Você está na página 1de 28

38º Encontro Anual da ANPOCS

MR20 Teoria Feminista e a Teoria Política: encontros,


convergências e desafios

Título do Trabalho:

A Quarta onda feminista e o Campo crítico-emancipatório das diferenças no


Brasil: entre a destradicionalização social e o neoconservadorismo político

Autora: Marlise Matos (DCP/UFMG)

CAXAMBU
Outubro de 2014

1
A Quarta onda feminista e o Campo crítico-emancipatório das diferenças no
Brasil: entre a destradicionalização social e o neoconservadorismo político

Marlise Matos (DCP/UFMG)1

Durante anos, séculos, as mulheres estiveram excluídas da possibilidade de fazer


ciência e de contribuir para a produção de conhecimento científico e/ou filosófico. As
religiões, e depois as próprias organizações científicas, se incumbiram dessa opressão.
Robin Schott (1996) ao discutir as origens ascético-religiosas da universidade e
realizando aposta numa linha possível (e pensável) de continuidade entre o
conhecimento religioso e científico já afirmava uma conexão não casual ou banal entre
religião ascética e conhecimento universitário que teria feito com que, tanto a filosofia
quanto a ciência modernas se empenhassem em excluir mulheres da busca pela verdade,
já que as impediam sistematicamente de estudar, assim como as impediam de receber
instrução profissional, revelando tendenciosidade androcêntrica que nos tomou séculos
para desconstruir e que, dificilmente, afirmaria estar superada.
Este ensaio pretende render um tributo aos esforços intelectuais e de vida de
milhares de feministas que me antecederam e apenas por força de síntese se divide em
três grandes partes: na primeira sessão, passo brevemente em revista as “ondas” do
feminismo no Brasil (mas entendo-as como extensíveis aos demais países latino-
americanos), propondo o desafio de se pensar numa recente radicalização feminista de
quarta onda; na segunda sessão apresento e esclareço os parâmetros daquilo que defino
por campo crítico emancipatório das diferenças, estabelecendo, ainda que rapidamente,
alguns elementos epistemológicos para outra perspectiva de ciência que se pretenda
crítica, reflexiva e emancipatória e organizada a partir das lutas de diferentes grupos
subalternos Ao final, à guisa de conclusão darei destaque ao que estou considerando
como algumas “evidências” da presença de estratégias de resistência e reação ao
movimento descrito anteriormente e que considero como estando na direção de uma
maior democratização do Estado e da sociedade brasileira. Estas são iniciativas que
fazem revelar a presença de um forte neoconservadorismo político na cena brasileira
atual que, por sua vez, apresenta-se como contraponto para os avanços democráticos
descritos nas duas primeiras sessões deste ensaio.

1
Professora Adjunta do Departamento de Ciência Política da UFMG, Coordenadora do Núcleo de
Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (NEPEM) - UFMG, Doutora em Sociologia (IUPERJ), Mestre em
Teoria Psicanalítica (UFRJ) e Psicóloga (UFMG).

2
Parece-me claro, pois, que estes dois movimentos – quarta onda feminista e
campo crítico emancipatório das diferenças - ainda que eu esteja apenas destacando
alguns dos seus contornos teórico-analíticos, têm tido “efeitos” societários importantes e
resistência políticas igualmente significativas. Rompidas as amarras da vaga
neolibralizadora que invadiu o continente latino-americano nos anos 90 e inaugurada a
“onda rosa” de chegada ao poder de novos governos de esquerda na região (Panizza,
2006; Silva, 2010), o que estamos assistindo agora (especialmente a partir dos anos
2000) é uma agenda de afirmação de complexidades teórico-práticas feministas que
conteria esforços consistentes de: (a) destradicionalização social (afirmando uma
dimensão societária); (b) de descolonização do saber (uma dimensão epistemológica), e;
(c) de despatriarcalização/desracialização/desheteronormatização, em distintos planos e
diferentes graus, de algumas instâncias do Estado, em especial do Poder Executivo
(uma dimensão política). Estas transformações estão em curso, assim como estão
ocorrendo as muitas resistência conservadoras para frear seus efeitos democratizadores
e emancipatórios.

A QUARTA ONDA FEMINISTA NA AMÉRICA LATINA e NO BRASIL


Neste ensaio pretendo apresentar duas propostas de enquadramento teórico que
estão intimamente articuladas. Pretendo partir da proposição de uma quarta onda para o
movimento feminista no Brasil (Matos, 2008, 2010 e 2012) e na América Latina para
chegar, após delimitar as características e as principais fundamentações de alguns
processos transformadores que me levaram a este entendimento, à urgência de uma
proposta teórica que tematize um campo crítico-emancipatório das diferenças sociais e
políticas (Matos, 2012).
Não pretendo aqui recuperar linhas, tendências ou correntes (que são muitas e
plurais) dos movimentos feministas atuais. Este é um trabalho filosófico que não faz
parte da meta que me coloco aqui. Vou trabalhar mais especificamente com dinâmicas
sociais e políticas recentes que, em meu entender, estariam reconstruindo uma nova fase
de configuração ou desenho dos feminismos na região. Entendo, então, que o contexto
mais ampliado dos nossos feminismos, especialmente a partir dos anos 2000, organizou
um novo formato que poderia ser brevemente descrito como o de um movimento
multinodal de mulheres ou que parte de diferentes “comunidades de políticas de gênero”
(como tem sido mais comum se referir no Brasil) que é, por sua vez, completamente
3
distinto daquilo que estaria acontecendo em países do norte global (ou hegemônicos),
por exemplo.
Esclareço ainda que considero que esta nova “onda” para os movimentos
feministas da região se constitui também num momento analítico outro para os estudos
e as teorias feministas e que adiante tematizarei a partir da proposta de um campo
crítico das diferenças. Entendo, então, que os novos redesenhos dos movimentos
feministas também estão redesenhando novas propostas teóricas, a partir de uma
renovada ênfase em fronteiras interseccionais, transversais e transdisciplinares entre
gênero, raça, sexualidade, classe e geração (no mínimo).
Considero, pois, que é essa combinação de discursos e de práticas mobilizadoras
(a um só tempo: históricas, políticas e sociais) que reconhecem a interseccionalidade
das diferenças como dado inescapável e como força politizadora das lutas sociais é que
tem sido a tônica de movimentos feministas no Brasil e na América Latina e de
elementos muito significativos das forças transformadoras atuais das nossas sociedades.
Penso ainda que a teoria política e seus métodos de pesquisa usuais precisam ser
revistos de modo a dar a visibilidade e a estabilização teórico-analítica necessárias a um
novo projeto societário democrático que já está em curso em nossos países latino-
americanos e que, por sua vez, inclua de um modo radicalmente emancipatório, no
mínimo, os eixos transversalizadores de gênero e raça como elementos
democratizadores da e na região. Findo o século XX e com a derrocada final dos
regimes socialistas, a busca por justiça social em contextos democráticos tendeu a se
expandir para as fronteiras do que ainda não está conquistado: estamos tratando aqui de
duas das mais fundamentais destas fronteiras. Constata-se, então, que a presença
feminina, negra ou indígena nas instâncias de representação política, por exemplo e
sobretudo naquelas mais elevadas hierarquicamente, permanece baixa em quase todo o
mundo, salvo algumas exceções, nas quais se incluem os países escandinavos e alguns
países definidos como socialistas. Na América Latina, no que tange a gênero, as
exceções são a Argentina e a Costa Rica.
Assim, todo este esforço analítico foi promovido a partir da realização de duas
longas pesquisas empíricas, ambos realizadas pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre
a Mulher (NEPEM) e pelo Centro de Interesse Feminista e de Gênero (CIFG),
vinculados à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e financiados pelo
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que
4
investigaram 18 países latino-americanos em suas respectivas dinâmicas de construção
de parâmetros mais equânimes de justiça social, representação política e de justiça de
gênero (Matos 2010, 2013)2 na região.
É necessário iniciar esta seção reconhecendo que a emergência da segunda onda
do feminismo na América Latina, a partir dos anos 70, conteve diferenças significativas
e trajetórias diversas entre os países da região. Como nos mostra Vargas (2008), os
feminismos latino-americanos são heterogêneos segundo, dentre outros aspectos, seus
espaços de atuação, identidades e ainda segundo diferentes estratégias perante o Estado
(2008:142). Não obstante, a construção das identidades feministas em cada país se deu a
partir de um intenso e rico diálogo transnacional, a partir dos Encontros Regionais, das
edições do Fórum Social Mundial, das arenas das organizações internacionais e
regionais, entre outros. Nesse sentido, é possível dizer que há uma trajetória
compartilhada entre os feminismos, uma reconhecida unidade ainda que na diversidade
(Vargas, 2008; Alvarez, 2000).
Durante os anos 70 e 80, a segunda onda do feminismo emergiu a partir da
resistência e luta das mulheres contra o autoritarismo, a violência e falta de cidadania no
interior dos regimes militares. Grande parte das componentes do movimento advinha
das organizações de esquerda e da luta contra o capitalismo e pela democracia, mas a
partir de um exercício crítico significativo, rejeitavam práticas hierárquicas e
androcêntricas dessa esquerda, bem como a invisibilização e desconsideração da
necessidade das transformações de gênero para a luta política geral.
Em um contexto em que o Estado representava a violência exercida sobre os
corpos das mulheres, o silêncio das demandas de participação e a impermeabilidade das

