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Borandá - Luís Alberto de Abreu PDF
Borandá - Luís Alberto de Abreu PDF
2003
2003
Personagens – Narradores
Abu
Tião Cirilo
Wellington
Benecasta
Amóz
Abu – Boa noite. Algumas vezes nós, seres humanos, somos definidos como
exilados. Alguém expulso do paraíso ou do útero materno e que, no mundo,
carrega a sensação do desassossego, de estar num lugar que não é seu. Outras
vezes somos definidos como um peregrino, alguém que foi expulso dos céus e
que peregrina sobre a terra até voltar à pátria celeste. Hoje, aqui, não vamos
dividir com vocês essas altas considerações, talvez porque não sejamos
capazes...
Tião Cirilo – Cada um é que fale por si! Capaz eu até que sou.
Abu – E, como sempre, não houve acordo entre nossos cinco narradores sobre
o que narrar. Optamos pela narrativa de três sagas. Tião (Aponta. Tião faz um
aceno.) será protagonista da primeira saga, uma saga mais genérica e que, por
coincidência, também se chamará Tião. Wellington (Aponta. Wellington faz
um aceno ao público.) será protagonista da segunda saga chamada Galatéa.
Uma saga mítica, cômica, absurda como é do gosto da cultura popular.
Benecasta (Ao público.) Vão ser três sagas, mas o espetáculo é curto. Por isso
não quero ver ninguém dormindo, principalmente na última saga.
Tião Cirilo – Eita, que quando fosse pra eu me acabar queria que fosse numa
festa assim! Foi num brinquedo assim, já aqui em São Paulo, que conheci
Luiza, minha mulher.
Abu – Que tipo de gente somos nós, migrantes? Que tipo de gente é essa que
deixa o coração num pé de serra, num lajeado, numa beirada de mundo? Que
traz o corpo para o trabalho na metrópole e deixa a alma no ligar de origem? E
não reconhece o lugar, onde vive e trabalha, como seu. Seu é o lugar que já
não tem, é o lugar deixado, para o qual talvez nunca mais volte, mas para o
qual passa a vida sonhando voltar. Que gente é essa que não se moveu por
vontade própria, não é turista, nem peregrino. Que estranha árvore é essa cuja
raízes estão fincadas muito longe e cujo tronco, cortado e separado delas,
estranhamente sobrevive, flora e frutifica? (Faz um gesto largo em direção a
cena já montada. Tião Cirilo está sentado em frente a uma pequena mesa onde
estão uma carta, um prumo de pedreiro, um par de sapatos de recém-nascido,
um velho caderno, uma torneira velha e uma pedra roliça, um maço de cartas
amarradas num barbante.) Primeira saga: Tião!
Amóz – O lugar de onde veio é uma titica no mundo. Caminho pra lá ninguém
quer aprender, e quem sabe faz força pra esquecer. Uns dizem que é perto de
Minas, vizinho de Espírito Santo. Outros falam que é além de Goiás, acima da
Paraíba, no rumo de Mato Grosso, divisa com Pará, à esquerda de Santa
Catarina, não sei direito e não me interessa! Ó, quer ir lá, mesmo? (Aponta.)
Segue essa rua toda a vida, vira a esquerda, desdobra a direita e depois do
terceiro farol você pergunta.
Tião Cirilo (Irritado) – Pode deixar que eu mesmo falo, Siá! Quem sabe de
mim sou eu! Ara que também não é assim!
Abu – Então é isso! Vamos seguir que não temos muito tempo!
Tião Cirilo – Bem... O caso é que... Ó, está certo, e sou o que eles falam, mas
não sou do jeito que eles falam, não! Ara, se! (Para Abu, se justificando.) Já
vou! (Para o público) A coisa foi a seguinte, sem tirar nem pôr: sem meio de
vida, tirando da terra menos do que eu dava pra ela, um dia arvorei, com
segredo e com medo, um pensamento no fundo de mim: vou 'bor'andá!
Amóz com roupas novas, tênis de cano alto, chapéu e óculos escuros, entra na
área de representação. É Biú.
Amóz-Biú: Cês são gente besta! Vão passar a vida no mesmo, dia nasce, dia
morre e a vidinha de vocês é tal e qual! Isto aqui não é mundo, não! Isto é o
que caiu do fiofó dele! Mundo é lá, cidade grande, mas é pra caboclo mordido
de cobra, gente que tem arranque! Não é pra quem fica bostando esperando
mosca pousar.
