOAVENTURA LEITE jantes, os cantos amenizavam a dureza da a nostalgia lhes diminui o infame lucro”. rificadas em todo o País.
20. Outubro 2008 O TOQUE DOS TAMBORES E Os RITMOs DA LIBERDADE ILKA BOAVENTURA LEITE O TOQUE DOS TAMBORES E Os RITMOs DA LIBERDADE ILKA BOAVENTURA LEITE Outubro 2008 .21
se acha na escala social, que, conforme co “evita” passar, por considerar deselegante, Diferente não era a escolha de adjetivos para
22. Outubro 2008 O TOQUE DOS TAMBORES E Os RITMOs DA LIBERDADE ILKA BOAVENTURA LEITE O TOQUE DOS TAMBORES E Os RITMOs DA LIBERDADE ILKA BOAVENTURA LEITE Outubro 2008 .23
Ê, no garimpo po da oficina – uma semana – tínhamos, Além da memória dos mestres, a pers-
GARIMPANDO OS
O canto do vissungo é uma prática social da cultura, visando à sua proteção. algo da música dos vissungos se encon-
que se vem silenciando pela perda das tra registrado nessas transcrições, seria
funções que o motivavam. Essa realidade O silêncio do Seu Ivo se tornou, então, possível “ressuscitá-los”, com a ajuda dos
VISSUNGOS
coloca um primeiro desafio a um possível um pingo de ouro para o nosso apren- mestres Ivo e Crispim? Encaramos o de-
estudo etnomusicológico sobre os vissun- dizado, gerando reflexões importantes safio como uma oportunidade de refletir-
gos: como realizar um trabalho de cam- sobre a ética na pesquisa; sobre a noção mos sobre o papel da transcrição musical
NO SECULO XXI
po? O campo não mais se realiza em espa- de autoria e de propriedade em diferentes na pesquisa etnomusicológica.
ços sociais observáveis, mas os vissungos contextos musicais; sobre as teias de sig-
ainda eram, à época daquele Festival, nificados que impregnam os traços sono- Nesse caso, o caminho seria inverso: te-
carregados nas redes da memória desses ros e as conseqüências decorrentes de seu ríamos que oralizar a escrita, tornando as
GLAURA LUCAS homens. Apesar do curto espaço de tem- deslocamento contextual. transcrições, originalmente descritivas,
24. Outubro 2008 GARIMPANDO OS VISSUNGOS NO SÉCULO XXI GLAURA LUCAS Outubro 2008 .25
Uma vez preparadas, nossas musicistas Soma-se a esse aspecto a margem de va- conheciam, a partir da escuta de sua me-
em prescritivas. A turma era composta de de Machado Filho, para posteriormente início do século XX, nas festas de mas-
estudantes e profissionais de diferentes cantar para a turma, tendo a partitura tro. Esse era um canto ainda conhecido
campos do saber – Música, Jornalismo, como única referência. de Seu Ivo e Seu Crispim, e uma versão
Ciências Sociais, Teatro, Letras, e outros melódico-textual recente se encontra no
– o que enriquecia os debates. E, como Segundo o autor, com esse vissungo, os CD Congado Mineiro. Uma outra versão é
experiência inicial, propus a um grupo de negros pediam a Deus e a Nossa Senho- ouvida nos inícios das atividades do Rei-
musicistas que nunca tinham ouvido um ra que abençoassem o serviço no começo nado de Nossa Senhora do Rosário da Ir-
vissungo que treinasse o de n.1 do livro do dia, e eles ainda estavam presentes, no mandade do Jatobá, em Belo Horizonte.
26. Outubro 2008 GARIMPANDO OS VISSUNGOS NO SÉCULO XXI GLAURA LUCAS GARIMPANDO OS VISSUNGOS NO SÉCULO XXI GLAURA LUCAS Outubro 2008 .27
No Serro, as tradições de origem mais espe- condução da matina e dos cortejos e café da mas também sua função ritual nos levaram
EMO QUÁ,
so, com algo em torno de quatro tocadores, alternância entre voz e flautas, funcionan- de 2007:
contrasta, em termos numéricos, com as ou- do estas como um coro de resposta, ou mes- Emo quá, Inganazambi eu sô fia [?],
tras guardas que participam da festa do Ro- mo as execuções tornam-se inteiramente Emo quá
sário e que abrigam normalmente dezenas instrumentais, com a substituição da voz Emo quá, lá no campo do Rosário,
UM VISSUNGO
de integrantes entre músicos e dançantes. pela flauta. Emo quá
A Caixa de Assovio, dentro de suas atribui- Entre os vários cantos do repertório do Ca- Apesar de já não deter o conhecimento
ções, é o único grupo a atuar na manhã do topê, Emo quá foi um dos que nos chama- da tradução completa do texto, soubemos
sábado que abre os três dias principais de ram a atenção pela presença de palavras de da própria entrevistada que quá represen-
DANIEL MAGALHÃES festividades, no Serro. É responsável pela origem africana. Não só esses vocábulos, ta uma saudação e Inganazambi significa
28. Outubro 2008 EMO QUÁ, UM VISSUNGO DANIEL MAGALHÃES Outubro 2008 .29
ANTÔNIO CRISPIM VERÍSSIMO
MESTRE DE VISSUNGO
Aí. Pra tudo tem um nome e tá no dialeto.
30. Outubro 2008 EMO QUÁ, UM VISSUNGO DANIEL MAGALHÃES Outubro 2008 .31
Lá no céu tem uma santa, Santa Maria, a que tanto arunanguê Vá imbora com Deus, com Deus,
32. Outubro 2008 ANTÔNIO CRISPIM VERÍSSIMO, MESTRE DE VISSUNGO ANTÔNIO CRISPIM VERÍSSIMO, MESTRE DE VISSUNGO Outubro 2008 .33
34.
morreu crispim.
é de vera, viríssimo.
saiu de fininho, no astral.
Outubro 2008
melhor, foi pro astral,
reencontrar os personagens de suas histórias.
VITOR KAWAKAMI
encontrar nganazambi.
e cadê as firmage?
cadê os pesquisadô?
cadê os artista?
a curtura é cara...
Outubro 2008
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roteiro tristes périplos, um diário de viagem, e o livro de poemas Bem-me-
de Milho Verde, onde reside. Dirigiu um curta-metragem e publicou Sem
VITOR KAWAKAMI é professor de Português há muitos anos no povoado
VISSUNGOS
SOPA
GUINDA
DIAMANTINA
MILHO VERDE
E T
ZON
SERRO
ORI
OH
BEL