2
O primeiro tematizou múltiplos aspectos vinculados à justiça de gênero e, em especial, a
representação política (e foi a campo ao longo dos anos de 2009 e 2010), tendo focalizado dezoito
países e depois tendo sido realizadas entrevistas semi-estruturadas e coleta de material secundário
em cinco deles (Argentina, Brasil, Peru, Paraguai e Venezuela). O segundo focaliz ou as políticas
públicas para as mulheres, atores, processos e instituições a elas vinculadas na região, tendo
começado no ano de 2011 e sido concluído no começo de 2013. Nesta segunda fase foram visitados
mais cinco países (Chile, Costa Rica, Bolívia, México e Nicarágua), onde foram entrevistados
atores estatais (do Executivo e Legislativo), representantes de movimentos feministas e de mulheres
e representantes de organismos internacionais de direitos humanos. Ver Relatório de Pesquisa “A
Representação Política Feminina na América Latina e Caribe: Condicionantes e Desafios à
Democracia na Região” (Matos & NEPEM, 2010/CNPq) e o Relatório “Mulheres e Políticas
Públicas na América Latina e Caribe: Desafios à Democracia na Região” (Matos & NEPEM,
2013/CNPq).

5
questões de igualdade, os feminismos desse período se construíram em posição de
aversão ao Estado. Como afirma Alvarez (2000), a autonomia significava na época a
independência e oposição absoluta tanto ao Estado, quanto à esquerda. Para um
movimento que emergia e que buscava delimitar seus contornos, a defesa de espaços
próprios de organização e da auto determinação para suas pautas e prioridades tornou-se
central.
A partir de meados dos anos 80 e 90, muitos países latino-americanos passaram
a transitar para governos democráticos. Outros países, principalmente na América
Central, sofreram longos períodos de conflitos internos e violentas lutas políticas. O
clima da região nesse período foi marcado por forte pressão dos grupos sociais,
incluindo o movimento de mulheres3, por reformas constitucionais, participação
política e transformações institucionais. No contexto internacional, as conferências
mundiais da ONU, voltadas para temas sociais, passaram a influenciar fortemente as
agendas governamentais dos países da região.
Segundo Céli Pinto (2003) este período foi marcado por uma terceira onda do
feminismo, caracterizada pelo “feminismo difuso”, com foco nos processos de
institucionalização, na discussão das diferenças entre as mulheres e das novas formas de
organizar-se coletivamente (Pinto, 2003, apud Matos, 2010:68). Como afirmam Alvarez
(2000a) e Vargas (2008), o feminismo na região pluralizou-se a partir da expansão dos
espaços de articulação da política feminista; a partir do aumento da visibilidade e força
de outras identidades do feminismo – feminismo negro, lésbico, popular, organização
das mulheres sindicalistas, das trabalhadoras rurais, etc.; a partir do envolvimento de
parte das feministas que buscaram influir e participar na política eleitoral e a partir das
novas oportunidades de interação em uma gama de instituições sociais e políticas.
Segundo Alvarez esse “descentramento saudável” do feminismo na região deu margem
a um “campo de ação expansivo, policêntrico e heterogêneo, que abarca uma vasta
variedade de arenas culturais, sociais e políticas” (Alvarez, 2000:386).
A relação dos feminismos com o Estado, portanto, se transformou.
Compatibilizou-se o diálogo e negociação com os movimentos e partidos de esquerda e
também com instituições e foram criados novos canais de interlocução estatal, a partir
3
Consideramos nesse artigo que o movimento feminista é uma subcategoria do movimento de mulheres.
Todos os movimentos feministas são movimentos de mulheres, mas nem todo movimento de mulheres se
reconhece enquanto movimento feminista. “Um movimento feminista é um tipo de movimento de
mulheres, com um discurso feminista específico” (Mcbride & Mazur, 2010:33).

6
das novas formas de organização feministas, oriundas de processos crescentes de
institucionalização, profissionalização delas e de alguns temas, “onguização”,
articulações criadas para intervir nas organizações internacionais e regionais,
impulsionadas pelo processo de Beijing 4 (Vargas, 2008).
Essa nova realidade coincidiu com o período em que toda América Latina,
influenciada pelas instituições financeiras internacionais e apoiada por elites locais,
passou a implementar políticas neoliberais, que diminuíram as formas de engajamento
do Estado e buscaram reforçar práticas do mercado como a arena mediadora das
relações sociais. A implementação dessas políticas mostrou-se incapaz de criar bases
sociais sustentáveis de modo a reproduzir estabilidade econômica, tendo acentuado forte
processo de concentração de renda, substituído parte do desenvolvimento nacional pela
estabilidade financeira e o controle da inflação gerou enorme dívida pública e altas
taxas de juros (Sader, 2008).
Nesse contexto, as ONGs feministas, cada vez mais profissionalizadas,
avançaram na introdução dos temas relativos ao gênero nas agendas nacional e
internacional ao passo que relativizaram em parte sua função de criticar, pressionar e
transformar esse mesmo Estado. As ONGs passaram a ter um papel importante no
fornecimento das políticas sociais, enquanto o Estado passou por um esvaziamento da
sua função social. Como afirma Alvarez, as ONGS pareciam mais “neo” do que não-
governamentais, ao se responsabilizar pelos serviços públicos que deveriam continuar
no escopo de ação dos governos (Alvarez, 2000:402)
As divergências quanto à relação dos movimentos feministas e de mulheres
perante o Estado marcou significativamente os debates entre os feminismos e acabou
sendo polarizada em torno de duas posições: as conhecidas como “institucionalizadas” e
as “autônomas”. Os Encontros Feministas nos anos 90 e o processo de preparação para
a Conferência de Beijing foram profundamente marcados por tal polarização, quando “a
preferência por líderes e por discursos mais amenos à política tradicional foi vista como
uma ameaça à solidariedade feminista” (Alvarez et all, 2003: 551). A partir daí, o ideal
de autonomia em relação às arenas institucionais passou novamente a ser expresso.
Enquanto as “institucionalizadas” eram aquelas feministas pertencentes às
organizações que tinham canais formais de atuação junto aos governos e agências de
4
Refere-se ao processo de preparação da IV Conferência Mundial da Mulher, realizada em Beijing,
China, em 1995.

7
cooperação internacional, as que se diziam “autônomas” eram parte de coletivos e
instituições feministas críticos e opositores às expressões institucionais do patriarcado.
Diziam não receber recursos financeiros “do norte”, nem negociar com as organizações
internacionais, governos e partidos (Vargas, 2008).
A despeito da falta de unidade dos feminismos latino-americanos em relação às
estratégias de atuação vis-à-vis o âmbito público-político, as ideias e demandas
feministas são incorporadas, de maneira rápida como afirma Alvarez (2000), pelos
Estados e sociedades da região. Segundo a autora, as novas constituições democráticas
incorporaram a igualdade de gênero, proliferaram equipamentos estatais como as
delegacias especializadas da mulher, a lei de cotas para representação política das
mulheres passou a ser adotada amplamente, a agenda de desenvolvimento da ONU
passou a considerar como central a “questão da mulher” e, por fim, os mecanismos
institucionais de mulheres (MIMs) 5 foram criados em todos os países da América
Latina. No entanto, a autora ressalta que a adoção das reivindicações das mulheres nos
discursos oficiais não, necessariamente, significou a implementação efetiva, tendo sido
às vezes, “parcial e seletiva” (Alvarez, 2000:398).
A partir do novo milênio, a polarização em torno da institucionalização dos
feminismos se arrefeceu. Se por um lado o grupo das “autônomas” passou por processo
de fragmentação e conflito interno, por outro, parte das “institucionalizadas” passaram a
fazer autocríticas da sua atuação (Alvarez et all, 2003). Além disso, outros movimentos
feministas emergiram pautados por forte crítica ao neoliberalismo, como a Marcha
Mundial das Mulheres6, revigorando as pautas políticas dos feminismos na região e
abrindo processos de aliança com outros movimentos sociais, a partir do resgate da ação
feminista de rua, criativa e subversiva, no contexto de emergência dos movimentos anti-
globalização e da construção do Fórum Social Mundial (FSM). Como afirmam Nobre e
Trout (2008), o FSM transformou o ambiente do debate e ação políticas e trouxe uma
oportunidade de articulação de ambos os “lados” dos feminismos. Para essas autoras, o
“Fórum Social Mundial promoveu a reaproximação de ambas tendências e se converteu

5
Órgão governamental formalmente estabelecido, encarregado de lidar com o status e os direitos da
mulher e de promover a igualdade e a justiça de gênero.
6
A Marcha Mundial das Mulheres nasceu no ano 2000 como uma grande mobilização que reuniu
mulheres do mundo todo em uma campanha contra a pobreza e a violência. A ação marcou a retomada
das mobilizações das mulheres nas ruas, fazendo uma crítica contundente ao sistema capitalista como um
todo. (Marcha Mundial das Mulheres, s/f).