Tião Cirilo – Eita, se aquele na venda não era o Biú que tinha voltado! Um
sujeito pamonho, piorzinho até que eu, quando saiu daqui dois anos atrás.
Agora, volta desenleado, com pompa, palafrém e palavrório! Falou e mostrou
que, na bagagem, trazia três camisetas e duas calças, um despropósito pra um
homem só! (Biú, senhor de si, senta num banquinho, tira do bolso um
espelhinho redondo e penteia o cabelo. Tião cheira o ar.) Eita, fartum bom!
Amóz-Biú – É glostora! Bom pra alisar o cabelo! Desce cachaça e cerveja que
eu pago. Mas é só hoje!
Tião Cirilo – Eita que o povo festou e vivou! Mas o que assombrou de vez o
povo foi quando o Coronel entrou na venda.
Wellington-Coronel – Eita, que tem gente que é só ir pro sul que volta
tresmudado! Quando 'tava aqui já não era muito homem, quando volta vem
fedendo perfume de mulher da vida.
Tião Cirilo – Eita, que babei de vontade de um dia na vida comer aquilo!
Abu – É suficiente!
Tião Cirilo – Macarrão espaguete! Lasanha deve ser de carne de bicho. Não,
de ave!
Tião Cirilo – Vou 'bor'andá disse e redisse pra mim mesmo pra criar coragem
antes de chegar em casa. No caminho catei do chão uma pedra roliça de rio,
não sei por quê.
Benecasta-mãe – Vou 'bor'andá, mãe, ele me disse. Falei nada, não, como se
fosse notícia que eu já soubesse. Deixei o aviso me cortar e soquei lá dentro o
choro, a raiva e a blasfêmia para que Deus não escutasse. E continuei a passar
o café no coador de pano como se não tivesse ouvido nada. Mas meu silêncio
doeu.
Abu – É o suficiente.
Benecasta-Mãe – E até hoje tenho vontade de soltar aquele grito que não dei.
Tião Cirilo – E Tião Cirilo dos Santos, que sou eu, vim embora...
Benecasta – Ei!
Tião Cirilo (irritado se referindo a Wellington) – Oh, vontade que "das veiz"
dá de a mão da gente trombar com a cara de um sujeito à toa!
Benecasta – A vida de gente assim é feita um nada por dia, mas é feita todo
dia.
Tião Cirilo – É o que dói mais. Solidão enlouquece. Eu odiava domingo e até
hoje não gosto. Dia de semana tinha os companheiros, peão de obra, o
trabalho. Chegava sábado, sumiam todos dentro da cidade, iam pra junto das
famílias, dormir com as quengas. Eu amanhecia domingo sozinho na obra.
Domingo à tarde, lembrança da mãe, dos amigos, do lugar de origem, cortava
a coragem da gente. Vontade que sobrevinha era de se danar, de morrer, de
chorar. E o domingo é o mais lerdo dos dias, acaba bem devagar e eu ali
naquela cidade-monstro quieta, na obra quieta, só eu e meu radinho de pilha,
meu companheiro.
Tião Cirilo – Bote aí: aqui tudo vai indo como Deus quer. Se tudo der certo
viajo praí no final do ano. Recomendação a todos e me dê sua benção. Seu
filho, Tião.
Amóz-vizinho (após pausa perplexa) – Sei ler, não, dona Nazaré. Mas deve de
estar tudo bem, se foi ele que escreveu, não é? (Ao público) Dona Nazaré
beijou a carta como quem beija relíquia de santo, escapulário da virgem
Maria. Depois colocou a carta fechadinha no oratório da casa. A carta ficou lá
até a morte dela. Ninguém me contou, eu vi.
Tião coloca chapéu, óculos escuros e recebe uma torneira que um dos
narradores tirou de cima da mesinha.
Tião Cirilo – Levei presente: uma Santa Aparecida pra mãe, uma coisinha ou
outra pra parente. Levei também uma coisa de engenho pra mostrar. (Mostra
ao público uma torneira e explica o funcionamento.) Isso é coisa de engenho,
de funcionamento, de ideia fina! Toda casa tem uma. Às "veiz" até mais de
uma. É só rodar essa peça assim e pronto, sai água. Quanta água você quiser.