8
em um território justo. Esse novo espaço evitou o isolamento de uns e ampliou a agenda
política de outros” (Nobre & Trout, 2008:146)
Além disso, resultados sociais desastrosos da adoção das políticas neoliberais,
em conjunto com a pressão dos movimentos sociais e partidos progressistas, que se
gabaritaram como fortes opções eleitorais levaram a um reforço da busca por novas
alternativas para a região, que combinassem crescimento econômico, aprofundamento
democrático e justiça social. É evidente que esse processo não foi homogêneo ou livre
de controvérsias, mas indicou um novo momento para a região. Este contexto distinto
da década de 90 abriu novas possibilidades para as ações feministas e novas formas de
se relacionar com as instituições governamentais. Quando a tônica deslocou-se do
mercado para o Estado, da mercantilização para a consolidação de direitos e da
cidadania, a relação Estado e sociedade civil também se alterou e demandou uma nova
abordagem feminista do e para com o Estado.
O feminismo, em parte significativa dos países da região latino-americana na
atualidade não só foi transversalizado – estendendo-se verticalmente (numa arranjo
mainstreaming) por meio de diferentes níveis do governo, atravessando a maior parte do
espectro político e engajando-se em uma variedade de arenas políticas aos níveis
nacionais e internacionais –, mas também se estendeu horizontalmente, fluiu
horizontalmente ao longo de uma larga gama de classes sociais, de outros movimentos
que se mobilizavam pela livre expressão de experiências sexuais diversas e também no
meio de comunidades étnico-raciais e rurais, bem como de múltiplos espaços sociais e
culturais, inclusive em movimentos sociais paralelos. Essa conformação expressa aquilo
que estamos definindo como “quarta” onda feminista (Matos, 2010).
Entendemos e defendemos a experiência da recente nova “onda” para os
movimentos feministas da região e também para os estudos e teorias feministas que tem
incidência muito especial nos países do Sul global e em especial na América Latina e
Caribe. Se esta seria exatamente uma terceira ou uma quarta onda feminista no
continente é menos relevante do que dar o efetivo destaque ao fato de que é a primeira
vez que se pode levar a sério a existência radical (mas ainda recente) de circuitos de
difusão feministas operados a partir das mais distintas correntes horizontais de
feminismos (acadêmico, negro, lésbico, masculino etc.), que se poderia chamar de
“feminist sidestreaming” ou de fluxo horizontal do feminismo (Alvarez, 2009; Heilborn
& Arruda, 1995) e também a colocação na agenda dos poderes constituídos na região da
9
necessidade de maior paridade de representação política como uma das últimas
fronteiras rumo a uma maior justiça de gênero.
Os movimentos feministas e de mulheres, especialmente a partir dos anos 90,
foram ganhando um novo contorno político. Podemos entendê-los não como um tipo
específico de “movimento social”, mas e, sobretudo, como um “campo” – o “campo
feminista e de gênero” (Matos, 2008) – onde estão presentes forças heterogêneas,
diversificadas, plurais, policêntricas de organização entre mulheres que vão às ruas,
constroem espaços específicos de auto-reflexão e de crítica no âmbito de sindicatos,
movimentos estudantis, das universidades, ONGs, parlamentos, partidos políticos e
também, nas Organizações Internacionais etc. Essas atrizes conformaram uma rede de
atuação que, há muito, extrapolou a forma de organização meramente nacional,
construindo-se assim as bases de interações que estão se dando no ciberespaço e através
de outros meios recentes globais de comunicação de massa e tecnologia.
Destaco, assim, algumas características daquilo que defino como quarta onda,
reforçando seu débito incontestável com a necessidade de transversalização do
conhecimento e a transversalidade na demanda por direitos (humanos) e justiça social
pautada pelas mulheres. Estas características seriam:
1. O alargamento, adensamento e aprofundamento da concepção de direitos
humanos que tem sexo, gênero, cor, raça, sexualidade, idade, geração, classe social etc.
(pautado a partir da luta feminista e das mulheres e de outros movimentos e muito
diferente da proposta liberal, abstrata e transcendental de dignidade humana que
orientou no começo a plataforma internacional vinculada a estes direitos);
2. A ampliação e diversificação da base das mobilizações sociais e políticas,
sobretudo dentro de um novo enquadramento ou moldura transnacional, global, além de
uma moldura resignificada nacionalmente (a exemplo da Marcha Mundial das Mulheres
– MMM, um movimento/rede que pode ser considerado emblemático desse feminismo
de “quarta” onda e que teve origem numa manifestação pública feminista no Canadá,
em 1999, cujo lema, inspirado em uma simbologia feminina – “pão e rosas” – e
expressava a resistência contra a pobreza e a violência. A rede mantém até hoje esse
primeiro mote, mas vem ampliando sua conotação, convocando o conjunto dos
movimentos sociais para a luta por “um outro mundo” (designada de
“altermundialismo”), e por novos direitos humanos, em que sejam superados os legados
históricos do patriarcalismo e do capitalismo, onde são os movimentos de mulheres no
10
campo/rurais e também os feminismos e movimentos de mulheres urbanas
(moradia/habitação, trabalhadoras e operárias etc.) que têm resignificado as lutas por
mais justiça;
3. O foco no “sidestreaming” feminista, ou seja, uma perspectiva que reforça a
discriminação de gênero mas vai além dela e valoriza igualmente o princípio da não-
discriminação com base na raça, etnia, geração, nacionalidade, classe ou religião. Trata-
se do reconhecimento de “feminismos outros”, profundamente entrelaçados, e, por
vezes controversamente emaranhados com as lutas nacionais e globais para a justiça
social, sexual, geracional e racial. As mesmas mulheres que constituíram as bases do
feminismo hegemônico da década de 1990 e que tratavam as mulheres “diferentes”
frequentemente como as “outras” - trabalhadoras rurais e urbanas, jovens,
afrodescendentes, mulheres indígenas, lésbicas – foram e são, agora, responsáveis por
um novo efeito de “tradução”, transformando muitos dos princípios do núcleo do
feminismo;
4. O foco no “mainstreaming” feminista, onde ganham visibilidade e destaque as
novas formas de relação com o Estado e de suas muitas instituições e àquelas dinâmicas
vinculadas a este novo formato de teorização feminista, destacando-se, por sua vez, o
esforço no sentido da construção participativa de ações transversais, interseccionais e
intersetoriais de despatriarcalização das instituições estatais;
5. Também se destaca a nova forma teórica – transversal e interseccional – de
compreensão dos fenômenos de raça, gênero, sexualidade, classe e geração desdobram-
se na necessidade de se pensar em micro e macroestratégias de ação articuladas,
integradas, construídas em conjunto pelo Estado e pela sociedade civil a partir de um
novo feminismo interseccional, transversal, multinodal, policêntrico (estatal e anti-
estatal ao mesmo tempo despatriarcalizador e descolonizador);
6. Uma renovada retomada e aproximação entre pensamento, a teoria e os
movimentos feministas (o “campo crítico emancipatório das diferenças”, Matos, 2013 –
que discutiremos adiante), que se propõe a uma reformulação teórica profunda com
forte concentração em tradições teórico-críticas feministas contemporâneas decoloniais
e que visam um novo enquadramento para um feminismo cosmopolita.
Num esforço de grande síntese, apresento o Quadro 1 a seguir, que pretende
explicitar alguns dos principais elementos que tratei de delimitar aqui para enquadrar
esta proposta de uma nova e quarta onda feminista para os movimentos feministas no
11
Brasil e na América Latina. Neste quadro ainda se encontros outros liames analíticos
que não será possível tratar aqui no escopo deste ensaio, mas que também estão
contidos no esforço deste novo enquadramento analítico. Em outro momento pretendo
explicitar e destrinchar melhor todos os aspectos contidos neste quadro, mas por
enquanto, serve bem aos propósitos de uma primeira síntese destes novos dinamismos.
Quadro 1: Síntese das Ondas Feministas na América Latina e Brasil (Matos, 2014)

ONDA/Características Período Conceitos Relação com o Economia Cultura


Estado - Política

PRIMEIRA Século Sufragismo (luta Luta por Lutas Operárias Modernidade iluminista
19 pelo sufrágio incorporação de
FEMINISMO CONTRA O universal) direitos Socialismo, TRADIÇÃO
CAPITALISMO ESTATAL Marxismo MODERNA
Escolarização das
mulheres

Direitos civis e
políticos

Conceitos-fronteira SÉCULO 20 - Feminismo/Experiência/Opressão/“Sufragetes”

SEGUNDA Anos “Não se nasce CONFRONTO Economia liberal Globalização


50/60/70 mulher, torna-se
FEMINISMO CONTRA O mulher”... Afastamento e Globalização/Liberali Colonialismo
CAPITALISMO repúdio smo
MILITARIZADO E Estudos de Mulheres CONTRA-CULTURA
DITATORIAL DA AMÉRICA e Feministas
LATINA AUTORITARISMO
MILITARIZADO E
ESTATAL