Tião Cirilo – É, não tem de buscar água na bica e trazer pote na cabeça, não!
A bica vai até cada casa...
Amóz-rapaz – Como é?
Tião Cirilo – Tem um cano que vem por baixo da terra, pelas ruas. Desse cano
sai outros caninho pra cada casa.
Amóz-rapaz – Sei. Mas a água dos canos de debaixo da terra vem de onde?
De poço?
Tião Cirilo – Não, vem de umas caixas grandes, cheias de água que ficam no
alto...
Tião Cirilo (pensa mas não consegue explicar) – É umas cargas que vem da
láite... assim...que vem igual água na torneira, mas vem nos fios de arame. Sei
explicar, não, mas é por na tomada e isso canta, toca.
Amóz-rapaz – Ô, sujeito mentiroso! Pensa que a gente é tonto!
Abu – Está bem (Mãe não se move.) Está bem, mãe, é o suficiente.
Amóz tenta delicadamente retirar a mãe, mas ela não se move. Ele olha pra
Abu sem saber o que fazer.
Abu – Não sabemos definir muito bem o que é um migrante, esse ser que se
põe em movimento contra sua própria vontade. Dizem que o homem é mais
ligado à terra e que é a mulher, muitas vezes, que impulsiona a migração.
Amóz – Minha terra é onde nasci, onde tenho meus pais e meus amigos!
Benecasta – Minha terra é qualquer uma onde posso criar meus filhos. Terra
que mata meus filhos é terra maldita! Mesmo que seja minha! 'bor'andá,
homem!
Wellington – Aqui é bom pra trabalhar, mas pra viver não presta, não!
Benecasta-Luzia – Eu sei, mas não conto. Nem pra ele, que é pra não virar
soberbo, nem pra vocês, que é pra não crescer o olho pra riba dele. Mulher
burra não nasceu, não!
Tião Cirilo – E por causa de quê a Marcela lhe deu isso? (Olham-se. Tião
conclui, desolado) Ichi! (Luzia confirma com a cabeça) Seu pai já sabe?
Benecasta-Luzia – Sou doida? Ele é das Alagoas. Você é que vai contar!
Tião Cirilo (ao público) – A Marcela deu mais três pares de sapatos. Da
Leninha, do Genivaldo e da Licinha, além do Tiãozinho que foi o primeiro, o
mais velho. Comecei a gostar daqui foi quando conheci Luzia. Bonita,
sestrosa, bem-querente. Tem coisas que a gente quer demorada. Gostar, por
exemplo, tem de ser coisa lerda, feita sem pressa, mas vida aqui tem urgência.
E num lugar onde se diz que tempo é dinheiro a gente não tem nem um nem
outro.
Tião Cirilo (pega a carta) – Fazia três anos que eu tava casado e doze que
estava aqui, quando recebi de volta a carta que tinha mandado pra minha mãe.
(Emociona-se) Foi baque. Foi baque que homem rijo, engrossado no asp'ro da
vida não sustenta. Ô, meu Deus, essas distâncias de quem a gente quer bem!
(Recompõe-se.) A carta ainda estava fechadinha, como mandei. A Santa
Aparecida ficou com uma tia minha. Agora eu já não tinha mais por quê
voltar. De vez em quando ainda choro, escondido.
Wellington, com um gesto, apresenta a Tião o maço de cartas.
Wellington – E isso?
Tião Cirilo (pega as cartas na mão) – Peão de obra bebe muito. Um colega
meu endoidou de beber. Fui visitar no sanatório.
Amóz-colega – Conta pra ele como é que você ficou assim, Zueira.
Tião Cirilo – A foto era dele, na fábrica, orgulhoso, ao lado de uma enorme
prensa de moldar chapa de aço. Botei num envelope e mandei pelo correio. Na
falta de remetente anotei meu endereço. Tempos depois recebo carta da avó
do Zueira mandando benção e perguntando notícias. Deu dó. Não sabia mais
do Zueira e, então, escrevi pra ela como se fosse ele. De vez em quando ela
escreve e eu invento notícia.