Conceitos-fronteira SÉCULO 21 - Relações de Gênero/Performativos e transperformativos de gênero

TERCEIRA Anos Estudos de gênero, CONFLITO Neo-Liberalismo Anti-colonialismo


80/90 relações de gênero
FEMINISMO E O “NOVO Profissionalização, Anti-militarismo
ESPÍRITO DO Luta anti-estados especialização,
CAPITALISMO”: militrarizados onguização fora do ANTI-
REDEMOCRATIZAÇÃO E Estado NEOLIBERALISMO
CRISE FISCAL DO
ESTADO/NEOLI- Lutas contra POSCOLONIALISMO
BERALISMO autoritarismo militar
estatal

Conceitos-fronteira Redes/Interseccionalidades/Campos transversalizados

QUARTA Anos Campo crítico- CONTESTAÇÃO Pós-neoliberalismo Pós/Decolonialismo


2000 emancipatório das
diferenças Aproximação tensa e Descolonização +
disputa e Decolonialismo
FEMINISMO E O PÓS- Institucionalização
NEOLIBERALISMO/DES- estatal = “feminismo DESPATRIARCALIZA
PATRIARCALIZAÇÃO estatal” ÇÃO/DESRACIALIZA
ESTATAL ÇÃO/DESHETERONO
MIMs e Planos RMATIZAÇÃO
Nacionais de PPs
para Mulheres

12
Fonte: Elaboração própria

A seguir, então, pretendo explorar o segundo aspecto analítico deste ensaio que
se refere, finalmente, ao campo crítico-emancipatório das diferenças.

O CAMPO CRÍTICO-EMANCIPATÓRIO DAS DIFERENÇAS

Esta outra proposta de enquadramento teórico-analítico se assenta numa crítica


radical a todos os tipos de opressão, desigualdades e hierarquias. Este é o fio condutor
do campo crítico-emancipatório das diferenças, conforme já proposto por mim em 2012.
Fundado em uma epistemologia crítica e da fronteira (Spivak,1988), aberta e na
fronteira tensa e disputada entre as ciências e as lutas sociais, esse novo campo foi por
mim concebido a partir, fundamentalmente de uma premissa inaugural: o compromisso
normativo de se atribuir o justo reconhecimento político e acadêmico aos grupos
subalternos, visando-se com isso fortalecer seus processos dinâmicos que visam a
emancipação. Trata-se de uma “moldura teórica compreensiva, inclusiva, mais justa e
mais fortemente democrática” (Matos, 2012:37).
Em outro ensaio (Matos, 2013) já me referi em detalhes para os principais
elementos que recortam esta proposta teórica, mas caberia aqui voltar a insistir que este
novo campo científico se estabeleceu, especialmente, a partir da tensão entre os
conceitos de gênero/sexualidade e os movimentos feministas, sujeitos queer e os
movimentos LGBT, os conceitos de raça/etnia e os movimentos negros e
pós/decoloniais e recortam especificidades que estou considerando como um novo
campo das ciências. Pesquisadoras e também pesquisadores, sejam “militantes” ou
“ortodoxos”, foram os atores responsáveis por construir a “autonomia relativa” deste
novo campo intelectual em torno de um consenso mínimo que exploro a seguir. A noção
de “campo” é um instrumental importante de análise dos mais diversos sistemas sociais
que têm a peculiaridade de fazer interagir as chamadas estruturas da sociedade
(objetividade e sua dimensão de coletividade) e a sua dimensão pessoal/psicológica
(subjetividade) dos agentes sociais. E é também neste sentido que o adoto aqui, pelo
fato de ser um significativo conceito de fronteira. Assim, ele acaba podendo ser
emprestado à análise de muitas arenas, desde que dispostas dinamicamente em função
de objetivos próprios (consequentemente com estratégias próprias) e dotadas de certo
grau de autonomia.

13
Este novo campo tem nos marcadores sociais e políticos de diferenças –
especialmente os de gênero/sexualidade e raça/etnia (mas não apenas) - o ponto de
partida para meu esforço de reconstrução desse novo campo de discussão científica
onde está pressuposta a existência de algumas poucas regras e padrões gerais que o
informariam consensualmente. Este esforço teórico-analítico, em meu entender, se
justifica por um conjunto de seis motivos fortes, a saber:
1. Com esta delimitação teórica é possível desdobrar sentidos interpretativos e
analíticos (além de prático-empírico-cotidianos) relevantes com vistas à construção e
estabilização de um campo de conhecimento e mesmo de uma “epistemologia da
fronteira”, onde uma teoria das opressões dos grupos subalternos possa fazer sentido.
Este sentido deve, finalmente, estar dado para todas as nossas ciências e, especialmente,
para a ciência política, resgatando o diferencial de que esta outra episteme traz em seu
escopo dimensões estruturantes significativas ligadas a dimensões corpóreo-identitárias
que, ainda com alguma frequência, são relegadas no campo científico político mais
hegemônico;
2. A partir da delimitação deste campo, tendo-se evidenciado que o mesmo tem
se comportado como o espaço político mais frequente de subalternização histórico-
política, farei a proposta de sua nova analítica – a de que este campo esteja baseado,
paradoxalmente, num universal contingente ou num pluriversal, e sendo atravessado por
uma teoria das opressões de grupos que sempre o unificou, possa igualmente a partir da
luta política de suas atrizes/atores e sujeitos exigir processos renovados transformadores
de emancipação e autonomização sócio-política;
3. Deve-se ter em conta que este campo constrói experiências que ancoram outra
noção aqui importante, a noção de “perspectiva social”: será a partir dela que se
pretende, a partir das considerações originais de Iris Young (2000a, 2006) reconstruí-la
como a uma forma recente primordial de legitimação e autorização políticas;
4. Tais processos renovados e renovadores de emancipação, para não correrem o
risco presente da fragmentação, invisibilidade e/ou isolamento, deverão convergir
política e epistemicamente (assim como também na vida cotidiana), vindo até a
subsidiar novas ações e padrões estabelecidos de articulações entre e intra-movimentos
sociais, multiplicando-lhes as forças: apenas assim tornar-se-á possível justificar a
presença e a legitimidade destes corpos-sujeitos na esfera pública, mais democratizada e
mais inclusiva, atendendo finalmente as suas demandas, reconhecendo a saliência e a
14
justiça de suas reivindicações (inclusive no âmbito das políticas e do Estado, mas não
só);
5. Assim, os processos de legitimação e de autorização, observáveis a partir
então da noção de “perspectiva” funcionam como a base da argumentação que
justificará um enraizamento da necessidade ou urgência de reversão da afonia política
associada a tais grupos e pretenderá legitimar o peso de seu reconhecimento e de sua
participação, finalmente, como “pares” na esfera comunicativa, pública e política
(inclusive como representantes em espaços de poder e decisão);
6. A reversão de tal afonia política, historicamente atribuída aos grupos
subalternos, iniciará, deflagrará processos mais amplos de transformações político-
sociais que, “de baixo para cima”, “colateralmente” e “horizontalmente” pretendem a
reinvenção de nossas democracias e a construção de novos projetos em curso de
desenvolvimento.
A minha preocupação aqui é com a reconstrução e a proposta de uma nova
moldura teórico-conceitual que faça sentido de compreensão para as complexas
mudanças que estão sendo operadas em nossa atualidade pela crescente demanda destes
grupos “identitários”, ou melhor, “diferencialistas”, sobretudo no escopo das dimensões
estratégicas da esfera política, a estatal e a não estatal. A minha defesa aqui é a de um
campo científico crítico que não “ignore” ou tente “transcender” aquelas diferenças que
nos são constitutivas. Pelo contrário, que este, de fato e de direito, as leve realmente a
sério. Estas diferenças se situam paradoxalmente no campo das relações político-
histórico-sociais: são constitutivas de nossas identidades individuais e, sobretudo, de
nossas identidades coletivas. Ainda que entendamos que as correntes do pós-
modernismo e do pós-estruturalismo possam ter orientado olhares e saberes na
construção do que estou, junto a Grosfoguel (2008) definindo como “epistemologia da
fronteira” penso ser urgente e necessário também nos deslocar deste lugar “pós”. Tais
correntes, além de fortemente ocidentalizadas, se encontrariam ainda muito aprisionadas
no interior do cânone hegemônico, reproduzindo dentro dos seus domínios de
pensamento e nas práticas, uma determinada forma de colonialidade do
poder/conhecimento que viso aqui descartar.
Em última instância esta proposta pretende atribuir aso grupos historicamente
subalternos o justo reconhecimento político e, sobretudo, acadêmico, entendendo esta
como uma etapa necessária (mas não suficiente) para que as transformações
15
reivindicadas por estes grupos possam, de fato e realmente, transbordar das fronteiras de
suas especificidades e diferenças e atingir a toda sociedade política numa renovada onda
emancipatória. Neste sentido, o quadro analítico aqui desenhado não tem pretensões
fortes a um caráter hegemônico de universalidade (ainda que possa parecer isto), mas
está ancorado numa sensibilidade muito própria de compreensão do que seria um outro
tipo de “universal”, este buscarei delinear a seguir.
O campo crítico emancipatório das diferenças é identificado e estruturado por
diferenças subalternizadas que têm com sua chave analítica uma fundamentação no que
certos autores do decolonialismo latino-americanos (Grosfoguel, 2005, 2006a, 2006b,
2008) cunharam como pluriversal, “um universal que tem cor, sexo, gênero, desejo,
emoções e pele e não é definitivamente neutro” (p. 36). O pluriversal funciona como
denominador comum de teorias da opressão de grupos e denota outro tipo de universal
não hegemônico, inclusivo de múltiplas particularidades locais nas lutas sociais, em
movimento constante e inacabado.
A minha insistência aqui, entretanto, será na urgência política e estratégica de
outra moldura teórica compreensiva, inclusiva, mais justa e mais fortemente
democrática, para envolver estes diferentes campos subalternos de saber em uma
tentativa de unificação epistemológica que não pretenda fazer sucumbir ou invisibilizar
(mais uma vez) tais diferenças, mas ao contrário, que vise empoderá-las no sentido de
uma frente unificada de luta teórico-político-analítica-científica que, desta vez, possa
transbordar no sentido oposto ao iniciado pelos estudos originariamente estabelecidos a
partir de origens fragmentadas. A direcionalidade passaria a ser agora a dos estudos
acadêmicos para os movimentos sociais (que atualmente encontram-se praticamente em
uma onda reversa de desmobilização e fragmentação, sobretudo, política), sendo o
intuito exclusivo o da oportunidade e da possibilidade de rearticulá-los e o de colocá-
los, finalmente, em um espaço-tempo de igualdade, legitimidade e autorização inicial a
partir das suas próprias diferenças que ao longo de séculos estiveram no registro da
subalternidade.
Entendo que se possa, assim, através do diálogo inter e transfronteiriço - sempre
franco e permanente (constantemente disputado)-, de reconstruir tanto as nossas
ciências quanto a nossa dinâmica política. O único objetivo aqui, então, é o de fazer
possível mais e melhores estratégias de articulação, diálogos, convergências colocando-
se as ciências para funcionar a favor dos movimentos sociais, a favor, finalmente, de
16
sua emancipação que será, em meu entender, igualmente a nossa. A construção destes
argumentos vai desembocar na proposta do conceito de “perspectiva social” (Young,
2006) como um instrumento político-analítico de autorização democrática indispensável
que exercitaria, por sua vez, a transição necessária e estratégica para as demais esferas
públicas, tornando assim possível: (1) ou uma espécie de “tradução” das demandas
(tanto analítico-teóricas quanto prático-cotidianas) destes grupos subalternos e
oprimidos para com o Estado e as outras esferas realmente significativas da nossa
sociedade, (2) ou sua completa transfiguração. Assim, a noção de perspectiva social é
condição normativa de autorização política do campo, cuja validade requer delimitação
de critérios para inserção de grupos legítimos na busca por emancipação sociopolítica.
As principais razões para justificar a proposição desse novo campo
resumidamente seriam, então, a sua evidente utilidade analítica e empírica, colaborando
com outros esforços de construção de uma epistemologia de fronteira, a adoção do
conceito de pluriversal, desta vez, corporificado, encarnado, generificado, racializado,
marcado geracionalmente e, finalmente, unificado por uma abordagem da teoria das
opressões de grupos (essa, por sua vez, tem sua ancoragem normativa e política na
noção de perspectiva social, tal como o feminismo de Young a concebeu), a constatação
da necessidade que se estabeleça e se estabilize uma convergência política e epistêmica,
em articulação com as recentes lutas sociais, e tudo isso estando contido no esforço de
reversão da afonia política e de maior capacidade de inclusão desses grupos subalternos,
sendo que, finalmente, será assim que compreendo possível que sejam deflagrados
novos processos não hierárquicos de transformação democrática que, por sua vez, já
estariam em curso em nossa sociedade.
Ainda vou problematizar, ao final deste ensaio, que são esses processos de
transformação que, por sua vez, também têm sido identificados por importantes
segmentos politicamente conservadores da sociedade brasileira (a exemplo das
lideranças políticas religiosas – protestantes e católicas, lideranças financeiras e
empresariais, tais como aquelas vinculadas ao agronegócio ou às bancadas ruralistas,
entre outros) que têm, inclusive, promovido ações orquestradas para barrar,
obstacularizar, impedir ou mesmo retroceder na conquista destes novos direitos e refrear
tais processos emancipatórios, democratizadores e de inclusão social e política.
Retomando o campo crítico das diferenças, é fundamental mencionar que ele se
organiza a partir de muitas críticas que foram, ao menos desde os anos 80, já
17
deflagradas pelos posicionamentos profundamente críticos da epistemologia feminista e
agora, mais recentemente, pela epistemologia decolonial latino-americana. A
epistemologia feminista (e também a epistemologia decolonial) tem procurado repor no
cerne da discussão científica contemporânea que tal ciência é construída nos moldes
ocidentais e seria mais um dos muitos discursos possíveis sobre a verdade/realidade que
é construído socialmente. Desta forma, “o grau que uma forma de compreensão
prevalece ou se sustenta no tempo não depende exclusivamente da validade empírica da
perspectiva em questão, mas também de um conjunto de processos sociais que
incorporam a comunicação, a negociação, o conflito, a retórica (Gergen, K., 1985) e as
marcas de gênero (Gergen, M. , 1988; Harding, 1986; Keller, 1985)” (Schnitman, 1996,
p. 11). Se temos dificuldades ainda em admitir que a ciência hegemônica, liberal e
ocidental é “enviesada” em vários aspectos e dimensões, parece-me mais fácil, pelo
menos reconhecer que “não apenas os benefícios e custos das ciências modernas são
distribuídos desproporcionalmente de forma a beneficiar as elites no Ocidente e de
outros lugares, as próprias práticas científicas sendo efetivamente distorcidas para fazer
esta distribuição desigual invisível por aqueles que se beneficiam dela” (Harding,
1994:356, tradução nossa).
Desta forma, o feminismo acrescentou criticamente ao saber e à racionalidade
científicas, diretamente de encontro à afirmação ocidental de um contexto homogêneo,
estável ou plano unidimensional baseado na univocidade de sentidos (uma palavra, um
significado) e de relações duais, dialéticas de racionalidade, a concentração e a
valorização crítica, multicultural, emancipatória e reflexiva de configurações
transversais, plurais e multidimensionais dos saberes que, ainda que não desconsiderem
por completo as polarizações dicotômicas, dialéticas ou antinômicas, as recolocam num
plano de densidades diversas (inclusive contraditórias) e complexas. É assim que muitas
das distinções binárias tradicionais passaram a ser consideradas construções sociais
levadas a cabo por um tipo específico de sociedade científico-cultural que é fortemente
datada e que precisa ser interrogada e, eventualmente, ultrapassada.
Desta forma, a “nova” epistemologia emergente em tal paradigma das ciências
(doravante necessariamente no plural) – o da complexidade – passou a reconhecer a
inevitável imprevisibilidade dos atuais (e pregressos) sistemas complexos, questionando
a centralidade da ideia de uma única origem e de permanência/estabilidade, bem como a
mística da já surrada “neutralidade” nas ciências.
18
Assim, podemos afirmar que, por exemplo, o campo de gênero e feminista, o
campo dos estudos queer, o campo dos estudos étnico-raciais pós/decoloniais têm sido
os campos de uma outra experiência da modernidade que cumpriram muito bem a meu
ver o papel de ir além, destradionalizando sempre. Este ir além, contudo, entendo que
precisa ser responsável, prudente e não pode se referir ao campo do relativismo pós-
moderno ou pós-estruturalista – campo do “vale-tudo” (ainda que muitas autoras
importantes da crítica aqui apresentada se originem e auto denominem nessa rubrica),
mas ao campo de uma modernidade radicalizada na busca da emancipação social
responsável que, inclusive, deve ser vista como um objetivo científico fundamental.
Entendendo então que a “matriz de poder colonial” é, de fato, um princípio
organizador que envolve o exercício da exploração e da dominação em múltiplas
dimensões da vida social (desde a econômica, a sexual ou a das relações de gênero, até
às organizações políticas, estruturas de conhecimento, instituições estatais e agregados
familiares - Quijano, 2000), os passos na direção da descolonização e da emancipação
não passarão apenas pela estratégia de uma libertação anticapitalista. É necessária uma
transformação mais ampla de todas estas hierarquias: epistêmicas, sexuais, de gênero,
corporais, raciais, econômicas, políticas e linguísticas no escopo daquilo que se concebe
como “sistema-mundo colonial/moderno”. Assim, a pós/decolonialidade e a abordagem
do sistema-mundo partilham entre si também a crítica ao desenvolvimentismo, às
formas eurocêntricas de conhecimento, às desigualdades entre os sexos, às hierarquias
raciais e aos processos culturais/ideológicos que fomentam a subordinação da periferia
no sistema-mundo capitalista. Também estas visões críticas permitidas por uma e outra
abordagem dão ênfase a diferentes causas determinantes nesses processos: há
multideterminismo e multicausalidade. Enquanto as críticas pós/decoloniais salientam a
cultura colonial (que entendemos abrangentemente aqui como inclusiva das
perspectivas críticas de gênero, sexualidade, raça e etnia), a abordagem do sistema-
mundo, por exemplo, sublinha a acumulação interminável de capital à escala mundial. E
se, por um lado, as críticas pós-coloniais dão ênfase à agência (aos sujeitos e ás suas
respectivas fronteiras corpóreo-identitárias), por outro, a abordagem do sistema-mundo
enfatiza as estruturas (econômicas, políticas e culturais). Mas não se pode cair mais uma
vez na armadilha do paradigma anterior: ter que se escolher entre um sistema
binário/dual, um dos pólos dessa equação de determinações.