Tião Cirilo (enquanto vai sentar-se a mesa onde deposita a carta da mãe e o
maço de cartas) – A vida correu mais depressa do que eu pude entender. Os
filhos cresceram, casaram, netos um pouco de artrite, dor nas costas da vida de
pedreiro. (Pega o prumo.) Ainda faço alguma coisinha, leio planta melhor que
engenheiro e parede minha é tudo no esquadro. (Olha a mesa repleta de seus
objetos. Pega o caderno e, subitamente se emociona.) De vez em quando eu
venho aqui e fico olhando essas coisas velhas. Por que eu guardo tudo isso?
Por que não jogo fora? Tudo passou mais rápido do que eu pude perceber, do
que eu pude entender, do que eu pude apreciar. Qual o sentido de tudo isso?
Tem de ter algum sentido! (Cobre o rosto e chora.)
Wellington – Pro povo apreciar! (Para o público) História tem de ter colorido,
rendado, bordadura. Tem de ter, sei lá, gigantes, anões, coisas do avesso,
como é do gosto popular, não é?
Wellington – Mas podiam ter. E se podiam ter, pra mim, é como se tivessem.
E, se pra história é bom que tenham, a gente inventa.
Wellington (para o público) Todo mundo tem um segredo que não revela. Até
o senhor. O senhor tem que eu sei! E não negue nem desminta! Até eu tenho
um segredo. Não é tão escabroso, tão cabeludo quando o seu, mas é um
segredo. Se eu fosse fazer a história de Tião...
Wellington (para o público) – Como ele não comia, não visitava a casinha.
Como não visitava a casinha e não se deu conta de uma maravilha: ele havia
nascido, com o perdão da palavra, sem o roscofe. Ali, naquele lugar escondido
entre as duas bandas, ele era liso, sem o ponto final, sem o rusguento.
(Narradores começam a rir. Benecasta se impacienta.) Vai daí que, como toda
personagem que se preza, ele se revolta e resolve transgredir a interdição:
passa sete dias e sete noites se empanturrando de quitutes, guloseimas,
assados e cosidos, socando tudo dentro até o topo da goela. Não deu duas
horas e começou a angústia, o desassossego. Aquilo começou a fermentar,
borbulhar a rugir no oco do Tião...
Abu – Tudo bem, mas vamos logo, que o público não pode esperar. (Para
Benecasta.) Você não vai fazer mesmo? (Benecasta balança a cabeça negativa
e definitivamente.) Então... (Os olhares se dirigem para Amóz e Tião Cirilo.
Os dois se entreolham espantados e olham os outros.) Não tem jeito. (Os dois
confirmados tiram a sorte no par ou ímpar. Amóz perde, Tião vibra.
Desacorçado, Amóz aceita as roupas de Maria Milinga que lhe são trazidas
pelos outros narradores. Tudo é feito muito rapidamente, com poucos
elementos e Amóz logo assume a personagem. Abu anuncia.)
Abu-Tõe Passos – Sou Tões Passos e o que tenho a dizer é que Raso do
Gurguéu é um lugarejo estranho, habitado por gente também estranha, no oco
perdido de um país igualmente estranho. Pois foi no Raso do Gurguéu, um
pedaço perdido desse mundo doido, um lugar bom pra cruzar jumento com
capivara pra ver nascer bicho mais doido de impensável, foi nesse lugar que,
um dia, se resgitraram estranhos e escatólogicos acontecimentos. (Abre Um
guarda chuva.) Nesse dia, os elementos da natureza entraram em convulsão e,
primeiro, um cheiro terrível, vindo não se sabe de qual colossal intestino,
tomou o ar em toda extensão. E os homens levantaram clamores e desejaram
ter nascido sem nariz ou que, pelo menos, não precisassem respirar. Depois, o
céu escureceu de um marrom bem pouco sugestivo, ouviram-se trovões, raios
riscaram o firmamento e as cataratas do céu se abriram. E choveu bosta em
diferentes consistências. (Reage a tempestade, ora com espanto, ora com
nojo.) Pelotes duros de furar chão, rachar coco e lascar pedra. E as pessoas
clamaram: "Livrai-nos Deus de prisão de ventre assim!" Depois, tortas de
trinta centímetros de diâmetro. E as pessoas, perplexas, ficaram imaginando o
tamanho da bunda que obrava aquela insanidade. Depois, troços compridos,
simétricos, estéticos mesmo, bonitos até de se ver e que, quando cortados,
caiam enrolados no chão. Apóis, foi o chorrilho, cascata de chuva de bosta
grossa, fina, média, que o vento fazia penetrar nas frestas das casas, dos
abrigos e cavernas e virava guarda-chuvas na rua. E assim como veio,
subitamente a chuva parou e o sol provocou emanações que empestaram o ar.
E esses fatos foram prenúncio de que algo novo iria acontecer. E aconteceu.
(Sai com nojo, tomando cuidado com as poças. Entra Maria Milinga, também
de guarda chuva, fazendo careta e cuspindo.) Boas tarde, Maria.
Amóz-Milinga – Boa tarde, seu Tões Passos. (Ao público) O problema não é a
chuva, é o vento. (Cuspinha e limpa a cara com a mão.) Maria Milinga sou eu,
e o que tenho pra contar é que, primeiro, sou a mulher mais parideira do lugar.
Segundo é que tenho noventa anos inteirados.
Terceiro é que no dia que choveu bosta... (Cuspinha e limpa o rosto. Faz cara
de nojo) Não gosto nem de lembrar! Eu vinha pela rua, com meu guarda-
chuva, quando o vento levantou minha saia e expôs minhas vergonhas.
Abu-Tõe Passos – Dos que viram tal espetáculo, três ficaram cegos, dois
morreram de síncope cardiaca, um enlouqueceu e fugiu e os cinco últimos
estão até hoje sem fala.
Tião-Homem (homem) – Salve, Maria Milinga! Você foi a escolhida para dar
à luz mais uma vez! De você nascerá um herói que vai gerar e conduzir uma
nova humanidade.
Amóz-Milinga – Não entendi direito. Parir aos noventa anos? E quem será o
pai? Você?
Abu-Tõe Passos – O que vi e digo é que o menino tinha cara de sonso e pés
grandes de andarilho no que todos viram um sinal de destino. Maria Milinga
não suportou o esforço desse último parto.
Amóz-Milinga – Aos noventa anos não é fácil, não, gente! E, de mais a mais,
o menino sugou minhas últimas forças com o meu último tanto de leite. Vai
pra vida, meu filho, João de Galatéa! (Solta o menino, que se estatela e chora,
e logo se abraça à perna de Amóz-Milinga.) Vai ser mais do que eu fui. E
assim prevendo um grande futuro para o fruto do meu ventre, morri. (Tenta
sair, mas Wellington-Galatéa, aferrado em sua perna, a impede. Ela tenta
desvencilhar-se. Os narradores puxam Wellingnton Galatéa e, por fim, o
separam da mãe. Wellington-Galatéa faz um beiço enorme e ameaça chorar:
Amóz-Milinga, que saía, volta-se e bronqueia) Pssst! E não chora que não
adianta nem consola!
Abu-Tõe Passos – Velhos narradores contam que Galatéa nunca mais chorou,
a não ser uma vez, lá mais pra frente, no mais adiantado da vida. Esses
mesmos velhos contam ainda que ninguém acreditou nas grandes profecias e
acontecimentos estavam marcados no nome de Galatéa. Afinal, dá pra
acreditar em alguma coisa de bom saída de lugar tão fuleiro? E que um
sujeitinho com essa origem vai dar em alguma coisa que preste? E, assim, os
fatos relatados no nascimento de Galatéa foram caindo no esquecimento.
Amóz – Carece dessa maldade, não. É ter paciência. O menino é franzino, não
vinga. Garanto que não dura mais um inverno.
Abu-Tõe Passos – Se está morto, enterra, mas se está vivo tem de ajudar a
viver. E Galatéa vingou. Contra toda expectativa, cresceu. Pegou toda mazela
e doença e, contra previsão de rezadeira e curandeiro, de todas levantou. Três
vezes médico desenganou, Três vezes Galatéa se aprumou. Vida dele era um
fio, mas nunca se quebrou! Comecei a cismar que teimosia não podia ser só
defeito. (Súbito, dá um grito desesperado, vai até Wellington-Galatéa, que não
cessou de pedir colo, e dá-lhe um cascudo.) Para, peste! Deixa conversar com
o povo! (Coloca-o no colo. Ao público.) Acabei me afeiçoando ao bichinho. E
assim foi e, assim sendo, o tempo correu. E correu tão ligeiro que ninguém,
nem eu, nem mesmo vocês perceberam. Quando dei fé ele já estava crescido.