19
Assim para o campo crítico-emancipatório das diferenças não existe uma
separação estanque entre economia, política, cultura e sociedade, estas não são, enfim
áreas autônomas ou independentes, mas complexamente imbricadas e interligadas. A
construção destas áreas “autônomas” e a sua materialização em domínios de
conhecimento separados, tais como a ciência política, a sociologia, a antropologia e a
economia, nas ciências sociais, assim como as diferentes disciplinas das humanidades,
são o pernicioso resultado do liberalismo enquanto geocultura de um sistema-mundo
moderno.
A defesa feita neste ensaio a partir do campo crítico-emancipatório das
diferenças precisa envolver a necessidade de uma nova linguagem decolonial para
representar os complexos processos do sistema-mundo colonial/moderno, sem estarmos,
contudo, dependentes da velha linguagem liberal da existência exclusiva de três grandes
áreas: economia, política e cultura. Concordo integralmente com Grosfoguel (2008)
quando este afirma que “precisamos mesmo encontrar novos conceitos e uma nova
linguagem se quisermos explicar o complexo enredamento das hierarquias de gênero,
raciais, sexuais e de classe existentes no interior dos atuais processos geopolíticos,
geoculturais e geoeconômicos do sistema-mundo colonial/moderno” (p.11).
Assim, resumindo, afirmaria que este campo teria como seus principais
pressupostos: o reforço das críticas decoloniais sobre o enraizamento da colonialidade
do poder/saber/ser nas epistemologias de racionalidade ocidental hegemônica; o
entendimento de que todo conhecimento é sempre parcial e depende do lugar da
enunciação de quem fala, a diferenciação entre lugar epistêmico e lugar social (da
perspectiva social de quem fala); a valorização da alteridade epistemológica, para que o
campo seja capaz de produzir um tipo de conhecimento efetivamente emancipatório,
desenvolvendo novas linguagens comuns e promovendo muito maior socialização do
poder. Defendo, pois que é a partir das experiências de opressão e das perspectivas
sociais de grupos subalternizados que poderão ser construídas as nossa mais recentes
alternativas democráticas. Nesse sentido, a(s) diferença(s), desde que reivindicada(s),
deve(m) funcionar como princípio para empoderar e emancipar, e não mais para
oprimir.
Mas, cabe estabelecer aqui um alerta: nem todas as pessoas e todos os grupos
estão aptas/os a fazer parte desse campo. Assim, partindo deste novo enquadramento
teórico-analítico, os corpos-sujeitos e os grupos das lutas por emancipação crítica de
20
suas diferenças (historicamente convertidas em desigualdades) devem atender, no
mínimo, aos seguintes critérios: (1) a presença de identidade assentada nas dimensões
da corporalidade; (2) a experiência de tal corporalidade está profundamente arcada pelas
interseccionalidades; (3) a corporalidade se encontra condicionada por limitações
estruturais incapacitantes eu podem ser promovidas pelo ambiente e pela própria
tecnologia; (4) existe e se afirma a impossibilidade de uma livre escolha (entrada e saída
abertas das condições individuais e grupais que marcam tais diferenças) a respeito de
tais marcadores sociais em função deles definirem estruturalmente os sujeitos e seus
corpos, assim como a própria cultura na qual estão inseridos (e que tem sido, até os dias
de hoje, aquela da experiência subalterna); (5) a experiência dessa subalternidade e da
ser opressão processada através das múltiplas fronteiras que existem entre pessoas
(corpos-sujeitos) e os grupos/instituições.
Além do mais, a emancipação que fundamenta este campo crítico das diferenças
precisaria se dar nas seguintes condições práticas: (6) o potencial dessa emancipação
reside no espaço político de poder recíproco entre as pessoas/corpos-sujeitos e os
grupos/instituições; (7) os atuais grupos e corpos-sujeitos têm protagonizado a
afirmação estratégica e política dessa(s) diferença(s); (8) entendo que é necessário
cuidar, entretanto, do não encapsulamento identitário para que a participação nas
decisões políticas possa ser efetiva; (9) isso porque há uma multiplicação dos lugares
de exercício da política, do poder e da democracia, sendo que os corpos-sujeitos e os
grupos/instituições buscam renovar tais espaços, e; (10) o campo requer a presença de
um formato de Estado que é laico e que está em vias de ser destradicionalizado sob
regime cívico de novas formas de governança voltadas para inclusão e emancipação
cidadã.
Tendo em vista que o fenômeno da colonialidade produziu novas hierarquias
epistêmicas e cognitivas, com diferenças pautadas no eurocentrismo, no universalismo,
no machismo/patriarcalismo, no elitismo classista, no sexismo, no racismo, no
adultocentrsimo, é de se supor que a valorização assimétrica dessas posições na
sociedade persista dentro de padrões de manutenção da tradição e lógica
colonial/moderna. À invenção da razão moderna colonial corresponderia, assim, a um
tipo de pessoa racional, madura, responsável, traduzida no ideal do homem burguês,
branco, ocidental, heterossexual, proprietário e adulto. É esse o lugar e o ator da
tradição moderna colonial que o campo crítico e o feminismo está lutando para
21
transformar, destradicionalizando sempre. Mas, como sabemos, esse processo não é
simplesmente linear. Ele não tem se dado sem resistências, sem retrocessos e
retaliações. Há refluxos, enfrentamentos, oposições e resistências a estas novas forças
de transformação, claro.

O NEOCONSERVADORISMO POLÍTICO-SOCIAL BRASILEIRO: algumas


“evidências” que confirmam os avanços do campo crítico das diferenças
Como estamos em plena experiência político-social de processos de transformação
que visam à estabilização deste novo campo, esta nova fase (ou onda), não tem ocorrido
sem resistências. Pretendo apresentar a seguir algumas das iniciativas recentes (de 2010
para cá), que estão recrudescendo na sociedade brasileira e têm claramente operado no
sentido da obstrução dos processos transformadores do campo crítico emancipatório das
diferenças. O Quadro 2 a seguir informa a partir de notícias de jornais, sites e revistas
sobre algumas dessas iniciativas. Este não é um levantamento exaustivo e nos serve
apenas de demonstração daquilo que estou designando aqui neste ensaio por neo-
conservdaorismo. Vejamos:

Quadro 2: Breve resumo de inciativas relacionadas ao neo-conservadorismo político social


brasileiro (Ano de 2014)

Iniciativas 2014 Repórter/ Fonte


Meio/Data

RELIGIÃO

Número de pastores candidatos cresce 40% Gil Alessi do UOL, http://eleicoes.uol.com.br/2014/noticias/2014/07/29/eleicoe


nestas eleições em São Paulo s-terao-270-pastores-21-bispos-e-16-padres.htm
29/07/2014

Umbanda e Camdomblé não são religiões Folha de São Paulo; http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/05/1455758-


Fábio Brissola, umbanda-e-candomble-nao-sao-religioes-diz-juiz-
16/04/2014, 19h34 federal.shtml

Juiz volta atrás e agora considera O Globo; 20/05/2014 http://oglobo.globo.com/sociedade/religiao/juiz-volta-atras-


candomblé e umbanda como religiões 18:22 / Atualizado 31/ agora-considera-candomble-umbanda-como-religioes-
05/2014 20:03 12546691#ixzz395MTRYEQ

Pastor polêmico presidirá Comissão de UOL; em Brasília, http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-


Direitos Humanos da Câmara 07/03/2013 11h10 noticias/2013/03/07/comissao-de-direitos-humanos-elege-
pastor-polemico-como-presidente.htm

GÊNERO E SEXUALIDADE

Justiça de MG culpa vítima por divulgação Enzo Menezes, do R7, http://noticias.r7.com/minas-gerais/justica-culpa-vitima-


de fotos eróticas e reduz indenização em 12/7/2014 por-divulgacao-de-fotos-eroticas-e-reduz-indenizacao-em-
95%. Para desembargador, quem faz 95-12072014
imagens pornográficas não tem "pudor",
"moral" ou "autoestima”