(Joga Wellington-Galatéa no chão.) Vai buscar seu rumo! Vai ganhar a vida,
Galatéa, que já estou velho e não tenho mais costas pra você viver em cima!
Amóz – Primeiro, arrumou confusão com Zé Aristeu, que sou eu, homem
pacato, amante da boa paz, casado com Madalena.
Benecasta-Madalena – Essa tal de Madalena, que sou eu, era uma mulher
bonita, buliçosa, e que vivia em harmoniosa paz matrimonial com Zé Aristeu.
O povo dizia que Madalena prestava favores amorosos a um terceiro, seu
Ramiro, homem de posses. (Irritada.) Eu Madalena, não confirmo nem
desminto porque não dou trela a esse conversê do povo! E nunca ninguém
teve a cara e coragem de me perguntar!
Amóz-Zé Aristeu – Pois, não foi que, um dia, estava eu na venda, seguindo
minha vida em paz, quando esse sujeito desabotinado grita no meio do povo:
Amóz-Zé Aristeu – Pra preservar a boa paz, pensei numa boa explicação.
Infelizmente não encontrei e o infeliz ainda completou:
Amóz-Aristeu – Aí, não teve jeito. O povo estrondou a rir, motejar. Tive de
tirar satisfação porque marido enganado é uma coisa, mas marido manso é
coisa bem diferente. Mesmo sendo de paz, me arvorei em brio e coragem e
fui. Falei, gritei mesmo com "seu" Ramiro, e voltei bem devagarinho porque
os capangas do "seu" Ramiro não me deixaram correr. Vieram me
esbordoando, batendo, rachando. Porém, voltei inteiro, mas sem um osso, um
órgão no lugar de nascença. Mas chegando em casa espumei minhas raivas:
"Com ele não posso, mas posso com você, capivara!". Não podia: voou
tamanco, panela, vaso de flor, nenhum perdeu o alvo. E agora estou aí, sem
sossego nem paz, obrigado a provar que sou homem e sem saber como! Tudo
culpa de Galatéa!
Tião – Veio pedir serviço e eu disse: vai nas minhas terras e me corta uma
centena de toras de árvore. Quero tudo empilhado, tronco lisinho, sem um
galho. O desgraçado me cortou cem pés de banana!
Abu-Tõe Passos – Mas, Galatéa, trabalho aqui sempre valeu nada... um quilo
de farinha, um tantinho de feijão...
Wellington-Galatéa meneia negativamente a cabeça.
Amóz-padre – Veio o padre: Meu filho, as coisas são assim. Trabalho não é
pra enriquecer o pobre, é para torná-lo nobre. E o sofrimento do corpo é a
liberdade da alma!
Benecasta – Foi daí, e foi por essas e por outras tantas que ele fez, que o povo
do Raso de Gurguéu quis Galatéa longe de não se ver.
Abu-Tõe Passos – A ideia luziu e entendi. Foi urubu que roubou o cérebro do
menino!
Tião – Estava demorando mesmo porque isso já foi longe demais! Essa
história está esquisita, Wellington!
Benecasta (irritadissíma) – Nada não! É que as razões pelas quais Galatéa não
tem cérebro não foram as péssimas condições econômicas do lugar onde ele
nasceu, nem o sistema feudal de produção em vigor! A culpa foi do pobre do
urubu!
Benecasta (Ríspida) – Não diz mais nada porque o que eu disse já foi
suficiente!
Abu-Tõe Passos – "Vai ganhar teu pão com o suor do teu rosto e vai parir teus
filhos com dor."
casas, as pessoas, mas desistiu porque os números não cabiam em sua pequena
cabeça. Tudo era grande demais pra sua cabeça.
Abu – Deslocado, sem trabalho, num lugar, pra ele, sem muito sentido,
Galatéa entristeceu. Tinha medo do dia e de suas pessoas apressadas, preferiu
a noite. E foi entre as criaturas da noite que conseguiu alguns amigos.
Amóz – E assim foi. E, indo assim, não demorou muito e Galatéa era
conhecido no lugar. Não sei se gostavam dele, mas respeitavam. Galatéa não
tinha nada que pudessem querer, nem cobiçava nada que fosse deles.