22
Depois de 15 anos, partidos cumprem a lei ANDI em Pauta; 21 http://www.andi.org.br/infancia-e-juventude/pauta/depois-
de cotas na política para as eleições a de agosto de 2012, de-15-anos-partidos-cumprem-a-lei-de-cotas-na-politica-
vereador (ANDI) Em Pauta para-as-ele

Partidos e coligações cumprem cota de Manaus (AM), 05 de http://acritica.uol.com.br/noticias/partidos-coligacoes-


candidaturas femininas só para evitar Julho de 2014 candidaturas-femininas-problemas_0_1169283062.html
problemas. As candidaturas de mulheres na
disputa pela ALE e Câmara Federal, no
Amazonas, se limitam ao mínimo de 30%
exigido pela lei (UOL)

Polêmica sobre a questão de gênero UOL, 19/03/2014, http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2014/03/1427935-


predomina em reunião no PNE (Folha de Flavia Foreque, de polemica-sobre-questao-de-genero-predomina-em-reuniao-
São Paulo) Brasília sobre-pne.shtml

Comissão da Câmara aprova texto-base do Agência Brasil; http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2014-


PNE e retira questão de gênero (EBC) 22/04/2014 19h42, 04/comissao-da-camara-aprova-texto-base-do-pne-e-retira-
Mariana Tokarnia questao-de-genero

Feministas protestam contra revogação de Agência Brasil; http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-


portaria que regula o aborto (Agência 07/06/2014 18h01, 06/feministas-protestam-contra-revogacao-de-portaria-que-
Brasil) Fernanda Cruz regula-o-aborto

RETROCESSO. Mulheres protestam contra Agência Brasil; http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2014/06/mulh


revogação de portaria que regula o aborto Fernanda Cruz e Ana eres-protestam-contra-revogacao-de-portaria-que-regula-o-
no SUS.Protesto na Praça da Sé, em São Cristina Campos, da aborto-no-sus-1458.html
Paulo, reafirma importância de que Agência
procedimentos possam ser feitos no SUS; Brasil, publicado 07/0
ministério alega problema técnico, mas há 6/2014 18:42, última
pressão de setores conservadores modificação 07/06/20
14 19:17

Projeto “cura gay” é reapresentado e volta GospelPrime; http://noticias.gospelprime.com.br/projeto-cura-gay-


para a Comissão de Direitos Humanos. O 14/05/2014, por reapresentado-camara/
pastor Eurico reapresentou a proposta do Leiliane Roberta
PDC 234/2011 que quer cancelar uma Lopes
resolução do Conselho Federal de
Psicologia

PEC das Domésticas completa um ano sem Agência Brasil; http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2014-


regulamentação Helena Martins - 04/pec-dos-domesticos-completa-um-ano-sem-
Repórter da Agência regulamentacao
Brasil Edição: Stênio
Ribeiro, 02/04/2014
21h45

Justiça do RS manda grávida fazer Folha de São Paulo; http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/04/1434570-


cesariana contra a sua vontade Giovanna Baloghi, justica-do-rs-manda-gravida-fazer-cesariana-contra-sua-
02/04/2014, 03h00 vontade.shtml

RAÇA E ETNIA

“Quantos senadores negros há no Brasil?” Geledés; 28 de julho http://www.geledes.org.br/quantos-senadores-negros-ha-


Angela Davis, a antítese de Joaquim de 2014, por Marcos brasil-angela-davis-antitese-de-jb
Barbosa Sacramento

Relembre os piores casos de racismo no R7; 3/5/2014 às http://esportes.r7.com/futebol/fotos/relembre-os-piores-


futebol. Antes da banana atirada em Daniel 00h10 casos-de-racismo-no-futebol-03052014#!/foto/1
Alves, muitos episódios lamentáveis já
aconteceram.

DEMOCRATIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL

23
DEM, PSDB e PPS querem evitar Estado de Minas; http://www.em.com.br/app/noticia/politica/2014/06/0
criação de conselhos populares. O Agência Estado, 1/interna_politica,534984/dem-psdb-e-pps-querem-
Executivo pretende que a população Publicação: 01/06/2 evitar-criacao-de-conselhos-
seja consultada sobre grandes temas 014 17:37 populares.shtml#.U4zihPS_Kw0.facebook

Fonte: Elaboração própria

Entre os anos de 2010 e 2013, também é possível identificar outro conjunto de


iniciativas nesta direção, mas não pretendo me estender nelas. Entre tais iniciativas eu
apenas destacaria, entretanto, as seguintes: quando a Presidente Dilma Rousseff
convocou líderes católicos para reunião sobre protestos e quando o Pastor Silas
Malafaia disse publicamente que o que o PT não teria consideração pelos evangélicos;
quando Dilma recebeu apoio de religiosos e desmentiu boatos relacionados à
possiblidades de mudança na legislação do aborto no Brasil; ou quando foi retirada uma
“cena gay” de vídeo disponível no site do Ministério da Saúde (tendo esta atitude sido
fortemente criticada pelas organizações de combate à Aids); ou quando STF teve que se
posicionar e confirmar a constitucionalidade/validade da Lei Maria da Penha e também
das cotas para negros nas universidades; ou ainda quando também a Presidente Dilma
derrubou o “kit gay”, conforme foi intitulado pela mídia o material a ser disponibilizado
para as escolas pelo MEC, entre outras várias iniciativas desta natureza.
Parece-nos claro, portanto, que a constituição do mainstreaming feminista de
quarta onda tem afetado a configuração dos Estados latino-americano e brasileiro (numa
claríssima estratégia de despatriarcalização estatal) e, isso se evidencia tanto pela
criação dos MIMs e do conjunto orquestrado de políticas para as mulheres presentes
hoje em 18 países da América Latina (incluindo o Brasil, Matos & NEPEM, 2013),
quanto pelas reações adversas a ele e que transbordam dos debates exclusivamente
afeitos à agenda de gênero e feminista, alcançando também a todas as múltiplas
dimensões associadas ao campo crítico emancipatório das diferenças. Essas reações
neoconservadoras estão em plena ação neste exato momento que antecede as novas
eleições presidenciais de 2014. A polarização das candidaturas de Dilma e Marina
também explicita o quanto o enquadramento aqui anteriormente descrito parece
operativo em nossa sociedade atual e como, de fato, está em jogo este “outro” destas
inciativas transformadoras. A nova vaga política e neoconservadora está igualmente
operando. Na última semana de setembro, também a candidata Marina teve que
retroceder em termos de propostas programáticas relacionadas aos diretos LGBT,
justamente por pressões do mesmo Pastor Silas Malafaia.

24
Todavia, os processos de destradicionalização social, de descolonização do saber
e de despatriarcalização/desracialização/desheteronormatização já estão em curso. Na
verdade, sei perfeitamente bem que nenhuma teoria (por melhor e mais sofisticada que
seja, inclusive a feminista) tem incidência direta sobre esse quadro de
neoconservadorismo. Mas, igualmente parece-me claro que pode tentar compreendê-lo
e, quem sabe, explicá-lo melhor para que possamos produzir outras estratégias
inovadoras para tentar, quem sabe, neutralizá-lo.
Mas há que se constatar e que se concluir que, definitivamente, as dimensões dos
marcadores de diferenças sociais no Brasil de hoje já estão ativamente politizadas. Ou
seja: “o pessoal é político” – gênero, raça/etnia, sexualidade, geração (entre outros
marcadores de diferenças sociais), no mínimo, já estão fortemente politizados na cena
pública e política brasileira. E também já podemos perceber que há reações contra esses
avanços. Parece-me urgente que, também a ciência politica brasileira possa agir nesse
novo cenário (como já o fez em outros momentos). Mas espero, desta vez, não para
reforçar conservadorismos (porque naturaliza, silencia e invisibiliza, novamente) mas,
quem sabe, finalmente, para radicalizar esforços na direção e no reforço da dinâmica de
destradicionalização que já está em curso em nossas sociedades, colaborando
ativamente no escopo do enquadramento de nossas instituições políticas e sociais e
também no âmbito da nossa cultura para usar categorias desestablizadoras desse
conservadorismo: despatraircalizar, desracializar, desheteronormatizar continuamente a
sociedade, a cultura, as experiências pessoais e o Estado.
Espero ainda que a ciência política possa se constituir como um elemento
importante desta nova fase em que se torna urgente e necessário não apenas um teorizar
complexo, mas também um agir complexo (e na simultaneidade). Se as dinâmicas de
interação da destradicionalização e seus respectivos atores/as são interseccionais, as
lutas e a produção do saber sobre elas, também precisam ser. Para uma possível
reversão desse quadro de valores neoconservadores (re)ativados no Brasil parece-me
igualmente que será estratégico: (1) Lutas articuladas entre diferentes movimentos
sociais (feminista, negro, indígena, rural, juventudes etc.) e intra movimentos; (2)
Articulações estreitas com as novas formas de ativismo online e em rede; (3) Recurso às
articulações com lideranças jovens e renovar esforços de (re)sensibilização das antigas
lideranças; (4) Luta por um redesenho definitivo de Estado laico e decolonizado; (5)
Afirmar uma teoria e uma forma de constituição do saber igualmente decolonizado.
25
É assim que termino este ensaio afirmando que realizar o substantivo da
democracia implica um nível de consolidação e de qualidade do processo democrático
onde as instituições não existam apenas arroladas no papel e/ou repetindo as raízes
tradicionais e colonizadas do elitismo e da exclusão cidadã, mas que sejam fruto de um
trabalho permanente e regular de garantia de que cada cidadão e cidadã tenha seus
direitos garantidos e que tais direitos sejam, de fato, vividos/experimentados tanto na
sua forma quanto em seu conteúdo, independentemente deste/a cidadão/ã ser mulher,
negro/a, gay/lésbica/transsexual, jovem, pobre etc.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVAREZ, Sonia (2000). “A “globalização” dos feminismos latino-americanos: tendências dos anos 90
e desafios para o novo milênio”. Em Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos: novas
leituras, Sonia Alvarez, Evelina Dagnino e Arturo Escobar (orgs): 383-426. Belo Horizonte: Editora
UFMG.

ALVAREZ, Sonia. (2009). Beyond NGO-ization? Reflections from Latin America. Development, Rome,
n. 52, p. 175-184.

ALVAREZ, Sonia et al (2003). “Encontrando os feminismos latino-americanos e caribenhos”. Revista


Estudos Feministas, N° 2, Vol. 11: 541-575.

BRASIL (2008). II Plano Nacional de Política para as Mulheres. Secretaria Especial de Política para as
Mulheres, Brasília.Visita 20 dez. 2010 em: <http://www.sepm.gov.br/pnpm/livro-ii-pnpm-
completo09.09.2009.pdf>

EISEINSTEIN, Zillah. (1979), The capitalist patriarchy and the case for socialist feminism. New York:
Monthly Review Press.

FERNÓS, María D (2010). “National mechanism for gender equality and empowerment of women in
Latin America and the Caribbean region”. Serie Mujer y Desarollo, ECLAC, junho, Nº102.

GERGEN, M. M. (ed.). Feminist Thougth na the structure of knowledge. New York, London: New York
University Press, 1988.

GROSFOGUEL, Ramón (1996), "From Cepalismo to Neoliberalism: A World−System Approach to


Conceptual Shifts in Latin America", Review, 19(2), 131−154.

GROSFOGUEL, Ramón (2002), "Colonial Difference, Geopolitics of Knowledge and Global Coloniality
in the Modern/Colonial Capitalist World−System", Review, 25(3), 203−224.

GROSFOGUEL, Ramón (2005), "The Implications of Subaltern Epistemologies for Global Capitalism:
Transmodernity, Border Thinking and Global Coloniality", in William Robinson; Richard Applebaum
(orgs.), Critical Globalization Studies. London: Routledge.
____________________ (2006a), "From Postcolonial Studies to Decolonial Studies: Decolonizing
Postcolonial Studies: A Preface", Review, 29(2).
____________________ (2006b), "World−System Analysis in the Context of Transmodernity, Border
Thinking and Global Coloniality", Review, 29(2).
_____________________ (2008) “Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos
pós−coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global”. In: Revista Crítica de
Ciências Sociais, no. 80, Março de 2008, p. 115 a 147. Disponível em:
http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=2763903 , última consulta em 19 de setembro de 2011.

26
GUZMÁN, Virginia (2001). “La institucionalidad de género en el estado: Nuevas perspectivas de
análisis”. Serie Mujer y Desarollo, ECLAC, março, Nº32.

HARAWAY, D.(1988) "Situated knowledges: the science question in feminism and the privilege of
partial
perspective".Feminist Studies. New York: Routledge,n. 14, p. 575-99, 1988.

HARDING, S. (1988) “Is Science multicultural?” Challenges, resources, opportunities, uncertainty.


Bloomington: Indiana University, 1998.

___________. (1986) The Science Question in Feminism. Ithaca: Cornell University Press, 1986.

HEILBRON, Maria Luiza. & ARRUDA, Angela. (1995). Legado feminista e ONGs de mulheres: notas
preliminares. In: NÚCLEO DE ESTUDOS DA MULHER E POLÍTICAS PÚBLICAS. Gênero e
Desenvolvimento institucional em ONGs. Rio de Janeiro: IBAM.

KELLER, E. F.(1985). Reflections on Gender and Science. New Haven: Yale University Press, 1985.

LOVENDUSKI, Joni (2005). State Feminism and Political Representation. New York: Cambridge
University Press.

MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES (s/f). O que é a Marcha Mundial das Mulheres? Visita 20
março 2012 em < http://sof.org.br/marcha/?pagina=aMarcha>

MATOS, Marlise (2008). Teorias de gênero e teorias e gênero? Se e como os estudos de gênero e
feministas se transformaram em um campo novo para as ciências. Revista Estudos Feministas
(Florianópolis), v. 16, n. 2, maio/ago., p. 333-357.

MATOS, Marlise (2010). “Movimento e teoria feminista: É possível reconstruir a teoria feminista partir
do Sul global?” Revista de Sociologia e Política, junho, Nº 36, Vol. 18.

MATOS, Marlise.(2012). O Campo Científico-critico-emancipatório das Diferenças como Experiência


de Descolonização Acadêmica. In: Flavia Biroli ; Luis Felipe Miguel. (Org.). Teoria Política e
Feminismo. Vinhedo Belo Horizonte, 2012, v. 01, p. 47-101.

MATOS, Marlise & NEPEM (2011). Relatório Técnico Final. “A representação política feminina na
América Latina e Caribe: Condicionantes e desafios à democracia na região”. Brasília: CNPq. Janeiro de
2011.

MATOS, Marlise & NEPEM (2013). Relatório Técnico Final. “Mulheres e Políticas Públicas na América
Latina e Caribe: Desafios à Democracia na Região”. Brasília: CNPq. Fevereiro de 2013.

MCBRIDE, Dorothy E. MAZUR, Amy G (2008). “State Feminism”. Em Politics, gender, and concepts:
theory and methodology, Gary Goertz, Amy G Mazur (ed.): 244-269. Cambridge University Press.

MACKINNON, Catharine.(1995) Hacia una Teoria Feminista del Estado. Madrid: Cátedra.

México (2008). Programa Nacional para la Igualdad entre Mujeres y Hombres 2008-2012. Cidade do
México: Inmujeres, jul.

MONTAÑO, Sonia (2006). “Sostenibilidad política, técnica y financiera de los mecanismos para el
Adelanto de las Mujeres”. CEPAL, 39ª reunión de la Mesa Directiva de la Conferencia Regional sobre la
Mujer de América Latina y el Caribe. México. [Versión electrónica]

27
NOBRE, Miriam & TROUT, Willhelmina (2008). “Feminismo en la construcción colectiva de
alternativas”. Contexto Latinoamericano, Nº 7.

PANIZZA, Francisco (2006) “La marea rosa”. Análise de Conjuntura OPSA, n. 8.

PINTO, Céli Regina Jardim. (2003). Uma História do Feminismo no Brasil. São Paulo: Ed. Perseu
Abramo.

PRATS, J (2006). A los príncipes republicanos: Governanza y desarrollo desde el republicanismo


cívico. Madri: INAP.

SPIVAK, G. (1988) ,In Other Worls: essays in cultural politics. New York: Routledge, Kegan and Paul, 1988.

República Dominicana (2007). Plan Nacional de Igualdad y Equidad de Género 2007-2017. Ministerio de
la Mujer.

SADER, Emir (2009). A Nova Toupeira. São Paulo: Boitempo Editorial.

SCHOTT, Robin. Eros e os processos cognitivos: uma crítica da objetividade em filosofia. Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 1996. 285 p.

SILVA, Fabrício Pereira da (2010). “Até onde vai a ‘onda rosa’?”. Análise de Conjuntura OPSA n.2, fev.
2010.

VARGAS, Virginia (2008). Feminismos en América Latina: Su aporte a la política y a la democracia.


Lima: Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Colección Transformación Global.

Uruguay (2007). Primer Plan Nacional de Igualdad de Oportunidades y Derechos (2007-2011): políticas
públicas hacia las mujeres. Instituto Nacional de las Mujeres.

WALBY, Sylvia. (1990), Theorizing Patriarchy. Oxford, Basil Blackwell.

WEBER, Max. (1981) Ensaios de Sociologia. Ed. Guanabara: Rio de Janeiro.

YOUNG, I. M. 2000a. Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press.


______. 2000b [1990]. La justicia y la política de la diferencia. Traducción de Silvina Álvarez. Madrid: Ediciones
Cátedra.
_______ . 2006. “Representação política, identidade e minorias”. Revista Lua Nova, São Paulo, 67, 139-190.
_______. 2007. Global challenges: war, self determination and responsibility for justice. Cambridge: Polity.
_______. 2009 [1997]. Categorias desajustadas: uma crítica à teoria dual de sistemas de Nancy Fraser. Revista
Brasileira de Ciência Política, Brasília, v. 1, n.2, p. 193-214, 2009.

28

Você também pode gostar