Tião – Mas o sertão da cidade tinha coisas ainda mais esquisitas. E foi numa
noite já velha que ele encontrou, pela primeira vez, Gurugueia. (Entra Amóz
como Gurugueia.) Ela era feia, pensa, torta e tosca, mas era mulher, pelo
menos tinha a aparência geral de uma.
Abu – Vinha não sei de onde, lugar que o cão danado se esconde e o vento faz
a curva. Turva era sua vista esquerda, a direita zarolha e nem fé, folha de
guiné, pimenta com rapé, não tinham força contra seu mau olhado, Tudo
somado, neves fora, Galatéa tem pressa e mais vale uma mulher agora do que
duas promessas.
Amóz-Gurugueia – Vem mais eu, moço bonito!
Wellington-Galatéa – Pensa que não sei que nesse lugar não tem coisa de
graça?
Tião – E olha que não foi mau negócio, não! Ganhou casa, comida, roupa
lavada. Esta certo que, de vez enquando, Gurugueia batia, mordia, rosnava, e
uivava pra lua, mas quem sou eu pra criticar? Às vezes até invejo esses
amores diferentes!
Abu –O que Galatéa não sabia é que Gurugueia era filha do urubu-rei.
(Benecasta reage com gestos inconformados.) É, aquele mesmo urubu-rei que
tinha rouba seu cérebro. E como não sabia, não desconfiou.
Tião – Não desconfiou também de um estranho vento que soprou uma noite e
levantou os lençóis da cama onde Galatéa dormia. (Tião e Benecasta cruzam
um olhar.)
apertou. (Como Tõe Passos) Então, eu tive certeza: meu menino precisava de
mim. E vim batendo por esses caminhos, perguntando, virando e mexendo até
chegar aqui.
Wellington-Galatéa – Estou doente, seu Tõe! Ói, minha barriga, inchou!
Wellington-Galatéa – Eu?
Wellington – Não vou dizer pra não estragar a surpresa. (Para Abu-Tõe)
Abu – A gente pode continuar? Porque se essa história parar mais uma vez eu
vou ter um troço!
Wellington-Galatéa – Eu?
Abu-Tõe Passos – E vão ser gêmeos!
Abu-Tõe Passos – Foi o vento. O mesmo que engravidou sua mãe, Maria
Milinga. Ele entrou em você. Você dormiu de bruços, com certeza!
Abu-Tõe Passos – Eu sei lá, mas alguma eles devem ter! E, perto de tudo que
aconteceu, você parir é maravilha menor. E vamos, que você e sua
descendência correm grandes perigos!
Abu-Tõe Passos – O corpo humano, por mais magro que seja, e o espírito
humano, por mais frágil que se apresente, sempre têm algum valor. E sempre
tem gente que quer nos tirar o pouco que temos! Urubu-rei mamou o pouco de
leite que sua mãe tinha e roubou o pouco cérebro que você tinha. (Puxa
Wellingto-Galatéa pela mão. Correm. Ouve-se o grito de Amóz-Gurugueia.)
Ela quer seus filhos!
Wellington-Galatéa – O senhor está doido, seu Tõe! Quem quer meus filhos?
Que filhos? Essa barriga é de cerveja! É de torresmo, sarapatel e feijão gordo
que me entupi esses últimos tempos.
Tião – Galatéa tinha muitas perguntas, mas o que adiantava fazer perguntas
num mundo que não tinha lógica? Resolveu aceitar a loucura do mundo antes
que ele próprio ficasse louco. Andaram, dentro da noite e da cidade, sem ajuda
nem consolo.
menino, até o terceiro choro. De Galatéa. E foi a segunda vez que ele chorou
como contam as histórias. E então, choramos todos.
Abu-Tõe Passos –Vi, ninguém me contou. Do nada, e das mãos do povo das
ruas que nada tinha, apareceram presentes: um cobertor velho, um pedaço de
bolo, uma garrafa de cachaça, um chocalho, panos de criança e um vasinho de
violetas.
Tião – Apareceu até uma lata de leite em pó, o que foi bom porque Galatéa
não deu leite. E todos esses acontecimentos, que não podemos provar, só
podemos relembrar e contar e, contando, afirmar: são todos verdadeiros.